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Luzia Homem  
de Domingos Olímpio        

CAPÍTULO  I            

   O  morro  do  Curral  do  Açougue  emergia  em  suave  declive  da  campina  ondulada. Escorchado, indigente de arvoredo, o cômoro enegrecido pelo sangue de  reses sem conto, deixara de ser o sítio sinistro do matadouro e a pousada predileta  de bandos de urubus-tingas e camirangas vorazes.        
   Bateram-se os vastos currais, de grossos esteios de aroeira, fincados a pique,  rijos como barras de ferro, currais seculares, obra ciclópica, da qual restava apenas,  como lúgubre vestígio, o moirão ligeiramente inclinado, adelgaçado no centro, polido  pelo contínuo atrito das cordas de laçar as vítimas, que a ele eram arrastadas aos  empuxões, bufando, resistindo, ou entregando,  resignadas e mansas, o pescoço à  faca do magarefe. Ali, no sítio de morte,  fervilhavam, então, em ruidosa diligência,  legiões de operários construindo a penitenciária de Sobral.          
   No  cabeço  saturado  de  sangue,  nu  e  árido,  destacando-se  do  perfil  verde- escuro da serra Meruoca, e dominando o vale, onde repousava, reluzente ao sol, a  formosa cidade intelectual, a casaria branca alinhada em ruas extensas e largas, os  telhados  vermelhos  e  as  altas  torres  dos  templos,  rebrilhando  em  esplendores  abrasados,  surgia  em  linhas  severas  e  fortes,  o  castelo  da  prisão,  traçado  pelo  engenho de João Braga, massa ainda informe, áspera e escura, de muralhas sem  reboco, enteadas em confusa floresta de andaimes a esgalharem e crescerem, dia a  dia, numa exuberância fantástica de vegetação despida de folhas, de flores e frutos.  Pela encosta de cortante piçarra, desagregado em finíssimo pó, subia e descia, em  fileiras tortuosas, o formigueiro de retirantes, velhos e moços, mulheres e meninos,  conduzindo  materiais  para  a  obra.  Era  um  incessante  vai  e  vem  de  figuras  pitorescas, esquálidas, pacientes, recordando os heróicos povos cativos, erguendo  monumentos imortais ao vencedor.         
  Acertara  a  Comissão  de  Socorros  em  substituir  a  esmola  depressora  pelo  salário emulativo, pago em rações de farinha de mandioca, arroz, carne de charque,  feijão  e  bacalhau,  verdadeiras  gulodices  para  infelizes  criaturas,  açoitadas  pelo  flagelo  da  seca,  a  calamidade  estupenda  e  horrível  que  devastava  o  sertão  combusto. Vinham de longe aqueles magotes heróicos, atravessando montanhas e  planícies, por estradas ásperas, quase nus, nutridos de cardos, raízes intoxicantes e  palmitos amargos, devoradas as entranhas pela sede, a pele curtida pelo implacável  sol incandescente.         
  Na   construção   da   cadeia   havia   trabalho   para   todos.   Os   mais   fracos,  debilitados  pela  idade  ou  pelo  sofrimento,  carregavam  areia  e  água;  aqueles  que  não  suportavam  mais  a  fadiga  de  andar  amoleciam  cipós  para  amarradio  de  andaimes;  outros  menos  escarvados  amassavam  cal;  os  moços  ainda  robustos,  homens de rija têmpera, superiores às inclemências, sóbrios e valentes, reluziam de  suor britando pedra, guindando material aos pedreiros, ou conduzindo às costas, de  longe,  das  matas  do  sobpé  da  serra,  grossos  madeiros  enfeitados  de  palmas  virentes, de ramos de pereiro de um verde fresco e brilhante, em festivo contraste  com  o  sítio  ressequido  e  desolado.  E  davam  conta  da  tarefa,  suave  ou  rude,  uns  gemendo,   outros   cantando   álacres,   numa   expansão   de   alívio,   de   esperança  renascida,  velhas  canções,  piedosas  trovas  inolvidáveis,  ou  contemplando  com  tristeza nostálgica, o céu impassível, sempre límpido e azul, deslumbrante de luz.          
  Esse  concerto  esdrúxulo  de  vozes  humanas  em  cânticos  e  queixumes,  de  rugidos da matéria transformando-se aos dentes dos instrumentos, aos golpes dos  martelos, de brados de comando dos mestres e feitores, essa melopéia do trabalho  amargurado ou feliz, era, às vezes, interrompido por estrídulos assobios, alarido de  gritos, gargalhadas rasgadas e as vaias de  meninos que se esganiçavam: era uma  velha  alquebrada  que  deixara  cair  a  trouxa  de  areia;  um  cabra  alto  de  hirsuta  cabeleira     marrafenta,     lambuzado      de    cal,   que    escorregara     ao    galgar    uma  desconjuntada   e   vacilante   escada,   e   lançava   olhares   ferozes   à   turba   que   o  chasqueava, era a carreira constante das moças e meninas para as quais o trabalho  era  um  brinquedo;  eram  gritos  de  dor  de  um  machucado,  rodeado  pela  multidão  curiosa  e  compassiva,  ou  os  gemidos  de  algum  infeliz,  tombando  prostrado  de  fadiga, pedindo pelo amor de Deus, no estertor da hora extrema, não o deixassem  morrer sem confissão, sem luz, como um bicho.          
  Cercava   o   edifício   em   construção,   um   exótico   arraial   de   latadas,   de  choupanas,  de  
ranchos  improvisados,  onde  trabalhavam  carpinteiros  falqueando  longas  vigas  de  pau-d"arco,  frechais  de  frei-jorge  e  gonçalo-alves,  ou  serrando  e  aplainando cheirosas tábuas de cedro. Marcando a subida do morro, se alinhavam  em  rua  tortuosa,  pequenas  barracas  feitas  de  costaneiras,  cascas  e  sarrafos,  as  quais serviam de abrigo às costureiras, fazendo, dos sacos de víveres, roupa para  os esmolambados, envoltos em nojentos trapos que lhes mal disfarçavam o pudor e  a  horrenda  magreza  esquálida.  De  outras  barracas  subia  ao  ar,  em  novelos  espessos  ou  tênues  espirais  azuladas,  o  fumo de  lareiras,  onde,  sobre  toscas  trempes  de  pedra,  ferviam,  roncando  aos  borbotões,  grandes  panelas  de  ferro,  repletas de comida.          
  Ao cair da tarde, quando cálida neblina  irradiava da terra abrasada, esbatia o  recorte  das  montanhas  ao  longe,  e  adelgaçava  o  colorido  da  paisagem  em  tons  pardacentos e confusos, o sino da Matriz, como um colossal lamento, troava a Ave- Maria. Cessava o rumor e o mestre da obra batia com o pesado martelo o prego, em  solene cadência, anunciando o termo do trabalho.          
  A multidão de operários,  depois de silenciosa e contrita prece, se agrupava  em    torno    dos   feitores;   e,   respondido     o   ponto,    desfilava,    depositando,     em  determinado  sítio,  a  ferramenta  e  vasilhame.  Fatigada,  suarenta,  dispersava-se,  dividindo-se  em  grupos,  seguindo  várias  direções  em  busca  de  pousada,  ou  desdobrando-se  na  curva  dos  caminhos,  nas  forquilhas  das  encruzilhadas,  até  se  sumir como sombras desgarradas, imersas na caligem da noite iminente.          
  Começava,  então,  a  vida  nos  acampamentos,  desertos  durante  o  dia.  E  descantes à viola, ruídos de sambas saracoteados, de vozes lâmures ou irritadas, de  gargalhadas  incontinentes  formavam  incoerentes  acordes  com  as  rajadas  ásperas  de viração a silvar nos galhos secos e contorcidos das moitas mortas de jurema e  mofumbo, ou nas palmas virentes das carnaubeiras imortais.        
  No  céu  límpido,  profundo  e  sereno,  em  quietude  de  lago  tranqüilo,  sem  as  manchas de nuvens errantes, tremeluziam  em esplêndidas constelações, miríades  de  estrelas.  Na  terra  escura,  um  colar  de  luzes  tímidas,  como  círios  melancólicos  velando  enorme  esquife,  cercava  a  cidade  adormecida  em  torpor  de  monstro  saciado. E no alto sinistro do curral do Açougue, erguia-se, silenciosa e solitária, a  molhe  sombria  da  penitenciária,  como  um  lúgubre  monumento  consagrado  à  maldade humana.  

CAPÍTULO  II           
 O francês Paul — misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que,  na   despreocupada   viagem   de   aventura   pelo   mundo,   encalhara   em   Sobral,  costumava  vaguear  pelos  
ranchos  de  retirantes,  colhendo,  com  apurada  e  firme  observação,  documentos  da  vida  do  povo,  nos  seus  aspectos  mais  exóticos,  ou  rabiscando  notas  curiosas,  ilustradas  com  esboços  de  tipos  originais,  cenas  e  paisagens  —  trabalho  paciente  e  douto,  perdido  no  seu  espólio  de  alfarrábios,  de  coleções  de  botânica  e  geologia,  quando  morreu,  inanido  pelos  jejuns,  como  um  santo.         
 Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu  caderno de notas:          "Passou  por  mim  uma  mulher  extraordinária,  carregando  uma  parede  na  cabeça."   Era  Luzia,  conduzindo  para  a  obra,  arrumados  sobre  uma  tábua,  cinqüenta  tijolos.          
 Viram-na outros levar, firme, sobre a  cabeça, uma enorme jarra d"água, que  valia três potes, de peso calculado para  a força normal de um homem robusto. De  outra  feita,  removera,  e  assentara  no  lugar  próprio,  a  soleira  de  granito  da  porta  principal  da  prisão,  causando  pasmo  aos  mais  valentes  operários,  que  haviam  tentado,  em  vão,  a  façanha  e,  com  eles,  Raulino  Uchoa,  sertanejo  hercúleo  e  afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava em pitorescas narrativas.          
 Em  plena  florescência  de  mocidade  e  saúde,  a  extraordinária  mulher,  que  tanto  impressionara  o  francês  Paul,  encobria  os  músculos  de  aço  sob  as  formas  esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada  por um manto de algodãozinho, cujas curelas prendia aos alvos dentes, como se,  por um requinte de casquilhice, cuidasse  com meticuloso interesse de preservar o  rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo  adusto,  donde  ao  tênue  borrifo  de  chuvas  fecundantes,  surgiam,  por  encanto,  alfombras  de  relva  virente  e  flores  odorosas.  Pouco  expansiva,  sempre  em  tímido  recato,  vivia  só,  afastada  dos  grupos  de  consortes  de  infortúnio,  e  quase  não  conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a  sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.          
  — É de uma soberbia desmarcada — diziam as moças da mesma idade, na  grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.          
 — A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora  dona  —  murmuravam  os  rapazes  remordidos  pelo  despeito  da  invencível  recusa,  impassível  às  suas  insinuações  galantes. 
 —  Aquilo  nem  parece  mulher  fêmea  —  observava  uma  velha  alcoveta  e  curandeira  de  profissão.  Reparem  que  ela  tem  cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...        
  — Qual, tia Catirina! O Lixande que o  diga! — mandou uma cabocla roliça e  bronzeada, de dentes de piranha, toda adornada de jóias de pechisbeque e fios de  miçanga, muito besuntada de óleos cheirosos.           — Não diga isso que é uma blasfémia — atalhou Teresinha  loura, delgada e  grácil, de olhar petulante e irônico, toda  ela requebrada em movimentos suaves de  gata amorosa.          — Por ela eu puno; meto a mão no fogo...          
 —  Havia  de  sair  torrada.  Isso  de  mulher,  hoje  em  dia,  é  mesmo  uma  desgraceira...       
 — Mas você não pode negar que ela viva no seu canto sossegada sem se  importar com a vida dos outros e fazendo  pela sua, como uma moira de trabalho.  Vocês,  suas  invejosas,  não  a  poupam;  não  tendo  para  dizer  dela  um  tico  assim,  vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada  do mundo...          
 — Tu a defendes, porque és parceira dela...         
 —  Antes  fosse!  ...  Outros  galos  me  cantariam.  Não  andaria  aqui,  sem  eira  nem  beira,  metida  nesta  canalhada  de  retirantes.  Quem  me  dera  ser  como  Luzia,  moça de respeito e de vergonha.         
 —  Quem  perdeu  tudo  isso  para  ela  achar?...  obtemperou  numa  rasgada  gargalhada de sarcasmo brutal, a roliça cabocla de agudos dentes.         
 — Qual? ... Vão atrás da sonsa! ...         
 —   Deixem  estar  que  há  de  ser  como  as  outras.  Em  boniteza,  verdade,  verdade,  mete  vocês  todas  num  chinelo.  Aquilo  é  mulher  para  dar  e  apanhar  —  disse  chasqueando  um  soldado  de  linha,  destacado  no  Curral  do  Açougue  para  manter  a  ordem,  pois  não  raro  rixavam  e  se  engalfinhavam  mulheres,  ou  se  esboroavam  homens  por  fúteis  pretextos:  houvera  mesmo  sérios  conflitos  e  lutas  sangrentas, tão abatido estava, naquela pobre gente o senso moral.         
 —  Vão  ver  que  você,  seu  Crapiúna,  também  está  fazendo  roda  a  Luzia- Homem?!...          
  Crapiúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado  pelas mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões doirados,  o cinturão e a baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouli da  pomada,  que  lhe  embastia  a  marrafa  e  o  bigode,  teso  e  fino  como  um  espeto.  Possuía, apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal  caprichoso,  e  fútil,  a  mulher  de  todas  as  categorias  e  condições  sociais,  talvez  porque, sendo fraca, naturalmente, se deixa atrair pelas manifestações da força.          
 Contavam  dele  histórias  emotivas,  aventuras  galantes,  feitos  de  bravura,  façanhas  na  perseguição  de  criminosos  célebres;  ele  estivera  nas  escoltas  que  prenderam o facínora José Gabriel e o cangaceiro Zé Antônio do Fechado, cavaleiro  e  bravo  à  antiga,  de  raça  de  heróis,  os  Brilhantes,  Ataídes,  e  Vicente  Lopes  do  Caminhadeira,  representantes  dispersos,     atávicos,  espécimens  ferozes de banditismo que foi a glória de Portugal, e  lhe conquistou mundos, descobrindo-os,  roubando-os  com  a  indômita  coragem  de  piratas,  consagrados  pela  imperecível  gratidão da pátria à póstera veneração.         
  Não faltavam ao soldado feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa  bem conformada, sem vícios que lhe dessem o realce de um afortunado. Dizia-se, à  puridade,  nos  colóquios  da  protérvia  popular,  que,  antes  de  ser  recrutado  por  audácias  sensuais,  e  envergar  a  farda,  fora  guarda-costas  de  um  famigerado  fazendeiro da Barbalha, onde executara proezas cruéis, de pasmar, em verdes anos,  pois mal lhe despontava, então, o buço. Tinha o ativo de três mortes e outros crimes  menores, valendo-lhe isto por título ao temeroso respeito do povo.          
  A insinuação de Romana ferira certo o alvo, e assanhara a secreta cupidez de  Crapiúna, que não se conformava com os modos retraídos e a impassível frieza da  mulher-homem,  resistência  passiva  e  calma,  ante  a  qual  se  amesquinhava  a  sua  fama e sentia arranhado o amor-próprio de  vitorioso em fáceis conquistas. Sempre  que  a  encontrava,  dirigia-lhe,  com  saudações  reverentes,  palavras  de  ternura  e  erotismos   incontinentes,   olhares   e   gestos   de   desejos   mal   sofreados.   E,   tãofreqüentes se tornaram esses meios de obsessão, que um dia a moça os rebateu  secamente, com firmeza inelutável:           — Deixe-me sossegada. Não se meta com a minha vida. Eu não sou o que o  senhor supõe...         
 —  Deixa-te  de  luxos,  rapariga  —  respondeu  Crapiúna,  mostrando-lhe  um  grosso anel de ouro. 
 — Olha a memória de ouro que tenho para ti... Não te zangues  com o teu mulato...       
   Desde  então  entrou  a  acompanhá-la,  a  perseguí-la  por  toda  a  parte,  nas  horas de trabalho na penitenciária, nas caminhadas ao rio e a rondar durante a noite  pela vizinhança da casinha velha, lá  para as bandas da Lagoa do Junco, onde ela  morava com a mãe, velha e enferma, a boa, a santa tia Zefa.           Exasperada   por   essa   obsessão   afrontosa,   cada   vez   mais   ardente   e  descomedida,  Luzia    queixou-se      ao    administrador      que     obteve     do   tenente,  comandante do destacamento, a remoção do temerário galante para outros serviços,  guarda e faxina da prisão e, nos dias de folga, a polícia da feira.          O tão severo, merecido castigo penetrou fundo no duro coração do soldado,  remexendo a vasa de instintos, ali sedimentada em demorado repouso. Mais ainda  lhe moeram os melindres, os comentários irreverentes, os aplausos, as insinuações  ferinas e o chasco de ser punido por queixa da mulher apetecida, a quem ele, com  fingido desdém, chamara uma retirante à-toa, sem eira nem beira, toda arrebitada de  luxos  e  medeixes.  E  ainda  mais  o  estomagava  o  ser  a  opinião,  em  esmagadora  maioria, favorável ao castigo.      Acharam  todos  fora  acertada  providência  tirar  aquela  onça  do  pasto  para  tranqüilidade   e   segurança   das   moças   e   das   mulheres   casadas,   pois   já   era  demasiada a falta de respeito escandalizadora. Aquele homem de maus bofes, era  um perigo. E surdiam histórias de crimes, anedotas grotescas, revelação de casos  repugnantes,  verdadeiros  ou  inventados  pela  fantasia  do  populacho  nos  excessos  de   saborear  a   vingança, denegrindo-lhe  a  reputação  e   deturpando-o  para  transformá-lo de pelintra quente e apaixonado, em reles monstro horripilante.          
  Crapiúna  sabia  dessas  más  ausências,  das  calúnias  e  falsos  testemunhos  que   lhe   levantavam,   cobardemente,   pelas   costas;   das   pragas   e   esconjuros,  arrogados  pelas  suas  vítimas  e  desafetos.  Safados  uns,  ingratos  outros.  Corja  de  mal-agradecidos, que já se não lembravam dos benefícios de ontem. A muitos deles,  desses que agora o malsinam por intrigas de mulheres, havia morto a fome. Não se  tinha em conta de santo, confessava; fizera certas vadiações de homem solteiro, que  não tinha contas que dar; mas ninguém lhe podia lançar em rosto o haver aforciado  mulheres  honestas.  Quanto  à  remoção,  até  dava  graças  a  Deus  por  se  ver  livre  daquela  cambada  de  retirantes  nojentos  e   leprosos,  cujo  aspecto,  em  jejum,  causava engulhos; seria, entretanto, melhor sair da obra por sua livre vontade e não  por queixa... E logo de quem? De Luzia-Homem... Oh? O diabo daquela sonsa era  capaz de virar pelo avesso o juízo de uma  criatura, e provocar muita desgraça por  causa  daquele  imposão  de  querer  ser  melhor  que  as  outras...  Tirando-lhe  a  força  bruta, não passava de uma pobre tatu, que só tem por si o dia e a noite.          
 —Você está... — mas é fisgado pela macho e fêmea — arriscou o camarada  Belota que lhe ouvia a confidência — Aquilo tem mandinga... Quem sabe se não te  enfeitiçou! ... Olha que ela tem uns olhos que furam a gente.... E então — aquela  cabeleira...  Acho  melhor  pedir  à  Chica  Seridó  uma  oração  forte  para  desmanchar  quebrantos e fechar o corpo contra mau olhado.          
 — Qual, o quê!... — retorquiu Crapiúna, com afetado desdém — Eu até nem  gosto  dela...  Não  lhe  acho  graça...  Depois...  com  semelhante  força...  nem  parece  mulher...          
 —  Tira  o  cavalo  da  chuva  e  conta  a  história  direito,  Crapiúna.  Todas  as  mulheres  são  iguais  e  merecem  tudo;  a  demora  é  grelar  no  coração  o  capricho,  principalmente,  quando  resistem.  Fora  ela  um  monstro  da  natureza;  paixão  não  enxerga  nem  repara  e,  quando  nos  ataca,  é  como  o  sarampo:  até  jasmim  de  cachorro  é  remédio.  E  deixa  falar  quem  quiser,  que  é  soberba,  sonsa,  mal- ensinada...   Ela   não   é   nenhum   peixe   podre.   Não   reparaste   naqueles   quartos  redondos, no caculo do queixo. Na boca encarnada como um cravo?! E o buço?! ...  Sou  caidinho  por  um  buço  ...  Ela  quase  que  tem  passa-piolho,  o  demônio  da  cabrocha...          
 —  O  que  mais  me  admira  é  que  não  se  diz  dela  tanto  assim  —  afirmou  Crapiúna pensativo, riscando com a unha do polegar a ponta do indicador.         
 — É por ser mais velhaca que as outras... Pergunta ao Alexandre...          
 —  Que  Alexandre?  Aquele  alvarinto  que  servia  de  apontador  na  obra:  e  passou  depois  para  o  armazém  da  Comissão?  ...  Aquilo  é  defunto  em  pé.  Não  é  qualidade de homem para um como eu.          — O caso é que ele gosta dela. Estão  sempre perto um do outro, ao passo  que  o  Crapiúna  velho  foi  posto  fora,  como  um  cachorro  tinhoso,  e  está  aqui  gemendo no serviço...            
 E como o soldado, em cujo coração se derramara fel, ficasse a cismar, Belota  afastou-se com um gracejo ferino:             
  — Ali é ver com os olhos e comer com a testa ou lamber vidro de veneno por  fora, como rato de botica. Toma o meu  conselho. Não te metas com a bruxa que  cheiras vara! Crapiúna  não  o  ouviu.  Contorcendo-se  no  martírio  de  onça  acuada,  com  o  coração caldeado no peito, estremecia à suspeita de um rival venturoso na disputa  da cobiçada presa.      

CAPÍTULO  III            

  A população da cidade triplicava com a extraordinária afluência de retirantes.  Casas de taipa, palhoças, latadas, ranchos e abarracamentos do subúrbio, estavam  repletos  a  transbordarem.  Mesmo  sob  os  tamarineiros  das  praças  se  aboletavam  famílias no extremo passo da miséria -  resíduos da torrente humana que dia e noite  atravessava  a  rua  da  Vitória,  onde  entroncavam  os  caminhos  e  a  estrada  real,  traçado ao lado esquerdo do rio Acaracul, até ao mar, Eram pedaços da multidão,  varrida  dos  lares  pelo  flagelo,  encalhando  no  lento  percurso  da  tétrica  viagem  através  do  sertão  tostado,  como  terra  de  maldição  ferida  pela  ira  de  Deus;  esquálidas  criaturas  de  aspecto  horripilante,  esqueletos  automáticos  dentro  de  fantásticos  trajes,  rendilhados  de  trapos  sórdidos,  de  uma  sujidade  nauseante,  empapados  de  sangue  purulento  das  úlceras,  que  lhes  carcomiam  a  pele,  até  descobrirem os ossos, nas articulações deformadas. E o céu límpido, sereno, de um  azul doce de líquida safira, sem uma nuvem mensageira de esperança, vasculhado  pela  viração  aquecida,  ou  intermitentes  redemoinhos  a  sublevarem bulcões  de  pó  amarelo, envolvendo como um nimbo, a trágica procissão do êxodo.        
  Luzia  viera  na  enxurrada,  marchando,  lentamente,  a  curtas  jornadas,  e  fora  forçada a esbarrar na cidade, por já não poder conduzir a mãe  doente. Do capitão  Francisco  Marçal,  o  homem  mais  popular  da  terra,  tão  procurado  padrinho,  que  contratara com o vigário pagar-lhe uma quantia certa, todos os anos, por espórtulas  dos batizados, obtivera, por felicidade, uma casinha velha e desaprumada, onde se  aboletou  com  relativo  conforto.  A  vida  lhe  correu  bem  durante  seis  meses.  Havia  trabalho e ela ganhava o suficiente para se prover quase com fartura, Mas o coração  pressentia,  então,  com  vago  terror,  o  perigo  das  pretensões  de  Crapiúna  e  ela  procurava,  por  todos  os  meios,  evitá-lo.  Seu  primeiro  impulso,  depois  que  lhe  ele  ousara  falar  em  termos  desabridos,  foi  anoitecer  e  não  amanhecer;  emigrar,  confundir-se  nas  levas  de  famintos  em  busca  das  praias  ubertosas,  com  os  lagos  povoados  de  curimãs,  em  cardumes  assombrosos,  os  tabuleiros  irrigados  por  orvalho  abundante,  cheios  de  plantações,  e  confinando,  em  contraste  consolador,  com a planície seca e estorricada.          
  Além  se  desdobrava  o  grande,  o  soberbo  mar  infindo  e  glauco,  a  rugir  lamentoso,  despejando,  envolta  em  rendas  de  espuma,  a  generosa  esmola  de  peixes,  moluscos  e  crustáceos  saborosos.  Com  a  proteção  de  Maria  Santíssima  venceria a travessia. Vinte léguas galgam-se depressa. Talvez tombasse, como os  míseros,  cujas  ossadas  alvejantes,  descarnadas  pelos  urubus  e  marcarás,  iam  marcando o caminho das vítimas da calamidade.          
  E  a  mãe,  a  querida  mãezinha,  que  era  o  seu  tudo  neste  mundo?  Não  era  possível abandoná-la a cuidados estranhos, doente, quase entrevada, como estava,  a deitar a alma pela boca, quando a acometia o implacável puxado. Os brincos e o  cordão de ouro, que lhe dera a  madrinha, vendidos aos mascates da miséria, não  dariam  com  que  pagar  o  transporte  da  pobre  velha  em  carroças  puxadas  por  homens atrelados dois a dois, como animais de tiro. Era esse, naquela quadra de  infortúnio, o veículo das famílias abastadas, que já não possuíam cavalos e muares  de carga e montaria.         
  Nessa triste conjunção, venceu o dever.  Luzia ficou resoluta a enfrentar, de  ânimo sereno, o destino, e  aparelhada para suportar os mais dolorosos lances da  adversidade.   Continuaria   a   trabalhar   sem   desfalecimento,   retraindo-se   quanto  pudesse para evitar encontros com o importuno soldado. Por fortuna sua, Alexandre,  o   amigo    dedicado      e  afetuoso,     que   se    lhe   deparara     entre   a   multidão    de  desconhecidos  e  indiferentes,  moço  de  maneiras  brandas,  muito  paciente,  muito  carinhoso, com a tia Zefa, passando serões, noites em claro junto dela e da filha,  num recato de adoração muda e casta, lhe poupava o vexame de ir à cidade: era ele  que ia ao mercado comprar a quarta de carne fresca para o caldo da enferma, os  remédios  e  consultar  o  médico,  mister  em  que  era  auxiliado  pelo  Raulino,  outro  amigo da família.          
  Uma tarde, ao voltarem juntos da obra, Alexandre, impressionado pelo tom de  penosa preocupação bem acentuado no semblante de Luzia, disse-lhe a medo:           
  — Se a senhora não se zangasse, eu acabava com essa reinação, dando um  ensino ao Crapiúna ...        
  —  Não  quero  —  retorquiu  Luzia  vivamente  —  Não  tenho  medo  daquele  miserável, mas não desejo dar nas vistas dessa gente desabusada. Depois que hão  de  dizer?  ...  Você  não  é  nada  meu  para  tomar  dores  por  mim  ...  Aquilo  não  tem  entranhas de cristão: é um malfazejo ...           
  Alexandre  sentiu-se  humilhado,  supondo  que  a  moça  desconfiasse  do  seu  valor, e, continuou com brandura tímida:           
  — Não seria a primeira vez ... Não sou  nada seu, mas sou um homem capaz  de  jogar  a  vida  em  defesa  de  uma  mulher  de  bem.  Pensei  que  não  se  agravaria  comigo ...         
 — Agravar-me?! ... Não pensei nisso. Não quero que se sacrifique por mim,  que  já  muito  lhe  devo  —  favores  que  só  Deus  pagará.  Imagine  a  briga  de  dois  homens,  pancadas,  ferimentos,  um  crime  e  o  meu  nome  detestado  passando  de  boca em boca., Luzia-Homem causadora de tudo... Não quero, não. Faça de conta  que aquele mal-encarado homem não existe ... Não tenha receio, Alexandre, eu sei  defender-me. De mais a mais... tudo passa ...            
  Luzia  confiava  na  ausência,  mãe  do  esquecimento,  para  conjurar  o  perigo;  entretanto, um mês depois, recebeu uma carta de Crapiúna, transbordante de frases  de amor, em prosa e verso — protestos lânguidos e trovas populares, escritas em  péssima  letra  sobre  papel  de  cercadura  rendilhada,  tendo,  no  ângulo  superior,  à  esquerda,  um  coração  em  relevo,  crivado  de  setas,  desfechadas  por  travessos  Cupidinhos  alados.  E  leu-a  com  assombro  e  cólera,  como  se  as  letras  disformes,  enfileiradas  em  tortuosas  linhas,  e  o  pensamento  sensual  nelas  expressado,  lhe  vergastassem cruelmente o rosto.            — Este homem será o causador da minha desgraça — murmurou ela com um  soluce de pranto sufocado.        — Que tens, filha? — inquiriu a mãe... — Estás tão alterada? ... Que houve?         
  —   Nada,   mãezinha   —   respondeu   Luzia,   disfarçando   a   emoção   que   a  conturbava — É este labutar constante, sem esperança de melhoria, e a sua doença  que me apertam o coração ...        
  — Tu me encobres alguma coisa. Estás afrontada?             
 O  peito  de  Luzia  arfava  descompassado,  e  seus  rijos  seios  espetavam,  em  sacudidos golpes trêmulos, a delgada camisa.            
 —  Tenho  ouvido  dizer  —  continuou  ela  —  que  banhos  salgados  são  bons  para reumatismo. Se pudesse levá-la para as praias... Bastava chegarmos com vida  à  Barra.  Daí  para  os  Patos  é  um  pulo.  Ficaríamos  acostados  à  gente  do  meu  padrinho José Frederico, que é rico e bom para os pobres.         
 —  Tenho  medo...  Nunca  vi  o  mar.  Dizem  que  é  bonito,  perigo  e  traiçoeiro.  Inda  que  fosse  essa  viagem  a  salvação.  Como  queres  que  me  mexa?  Não  vês?  Estou  impossibilitada  de  andar  neste  quarto,  quanto  mais  para  fazer  a  travessia  deste sertão inclemente! ... Ai! ... Deus  não quer, filha. São os meus pecados, que  me encaranguejam as pernas. Já fiz uma promessa a São Francisco das Chagas de  Canindé para que ele me pusesse em estado de caminhar com os meus pés; e...  nada ... Cada vez mais me incham as juntas e se me entortam os ossos. . .             
  Subjugada  pelo  impossível  evidente,  inelutável,  a  moça  estraçalhou  com  as  unhas pontudas a carta fatal. A mãe tinha razão. Deus não queria. Era forçoso ficar,  amarrada àquele poste de amor e sacrifício,  onde morria, em lento martírio, a mãe  adorada, arrostar o perigo pressentido, o acinte da paixão do lúbrico soldado. Era  formoso ficar exposta ao insulto daquela atrevida e grosseira insistência repugnante;  e sucumbir, talvez, assoberbada de vilipêndio e ultrajada como as outras desditosas,  arrastadas pela miséria à crápula abjeta. Sob os músculos poderosos de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil,  afogada no sofrimento que  não transbordava em pranto, e só irradiava, em chispas  fulvas, nos grandes olhos de luminosa trevas      

CAPÍTULO  IV            

  Quando lhe serenou o ânimo atribulado, teve ímpetos de repelir o insulto com  represálias violentas, castigando, ela mesma, o insolente, custasse-lhe isto, embora,  muita vergonha, muito opróbrio, ou procurar auxilio na dedicação cega de Alexandre,  com  a  qual  sabia  poder  contar  para  a  vida  e  para  a  morte;  mas,  demoveram-na  desse passo, ponderações das conseqüências de escândalo, um crime possível e a  punição.   Não   queria   arriscar   o   moço,   cuja   alma   impetuosa   e   forte,   parecia  adormecida  sob  aparências  de  mansidão  e  doçura,  como  a  lâmina  de  uma  faca  acenada, escondida em bainha de veludo. Raulino era demasiado ardente; tinha o  coração na goela e seria capaz de estripulias graves. Demais, por lhe haver catado  valioso serviço, pareceria exigir a paga com o apelo ao seu concurso. Além desses,  não tinha um coração amigo onde fosse haurir conselho e procurar o inefável alívio  da  confidência,  válvula  benéfica  para   o  escoamento  das  mágoas,  pesares  e  desgostos.   
  As   moças   da   mesma   idade,   ainda   não   contaminadas   pelo   vírus  pecaminoso,   que   empestava   o   ambiente,   evitavam-na   com   maneiras   tímidas,  discreto acanhamento, como não fossem iguais  na condição e infortúnio. Muitas se  afastavam dela, da orgulhosa e seca Luzia-Homem com secreto terror, e lhe faziam  a furto figas e cruzes. Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços forrados de  pelúcia crespa e entonos de força, com ares varonis, uma virago, avessa a homens,  devera  ser  um  desses  erros  da  natureza,  marcados  com  o  estigma  dos  desvios  monstruosos  do  ventre  maldito  que  os  concebera.  Desgraça  que  lhe  acontecesse  não  seria  lamentada;  ninguém  se  apiedaria  dela,  que  mais  se  diria  um  réprobo,  abandonado, separado pela cerca de espinhos  da ironia malquerente, em redor da  qual girava o poviléu feroz a lapidá-la com chacotas, dictéríos e remoques. Tal se lhe  figurava, através dos exageros pessimistas, a sua triste situação.          
  Uma  vez,  estando  ela  a  banhar-se,  depois  de  cheio  o  grande  pote,  na  cacimba aberta no leito de  areia do rio, em sítio distante dos caminhos e aguadas  mais  freqüentadas,  surpreendeu-a  Teresinha,  a  rapariga  branca  e  alourada,  bem- parecida de cara e bem-feita de corpo, que era flexível como um junco, de sóbrias  carnações e contornos graciosos.         
  Estava  ainda  longe  o  dia.  As  barras  apenas  despontavam  no  levante  em  pálido  clarão  e  alguns  farrapos  de  nuvens  rubescentes.  Exposta  à  bafagem  da  madrugada, Luzia de pé, em plena nudez, entornava sobre a cabeça cuicas d"água  que lhe escorria pelo corpo reluzente, um primor de linhas vigorosas, como pintava a  superstição  do  povo  o  das  mães-d"água  lendárias,  estremecendo  em  arrepios  à  líquida carícia, e abrigado em manto da espessa cabeleira anelada que lhe tocava  os finos tornozelos. Ao perceber desenhar-se no lusco-fusco da neblina matinal, já  perto,  o  vulto  da  moça  a  contemplá-la,  soltou  um  grito  de  espanto  e  agachou-se,  cruzando os braços sobre os seios.         
  — Não tenha receio, sra Luzia. Sou eu — disse Teresinha, atirando o pote  sobre a areia — Vim também lavar-me com a fresca. É tão bom, neste tempo de  calor, poder molhar o corpo...          
  — Dê-me a camisa por favor — suplicou Luzia, transida de pejo, apontando  para a roupa amontoada.            Teresinha      não    despregava       dela    os   olhos,    em    êxtase     de   admirativa  curiosidade.  Deu-lhe  a  roupa,  e,  despindo-se  sem  o  menor  resguarde,  banhou-se  rapidamente.           
 — Você tem vergonha de outra mulher,  Luzia? Eu, não. Não sou torta, nem  aleijada, graças a Deus ...            Vestida a camisa que se lhe amoldou ao corpo molhado, como leve túnica de  estátua, Luzia não ousava erguer os olhos, tão confusa e perturbada estava.            
  —  Agora  sou  sua  defensora  —  continuou  a  outra  torcendo  os  cabelos  ensopados — Hei de punir por você em toda parte, porque vi com os meus olhos  que é uma mulher como eu, e que mulherão! ... Sabe? Outro dia estava numa roda  conversando  sobre  moças  que  não  há  nenhuma  honrada  para  aquelas  línguas  danadas, Falou-se de você e o Crapiúna, que estava ouvindo, disse que, por bem ou  por mal, lhe havia de tirar a teima.          
  — O Crapiúna? — exclamou Luzia com irrepreensível terror.         
  —  Sim.  Aquele  infame  soldado,  muito  metido  e  apresentado,  que  anda  perseguindo  a  gente.  É  um  gabola  para  quem  não  há  mulher  séria.  Não  se  fie  daquele malvado. Conheço muitas que ele desgraçou com partes de promessa de  casamento; e não teve coragem de dar-lhe um pedaço de pano para fazer uma saia.  A mim andou ele a afrontar com o anelão de ouro que traz no dedo, como isca para  as tolas. Eu não sou mais moça, confesso a minha desgraça, mas não me sujo com  semelhante desalmado.           
  Luzia  ouvia  calada,  com  os  olhos  fitos  na  cacimba,  onde  a  água  marejava  lentamente.           
  — Dizem que é criminoso.  Muito provocante e atrevido, outro dia quase teve  uma pega com o Alexandre por causa de  umas liberdades, que quis tomar com a  Quinotinha..  Não  foi  por  ciúme  que  o  outro  avançou  em  defesa  da  menina,  uma  criança inocente, coitadinha, que ainda não desceu o embainhado da saia. Só visto  se acredita. Era preciso ter cabelos no coração para fazer o que ele fez e ter sangue  de barata para suportar tamanho desaforo.          
  — Então o Alexandre?! ...           
  —  Avançou  para  ele  que  nem  uma  fera,  e  o  cabra  ficou  branco  como  um  defunto. Todo o homem de más entranhas, à traição, é, cascavel, mas, peito a peito,  é medroso. Alexandre já andava com ele de olho por sua causa ...         
  — Por mim?         
 — Ora, eu sei que ele gosta de você, mas não tem coragem de se declarar.  Olhe, minha camarada, procurando com uma vela acesa, não encontrará homem de  bem igual a ele. É pessoa de consideração e procedente de boa família. Dizem que  deixou moradas de casa e uma fazenda nos Crateús; mas essa desgraça da seca  acabou  com  tudo  e  o  obrigou  a  andar  trabalhando  para  arranjar  um  bocado  para  comer ... Ah! Também eu já tive muito de meu e agora vivo nesta miséria. Quando  saí  de  casa  com  o  Cazuza,  meus  pais,  graças  a  Deus,  ainda  possuíam  muita  farinha,  muito  milho  e  muito  arroz,  na  despensa,  não  falando  nas  matalotagens.  Depois, andamos vagando pelo sertão como casados, até que o perdi. Morreu de  bexigas,  o  pobre  ...  
  Eu  saíra  de  casa  com  a  roupa  do  corpo.  Vi-me  sozinha  no  mundo,  sem  ter  com  que  comprar  uma  tigela  de  feijão  ...  Fiz  então,  o  que  me  mandou  a  minha  ruim  cabeça...  E  por  aqui  ando  como  um  molambo,  sem  uma  criatura que se doa de mim... Ainda hei de contar-lhe a minha vida.            
  Teresinha limpou os olhos com as costas da mão, e suspirou. Sentada, em  desalinho, traçava na areia úmida, figuras cabalísticas,  entremeados de letras que  logo  apagava,  como  se  simbolizassem  importunas  e  saudosas  recordações  da  felicidade, para sempre perdida.           
 A cacimba transbordava. Os potes estavam cheios. Luzia torcia em rodilha um  trapo  de  antiga  toalha,  para equilibrar  o  seu  sobre  a  cabeça,  esperando  que  Teresinha lhe restituísse a cuia com que se banhava.           Nisto ouviram vozes e tropel humanos. Teresinha vestiu-se às pressas. Era o  triste  cortejo  da  faxina  diária  da  cadeia.  Dous  presos,  ligados  pelo  pescoço  por  comprida corrente de ferro, carregavam pendurada de um caibro, polido pelo uso, a  grande cuba contendo os dejetos da véspera, para despejá-los, longe da cidade, à  margem  do  rio,  nas  vazantes  onde,  em  tempos  prósperos,  medraram  melões  e  melancias.   Acompanhava-os   uma   escolta   de   soldados,   da   qual   se   destacou  Crapiúna, que se dirigiu às duas moças com maneiras de afetada severidade.                      
 — Então, suas vadias! Estão a sujar a água que a gente bebe? ... Corja de  porcas...  estas  retirantes  ...  Ai,  Jesus!  ...  Não  tinha  reparado  na  sra  dona  Luzia,  milagrosa santa dos meus olhos pecadores...          
 — Deixe a gente sossegada, seu Crapiúna — atalhou Teresinha.             Siga o seu caminho e não se importe com o que não é da sua conta...            
 — Não estou falando contigo, tábua de  bater roupa. O meu negócio é com  esta feiticeira soberba que furtou meu coração...           
 —  Você  diz  isto  —  replicou  Teresinha  —  é  por  estarmos  aqui  sozinhas.  Soldado relaxado...           
 — Olha — retrucou Crapiúna enfurecido — Toma a bênção ao furriel que está  ali  na  escolta.  Se  eu  não  estivesse  de  serviço  te  ensinava  quem  é  relaxado,  cachorra....           
 — Cachorra é tua mãe, cabra safado...             
 A esta injúria Crapiúna cerrou os punhos, num gesto bruto de ameaça; mas ,  à chamada do furriel, teve de partir, dirigindo à moça uma praga obscena.             
 — Deixa estar que me pagarás. Esta não caiu no chão.             
 Voltando  depois  para  Luzia,  tremula  e  confusa,  inanida  de  surpresa  e  vergonha, acrescentou, requebrando os olhos congestionados:              
 — Adeus, meu bem ... Tenha pena de seu mulato... Me responda; faça uma  fezinha para me consolar o peito, sua ingrata... Ai, ai, coração!...        Luzia continuava a preparar, automaticamente, a rodilha, não ousando, erguer  os olhos para o sinistro homem.            
 — O demônio te carregue, peste —  resmungou Teresinha quando Crapiúna  se reuniu à escolta — Tu só prestas para  carregar porcaria de preso. Por estas e  outras é que eu não ando de mãos abanando. Era encrespar-se para mim aquele  excomungado, metia-lhe no bucho este canivete até o cabo.. .         
 — E tinha corarem? — perguntou Luzia encarando na franzina moça e na fina  lâmina da arma, que ela trazia oculta no cós da saia.          
 — Ora, ora, ora! ... Fisgava-o sem dó  nem compaixão. Não me importava de  ser  presa,  nem  tenho  a  vida  para  negócio  ...  desgraça  por  desgraça...  Ah!  minha  camarada, já sofri tudo de ruim deste mundo; passei por vexames e desgostos... Só  lhe  contando  isso  por  miúdo  ...  Deixe  estar  que  os  desaforos  daquele  cabra  miserável não caíram no chão. Paga-me mais cedo ou mais tarde, tão certo como  chamar-me Teresa de Jesus...          
 — Ferir, matar um homem! ... Seria horrível.         
 —  Qual  horrível,  qual  nada.  Já  vi  gente  morrer  à  minha  vista.  Não  foi  uma  nem duas criaturas. Tivera eu a sua força, não precisaria de arma: quebrava-lhe a  cara  safada  que  ficaria  a  panos  de  vinagre.  Quando  ele  me  dissesse  alguma  liberdade, dava-lhe tamanho tabefe...          
 — Vamos que são quase horas de ir para a obra... Ah! Nem me lembrava que  hoje é dia santo. .. Esta minha cabeça...         
 — Olhe para mim, Luzia; mire-se no meu espelho Eu já lhe quero bem, como  parente minha, por isso falo-lhe assim. Veja como estou pagando os meus pecados;  veja a minha desgraça e a quanto estou sujeita...           — É pena, você, uma moça branca, andar assim na vida ...           
  O céu pálido clareava, e a aurora, que  irrompia, punha nas coisas o rúbido  fulgor  das  suas  pompas.  
ranchos  de  mulheres  e  de  meninos  macilentos  se  endireitavam à cacimba; e, falando e rindo, os pequenos, quase nus, sacudidos por  quintos de tosse rouca, levavam grandes cabaças para colherem o precioso líquido,  ainda nas entranhas da terra ressequida e flagelada.   
   
 CAPÍTULO  V           

 Mal  restabelecida  da  comoção  do  encontro  com  Crapiúna,  Luzia  sentia-se  humilhada pelos grosseiros galanteios que ele lhe dirigira sem o menor rebuço, com  desabrida   petulância   e   desenvoltura   sensual,   como   se   ela   fora   uma   dessas  desgraçadas,  cujo  acesso  não  é  já  resguardado  pelo  prestígio  da  virtude.  Pouco  atenciosa à incessante tagarelice de Teresinha, e remordida pela afronta, meditava  na  turra  de  Alexandre  com  o  soldado,  persuadida  de  que  a  defesa  de  Quinotinha  fora o pretexto para a explosão do ódio latente. Seu coração estremecia, vacilante, à  idéia  de  um  conflito  entre  os  dois  homens,  e  o  júbilo  de  sentir-se  amparada  por  dedicação superior a todos os sacrifícios.        
  E flutuava nesse consolador eflúvio de reconhecimento, arrebatada à região  dos  sonhos,  das  coisas  ideais,  sobranceiras  ao  pélago  da  tristeza  e  sofrimentos  humanos.          
  Quando chegou a casa, e depôs o grande pote sobre as três garras de uma  forquilha de sabiá, fincada no solo, a  mãe, sentada à rede armada a um canto do  quarto, gemia, à surdina, em atitude de vítima resignada ao martírio da implacável  moléstia.             
  — Sua bênção, mãezinha?          
  — Bênção de Deus, filha. Vens tão cansada. Teimas em carregar água nessa  jarra... Estás a botar a alma pela boca...          
  — Não é o peso do pote ... São pesares...         
  — Hoje é dia santo. Achava bom ires à missa ...         
  — Já fiz as minhas orações, mãezinha. O meu lugar — Deus me perdoe — é  aqui a seu lado, tratando-a, a ver se podemos deixar logo esta terra.          
  — O quê!! ... A terra não tem culpa do  que padecemos. Admira de pensares  ainda  em  semelhante  coisa.  Desengana-te,  filhinha  da  minha  alma.  Havemos  de  ficar e talvez morrermos aqui, quando Deus for servido ...          
  —  Também,  mãezinha,  não  faz  caso  dos  remédios,  que  têm  custado  um  dinheirão. Se tomasse de verdade os da receita do doutor Helvécio... Olhe ele quase  sarou a mãe da Grabina. Muito mais doente e com moléstia ruim, teria ficado boa, se  não se metesse com meizinhas e feitiçarias ensinadas. Pelo menos conseguiu viver  muito...          
 — Porque a hora não era chegada.         
 —Só  queria  que  melhorasse.  Era  capaz  de  carregá-la  nas  costas,  como  criança  de  peito,  até  à  Barra.  Tenho  visto  mulheres,  mais  franzinas  que  eu,  conduzindo ao colo filhos crescidos, quais rapazes, doentes, ou meio mortos. Tenho  fé  em  Deus  que  me  dobraria  as  forças  para  fazermos,  em  paz  e  salvamento,  a  viagem. Depois Alexandre havia de ir conosco e nos ajudaria, ao menos, carregando  os  nossos  teréns  ...  Pensar  que  em  cinco  dias  poderíamos  estar  na  praia,  livres  deste inferno ...            Enquanto tentava demover a mãe a empreender a viagem, a moça torcia as  madeixas dos fartos cabelos negros, embebidos d"água, até secarem à pressão de  suas mãos, mãos delicadas de mestiça, pequeninas e elegantes. Enrolado no alto  da   cabeça   o   cabelo,   que   ela   tratava   carinhosamente,   passou   aos   cuidados  domésticos  matinais:  atiçar  o  fogo,  preparar  o  café  e  uma  sopa  com  grandes  bolachas duras, quebradas em pedaços miúdos.         
  Nisto  ouviu  um  forte  silvo  de  fadiga.  Era  Alexandre  que  chegava,  trazendo  provisões em um uru, funda bolsa de malha tecida com palhas de carnaúba.            
  — Bom dia, sra Luzia. Como passou tia Zefinha? — disse em tom prazenteiro.          
  — Deus te abençoe, meu filho! — gemeu a velha com esforço.          
  — Passei por uma madorra; mas, à primeira cantada dos galos, despertei e  não houve meio de tornar a pegar no sono.         
  — Que há de novo? — inquiriu Luzia.         
  — Ouvi estarem falando, na casa da Comissão, que o doutor José Júlio deu  ordem para facilitar a saída do povo. Quem quiser embarcar deve procurar a Barra  ou  o  Camocim,  onde  há  vapores  para  conduzir  a  gente.  Quem  quiser  ficar  tem  trabalho  na  estrada  de  ferro  e  nos  açudes.  Mas,  assim  mesmo,  não  se  pode  dar  vencimento ao potici de povo, que vem derramado por esse sertão a fora. Disse-me  o capitão Marçal que vão principiar as obras do cemitério novo e da estrada para a  Meruoca. Já estão engenheiros medindo a ladeira da Mata-Fresca. Era o caso de  irmos nos trabalhar na fresca da serra, onde ainda há olhos-d"água vivos. Pelo meu  gosto já não estava mais aqui.                                    
 — Quem impede? — perguntou Luzia, ocupada em dar a sopa à mãe.          
 — Ninguém — respondeu Alexandre surpreendido pela inesperada pergunta,  feita em tom de indiferença. Ninguém,  nada me impede... Mas a gente nem sempre  faz  o  que  quer.  Muita  vez  a  cabeça  vira  para  um  lado  e  o  coração  para  outro.  Quando  morreu  minha  mãe  e  vi-me  só  no  mundo,  estive  em  termos  de  assentar  praça,  porque  quando  um  homem  é  soldado  vira  outro,  fecha  a  alma  e  não  se  pertence mais. Estava imaginando nisso, em me afastar da terra da sepultura, onde  descansava a minha defunta velhinha, quando topei com você, sra Luzia, servindo  no trabalho da cadeia. Por sinal que, nessa ocasião, lembra-se? A maltratavam. Era  uma canzoada de mulheres e meninos, gritando: Olha a Luzia-Homem, a macho e  fêmea! O povo todo corria de morro baixo e eu também fui ver o que era. Você vinha  subindo,  trazendo  nos  braços  Raulino  Uchoa,  quase  morto,  ensangüentado  e  coberto de poeira. Contou-me, então, o Antonio Sieba, pai daquela moça bonita, que  canta como um canário, o que se havia passado. O Raulino apostara derribar, a toda  a  carreira,  um  boi  pelo  rabo.  Na  verdade  o  homem  corria  como  um  veado  e,  era  pegar na saia da rês e virá-la, na poeira, de pernas para o ar; mas, naquele dia, foi  caipora; falseou-lhe o pé; o boi voltou-se como um gato e mataria o pobre diabo se,  dentre o povo, que disparava espantado, não surgisse uma moça afoita e destemida  que agarrou o bicho pelas galhadas e o sujicou que nem um cabrito.          
 — Não valia a pena lembrar isso.          
 — O capitão João Braga, aquele coração de oiro, mandou recolher o ferido à  casa.  da  administração;  e,  voltando-se  para  mim,  disse-me:  Seu  Alexandre  aliste  esta  moça  para  trabalhar  e  dê-lhe  cinco  mil  réis  como  molhadura  pelo  ato  de  coragem. Você não quis receber o dinheiro. Ficou até meia estomagada..  — Por força ... Eu não devia receber pagamento pelo que fiz por caridade.         
 — Eu tomei por soberba. Cem anos que viva, terei sempre diante dos olhos e  do  pensamento,  a  sua  figura,  de  cabelos  soltos,  rompendo  a  multidão,  com  o  Raulino nos braços, como se fora uma criança. Lembrava-me um registo do Anjo da  Guarda, levando a alma de um inocente para o céu.             
  Luzia  ouvia-o  complacente  e  admirada,  porque  Alexandre,  de  ordinário  tão  retraído e acanhado, estava, nesse dia, expansivo, e loquaz.            
  — Desde, então — continuou ele — não pensei mais em assentar praça, nem  abandonar  esta  terra.  Quando  soube  que  tinha  mãe  e  conheci  a  tia  Zefinha,  meu  coração se abriu consolado, como se  houvesse ressuscitado a minha defunta mãe,  que Deus haja em glória. Você hoje — Observou a velha, amparando da luz os embaciados olhos, com  as mãos, trêmulas e mirradas — trouxe o uru cheio! ...            — O pobre tem seu dia...             
  E afastou-se para entregar as compras a Luzia, esvaziando o uru que deixara  sobre o 
jirau do alpendre.                   
 — Aqui tem uma libra de carne fresca e um corredor, uma quarta de toicinho,  afora a ração do governo. A farinha é meia grossa., mas tem muita goma.         
 —  Ninguém  dirá,  com  semelhante  fartura,  —  gracejou  Luzia  —  que  somos  retirantes.         
 — Agora — disse-lhe Alexandre, baixando a voz, tímido e comovido — tenho  uma coisa para você; um mimo que me trouxe um camarada meu da Meruoca.           
  E tirou do bolso interior da jaqueta de brim pardo  uma laranja, onde estava  plantado um cacho de cravos sangüíneos e cheirosos.          
  Aqueceu-se o rosto moreno de Luzia, como inundado de um fluxo de sangue  abrasado.  Seus  olhos  negros  brilharam  em  fugaz  eflúvio  de  prazer  fitando-se  no  fruto e nas rubras flores sensuais, preciosas jóias da natureza avara naquela quadra  de  desolação.  Ela  as  tomou  a  duas  mãos,  meigamente;  hauriu  com  voluptuoso  anseio o perfume dos cravos; e, mal articulando as palavras, dirigiu-se à mãe:           
   —  Aqui  tem,  mãezinha,  um  presente  de  Alexandre.  Tome  a  laranja;  eu  fico  com os cravos. Que bonitos!...            
  E, com gestos de casquilhice infantil, cravou-os nas ondas do cabelo. Depois,  voltando-se para Alexandre, que não ousava contemplá-la, lhe disse à puridade:            
  — Muito agradecida. Mas ... estou zangada com você ...          
  — Comigo! ? ...          
  — Sim. Teresinha contou-me a sua briga com Crapiúna.          
  — Não houve nada. Juro-lhe à fé de Deus! Estávamos na casa. da Comissão:  eu no meu lugar fazendo a relação da gente que era demais; ele, numa reinação,  intimando com as mulheres. Chegou a Quinotinha em procura da ração do pai, que  desmentira um pé; e o desaforado entrou a bulir com ela até fazê-la chorar. Aquilo  foi me inchando no coração; perdi a paciência, e não me pude conter. Meti os pés;  cresci pra cima do cabra, e disse-lhe por aqui assim: "Se o senhor não respeita a  farda  para  provocar  uma  menina  inocente,  há  de  respeitar  um  homem!..."  Ele  estremeceu; quis se endireitar pra mim,  mas eu não o deixei esfriar, e acrescentei:  "Uma pouca vergonha que a gente não se atreve... Tamanho  homem e, de mais a  mais,  soldado,  andar  aqui  todos  os  dias,  que  Deus  dá,  com  desaforos,  até  com  meninas donzelas! Fique sabendo que não me mete medo; não me vou queixar ao  sargento  Carneviva,  nem  ao  Comandante!..."  O  mulherio  abriu  em  roda;  e  o  Crapiúna, vendo que eu estava decidido para o que desse e viesse, murchou; ficou  fulo de raiva e foi saindo, lá ele, por  estas palavras: "Está bom! Não quero baticum  de  boca  comigo..."  E  o  povaréu  caiu  em  cima  dele  com  dictérios  que  faziam  uma  zoada doida: 
  — Olha o valentão! ... Meteu o rabo entre as pernas!... Cabra frouxo!...  Vi que ele ficou danado, mas,  nem como coisa, continuei sossegado o meu serviço.  Quando o capitão José Silvestre soube do caso, disse-me que eu tinha feito muito  bem.          
  — Que tinha você de comprar briga ...         
  — A gente não faz essas coisas por querer. Quando dá fé está feito... Tal qual  você, quando tirou o Raulino debaixo do boi... O coração não se governa, nem pede  licença para bater...          
  — Mas você já estava de ponta com ele ...          
  — Andava, falo a minha verdade. E  não era para menos ver aquele safado,  com partes de ser cangaceiro e criminoso, andar intimando com Deus e o mundo.  Todo o gabola é mofino ...          
  — Faça-me um favor...          
  — Que não farei eu por você, Luzia?...          
  — Não se meta mais com a vida do Crapiúna ...          
  — Está dito!... Por essas e outras é que eu desejava trabalhar fora daqui...           
  — Ninguém está livre de uma traição...          
  — Ah! Bem se vê que ele tem cara de cascavel de tocaia...           
  —  Evite;  evite  aquele  homem,  Alexandre...  Eu  lhe  peço  por  alma  de  sua  mãe...           
  —  Juro!...  —  afirmou  o  moço,  solene,  erguendo-se  e  estendendo  a  destra,  com um gesto resoluto e sincero.          
  —  Confiem  em  Deus,  minha  gente  —  observou  a  velha,  que  do  quarto  os  ouvia.          
  — Não há mal que sempre dure. Ele é pai de misericórdia. Há de ter pena de  nós e desta terra...          
  —  Se  nós  dois  —  disse  Luzia,  após  alguns  momentos  de  meditação  —  botássemos mãezinha numa rede e a carregássemos até a Barra do Acaracu?         
  — E tu a teimares, filha...           
  — Eu era muito homem para fazer isso — respondeu Alexandre — mas vinte  léguas, léguas de beiço, muito puxadas, por uma estrada de águas difíceis e com  esta soalheira!?...             
 Luzia não replicou.             
 —  Mais  fácil  seria  —  continuou  ele,  irmos  trabalhar  na  obra  da  ladeira.  Já  estou com uma casinha de olho: a que fica quase defronte da Cova da Onça. Daqui  até lá levamos a tia Zefinha de um só fôlego...            — E ficaremos sozinhas naquelas brenhas? — ponderou Luzia.           
 —Se não levassem a mal eu ficaria morando com vocês... Sempre é bom ter  homem em casa...           
 — E as más línguas?... Acha pouco o que já rosnam de nós? ...           
 — Então não sei como há de ser... Só se...             
 Alexandre estacou enleado, não ousando externar a idéia que lhe ocorrera...           
 Recobrado o ânimo, titubeou, a meia voz, trêmulo quase comovido:             
 — Só se... nós... nos casássemos...            
  Luzia surpreendida pela proposta. estremeceu, corando.           
  No  mesmo  instante,  passava  pelo  terreiro,  rente  à  casa,  um  magote  de  mulheres, com trajes domingueiros, grazinando em desbragada conversa.             
  —  Que  lhes  dizia  eu?...  Vote!...  Já  estão  bem  principiados  no  namoro!  —  exclamou  uma  delas  indicando,  com  um  gesto  do  mento,  Luzia  e  Alexandre,  transidos de pejo, como delinqüentes apanhados em flagrante crime de amor.             
 O  grupo  desapareceu  correndo  e  tagarelando,  aos  empurrões  e  palmadas,  com maneiras desenvoltas. Dominava o murmúrio de risos e chacotas grosseiras, a  gargalhada estridente e sarcástica de Romana, a lúbrica, a roliça e quente cabocla  de dentes pontiagudos.  

CAPÍTULO  VI            

  Setembro de 1878 ia em meados, e não  apareciam no céu límpido, de azul  polido e luminoso, indícios de auspiciosa mudança de tempo. Não se encastelavam  no  horizonte,  os  colossais  flocos  a  estufarem  como  iriada  espuma;  nem,  pela  madrugada,  cirros,  penachos  inflamados,  ou,  em  pleno  dia,  nuvens  pardacentas,  esmagadas  em  torrões.  À  noite,  constelações  de  rutilante  esplendor  tauxiavam  o  firmamento, e a lua percorria, melancólica, a silenciosa senda.          
  Como  que  se  percebia  no  abismo  do  espaço  infindo,  a  eterna  gestação  do  cosmos, operoso e fecundo, em flagrante criação de mundos novos. E, na gloriosa  harmonia dos astros, na expansão soberba da vida universal, a terra cearense era a  nota  de  contraste,  um  lamento  de  desespero,  de  esgotamento  das derradeiras  energias, porque o sol sedento lhe sorvera, em haustos de fogo, toda a seiva.         
  Olhares ansiosos procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a  pestanejarem no rumo do Piauí, desvelando o perfil negro da Ibiapaba. Nada; nem o  mais ligeiro prenúncio das chuvas de caju.         
  O  sertão  ressequido  estava  quase  deserto:  campos  sem  gados,  povoações  abandonadas.  E  a  constante,  a  implacável  ventania,  varrendo  o  céu  e  a  terra,  entrava, silvando e rugindo, as casas vazias, como fera raivosa, faminta, buscando e  rebuscando a presa, e fazendo, com pavoroso ruído, baterem as portas de encontro  aos portais, num lamentoso tom de abandono.          
  As pastagens de reserva, nos pés de serras, protegidas por espessa facha de  catingas  impenetráveis,  onde  se  criavam  famosos  barbatões  bravios,  haviam  sido  devoradas  ou  estruídas  e  pesteadas  pela  acumulação  de  rebanhos  em  retiradas  numerosas.  E,  à  grande  distância,  sentia-se  o  fedor  dos  campos  inficionados  por  milhares de corpos de reses em decomposição.          
  Não havia mais esperança. Os horóscopos populares aceitos pela crendice,  como infalíveis: a experiência de Santa Luzia, as indicações do Lunário Perpétuo e a  tradição conservada pelos velhos mais  atilados, eram negativas, e afirmavam uma  seca  pior  que  a  de  1825,  de  sinistra  impressão  na  memória  dos  sertanejos,  pois  olhos-d"água, mananciais que nunca haviam estancado, já não merejavam.         
   Os  socorros,  distribuídos  pelo  Governo,  não  podiam  chegar  aos  centros  afastados, por falta de condução, ou eram  os comboios de víveres assaltados por  bandos  de  famintos,  malfeitores  e  bandidos,  organizados  em  legiões  de  famosos  cangaceiros.         
   Em  tão  aflitiva  conjunção,  era  natural  que  os  retirantes,  por  instinto  de  conservação, procurassem o litoral, e  abandonassem o sertão querido, onde nada  mais  tinham  que  perder;  onde  já  não  podiam  ganhar  a  vida,  porque  à  miséria  precedera o fatal cortejo de moléstias infecciosas, competindo com a fome e a sede  na terrível faina de destruição.         
   Luzia  encontrara  em  Sobral,  abrigo  e  fáceis  meios  de  subsistência;  mas  pressentia  iminente  perigo  do  capricho  ou  paixão  brutal  de  Crapiúna.  Era  forçoso  procurar outro refúgio, e por isso espreitava, ansiosa, os mais ligeiros sintomas da  moléstia da mãe, sinais de melhora, para empreenderem a anelada viagem aonde a  distância a preservasse dos contínuos sustos e vexames afrontosos. Não confiava  no projeto de mudança para a ladeira da Mata-Fresca, dependente de condição, que  não resolvera ainda aceitar, além de que ficaria a duas léguas, apenas, da cidade.          
 Já não ia, diariamente, ao trabalho. Ficava em casa, tratando com desvelado  carinho, a pobre mãe, cada vez mais trôpega. Felizmente, o capitão João Braga lhe  abonava  as  rações,  e  Alexandre  não  se  descuidava  de  repartir  com  elas,  quanto  ganhava, apesar da relutante recusa,  oposta à sua espontânea generosidade.  Ele  vivia  folgadamente,  porque  passara  de  apontador  a  fiel  do  armazém,  onde  havia  grande depósito de mantimentos e todos os valores do almoxarifado. Tinha de mais  para si, e doía-lhe no coração não poder aliviar as necessidades dos pobres, seus  companheiros de infortúnio.         
 Um  dia,  pela  manhã,  encontrou  Luzia  desanimada:  a  mãe  passara  mal  a  noite, inquieta, afrontada, como se lhe apertassem o peito ou não houvesse bastante  ar respirável no estreito quarto.          
  — Deus não quer, filha — dizia a velha com o seio ofegante e mal articulando  as palavras — Deus não quer... Seja feita a sua ... santa... vontade...          
  —   Mãezinha   tem   tido   isto   tantas   vezes   —   ponderava   Luzia,   afetando  serenidade — Isto é puxado... Cheire este frasco...          
  — Parece que tenho ar encausado... aqui... Olha, sinto uma bola... qualquer  coisa  que  me  tapa  o  fôlego.  Abre  bem  a  porta...  Abana-me...  Se  eu  tomasse  o  vomitório de papaconha...         
  — Corno está, tia Zefinha? — inquiriu Alexandre, chegando à porta do quarto.          
  — Como quem está se acabando... Ai Jesus!... Que aflição!...          
  — Por que não toma aquela garrafa que o doutor receitou?...          
  — Tenho medo...Disse-me a Chica Seridó que tem veneno... doreto...          
  — Então ela sabe mais que o doutor?!... Tome, experimente...           
  — Ah, Alexandre; já pedi, roguei, não sei mais que fazer para mãezinha tomar  a receita — observou Luzia, quase em lágrimas.          
  — Há de ser o que Deus for servido...          
  — Mas tome sempre, tia Zefinha. Faça-me esta vontade. É para seu bem...          
  — Enfim — concluiu a velha condescendendo — vá lá... No meu estado, só  um milagre... Não quero que você diga que não o atendi antes de morrer...           
   E tomou uma colher da poção, administrada pela filha.            
  — Aqui está, na garrafa — disse Alexandre repetindo o que estava escrito no  rótulo — uma colher das de sopa antes de cada refeição. Quando voltar do serviço,  quero encontrar vosmecê aliviada. Adeus, Luzia! O sol já está alto. Vou andando... E  eu que devia estar no armazém às seis em ponto...           
   Desde o dia em que foram alvo das chufas da malta de vadias, capitaneadas  pela  Romana,  Alexandre  apenas  uma  vez  pedira  a  Luzia,  com  muitos  rodeios  e  acanhamento, resposta à proposta de casamento. Ela, porém, nada lhe respondera,  limitando-se a, com um gesto de desânimo, indicar-lhe a mãe, como se a doença  dela fosse invencível obstáculo.          
 Ocultava ao moço, resignado, nutrido de esperanças, o haver recebido cartas  de  Crapiúna,  qual  mais  apaixonada,  qual  mais  recheada  de  expansões  de  amor,  acrisolado  pela  resistência;  todas  salpicadas  de  alusões  iradas  ao  outro  mais  afortunado, e ameaças de não  poder sofrear os estos de ciúme que o devoravam,  ou de acabar com a própria vida, porque para ele só havia Deus no céu e ela na  terra.      
  Ao  menino,  que  lhe  levava  as  cartas,  Luzia  respondia  invariavelmente:  
  —  Diga esse homem que me deixe sossegada, que não se meta com a minha vida!  Mas,  por  um  impulso  de  curiosidade,  muito  humano  e  sobretudo  muito  feminino,  tivera  a  fraqueza  de  lê-las,  o  que  ela  considerava  uma  vergonha,  senão  crime  injustificável. Também não ousara contar a Alexandre que o soldado havia aparecido  várias  vezes  na  residência.  Uma  noite  passava  ele  com  o  Belota  e  tivera  o  atrevimento de fazer-lhe uma serenata cantando à viola, quase no terreiro da casa,  modinhas e canções eróticas, que terminavam nesta saudosa endecha:     

                                            "Vou me embora, vou me embora,                                               
                                             Como fez a saracura;                                             
                                             Bateu asas, foi cantando:                                         
                                             Mal de amores não se cura!..."       
 Ouvindo-o, Luzia tremia de indignação e terror, suspirando de alívio, quando  se sumiu ao longe, o pesqueiro batido, acompanhando a voz fanhosa de Belota, a  cantar:                                                
                                           "Quem quiser ser bem-querido,                                            
                                            Não se mostre afeiçoado,                                              
                                            Que o afeto conhecido,                                         
                                            É sempre o mais desprezado."        
                                         
   — Não sei como essa gente ainda tem coragem de cantar — gemia a velha  Zefa — É uma falta de coração... Pouco depois da partida de Alexandre, prometendo voltar cedo com o doutor  Helvécio Monte, surdiu o pequeno mensageiro com uma, carta, que deixou sobre o  pilão,  por  ter  Luzia  recusado  recebê-la.  Entretanto  não  pôde  ainda  resistir  à  curiosidade, e reincidiu na culpa nefanda de abri-la. E leu:           "Minha Santa Luzia — Esta tem por fim unicamente, dizer-lhe que se há de  arrepender da sua ingratidão e quem lhe diz isto é o seu amante fiel até a morte —  Crapiúna."            
  —  É  preciso  acabar  com  isto,  custe  o  que  custar,  —  murmurou  a  moça  inflamada de cólera — Este malvado me há de desgraçar...             
  Passou  o  dia  preocupada,  e  procurando  espairecer  com  desvelos  à  mãe,  mais acalmada com a poção de iodureto de potássio, o venenoso remédio, que, na  opinião da Seridó, fazia apodrecerem os ossos, caírem os dentes e pôr o estômago  em Carneviva, quando seria mais eficaz a purga de mel de abelha e um emplastro  de sabão da terra com um pinto pisado vivo; ou com o vomitório de cardo-santo, chá  de  erva-doce  para  desempachar  o  ventre,  e  raiz  de  pega-pinto  por  causa  da  retenção de ourinas.        
    — Com esses remédios sarara a defunta Desidéria — afirmava a feiticeira —  que padecia de um puxado com apertos do  coração e uma dor que lhe tomava o  fôlego, respondia — lá nela — nas cruzes e alastrava pelo braço esquerdo, que às  vezes  ficava  esquecido.  Vivera  a  enferma  muito  tempo,  trabalhando  como  uma  negra, apanhando sol e chuva; e, se não fora um ataque violento que não deu tempo  para  nada  ainda  estaria  vivendo,  com  a  graça  de  Deus.  Remédio  de  botica  havia  levado muita gente desta para melhor vida.          
   Luzia inquietava-se com a demora de Alexandre, que era pontual à hora do  jantar,  servido  sobre  uma  tosca  mesa  im provisada  com  uma  tampa  de  caixão  de  pinho, apoiada em quatro forquilhas.           
  O  sol  descambava,  deixando  as  cumeadas  áridas  da  serra  do  Rosário,  quando apareceu Teresinha quase a correr e de semblante apavorado.           
 — Que foi? — perguntou Luzia sobressaltada — Que aconteceu? Que é do  Alexandre?...            
  Teresinha tomou-lhe do braço, levou-a para fora do alpendre e disse-lhe, com  voz sacudida de tristeza:           — Uma desgraça! ...          
  —  Brigaram?  —  inquiriu  Luzia  ansiosa,  encarando  no  semblante  da  moça  ruiva para lhe aprender a misteriosa notícia.         
  — Imagina que eu voltava da obra e, quando dei por mim, foi com a gralhada  de  Romana,  aplaudindo  com  as  parceiras.  Aquelas  não-sei-que-diga  riam  como  doidas varridas. Uma dizia: Foi bem feito! A outra resmungava: Bulir com o de-comer  dos  pobres!...  Que  miséria!...  Se  fosse  só  feijão  —  grazinava  a  deslambida  da  Romana — meu Deus, perdoai-me... Passou as unhas no dinheiro. Quem havera de  dizer — rosnava a Joana Cangati, aquela sirigaita, que tem o bucho caído — que  aquele sonso...         
  — Mas... que aconteceu, mulher de Deus?          
  — Cheguei-me a elas e soube então... Imagina como fiquei estatelada, e caí  das nuvens quando me disseram que Alexandre estava preso...        
  — Preso!... — exclamou Luzia aterrada — Preso?! ... Preso por quê?...          
  — Foi o que perguntei. Então a avoada da começou a caçoar: Ora o moço  precisava preparar-se para o casório; não teve dúvidas; passou a mão...         
   — Mas... é mentira!...         
   — Eu também tenho Alexandre em conta de pessoa incapaz de se sujar com  o  alheio;  mas  a  verdade  é  que  foi  preso  e  lá  está,  na  casa  da  Comissão,  com  o  Delegado...          
  —  É  impossível,  Teresinha.  Você  não  acha  que  Alexandre  é  incapaz  de  tamanha miséria?...        
  — É o que lhe estou dizendo, minha camarada. Está preso e não tem quem  puna  por  ele:  todos  o  acusam,  porque  tinha  a  chave  do  armazém;  apareceu  hoje  fora de horas...          
  — Oh! Meu Deus! Era só o que faltava!  Juro que é falso! Caia eu morta, se  não tenho certeza do que digo.             E, dirigindo-se, firme e resoluta, ao quarto, abrigou-se no amplo lençol branco,  dizendo à mãe, surpreendida pelos modos agitados.             
  — Volto já, mãezinha... É um instantinho ... Teresinha fica ...            
  Sem atender às observações da velha, passou rápida ao alpendre, e suplicou:          
  — Você faz companhia àquela pobre... minha amiga. Faça-me esta esmola  pelo amor de Deus...          
  — Que vai fazer?          
  — Não sei ... Deixe-me ...            
  Com um movimento violento desvencilhou-se de Teresinha, que tentara detê- la, e partiu em desvairada corrida.     

CAPÍTULO  VII      
      
  Além da habitual aglomeração de retirantes na rua  do Menino Deus, à porta  do armazém da distribuição de, socorros, algo havia de extraordinário, a julgar pelos  modos  assustadiços,  os  olhares  de  maligna  curiosidade  do  mulherio,  que  se  acotovelava  aos  empuxões  para  observar  o  que  se  passava  no  interior,  onde  estavam  reunidos  os  membros  da  Comissão,  o  delegado  de  polícia  e  o  promotor  público. Dois soldados, Belota e Cabecinha, guardavam a porta, com ordem de vetar  a entrada a quem quer que fosse. Crapiúna girava entre o povilhéu, contendo, com  maus  modos,  os  exaltados,  que  protestavam  contra  a  demora  da  distribuição  das  rações, principalmente as mulheres que  haviam deixado em casa filhos pequenos,  sem um grão de farinha para fazer um mingau.            
  — Cessa rumor! Cambada — intimava Crapiúna, com a costumeira impostora  — Vocês ou ficam quietos e calados ou arribam daqui. Em fariscando comida, ficam  logo assanhadas...            
  E continuava a ronda, sob um chuveiro de imprecações e motejos, que a sua  excessiva grosseria provocava.   Os cidadãos incumbidos pelo Governo da penosa tarefa de distribuir socorros,  desempenhavam com excepcional  e   caridosa     dedicação,      os    seus    deveres,  mantendo  o  mais  escrupuloso  zelo  e  probidade  na  administração  do  serviço.  Não  houvera  ainda  um  caso  de  muamba,  coisa  muito  vulgar  em  outros  centros  de  afluência  de  retirantes,  nos  quais  se  explorava  escandalosamente  a  miséria,  e  se  desviavam,  para  serem  vendidos  por  excessivo  preço,  os  víveres  destinados  aos  infelizes  famintos.  Era,  pois,  natural  que,  ciosos  de  tão  honrosos  precedentes,  ficassem muito impressionados com o roubo  de gêneros e de duzentos mil réis em  dinheiro, denunciado, naquela manhã, pelo almoxarife.        
  A  porta  do  armazém  fora  encontrada  aberta,  sem  o  menor  vestígio  de  violência,   caixas   com   fazenda   abertas   e   a   gaveta   que   continha   o   dinheiro  arrombada.  Estavam  bem  patentes  os   indícios  do  crime,  pegadas,  do  ladrão  impressas na poeira, pingos de velas de carnaúba sobre as caixas e o instrumento,  empregado para forçar a gaveta, um grande formão de carpinteiro.           
 Quem seria o audacioso criminoso?  O nome de Alexandre, pronunciado por  lábios  anônimos,  no  meio  da  turba,  foi  logo  envolvido  pela  sinistra  atmosfera  da  suspeita. Ele guardava as chaves do armazém; era empregado de inteira confiança,  conquistada       pelo     mais    irrepreensível       procedimento,       e    os    mais     abonados  precedentes;  mas  não  se  podia  eximir  da  responsabilidade  do  fato,  senão  por  desídia,  por  falta  de  vigilância.  Demais,  naquele  dia,  ele  sempre  pontual,  chegara  tarde,  notando-se-lhe  no  semblante  profunda  perturbação  ao  encontrar  a  porta  aberta,  e  o  almoxarife,  que  o  interrogava  com  o  olhar  severo.  Não  pudera,  no  primeiro  momento,  se  justificar  ou  explicar  as  circunstâncias  que  o  denunciavam.  Indicações  vagas,  circulando  na  massa  de  retirantes,  aludiam  a  fatos  que  davam  corpo  às  suspeitas.  Ele  estava  para  casar;  pretendia  deixar  a  cidade;  era  bem  possível  que  a  paixão  por  Luzia-Homem  o  alucinasse  ao  ponto  de  arrastá-lo  a  tamanha desgraça. Por outro lado, alguns amigos que o não abandonaram na hora  do  infortúnio,  alegavam  que,  tendo  as  chaves,  não  necessitaria  de  deixar  a  porta  aberta, apenas encostada, recorriam aos precedentes de porte ilibado, a doçura de  caráter, maneiras de pessoa bem-ensinada e de boa procedência.          
  Entre os pró e contra, prevaleceu o depoimento de Crapiúna, afirmando haver  visto,  à  meia--noite,  mais  ou  menos,  um  vulto  com  uma  trouxa  volumosa  subir  apressadamente  a  rua  na  direção  da  igreja.  Não  jurava  que  fosse  Alexandre,  por  não ter, em consciência, absoluta certeza, e para que não dissessem que o acusava  por andar enticado com ele; mas a verdade é que tinha o mesmo andar e a mesma  estatura. Não o perseguira por não lhe passar, então, pela cabeça, a idéia de um  crime  tão  vil.  Belota  confirmava,  em  todas  as  minúcias,  a  história  do  camarada,  protestando todavia, que, até à véspera, seria capaz de meter a mão no fogo por tão  bom moço; mas... a ocasião fazia o ladrão...         
  Alexandre   foi   interrogado.   Estava   tão   abatido   pela   comoção,   que   fez  declarações  incongruentes,  contraditórias  e  inverossímeis,  nem  pôde  explicar,  de  modo  plausível,  a  demora.  Acossado  pelas  questões  da  autoridade,  limitava-se  a  protestar com voz angustiada:            
 —  Juro  que  sou  inocente,  seu  Delegado.  Eu  nunca  me  sujei  com  o  alheio.  Antes me secassem as mãos e me faltasse a luz na hora da morte!             
 Continuava o interrogatório, aliás conduzido com imparcialidade complacente,  quando  a  audiência  foi  interrompida  por  estranho  rumor,  gritos  e  imprecações  ameaçadoras, estrugindo na rua. Aquecidas as faces pela fadiga da caminhada, os  grandes  olhos  lampejantes  de  chispas  fugitivas  e  o  traje  em  desalinho,  Luzia  penetrou nos densos magotes humanos, que lhe embaraçavam a passagem, com  ímpeto irresistível; e foi abrindo larga  brecha, afastando aos empurrões homens e  mulheres, sob uma saraivada de remoques, queixumes e impropérios.            
 — Arreda, que lá vem Luzia-Homem, como uma danada! ...          
 — Mulher do demônio, você não enxerga a gente, sua bruta?! ...          
 — Esta excomungada está com o diabo no coiro!...          
 — Vote! Malvada! ...          
 — Ficou como lacraia assanhada, por causa do macho...            
  Luzia era insensível às queixas e insultos, foi avançando sem desfalecimento,  sem  hesitação.  Ao  enfrentar  a  porta,  Belota  pretendeu  tolher-lhe  o  passo,  mas  foi  repelido  com  possante  e  rápido  movimento.  Igual  sorte  tiveram  Cabecinha  e  Crapiúna. Este lhe não ousou  tocar, inanido por estranho  terror. Surdiu, enfim, na  sala,  e  parou  indecisa,  espantada  por  se  achar  entre  pessoas  notáveis,  aturdidas  pela  surpreendente  invasão.  Depois  se  dirigiu  a  Alexandre,  que  a  contemplava  estupefato, num misto de assombro e alvoroço.            
  — Que foi isto, seu Alexandre? ...          
  —  Nada  —  respondeu  ele,  baixando  os  olhos  —  Um  impute,  que  me  fizeram...       
  — Mas é falso!... Não é?...          
  — Juro por alma da defunta minha mãe...           
  E  grossas  lágrimas  lhe  deslizaram  pelas  faces  tostadas,  embebendo-se  na  barba crespa e aloirada.         —  Seja  homem,  Alexandre  —  disse-lhe  então  a  moça,  com  voz  vibrante  e  enérgica — Deus é grande!... Quem não deve, não teme! ...          
   — Choro de vergonha, porque nunca me vi em semelhante desgraça...             
  Ela, animando Alexandre com a protetora carícia de um olhar inefável, voltou- se  resoluta  e  calma  para  os  circunstantes.  Do  desalinho  das  roupas,  o  lençol  pendido do braço a arrastar pelo chão, o cabeção de renda emoldurando o seio nu e  palpitante,  as  desgrenhadas  madeixas  a  lhe  caírem  em  ondulações  fulvas  de  serpentes  negras;  dos  olhos,  do  gesto  e  da  voz,  um  concerto  de  convicção  e  firmeza,  irradiava  sobrenatural  encanto,  empolgando  o  auditório,  subjugado  pela  esplêndida  e  fascinante  exibição  da  força  e  da  beleza,  harmonizadas  naquela  admirável criatura.             
  — Saberão vossas senhorias — exclamou,  em vibrações fortes e sonoras —  que este homem não é nada meu!... Nem parentes somos, senão por Adão e Eva.  Posso   morrer   sem   confissão.   Meu   corpo   não   tem   pechas,   nem   pecados   a  minh"alma...            
   E estendeu os braços, num gesto largo e franco de inocência que se exibe:            
  — Entre essa gente maligna que faz  pouco de mim, essa gente desalmada  que me persegue, como se eu fora uma excomungada ou um bicho brabo, encontrei  nele um amigo, um irmão; e hoje, abaixo de Deus, é ele quem me ajuda a sustentar  os dias de minha mãe, entrevada dentro de  uma rede. Estas noites temos passado  juntos fazendo quarto à pobre velha que gemia com dores de fazer cortar coração.  Hoje, de manhãzinha, esteve lá em casa e pedi-lhe que fosse procurar o doutor...  Ah! Meus senhores, até os bichos são agradecidos, quanto mais criaturas cristãs. E  aqui está, em pura verdade, porque eu puno por ele e juro que está inocente...          
  —  Não  temos  provas  —  observou  o  Delegado  —  Por  ora  só  há  contra  ele  suspeitas, indícios...            — Então por que o prenderam? Pois se envergonha um homem sem quê nem  para quê, por um impute?...             Em benefício dele; para apurar a verdade...  E se não conseguirem isso? — perguntou Luzia impaciente   — Ficará preso  toda a vida?!...             
  — Não se aflija — ponderou o promotor, intervindo, e no intuito de amenizar a  pungente cena — Sente-se, repouse. A senhora está muito exaltada, acalme ... Que  estupendo tipo! Que formoso cabelo — observou à puridade, voltando-se para um  dos comissários.            
  Luzia reparou, então, em seu desalinho, e sentiu um calefrio de pejo, como se  a lambessem aqueles olhos que a fitavam com insistência, olhos mortos de volúpia.  Colheu os cabelos, toda aflita e ruborizada; enrolou-os rapidamente, e os prendeu  com um gesto gracioso no alto da cabeça, e abrigou-se no lençol branco de babados  de cambraia de salpicos.          
  — Donde é natural? — inquiriu o Promotor.          
  — Eu me chamo Luzia Maria da Conceição. Sou filha do Ipu. Meu pai, que  Deus  haja,  era  vaqueiro  das  Ipueiras  do  Major  Pedro  Ribeiro...  Está  ouvindo,  seu  doutor?             
  Ela  aludia  a  gritos  e  gargalhadas  do  povilhéu,  bradando  na  rua:  Luzia- Homem!... Metam ela na cadeia que se descobre tudo!.. Aviem os pobres que estão  aqui esperando com fome!..             
  — Por que lhe deram essa alcunha?          
  — Eu lhe digo, seu doutor. Desde menina fui acostumada a andar vestida de  homem para poder ajudar meu pai no serviço. Pastorava o gado; cavava bebedores  e cacimbas; vaquejava a cavalo com o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até  o de foice e machado na derrubada dos roçados. Só deixei de usar camisa e ceroula  e andar encoirada, quando já era moça demais, ali por obra dos dezoito anos. Muita  gente me tomava por homem de verdade. Depois meu pai, coitadinho, que era forte  como um touro, e matava um bode taludo com um murro no cabeloiro, morreu de  moléstias, que apanhou na influência da ambição de melhorar de sorte, na cavação  de  ouro  no  riacho  do  Juré.  Daí  em  diante,  começamos  a  desandar.  Minha  mãe,  sempre muito doente, e nós duas muito  pobres de tudo, menos da graça de Deus,  vendemos  as  miúças  e  cabeças  de  gado,  que  tiramos  à  sorte  da  produção  da  fazenda,  os  animais  de  campo  e  até  o  meu  cavalo  castanho-escuro,  calçado  dos  quatro pés e com uma estrela na testa ... o meu querido Temporal... Tudo isso para  não morrermos de fome quando veio esta seca...             
 Soluços lhe embarcaram a voz, e desatou em copioso pranto.             
 — Sossegue moça — disse-lhe o Delegado compassivo — A sua sorte nos  interessa. Está entre amigos de quem só deve esperar benefício; mas ... é preciso  ter paciência. Alexandre tem por defesa os melhores precedentes e todos o abonam;  entretanto  é  indispensável  que  fique  detido  enquanto  duram  as  diligências  do  inquérito ...           
 — Preso?! ... Não é possível! — exclamou Luzia — Vossa senhoria não fará  tamanha injustiça. Eu lhe peço por vida de seus filhinhos... Alexandre é inocente! ...            
  E rojou-se de joelhos, aos pés do Delegado.             
 — Tenha paciência! — murmurou este comovido, e tentando erguê-la.           
  Luzia  não  se  conformava  com  a  horrível  idéia  da  prisão;  e  continuou  a  suplicar, muito condolente.        Alexandre já não podia suportar aquele espetáculo, que lhe macerava a alma.  Suspirou  de  alívio  quando  o  Delegado  mandou  conduzi-lo;  e,  ao  passar  por  ela,  disse-lhe com firmeza:             
 —  Tenha  coragem.  Cadeia  não  se  fez  para  animais.  Espero  em  Deus  sair  limpo  desse  impute  que  me  levantaram  ...  Vá  para  junto  da  tia  Zefa  que  eu  me  arranjo...           
 Tanto  que  o  preso  partiu  escoltado  pelos  soldados  Belota  e  Cabecinha,  Crapiúna   assomou   na   sala,   mesmo   em   frente   de   Luzia,   cujo   olhar   dolente  acompanhava o moço e se fixava na porta por onde o levaram. A figura do soldado,  detestável  de  arrogância  triunfante,  substituindo  o  preso,  no  campo  da  visão  desvairada,  interrompeu  imediatamente  a  aniquiladora  impressão  de  mágoa;  e  a  moça, transformada por encanto, estremeceu num esto de ódio, que lhe faiscou no  olhar, como um corisco.              —  Aqui  está,  seu  doutor  —  exclamou  ela,  indicando  o  soldado,  com  um  soberbo gesto de indignação  — Aqui está o asa-negra que me persegue, pensando  que eu sou da laia dele... Este homem me atormenta com malcriações, com cartas...  Espere... Tenho uma comigo...             
  E retirou do seio, de envolta com o cacho de cravos murchos, a última, carta  de Crapiúna.            
 — Eis — continuou trêmula de cólera — a carta que este... não-sei-que-diga...  me mandou hoje...             
  O   Promotor   tomou   a   carta;   leu-a,   sorriu-se   e   passou-a   ao   delegado,  segredando-lhe:              — Há, talvez, em tudo isso um drama de amor.,           
 — De pouca vergonha, seu  doutor, atalhou Luzia —  Ele devia saber que sou  uma rapariga direita...             Depois  de  ler  a  carta,  voltou-se  o  Delegado  para  o  soldado,  que  até  então  mantinha ares de bazófia:   — Que quer dizer isto?...           
 — Saberá vossa senhoria que não é nada... — balbuciou ele, sorrindo irônico.          
 — Nada!... Que significam as suas palavras de ameaça?...           
 —  É  um  modo  de  falar  para  fazer  medo  e  caçoar  com  ela...  Negócio  de  namoro...          
 — Namoro, seu atrevido... Pois o senhor  fica responsabilizado por qualquer  falta  de  respeito,  ou  tudo  quanto  suceder  a  esta  moça...  
 —  Por  causa  disso  —  observou o escrivão Antônio Rufino — é que ele foi removido da polícia do Curral do  Açougue...          
 — Eu não quero fazer mal a ela, seu Delegado. De mais a mais não é crime a  gente querer bem e pretender uma moça dessas...           
 — Não admito observações. Retire-se... Veja como se porta!...            
 Crapiúna  fez  continência  e  deu  meia  volta,  com  inexcedível  garbo  militar,  lançando a Luzia sarcástico olhar de desafio.             
 — Vá descansada, moça — disse-lhe o  Promotor, com meiguice — Sua mãe  reclama os seus cuidados. Quanto a Alexandre, a justiça empregará todos os meios  e esforços possíveis para descobrir o verdadeiro autor do delito. Estou persuadido  que é inocente.          
 —  Deus  lhe  pague,  meu  senhor...  Deus  lhe  dê  saúde  e  felicidade...  Queira  perdoar a minha ousadia... Fiquei fora de mim... — Suspirou ela, com lágrimas na  voz.             
 E  compondo  as  dobras  do  amplo  lençol  de  mandapolão,  saiu  lentamente,  desconsoladamente, acabrunhada de dor e vergonha.           
 O Promotor voltando-se, então, para o Delegado e os Comissários, ponderou:            
 —  Não  será  esta  carta  um  indício  precioso?...  Na  minha  opinião,  deve  ser  vigiado aquele soldado. 

     CAPÍTULO  VIII             

  Teresinha  informara  a  tia  Zefa  do  caso  de  Alexandre,  procurando,  com  tortuosas  e  vagas  digressões, amortecer  o  choque  demasiado  rude,  e  substituir  a  filha  ausente,  preparando  o  caldo, ,ajudando  a  velha  a  mudar  de  posição,  e  convencendo-a de tomar o remédio, que tinha um sabor mau de azinhavre.            
  — Deus te pague — repetia a velha,  fazendo uma careta de repugnância e  escarrando com ruído — e perdoe os teus pecados. Bem sabia que o teu coração é  bom... Ai... o que te falta é cabeça...          
  — A minha sina é que não foi boa...— observou a moça com requintes de  ternura  e  meiguice  —  Se  a  gente  pudesse  adivinhar;  se  soubera  o  que  me  havia  reservado quando saí de casa...          
  — E Luza que não volta!...          
  —   Se   não   fossem   os   cuidados   estaria   melhor,   porque   o   puxado   vai  passando...          — É o remédio... Tome outra vez...          
 — Já estou encharcada de mezinha... Coitada da minha filha!...         
 — Descanse que ela não tarda aí...          
 — Pobrezinha! ... O dia inteiro, com uma triste xícara de café escoteiro.           
  Ao  escurecer  regressou  Luzia.  Vinha  taciturna  e  triste,  rendida  de  fadiga.  Tomou  a  bênção  à  mãe;  apertou  Teresinha  contra  o  seio,  numa  demorada  e  silenciosa  expansão  de  reconhecimento,  e  deixou-se  cair  acocorada  à  soleira  da  porta do quarto, em postura de desânimo, os cotovelos fincados sobre os joelhos e a  cabeça apoiada nas mãos.           
 — Seu de-comer — disse-lhe Teresinha — está guardado...          
 — Não tenho fome...          
 — Ao menos uma xícara de café...         
 — Deixa-me descansar.          
 — E Alexandre, filha? — inquiriu a velha plangente.         
 — Está preso!... Levaram-no para a cadeia como um mal-feitor...         
 —   Diz-me   o   coração   —   atalhou   Teresinha   —   que   ele   está   penando  injustamente... Mas... deixem estar que vou farejar o ladrão... Conheço uma velha  que faz a adivinhação da urupema e sabe rezar o respônsio de Santo Antônio. Não  há furto que não descubra. Uma coisa é ver, outra é dizer. Parece que tem parte  com o cão...Meu Deus perdoai-me...         
 — São abusões — murmurou a velha.          
 — Pois amanhã cedo vou atrás dela, da  Rosa Veado, que mora na Fortaleza,  nos quartos da Lianor, e vosmecê há de ver...          
  — Pode ir embora, Teresinha — disse-lhe Luzia, quebrando o longo silêncio  — Você já fez muito por nós...        — Eu?!... Ai, gentes! Que grande incômodo!... Agora é que fico mesmo aqui  ajudando. Durmo ali, na esteira, junto do jirau, ou em qualquer parte. Basta ter onde  encostar a cabeça...             E, acendendo fogo num cigarro de papel amarelo, continuou contando casos  maravilhosos da feitiçaria de Rosa Veado  que, além dessa habilidade, era insigne  parteira, muito cuidadosa, muito feliz.         
  Teresinha  ficou.  Passou  a.  fazer  parte  da  família  pois  não  tinha  ânimo  de  abandonar as duas criaturas, repassadas de amargos sofrimentos, sozinhas naquela  casa, sem uma alma condoída que as consolasse. Sabia quanto custava a privação  súbita da companhia afetuosa de um ente querido; tinha a dolorosa experiência do  abandono e das fatais conseqüências da orfandade do coração. Era quem cuidava  da  doente  nas  ausências  de  Luzia,  muito  preocupada  no  andamento  do  inquérito  sobre   o   roubo.   Às   provisões   que,   escassamente,   chegariam   para   mantê-las,  ajuntava o pouco que podia conseguir: algumas gulodices, ovos, manteiga e açúcar,  adquiridas por preços absurdos. Tomara a seu cargo os serviços da casa, menos os  braçais, como rachar lenha e pilar café, porque era aberta dos peitos cuspia sangue  sempre que abusava dos seus delicados músculos.           Procurara,  conto  dissera,  Rosa  Veado  para  rezar  o  respônsio;  esta,  porém,  exigira  dinheiro  para  comprar  duas  velas  para  o  santo,  luz  sagrada,  indispensável  para o êxito do sortilégio, circunstância que ela não revelou a Luzia, por querer que  o descobrimento do criminoso fosse devido, exclusivamente, à sua iniciativa.          
  Arguta  rapariga,  afeita  ao  contacto  do  vício  e  do  crime,  a  percebê-los  por  intuição, estava convencida da inocência de Alexandre, e julgava obra de malvados,  a infamante imputação.          
  — Ele não tem cara de ladrão — dizia — Conheço pela pinta quem pega no  alheio;  e  nunca  me  enganei...  Não  se  me  dava  de  apostar...  Enfim,  não  quero  condenar a minha alma, levantando falso a ninguém; mas... deixem estar que hei de  desmascarar os safados, que não têm consciência para fazerem sofrer um pobre...            
  As reticências irritavam Luzia que,  por sua vez, só pensava em deslindar o  mistério.          
  — Ah! Se eu tivesse dois mil réis!... — suspirou Teresinha.          
  — Para que queres dois mil réis?...          
  — Para uma coisa que só eu sei...             
  E passaram-se dias.           
  Da  frugal  comida  Luzia  separava,  todos  os  dias,  uma  porção  que  levava  a  Alexandre.  Apesar  dos  remoques  de  Belota  e  dos  encontros  com  Crapiúna,  ela  cumpria,  pontualmente,  o  dever  de  visitar  o  preso  e  conversava  com  ele  alguns  momentos, por entre as grades da cadeia, uma grande sala, no andar térreo da casa  da Câmara, onde estavam empocilgados mais de cem homens.          
  Alexandre não se conformara com a promiscuidade entre criminosos dos mais  abjetos. Havia ali assassinos, condenados a penas máximas, envelhecidos naquele  recinto  miasmático;  ladrões  que  narravam,  com  repugnante  bravata,  façanhas  deprimentes;  moços  impulsivos,  culpados  de  crimes  passionais,  cometidos  sob  a  influência    nefasta     de   paixões     incoercíveis,    e   alguns    idiotas,   maníacos       que  apodreciam  caquéticos,  roídos  de  moléstias,  vegetando,  como  plantas  daninhas,  conservados naquela sórdida estufa de podridão e de vício. No ambiente escuro da  prisão  cruzavam-se  redes  em  todas  as  direções,  umas  sobre  outras,  paralelas  ou  atravessadas,  todas  sujas  e  nauseabundas.  A  um  canto  estava  o  barril  d"água;  noutro, a cuba do despejo; e, defronte do amplo portão, das quatro janelas largas,  abertas  para  a  praça,  protegidas  por  dupla  grade  de  grossos  vergalhões  de  ferro,  trabalhavam  os  sentenciados  em  sapatos,  chapéus  de  palha  e  obras  de  funileiro.  Essas  janelas  eram  o  parlatório  e  o  balcão  dos  negócios.  Diante  delas  estavam,  continuamente aglomerados, agentes de comércio, ou pessoas da família, mulheres,  mães,  irmãs  ou  amantes  dos  reclusos  no  ergástulo  fedorento  e  imundo,  que  a  piedade dos Comissários ia extinguir, construindo a penitenciária no morro do Curral  do Açougue.           Dentro  de  dez  dias  de  prisão,  Alexandre  foi  acometido  de  fortes  dores  de  cabeça e imensa fadiga física e moral. Privado de sol, a tez do rosto perdera o vivo  colorido,   fez-se   pálida   e   baça;   a   barba   e   os   cabelos   castanhos   pareciam  pardacentos como erva crestada, e os olhos amortecidos ,e encovaram nas órbitas  roxeadas.      
  Toda    a   sua    pele    estava    seca     e   fria,  coberta    de    descamação  esbranquiçada,   que   lhe   zebrava   o   corpo   quando   se   coçava.   Queixou-se   ao  carcereiro, ao Juiz da prisão, que era o Galucho, antigo cangaceiro, portador de um  rosário de crimes.           
   — É assim mesmo — respondeu-lhe o facínora — Nos primeiros tempos, a  gente estranha; fica banzeira. Depois se acostuma. Estou aqui há dez anos; ainda  me faltam quatro e pretendo, se Deus não mandar o contrário, sair com forças para  liquidar contas velhas. Olhe, moço, para essas dores de cabeça só há um remédio:  sair, pela manhã, com a faxina...            
  Mas,  a  Alexandre  repugnava  o  carregar  a  infecta  cuba  de  resíduos  e  secreções, ligado a um criminoso por comprida corrente de ferro, atada ao pescoço  pela  gargalheira,  fechada  a  cadeado.  Mil  vezes  a  morte,  intoxicado  no  ambiente  mefítico, à vida maculada pela infâmia, que lhe custaria alguns momentos ao ar livre.          
  As  noites  infinitas,  cruciantes,  ele  as  passava  encolhido  perto  de  uma  das  janelas, o sono cortado pelos brados de alerta das sentinelas e contando as horas  pelo sino do relógio da Matriz fronteira, até ao toque de alvorada, que lhe repercutia  no coração, evocando a ânsia de tornar a ver Luzia com informações do processo, e  talvez mensageira da liberdade.          
  Quase  todos  os  dias  ela  passava  pela  casa  do  Promotor,  sinceramente  interessado na sorte de Alexandre, para se consolar com promessas. A última fora  que, terminado o balanço dos gêneros armazenados, o inquérito seria rapidamente  concluído.          
  Até  então  nada  se  havia  adiantado  para  esclarecer  a  justiça.  Permanecia  a  situação  indecisa  de  presunções,  meras  suspeitas,  indícios  pouco  veementes;  e  nenhuma   prova   de   alcance   jurídico   fora  colhida,   além   dos   depoimentos   dos  soldados  e  de  duas  mulheres  de  má  vida,  a  Romana  e  a  Cangati.  O  fato  de  ser  Alexandre depositário das chaves deixava de ter importância por se haver verificado  que a fechadura da porta do armazém, antes tão corrente, estava perra, denotando  a introdução de outra chave ou de qualquer instrumento de violência. Nada ocorrera,  entretanto, para encaminhar a ação da polícia em direção a outro responsável, tendo  sido infrutífera a vigilância, secretamente feita, em volta de Crapiúna.          E,  nessa  incerteza,  dias  de  penar,  noites  mal  dormidas  sucederam-se:  Alexandre  estiolado  na  prisão,  como  planta  silvestre,  privado  de  ar  e  luz;  Luzia  nutrida de esperanças, que se adelgaçavam em quimera fugitiva.          
  Num  dia  desses,  regressando  a  casa,  ela  respondeu  com  um  gesto  de  desânimo aos olhares interrogativos da mãe e de Teresinha:           
  — Por ora... nada... amanhã... amanhã...         
  — Ah! — suspirou Teresinha — Se eu tivesse dois mil-réis!...          
  —  Para  quê?  —  inquiriu  Luzia  impacientada  pelo  estribilho,  repetido  toda  a  vez que se queixava da ineficácia das diligências para libertar Alexandre.       
   — Mortifica-me com essa cantiga... Já vendi os meus brincos de ouro; a vara  de  cordão,  que  havíamos  reservado  para  um  aperto,  também  passara  a  outras  mãos... Nada mais temos, nem com que comprar um par de chinelas... Veja?... As  minhas já estão com boca de sapo...         
  — A você, tornou Teresinha à puridade —  nada devo ocultar — Eu queria os  dois mil-réis para o respônsio...   — O respônsio?!...          
  — Sim, para comprar duas velas de libra... A Rosa não reza sem isso...         
  — Como há de ser? Onde irei achar tanto dinheiro!...         
  — Fosse eu você, Luzia, era só pedir por boca...          
  — Que fazia?            
  E  cravou  na  companheira,  um  prescrutador  e  sereno  olhar,  desses  que  traspassam o corpo e devassam a alma.           
  — Eu — balbuciou a moça confusa  e dominada — Eu?... Não fazia nada...  Foi uma asneira que me veio à cabeça... Não pode ser... não se faz a reza... E eu  que tinha uma fé... É melhor tirar daí o juízo...         
  — E acredita que Rosa Veado é capaz de descobrir?...          
  —  Ora...  ora...  ora!...  É  dito  e  feito...  Tenho  fé  cega  em  Santo  Antônio.  Em  casa de meu pai havia um deste tamaninho e milagroso como ele só. Quando se  perdia  alguma  coisa,  bastava  prometer-lhe  dois  vinténs;  a  gente  achava  logo  sem  saber  como.  E,  não  se  cumprindo  a  promessa,  era  castigo  certo.  De  uma  feita,  desapareceu  urna  vaca  leiteira.  Meu  pai,  desconfiando  que  a  houvessem  furtado,  chamou o pai Pedro, negro velho ladino e rastejador, e disse-lhe: "Não quero saber  de histórias; vosmecê dá-me conta da vaca, ou come relho." Quando o velho falava  assim,    era    aquela    certeza.    O    negro    coçou     a   cabeça,     lastimou-se     e   saiu  resmungando. Bateu capões de mato; esgravatou grotas e já estava desesperado,  pensando  no  que  lhe  aconteceria,  por  voltar  com  as  mãos  abanando,  quando  se  lembrou de prometer dois vinténs a Santo Antônio. Mal tinha feito a promessa, olhou  para uma banda e o que havia de ver? A vaca pastando muito de seu, no lugar onde  escondera o bezerro. Pedro pulou de contente, laçou a vaca, e partiu. Em caminho,  entrou  a  pensar  que  o  santo  nada  havia  feito;  ele  é  que  estava  banzando  sem  prestar atenção. Por que, então, lhe havia de dar o dinheiro?... Nisto, o animal deu  um  safanão;  arrancou  e  deitou  a  boca  no  mundo:  Que  santo  desconfiado!...  Eu  estava caçoando... Pago os dois vinténs e até mais!... A vaca voltou ao curral com  os  pés  dela  e  foi  o  que  valeu  ao  pai  Pedro.  Olhe,  Luzia,  tenho  visto  verdadeiros  milagres...          
  — Amanhã — afirmou Luzia jubilosa como se lhe houvesse ocorrido o meio  de resolver a dificuldade — amanhã arranjarei os dois mil-réis...         
  — Como? Que vai fazer?... Ah! Luzia, não se guie pela minha ruim cabeça ...         
  — Não se arreceie...          
  — Que é que vocês tanto conversam? — perguntou a velha.         
  — Nada, tia Zefinha — respondeu Teresinha — Bobagens de moças. Eu dizia  que se pudéssemos pagar um doutô para soltar Alexandre...          
  — Não há, então, uma criatura que faça de graça essa caridade?...          
  —  Qual!...  Neste  mundo  tudo  se  move  a  peso  de  dinheiro...  Doutô  é  como  padre que não diz missa sem dinheiro... O saber é a foice e o machado deles...          
  — Não são todos — observou Luzia —  O Promotor é um doutô muito bom...  Tem  feito  o  que  pode  pelo  pobre  que  está  penando  naquele  inferno...  Amanhã...  Amanhã...            
  Teresinha  preparou  a  candeia  de  azeite  de  carrapato;  espevitou  o  pavio  de  algodão  torcido;  acendeu-o,  soprando  com  força  num  tição,  e  colocou-a  no  caritó,  donde,  bruxuleando,  vacilante  e  fumarenta,  iluminou  em  tons  melancólicos,  em  firmes  e  vagarosos  contrastes  de  claro  e  escuro,  como  nas  telas  imortais  de  Rembrandt e Espanholeto, um quadro admirável e emotivo, cena íntima da pobreza  sofredora e resignada.  
    
CAPÍTULO  IX            

  Apagavam-se  no  céu  pálido  os  astros  e  a  estrela-d"alva  desmaiava,  lívida,  quando  Luzia  deixou  a  rede.  Espreguiçando,  estremunhada  ao  fresco  terral  da  manhã, que lhe agitava o traje com suave carícia, desfez os cabelos impregnados de  forte fragância de mulher amorosa, como se a própria essência da força e da saúde  evolasse deles em capitoso filtro sensual; e, tomando de um largo pente de chifre,  começou  a  desembaraçar  as  densas  madeixas,  que  se  afofavam  e  intumesciam  crespas e lustrosas. Aos seus ouvidos, chegavam os clamores vibrantes do toque de  alvorada,  recordando-lhe  Alexandre  encerrado  na  prisão  infecta  e  escura,  entre  celerados, àquela hora despertados do profundo sono perturbado pelos sonhos de  remorsos implacáveis.         
  Nos arredores, até onde o olhar podia chegar fendendo a vaporosa neblina da  madrugada,  surgiam  massas pardacentas  de  moitas  desgrenhadas  em  gravetos  ressequidos, espectros  de  árvores,  a  terra  poeirenta e  as  casas  ainda  fechadas,  donde partia o surdo rumor de choro de crianças, ranger de chaves nas fechaduras  perras,  prolongados  bocejos,  resmungando  frases  de  vago,  quase  imperceptível  queixume.      No  quarto  próximo,  a  velha  mãe  ressonava  com intermitentes  gemidos.  Teresinha  dormia  ainda,  estirada  na  esteira,  seminua,  num  abandono  ingênuo,  debuxando-se-lhe  as  formas  delgadas  e  graciosas.  No  alpendre  esmoreciam,  na  extremidade  dos grossos  tições,  grandes  brasas  rubras,  sob  tênue  camada  de  cinzas brancas.         
  Ao espetáculo do alvorecer sem alegria, o campo desolado, sem cânticos de  pássaros  e  rumores  harmoniosos  do  trabalho  venturoso  e  fecundante,  ela  revia  a  infância,   na   fazenda   Ipueiras:   a   campina   verdejante   umedecida   de   orvalho  congregado  no  côncavo  das  folhas  em  gotas  trêmulas,  os  cabeças-vermelhas  gorjeando   nos   mais   altos   ramos   dos   juazeiros   frondosos;   caraúnas   airosas  papeando   em  volatas   vibrantes   nos   leques   das   carnaubeiras   esguias,   rolas  arrepiadas e friorentas aguardando, aos casais quietos, bem juntinhas, os primeiros  raios  do  sol.  Ouvia  o  mugir  lamentoso  das  vacas  presas  nos  currais,  o  gemido  soturno e tímido dos bezerros e monjolos famintos; o balir das ovelhas irrequietas no fumegante chiqueiro; o gaguejar dos bodes lúbricos, ébrios de luxúria; e o relincho  triunfante do fogoso cavalo castanho, a galopar peado das mãos, de crinas eriçadas,  de orelhas espetadas e de rúbidas narinas acesas. E com o cheiro do pasto florido,  dos aguapés flutuantes na lagoa azulada, nenúfares de caçoilas entreabertas, sentia  o fartum da prodigiosa terra exuberante,  e o bafio agro dos rebanhos fecundados.    Recordava-se do banho na lagoa, que espalhava o céu, e a paisagem pitoresca, e  onde   ela   nadava   como as   marrecas   ariscas;   mergulhava   e   voltava   a   flux,  espadanando a água com o açoite de cangapés acrobáticos, espantando os paturis  e jaçanãs medrosos, os graves socós  pousados sobre uma perna e os bandos de  alvas garças elegantes. Como era saboroso o leite morno, espumando nas cuias, o  tassalho de carne-do-sol chiando no espeto, o cuscuz vaporoso e os queijinhos de  cabra, em forma de peito de moça; as merendas e o mel de rapadura e macaxeira, o  mocunzá com coco da praia, a coalhada escorrida e os fofos manuês assados em  folha de bananeira?!...         
  Nessa  evocação  saudosa  de  um  passado  morto, ressurgiram  as  adoráveis  peripécias  da  infância,  os  episódios  da  vida  de  adolescente  na  penumbra  da puberdade,  salteada  pelas  primeiras  investidas  dos  instintos;  as  festas,  os  Sãos  Gonçalos,   os   Bumba-meu-boi,   as   vaquejadas,   as   caçadas   de   avoantes   nos  bebedoiros, a colheita dos ovos que elas, abatendo-se em nuvens sobre as várzeas,  punham  aos  milhões,  junto  dos  seixos,  das  toiceiras  de  capim,  ou  nas  barrocas  feitas,  durante  o  inverno,  pelas  patas  do  gado.  Sentia  ainda  zumbir  o  vento  nos  ouvidos,  quando,  em  desapoderada  carreira,  o  castanho  perseguia,  através  dos  campos  em  flor,  as  novilhas  lisas  ou  os  fuscos  
barbatões ,  que  espirravam  dos  magotes; o ecoar da voz gutural do pai, cavalgando, à ilharga,  o melado caxito, e  bradando-lhe,  quente  de  entusiasmo:   Atalha,  rapariga!...  Não  deixes  ganharem  a  catinga!...   E   quando   ela,   triunfante   das   façanhas   do   campeio,   o   castanho   a  passarinhar   nas   pontas   dos   cascos,   garboso,   vibrátil   de   árdego,   as   ventas  resfolegantes,  os  grandes  e  meigos  olhos  rutilantes,  todo  ele  reluzente  de  suor,  como um bronze iluminado, o enlevo do pai a contemplá-la, orgulhoso, e indicando-a  aos outros vaqueiros: Vejam, rapaziada!...  Isto não é rapariga, é um homem como  trinta,  o  meu  braço  direito,  uma  prenda  que  Deus  me  deu...  E  as  moças,  suas  companheiras,  murmuravam  espantadas:  Virgem  Maria!  Credo!...  Como  é  que  a  Luzia não tem vergonha de montar escanchada!...          Paisagem,  fatos,  coisas,  criaturas  queridas  perpassavam,  confundidos,  sós,  ou  em  torvelinhos  fantásticos:  tudo  ao  longe,  num  horizonte  de  neblinas,  como  recordações truncadas e vagas de um delicioso sonho interrompido.          O sol surgia rubro, sem pompas de nuvens, destoldado.          
  Teresinha apareceu à porta do quarto,  bocejando e fazendo cruzes sobre a  boca escancarada:            — Credo!... 
 — murmurou — Pegou-me o sono que não foi graça...  Bom dia,  Luzia... Você é muito faceira com esses cabelos...         
 Bom dia, Teresinha! — respondeu Luzia com uma das madeixas presa aos  dentes para lhe poder desembaraçar a extremidade — E mãezinha?...            —  Está dormindo, coitadinha, que nem uma criança. Que santo remédio! ... 
 Somente — já reparou? — de vez em quando ela a modos que se engasga...          
 — É da moléstia...          
 — Que inveja tenho dessa cabeleira!  Que é que você fez para crescer assim?          
 — Nada... Água do pote e pente duas vezes por dia...          
 — Qual!  Isso  é  do  calibre  da  gente...  Eu  tenho  usado  tudo  quanto  me  ensinam: óleo de coco, enxúndia de galinha, uma porção de porcarias... Cheguei até  a  botar  nos  meus,  remédio  de  botica...  Foi  mesmo  ue  nada...  Sempre  ficaram  nestes rabichos que nem me chegam às cadeiras...          
 — Veja só. Ninguém está contente com a sua sorte... Eu, por mim, não se me  dava  que  os  meus  fossem  como  os  seus. Dariam  menos  canseira  para  os  desembaraçar e alisar todos os dias...          
 — Enfim, cada um como Deus o fez...          
 —  Por  que  não  os  ensaboas  com  raspa  de  juá?  Todas  as  moças,  na  redondeza das Ipueiras, têm cabelos lindos, que crescem depressa — dizem — por  causa da água de lá, que é virtuosa, e da tal raspa...           
 — Vou experimentar.  Houve  longa  pausa.  Teresinha,  de  olhos  apertados, sufocada  pela  fumaça,  soprava os tições. Luzia subjugava os cabelos em grande cocó, no alto da cabeça.       — Às vezes — disse Luzia — tenho vontade de cortar os meus bem rente.  Para que pobre quer cabeleira?...          
  —  Que  horror!  —  exclamou  Teresinha  —  Ficar  sura?!...  Nem  falar  nisso  é  bom.          —  Não  faz  mal.  Cabelo  é  bem  de  raiz:  quanto  mais  se  corta  mais  cresce.  Assim foi com os meus.      — Há gente que usa cabelos postiços.  A Maria Caiçara, aquela cara de lua  cheia,  que  é  caseira  do  Belota,  tem  um  enchumaço,  que  parece  dela  mesma.  Algumas  moças  brancas  e  ricas  também  gostam  disso.  Dizem  até  que  compram  cabelos  de  defuntas,  cortados  pelos  coveiros  do  cemitério...  Credo!...  Eu  teria  um  nojo...            
  Nessa     ocasião,     chegou     Raulino,     sertanejo    muito afamado,  alto, todo  músculos,  de  cabelos  vermelhos  e  olhos  azuis,  genuíno  tipo  de  bretão,  bravo  e  meigo, contador de histórias maravilhosas de grande voga. Trazia, em balança, nos  ombros,  uma  grande  toalha  de  algodão  da  terra,  com  uma  trouxa  em  cada  extremidade.                    
  — Bons dias, meninas!   Como vai tudo por esta casa?         
  — Assim, assim — respondeu Luzia — E você?          
  — Eu? Como pobre.  Não estou bem em pé, mas encostado, e vou furando,  como Deus é servido, o oco deste mundo, até topar na morte. Estão aqui as rações:  a sua, sra Luzia, e mais a da velha. Como você não pôde ir trabalhar o capitão José  Silvestre  me  perguntou  se  eu  podia  trazê-las.  Então  respondi:  Que  é  que  eu  não  farei por semelhante gente? Era para vir ontem de tarde, mas porém fui pegar um  veado de estimação, que fugiu da casa do doutor e só pude dar com o bicho à boca  da noite, lá perto do córrego da Roça. Então resolvi vir agora de manhãzinha.           
 — Deus lhe pague.           — Ainda não lhe paguei eu, sra Luzia, a esmola que me fez... Se não fosse  você, abaixo de Deus, o boi me desgraçava daquela feita...           
  — Ora, ora, ora...   Grande coisa!...           
  —  Mangando,  mangando,  eu  ia,  mas  era  sendo  varado  pelas  galhadas  do  bicho traiçoeiro... Ainda estou com este pé meio esnocado, mas já lhe piso em riba  com vontade...           
  Luzia desatou as trouxas, e arrumou, cuidadosamente, os víveres, que elas  continham,  sobre  o  tosco  
jirau,  enquanto  Teresinha  torrava  café  em  um  caco  de  pote, mexendo os grãos que se coloriam de castanho, exalando saboroso cheiro.             
 — Bom, agora vou para a obra — disse Raulino —Até mais ver...           
 — Espere o café. A Luzia pila num instantinho.          
 — Café é comigo. Não posso enjeitar — respondeu o sertanejo, com mesuras  de  agradecimento  —  Não  bebendo  de  manhã,  passo  todo  o  dia  com  a  cabeça  dolorida e as fontes latejando...             
  Teresinha  despejou  o  café  fumegante  no  pilão,  e  Luzia  tomando  da  mão  pesada de pau-d"arco, em poucos minutos, a golpes firmes e cadenciados, reduziu  os grãos a leve pó inebriante.          
  Pouco  depois  Raulino  sorvia,  a  largos  tragos,  o adorado  líquido,  que  ele  entornava  no  pires  e  soprava,  tão  quente  estava.  Ao  terminar,  puxou  do  cós  da  ceroula um grande corrimboque de retorcido chifre de carneiro, cuja tampa, de casco  de  cuia,  estava  presa  pelas  correias  a  um  velho  lenço  vermelho;  sorveu  enorme  pitada do caco, e partiu troteando em ligeiro chouto de andarilho.  A velha, cujo sono já causava estranheza à filha, despertou muito melhorada.  Havia muito, não lhe fora dado dormir uma hora a fio.           
  — É do remédio, mãezinha — dizia-lhe Luzia com alegria infantil, beijando-lhe  a mão, trêmula e descarnada   — Se Deus for servido, vai ficar boa, aliviada desse  martírio.  Também  já  basta,  tanto  tempo  dentro  de  uma  rede!...  Mais  dias,  menos  dias, estamos de viagem...            
   A velha, sorriu-se, complacente e irônica.             
  — A demora — continuou a filha — é soltarmos Alexandre...             
  Às nove horas, partiu ela para a cidade, levando a comida do preso. Já estava  quase na volta do caminho, quando Teresinha gritou por ela:             
 — Não esqueça o que me prometeu ontem.          
 — Deixa estar — respondeu Luzia, fazendo de longe, um gesto de certeza, e  desapareceu.            
 A   entrevista   na   grade   da   prisão   foi   a   de   todos os   dias:   palavras   de  consolações  de  esperança.  Alexandre  desanimado  e  doente,  para  espairecer as  amarguras da reclusão, trabalhava para um sentenciado sapateiro que lhe dera, em  pagamento do salário, um par de chinelos de marroquim verde para Luzia, presente  muito  oportuno,  porque  os  dela  já  os  não  podia  quase  sustentar  nos  pés,  tão  estragados estavam.           Depois da refeição — disse-lhe o moço à puridade:            
 — Tenho que lhe dizer; mas só quando não estiverem outros presos perto de  nós...            — O que é?...           
 — Uma intrigalhada... Imagine que levantaram...             
  A confidência foi interrompida pela aproximação de Crapiúna, que estava de  serviço.          
  — Vamos isso — bradou ele, afetando  energia, e piscando sensualmente o  olho para a moça — Não quero paleios com os presos. Aqui não é lugar de namoro,  nem de bandalheiras. É fazer o que tem de fazer e buscar-se. São as ordens...             
 Luzia,  perturbada  com  a  súbita  presença  do  terrível  soldado,  não  ousou  proferir palavra; compôs a trouxa, e partiu, rapidamente, para não ouvir as graçolas,  que lhe dirigia a meia voz:           
  —  Ingrata!  Não  se  zangue  comigo,  meu  benzinho...  Tenha  pena  de  seu  mulato, feiticeira da gente...             Alexandre tiritava de raiva, murmurando entre os dentes cerrados:           
  —  Deixa  estar,  miserável!...  Não  hei  de  ficar  preso  toda  a  vida...  Nossa  Senhora há de me tirar daqui e então aprenderás a respeitar os outros... Peste!...           
 — Não quero conversa com presos e, de mais a mais, gatunos...             
  A injúria feriu certeira o coração de  Alexandre, que se conteve para se não  agravar.          
 O Promotor recebeu Luzia com a benevolência com que sempre lhe ouvia as  queixas, as censuras, com ingênuo desembaraço feitas à morosidade da justiça e  das diligências, principalmente o tal balanço que nunca mais se acabava.            
 — Você tem razão, em parte — dizia-lhe, com brandura, o jovem bacharel —  Mas a justiça é cega, não pode correr; deve andar com muita cautela, e, por não  tropeçar, muito devagar. Além disso; essa demora, que a  impacienta, é favorável a  Alexandre,  para  que  ele  saia  limpo  de  tão  malfadado  incidente.  Tenha  paciência,  espere mais alguns dias. Há uma pequena complicação por esclarecer.            
  Luzia ouvia em silêncio, torcendo e destorcendo a ponta do lençol...                      
  — Noto que está hoje muito preocupada.   Que lhe aconteceu?... — Nada... —  respondeu ela de olhos baixos, hesitante — Sempre que topo com aquele soldado, o  coração  me  bate  ao  pé  da  goela  e  fico  meio  sufocada...  É  preciso  ter  muita  paciência...      — Fez-lhe alguma?...           
  — Fez... Mas não é disso que eu queria falar a vossa senhoria... Era...            — Diga sem hesitação...           — Eu queria pedir-lhe um favor, pelo bem que quer a sra dona...           
 — Fale...           
 — Lembrei-me que achou os meus cabelos bonitos...          
 — Sim, é verdade — afirmou o Promotor corando — E... depois?...           
 — Então vim aqui para lhe vender...            
 — Vender os cabelos, Luzia?!...           
 — Não tenho mais o que vender... É a necessidade... Contento-rne com dois  mil réis por eles... Não é caro...             
 Dois  mil  réis  por  esse  tesoiro?!...  Eis  um  bom  negócio,  Matilde  —  disse, dirigindo-se à esposa, formosa senhora, que, em adorável traje matinal, um roupão  de cambraia e rendas, entrava no gabinete - Esta moça quer vender os cabelos...             
 — Oh! É horrível — exclamou Matilde penalizada.             
 Deslumbrada  com  a  presença  da  senhora,  cujos  belos  olhos,  claros  e  suavíssimos, se fitavam nela compassivos, ergueu-se e arrancando o pente, deixou  caírem as fartas, fulvas madeixas encaracoladas.             
 — Magníficos — continuou Matilde — Mas... para que serviriam? São muito  diferentes dos meus...             Faça-me esta esmola, minha dona. Veja, não é por me gabar, parece cabelo  de branca... Pegue neles, não tenha nojo...           
  Matilde,   após   curta   hesitação,   tomou   as   madeixas   nas   mãos   alvas   e delicadas; fixou nelas os finos dedos, com unhas de nácar, e apertou-os a rangerem  como meadas de retrós.     — Que belos, que extraordinários cabelos!... Com que os trata?          
   —  Pente  e  água  do  pote.   Então?  Fique  com  eles  que  tenho  muito  gosto  nisso...          
 —  Fico,  sim...  —  respondeu  Matilde,  tomando  súbita  resolução  —  Dou-lhe  cinco mil réis por eles; mas... imponho uma condição.           
 — Quer cortá-los já?... — atalhou Luzia, vivamente.         
 —  Ao  contrário  —  continuou  a  senhora  —  não  os  cortará.  São  meus,  mas  ficam na sua cabeça.             Iluminou-se  o  semblante  de  Luzia  de  irrepreensível  alegria;  seus  olhos  se  umedeceram e os lábios, trêmulos, murmuraram:             
 — Deus lhe pagará, santa criatura!...  Nossa Senhora lhe dê uma boa sorte ...  Oh! a senhora não parece deste mundo... Perdoe-me!... Eu tinha um grande aperto  aqui, no coração... Faz-me bem chorar...           — Aqui tem o dinheiro — disse o Promotor, entregando uma  nota a Luzia —  Amanhã, talvez tenhamos boas notícias...           — Amanhã?... — perguntou Luzia, guardando o dinheiro no seio e compondo  os cabelos.          
 —  Sim.   Creio  que  teremos  novidade...  Vá  descansada,  que  aqui  fica  o  seu  advogado — disse ele, indicando Matilde.          
  E  voltando-se  para  ela,  enquanto  Luzia  partia,  alastrando  agradecimentos,  disse-lhe em tom de afetuoso carinho, muito enternecido:           
  — Bom negócio fizeste, meu amor! Belíssima ação praticaste... És um anjo de  bondade...      

CAPÍTULO  X             

 Rosa Veado voltara extenuada de penosíssimo trabalho. Sentada à porta da  casa  de  taipa,  onde  morava  com  os  filhos  entre  o  cemitério  velho  e  a  Fortaleza,  contava   o   caso   às   vizinhas   atentas,   acocoradas   em   redor   dela,   curiosas   e  admiradas.            
 — É o que digo a vocês. As outras comadres não lhe puderam dar volta e não  tiveram remédio senão me procurarem, porque, não é por me gabar, todo o mundo  sabe que eu sou a tira-teimas.  Que horror! A mulher tinha a criança atravessada, lá  nela; era cheia de dengues; e, quando vinham as dores, não havia meio de ter mão  nela.  Eram  gritos,  exclamações!...  E  botava  a  boca  no  mundo,  que  não  era para  graças... Também era a primeira barriga, coitada!... Eu lhe dizia: Tenha paciência,  comadrinha...  É  assim  mesmo.  
 —  Mas  eu  já  não  posso  mais,  sinhá  Rosa.  Estas  dores me arrebentam  — respondia ela, com as mãos fincadas nas cadeiras — Ai...  ai...  ai...  que  estou  me  acabando!...  
 —  É  porque  vosmecê  não  está  afeita...  A  primeira  vez  custa  um  bocado...  Nisto,  vinha-lhe  o  sono...  Ela  passava  por  uma  modorra, como se não tivesse nada. De repente, estremecia... 
— Lá vem ... lá vêm  elas — repetia espantada.  Ai... ai... Minha Santa Virgem!... 
— Ah, meu maridinho...  da  minha  alma...  Ai!...  Ai!...  E  eram  ais  de  cortar  o  coração  de  quem  não  labuta,  como eu, desde rapariga. Estava eu já  esfalfada; não sabia mais como enganar a  pobre,  quando  ela teve  um  puxo  forte  e  quebraram-se  as  águas.  Então  eu  disse: daqui  a  um  nadinha,  se  Deus  quiser,  está  aí  a  criança.  —  As  dores  foram  amiudando, umas em riba das outras e...  nada... Por fim a mulher não tinha mais  forças: os puxos se espaçaram muito escassos, estava lavada em suores, branca  como um pano, os olhos revirados e o nariz afilado... Credo! Parecia uma defunta...  — Tenha coragem, minha comadre. Mais uma vez e estará livre... Ela não falava;  berrava como uma bezerra. Peguei-me, então, com o Senhor São Raimundo e rezei  o  Magnificat.  Já  estava  para  mandar  tocar,  no  sino  da  Matriz,  sinal  de  mulher  de  parto, quando me veio uma fé... Mandei sujicá-la por outra mulher, que estava junto,  e vistoriei-a à fina força, porque, toda cheia de luxo e de vergonhas, me dava com os  pés como uma desesperada. O menino estava mesmo atravessado. — Vão ver uma  botija, minha gente — disse eu. Trouxeram, uma botija de zinebra vazia, onde eu  mandei  que  ela  assoprasse  com  toda  a  força.   —  Sopre...  sopre  de  verdade...  Vamos... vamos... mais... mais um bocadinho... Agora... agora... Nisto dei um jeito  que só eu sei... A mulher largou um grito rasgado e a criança pulou!... Estava roxo  corno uma berinjela... Mal se viu aliviada, era só arremetendo para ver o filho... Eu,  com medo de dizer que a criança parecia morta, tinha mão na mãe... A criança não  dava sinal de vida. Amarrei-lhe o umbigo; arrumei-lhe quatro palmadas fortes; meti- lhe o dedo na boca cheia de gosma... Foi dito e feito: chorou logo com força, pois  era  um  menino  macho,  com  a  graça  de  Deus...  A  mulher  ficava  cada  vez  mais  branca  e  com  uma  sede  de  engolir  quartinhas  d"água.  Era  um  frouxo  danado.  Parecia que se havia sangrado um boi... Então mandei assoprar outra vez na botija.  E, como as párias não se despregassem, chamei o marido, mandei que botasse o  pé  em  cruz  na  barriga  da  mulher  enquanto  esta  rezava  comigo:  "Minha  Santa  Margarida,  não  estou  prenha,  nem  parida,  mas  de  vós  favorecida."  Ao  cabo  da  terceira vez, estava tudo acabado. Arre! Que nem com dez mil réis me pagavam o  trabalho  e  o  susto...  Ainda  tenho  uma  dor  aqui,  na  ponta  da  costela  mindinha,  de  uma feita que ela me empurrou o pé para fazer firmeza... Credo!...  — Vosmecê tem muita sorte, tia Rosa!...          
 — Qual! O que eu tenho é fé em Deus.          
 — Não sei como, em semelhante sequidão, ainda há quem se lembre de ter  filhos...          —  Você  não  vê  como  estão cheios  de  crianças  os  abarracamentos  de  retirantes?! ... Até parece imundície, tanto menino...         
 — É só o que Deus dá aos pobres...          
 — É um morrer de crianças que até parece praga...          
 — Se não morressem, mulher, o mundo já não cabia mais a gente. Depois,  anjinhos, não faz mal morrerem... Vão para o céu rezar pelos pais...         
 —  Assim  mesmo  —  retorquiu  uma  gorda  matrona  que  tinha  junto  quatro crianças — eu não quero que os meus morram... Já que nasceram é melhor que se  criem...          
 — Pois eu tive cinco — atalhou outra — que Deus chamou à sua santa glória.  Foram  para  o  céu  direitinho,  só  passaram  pelo  purgatório  para  vomitar  o  leite  pecador...           
  Em meio da conversa, chegou Teresinha.  — Que fim levou você? — perguntou-lhe Rosa.          
 — Ando por aí mesmo. Boas tardes a vosmecês todas...            
 As   mulheres   corresponderam,   friamente,   à   saudação   de   Teresinha;   e,  desconfiando  que  vinha  tratar  de  algum  particular,  foram  saindo,  uma  a  uma.  Era  muito  comezinho  receber  a  parteira  visitas  misteriosas,  em  busca  das  suas  artes,  das suas maravilhas.           
  — Trago aqui os dois mil-réis — dizia Teresinha quando se acharam a sós.          
  —  Hoje  talvez  não  possa  fazer  a  reza  —  disse Rosa,  tomando  a  cédula  e  examinando  com  os  olhos  pequeninos  e  cinzentos;  armados  duns  óculos  de  cangalha, remendados com cera — Estou que não posso me mexer de cansada de  um trabalho que me pôs sal na moleira...             E repetiu o caso com peripécias novas, apesar da impaciência da moça.            
 — Enfim — condescendeu a parteira — como você tem pressa, vou ver se,  com a ajuda de Deus, posso fazer hoje alguma coisa...          
 — Faça, sra Rosa. É em beneficio de um pobre que já não se atreve com a  cadeia...         
 —  E  tem  razão.  Preso  nem  para  ganhar  doce.  Só  d"eu  pensar naquela  sepultura, tapa-me o fôlego...    
 — Podia fazer a esmola de experimentar hoje...          
 —  Eu  tinha  de  servir  uma  dona,  separada  do  marido,  que  foi  para  o  Amazonas  e  nunca  mais  se  soube  dele;  nem  novas,  nem  mandados...  Ela,  que  esperou tanto tempo, pode esperar mais alguns dias...   Vamos lá... Entra para dentro  de casa ...            
  E conduziu Teresinha a um quarto estreito, sombrio, atravessado de frechas  esguias  de  sol  que,  das  fendas  do  telhado,  iriadas  de  doirado  pó  irrequieto,  o  iluminavam,  e  marcavam  no  chão  mornos  discos  pálidos.  No  centro,  sobre  uma  esteira, havia um banco, envernizado pelo uso e marcado com pingos de cera. Tirou,  depois, de uma velha mala, carcomida e desconjuntada, duas velas e uma pequena  imagem de Santo Antônio, tão amarrado e enrolado em fitas de cores tantas, que só  lhe aparecia a cabeça tonsurada e o microscópico Menino Jesus, nuzinho, sentado  sobre o livro vermelho e estendendo os bracinhos para abraçar o santo.          
  Um   gato   negro,   de   olhos   fulvos,   veio   lentamente,   a   passos   tardos   e  preguiçosos, encolher-se perto do banco.         
 Dominada por secreto  terror   do   contacto     com    o   mistério,    Teresinha  acompanhava, com o olhar espantado, os preparativos. Quando a parteira acendeu  as velas, que espargiram mortiça claridade no ambiente, e aspergiu os quatro cantos  do quarto com uma palha benta, molhada na  água do copo, colocado defronte da  imagem,  se  sentiu  aniquilada  e  caiu  de  joelhos,  baixando  os  olhos  para  não  encontrarem  os  dela,  pequeninos  e  vivos  como  os  do  gato,  a  fitarem-na  com  insistência e energia, como se lhe perscrutassem a alma.            
 — Reze o Creio em Deus Padre — ordenou Rosa Veado, com voz soturna.            Enquanto   a   moça   repetia,   maquinalmente,   a   oração,   ela   murmurava   o  responsório,  que  terminou  implorando  a  Santo  Antônio,  deparador  do  perdido  àqueles que recorriam à sua intercessão junto do Trono do Altíssimo, fizesse a graça  de indicar o ladrão por quem estava padecendo um inocente.          Rosa Veado saiu, então, do quarto, como um espectro, a deslizar sem ruído,  e fechou a porta cautelosamente.          
  Teresinha ficou só no sítio de mistério e esconjúrio. Seus olhos esgazeados acompanhavam  os  movimentos  sensuais  do  gato,  que  entrou  a  caminhar  de  um  para outro lado,farejando e chamando a feiticeira com plangentes miados. Havia, no  ambiente   enfumarado,   sombras  adejantes,   a   atravessarem   céleres,   os   traços  luminosos  das  frestas,  como  enormes  pássaros  negros.  Toda  ela  tremiam  em  arrepios aflitivos.  Um formigueiro subia-lhe  pelas pernas frias, entorpecidas.  Gelado  suor colava-lhe às têmporas, as loiras madeixas. Arfava-lhe o seio, angustiado por  mortal compressão. Quis gritar, mas a voz esbarrou na garganta, embargada por um  nó. Fixou o olhar fascinada no brilho do copo e viu se moverem nele, como em uma  câmara clara, confusas figuras humanas, mulheres e homens, arrebatados por um  furacão, com doidos volteios de dança macabra. Ao mesmo tempo, experimentava a  impressão de alar-se do chão, sorvida pelo enorme e poderoso hausto de colossal  boca invisível. Cresciam as figuras; tinham feições de pessoas conhecidas; riam com  esgares ferozmente sarcásticos; envolviam-na; arrastavam-na no galope diabrino...  
  Ela  desmaiava  de  gozo,  à  deliciosa  sensação  de  adejar  no  espaço,  subtraída  à  gravitação, como um floco de nuvem, alma sem corpo.           Em  plena  alucinação,  não  perdera,  todavia,  os  sentidos  e  a  idéia,  fixada  e  dominante em seu cérebro conturbado: o crime imputado a Alexandre e a infamação  do  castigo.  As  suspeitas,  que  lhe  haviam  cavado  largo  sulco  no  espírito,  se  acentuavam  com  o  testemunho  dos  olhos,  porque  via,  nos  vultos  cabriolantes  em  redor,  autores  e  cúmplices  do  delito,  indicados  por  Santo  Antônio.  O  responsório  produzira  o  apetecido  efeito.  Quando,  entretanto,  empregava  enorme  esforço  por  apreender bem os traços dos semblantes deformados por horríveis caretas, tênue  fumaça,  de  cheiro  inebriante,  começou  a  invadir  o  quarto.  As  figuras  mais  se  adelgaçaram,  imergiram  outras  nos  rolos  vaporosos,  para  surgirem,  depois,  mais  confusas, mais disformes e misturadas, até desaparecerem em treva densa.          Teresinha despertou, sacudida por forte acesso de terror, e vomitou um bolo  de saliva efervescente.       
   As velas ardiam, lacrimejantes, ao lado  do pequenino santo.  De um fogareiro  de barro, cheio de brasas amortecidas, subia tênue fio de fumo, cheiroso, dum azul  delido.  Rosa  Veado,  de  joelhos,  fitava  nela  os  olhinhos  fulvos  como  os  do  gato  negro, que ressonava, então, estirado na esteira.            
 —   Não   se   assuste...   —   observou   baixinho,   a   feiticeira   —   O   incenso  consagrado foi-lhe aos grogomilhos...          —  Vosmecê  não  saiu  daqui?...  —  perguntou  a  moça,  com  voz  magoada  e  débil, esfregando os olhos lacrimosos e congestos.          
 — Saí, sim. Fui buscar o fogareiro e o incenso...         
 — E      não viu?!...           — O quê?!...         
 — Eles... pelo ar...          
 —  Vi,  mas  foi  você,  de  queixos   cerrados  e  olhos  esbugalhados,  sem  responder  às  minhas  perguntas...  Que  rapariga  medrosa!...  Credo!...  Nem  que  lhe houvesse aparecido alguma visagem!...          — Pois vi mesmo... Estou bem certa. .. Dê-me uma pinga d"água... que tenho  uma coisa... aqui... na boca do estômago. Um entalo...          
 — Tome um golinho deste copo...         
 —   Deste,   não!...   —   atalhou   vivamente   Teresinha,   com   um   gesto   de  repugnância   —  Não  quero,  está  enfeitiçada...  Ai...  que  tenho  as  pernas  bambas,  sem ossos...          
 — É o que eu digo. Tudo isso é medo... Bem se vê que você nunca assistiu a  respônsio. Daí, bem pode ser que o glorioso  Senhor Santo Antônio tivesse feito o  milagre...          
 — Fez... fez... Eu vi tudo, muita coisa; mas não lembro bem... Espere... Era  uma porção de gente maluca; era... Oh! Tenho a cabeça a andar à roda e besoiros  nos ouvidos...             
 Rosa Veado apagou as velas, guardou-as com o santo e conduziu Teresinha,  que  mal  podia  caminhar,  vacilante,  trêmula,  para  fora  do  quarto.  À  impressão  violenta da claridade e do ar livre, ela esfregou, de novo, os olhos, e espreguiçou-se  fatigada, em contorções felinas...            
 —  Quando  estiver  com  o  juízo  assentado  —  ponderou  a  feiticeira  —  há  de  recordar tudo... Agora é esperar com fé, e verá como a coisa se descobre, quando  menos  pensar.  Quando  pilhar  uma  ocasião,  farei  a  adivinhação  da  urupema,  que  nunca  falhou...  Deixe  por  minha  conta...  Já  sei  que,  nessa  história,  anda  metida  alguma mulher...           
 Confusa, envergonhada, todos os seus membros desmantelados, Teresinha  partiu perseguida pelos olhares matreiros do mulherio da vizinhança, mal podendo  arrastar as pernas trôpegas e doloridas, com as articulações a estalarem de perras e  as virilhas traspassadas por alfinetadas pungentes.          
 Quando se viu longe da casa da Rosa, murmurou, irada e suspeitosa: Aquela bruxa me botou quebranto... 

     CAPÍTULO  XI            

  Contra a expectativa de Luzia, Teresinha regressou desanimada e lânguida,  sem  a  natural  vivacidade  e  rapidez  de  movimentos,  que  lhe  assinalavam  a  índole  instável, a indiferença, quase inconsciente, da torpeza a que a fatalidade a arrastara.  Tinha amortecidos e sombrios os olhos faceiros, e a comissura dos lábios, sempre  arqueada pelo hábito do sorriso desdenhoso e irônico, se dilatava, desgraciosa, em  torvo traço de sofrimento.            
 — Então?... — inquiriu Luzia, com ânsia.          
 —  Quase  morro...  —  respondeu  ela,  comprimindo  os  quadris  magoados  —  Nunca mais... me meto em outra... Credo!... Quem de uma escapa...          
 — Que houve?... Que te aconteceu?...        
 — Um horror!...          
 — E o respônsio?...          
 — A Rosa rezou...          
 — O ladrão não é Alexandre...         
 — Não sei...         
 —  Fala,  mulher,  pelo  amor  de  Deus.  É  preciso  que  a  gente  esteja  a  te  espremer...         
 —  Ainda  tenho  a  cabeça  meia  atordoada  e  as  pernas  lassas...  Sinto  ainda  uma dor aqui nas cadeiras...            Teresinha   gemia   as   palavras   e   contorcia-se   em   requebros   lascivos   e  dolentes.  Depois,  fixando,  com  esforço,  as  idéias,  que  lhe  giravam  dispersas  no  cérebro,  como  reminiscências  de  fatos  remotos,  fez  a  narrativa  dos  episódios  da  bruxaria,  com  minúcias  exageradas,  tocadas  do  forte  colorido  de  fetichismo  e  alucinação.           
 — Quando vi, minha negra,  as horrendas figuras crescerem dançarem como  demônios do inferno, são os ladrões — disse comigo — mas não lhes pude divisar  bem as feições, tantas e tão feias era as caretas que me faziam. Parecia um bando  de papangus.          
 — E não os reconheceu?...          
 — Qual!... Aquilo foi, por  força, arte do cão... Que  horror!.. Disse-me a Rosa  que esperasse com fé... Vamos ver...          
 —  Descansa...  É  possível  que,  depois  de  assentares  o  juízo,  te  lembres  melhor...          
 — Ninguém me tira da cabeça que aquela esconjurada, meu Deus perdoai- me, botou-me coisa ruim no corpo...          
 — Não pensa nisso, criatura... Você está nervosa.          
 — Isto é doença de moça rica...          
 — Doença não quer saber de branco nem de  preto, não respeita fortuna nem  pobreza... Venha cá — acrescentou, empolgante, com o olhar áspero e desconfiado  — Você viu alguma coisa, mas não que ser franca...            
  Teresinha  fez  com  a  cabeça  um  gesto  negativo,  e  sentou-se  acabrunhada.  Luzia   continuava   a   contemplá-la   ansiosa.   Seus   olhos   reluzentes   de   aflição,  exprimiam a esperança no milagre e a revelação anelada para restaurar a honra de  Alexandre, e restituí-lo à liberdade...          
 Quanto  tempo  teria  ainda  de  esperar?  Quantos  dias  e  quantas  noites  seria  ainda o mísero obrigado a passar entre aquelas quatro paredes infectas?... E se não  fosse possível salvá-lo; se a justiça descobrisse provas contra ele; se, na verdade,  fosse o culpado de tão feio crime?!...         
 Tais  dúvidas  empanavam,  como  nuvens  fugaces,  o  atribulado  espírito  de  Luzia.          Alexandre teria energia para suportar a prisão, o vilipêndio da pena infamante;  ela, porém, não se podia conformar com a idéia de reconhecê-lo criminoso, acusado  de  ladrão  e  maculado  para  sempre.  Preferiria  vê-lo  morto,  estirado  no  chão,  fulminado por um corisco.            
 —   Ninguém   me   tira   da   cabeça   —   acentuou   Teresinha,   emergindo   da  prostração que a subjugara  — que aquilo é obra de soldado...          
 —  Também  eu  —  ajuntou  Luzia  —  já  pensei  nisso...  Um  homem,  como  Alexandre, não teria astúcia para tanto... Além disso haviam de, por força, desconfiar  dele...          
 — Com efeito... Era preciso ser muito besta para furtar coisas do armazém,  fazendas, mantimentos, dinheiro...          
 — Sim, coisas que davam logo na vista... Quem só vive do trabalho, que mal  dá  para  o  de-comer  e  arranjar  um  molambo  para  cobrir,  não  poderia  esconder  semelhante furto... Quando aparecesse com roupa nova ou fizesse gastos...          
 —  É  mesmo.  Perguntava-se:  onde  foi  o  fogo,  onde  arranjou  isso?...  Quem  cabras não tem e cabrito vende... Eu, por mim, não se me dava de jurar que não foi  Alexandre...  Gente  que  tem  furto  na  consciência  não  olha  direito  para  os  outros...  Cara de ladrão não me engana...          
 — Ah! Teresinha!... É Santo Antônio quem está falando pela tua boca... Os  anjos digam amém...         
 — Tanto hei de teimar que descobrirei  tudo... Não é a primeira nem será a  última vez que eles fazem das suas e botam a culpa nos outros...            
  Ocorreu, então, a Luzia o que lhe havia dito Alexandre, aludindo em termos  vagos,  a  uma  intriga  que  não  queria  revelar  diante  do  outros  presos.  O  Promotor  também lhe falara, com meias palavras de uma pequena complicação, naturalmente  alguma coisa desfavorável, algum indício  de culpa... Que seria?... Que intervenção  diabólica  frustara  o  milagre,  perturbando  a  visão  de  Teresinha,  lhe  ofuscando  a  memória?  Quem  sabe  se  ela  não  vira  o  ladrão  e,  por  natural  delicadeza,  se  esquivava de lhe patentear a dolorosa realidade para não a magoar, privando-a do  inefável conforto da esperança com a desilusão e a tristeza esmagadora de deparar  a verdade fria e implacável?!          
  A razão é a luz; a dúvida é a treva, congeminação de contrastes engendrados  pela mesma causa. Felizes os irracionais, porque não duvidam.          
  Apesar  da  sua  energia  máscula,  ela  se  sentia  aniquilada,  num  colapso  de  nervos  enrijados  à  contínua  tensão  de  tantas  amarguras  e  cuidados,  vexames,  a  pobreza,  duras  privações  de  haveres,  a  moléstia  da  mãe,  o  pressentimento  de  perdê-la  a  qualquer  momento  e  a  obsessão  do  soldado,  além  da  orfandade,  o  desamparo pela prisão de Alexandre, a única pessoa que a poderia ajudar a viver.          Não lhe bastavam para tormento constante, as próprias aflições? Para que se  mortificar  com  a  sorte  dele?  Não  era  seu  parente;  nada  os  ligava,  a  não  ser  recíproca troca de favores, a gratidão, orvalhando o gérmen da simpatia instintiva e  um projeto vago, a proposta de se aliarem pelo matrimônio.          
  Quem sabe — pensava ela — se, em vez de partir de impulso do coração,  não fora feita por generosidade, compaixão, ou desejo sensual de possuí-la, onerá- la  com  a  responsabilidade  da  família,  filhos,  que  aumentariam  os  vexames  já  oprimentes, para depois, como tantos outros, abandoná-la, infligir-lhe a abjeção de  ser preterida por outra mulher, crime que os homens cometem como um direito do  sexo, ou divertimento cruel, igual ao de matar rolas e desmanchar ninhos?!          
  Culpado e punido, ficaria livre de penar por ele, do compromisso de gratidão e  das conseqüências funestas do triste consórcio de dois pobres. Sozinha no mundo,  poderia, com a graça de Deus, e os seus músculos, trabalhar para viver, ou emigrar  para a praia em busca da proteção e amparo do padrinho José Frederico.          Tais  pensamentos,  bons  e  maus,  perversos  ou  generosos,  acudiam,  em  tumulto,  disparatados  e  contraditórios,  ao  seu  cérebro  perturbado  pela  dúvida.  Acariciava-os ou lutava para expungi-los; e vinha-lhe, por fim, o remorso de haver  pecado  por  soberba,  por  falta  de  caridade,  julgando  mal  Alexandre,  quando,  em  verdade, os sofrimentos dele repercutiam  no seu coração com dobrada intensidade,  como se ele fora parte de seu ser, porção de sua alma.          
  Seria isso bem-querer, como imaginava; duas criaturas confundidas de corpo  e  alma  em  harmonia  ininterrupta  de  afetos  e  idéias,  vivendo  da  mesma  nutrição  moral, dos mesmos anelos, eternamente ligados no prazer e na dor, na vida e na  morte?!          
  Sentia-se  incapaz  de  amar;  carecia-lhe  a  fraqueza  sublime,  essa  languidez  atributiva da função da mulher no amor, a passividade pudica, ou aviltante da fêmea  submissa ao macho, forte e dominador, irresistível, como aprendera na intuitiva lição  da  natureza;  essa  comovente  timidez  de  novilha  ante  a  investida  brutal  do  touro  lascivo, sem prévios afagos sedutores, sem carícias de beijos correspondidos, como  nos idílios das rolas mimosas. Não; não fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus  músculos  possantes  para  resistir,  fechara-lhe  o  coração  para  dominar,  amando  como  os  animais  fortes:  procurar  o  amor  e  conquistá-lo;  saciar-se  sem  implorar,  como  onça  faminta  caindo  sobre  a  presa,  estrangulando-a,  devorando-a.  Não  era  mulher como as outras, como Teresinha, para abandonar a família, o lar, a honra,  por um momento de ventura efêmera, escravizando-se ao homem amado, contente  do sacrifício, orgulhosa do crime, insensível ao vilipêndio, sem olhar para trás onde  ficaram os tranqüilos afetos, para sempre perdidos; e, por fim, consolada à torpeza  do repúdio infame, à margem da estrada da vida, como um resíduo inútil, condenado  a  vis  serventias,  trapo  que  foi  adorno  cobiçado,  molambo  que  vestiu  damas  formosas, casca de fruto saboroso e aromático.          Não; não fora feita para amar. Seu destino era penar no trabalho; por isso,  fora marcada com estigma varonil: por isso, a voz do povo, que é o eco da de Deus,  lhe chamava Luzia-Homem.    

CAPÍTULO  XII            

  A velha dormia tranqüilamente, e as duas moças continuavam a conversar no  alpendre.         
 Queria  você  muito  bem  ao  Cazuza?  —  perguntou  Luzia  a  Teresinha,  de  súbito emergindo de um vago cismar.            
  —  Se  queria!...  —  respondeu-lhe  ela,  com  saudoso  suspiro.  Por  ele  larguei  pai, mãe e irmã de quem eu era um ai-Jesus! Era o seu tudo e sentia-me tão feliz  com ele que, desde o dia em que Deus o levou, fiquei insensível como uma pedra,  vivendo por viver, rolando à toa pelo mundo...         
  — Nunca teve inclinação para outro?          
 — Eu, não. Vendo-me sozinha e desacostumada a trabalhar para comer, não  tive  remédio  senão  me  resignar  à  minha  sorte  e  estar  por  tudo.  Quando  algum  homem se engraçava de mim, eu fingia gostar dele. Encontrei um desalmado que  me queria como uma fera; tinha maus bofes e me trazia, ciumento como o demônio,  que  nem  negra  cativa.  Aquilo  não  era  homem;  era  o  cão  em  figura  de  gente.  Por  qualquer  suspeita  ficava  danado  como  se  me  quisesse  comer  viva.  De  uma  feita,  arranchou-se na casa em que morávamos como marido e mulher, um moço rico e  bonito, que se pós a olhar muito para mim; e eu, ao levar-lhe o café, cai na asneira  de  sorrir  para  ele.  Ah!  Luzia,  se  você  me  visse  naquele  tempo!...  Não  é  por  me  gabar,  alva  como  uma  imagem,  com  duas  rosas  nas  faces  e  carnes  rijas  como  pau!... Meus cabelos pareciam de oiro e meus olhos eram azuis e claros como duas  contas.  O  mundo  e  a  pobreza  estragam  a  gente.  Hoje,  veja  como  estou  murcha,  engelhada,  cheia  de  sardas...  
  Mas,  para  encurtar  razões,  quando  o  moço  foi  embora, o homem pôs-me de confissão; e, não sabendo eu o que lhe dizer para me  desculpar  de  falta  que  não  me  passara  pela  cabeça,  disse-me  uma  porção  de  desaforos porcos, nomes de  mãe; chamou-me sem-vergonha, safada, deslambida,  e, agarrando-me pelos cabelos, deu-me tabefes...          
  — E você? — perguntou Luzia, indignada.          
  — Eu chorei muito; lamentei a minha desgraça; jurei por todos os santos do  céu,  que  era  inocente,  até  que  ele,  com  um  pontapé,  me  atirou  para  dentro  da  camarinha, berrando possesso: "Anda, peste!... Amanhã não me ficas aqui em casa;  ponho-te fora na estrada, onde te apanhei como uma cachorra vadia... "E fechou,  com estrondo, a porta. Fiquei na escuridão, imaginando no que faria de mim, quando  amanhecesse. Ao mesmo tempo que me fervia o coração, estava contente com ver- me livre de semelhante bruto; mas tive medo de apanhar outra vez, e esperei quieta  o que desse e viesse. — Que me importa — disse comigo — Hei de achar quem me  queira  ...  
  E,  pensando  no  moço  causador  daquela  desgraceira,  peguei  no  sono,  deitada  numa  rede  velha  que  ali  estava  armada.  Quando  os  galos  estavam  amiudando,  ouvi  bulir  na  porta;  levantei-me  de  um  pulo;  fui  deitar-me  no  mesmo  lugar onde havia caído e pus-me a soluçar baixinho. Abriu-se a porta, e a claridade  do copiar, alumiado por uma vela, deu em cheio sobre mim. Eu estava derreada, no  chão,  sustendo  o  corpo  com  a  mão  esquerda,  enquanto  tapava  os  olhos  com  as  costas da direita, olhando por baixo. O desalmado entrou devagarinho; chegou perto  de mim; ficou alguns minutos parado e disse-me, depois, em voz sumida e zangada:  "Vá se deitar no seu quarto... " Eu não respondi, nem me mexi; entrei a soluçar mais  forte. Tocou-me, então, de mansinho, no braço, dizendo, já com outra voz, manhosa  e  adocicada  —  "Teresa,  você  está  zangada  comigo?"  Repeli  o  agrado  com  um  safanão do cotovelo. Ele  continuou, procurando abraçar-me: 
  — "Este meu gênio!... Às  vezes  faço  coisas!...  Veja:  estou  arrependido...  do  que  fiz..."  Estava  quase  acocorado  junto  de  mim.  "Só  o  que  falta  -  resmunguei,  soluçando  mais  forte  —  é  mandar-me surrar pelos seus vaqueiros com um nó de peia." - "Perdoa, coração —  continuou, tentando ainda me abraçar — Eu  não sou mau, mas o ciúme me tira o  juízo.  Esqueça  tudo,  minha  cunhãzinha  da  minha  alma...  Prometo  nunca  mais  te  ofender. Pede o que quiseres, benzinho; serei teu escravo..." E, suspendendo-me do  chão, levou-me ao colo como uma criança... Todo ele tremia; eu sentia-lhe o baticum  do  coração;  suava  e  bufava  como  um  novilho...  
  Eu,  nem  como  coisa:  zangada,  gemendo  e  soluçando.  No  outro  dia,  enquanto  ele  se  derretia  e  se  babava  em  agrados e promessas, eu imaginava no moço e no Cazuza que, lá do céu, me pedia  vingança...         — Você não abandonou logo esse malvado?!...         
  —  A  falar  a  verdade,  não  era  de  todo  mau.  Fiquei  por  medo  e  por  não  ter  coragem de começar a vida de novo... Já tinha padecido tanto, que mais um pouco  não me fazia mossa. Mal com ele, pior sem ele, que, tirante as venetas de ciúme,  era  bom  para  mim;  dava-me  tudo:  era  só  pedir  por  boca,  como  dona  de  casa...  Maridos,  casados  na  igreja,  batem  nas  mulheres,  quanto  mais...  Ora,  deixei-me  estar,   mas   pensando   sempre   que   o   meu   adorado   Cazuza   nunca   me   havia  maltratado, e que eu devia, mais cedo ou mais tarde, tomar desforra; porque, apesar  de franzina, ninguém mas faz, que não as pague, tão certo como Deus estar no céu.         
  — Vingou-se então?...         
  — Ora, ora, ora!... Eu lhe conto. Seu Berto (ele se chama Bartolomeu, mas  todos  o  tratavam  assim)  foi  em  fins  d’água  fazer  a  ferra  em  uma  fazenda  dos  Crateús. O outro parece que soube disso, e  se apresentou uma tarde, debaixo de  um  pé  d"água,  que  se  diria  vir  o  céu  abaixo.  Eram  relâmpagos  e  trovões  de  encandear e ensurdecer a gente. Aboletou-se e passou a  noite. Soube, então, que  era um tal capitão Bentinho, de família muito rica e  poderosa. Trajava bem, gibão,  guarda-peito,  e  perneiras  de  coiro  de  capoeiro,  muito  macio,  bordados  de  flores,  pospontadas à sovela, com abotoadura e esporas de prata. Não imagina como tinha  a cor fina e branca, e uma barba parecida, comparando mal, com a de Jesus Cristo.  Como estou falando com o coração aberto, não tenho vergonha de confessar que  me engracei dele, acho que por capricho ou por ser em tudo diferente do outro. De  madrugada,  ainda  chuviscando  e  antes  que  a  gente  da  casa  acordasse,  arrumei  algumas peças de roupa e meti-as em sacos com alguns patacões dados pelo Berto;  e  fugimos:  ele  montado  num  possante  
quartau  pedrez,  eu  à  garupa.  Arre!  que  foi  uma   viagem   de   arrebentar.   Tivemos   de   atravessar   muitas   léguas   de   sertão,  passando rios a nado, dormindo no mato e comendo de alforje até chegarmos a uma  povoação, perto da fazenda onde moravam os  pais dele. Aí fui aboletada em casa  de uma velha. Passamos três dias como noivos: ele, fino como seda; eu, cheia de  denguices e manhas, como rapariga donzela. E contudo, Luzia, você não é capaz de  acreditar   que,   amimada   pelo   Bentinho,   todo   delicadezas   e   cerimônias,   tinha  saudades do Berto com o seu sangue na gueira, aqueles olhos devoradores, aquela  brutalidade...       
  — É possível?!... Pai do céu!...        
  — Você não sabe de quanto o bicho mulher é capaz, quando vira a cabeça.          
  — Anda; conta o resto.         
  — Eu fazia idéia da fúria, da danação  dele, quando deu por falta de mim, da  cunhãzinha russa. Imaginei os berros, os despropósitos, as pragas, que me irrogou,  as ameaças de desforra, pois sabia que não era homem para se conformar com o  roubo  da  mulher.  Meu  dito,  meu  feito.  Um  dia  chegou  Bentinho  muito  assustado,  recomendando  que  me  escondesse,  porque  lhe  haviam  inculcado  gente  do  Berto  nos arredores da povoação. Fiquei mais morta do que viva. Não me podia levar para  a fazenda, porque a família, que tudo ignorava, não consentiria  nisso. A velha que  quase  não  dava  fé  de  mim  e  vivia  muito  ocupada  na  criação,  entrou  a  tomar  precauções para ninguém suspeitar a minha estada em sua casa. Um dia, era dia  de, feira, e eu tinha um desejo doido de ver a reunião  de gente de uma redondeza  de  vinte  léguas,  vendendo  legumes,  farinha,  rapadura  e  outras  produções  da  lavoura; mas a megera não consentiu que eu botasse o nariz de fora. Ali por volta de  meio-dia, ouvimos tiros de bacamarte e uma algazarra dos demônios, um bate-boca  desadorado.  Pouco  depois  soubemos  que  houvera  um  pega  entre  cangaceiros,  desconhecidos no lugar, e a gente do Bentinho, e que já havia morrido um homem...  Que  seria?...  Fiquei  numa  aflição,  tremendo  de  susto,  mas  experimentava  uma  secreta satisfação que fosse por minha causa a briga e o sangue derramado.         
  — Que horror!...        
  —  Estava  num  pé  e  noutro  para  ter  notícias  certas  do  barulho,  quando,  entrou,  de  repente,  Bentinho.  Vinha  muito  amarelo,  com  a  mão  enrolada  em  um  pano  e  acompanhado  por  dois  cabras,  armados  até  os  dentes.  —  Que  foi?  —  perguntei-lhe  assustada  —  "Nada,  um  arranhão  no  pulso,  respondeu  com  voz  sacudida  —  amarre-me,  endireite-me  isto,  sra  Quitéria."  Enquanto  a  velha  punha  mezinha na ferida, um talho que ia da palma da mão esquerda ao meio do braço,  Bentinho, fora do seu natural, com os olhos espantados, a voz surda e seca, ainda  trêmulo de raiva, contou-me que, chegando à feira, fora desfeiteado por uns cabras,  novatos na terra, já muito encachaçados e intimando com todo o mundo. Chamou a  gente para amarrá-los, mas um deles, saltando como um gato sobre o ginete, disse- lhe:    —  Você  pensa,  seu  alvarinto,  que  amarrar  homem  é  furtar,  à  traição,  mulher  alheia? Nisto chegou, à toda, o João Brincador com três homens escolhidos, e eu  disse-lhe:  
  —  Amarra  essa  cambada  de  desordeiros.  —  Em  cima  das  minhas  palavras, riscou o Berto, e foi dizendo: Você, pode amarrá-los seu filho desta, filho  daquela, mas depois de me pagar e ajustarmos as contas. — Eu e os meus demos  de rédea para sairmos do meio do povo; eles, rente, atrás da nossa poeira. A certa  distância rodamos sobre os pés os animais, e os cabras que também estavam bem  montados, quase esbarram em riba de nós. — Agüenta, rapazes! — disse ao João,  que  me  respondeu  sorrindo:  Não  há  novidade,  capitão.  Deixe  eles  para  nós.  Palavras não eram ditas, o Berto papocou-me fogo. Abaixei-me, e a bala tirou um  taco da beira do chapéu do João — O cabra mata seu Bentinho! — gritou ele — Os  outros cangaceiros atiraram, e os meus  responderam com uma descarga. O cavalo  de  um  deles  empinou-se  e  rodou  morto  por  cima  do  cavaleiro,  também  ferido.  O  Berto, então, veio seco em cima de mim, e correu dois palmos de faca do Pasmado  —  Tenha  mão,  capitão  Berto  —  disse-lhe  eu,  aparando  o  golpe,  com  a  minha  parnaíba  —  Tenha  mão  que  se  desgraça.  Mas  o  homem  estava  roxo  de  raiva;  espumava como um touro feroz. Avançou  outra vez num ímpeto, que não era para  graças. Suspendi o russo-pombo passarinhando como um gato; salto pra aqui; pulo  pra acolá, e o homem decidido atravessando-se na minha frente, com o cavalo preto  e  ligeiro  que  nem  um  tigre.  Na  terceira  investida,  meteu-me  o  ferro  com  vontade.  Rebati com a mão; mas quando senti o aço ranger-me na carne e o sangue espirrar,  saquei da garrucha. O homem estava cego, arremeteu de novo e meteu-me o ferro  outra vez aqui na aba do gibão. Vendo, então, que o diabo me matava mesmo, e  que eu não podia com vantagem brigar com ele  a ferro frio, perdi as cerimônias, e  lasquei-lhe  fogo...  O  homem  soltou  um  berro;  abriu  os  braços  como  se  quisesse  abraçar o vento, e derreou pra trás. O cavalo, sentindo falta de rédea, deu quatro  galões  e  meio,  como  um  poldro  brabo  e  desembestou  desapoderado,  arrastando  Berto enganchado no estribo. Morreu?!... — perguntei, tiritando de frio, e batendo os  dentes como se tivesse sezões. "Não sei. Foi batendo por troncos e barrancos até  desaparecer de nossa vista com os dois cabras restantes metidos em uma nuvem  de  poeira.  Dois  dos  dele  ficaram  no  barro.  Da  minha  rapaziada,,  o  Chico  Pintado  levou uma bala aqui na coxa — lá nele — ; o Borburema perdeu o gibão, e foi ferido  com  um  pontaço  nas  cruzes;  o  Brincador  ficou  com  o  chapéu,  novo  em  folha,  estragado. Todo o mundo sabe que ele tem o corpo fechado. Enquanto brigávamos,  o povo fazia um barulho medonho. Todos viram que me  defendi o mais que pude,  negaceando, para lhe poupar a vida. O diabo do ferro cortava como navalha. O talho  está doendo de verdade. "E voltando-se para mim, disse: 
  — "Não chores, Teresa.  Isto,  com  sumo  de  angico  ou  de  maçã  de  algodão,  sara  depressa....  É  uma  arranhadura de nada." Supunha que eu chorava por ele; mas, naquela ocasião, meu  pensamento acompanhava Berto, desfigurado pelos encontrões, coberto de sangue  e pó, arrebatado pelo Moleque, cavalo  de estimação que eu bem conhecia. Minha  vontade era correr atrás do pobre, apanhar os pedaços da sua carne, arrancados  pelos  tocos  e  pedras.  Talvez  o  encontrasse  ainda  vivo  para  pedir-lhe  perdão...  Desde  esse  dia,  ficou  decretada  a  minha  desgraça.  Bentinho  me  achava  sempre  triste e sucumbida. Eu tinha repugnância daquele homem manchado com o sangue  do outro. Não era já a mesma mulher... Ele parece que percebeu isso, e foi também  esfriando, até que me participou o seu casamento com uma prima bonita e rica. Eu  respondi que lhe fizesse bom proveito... Deu-me um maço de dinheiro e não voltou  mais a casa da velha Quitéria.            
  Luzia,  embebida  nas  palavras  de  Teresinha,  acompanhava  a  narrativa  com  intenso interesse, intenso abalo.           
  — E... depois? — perguntou.          
  — Depois? Enquanto durou o dinheiro, quase um ano, fiquei com a tal velha  que foi a minha asa-negra. Tomou conta de mim como de uma besta de carga; fazia  de mim o que queria; mandava e eu me sujeitava, calejada, estando por tudo sem  protestar,  sem  me  aborrecer.  A.  velha,  que  era  toda  agrados  enquanto  eu  estava  rica,  virou  para  me  insultar  e,  uma  vez  por  outra,  me  atirava  à  cara  que  era  necessário  ganhar  com  que  pagar  o  pirão  que  eu  comia,  porque  não  era  minha  escrava...          — Não prenderam Bentinho?...          
  —  Qual prisão, qual nada!... Ficou solto, e respondeu o jurado quando muito  bem quis. O pai dele, o coronel Manel Fernandes era o maioral dono da terra.          
  — Ficou um ano, dizia você...         
  —  Pouco  mais  ou  menos,  contando  do  dia  da  briga,  até  quando  a  velha  morreu de um nó na tripa. Dei graças a Deus por me haver livrado de semelhante  bruxa,  e  resolvi  voltar  para  a  casa  de  meu  pai,  embora  ele,  que  era  teimoso  e  ríspido, me matasse; mas, em caminho, tentou-me o demônio e fui rolando de um  lado para outro, de povoação em povoação, até que a seca me apanhou. E aí está,  minha camarada, como vim bater aqui.            
  Ela,  com  efeito,  peregrinara  pelo  vasto  sertão,  de  miséria  em  miséria,  rastolhando,  perdida  como  um  pedaço  de  pau  arrastado  pela  correnteza  do  rio,  caindo  nas  cachoeiras,  mergulhando  nos  rebojos,  surgindo  adiante,  para  bater  de  novo sobre pedras, tornando a ser arrebatado, até que, ao baixar das águas, pára,  coberto  de  pau  e  ervas  secas,  garranchos  e  flores,  que  transportou  de  longe,  esperando  a  enchente  na  próxima  estação,  e  continuando  a  trágica  jornada,  até  apodrecer em ribas desoladas, ou perder-se na imensidade do oceano.         
  É  essa  a  história  da  peregrinação  mundana  das  desgraçadas,  que  se  desterram  no  seio  amigo  da  família,  quebrando  o  suporte  dos  afetos  puros,  e  vagando  sem  rumo,  na  ebriedade  de  gozos  efêmeros,  à  mercê  da  fatalidade  intangível e cega.      

CAPÍTULO  XIII           

 Esteve-se  Luzia  absorta,  fitando  em  Teresinha  demorado  olhar  aceso  de  admiração, como se lhe ela se revelasse sob a forma estranha e sugestiva de uma  heroína  provada  nos  mais  rudes  lances  da  luta  pela  vida,  e  conservando  ainda  o  coração  sensível  aos  nobres  impulsos  de  ternura,  de  dedicação  e  piedade  do  infortúnio  alheio.  Os  episódio  romanescos,  que  ouvira  num  enlevo  de  surpresa  e  espanto,  como  as  crianças  ouvem,  tímidas,  maravilhosas  histórias  de  fadas  e  princesas encantadas, ou as proezas de lobisomem e cavalos sem cabeça, vagando  pelos  campos,  nas  noites  tétricas  em  que  os  jacurutus  sinistros  piam  à  beira  dos  rios;  todos  aqueles  casos  da  paixão  dominadora  arrastando,  lentamente,  para  a  voragem, a rapariga franzina, indiferente ao perigo, sem saudades da casa paterna  e sem remorso da culpa que a poluíra, incapaz de resistir, e reincidindo no pecado  como  um  vicioso  na  absorção  de  licores  capitosos  que  o  intoxicam,  flutuando  na  embriaguez  da  volúpia  e  despertando  maculada  e  resignada  à  própria  vergonha,  assumiam, na sua imaginação excitada, proporções gigantescas de feitos valorosos,  extraordinárias façanhas de uma criatura forte, disfarçada sob ilusórias aparências  de debilidade doentia. Disseram-lhe que o sofrimento embotava as delicadas fibras  do coração; que o pecado o esterilizava, como o sol esteriliza a terra, e estiolava as  florações  sadias  da  semente  do  bem;  entretanto,  Teresinha  era  a  negação  viva  dessas  verdades  afirmadas  por  uma  moral  de  convenção,  sentimental  e  absurda.  Tinha a superioridade da mulher contente de sofrer pelo seu amor, como um crente  pela  sua  fé,  o  martírio  ultrajante  do  desprezo,  o  vilipêndio  de  viver  execrada;  aceitara, com resignação de forte, as conseqüências todas do primeiro passo, dado  no enlevo de um sonho delicioso, para o declive fatal, onde ninguém mais se detém  e se equilibra. Deveriam ser fortes, admiráveis, as mulheres que sobrevivessem às  provações do opróbrio, com a alma imaculada; e Luzia, apesar de seus músculos  exuberantes,  se  sentia  aniquilada,  ao  pensar  em  ser  colhida  por  um  só  dos  incidentes  da  pitoresca  vida  de  Teresinha;  morreria  extenuada  como  um  pássaro  cativo  na  arapuca.  Seria  horrível  ver  morrer  o  homem  amado,  o  abandono,  o  ser  surrada pelo amante, brutalmente sensual, e, todavia, lamentar-lhe a morte... Seria  horrível, seria monstruosa essa escravidão da mulher desbriada ao senhor do seu  corpo, essa passividade de animal, de coisa a mudar de dono. Ocorria-lhe, então,  que não havendo experimentado essa abjeção, não tinha direito de maldizer da sua  sorte, incomparavelmente mais propícia que a de Teresinha, a heróica rapariga que  se não queixava.          
  Surgia  no  horizonte  o  Cruzeiro  rutilante,  reclinado  nos  coxins  nebulosos  da  Via-Láctea e a bafagem morna da madrugada parecia o arfar da terra extenuada,  sucumbida  de  cansaço, quando, interrompendo  a    conversa, as    duas se  entreolharam  espantadas:  tinham  percebido  algo  de  suspeito,  estalidos  de  galhos  secos, rumor de passos precavidos, vozes abafadas, sumidas, muito perto da casa, na direção das touceiras de mandacarus que defendiam, com intransponível cerca  de espinhos, o pequeno quintal abandonado.            
 — Ouviu? — perguntou Luzia.          
 —  É  talvez  —  respondeu  Teresinha,  que  escutava  atenta  —  o  barulho  do  terral nos galhos, algum animal roendo o mandacaru.          
 — Não é a primeira vez que ouço esses passos furtados, fora de horas, ali  pela cerca e no terreiro... Parece que alguém nos espia.          
 — Tens medo, fracalhona?...          
 — Não tenho medo, não; mas é melhor irmos lá para dentro.          
 — Pois sim. Não se me dava de ver o que é.            
   Recolheram ao quarto. Luzia abeirou-se da rede onde, encolhida como uma  criança,  a  velha  ressonava  tranqüila.  Teresinha  ficou  a  espreitar,  cozida  à  porta  entreaberta em estreita fenda; com um aceno de alvoroço, chamou a outra, e viram,  ao lusco-fusco, um grupo.           
 — Parece que são soldados — observou-lhe Teresinha.          
 — Talvez a ronda... — balbuciou Luzia.             
  Não:    são dois homens e uma mulher. Espera... Olha: estão conversando...           
  Então, muito juntas e apavoradas, ouviram:            
 — Eu não dizia que estão dormindo?!...          
 — Qual — teimou uma voz feminina — estão acordadas. Juro que ouvi, ainda  agorinha, falação de gente no alpendre...          
 —  Também  ouvi  —  afirmou  outra  voz  mais  clara  e  forte  —  Deixemos  de  histórias. É melhor não teimar. Elas botam a boca no mundo e estamos perdidos...  Nada. Aquilo, aquela bruta, não é mulher de brincadeira...            
  O     conselho      foi   aceito     pelo     grupo,     que     se    esgueirou      sorrateiro,  apressadamente.           —  O  diabo  roncou-lhe  na  tripa  —  disse  Teresinha  triunfante,  mostrando  a  Luzia, a lâmina nua do grande canivete de mola Era tocarem na porta, eu fisgar logo  um deles, para não ser atrevido.         
 — Parece que ouvi a voz de Crapiúna.          
 — Pode ser; mas não estava fardado. Só queria saber quem foi a safada que  veio com eles...          —  Que  intenções  teriam?  Olha,  Teresinha,  não  é  a  primeira  vez  que  ouço  esses passos suspeitos. Há muito tempo, desconfio que andam rondando a nossa  casa.          
 — Também ouvi, mas não imaginei que fosse gente. Não maldei nada.         
 — São capazes de tudo.          
 — Lá isso é verdade.          
 — Várias noites, Crapiúna e Belota andaram a cantar fora de horas, aqui por  perto...          
 — Só me dá que pensar a mulher... Será possível que viessem botar feitiço?  E... não é outra coisa; é mandinga...         
 — Outro dia, quando abri a  porta de manhã cedo, topei, mesmo na soleira,  um saquinho com penas de galinha pretas arrepiadas...          
 — E não o abriu para ver o que continha?...         
 —  Deus  me  livre.  Eu  não.  Tive  nojo  e  varri  tudo  com  o  cisco  para  dentro  daquele buraco, cheio de carrapateiras e que foi barreiro.          
 —  Pois  eu  não  resistia.  Havia  de  revistar  tudo,  pegasse-me,  embora,  o  malefício.          
 — E você acredita nisso?...          
 — Não sei o que é, se feitiço ou obra  do cão; mas, tenho visto casos de pôr  tonto o juízo da gente. Há malefício para abrandar coração, curar ciúmes e até para  produzir moléstias. Lá em casa havia um velho, que curava bicheiros dos bezerros  pelo rasto...          
 — Abusões...          
 —  Busões?!...  Conheci  um  moço  que  foi  enfeitiçado  por  uma  rapariga,  embelezada por ele. A criatura, de repente, ficou toda torta, como se lhe desse o  ar...  Ave-Maria;  foi  murchando,  secando  até  ficar  pele  e  osso.  Parecia  mais  um  defunto em pé, que gente viva. Desenganado de remédios de botica, foi se receitar  ao padre João Crisóstomo; chupou chave de sacrário do Santíssimo, mandou fazer  orações fortes... Foi bobagem... A felicidade dele foi topar uma cigana, que lhe deu  contra-feitiço, uns poses para beber com leite de peito... Santo remédio, menina! ...  Uma coisa é ver outra é dizer, como ele se levantou, já tendo os pés na cova.          
 — Bem, fecha a porta e vamos dormir que é quase de madrugada.          
 — É mesmo... E eu que estou moída... Parece que levei uma surra...            
 Fechada  a  porta  com  precaução  para  não  despertar  a  doente,  Teresinha  despiu-se  rapidamente;  coçou  o  vinco  do  cordão  das  saias  na  cintura;  enrolou,  espreguiçando-se,  em  gestos  felinos,  os  cabelos;  persignou-se  e  derreou-se  na  esteira.          
 Lentas  passaram  as  horas  para  Luzia,  sentada  na  rede,  estremecendo  ao  menor ruído do vento nas folhas da latada, e aguardando, ansiosa, o quebrar das  barras, com os primeiros fulgores da aurora. Seu olhar compassivo flutuava entre a  doente,   a   moça   adormecida   e   a   candeia   a   crepitar   melancólica,   no   caritó  enfumaçado.          
 Renascia-lhe, no coração, a esperança de melhoras da mãe adorada; e, ao  mesmo tempo, suspeitava que aquele prolongado sono fosse efeito de dormideiras,  que lhe houvesse dado o médico. Meditava na tranquilidade angélica de Teresinha,  seminua,  apenas  coberta  por  uma  leve  camisa  de  esguião,  preciosa relíquia  de  antiga abastança, e acreditava que lhe houvera Deus perdoado as culpas, porque  era boa na essência, e as purgara neste  mundo. Entretanto, ela, que nunca havia  feito  mal  a  ninguém,  que  não  abandonara  os  pais,  nem  traíra,  nem  ocasionara  a  morte de homens que a amassem, ela que tudo sacrificara, aspirações de moça e  prazeres, que resistira aos instintos de mulher, para manter, em meio do paul, a sua  pureza imaculada, ali estava, acabrunhada de pensamentos tristes, cruciantes como  remorsos, com a alma inquieta e o coração latejando de susto, à previsão de perigos  tremendos.          
 Que  havia  feito  para  sofrer  tanto?  Que  funesta  influência  exercia  sobre  as  pessoas  que  lhe  queriam? Fora,  talvez,  ela  que  trouxera  desgraça  a  Alexandre.  Bastou que ele lhe desse os cravos rubros, crestados ao calor de seu seio, para lhe  imputarem um crime infamante e ser preso como um réprobo.         Teria má sina, mau olhado?... Seria dessas  criaturas fatídicas, cujo contacto  desorganiza e destrói? Conhecera uma formosa moça, em cujas mãos, ovos batidos  para mal-assadas, não cresciam e desandavam em aguadilha choca; talhava o leite;  definhava e morria a planta de  que ela colhesse uma flor, ou matava com o olhar  ninhadas de pintos espertos e lindos, como macias borlas de veludo? Havia, então,  criaturas,  predestinadas  para  o  bem  e  para  o  mal?...  Nasciam  umas  para  o  sofrimento, outras para o gozo, da mesma forma que as havia destinadas ao céu ou  ao  inferno?...  E  Deus,  Deus,  pai  de  misericórdia,  permitia  isso,  essa  iniquidade  revoltante?!...           
 E o seu espírito, flutuando à mercê de noções incompletas do bem e do mal,  das  causas  e  efeitos  reguladores  da  vida,  se  rebelava,  em  assomos  impotentes,  contra as injustiças do destino cego e louco.  
 
CAPÍTULO  XIV             

  Uma surpresa auspiciosa assinalara o amanhecer: a velha enferma erguera- se, sozinha, da rede; e, escorada a um pequeno cacete de cocão, envernizado pelo  uso, apareceu à porta do quarto.           
  — Deus seja louvado — exclamou Luzia, em gárrula expansão alvoroçada.          
  — Seja bem-vinda, tia Zefinha!... — disse Teresinha, com largos ademanes  maneirosos  —  Abanque-se  aqui,  no  alpendre,  que  está  mais  fresco.  Ora,  até  que  enfim... Não há mal que sempre dure...         
  —  É  a  minha  promessa  a  São  Francisco  das  Chagas,  de  Canindê  —  observou a enferma — que me restituiu a saúde... Eu tinha uma fé...             
  E  o  seu  rosto  de  pergaminho,  retalhado  de  rugas  e  dobras,  se  dilatava  em  meigo sorriso.           
  —   Olhem   —   continuou,   caqueando   no   seio   do   cabeção,   bordado   de  cacundês,  onde  imergiam  confundidos,  entrelaçados,  os  rosários,  bentinhos  e  medidas de santos, que lhe pendiam do  pescoço; e mostrando uma caçoila com a  imagem  do  milagroso  padroeiro  em  péssima  gravura,  cujos  milagres  admiráveis  atraíam  os  fiéis,  vindos  de  longínquas  paragens,  em  contínua  romaria  à  sua  bela  igreja  cheia  de  ex-voto,  pernas,  braços,  mãos  e  cabeças,  modelados  em  cera,  ou  toscamente esculpidos em madeira, viscosamente coloridos e marcados de chagas  hediondas,  muito  sarapintados  de  sangue  e  arroxeados  de  equimoses  e  alguns  verdadeiros  aleijões,  monstruosidades  repugnantes;  muletas  e  ligaduras  de  pano  velho, duras de sânie embebida; todas essas relíquias de piedade, penduradas, em  simetria,  às  paredes  da  nave,  rememorando  curas,  obtidas  pela  intercessão  do  santo, a quem Jesus Cristo concedera a graça de marcar com o estigma das cinco  chagas.          
  Também fizera uma promessa a São Gonçalo da Serra dos Cocos e a outros  patronos   celestiais,   não   menos   afamados   pelo   prestígio   de   sarar   enfermos,  desesperados da saúde. Estava em verdadeiro apuro para dar conta de todas elas;  mas,  o  padre  Antônio  Fialho,  ouvindo-a  em  confissão,  lhas  comutara  em  leve  penitência, impondo-lhe a obrigação de rezar algumas coroas, terços e o ofício de  Nossa Senhora, hino mirífico, que, quando é cantado na terra, os anjos se ajoelham  no céu. Nas horas de alívio, ela se penitenciava debulhando, entre vagos fulgores de  esperança, as contas luzidias de um rosário bento pelo santo missionário frei Vidal.           
  —  Não  sinto  quase  o  puxado,  minhas  filhas,  e  aquele  entalo,  que  me  sufocava, também desapareceu. Dormi, que nem um passarinho, louvado Deus.          
 — Eu bem lhe dizia, tia Zefinha, que o remédio, abaixo de Deus, havia de ser  a sua salvação.         
 — Agora — observou Luzia — é continuar com ele: estamos de viagem.          
 — E tu a dar-lhe, filha. Espera mais um pouco. Estou tão afeita a sofrer que,  se não fosse falta de fé, desconfiava ser isso visita da saúde...          
 —  Qual,  vosmecê  vai  arribar  mesmo  —  afirmou  Teresinha,  com  muita  convicção.            
 A velha sentou-se, acariciada pela filha, que lhe endireitou as dobras da saia  e o lenço da cabeça, enquanto Teresinha preparava o chá de erva-cidreira, que ela  tomava todas as manhãs.            
 — Agora, disse a velha, com um suspiro de alívio — vocês podem cuidar do  trabalho,  que  ficarei  tomando  conta  da  casa.  Se  não  fosse  esta  pobreza,  tomaria  uma menina para fazer-me companhia, varrer o terreiro, dar-me um caneco d"água,  enquanto estivessem fora labutando... Já passei, aqui, dias e dias sem ver vivalma,  até que a Luzia voltasse da obra... Que dias compridos!...          
 —  Dias  que  não  voltarão,  tia  Zefa,  porque  aqui  estou  eu,  que  a  não  largo  mais...         
 — Se houvesse por aí —  continuou a velha — uma pasta de algodão, fiaria  um novelo para não estar banzando sem fazer nada... e só pensando na moléstia ...            
 Às  nove  horas  Luzia,  ansiosa  por  saber  o  que  lhe  começara  a  contar  Alexandre,  a  revelação  interrompida  pela  sobrevinda  insolente  de  Crapiúna,  partia  com  o  almoço  para  o  desconsolado  preso,  que,  mal  terminada  a  refeição,  lhe  perguntou se sabia alguma coisa de novo; e, pois lhe a  rapariga respondesse com  simples  gesto  negativo,  disse,  à  puridade,  suspeitar  da  interferência  maligna  de  algum interessado em desgraçá-lo.            
 — Sabe o que me fizeram — continuou, amargurado — Levantaram-me uma  calúnia...  Você  conhece  a  Gabrina,  aquela  moça  morena,  que  perdeu  a  mãe,  há  pouco tempo?... Pois não inventaram que eu lhe havia dado dinheiro e dois cortes  de vestido?...          —  O  quê?!...  —  exclamou  Luzia,  franzindo  os  sobrolhos,  e  encarando  no  moço.          
 — Eu que nunca alevantei meus olhos para semelhante criatura senão para  salvá-la, quando nos encontrávamos no trabalho.         
 — Quem disse isso?          
 — Há gente para tudo, até para levantar falsos contra os seus semelhantes.          
 — Mas... quem inventou esse aleive?... Ela?!... É possível que uma rapariga  tão moça tenha maldade para tanto?...          
 —  Disse  que  eu  andava  há  muito  tempo  atrás  dela,  seduzindo-a  com  promessas de casamento e que, sozinha no mundo, sem ter quem se doesse dela,  não se lhe dera de consentir... Veja que mulherzinha mais desalmada... E eu, disse  ela, lhe dera os mimos para que ela saísse logo de casa comigo...          — E você jura que isso é mentira?...          
 — Eu?... Eu não preciso jurar; basta, Luzia, que lhe afirme...          
 — Por certo... Demais, que tenho eu com os seus particulares?... Você não  tem  necessidade  de  negar...  Mentira  ou  verdade,  é  livre,  desimpedido,  senhor  da  sua vontade para empregar o bem-querer em quem for do seu agrado. Isto não é da  minha conta...          
 — Mas... queria explicar...          
 — Para quê? São desnecessárias para mim essas explicações. Deve dá-las  ao Delegado...          
 — Luzia — continuou Alexandre, fitando-lhe uns olhos pisados de mágoa —  Você  tem  sido,  abaixo  de  Deus,  minha  protetora,  meu  anjo  da  guarda  nesta  desgraça,  que  me  apanhou.  Não  tenho  outra  pessoa  que  puna  por  mim...  se  me  abandonar...         
 —   Abandonar!...   Não   penso   em   semelhante   ingratidão.   Além   disso,   é  obrigação fazer o que tenho feito pelo senhor e ainda mais, se necessário for, muito  embora,  depois  de  solto,  satisfaça  o  capricho  do  seu  coração.  Serei  sempre  a  mesma,  somente  não  estou  para  levar  fama  sem  proveito,  como  já  me  tem  acontecido...          
 — Sei quanto tem sofrido por minha causa...          
 — Não vale a pena. Fui eu quem lhe trouxe caiporismo. Mas, só peço a Deus  que me ajude a tirá-lo desta cadeia. Depois, o senhor toma o seu rumo e eu o meu.  Será melhor assim para ambos...            
 Houve  prolongada  pausa.  Alexandre,  conturbado  àquelas  palavras  secas  e  cruéis, contemplava, num  misto de espanto e mágoa, a figura da moça, enteada, e  de  olhos  cerrados,  quase  absorta  em  torturantes  pensamentos.  Rompeu  ele,  a  custo, o oprimente silêncio.             
 — Que rumo tomarei, Luzia, senão o seu? Para onde for, hei de acompanhá- la como a minha estrela, a minha guia, segui-la como o cachorro vai atrás do dono  que o abandonou e o despreza. Se eu entulho  o seu caminho, se quer ver-se livre  de mim, não me tire daqui; não empregue mal os seus passos... Deixe-me entregue  à minha sorte, apodrecendo nesta sepultura de vivos, infamado... esquecido como  um malfazejo, que nem compaixão merece. Só lhe peço a esmola de não desconfiar  da minha inocência... Caiu-me em cima uma  infelicidade que não sei explicar, uma  vingança de mulher, de inimigos miseráveis; mas não sou ladrão... Nunca!...          
 — Vingança de mulher!... — murmurou  Luzia, num grande entono de cólera  indomável.           
 —  Atenda-me.  Essa,  Gabrina,  além  de  má,  é  ingrata.  Quando  a  mãe  caiu  doente  e  foi  desenganada,  foi  comigo  que  se  achou  para  arranjar  remédios  e  um  caldo chilro para a infeliz. Eu sabia que a filha era uma doida, que apressara a morte  da mãe com desgostos, arrebates e más respostas, por isso tive somente em mira  fazer obra de caridade para  não a deixar morrer à míngua. Você sabe que morreu  mesmo; e, então, a filha foi para a companhia da Chica Seridó; e nunca mais me  ocupei  com  a  vida  de  semelhante  desmiolada...  É  verdade  que  não  faltou  quem  atribuísse os meus atos a embelezamento pela moça, que dava cabo ao machado,  inculcando-se...          
 — Já lhe disse que nada tenho com isso, nem desconfio do senhor...          
 — Então por que me ameaça com a separação?...          
 — Quem, sou eu?... Quero evitar as más línguas, que não me poupam. Em  homem nada pega, mas, em moça, tudo tisna. Eu confio em Deus acabar os meus  dias, limpa como nasci do ventre da minha mãe... A pobreza não me afronta, porque  tenho  forças  para  trabalhar  e  ainda  não  cansei  de  sofrer.  Sabe  o  que  temo?  Que  façam pouco de mim, que me frechem com dictérios e caçoadas. Às vezes, tenho  ímpetos de estraçalhar uma dessas criaturas perversas que me olham pelo rabo do  olho, rindo pelo canto da boca, como se eu fora uma ridícula... Quando o senhor for  para a sua banda e eu para a minha, tudo acabará ...          — Como acabaria, se nos casássemos.          
 — É impossível... Nasci, com má sina...         
 —  Bem,  Luzia...  Vejo  que  me  suspeita,  embora  não  o  diga  francamente...  Paciência... Será como for do seu agrado.         
 —  Luzia  amarrou,  lentamente,  a  toalha  com  os  pratos  da  refeição,  que  Alexandre mal encetara. Havia nos seus  gestos, aparências de calma fria, resoluta.  Toda ela, entretanto, vibrava com o abalo estranho, indefinido, que a invadira como  um frio pérfido de moléstia.          
 — Até amanhã — disse ela, secamente.         
 — Não venha mais, Luzia... — murmurou  o preso — Não vale a pena fazer  mais sacrifícios por mim... Arranjarei  aqui mesmo o de-comer. Basta. Não mereço  tamanha dedicação... Deixe-me de mão, já que não quer ser ridícula...          
  Ela não lhe respondeu. Retirou-se, de manso, com o andar lento e fatigado de  quem vai a contragosto. Alexandre acompanhou-a, com os olhos desvairados, até  que  ela  dobrou  a  esquina  do  João  Padeiro,  e  desapareceu  no  beco  do  Coronel  Braga.  Pungia-lhe  o  coração  imensa  saudade,  o  pressentimento  de  nunca  mais  tornar  a  vê-lo,  remorso  de  haver  provocado  a  separação  com  o  excesso  de  brio,  ressumante nas palavras cruéis com as quais se desonerara da piedosa tarefa de  visitá-lo todos os dias, para levar-lhe, talvez, o melhor quinhão da magra despensa  de pobre, o precioso quinhão do pobre, que se priva do apenas suficiente para não  morrer à fome. Súbito, ele estremeceu de  pasmo, de dolorosa surpresa, ao fitar a  parede,  onde  se  fincavam  os  vergalhões  de  ferro  da  dupla  grade...  Estavam  ali,  entre migalhas da comida, murchos e ressequidos, os cravos rubros que ele havia  dado a Luzia...  
   
 CAPÍTULO  XV    
        
Tão  preocupada  regressara  Luzia  da  cadeia,  que  não  reparou  em  Dona  Matilde, debruçada sobre uma das janelas da casa do Promotor.  Foi preciso que a  formosa senhora a chamasse para arrancá-la da funda meditação absorvente, em  que imergira o espírito, como num antro caliginoso.                    — Aonde vai tão apressada, Luzia?...          
 — Desculpe-me, dona — respondeu ela, estacando, confusa e enteada, como  se lhe houvessem surpreendido a tortura moral — Estava tão atarantada que não vi  vosmecê, quando era minha intenção falar com o seu doutô a respeito do processo.           
 — Entre. Estou com saudades dos meus bonitos cabelos...          
 —  Aqui  estão  sempre  bem  tratados  e  muito  mais  cuidados  do  que  quando  eram meus — disse Luzia, libertando a opulenta cabeleira do pente que a sustinha.          
 —  Que  lindos!...  —  exclamou  Matilde,  acariciando,  com  mimo,  as  bastas  madeixas — Como estão macios... Oh! nunca vi coisa igual...             
 Luzia agradecia, com um sorriso contrafeito de melancolia.            
 —     Você     —    continuou      a   senhora      —    parece     contrariada...     Que     lhe  aconteceu?... Sua mãezinha vai melhor?...          
 — Muito melhor...          
 — E Alexandre?...          
 — Como preso, quase sem esperança de se ver livre da enxovia...         
 —  Tenho  grande  dó  de  você,  Luzia,  moça  capaz,  merecedora  de  melhor  sorte. Mas, que significa esse ar sombrio, esses olhos amortecidos?...             
 Luzia não respondeu.           
 — Diga-me — continuou a senhora, com meiguice quer muito a Alexandre?...          
 — Por que me pergunta?          
 —  A  sua  dedicação  ilimitada  àquele  infeliz  só  pode  ser  inspirada  por  um  grande afeto, desses que não esmorecem ante os maiores sacrifícios.          
 — Não sei se lhe quero muito... Sei  que lhe devo muita gratidão por ter sido  bom para nós, o protetor e amigo, que nos ajudou...           
 — E é somente por gratidão, que o defende com tanta dedicação?...         
 — Só por gratidão. Por que, então, havia de ser?...             
 Luzia respondia com esforço. As palavras irrompiam de seus lábios, ásperas,  aos pedaços, com uma falaz aparência de calma e indiferença.            
 — Você não é sincera, Luzia; não confia, talvez, em mim. Ninguém é superior  ao próprio infortúnio; e mais humano, mais nobre, é confessá-lo que o sufocar ou  esconder. Sofre-se mais no repúdio à consolação e ao lenitivo... É possível que não  tenha consciência do estado do seu coração,  ou não saiba explicar o que, nele, se  passa? Não é crime amar, e Deus abençoa o amor das criaturas honestas, como um  sagrado  impulso  da  natureza,  tanto  mais  forte  quanto  mais  contrariado.  Você  é  mulher  forte.  Os  seus  afetos  devem  ser  mais  intensos  e  impetuosos  que  os  das  outras,  frágeis  e  passivas,  entre  quem  vive  deslocada,  sempre  como  estranha,  porque  não  foi  feita  para  nascer  e  viver  entre  essa  gente.  Nisto  consiste  a  sua  infelicidade. Você sente que, em volta, entre os seus amigos e conhecidos, ninguém  a  compreende  e  a  estima  como  merece.  Daí,  é  fácil  imaginar  quanto  sofreria  se  viesse a amar algum indigno de você... É  um desastre que, vulgarmente, acontece,  causando desgraças irremediáveis...          
 — Por que me diz isto?         
 —  Sabe  que,  nesse  trama,  contra  Alexandre,  aparece  uma  rapariga  que  o  acusa?          
 — A Gabrina...       
 — Como soube?...          
 — Alexandre, ainda há pouco, contou-me tudo...         
 — Ah!... Ele lhe falou nisso?!... E você?...          
 —  Que  importa...  Tanto  se  me  dá  que  ele  queira  bem  a  ela  como  a  outra  qualquer...         
 — Empenha-se ainda em libertá-lo?...          
 — Por certo. Não penso noutra coisa...         
 — Admirável!...         
 — Puno por ele porque me diz o coração que está inocente. Ainda que fosse  culpado, confessasse o crime, eu não era capaz de abandoná-lo na desgraça...          
 — Mesmo tendo cometido o crime por causa de outra mulher?         
 — Que tem isso?... Ele é senhor do seu coração, pode dá-lo a quem quiser.  Demais,  querer  bem  não  é  obrigação.  Eu  não  poderia  exigir  que  ele  me  pagasse  alguns serviços de amizade, ligando-se a  mim, ele um moço branco, eu uma pobre  mulher de cor, sem eira nem beira, com à mãe doente às costas, neste tempo de  seca e carestia de tudo. Além disso, ninguém gostaria de casar com uma criatura,  que tem o apelido de Luzia-Homem, como esse que o meu fado ruim me deu...         
 — De homem só tem a força; é bem  bonita rapariga... Que pretende, então,  fazer?...        
 —  Quando  Alexandre  for  solto,  pego  em  minha  mãe,  que  está  melhor,  e  marcho para a praia, como os outros retirantes.          
 —  Você  é  uma  extraordinária  criatura,  Luzia.  Cada  vez  mais  interesse  me  desperta...         
 —  Reconheço  que  faz  isso  por  bondade  de  santa...  Só  lhe  peço  que  se  empenhe com seu doutô para acabar esse tal de inquérito, para libertar Alexandre e  a mim, que não devo me arredar daqui, enquanto ele padecer...          
 —  Fique  descansada.  Farei  o  possível...  Aqui  para  nós...  Meu  marido  não  acredita na história da tal Gabrina; desconfia mesmo que ela foi insinuada...          
 —  Ah!  Não  acredita,  não  é?!..  acudiu   Luzia,  com  estranha  vivacidade,  iluminado  rosto, num fulgor de vitória.          
 —  Pobre  coração,  que  te  atraiçoas  —  observou  dona  Matilde,  sorrindo,  deliciosamente irônica.          — Gabrina é ingrata e vingativa como uma cobra...          
 — Meu anelo é que você e meu marido tenham razão, mas desconfiarei até  verificar a verdade... Oh! Os homens...          
 — A senhora é ciumenta?...         
 — Como uma leoa, como toda a mulher apaixonada até à loucura...            
 Luzia  espetara  na  bela  senhora,  os  olhos  espavoridos,  onde  havia  algo  de  surpresa e prazer, ante a revelação, que estalou vibrante.             
 —Deve  ser  assim  —  murmurou  como  se  monologasse  —  Raiva  de  onça  contra quem lhe bole na carniça, ou lhe rouba os filhos... Fui má; ofendi Alexandre.  Agora é tarde... O que está feito não está mais por fazer...         
 — Não desespere, Luzia. É bem possível que tudo acabe do melhor modo e  você  seja  recompensada  de  tantas  aflições  e  cuidados.  Tenha  coragem.  Não  se  amofine. Não quero que os meus belos cabelos embranqueçam  por muito apurar o  juízo em coisas tristes...         
 — A senhora é do céu, dona Matilde.          
 — Vá sossegada que, hoje mesmo, à tardinha, cuidarei da sua causa.          
 — Faça isso. Será obra de caridade, que não cairá no chão.           
  Luzia,  retendo  as  lágrimas,  rorejantes  nos  negros  olhos  anseios,  e  muito  grata, beijou-lhe as mãos brancas, duma maciez fina de camurça, e partiu.          
 Na  rua,  atravancada  por  enormes  e  pesados  carros  toscos,  arrastados  por  muitas  juntas  de  bois  magros,  escapados  da  devastação  do  gado,  carros  de  pesadas  rodas  inteiriças  e  oblongas  para  que  as  excrescências  do  círculo,  os  tombadores, diminuíssem o esforço da tração, sobrecarregados de fardos, caixas de  víveres  e  mercadorias,  amarradas  entre  os  altos  fueiros;  por  entre  eles  e  os  bois,  deitados,  rendidos  de  fadiga,  e  ruminando  tranqüilos,  sonolentos,  e  os  lábios  cinzentos, lubrificados de baba espessa, deslizava a intérmina torrente de retirantes  andrajosos,   esquálidos,   torpemente   sórdidos,   parando   de   porta   em   porta,   a  mendigarem uma migalha, ossos, membranas intragáveis, os resíduos destinados a  repasto de cães.          
 No largo da feira, a aglomeração asfixiava em redor das vendas ambulantes  de   mantimentos,   expostos   em   caixões,   sacos,   sob   os   tamarineiros,   trapiás  frondosos,   à   sombra   de   toldos   de   estopa,   manchada   de   largos   remendos  variegados.          
 Magotes de crianças nuas, de hedionda magreza de esqueleto, de grandes  ventres, obesos e lustrosos como grandes cabaças, lançavarn olhares, terríveis de  avidez,  sobre  pilhas  de  rapaduras,  grandes  medidas  de  quarta,  desbordantes  de  farinha e feijão, pencas de bananas, rimas de beijus, alvíssimas tapiocas, montes de  laranjas  pequeninas  e  vermelhas,  colhidas  na  véspera,  nos  pomares  murchos  da  Meruoca.        
  Os  míseros  pequenos,  estatelados  ao  tantálico  suplício  da  contemplação  dessas   gulodices,   atiravam-se   às   cascas   de   frutas   lançadas   ao   chão,   e   se  enovelavam,   na   disputa   desses   resíduos   misturados   com   terra,   em   ferozes  pugilatos. Era indispensável ativa vigilância para não serem assaltadas e devoradas  as provisões à venda, pela horda de meninos, que não falavam; não sabiam mais  chorar,  nem  sorrir,  e  cujos  rostos,  polvilhados  de  descamações  cinzentas,  sem  músculos, tinham a imobilidade de coiro curtido. Quando contrariados ou afastados  pelos mercadores aos empuxões e pontapés, rugiam e mostravam os dentes roídos  de escorbuto. Eram órfãos quase todos, ou abandonados pelos pais; não sabiam os  próprios   nomes,   nem   donde   vinham.   Privados   de   memória,   bestificados   pela  carência  de  carinhos,  anestesiados  pelo  contínuo  sofrer,  eram  esses  pequeninos  mendigos  gravetos  de    uma    floresta    morta,    despedaçados  pelos    vendavais,  destroços de famílias, dispersadas pela ruptura  de  todos  os  laços  de  interesses  e  afetos.          
  Às vezes, a morte os surpreendia durante o sono, junto de um tronco ou na  soleira de uma porta. Trespassavam como pássaros, sem contorções, sem estertor,  sem  um  gemido,  silenciosos,  tranqüilos,  num  sossego  de  morte,  num  sossego  de  liberdade.         
  Luzia  atravessou,  rapidamente,  o  largo  da  feira,  evitando  o  contacto  e  desviando  os  olhos  dos  grupos  de  mendigos  nauseabundos,  pois  se  ainda  não  habituara ao pungente espetáculo da miséria ínfima, degradada e feroz. Empolgada  pela  comoção  da  entrevista  com  Alexandre,  pelas  palavras  de  conforto  da  sua  adorável protetora, rememorando o que esta lhe dissera sobre o amor e o ciúme,  quase esbarrou em Crapiúna, que a saudou cortês; e,  bamboleando em ademanes  amáveis, arriscou:       
    — Adeus, feitiço...            
  A  moça  estremeceu  de  susto,  fez  um  gesto  de  cólera,  e  seguiu  mais  depressa.         
 — Você não tirou ainda o juízo da  Luzia-Homem? — perguntou a Crapiúna o  Cabecinha, que fazia com ele, o serviço de policiar a feira.         
 —  Qual  o  quê!...  —  respondeu  o  soldado,  carregando  a  caraça,  muito  despeitado — Aquilo é uma fera, braba como cascavel; mas hei de amansá-la   por  bem ou por mal...       
 — Aquela mesma não cai com duas razões...         
 — Há de ser como as outras: muita soberba, muito  luxo... tudo bobagens. A  demora é a gente teimar e esperar com paciência. Já lhe teria dado uma ensinada  se o estupor do Delegado não estivesse atravessado comigo...         
 — Eu acho que você faz mal em se meter com a vida daquela mulher...        
 — Já agora é impossível recuar. Por  causa daquela não-sei-que-diga tenho  perdido  noites  de  sono,  imaginando  na  raiva  que  ela  tem  de  mim,  só  porque  me  engracei dela...         
 — Só faltava dar o Crapiúna, em namorado sem ventura.         
 — Não caçoe, Cabecinha.  Há mulheres mandingueiras, que põem na gente  um veneno que só elas podem tirar. Fica-se tomado por dentro de uma dor que não  dói, mas sofre-se sem saber porquê; não se tem onde botar o corpo; não há cama  nem rede, que caiba a gente; finge-se não fazer caso; procura-se distrair com outras  mulheres,  como  quem  se  embebeda  para  ficar  valente,  ou  para  esquecer...  Tudo  peta...  O  veneno  vai  queimando  o  sangue,  faz  febre,  dor  de  cabeça  e  fastio.  E  o  coração vai inchando, crescendo, até que estoira...         
 —  Você,  então,  cabra  velho,  está  mesmo  ervado?...  Tibes!  Que  cobra  te  mordeu!...         
 —  Não  tenho  a  vida  para  negócio;  nem  conheço  a  cor  do  medo;  nunca  fiz  caso da morte, e queria ter de anjos para acompanharem a minha alma, as vezes  que tenho visto boca de bacamarte e faca de  ponta em cima de mim ... mas, fico  mesmo mole diante dessa mulher encantada; fico sem ação e aluado, quando ela  passa por mim, e me repuna...         
 — O melhor, já lhe disse, seu Crapiúna, é pensar noutra coisa.         
 —  Isso  é  bom  de  dizer...  Nem  que  queira  não  posso.  É  urna  desgraça.  A  você, que é amigo, posso falar a verdade. Tenho feito tudo para reduzi-la. Lembrei- me até de botar dormideira na jarra d"água...        
 — E se ficar doente; se morrer?!         
 — Não há perigo. A Joana  Cangati sabe fazer a mandinga. Mas o diabo da  velha  Zefinha  não  dorme;  passa  a  noite  tossindo  e  gemendo;  e,  agora,  havia  a  Teresinha de se meter de gorra com elas para me atrapalhar. Tem-me dado vontade  de torcer o pescoço daquela galinha...         
 — Você está se metendo numa rascada...        
 —  Saberei  manobrar  para  me  desapertar,  quando  for  preciso.  Agora,  estou  esperando que ela se desengane do ladrão do Alexandre...       
 — Qual! Mulher, quando principia a querer bem, fica viciada: larga um, arranja  outro.        
 — Aquela não é dessas. Luza é séria...         
 — Ora, adeus, seu Crapiúna. Quando dorme...         
 — E honrada...         
 — Só se for na testa.         
 — Já lhe disse.      
 — Está bom; está bom!... Não vale se zangar por tão pouco. Nada tenho com  isso. Você mesmo é quem está puxando conversa... Arrume-se com a sua donzela,  ruim de amansar, e seja muito feliz. Faça-lhe bom proveito aquela jóia.          
 — Também maldei que aquilo tudo era soberba, luxo ou aleijão da natureza,  mas entrei a especular a vida, os particulares dela, e, verifiquei que é mesmo dura  como pedra. Quanto mais certeza tenho, de ser ela bem procedida, mais o diacho da  rapariga se me encravilha na cabeça. Eu não gosto de mulher que me azucrine, mas  também refugar como aquela é da gente desesperar.          
 — Por que não lhe prometes casamento?          
 —  Se  ela  não  me  quer  ver  nem  pintado...  Além  disso,  por  mal  dos  meus  pecados, sou casado.          — E a mulher?...          
 — Sei lá. Não combinava com o meu gênio, nem pegava do meu jeito... Era  um  demônio  em  figura  de  gente,  rezinguenta  e  respondona.  Um  dia,  brigamos  mesmo   de   verdade:   dei-lhe   uns   pescoções,   e  o   diabinho   anoiteceu   e   não  amanheceu. Levantei as mãos para o céu. Boi solto, lambe-se todo...           — Por essas e outras, é que nunca fiz semelhante asneira. Para peso, basta  a granadeira e a mochila.           —  Deixe  lá...  Sempre  é  bom  ter  quem  pregue  botões  na  farda,  engome  as  calças, a tempo e à hora.   —  Se  contas  com  aquela,  ficas  desabotoado  toda  a  vida.  Tome  o  meu  conselho, seu Crapiúna. Quem me avisa, meu amigo é. Deixe a Luzia de mão. Olhe  que lhe acontece desgraça, quando menos pensar. Você tem sangue na guelra e o  coração perto da goela. Tome cuidado.         
 — Sei o que hei de fazer, e ando de  rédeas tesas. Quando a vejo, ardo por  dentro; dá-me vontade de reinar, mas fico quieto e mudo como cascavel de tocaia,  esperando a minha vez para dar bote certo. Então nem reza de cigano, nem oração  de padre velho a livra de mim. Eu cá sou homem de tenência. Quando viro a cabeça  para uma banda, nem o diabo a endireita...            
 Crapiúna  sacou  da  ilharga  uma  grande  faca,  fina  e  pontiaguda,  e  pôs-se  a  cortar um pedaço de fumo mapinguim para fazer um cigarro.           
 — Que bonita faca! — observou Cabecinha.          
 —  Pasmado  verdadeiro.  Traspassa  uma  moeda  de  dois  vinténs  —  disse  Crapiúna, fazendo vibrar com a unha o gume afiado. — Ah! Se este ferro falasse!...          
 — Vamos ali, ao Antônio Benvindo, tomar uma terça?          
 — Vamos lá, mas só tomo zinebra.          
 — Está feito.            
  Os dois soldados se dirigiram para a bodega, continuando a conversar.          
  O sol dardejava, a pino, intensa luz sobre o largo da feira, coalhado de gente.  Redemoinhos  intermitentes  revolviam  o  pó  cálido,  que  se  elevava  em  espirais,  envolvendo retirantes e mercadores em bulcões amarelados e sufocantes.     

 CAPÍTULO  XVI           

  Desde esse dia, cessaram as visitas de Luzia à cadeia. Teresinha tomou a si,  com prazer, a piedosa incumbência de levar comida ao prisioneiro, que a recusou  tenazmente.          
  —  Deixe-se  de  asneiras,  seu  Alexandre  —  disse-lhe  ela  —  Isto  até  parece  desfeita.  A  Luzia  não  vem  afetiva  como  dantes,  porque  não  pode  mais  faltar  ao  serviço;  e,  agora,  que  a  tia  Zefinha  vai  melhor,  não  há  mais  desculpa  para  estar  recebendo a ração sem trabalhar. Poderia vir à tarde, mas você sabe que, depois  das quatro horas, não deixam mais falar com os presos.          
 — Não me iludo — respondeu-lhe o moço, em tom de funda tristeza — Luzia  desconfiou  de  mim.  Acreditou,  talvez,  na  história da Gabrina,  ou  supõe  que  tenho  alguma coisa com aquela grande mal-agradecida.          — Não suponha que ela esteja amuada... Qual o quê!... Aquela não se afoga  em  poucas  águas,  e  a  prova  é  que  continua  a  fazer  o  possível  para  obter  a  sua  soltura...          
 —  Sei;  mas  somente  para  mostrar  agradecimento  e  não  por  merecimento  meu. Sinto que está tudo acabado entre nós. Luzia é decidida, e bem percebi que  não tinha mais nada que esperar quando me disse, francamente, aí, nesse lugar em  que você está agora: - quando for solto, cada um de nós tomará o seu rumo.          
 — Mas, por isso, não deve recusar o de-comer, que ela mesma preparou com  tanto gosto.          
 — Não há mais razão para repartir comigo a porção, que mal chega para ela  e a mãe.         
 — Pensei que só nós, mulheres, éramos caprichosas.            
 Desenganada de vencer a formal recusa de Alexandre, Teresinha distribuiu a  comida pelos meninos, que estavam ali de visita aos pais presos, generosidade que  lhe valeu agradecimentos de uns e, de outros.          Luzia voltara, com efeito, a trabalhar na penitenciária do morro do Curral do  Açougue.         
  As paredes mestras estavam quase conclu ídas: trabalhava-se com afinco no  madeiramento da coberta, e já estava em construção a muralha em volta do edifício,  formando um recinto, onde os sentenciados pudessem trabalhar ao ar livre, ou sob  telheiros destinados às oficinas. Nas barracas improvisadas moirejavam carpinteiros,  de  troncos  nus  e  suarentos,  no  preparo  das  grandes  vigas  das  amendoeiras  e  tacanieas do tabuado para o soalho e portas  e da obra de esquadria. Ao ruído das  enxós, falquejando o rijo pau-d"arco, ao sibilar das plainas e cepilhos raspando das  pranchas de cedro, longas espirais encaracoladas e cheirosas, misturavam-se a dos  malhos  nas  bigornas  sonoras,  onde  grossos  vergalhões  de  ferro,  candentes  nas  extremidades, disparavam chispas de encontro aos aventais de coiro dos ferreiros,  enegrecidos de fumaça e carvão, fabricando  grades invencíveis, junto dos grandes  foles ofegantes, como pulmões de um monstro.          A  negra  torrente  de  retirantes  operários  deslizava  pela  encosta  áspera,  em  marcha  de  cobra,  conduzindo  materiais.  Era  o  mesmo  vai  e  vem  ininterrupto  de  homens, mulheres e crianças envoltos em rolos de pó subtil, magros e andrajosos,  insensíveis à fadiga, ao calor de culminar passarinhos, taciturnos uns, os semblantes  deformados       por   traços    denunciadores       de    íntima   revolta    impotente;     outros,  resignados,  como  heróis,  vencidos  pela  fatalidade;  muitos,  alegres  e  sorridentes,  cantavam  e  brincavam,  como  criaturas  felizes  de  encontrarem  refúgio  do  assédio  angustioso da fome, da miséria, da morte.          
  Quando  Luzia  se  apresentou  ao  apontador,  houve  um  movimento  geral  de  surpresa e curiosidade. Ninguém a esperava ver de novo; era considerado morto ou  emigrado o trabalhador que desaparecia da obra. Notavam que estava mais esbelta,  graciosa, a cor mais clara pelo repoiso de alguns dias. Havia misteriosa alteração no  seu  semblante.  As  vigorosas  linhas  de  energia  máscula  se  contraíam  em  curvas  melancólicas, e, nos olhos meigos, flutuava a sombra do ideal morto entre chispas  fulvas    de   anelos    incontestados.    
   As    atitudes    lânguidas     e   os   gestos     lentos  denunciavam fadiga moral, ou a preguiça voluptuosa das felinas amorosas. Dir-se-ia  que se lhe haviam atenuado os tons varonis, e, da crisálida Luzia-Homem, surgira a  mulher  com  a  doçura  e  fragilidade  encantadora  do  sexo  em  plena  florescência  suntuosa.  Irradiavam  dela  fluidos  de  simpatia,  empolgando  os  companheiros  de  infortúnio, como prestigiosa transfiguração. Estes não experimentavam já a repulsa  que  lhes  causava  a  moça  bisonha,  arredia,  taciturna,  sempre  enrolada  no  amplo  lençol de mandapolão branco.            
 — Como está mudada! — murmuravam as mulheres.         
 — E não é que a Luzia está ficando bonita! — diziam os rapazes, mutuando  olhares sensuais.          
 — Parece que esteve doente.          
 — Só se foi de mal de amores.          
 — Quem sabe? Amor não mata, mas maltrata.          
 —  Qual,  mulher!  Aquilo  é  o  cansaço  de  estar  fazendo  quarto  à  mãe,  que  estava vai-não-vai. Não há nada para escangalhar uma criatura como labutar com  doentes...         
 — Ela é um tanto soberba, mas é boa filha até ali.         
 — Quem é bom filho, é bom em tudo o mais — observou um velho.           
  Os comentários chegavam aos ouvidos de Luzia, como ecos do murmúrio de  maldição,  que  a  perseguia  por  toda  a  parte,  até  na  igreja,  no  trabalho,  quando  atravessava a multidão de retirantes.         
  E  ela,  que  antes  os  afrontava  em  retraimentos  de  cólera  mal  contida,  estremecia,  agora,  pálida  e  tímida,  em  angustioso  sobressalto  de  consciência  perturbada   por   inteira   e   desconhecida   mácula,   estranha   sombra   de   homem  projetando-se no vácuo, que a inocência lhe deixara no coração, como a pegada de  um  crime,  ou  o  espectro  de  um  remorso.  Devia  ser  assim  cruciante,  o  primeiro  momento  após  o  pecado:  a  alma  escondida,  envergonhada  e  temerosa,  nos  mais  íntimos refolhos das entranhas profanadas, aguilhoadas pelos instintos insaciados,  agueados  pelo  gozo  revelado,  traída  por  eles,  delatores  impudicos  e  implacáveis.  Através  do  corpo  diáfano,  penetrariam  depois  olhares  da  turba,  compassivos  ou  rancorosos, devassando as peripécias e os destroços da secreta luta, e condenando  a vítima, que não pudera vencer.         
  Luzia só se confessava culpada de haver perdido a energia inflexível, que a  preservara até então, como invulnerável coiraça, sem a qual não tinha já integridade  moral para resistir a si mesma, varrer do coração essa indelével imagem de homem,  libertar-se  do  tormento  de  senti-la  transfundida  no  seu  ser,  misturada  com  o  seu  sangue   e   os   seus   pensamentos.   Ímpetos   de   rebeldia,   assomos   de   reação  esmoreciam  na  delícia  de  capitular,  e  sucumbir  aniquilada.  E  se  lhe  figurava  que  toda a gente em derredor, amigos, indiferentes, adversários maliciosos, grandes e  pequenos,  testemunhavam  os  seus  impotentes  esforços,  de  passarinho  fascinado  pela  cobra,  a  luta  desigual,  o  prazer  com  que  ela  se  deixava  vencer,  apoucada  e  débil.          
  O  administrador  da  obra,  seu  protetor,  percebera  a  transformação  por  que  passara, designando-a para trabalhar com as costureiras.          
  — Sabe, Luzia — disse-lhe ele — A senhora do Promotor pediu-me que não  lhe desse serviços braçais. Ela se interessa muito por você, como eu, como todos  que  a  conhecem.  Era  também  intenção  minha  deixá-la  repousar.  Está-se  vendo  quanto a fatigaram os cuidados, os vexames sofridos pela saúde de sua mãe.         Luzia baixou os olhos, e corou humilhada. Preferira à ocupação sedentária de  costureira,  continuar  na  faina  de  carregar  água  nos  grandes  potes,  que  estavam  servindo   de   depósito,   conduzir   telhas   em   companhia   daqueles   infelizes,   que  vergavam ao peso de uma dúzia delas, ir às caieiras longínquas buscar tijolos nas  altas tulhas, que ao Paulo, francês, se haviam afigurado paredes na cabeça de uma  mulher, rolar pesados madeiros, grandes pedras, trabalhos que lhe exercitassem os  músculos e lhe produzissem o atordoamento da fadiga.         
  Acudiu-lhe, então, à memória, a quadra da infância, passada no Ipu, em casa  da mestra que lhe ensinara ler; os cocorotes  e castigos sofridos por não resistir ao  sono,  quando  condenada  a  ficar  dias  inteiros  sentada  diante  de  uma  almofada  a  trocar bilros crepitamos, entretecendo delicadas rendas e curtindo a nostalgia do ar  livre e puro nos campos verdejantes e floridos da fazenda Ipueiras.          
  Mas...   era   forçoso   submeter-se   à   ordem   do   administrador,   tão   bom   e  compassivo, que lhe dera muitos dias de licença para tratar a pobre mãe enferma.           
  Na  maioria  das  barracas,  em  forma  de  meia-água,  coberta  de  folhas  de  carnaubeira, Dona Inacinha, que, desde as missões do padre Ibiapina, renunciara os  efêmerosgozos  mundanos,  para  se  fazer  beata  professa,  distribuía  o  serviço  de  agulha  em  tarefas.  A  Luzia,  coube  um  enrolado  de  algodãozinho,  onde  estava  cravada uma agulha, atravessando um molho de linha e sustentando, subposto, um  dedal de cobre.            
 — Cosam com muito cuidado — recomendou ela às costureiras — que isto é  trabalho  especial  para  a  comissão  de  senhoras,  que  me  mandou  seis  peças  de  fazenda para desmancharmos em roupa. Não quero obra de carregação como a dos  sacos.  Vejam  que  as  mãos  estejam  bem  lavadas,  pois  tenho  singular  implicância  com a costura suja.             
  Luzia  ocupou  o  primeiro  lugar  vago,  distanciada  das  outras,  surpreendidas  com o vê-la ali, quando trabalhava sempre com os homens; enfiou a linha na agulha  e  estava  muito  atrapalhada  com  o  adaptar  e  alinhavar  peças  já  cortadas,  quando  Dona Inacinha se acercou, como sempre, enfezada e rabugenta.            — Você parece que nunca viu costura — rosnou, em tom de áspero remoque  —  Tamanha  mulher,  e  não  sabe  por  onde  há  de  começar  um  par  de  ceroulas  de  homem.            
  Luzia sentiu subir-lhe ao rosto, impetuosa onda de sangue.            
 — Olhe — continuou a beata, armando sobre o nariz rubro e adunco, grandes  óculos de latão com as hastes ligadas em  torno da cabeça por um cadarço preto,  lustroso  de  banha  —  primeiro  as  pernas  pospontadas  e  sobrecosidas;  depois  o  gavião em separado, terminando nesta tira  que serve de cós. Você ajunta as duas  pernas, cosendo-as no gavião com as preguinhas que forem necessárias para dar  certo. No meu tempo, dava conta de duas por dia sem me cansar.        
  As companheiras de trabalho sorriam,  ironicamente, da lição e do desazo de  Luzia, confusa e amesquinhada, injustamente, porque sabia coser bem e depressa,  mas não estava habituada a fazer roupas masculinas.         
  Aquela tarefa, escolhida ao acaso, era um prolongamento da obsessão que a  torturava; avivava-lhe, a cada ponto da agulha, a lembrança do prisioneiro a pungir- lhe  o  coração  com  o  remorso  de  o  haver  abandonado  num  ímpeto  de  despeito,  ciúme  ou  capricho  pueril  que  ela  tentava  em  vão  justificar  com  o  pretexto  de  preservá-lo  da  influência  funesta  com  que  a  marcava  o  destino.  Causava-lhe,  também, imenso dó o haver deixado, com desdém, no parapeito da grade da cadeia,  os cravos vermelhos, emurchecidos nos seus cabelos, ao calor do seu seio, onde os  guardara carinhosamente, como um talismã prestigioso.          
  E  assim  passou  o  dia,  até  que  o  martelo  do  mestre  da  obra  anunciou  a  terminação  do  trabalho,  batendo,  rijo,  cadenciados  golpes  secos,  vibrantes,  sobre  uma das tábuas dos andaimes.        
  Luzia ergue-se aliviada, entregou a tarefa concluída, e partiu, ansiosa por ver  a  mãe  e  Teresinha,  que  lhe  daria  notícias  de  Alexandre,  notícias  más  porque  ele  devera  ficar  magoado,  vendo-se  tratado  com  tanto  rigor  por  quem  lhe  devia,  pelo  menos,   favores   inestimáveis,   desses  que   impõem   o   suave   jugo   de   gratidão  imperecível.      
   Justificando-se, ela ponderava que, em consciência, o reconhecimento não a  obrigava ao extremo passo de consagrar-se para sempre a um homem preso, sob a  imputação de um crime grave, envolto em densa atmosfera de suspeita, quando ela  tinha  outros  deveres  sagrados  que  cumprir,  velar  pela  mãe  e  conservar  a  própria  vida, ameaçada pelo assédio cada vez mais apertada de privações e miséria. Estava  pagando a dívida de gratidão com o empenho sincero em libertá-lo. Demais, não se  expusera, todos os dias, ao vexame de encontrar o soldado maldito? não repartira  com  ele  o  seu  pão  minguado?  Não  chegava  ao  extremo  sacrifício  de  afrontar  a  vergonha de vender os cabelos por causa dele?        
  Não, a consciência não a acusava, mas outra vez, mais forte, vibrava dentro  de seu peito, em acentos dolorosos, exprobrando-lhe a covardia cruel de só haver  abandonado  o  desditoso  moço,  quando,  entre  os  dois,  surgiu  a  figura  odiada  da  mulher delatora, amante impudica, que apregoava a própria infâmia, carícias pagas  com o produto do crime, e se vangloriava de haver provocado a ruína de um homem  de  bem.  E  a  sinistra  voz,  que  a  vergastava,  prosseguia  em  tom  mais  brando  e  carinhoso: Seja ele, embora, culpado; tenha sucumbido à tentação em momento de  síncope do senso moral; ame outra menos digna; é um desgraçado, cuja sorte está  ligada à tua por laços fatais, inquebrantáveis. O teu lugar seria junto dele, consorte  do  infortúnio,  ajudando-o  a  carregar,  o  peso  da  sua  falta,  a  arrastar  a  calceta,  deprimente... porque o amas... Entretanto, Alexandre é inocente e sofre duplamente,  porque lhe infringiste a tua desconfiança. Vai, mulher caprichosa e bárbara, prostra- te aos seus pés; unge-lhe as mãos impolutas com o bálsamo das tuas lágrimas, com  os teus beijos de virgem, e pede-lhe perdão da tua fraqueza vil. Não lutes, debalde,  contra o destino inexorável. Aquelas pobres flores murchas se radicaram no teu duro  coração, como o cardo à rocha, e revivem enseivadas com o suor da tua angústia,  coloridas com o teu sangue, envenenando-te com o filtro mágico e inebriante, que  destila emanações de fragância suavíssima.         Luzia  acelerou  a  marcha  para  chegar  a  casa,  encontrar  pessoas  amigas  e  evitar a sugestão daquela voz íntima e eloqüente, que lhe derrubava todos os meios  de  defesa,  engendrados  para  resistir  ao  secreto  impulso,  preservá-la  da  sorte  de  Teresinha,  pranteando  o  homem  cruel  que  a  maltratava  e  relembrando,  com  saudade,  a  sua  sensualidade,  impetuosa  e  brutal  como  a  dos  toiros  bravios;  para  ficar livre de eleger, oportunamente, aquele que deveria completá-la, que lhe abriria  as  portas  do  céu  às  aspirações  de  moça;  ou  o  homem  que  ela  empolgaria  num  atrevido lance poderoso, como o dos gaviões arrebatando a presa, conquistando-o  vitoriosa.          
  No seu espírito inculto, essas idéias se chocavam em confusão, aterrando-a;  sobre  o  tumulto,  ardido  fragor  de  peleja  encarniçada,  permanecia,  dominando-o,  inconfundível  como  um  clangor  de  clarim,  a  sedutora,  a  máscula  voz  do  demônio  tentador...      

CAPÍTULO  XVII            

  O  beco  da  Gangorra  terminava  na  várzea,  que  o  rio  Acaracu  inundava  nas  cheias,  em  um  renque  de  casas  velhas  habitadas  por  michelas  e  soldados  do  destacamento.   Belota   ocupava   uma   delas,   paredes-meias   com   o   quarto   de  Teresinha, que só ali aparecia, raramente, para mudar de roupa, ou, consoante ela  dizia,  vigiar  os  seus  teréns,  um  baú  tauxiado  de  pregos  doirados,  uma  pequena  mesa desconjuntada, o pote d"água e alguns objetos de cozinha.          
  A  porta  de  Belota,  quase  ao  escurecer,  Romana,  Joana  Cangati  e  Maria  Caiçara  conversavam  acocoradas  e  cigarreando,  muito  desenvoltas  e  palradeiras.  Romana,  sempre  roliça,  com  os  cabelos  duros  de  pomada  cheirosa,  aljofrada  de  empolas de suor adiposo, a ponta do nariz curto e arrebitado, e mostrando os dentes  pontiagudos, contava casos    escandalosos,  que  as  outras  contestavam, ou  ampliavam e comentavam com insinuações picantes e grosseiras, ou se espraiavam  em mexericos triviais sobre a crônica da  ralé. Joana Cangati, a mais séria das três,  metida a rezas e bruxarias, desde que por uma praga, irrogada pela mãe, ficara com  o útero escangalhado de um  aborto, obra do demônio, porque a consciência não a  acusava  de  haver  feito  por  onde,  dava-se  certo  recato  e  modos  de  mulher  séria,  muito temente a Deus. Maria Caiçara, bem conformada, galante rapariga, a qualquer  graçola de Romana, despejava o riso em gargalhadas estrídulas.            
  — Então — dizia Romana — o tal Alexandre está cada vez mais embrulhado.          
 — Não sei — observa a Cangati — Quem havera de dizer?! Eu, meu Deus  perdoai-me, não vi ele furtar; por isso não digo nada; mas há coisas que só pintadas  pelo cão...        
  — Qual o quê! — continuou Romana — a Gabrina que o diga. Quando soube  que ele estava todo babado pela Luzia-Homem, desembuchou e contou tudo...         
  — O que ciúme não fizer...          
  —  E  fez  muito  bem,  sra  Joaninha.  Você,  comparando  mal,  quer  bem  a  um  homem,  tem  confiança  nele,  nas  suas  promessas,  se  ele  não  lhe  corresponde  e  atraiçoa, não tem mais obrigação de guardar fidelidade. Não é?... Não faltava mais  que estar empatando a rapariga com outra de olho e já de casamento tratado. Iam  embora  juntos  e,  muito  que  bem:  a  Gabrina  que  ficasse  com  os  beijos  com  que  mamou ou com cara de besta...         
  —  Pois  eu  —  atalhou  a  Caiçara  —  só  quero  quem  me  quer.  Entojou  de  mim?... Melhor!... Homens não faltam.          — É porque você, mulher, nunca teve paixão de fazer a gente perder noites  de sono...           — Paixão é bobagem, sra Joana...         
 — Então você não sabe que a Gabrina queria bem ao Alexandre, calada, sem  dar  demonstração.  Andava  atrás  dele  bebendo  ares;  ficava  horas  esquecidas  na  porta do armazém da Comissão, olhando pra ele com olhos melados de piedade que  parecia quererem engolir vivo o moço?...          
 — Histórias...          
 — É o que lhe digo, por esta luz. Deus dê muitos anos de vida a quem ela  pediu uma oração forte, a do "Santo Amâncio te amanse", para amolgar coração de  homem ingrato.          
 — E aquela bestalhona acredita na virtude dessas bruxarias?           
 — Bruxarias?!... Bata na boca, Romana, para não ser castigada. Com santo  não se faz mangação.            
 E  a  Cangati  entrou  a  contar  casos  assombrosos,  que  não  conseguiram  dominar o cepticismo de Romana.            
 — Mas — ponderou Caiçara — se ela estava mesmo caída pelo Alexandre,  como é que foi contar a história do dinheiro e dos cortes de vestido dados por ele, e  agora anda toda derrengada com o Crapiúna?          
 — Tudo por pique. Ciúme faz reinação do demônio, e torna uma pessoa boa  malvada  como  uma  cascavel.  Depois  ela  e  Crapiúna  se  entendem;  sofrem  do  mesmo  mal;  andam  os  dois  com  o  juízo  entornado:  ela  pelo  Alexandre,  ele  pela  Luzía-Homem. Não sei como isso acabará. Talvez nalguma desgraça...         
  —  Qual  desgraça,  qual  nada.  É  uma   coisa  que  se  vê  todos  os  dias.  Desenganados,  cada  um  vai  para  a  sua  banda  cuidar  em  outra  coisa...  Amor  desencontrado.          
  — É porque você não conhece o Crapiúna, nem a Gabrina. Ele é o que se  sabe,  capaz  de  tudo,  até  de  mandar  gente  desta  para  melhor;  ela,  uma  bichinha  teimosa como uma mosca, e ruinzinha que faz dó. Não se me dava de jurar que ela  inventou aquela história para desgraçar Alexandre... Ronha não lhe falta.          — O quê?!...          
  — Cala-te boca... Não está mais aqui  quem falou... Façam de conta que não  ouviram nada.          
  — Você que diz isso, sra Joana, é porque sabe alguma coisa.          
  — Não sei nada. É uma cisma que tenho.          
  — Ela não tinha astúcia para inventar uma história tão bem contada, tão cheia  de circunstâncias. Se não foi do furto,  quem lhe deu dinheiro para comprar um par  de brincos de ouro?          
  — Sei lá! Não quero esmiuçar a vida dela, nem a de ninguém; mas vocês não  a conhecem, repito: é capaz de dizer que Deus não é Deus e não há ninguém mais  manhosa debaixo daquela sonsidão de menina!            — O quê, sra Joana; você parece que inticou com a rapariga!          
  — É muito arrebitada e mal-ensinada; mas eu até gosto dela...          
  —   Olhem   quem   está   ali   —   exclamou   Maria   Caiçara,   apontando   para  Teresinha, que abria a porta do quarto.          
 — Bons olhos a vejam — disse a Cangati, com modos amáveis. — Por isso é  que a tarde está tão bonita!...      — Boas tardes — respondeu Teresinha, secamente.          
 — Por onde tem andado, que mal pergunto?           
 — Por aí mesmo... — tornou Teresinha,  entrando para evitar bisbilhotices, e  dar  trela  às  três  vadias,  muito  do  seu  conhecimento  como  catanas,  que  nada  poupavam.            
  Belota mantinha tavolagem, freqüentada por parceiragem de ínfima condição  e  mal-afamada,  Zé  Zoião,  Cândido  da  Bertolina,  exímios  artistas  da  vermelhinha,  operosos  contribuintes  da  estatística  criminal  e  heróis  de  todos  os  distúrbios  que  agitavam a paz da cidade. Eles se encarregavam de atrair as vítimas: comboieiros e  matutos ingênuos; e, depois, como viciosos de raça, repartiam, ao jogo, as quotas  das extorsões.         
 Crapiúna  era  freqüentador  assíduo,  principalmente  quando  se  jogava  o  monte, partida de sua predileção.          
  Os outros parceiros não se davam bem  com ele, por ser muito rezinguento.  Por qualquer pretexto, armava barulho e, muita vez, estivera a pique de fazer água  suja, inconveniente aos créditos da casa.         
  Desde que tomara a peito quebrar o encanto de Luzia-Homem, andava-lhe a  sorte arrevesada. Perseguia-o um caiporismo incessante, que o tornava ainda mais  irritadiço e trêfego, principalmente quando Belota, chasqueando, insinuava que ele  estava  contra  o  sentido  do  rifão,  sendo  infeliz  no  jogo  e  no  amor,  e  atribuía  as  perdas consideráveis, que ele sofria, ao fato de andar com o juízo passeando, em  vez de fixá-lo nas cartas ensebadas e sujas do baralho, recurvado em forma de telha  pela  pressão  do  partir,  repetindo-lhe  a  cada  pexotada,  que  jogador  não  guarda  cabras.          
  Nessa  tarde,  o  jogo  fervia  lá  dentro,  e  as  três  mulheres  continuavam  a  grasnar, aguardando as gorjetas dos afortunados, e fazendo de vigias para avisarem  aos jogadores a aproximação do sargento  Carneviva, que era  um duende para os  soldados.  Em  achando  banca  armada,  podiam  os  viciosos  contar  com  os  mais  severos castigos, o serviço dobrado com mochila às costas em ordem de marcha e  sarilho, quando não eram esfregados com surra de espada de prancha, ou de cipó  de raposa.          
  Crapiúna estava num dos seus piores dias. Perdera já quantia tão avultada,  que  os  parceiros  procuravam,   surpreendidos,   atinar   onde   arranjara   ele   tanto  dinheiro. Os prejuízos montavam a vinte que haviam  passado, suavemente, para os  bolsos do Zoião e do Cândido, nos quais Crapiúna encarava desconfiado, atribuindo  a batota, em que eram useiros e vezeires, tamanha fortuna.            
 — O Senhor — disse-lhe Zoião, cravando-lhe, de esguelha, os grandes olhos  esbugalhados — parece que está maldando de nós!          
 — Não estou maldando — resmungou Crapiúna — mas tanta sorte junta é de  fazer a gente desconfiar...          — Pois se desconfia — avançou o Vicente, em jeitos arrogantes — o remédio  é não jogar mais nós. Veja o seu Belota se queixa...            
  Cândido,  velhaco  e  pouco  expansivo,  não  falava,  exasperando  com  um  sorriso irônico, o soldado infeliz.           
  — Não me queixo — observou Belota  — porque estou com o juízo no jogo.  Você, Crapiúna, não tem razão. Estou com um olho no padre e outro na missa, e  não admitiria trapaça... principalmente em minha casa.           —  Nem  nós  seríamos  capazes  de  abusar...  —  acrescentaram,  quase  ao  mesmo tempo, os outros parceiros, com uma vasta exibição de escrúpulo.         
  — Vocês são capazes de tudo! — tornou Crapiúna, irritado.         
  — Veja como fala!          
  — Tenho visto o que fazem com os matutos. Comigo fia mais fino... Se eu  perceber qualquer tramóia...             Foi-se azedando a discussão até falarem todos, em tumulto, trocando injúrias  e doestos, apesar da intervenção conciliadora de Belota, para evitar um conflito.         
  Teresinha, que fechara a porta da rua para mudar de roupa, foi atraída pelo  rumor     e   não     resistiu   à    curiosidade      de    saber    donde      provinha.     
 Dirigiu-se,  cautelosamente,  ao  pequeno  quintal;  e,  firmando  os  pés  nas  fendas  dos  tijolos  carcomidos,   guindou-se   acima   do   muro   que   dava   para   a casa   vizinha.   Daí  descortinou  a  tumultuosa  cena,  a  fúria  de  Crapiúna,  as  ameaças  dirigidos  aos  parceiros  venturosos,  às  réplicas  destes,  cheias  de  malícia  irônica,  audaciosos,  porque, aliados como estavam, não se arreceavam do insolente soldado, nem eram  homens que morressem de caretas, mesmo das mais pintadas.           
 Chegou o momento em que esteve iminente a conflagração. Vicente, sempre  calmo,   sempre   sorridente,   considerava,   que   tanto   direito   tinha   Crapiúna   de  desconfiar  deles  quanto  estes;  entretanto  não  o  faziam,  porque  não  queriam  cascavilhar na vida alheia.            
 — Para saber — atalhou o Cândido — onde você desenterrou botija para ter  tanto dinheiro para perder.            —  Olhe  —  acrescentou  Zoião  —  se  eu  quisesse  falar  era  capaz  de  o  desgraçar...            
  Crapiúna  estremeceu,  e  levou,  de  repente,  a  destra  ao  cabo  da  faca,  escondida debaixo da farda.         —  Pois  fale,  seu  miserável  —  bradou  ele,  ganindo  de  raiva  que  te  hei  de  obrigar a morder a língua danada.          
  —  Olha  Zoião,  meu  amigo  Crapiúna  —  implorava  Belota,  entre  os  dois.  —  Nós  somos  todos  amigos velhos.  Para  que  este  baticum  de  boca...  Daqui  a  nada  ouvem  lá  fora...  Pelo  amor  de  Deus...  Seu  Candinho,  você  que  é  mais  moderado  tenha mão no Zoião, mais no Vicente...          
 — Pois então, seu Belota — ajuntou Zoião, com os olhos faiscantes - era o  que faltava, um indivíduo...           — Depois digam que sou eu quem está intimando!...          
 — Que — continuou Zoião — não pode levantar a cabeça diante de homens  de mãos limpas, querer ter voz altiva para insultar os outros!... Tenha mão nele, que  é soldado como você e deve respeitar a farda...             Crapiúna rosnava, acovardado, como fera acuada, subjugado pela serenidade  do adversário. Lívido, de olhar fulvo, ensangüentado, resmoneava surdas ameaças,  e Zoião, com inquebrantável energia, continuava:             —  Não  pense  que  digo  isto  por  estar  em  companhia  e  aqui  na  casa  de  Belota...  Sou  homem  para  o  senhor  em  toda  a  parte,  e  como  quiser.  Se  tem  Pasmado,  eu  tenho  Pajeú,  ferro  de  qualidade  que  nunca  me  envergonhou...  Se  o  seu já quebrou o preceito, o meu também não está em jejum...          
 — Pelo amor de Deus — suplicou o Belota, com lágrimas na voz — Basta!...  Basta!... Está acabado por hoje, meus amiguinhos da minh"alma... Vocês parecem  crianças...          
 — Olha, cabra, toma a bênção ao Belota...             
 Depois  desta  ameaça,  Zoião  deixou-se  conduzir  pelo  Cândido,  que  chofrou  esta pilhéria:            
 — Até mais ver, seu Crapiúna, quando quiser a desforra... Damos lambuje...           
  Teresinha,  espiando  ansiosa,  por  cima  do  muro,  lamentava  o  desenlace  pacífico da contenda.             — Você sempre arma cada rascada, seu Crapiúna — observou Belota, ainda  agitado.          
 — Aquele homem é um precipício — murmurou o soldado — Se não fosse  você... Deixe estar que os desaforos não caíram no chão...          
 — O melhor é você não fazer caso...             
Belota,   com   maneiras   manhosas   de   consumado   velhaco,   tinha   enorme  predomínio no camarada, que tanto era agressivo e rixoso, quanto cobarde, quando  entestava um adversário considerável. Isto sucedera no caso da Quinotinha, a que o  Alexandre defendera, com uma coragem evidente, bonita...           Depois de muitos conselhos e exortações, Belota pretextou necessidade de ir  ao corpo da guarda, prometendo voltar sem demora.         
  Vendo  que  Crapiúna  se  dirigia  para  o  quintal,  Teresinha  desceu,  ligeiro,  do  posto de observação, e correu. Mal teve tempo de chegar à porta, atrás da qual se  escondeu, trêmula de terror.          
  O soldado, destro como um gato, saltou por cima do muro, e dirigindo-se para  o fundo, suspendeu um velho caixão, atulhado de coisas imprestáveis, tirou de sob o  qual uma bolsa de coiro de onça, cheia de dinheiro.          
  Enquanto  o  soldado  contava,  umedecendo  os  dedos  na  língua,  as  notas  miúdas,  dilaceradas  e  sórdidas,  Teresinha,  no  esconderijo,  procurava,  em  vão,  conter  as  pernas  vacilantes,  quase  a  vergarem.  Pelos  seus  olhos  espavoridos,  passou a visão do responsório, em casa de Rosa Veado. Uma das sombras, aquela  que, com esgares de louco, a arrebatava em volteios macabros pelo ar, em nuvens  de  fumaça  sufocante,  estava  ali  corporizada,  bem  nítida,  contando  o  dinheiro  furtada. O glorioso Santo Antônio operara o milagre. Por precaução criminosa, talvez  para arriscá-la, Crapiúna escondera o furto,  denunciá-la-ia mais tarde, e ela seria,  como cúmplice de Alexandre, vítima de uma prova esmagadora.           Entre o terror de se achar a sós com o soldado em tão estreito espaço, ser  por ele pressentida e descoberta, testemunhando o terrível  segredo, e o prazer de  haver  colhido  certeza  da  autoria  do  crime,  Teresinha  vacilava  na  resolução  por  tomar,  sem  se  embaraçar  nas  malhas  da  rede,  em  que  pretendia  apanhar  o  criminoso.  Teve  ímpetos  de  gritar,  de  surpreendê-lo  em  flagrante,  e  arrastá-lo  à  presença  do  delegado.  Isso,  porém,  seria  perder-se,  sacrificar-se,  inutilmente,  porque  Crapiúna  seria  capaz  de  eliminá-la,  estrangulá-la,  sem  piedade.  Ela  não  poderia  lutar,  frágil  como  era  e  aberta  dos  peitos,  contra  um  homem  vigoroso  e  armado de uma faca hedionda, cujo cabo de chifre, incrustado de arabescos de oiro,  surgia-lhe da ilharga. Ah! se tivesse os músculos de Luzia!          
  As pernas lhe tremiam, cada vez mais bambas; os dentes se chocavam com  estalidos  secos,  toda  ela  tiritava  inundada  de  suor  gelado,  que  lhe  empapava  os  cabelos  na  fronte,  e  lhe  corria  pelo  dorso,  como  vermes  pegajosos.  A  cabeça  andava-lhe à roda; e, na visão perturbada,  o soldado se afigurava desdobrado em  outros iguais e pequeninos, que avançavam  para ela com trejeitos de palhaços. A  mísera debatia-se para fugir, implorar socorro, como na angústia de um pesadelo.           
  Os rápidos instantes que se ali demorara o soldado lhe pareceram infindáveis;  e quando recobrou a posse de si mesma, saindo do esconderijo, pé ante pé, com  meticulosas precauções, lívida, espavorida, viu que o quintal estava deserto. Nada  denunciava  a  presença  dele:  o  caixão  estava  no  mesmo  lugar,  onde  permanecia,  havia muito   tempo; não viu pegadas no chão, nem o mais leve vestígio.           
  E a bolsa?... Ela não ousava verificar se fora reposta onde a vira.            
 — Seria realidade ou sonho? — inquiria ela, procurando despertar a memória,  fixar idéias e recompor o fato, em todas as suas minúcias — Teria, na verdade, visto  Crapiúna transpor o muro, suspender o caixão e contar o dinheiro?...             
  Seria a revelação efeito da intervenção do Santo?...          
  Nessa  dolorosa  incerteza,  esgotadas  as  forças,  com  os  quadris  doloridos,  como  se  os  houvesse  traspassado  a  faca  do  soldado,  marchou  trôpega,  para  o  interior do aposento, então quase escuro, e, subjugada de inelutável torpor, derreou- se na rede, armada a um canto.           
  Era quase noite. Não se ouvia mais o grazinar das três mulheres, que haviam  partido  para  a  delícia  de  um  gozo,  fariscando,  numa  insaciedade,  a  fortuna  dos  jogadores.      

CAPÍTULO  XVIII   
         
  O   relógio     da   Matriz     dava     oito   horas,    quando      Teresinha       despertou  sobressaltada, tomando pela claridade da aurora, o luar  que se coava pelas frestas  do  telhado.  Seu  primeiro  movimento  foi  para  erguer-se,  ir  ter  com  Luzia,  dar-lhe,  como costumava, notícias de Alexandre, e contar-lhe a excelente novidade. Mas, o  corpo  enlanguescido  de  tão  violentas  comoções,  do  torpor  do  sono,  recusou  obedecer.  Ela  permaneceu  encastoada  na  rede,  encadeando  idéias  dispersas,  e  fixando bem, na memória, o episódio que duvidava ainda fosse sonho, ou realidade.  Por  fim,  assaltou-a  o  medo  de  estar  só  na  penumbra  do  quarto,  povoado  de  fantasmas, rumores suspeitos que se lhe figuravam passos de homem aproximando- se, hálitos ansiosos, como a sua própria respiração ofegante.          
  Com   esforço   voluntarioso   ergueu-se,   espreguiçou-se   para   distender   as  articulações entorpecidas, e abriu, de manso, a porta.           
  O  beco  estava  deserto,  banhado  de  luz  intensa,  suavemente  argentina.  Na  casa  fronteira,  alumiada  pela  froixa  luz  de  uma  vela  de  carnaúba,  chorava,  em  magoados  vagidos,  uma  criança  enferma,  acalentada  pela  mãe,  que  murmurava  monótonas cantigas, cortadas de suspiros. Era a angústia do coração a estoirar de  pranto.           
  Teresinha  espreitou  todos  os  lados;  fechou  a  porta  sem  estrépito,  e  partiu,  dirigindo-se  para  a  várzea,  por  uma  estreita  senda,  cavada  no  solo,  ladeado  de  cisqueiros, farejados, afocinhados de cães magros e murchos, que se esgueiravam  desconfiados. Ela passou, depois, cosida aos altos muros do fundo dos quintais, até  chegar à encruzilhada das ruas, cheias de  escravos, retirantes, gente ,suja, gente  esquálida, carregando potes d"água, colhida nas cacimbas abertas na areia do rio, a  conversar,  rezingando,  em  voz  alta,  com  rasgadas  desenvolturas  de  chufas,  de  arregaços obscenos, com risos estridentes de malícia.        
  Ao  chegar  à  rua,  suspirou  libertada  do  pavor  aflitivo;  e,  outra  vez,  gozando  uma doce serenidade d"ânimo, seguiu na direção da igreja do Rosário, relembrando  os incidentes daquela tarde, a cena do jogo, a cobardia no esconderijo, e o terror  que lhe não permitia verificar se Crapiúna deixara a bolsa de coiro de onça debaixo  do  caixão.  Em  todo  caso,  estava  satisfeita  com  o  haver  logrado  a  certeza  do  verdadeiro  criminoso,  indicado  pelo  infalível,  pelo  glorioso  Santo  Antônio,  e  a  convicção de concorrer para a libertação de Alexandre e a felicidade inteira de Luzia.  E reputava-se engrandecida por essa boa ação, renovada do passado de culpas, de  crimes  talvez,  dos  quais  fora  responsável  inconsciente,  e,  sobretudo,  a  principal  vítima.  Entidade  diminuída  e  inútil,  flutuando  sobre  uma  suja  torrente  de  vícios  incontinentes,  sentia-se  valorizada,  sentia-se  forte  e  sentia-se  prestante.  Duas  criaturas, pelo menos, neste mundo de ingratidão, de perfídia e de miséria, seriam  reconhecidas à sua dedicação.         
  Enlevada no doce conforto do beco, Teresinha foi subindo a Rua do Rosário  até  ao  largo.  Em  redor  do  Cruzeiro,  erguido  defronte  da  igreja,  sobre  um  sólido  pedestal de alvenaria, crentes, ajoelhados, rezavam padre-nossos, ave-marias e o  terço, murmurado, nuns tons soturnos de devota cadência.          
  Do piedoso burburinho, sobressaía a voz de Dona Inacinha, ao recitar, com  solenidade  de  padre,  o  gloria-patris,  respondido  pelos  fiéis,  numa  algaravia,  um  mistifório de latim e português: — Os que  perderem em princípio, agora e sempre  por todos os séculos, séculos. Amém, Jesus.        
  A  moça  prostrou-se,  comovida,   abeirando-se  do  grupo,  pouco  e  pouco  engrossado  pelos  transeuntes,  de  uma  reverência  grave,  na  maioria  mulheres,  de  alvos mantos, a espalharem ao luar, claro como o dia. Havia muito, seus lábios se  não entreabriam à florescência da prece consoladora, nem despertava, aos eflúvios  puríssimos da fé, sua alma agrilhoada ao pecado. Dos hábitos piedosos da infância,  apenas conservava o de persignar-se antes de dormir, antes de tomar banho. Não  se  recordava  da  última  vez  que  rezara,  a  não  ser  a  oração  sacrílega  em  casa  da  Rosa Veado.       
  Terminados os mistérios do terço, Dona Inacinha entoou, com pompa, numa  voz  fanhosa  e  áspera,  o  canto  de  contrição,  —  "Oh!  Senhor  Deus  bem-amado...",  acompanhado por todos os devotos, com uma dissonância aparatosa, irremediável.  Aos    derradeiros   versículos,    houve    uma    contrita,  houve    uma    longa    pausa.  Recolheram-se todos com Deus, curvados e humildes, preparando-se para o solene  epílogo do ato religioso, a súplica comovente de misericórdia. Quando, esta ecoou,  entoada  pela  beata,  em  acentos  plangentes,  as  pessoas,  afastadas  da  igreja,  reunidas  em  roda,  na  calçada,  tanto  que  ouviam  a  súplica,  ajoelhavam  e  batiam  também  nos  peitos,  repetindo,  em  leve,  em  sentido  balbucio,  a  invocação  à  misericórdia    divina.   Teresinha     curvou-se,     compungida,      e   pediu    a   Deus,  sinceramente, perdão dos seus pecados.        
  Ergueram-se  os  devotos,  como  um  rebanho  de  ovelhas,  espantado  na  malhada  noturna,  e  debandaram  em  todas  as  direções,  depois  de  beijarem  o  pedestal da grande cruz negra, que o luar destacava, com melancólicos fulgores.          
  Ao  toque  de  nove  horas,  desmancharam-se  as  rodas  de  confabulação  amistosa;  trocaram-se  saudações  habituais  e  arrastaram-se  as  cadeiras  para  o  interior das casas, cujas portas se fechavam com estrépito.          
  Naquele  tempo,  terminavam  a  tal  hora,  com  exceção  das  raras  casas  da  fidalguia da terra, as visitas, fossem de cerimônia, fossem íntimas. É considerável  esta nota.         
   Luzia   passeava,   impaciente,   sob   a   latada,   cujas   palhas,   muito   secas,  farfalhavam ao violento embate das rajadas tépidas.           
  — Que horas são estas?! — exclamou, avistando Teresinha.         
  — Fui ao meu quarto — respondeu esta — mudar a roupa e peguei no sono...         
  — Pensei que te havia acontecido desgraça... Tardaste tanto... Estava num  pé e noutro ansiosa... E ... Alexandre?...          
  — Na mesma. Poucas palavras e muito sucumbido... Mete dó vê-lo, coitado!          
  — Perguntou por mim?          
  — Não. Eu é que falei de você. Disse-me que não lhe podia pagar o que tem  feito por ele; entrou a repetir que já está desesperado... Sempre a mesma ladainha.          
  — Tem razão. Há quase um mês que padece...          
  — Deixe estar que, mais dias, menos dias, se descobre a verdade. Deus há  de permitir que isso seja breve, talvez amanhã...          
  — Amanhã?!... Dessa esperança estou farta.         
  —  Não  desespere,  Luzia.  Quem  espera  sempre  alcança.  Você  nem  pode  adivinhar o que vai acontecer.   — Sabe, então, alguma novidade?...          
  — Não. É um palpite.          
  — Um palpite à-toa?...          
  — Lembra-se, Luzia da minha alma, lembra-se do respônsio?          
  — Sim. E depois?...          
  — Não lhe dizia eu que tinha fé no milagre? Pois é por ter fé que prevejo a  próxima libertação de Alexandre. Diz-me o coração que ele está ali e está na rua.  Ainda há instantinho rezei o terço no cruzeiro do Rosário, e uma voz interior dizia- me, com segurança: Deus tarda, mas não falha...         
  — Então ele nem perguntou por mim!?            
  Luzia  prescrutava,  com  olhares  insistentes,  o  pensamento  de  Teresinha,  suspeitando  que  ela  lhe  ocultasse  a  verdade,  ou  que  soubesse  algo  que,  por  compaixão, lhe não queria revelar. Essa reserva mental devera influir naquele ar de  mistério,  velado  de  ironia,  palavras  vagas,  em  completa  discordância  do  gênio  expansivo e alegre da rapariga, uma deleitosa criatura sem aspirações, resignada ao  seu   quinhão   minguado   da   partilha   das   coisas   boas   deste   mundo,   feita   pela  Providência.  Entretanto,  ela  testemunhava,  com  funda  mágoa,  a  ansiedade,  o  desconcerto de Luzia.        
   Esteve a pique de revelar-lhe o descobrimento do dinheiro; mas, por um justo  egoísmo,   desejava   reservar   para   si,   exclusivamente,   a   caridosa   iniciativa   da  libertação do prisioneiro, se bem que não houvesse ainda atinado como tirar partido  do que vira, ou tornar valioso o seu testemunho único, porque não ousara verificar  se a bolsa ficara no lugar onde Crapiúna a escondera.         
  Era  por  medo,  por  cobardia  indesculpável  que  se  não  houvera  assegurado  dessa circunstância importante, ela que tinha afrontado perigos e estava calejada de  suportar as vicissitudes da vida? E se ele houvesse tirado o dinheiro? Tornar-se-iam  inúteis  o  descobrimento,  o  tormento  daqueles  angustiados,  daqueles  inolvidáveis  instantes, porque nada valeriam as suas afirmações.         
  Seria  possível  que  assim  se  desvanecessem  as  esperanças  da  iminente  vitória da verdade à calúnia, urdida contra o pobre moço!...          
  Luzia por sua vez, meditava, com os claros olhos fitos na clara lua, a librar-se  no céu, de um fino e doce azul. Seu pensamento adejava em redor de Alexandre,  que,  indiferente,  não  perguntara  por  ela,  merecedora  do  castigo  desse  desdém,  e  rendida à voz diabólica que, das entranhas, lhe bradava, com insistência lancinante:  "és, culpada pelo teu excessivo amor-próprio, pela tua soberba!..."          
  Seguia-se a revolta, com assomos fanfarrões de defesa inconsistente, fútil.           
  — Não quer saber de mim? — pensava ela — Melhor. Fosse eu outra, faria o  mesmo.  Deixá-lo-ia  entregue  à  sua  sorte,  desobrigando-me  de  tamanha  canseira,  pois  muito  tenho  feito  para  demonstrar-lhe  a  minha  gratidão.  Talvez  isso  lhe  conviesse para desembaraçar-se do compromisso de ligar à sua vida, uma mulher  pobre  com  a  mãe  doente,  duas  bocas  a  reclamarem  de  comer,  neste  tempo  de  carestia,  e  maior  soma  de  trabalho.  Seria  uma  loucura  pensar  em  casamento  em  semelhante  crise.  Ele,  sozinho,  poderia  suportar  privações,  vencê-las  ou  sucumbir  consolado de não fazer falta a ninguém, como defunto sem choro...            
  E Gabrina?... — Não iria esta ou outra igual ocupar, no coração vazio, o lugar  que  Luzia  abandonara?  Não  procuraria  ele,  na  triste  conjunção  do  naufrágio  das  suas  esperanças,  uma  afeição  que  o  consolasse,  um  refúgio  carinhoso,  embora  impuro de lascívia, onde se abrigasse para espairecer, como quem se intoxica de  bebidas  capitosas  para  curar  dissabores,  ou  se  afoga  na  vasa  infecta  de  um  pântano?          Seria horrível. E Luzia estremecia, sob um pavor, como se fora ameaçada do  espólio de um bem inestimável, de coisa a que tinha direito sagrado, coisa que ela  criara,  e  à  qual  transmitira  parte  da  sua  alma,  planta  que  tratara  com  desvelado  carinho,  regada  com  o  suor  das  suas  aflições  e  o  orvalho  das  suas  lágrimas,  ameaçada  de  ser  desarraigado  por  mão  criminosa,  quando  lhe  desabrochavam,  pujantes  de  viço,  coloridas  e  perfumosas,  as  primeiras  flores.  Não  tinha  energias  varonis,  músculos  poderosos  para  defender  o  seu  bem  querido,  e  esmagar  o  espoliador!?... Não tinha o indeclinável dever de lutar pelo que era seu, e constituía,  já,  elemento  essencial  da  sua  existência,  como  se  defendesse  a  própria  vida,  o  patrimônio  inexaurível  dos  tesouros  do  coração,  o  precioso  quinhão  da  inefável  ventura que, neste mundo, só no amor se encontra?          
  Como puas lancinantes, esse egoísmo, que é a suma de todos os instintos da  espécie,  tanto  mais  veementes  e  indomáveis  quanto  menos  culto  é  o  espírito  da  mulher,  não  contaminada  de  pecado,  na exuberante  razão  do  organismo  sadio,  assanhava-lhe as iras, a lhe morderem como cobras, o coração, que lhe projetava  nas veias uma torrente abrasada de ódio a Gabrina, a todas as mulheres que lhe  disputassem a presa adorada, contra si mesma, que o abandonara, contra as coisas  que a cercavam, testemunhando o seu penar, contra aquele astro radiante a iluminar  a luta travada no âmbito escuro da sua  alma, como lâmpada tristonha a revelar o  monstro de paixão acuado na caverna das entranhas, latejantes de desejos...            Passava-lhe,   então,   pela   mente   alucinada,   a   torva   idéia   de   vingar-se,  rebaixando-se,  de  poluir-se,  de  atolar-se  no  charco  da  lascívia,  saciando-se  até  à  embriaguez, ao primeiro encontro, fora embora cúmplice do imundo crime, o mais  hediondo  dos  homens.  Crapiúna,  outro  qualquer,  ainda  mais  vil  e  detestável,  contanto que a sua depravação, com requintes de despejo, fizesse sofrer Alexandre,  o desalmado, o frio homem, que não perguntara por ela, a Teresinha.          
  E  a  voz  diabólica,  vibrando  em  místicas  melodias,  de  um  tom  angélico,  e  dominando o tumulto da sua alma atribulada, repetia: "Por que te golpeias assim?  por que te maceras nessa luta mortificante e estéril, frágil criatura?...         
  Vai;  curva-te,  como  escrava,  aos  pés  do  ente  adorado,  beija-lhe  as  mãos,  unge-as  com  o  bálsamo  do  teu  pranto,  porque  o  amas...  Uma  exortação  de  alto  romantismo, a dessa voz de anjo e diabo...           Despertou-a do cismar torturante, a voz de Teresinha:           
 —  Que  bonito  luar,  Luzia.  Dá  vontade  à  gente  de  passar  a  noite  em  claro.  Como está bem visível! São Jorge e o cavalo empinado. Dizia-me um tapuio velho  da Serra Grande que a lua protege a quem quer bem. Quando uma tapuia gentia  tinha saudades do marido ausente, olhava para ela, e lá lhe aparecia o retrato da  criatura  querida,  ou  nela  casavam,  conduzidos  pelos  olhares,  as  almas  do  par,  separado por léguas de distância.             
  Luzia,  maquinalmente,  olhou  para  a  lua  a  navegar  serena  no  céu  nítido,  e  pensou  que,  àquele  momento,  Alexandre  também  a  contemplava,  triste  e  só,  por  entre as grades do cárcere infecto.              — A lua — continuou Teresinha com melancolia — leva recados e juras dos  noivos, e amolece o corpo da gente. E o tapuio dizia que ela era mãe da terra, das  coisas  e  das  criaturas  vivas;  protegia  as  plantações,  mandando  chuva  e  orvalho,  aquecia  os  ninhos  chocos,  dava  cheiro  às  flores  em  botão  e  cio  aos  animais.  Também tirava o juízo à gente, quando  se zangava... Ah! que saudades me faz o  luar!  Foi  por  uma  noite  destas,  que  conheci  o  Cazuza  pela  primeira  vez...  Ai,  ai...  Deus... meu pai...           
   E  ela  se  esticava,  num  grande  bocejo  de  volúpia,  deitada  sobre  a  esteira,  desalinhadas,  pelo  vento,  as  roupas  leves,  os  olhos  quase  cerrados  à  imortal  saudade do primeiro amor, sempre vivo no inquieto coração devastado.            
  — Tomara que já amanheça — continuou, bocejando — Como custa a passar  a noite!... Em que está você tão embebida, Luzia?          — Eu!... Estou imaginando na minha triste vida...          —  Arre  lá  com  tanto  disfarce!  Você,  minha  negra,  não  se  abre  comigo.  Estava, mas era longe daqui, rezando à lua como as tapuias.         
 — Você tem coisas, Teresinha!?...         
 — Não chorei na barriga da  minha mãe, mas adivinho. Por que não diz logo  que está com o juízo em Alexandre?          
 — Como hei de pensar em quem não faz caso de mim!... Nem perguntou a  você, por mim...          
 — Não perguntou por quê?... Porque você, por pique, não foi mais à cadeia.  Você é caprichosa, ele também... Mas não se me dava de apostar como ambos e  dois estão arrependidos...          
 —  Acha,  então,  que  depois  do  que  houve,  eu  deveria  entreter  uma...  coisa  sem fundamento, sem esperança?          
 — Qual o quê! A gente faz de um argueiro um cavaleiro, fica amuada, jura por  quantos  santos,  faz  finca-pé...  É  o  mesmo  que  nada.  Quem  quer  bem  não  tem  vergonha. Eu, ralada neste mundo, que o diga.     — E a história da Gabrina?          
 — Mentira, tudo mentira.  Não duvido que ela levantasse, com aquela cara de  santa,  toda  denguices  e  inocências,  o  falso  testemunho.  É  uma  rapariga  bem- parecida, bem feita de corpo, mas tem a alma deste tamanhinho. A Chica Seridó tem  comido candeias, desde que tomou conta dela. É capaz de tudo, meu Deus perdoai- me. Não duvido que tenha feito esse malefício por ciúme...          
 — Por ciúme?...          
 — Pensa que todos os homens se babam  por ela, e, como Alexandre não lhe  deu trela...          
 — Demais, que tenho eu com isso? Tanto se me dá que ela goste dele, como  que não goste. Só me empenho para ele ser livre. O mais... está acabado...          
 — Que soberbia, Luzia! Você ainda é castigada.         
 — Por quê? Se não faço mal a ninguém...          
 —  Deixe  estar.  Quem  for  vivo  verá...  Não  há  mal  que  sempre  dure...  Amanhã!... Ali! Miserável; tenho aqui o fio da meada!            
 Teresinha, como se falasse a um ente miserável, estendeu, com ar triunfante,  o punho cerrado.            
 — Bem dizia eu — exclamou Luzia — que você sabe alguma coisa...          
 — Ora se sei... Vai ver... Amanhã, se Deus quiser... Não; o melhor é não dar à  língua... Espere...            
  E Teresinha, muito lenta, muito lânguida, entrou  a murmurar, baixinho, com  uma ternura tiritante, uma canção, da qual Luzia distinguiu bem esta quadra:                                        

 A traição, meu bem, ature:                                      
Diga que é cega e não sabe,                                   
Não há mal que sempre dure,                                   
Nem bem que nunca se acabe ...      

CAPÍTULO  XIX           

 Teresinha  voltou,  no  dia  seguinte,  ao  beco  da  Gangorra,  à  hora  da  revista,  quando os soldados estavam reunidos no quartel, estabelecido em uma velha casa  fronteira à cadeia. No sobressalto de quem se esconde, esgueirando-se para evitar  a  curiosidade  da  vizinhança,  entrou  no  quarto,  e  se  fechou  por  dentro.  O  silêncio  aumentava-lhe o susto. Foi preciso repoisar para adquirir coragem.          
  A porta, que dava para o quintal, estava entreaberta, como ficara na véspera.  O caixão velho lá estava, regurgitando de traços, lavado de luz intensa, um contraste  da  penumbra  do  aposento,  sem  o  menor  sinal  de  haver  sido  desviado,  ou  da  presença de ser humano naquele sítio.           
  Com  o  peito  ofegante,  pálida  de  aflição,  o  ouvido  atento  ao  menor  ruído,  a  moça ajoelhou, e, com um esforço sobreposse, ergueu um dos ângulos do caixão,  muito pesado, muito cheio; e, sustentando-o de encontro ao ombro, fendeu com mão  trêmula, o espaço entre o fundo e o chão. Seus dedos crispados experimentaram  repugnante  contacto.  Retirou,  rapidamente,  a  mão,  como  se  a  houvesse  passado  pela  polpa  ascorosa  de  um  réptil.  Um  calefrio  varou-lhe  os  membros,  as  forças  abandonaram-na, e o caixão caiu, percutindo o solo com um som cavo.         
  Transida de pavor, ela esperou alguns momentos, imóvel e atenta, sempre de  joelhos,  apoiada  ao  muro.  Recobrado  o  âni mo  limpou  com  a  fímbria  da  saia  o  copioso suor que lhe inundava o rosto, respirou agoniada,  como se lhe faltasse ar;  abanou-se  com  o  vestido,  movendo  de  um  para  outro  lado  a  cabeça,  quase  desfalecida. A bolsa de Crapiúna estava ali. Não havia dúvida; ela havia sentido o  contacto  eletrizante  dos  pêlos  do  coiro  de  onça.  Aguilhoada  pela  curiosidade  de  examinar-lhe o conteúdo, não ousou de fazê-lo: seus músculos flácidos e fatigados  não poderiam repetir a exploração. Além disso, começou a sentir a dolorosa junção  inguinal e o aperto do peito, que a acometia toda vez que era assaltada por fortes  abalos.            
  —   Ah!...   Se   eu   fosse   mulher   de   talento,   como   Luzia   —   murmurou,  desalentada, erguendo-se a custo.             
  Certa da permanência da prova do crime, restava escolher meio de utilizá-la.  Seria necessário surpreender Crapiúna ali, quando voltasse em busca de dinheiro e  obter  o  auxílio  de  um  homem  bravo  e  forte,  capaz de  entestar  com  o  soldado,  prendê-lo e conduzi-lo à presença da autoridade. Lembrou-se de Raulino Uchoa que  era  vigoroso  e  arrojado,  quando  menos  pela  brava  fascinação  das  histórias  que  contava da vida aventurosa. Era, demais disso, amigo de Alexandre e devotado a  Luzia, que o salvara dos chifres do toiro sanhudo. Era, porém, indispensável que ela  e  ele  ficassem  escondidos  de  tocaia,  esperando,  horas,  talvez  dias  inteiros,  a  ocasião propícia.          
  Ocorreu-lhe,  então,  procurar  o  sargento  Carneviva,  que  ela  o  sabia  em  excesso  rigoroso  para  com  os  soldados,  e  andar  muito  prevenido  com  Belota  e  Crapiúna, por serem jogadores incorrigíveis. A essa idéia, duma felicidade que farte,  ela   vibrou   de   júbilo,   ela   vibrou   de   cólera,   misturados,   na   mesma expansão  impetuosa, os nobres anelos de vitória e antegozo cruel da vingança.          
   — Hás de Pagar o novo e o velho — exclamou ela, com ameaças, e triunfante  — Hei de mostrar, ladrão safado, quem é tábua de bater roupa e quanto vale esta  cachorra!...            
   E partiu em busca do sargento. A  essa  hora,  estava  Luzia  trabalhando  na  oficina  de  costuras  do  morro  do  curral do Açougue. Confiara-lhe Dona Inacinha a superintendência das meninas taludas, depois  de  verificar  a  sua  perícia,  o  seu  exemplar  procedimento,  o  recato  de  maneiras  e  linguagem, tão raros naquela quadra de carência de nutrição física e moral. Seria ela  um  exemplo  vivo  para  aquelas pobrezinhas,  condenadas  à  mendicidade,  órfãs  ou  abandonadas  pelos  pais,  expostas  ao  contágio  da  infecção,  que  diluía  as  baixas  camadas da sociedade, desfibradas pelo inominado flagelo.   
   Entre  elas  estava  Quinotinha,  um  futuro  de  formas,  em  cujas  linhas,  ainda  angulosas, se debuxavam, nuns longes de curvas graciosas, os primeiros sinais da  puberdade.  Luzia  acolheu-a  com  simpatia;  e,  quando  soube  que  era  a  menina  libertada  por  Alexandre  da  sanha  monstruosa  de  Crapiúna,  dedicou-lhe  os  mais  carinhosos cuidados. Fruía deliciosa sensação ao contacto dela, ao exercitar-lhe as  pequeninas mãos delicadas  no manejo da agulha  e no ajustamento das peças de  costura, sensação de mãe testemunhando a florescência da força e da inteligência  nos tenros rebentos do seu ser. Ela a distinguia das outras meninas, desasseadas,  esgrouvinhadas, como pombas privadas do arminho das penas cândidas, de olhos  toldados, como se por eles já houvesse passado a sombra funesta do crime; muitas  indiferentes  às  carícias,  aos  conselhos,  de  grandes  olhos  parados,  ardendo  num  brilho fulvo de febre, e sempre voltados para o telheiro onde roncavam, fumegando,  os  enormes  caldeirões  de  comida.  Quase  todas  pareciam  esgalhos  enfezados,  condenadas ao estiolamento precoce, a se consumirem, varas estéreis, na coivara  de vícios, que se ia alastrando, como incêndio em matagal ressequido, e mais não  era  outra  coisa  essa  massa  de  famílias,  erradicadas  dos  lares,  desagregadas  e  descompostas.            Contemplando  Quinotinha  a  trabalhar,  Luzia  se  embebia  no  enlevo  de  um  sonho, onde se dissolviam as amarguras, as  tristezas do presente, e surgia, entre  resplendores  suaves  de  aurora,  o  desejo  da  maternidade,  dar-lhe  Deus  uma  filha  assim,  formosa  e  sadia.  E  já  considerava,  num  gozo,  em  toda  a  sua  sublimidade,  esse prazer inefável de mãe, quando a estrelava ao seio fremente, lhe amimava os  cabelos de menina e a beijava com afã, com a meiguice, o doce frenesi das mães  amorosas.         
  Evolava-se o sonho, e ela considerava que a rapariguinha poderia servir de  companheira à mãe enferma e a ela mesma, como irmã caçula, se os tempos não  fossem  tão  ruins;  poderia  repartir,  com  ela,  a  sua  pobreza,  o  seu  quinhão  parco,  como  fizera  com  Alexandre.  Chegou  mesmo  a  falar-lhe  nisso,  mas   Quinotinha  respondeu-lhe que era a mais idosa de oito irmãos, uma escadinha de meninos que  terminava num de peito, e não podia abandonar a mãe, coitada, já abandonada pelo  marido.          
 Depois  disso,  Luzia  lhe  teve  mais  amor,  e  mesmo  mais  sorrisos,  e  mesmo  mais  cuidados.  Havia,  entre  ambas,  a  solidariedade  do  mesmo  infortúnio,  de  sentimentos idênticos, dedicação e amor filial, com a diferença de ser a menina uma  criatura ingênua e feliz, pela inconsciência da miséria, e ela mulher rebelada contra a  sorte, assaltada de absurdas aspirações, tendo o coração apertado entre mágoas,  dissabores, esperanças desfeitas, murchas como os cravos rubros de Alexandre.          
  Uma tarde, terminada a tarefa, Quinotinha saiu acompanhada de Luzia, que  lhe notava algo estranho no semblante, de ordinário tranqüilo e risonho.          
  Caminharam em silêncio, algum tempo.           
  — Há muitos dias — disse a menina,  enteada e hesitante que ando para lhe  dizer uma coisa.          
  — Você?! — exclamou Luzia, com interesse, com surpresa.          
  — Sim, eu mesma...          
  — Vamos lá... Diga...        
  — Vosmecê conhece seu Alexandre? Aquele moço que está preso por causa  do furto da Comissão?...            — Conheço, sim.          
  —  Quero  muito  bem  a  ele...  Sra  Luzia  também  gosta  dele?  Luzia  não  respondeu; e a menina continuou:           
  — Todo o mundo gosta daquele homem...          
  — Mas... a que vem isso?          
  — Eu lhe conto. Sra Luzia sabe onde é a  casa de Chica Seridó? Pois fui lá,  outro  dia,  buscar  um  remédio,  que  a  mamãe  mandou  pedir  e  estava  esperando  entretida  com  a  Gabrina,  aquela  mocinha  bonita,  que  também  gosta  de  seu  Alexandre,  quando  ela  me  largou  de  repente,  e  foi  para  o  terreiro  conversar  com  uma  pessoa.  Espiei  para  fora  e  fiquei  tremendo  de  medo:  era  o  Crapiúna,  aquele  soldado  que  de  uma  feita,  quase  se  pegou  com  seu  Alexandre...  Fiquei  quieta  e,  então, ouvi ele falar muito zangado: ralhava tanto, que fiquei com pena de Gabrina.  Ele  dizia:  —  Você  não  tem  palavra.  Ficou  de  ir  lá  em  casa  e  me  enganou!  
  Ela  respondeu por aqui assim: — A Chica estava com os olhos em riba de mim, que não  me deixou um instante. — Você está mentindo, menina — tornou ele a dizer-lhe com  muita má-criação. — Nem por eu lhe dar o par de brincos de ouro e os cortes de  chita... — Mas eu não fiz o que você disse? — respondeu a rapariga, também com  maus modos. Não fui jurar em casa do Delegado? ...          — Vamos. Conte-me tudo — irrompeu Luzia, ansiosa e alvorotada, devorando  a menina com o olhar em fogo. — Vamos, diga a verdade.          
  —  Não  estou  mentindo  —  balbuciou,  Quinotinha,  espavorida  pelo gesto  ardente da mestra — Creia-me por esta luz...          — Não tenho receio. É para bem dele, do pobre, que está penando inocente...          —  Espere.  Deixe-me  lembrar.  Ela  disse  mais:  —  "Que  queria  você, seu  Crapiúna?" — "O que, me prometeu... Olha, diabinho, tu  me tens custado os olhos  da cara e se não fosse porque..." — Aqui, ela afastou pra trás, e disse-lhe: — "Se é  por causa da porqueira destes brincos e daqueles molambos, pode levar tudo. Basta  a dor de consciência de ter alevantado um falso... Ainda quer mais?!..." — Crapiúna,  estava-se vendo, ficou fulo de raiva e em termos de arremeter para ela...         
  — Está bem certa do que dizes, Quinotinha?!...          
 — Eu? Como em Deus estar no céu... Por sinal que ele abandonou, quando  ela  disse  que,  se  duvidasse,  não  se  dava  de  contar  tudo;  que  mentira  por  pique, para se vingar de Alexandre... que não fazia caso dela... O soldado ficou calado um  instantinho e pediu-lhe que não fosse mazinha, que se falasse, seria presa com ele,  desgraçando-se os dois para fazerem benefício a um homem que, além de tudo, a  desprezava por causa de outra mulher. Se ficasse quieta e fizesse o que ele queria,  poderiam  viver,  sem  ninguém  desconfiar,  como  Deus  com  os  anjos.  —  "Olhe  —  disse ele por fim — se eu fosse malvado, poderia encalacrá-la... Mas não faço isso,  porque você é o meu único amor da minha alma." Continuaram a conversar, mas tão  baixinho, que não pude ouvir, até que a Chica Seridó gritou lá de dentro por ela...  Então,  eu  disse  comigo:  Que  gente  malvada!  Vou  contar  tudo  a  sra  Luzia.  
  Não  contei  logo,  porque  tive  medo  que  ralhasse  comigo  por  eu  andar  escutando  conversa de gente grande...          
  —  Ralhar  contigo?!...  Pois  se  foi  Deus  quem  te  colocou  ali  para  seres  testemunha  da  verdade...  Fizeste  muito  bem,  Quinotinha;  assim  é  que  faz  uma  menina bem-ensinada. Nem podes imaginar o bem que fazes a duas criaturas: a ele  e a mim. A mim, que libertaste de um grande peso que me esmigalhava o coração.            
  E  enlaçou  a  menina  nos  braços  robustos;  conchegou-a  ao  peito, convulso,  que  arfava,  com  alvoroço,  desesperadamente  beijou-a  em  febril  transporte  de  ternura, como beijam aos filhos as mães amorosas.            
  — Agora — disse a menina, libertando-se dos afagos de Luzia — deixe-me ir  que é tarde... Não diga nada., nem que lhe contei...           
  — Vai descansada...            
  Quinotinha partiu a correr, e Luzia continuou o caminho para casa.          
  A lucidez da narrativa, duma segurança minuciosa, atestava a sinceridade da  menina.   Alexandre,   pensava   Luzia   radiante,   está   salvo,   salvo  da   infâmia   e  reabilitado  para  ela,  por  sua  vez  libertada  das  sombras  cruéis  da  suspeita.  Ele ressuscitara,  e,  da  prisão  nojenta,  ascendia  para  o  céu  das  suas  aspirações,  aureolado pelo sofrimento. E ela abençoava a voz demoníaca, aquela voz sedutora  e íntima, que lhe falava com a sonoridade mística de um canto angelical, e a impelia  docemente para o mártir, repetindo: "Vai, curva-te como escrava e culpada, unge as  suas mãos generosas com as tuas lágrimas, porque o amas."     Se Alexandre a amasse, ele perdoar-lhe-ia; ela era, agora, culpada de haver  desconfiado,  por  mesquinho  impulso  de  despeito,  por ter  recusado  ao  pobre  a  consolação da sua presença, a caridosa visita diária à prisão, e  por não resistir, à  crueldade pueril de devolver-lhe as pobres flores murchas, símbolo triste de afetos  mortos.     

 CAPÍTULO  XX  
     Teresinha  conversava  com  a  tia  Zefinha,  numa  rútila  impaciência  de  olhos  alegres, quando Luzia chegou a casa. Falava de Alexandre, amaldiçoando a justiça  que o conservava na cadeia, havia mais  de um mês, por causa de imputes feitos  pelo  hediondo  soldado,  de  parceria  com  a  Gabrina,  doidivanas, positivamente,  quase  a  despencar-se  no  mundo,  arrastada  pela  falta  de  juízo  e  os  péssimos  exemplos,  porque  a  morada  da  Chica  Seridó  era  lugar  de  reunião  de  gente  mal  reputada, fregueses de suas mezinhas e feitiçarias.         
  O  semblante  claro  e,  claramente,  expansivo  de  Luzia,  denunciou-lhe a  vontade que lhe alvoroçava o coração.            
 —  Como  vem  mudada!  —  exclamou  Teresinha  —  Você parece  que  viu  passarinho verde?         
 — É porque tenho de quê, respondeu Luzia,  beijando as mãos descarnadas  da mãe.        
 — Vamos lá. Conte-nos isso, que também tenho boas novidades.         
 — Já sei quem é o ladrão...          
 — Ora! Isso é velho para mim, como a serra dos Cocos.         
 — Sabia então?...         — Olé! Não sabia, mas suspeitava.         
 — Pois eu sei. Foi mesmo uma coisa mandada por Deus.             
 E repetiu, sem reservas, a revelação de Quinotinha.            
 —  Franqueza  por  franqueza  —  disse  — Teresinha,  resoluta  —  Eu  também  tenho muito que dizer, coisas que me andam embuchando há muitos dias. Primeiro  que tudo, fiquem sabendo: Crapiúna está preso...           — Preso?!... — exclamaram, a um tempo, Luzia e a velha.         
 —    A  onça  deste  pasto  está  muito  bem  guardada  no  xilindró...  E  quem  conseguiu isso?          
 — Esta sua criada — afirmou Teresinha, com ênfase, batendo no peito, com  largo gesto de contentamento.          
  Contou,   então,   como   descobrira   o   esconderijo   do   dinheiro,   as   aflições  suportadas com heroísmos fanfarronou a coragem, o sangue frio, apesar de fraca,  não era mofina, e, mais não morrera de terror quando se viu a sós com o malfazejo  soldado, e passear a narrar a entrevista com o sargento Carneviva.            
  —  Que  quer  você?  —  disse  ele,  apurado,  riscando  com  proficiência  grave,  mapas e tabelas.          
  — Vim aqui dar parte... — respondeu,  perturbada pela severidade do homem  de má cara, muito barbada e muito fechada.         
 — Anda depressa, que estou muito ocupado. Comando  o destacamento  na  ausência do tenente, que foi fazer uma diligência, e não tenho tempo para trelas.              Teresinha,  muito  sobressaltada,  denunciou-lhe  a  cena  do  jogo  em  casa  de  Belota e a briga de Crapiúna com os paisanos.            
  —  Bem  desconfiava  eu  que  aqueles  malandros  tinham  casa  de  jogo  na Gangorra — rebentou o sargento, com cólera, cheio de censura disciplinar — Deixa  estar essa corja que os arranjarei... É só isso?             Logo que a moça começou a narrar o episódio de ter descoberto o dinheiro no quintalzinho do seu quarto, o sargento, em crescente interesse, largou a régua, tirou  cautelosamente  o  tiralinhas  da  boca,  onde  o  sustinha  atravessado,  e  pejado  de  tinta, e cravou indagadores olhos na delatora.   — Como é isso? — inquiriu, com surpresa — Então aquele homem que está  preso?...          
  — Inocente, meu senhor; limpo como saiu da barriga da mãe...          
  — Dele — atalhou, rapidamente, Carneviva, que não queria dúvidas — Veja o  que está dizendo mulher...          — Vossa senhoria, se quiser, pode ver com os seus próprios olhos... Depois,  eu não tenho necessidade de mentir...         
 — Lá isso é história. De enredos de mulheres estou farto. Vocês, quando têm  raiva  dos  soldados  inventam  e  mentem  como  deslambidas.  Enfim,  vou  indagar  o  caso da jogatina. Oh! Cabecinha!...         
 — Pronto, seu cadete.    — Que é do Crapiúna?          
 — Está na guarda da cadeia.          
 — E o Belota?          
 — Também.         
 — Mande rendê-los e que venham já à minha presença.             
  Cabecinha  partiu,  e  Teresinha  fez  um movimento  para  retirar-se  e  evitar  a  acareação com os soldados.           
 —  Não  senhora  —  ordenou  Carneviva  —  Fique  para  deslindarmos  já  esse  negócio.          
 —   Poucos   minutos   decorreram.     Crapiúna   entrou   primeiro,   e   não   pôde  disfarçar a surpresa de encontrar, na sala do sargento, a moça, transida de susto  pelo vexame. Belota chegou, depois, com ares humildes, tímidos.          
 — Que história foi essa — perguntou-lhe Carneviva — do jogo em sua casa?  Já lhe não havia dito que, à primeira denúncia, você, seu Belota, ajustava comigo  novos e velhos?          
 — Saberá vossa senhoria — balbuciou Belota — que é menos verdade... Até  tenho andado doente...        
 — Qual doente!... Você quando faz maroteira, dá-lhe logo na fraqueza...          
 — Por Deus, seu cadete...          
 — Vamos lá. Quero saber tudo... E, se  mentir, arranco-lhe com a chibata, o  coiro do lombo...         
 —  Vossa  senhoria  me  perdoe ...  Foi,  foi...  uma  brincadeira...  a...  a  leite  de  pato...          
 —Bom. E o senhor? — perguntou o sargento, voltando-se para Crapiúna, que  dardejava sobre Teresinha, olhos ferozes.         
 — Eu não sei nada respondeu ele, secamente, e sem hesitação.           
 —  Ah!...  Então  você  não  esteve  jogando  em  casa  de  Belo  a  com  os  vagabundos Zoião, Candinho e Vicente da Henriqueta?         
 — Vossa senhoria não ande atrás de histórias desta mulher, que mente como  uma cadela vadia.         
 — Então o senhor — atalhou Teresinha, pulando, irritada pela injúria — não  esteve quase se pegando com os outros? Não foi aqui o seu Belota, quem apartou a  briga!?... Não é verdade que, quando eles foram embora,  saltou para o  meu quintal  paredes-meias?...            O  sargento  impôs-lhe  silêncio,  com  um  gesto  rápido  e  enérgico.  Crapiúna  empalideceu,  e  Belota,  espantado,  sem  atinar  com  a  significação  da  palavra  da  moça, interrogava o camarada com o olhar.            — Vamos seu Belota — ordenou o sargento — Bote para fora o que sabe.  Vamos que temos panos para mangas...             
  Belota, sempre cheio da intransigência das ameaças do sargento, acobardou- se  e  contou  o  caso,  amenizando-o  com  disparatadas  justificativas.  Fora  uma  brincadeira de amigo, uma coisa à-toa, que terminara num bate-boca.            
 — E aqui este mestre?                   
  Crapiúna olhava, de soslaio, para Belota.           
 —  Saberá  vossa  senhoria  —  respondeu  este  —  que  o  seu  Crapiúna  não  estava...           — Você está mentindo seu diabo...          
 — Quero dizer... sim senhor... Não estava não, senhor...          
 — Veja bem o que está dizendo.          
 — Não estava no... no... princípio: chegou; quase no fim... Mas, juro que não  vi ele saltar o muro...          
 — Bom. Chegou no fim, heim!?          
 —  É  menos  verdade  —  interrompeu  Crapiúna,  num  ímpeto  de  audácia  insolente — Este homem diz isto para se desenrascar.           
 —  Não  negue,  seu  Crapiúna  -  retorquiu  Belota  —  O  senhor  estava.  Eu,  mesmo contra mim, falo a verdade como  homem. Se porém, eu disser que vi você  saltar o muro, minto porque deixei o senhor sozinho em minha casa, e fui ao quartel.         
 — E você, seu Crapiúna, o que foi fazer ao quintal vizinho?...           
 —  Já disse a vossa senhoria que é mentira dessa língua danada.           
 — Também será mentira que tirou debaixo de um caixão, uma bolsa de coiro  de onça?...             
 Crapiúna  ficou  lívido,  e  atirou,  desesperadamente, um  gesto  de  ameaça  a  Teresinha.            
 — A bolsa? — exclamou ele, maquinalmente, tomado de pasmo.   — Sim, senhor — afirmou o sargento,  com ironia. — A bolsa onde guarda o  seu dinheiro, a sua botija encantada.             
 Traído pela inesperada revelação e irritado pelos contínuos gestos afirmativos  de Teresinha, Crapiúna, a custo, sofreava os estos da cólera, que lhe queimava o  coração.          
   Eu sei lá dessa história de bolsas... — respondeu, aparentando serenidade —  É  verdade  que  cheguei  no  fim  do  divertimento;  tive  uma  turra  com  o  Zoião,  uma  bobagem... Mas...           
  Carneviva  levou  o  apito  à  boca,  e  tirou  dele  três  trilos  agudos  e  violentos.  Apareceram imediatamente, quatro soldados.   
 —Bem. Vamos pôr isso em pratos limpos. Ah! Eu bem suspeitava que havia  falcatrua... Todos os dias uma queixa.  Furtinho para aqui, gatunagem para acolá...  Cambada que é a vergonha da farda!... Corja de ordinários...             
   Depois, pondo à cinta uma garrucha, ordenou aos soldados:            
 —Vamos!    Acompanhem-me  com  estes  dois  homens:  desarmem  a  esses  coisas ruins.             
  À  aproximação  dos camaradas,  Crapiúna  recuou,  e  levou  imediatamente  a  mão ao sabre: mas, o sargento lho arrebatou com um movimento rápido, com um  movimento enérgico.             — Olha lá!... Não se engrace comigo, seu Crapiúna... Observou ele — Vamos  e muito direitinho... Comigo não se brinca, vocês sabem...              Partiram em escolta, acompanhados por magotes de pessoas, no trajeto pela  rua.  Chegando  ao  quarto  de  Teresinha,  Carneviva  ordenou  que  se  afastassem,  e  entrou  com  os  soldados  ficando  à  porta  uma  sentinela.  Nessa  ocasião,  chegou  o  subdelegado, atraído pelo ajuntamento e informado da ocorrência, passou a dar a  busca.           
  A bolsa foi retirada debaixo do caixão e  aberta. Havia nela dinheiro, jóias e alguns fragmentos de papel-escrito, versos de canções populares e o rascunho de  uma carta a Luzia.           
 O subdelegado inquiriu, então, Crapiúna: — De quem é esta bolsa?          
 —  Não  sei  —  respondeu  o  soldado,  impávido  de  furor.  —  Pergunte  a  essa  mulher que é a dona da casa...             
  Os   camaradas presentes   afirmaram   que   a   bolsa   era   muito   conhecida;  pertencia a Crapiúna.             —  Bem  — concluiu  a  autoridade  —  Vou  levar  o  fato  ao  conhecimento  do  delegado, a quem está entregue  o inquérito, para lavrar o auto. O senhor sargento  terá a bondade de mandar recolher os homens incomunicáveis, e comparecer com  as testemunhas na delegacia.             
  Luzia  e  a  mãe  ouviram  a  narrativa,  num  enlevo  de  alegria,  num  enlevo  de  pasmo, com as almas nos olhos, como se lhes revelassem casos fabulosos, casos  sobre-humanos.  Era  possível  que  Teresinha  houvesse  realizado  tão  assombrosa  façanha?            
 — Vocês não imaginam — continuou ela —  como tinha povo na rua. Parecia  procissão,  quando  levaram  os  soldados  para  o  xadrez.  E  a  cara  do  Crapiúna?...  Ficou   verde, amarelo,   encarnado   como   lama   pimenta;   botava-me   uns   olhos  ensangüentados que me varavam...Eu, que vi o bicho bem seguro, ferrei também os  olhos nele como quem diz — arre diabo!... Quando passou por mim, resmungou: —  "Deixa  estar sua  aquela,  que  me  pagará...  Diz  à  tua  pareceira  Luzia-Homem, que  não hei de ficar toda a vida preso..." Senti um frio no coração, quando o malvado  disse isto.          
  — E agora — perguntou Luzia — vão soltar já Alexandre?          
  —  Sei  lá...  Disseram-me  que  comparecesse amanhã  na  delegacia  para  a  trapalhada de depoimentos e não sei que mais.           
 — Ah! Teresinha — gritou Luzia, com um abraço veemente, radiante — Você  é um anjo, um anjo!           
 —  Que anjo, que nada!... Sabe o que sou? Mulher e bem mulher, de cabelo  na venta. Ninguém mais faz, que não pague com língua de palmo. Chegou o meu  dia...  com  dois  proveitos  num  saco:  Crapiúna  preso  e  Alexandre  limpo  de  pena  e  culpa... Foi uma sorte! Viva o glorioso Santo Antônio! Ah!... se eu tivesse foguetes!  Xii... tô... tó!... Viva Santo Antônio!... Vivo... Vivo!...                      
  E,  lestes,  escarnicando  do  celerado,  saciada  de  vingança,  fazendo  piruetas  que lhe agitavam os seios, contorciam os quadris e enrolavam, em espirais, as saias  em torno do corpo esbelto, desnudando as pernas ágeis, toda ela palpitando, toda  ela  a  se  mexer  em  requebros  sensuais  de  dança,  com  sapateados  frenéticos,  e  vastas chibanças de triunfo, e rindo e cantando, numa alegria louca, a sua figurinha  escanzelada de retorta providencial se destacava, evidente, no fundo iluminado pelo  rubro disco da luz cheia, a surgir, lentamente, em magnífica ascensão.     

 CAPÍTULO  XXI            

  Propagou-se, rapidamente, a notícia da prisão de Crapiúna, como verdadeiro  autor  do  roubo  do armazém  da  Comissão  de  socorros.  Não  havia  dúvida.  Um  conjunto de provas esmagadoras: a bolsa reconhecida por todos os camaradas; as  declarações  de  Belota  que,  insistindo  em  ignorar  o  fato,  confessava  causar-lhe  admiração o dispor ele de tanto dinheiro para perder ao jogo grandes somas e fazer prodigalidades com raparigas e pagodes;  o depoimento de Teresinha, confirmado,  de uma irrefutabilidade minuciosa; o rascunho da carta ameaçadora, entregue por  Luzia  ao  delegado,  no  dia  da  prisão  de  Alexandre,  e  os  testemunhos  de  Chica  Seridó e Gabrina, encerraram o soldado numa culpa evidente, indiscutível.          Seridó  confessou  que  nutrira  sempre  instintiva  repugnância  ao  soldado,  por  seus  modos   atrevidos   com   as   mulheres,   muita   falta   de   respeito,   caçoadas  inconvenientes; nunca, porém, lhe passara pela cabeça que ele fosse capaz de tão  feia ação, como essa de levantar um  impute que clamava aos céus e — o que lhe  parecia  ainda  mais  grave  —  reduzir  uma  rapariga  inocente  e  bestalhona,  como  Gabrina, para ajudá-lo na obra nefanda de culpar um inocente.            
  — A pobrezinha fez isso — dizia ela ao  delegado, na sala  de audiência da  câmara municipal, apinhada de curiosos — sem maldade; e (para que hei de estar  com histórias mal contadas?) porque andava  inclinada para seu Alexandre, depois  dos benefícios que dele recebeu. Ponha o caso em si, meu senhor. Vossa senhoria sabe que mulher, quando vira a cabeça, é capaz de tudo. Quem quer bem não toma  conselhos;  não  enxerga desgraças,  nem se  importa  com  perigos.  Ela  tinha  no  coração  aquele  amor  encoberto  e  não  me  disse  nada.  Esta  bichinha  que  aqui  vê,  esta não-sei-que-diga disfarçou tão bem que eu, macaca velha, nada maldei. Metia  a mão no fogo por ela, creia-me... Aquele malvado homem, percebendo que a pobre  estava enciumada, seduziu-a, com promessas de mimos, a tomar uma vingança do  moço. Eu sabia que seu Crapiúna gostava de Luzia-Homem, tanto assim que, uma  noite, me pediu para ir fazer uma reza, na casa dela para abrandar-lhe o coração.  Fui com ele e mais o seu Belota, muito contra a minha vontade; mas (para que hei  de negar?) fui e não pudemos fazer nada, porque estiveram acordadas até fora de  horas. Saberá vossa senhoria que sou mulher de propósito; mesmo contra mim, falo  a  verdade.  Fui  fazer  a  reza,  mas  não  há  mal  nisso.  
 É  com  as  minhas  orações  e  mezinhas  que  arranjo  o  bocado  para  a  boca,  sem  ser  pesada  a  ninguém,  Deus  louvado.          
 — Que oração forte era essa? — perguntou-lhe o Promotor.          
 — Se eu disser sem ser rezando, mesmo de verdade e com fé, ela perde a  virtude.          
 — E acredita nela?    —  Ah!  Seu  doutô,  queria  ter  de  anjos  para  acompanharem  minha  alma,  as  pessoas  beneficiadas  por  ela.  Não  foi uma  nem  duas...  Muita  senhora  dona  de  família e consideração...                   
 Enquanto  a  Seridó falava,  Gabrina,  de  pé,  ao  lado  dela,  cravava  os  olhos  sombrios  na  fímbria  do  casaco  de  cassa, cujas  rendas  enrolava  e  destorcia  maquinalmente, entre os dedos hirtos. Os músculos do seu rosto, lindamente oval e  duma  cor  lindamente  morena,  emoldurados  em  cabelos  negros  e  crespos,  não traíam  abalos  violentos:  estavam  imóveis,  e  apenas  se  percebia  pelas  narinas  dilatadas e palpitantes, a sua respiração entrecortada de suspiros abafados.          Contemplavam todos a mocinha de formas flexíveis e delicadas, apenas livres  das  linhas  incompletas  da  infância  e  desdobrando-se  em  contornos  graciosos;  e,  lastimando achar-se ela complicada no crime, todos a envolviam numa atmosfera de  simpatia que os impulsos passionais despertam.          Por fim, perguntou-lhe o Promotor:         
 — É verdade o que diz esta senhora?           
— É, sim senhor — respondeu com voz que mais parecia um sopro.           
— Foi Crapiúna quem lhe insinuou esta calúnia?           
— Foi, sim senhor...           
— Por que não resistiu?             
 Gabrina ficou calada.             
— A senhora amava Alexandre?             
  Como se o coração, muito tímido, lhe despejasse no seio a repoisada torrente  de  lágrimas,  ela  prorrompeu  em  convulso  pranto,  escondendo  o  rosto  no  seio  da  Seridó, que a amparou, que a enlaçou nos braços, com maternal carícia.             
  — Bem, bem — concluiu o Promotor — Não a martirizarei mais. Sossegue...           
  E, voltando-se ao Delegado, disse-lhe, em voz baixa:             
 — Realizaram-se as minhas previsões. Temos a eterna história, um drama de  amor...             Nesse momento, entrou Alexandre no recinto, fechado por uma balaustrada, e  destinado aos jurados. Seu olhar aceso de febre, luzindo na sombra das pálpebras  roixeadas,  fixou-se  piedoso  na  febril  rapariga;  e,  no  rosto  macilento,  assomou  um  ligeiro sorriso amargurado.           
  — Aproxime-se — ordenou o Delegado.             
  Ele deu alguns passos vacilantes para a frente, perturbado pelas mal contidas  exclamações de dó, que chegavam aos seus ouvidos sequiosos, naquele instante,  do  caricioso  eco  de  vozes  amigas.    Os  que  ali  estavam  eram  todos  curiosos,  enviscados pelo escândalo, ou indiferentes e desocupados, procurando diversão no  desenlace   do   inquérito   policial,   à   exceção   de   Teresinha,   que   o   contemplava  silenciosa, sentada a um canto.          
  Muitos comentavam os estragos que a infecta enxovia produzira na saúde do  moço.            
 —  Senhor  Alexandre  —  disse-lhe  o  Promotor,  a  voz  sonora  e  grave  —  um  conjunto,  de  indícios,  de  elementos  de  prova  bem  acentuados  e  persuasivos,  determinou  o  vexame  que  sofreu.  Ia  sendo  vítima  de  um  desses  erros  que,  infelizmente, não são raros na história dos tribunais e que, por lamentável lacuna,  não encontram nas leis, meios completos de reparação. Órgão da justiça, lamento,  sinceramente,  fosse  recolhido  por  infundadas  suspeitas  de  tão  grave  imputação;  teve,  porém,  a  ventura  de  sair  ileso  dessa  provação  suportada  com  heroísmo.  
 O  verdadeiro criminoso está descoberto. Nada inipede, agora, que a justiça proclame a  sua honra restaurada com a liberdade que, neste momento, lhe é concedida.            
  Perpassou  pelo  ambiente,  um  sussurro  de  aprovação  unânime,  porque,  desmascarado o ardil do soldado, ninguém nutria dúvidas sobre a autoria do crime.        
  Não era possível que um moço bem  procedido e de abonados precedentes  fosse capaz de tão vil ação. Por outro lado, todos confessavam, então, justificados  suspeitas contra Crapiúna, quando não fosse  por qualquer motivo definido, nela má  cara do homem, seus costumes dissolutos, ou por mero palpite. Não fora, entretanto,  o  feliz  acaso  de  surpreender  Teresinha  o  esconderijo  do  dinheiro,  ou,  como  ela  afirmava  sinceramente,  a  intervenção  do  glorioso  Santo  Antônio,  o  inocente  seria  denunciado,  processado  e  condenado.  E  toda  aquela  gente  aprovaria,  com  igual  entusiasmo, a justiça inexorável.           O Delegado, voltou-se para o Carcereiro e, indicando-lhe a Seridó e Gabrina,  ordenou:            
  — Recolha aquelas mulheres.           
  — O quê?!... — exclamou a Seridó apavorada — Pois eu sou presa por falar  a verdade? Que culpa tenho,  seu Delegado, do malefício dos outros? Eu, que não  matei, não roubei, que nunca fiz, mal a ninguém... que não tenho rabo de palha!...             
  Gabrina  olhava  em  torno  espantada,  como  se  despertasse  atordoada  pelo  nevoeiro de mau sonho. Estancaram-se-lhe as lágrimas e sucederam-lhes violentos  soluços.          
  Quando  o  Carcereiro  se  aproximou,  e  a  intimou  com  a  frieza  fulminante  do  ofício,  dizendo:  "Vamos",  acometeu-a  o  terror  da  prisão.  E  enquanto  a  Seridó  implorava piedade, justificando-se com protestos de inocência, lamentos e súplicas,  ela,  com  desenvoltura  de  criança  que  se  refugia  no  seio  paterno,  agarrou-se  a  Alexandre.             — Perdoe-me, seu Alexandre — suplicava, com gritos vibrantes — Não deixe  que me levem presa! Que vergonha!... Não,  não é possível!... Peça por mim; valha- me  pelo  amor  de  Deus!...  Ai!...  ai!...  que  eu  morro!...  Quem  me  acode!...  Minha  gente, tenha pena de mim, de uma pobre filha sem mãe?... Ah! Seu Alexandre da  minha alma, pelo leite que mamou, peça por mim que lhe quero tanto bem... Valha- me, valha-me por tudo quanto há de mais sagrado. Peço por alma de sua mãezinha,  pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo... Sim, por tudo, pela luz dos seus  olhos, pela vida de... de... Luzia!...             
  Esgotadas,  nesse  esforço  sobre-humano,  as  derradeiras  energias,  a pobre  inteirou-se;  seus  braços  froixos  penderam  dos  ombros  de  Alexandre;  a  cabeça,  escondida   nos cabelos   desgrenhados,   inclinou-se   sobre   o   seio   e   ela   caiu  ernborcada,  como  um  corpo desarticulado  e  morto,  aos  pés  do  moço,  transido  de  espanto e piedade.          
  Acercaram-se da mísera algumas mulheres e a Seridó, que pedia um caneco  d’água, um capucho de algodão queimado, e a esfregava, com força, sobre o peito.           
 Alexandre dirigiu-se ao Promotor:            
 — Se lhe mereço alguma coisa, seu, doutô, tenha compaixão daquela pobre.  Ela não soube o que fez... É quase uma criança...           
 —  Tem  razão  —  observou  o  Promotor,  convindo  docemente  —  É  possível  evitar... Demais seria uma violência inútil.   

 CAPÍTULO  XXII         

   Para se arrancar à comoção forte daquela cena que o amolecia, e apertava o seu tão chupado organismo, Alexandre deixou o salão das audiências, seguindo-o,  de perto, Teresinha, muito zangada pelo ato de generosidade que  ele praticara em  favor de Gabrina.       
   — Com aquela carinha de enfinta, —  murmurava ela — de alfenim, que com  qualquer coisa se derrete, não me engano.  É muito mazinha de bofes. Com aquela  parte  de  gostar  de  você,  não  se  lhe  dava  de  ser  causa  do  muito  que  penou  na  cadeia. O amor deu-lhe pra maldade. Era bem-feito que ela fosse gemer e chorar no  xadrez  para  saber  se  é  bom  levantar  falso  testemunho  aos  outros.  Não  há  nada  melhor que a gente ser fingida: faz quanta perversidade há e no fim de contas, basta  se derreter em choro e ter um vagado  para ser perdoada.   Eu, não me importa de  dizerem que tenho más entranhas. Quem me fizer paga, tão certo como dois e dois  serem quatro. E então a Chica Seridó? Como ficou piedosa e inocente, ela que é a  alma danada de tudo... Aquilo tem mais artes e ronhas que diabos nas profundas do  inferno... Fosse comigo, ficavam as duas ensinadas para toda a vida.           
  Alexandre  não  se  justificou.  Continuaram  a  caminhar:  ele  silencioso,  ela  resmoneando  a  censura.   Quase  ao  pé  do  armazém  da  Comissão,  ele  perguntou,  inesperadamente:           
  — E Luzia?         
  — Foi trabalhar — respondeu Teresinha, amuada.         
  — Por que não veio com você?        
  —  Porque  teve  vergonha  de  se  expor  diante  de  tanta  gente.  Disse-me  que  estava alcançado o que desejava: a sua  liberdade; nada mais tinha que fazer. Não  pregou  olhos  a  noite  inteira,  esperando  que  amanhecesse  o  dia  de  hoje.  A  tia  Zefinha não cessava de agradecer a Deus. Se visse como a pobre alminha estava  contente... Nem parecia a enferma que conhecemos, engelhada, encolhida, cortada  de dores...         
  — Coitadinha! E... Luzia? Ainda está zangada comigo?          
  — Que zangada!... Aquilo foi um repiquete de ciúmes. Quis, à fina força, fingir  de coração duro e forte, mas desenganou-se. Uma penca de corações não vale um  grão de milho. Deu-lhe a paixão na fraqueza, e aquela criatura, forte como um boi,  entrou  a  fazer  coisas  de  criança:  ficou  logo  meia  lesa  e  capionga;  deu-lhe  para  imaginar, olhando para o tempo e querendo  sustentar capricho, mesmo depois de  haver sabido, pela Quinotinha, do aleive da Gabrina.         
  — E... depois?         
  — Depois?... Entrou a repetir que nada tinha feito em seu favor, que a mim,  somente a mim, se devia tudo, quando foi  ela que me deu o dinheiro para a Rosa  Veado rezar o respônsio.          
  — Que pretende ela fazer agora?          
  — Diz que espera poder ir, em breve,  para as praias, logo que a mãe possa  viajar.          
  — Sempre essa idéia.         
  — Teimosa é ela. Isso é verdade.        
  — Sabe, Teresinha? Ainda estou meio encandeado e parece um sonho estar  livre daquele inferno. Toda essa gente a andar aqui pela rua, a me olhar espantada,  causa-me tonturas. Como que me falta o chão debaixo dos pés.          
  — Isso passará...          
  — Tenho, aqui no nariz, o fedor da cadeia, a inhaca dos presos. Que horror!  Cem anos que eu viva, nunca esquecerei esses dias de martírio.           
  Alexandre  falava  lentamente,  falava  fatigado,  com  profunda  impressão  de  mágoa no rosto macilento, que a barba crescida e inculta tornava ainda mais triste.  Queixou-se de dores ao lado direito, debaixo da costela mindinha, de falta de ar e de  uma tosse seca que o acometia quando respirava, mesmo a curto fôlego.   — Aquela cadeia — dizia ele — matou-me. Nunca mais hei de ter saúde.          
   A Comissão de socorros o recebeu com demonstração de compassivo afeto,  lamentando os vexames sofridos pela infame imputação. Foi-lhe pago o ordenado  integral:  e,  como  reparação,  teve  acesso  para  o  posto  de  administrador  dos  depósitos  de  víveres,  percebendo,  além  da  ração,  sessenta  mil-réis  em  dinheiro,  uma riqueza naqueles apertados tempos.         
  Teresinha  comentava  o  fato,  os  males  que  vêm  para  bem,  e,  logo,  achou  muito justo esse procedimento da Comissão; e, todavia, observava que o dinheiro  lhe não pagaria as ruínas da saúde, os incômodos e, mais que tudo, a vergonha de  ser  apontado  como  ladrão,  como  um  infame  que  havia  roubado  o  de-comer  dos  pobres  famintos,  para  saciar  vícios  abjetos,  tudo  por  causa  de  suspeitas  que  ela,  mulher  ignorante,  mal  sabendo  ler  por  cima  e  assinar  o  nome,  repelira  desde  o  primeiro  momento,  porque  o  coração  lhe  dizia  que  ele  não  tinha  cara  de  se  sujar  com  o  alheio.  Admirava  como  os  homens  da  justiça,  que  sabiam  ler  em  grandes  livros de letras embaraçadas, homens de óculos, que sabem tudo, não tinham logo  percebido  que  o  criminoso  não  era  outro  senão  Crapiúna.  Quantos  inocentes  não  estariam  pagando  culpas  alheias  por  causa  da  cegueira  da  justiça!  Quantos  não  ficam   livres   de   pena   e   culpa,   apesar   de   autores   de   crimes   escandalosos,  perpetrados perante Deus e o  mundo, à luz do dia, como aquele nefasto Bentinho  que matara Berto, como quem mata um cão, e apenas ficou recolhido alguns dias à  sala livre, por ser capitão e filho do maioral da terra!         
  E suspirou entristecida, sucumbida à dolorosa recordação do bárbaro amante,  arrastado pelo cavalo desembestado, deixando nos tocos, pedras e cardos, farrapos  sangrentos do corpo esfacelado. Aglomeravam-se retirantes à porta do armazém para verem Alexandre, cujo  prestígio  de  mártir  aumentava  com  as  novas  atribuições  de  administrador.  Uns,  sinceramente,  lamentavam  o  fato;  outros  o  adulavam  com  fingidas  lamúrias,  para  serem preferidos na distribuição de rações bem medidas, com lavagem, como eles  diziam,  porque  outros  empregados  de  coração  duro  mediam  farinha  e  feijão  sem  caculo, rapando a boca do litro, poupando, como usurários, os dinheiros do Governo  e o de-comer que a Rainha mandara dar de esmola aos pobres.         
   Alexandre procurou fugir à  curiosidade da multidão, recolhendo-se ao fundo  do armazém, onde ficou, apesar dos insistentes rogos de Teresinha para irem juntos  à   casa    de    Luzia,   que    estaria    ansiosa     por   vê-lo;    e,  como     ele   recusasse  obstinadamente, ela se despediu, enfadada, dizendo-lhe:        
  — Vou embora. Já que teima em não me acompanhar, irei  sozinha. Direi a  Luzia  que  você  está  doente  e  aparecerá  amanhã.  Não  falte,  não  negue  essa  consolação  àquela  pobre  criatura  que,  abaixo  de  Deus,  só  pensa  em  você,  seu  ingrato. Capricho não se fez só para mulheres.         
 — Pobre de mim.          
 — Pobre, não. Bata na boca. Diga rico, bem rico, porque uma prenda igual a  ela só encontram os afortunados. Você fala de farto. Os homens todos são assim,  cheios de luxos e desdéns quando são queridos. A demora é saberem que a gente  gosta deles: começam logo a botar cafangas.         
 — Diga o que quiser, Teresinha. Está no seu direito. Não me zango com isso,  nem exijo nada; basta o muito que tem feito por mim. Mas, não posso acreditar que  Luzia me queira, como você diz. Que faria no lugar dela?  — Cada um sabe de si e Deus de todos. Eu faria o que sempre fiz, e por isso  apanhei muito na minha ruim cabeça. Hoje, torço as orelhas, que não botam sangue.  Ah!  quem  ama  não  tem  tico  de  vergonha.  É  verdade  que  você,  agora,  está  melhorado de sorte, quase rico...          
 — Prefiro o trabalho na Ladeira da Meruoca, às vantagens que tenho aqui.      
 — Deixe-se de luxos. Veja se é ou não  como eu digo: este quer se meter no  cafundó da serra, a outra só pensa em sumir-se para o lado das praias.            
 Histórias!... O que vocês querem sei eu... Deixa-me ir que é quase de noite...  Até amanhã... Veja bem, seu Alexandre, o que me prometeu!... Até amanhã... Agora  vá fazer feio comigo...     

 CAPÍTULO  XXIII           
 
 Nunca estivera Luzia mais atenta, mais solícita na ocupação de diretora das  meninas costureiras. Fingindo     indiferença  aos  comentários   e   informações,  resmungados de grupo em grupo, sobre o extraordinário caso do dia, às perguntas  indiscretas,     alheia     aos     gracejos   inofensivos,   levemente   maliciosos,  das  companheiras de trabalho, respondia com meias palavras, com evasivas curtas de  quem   se   não   quer   importunar   de   olhares   impertinentes,   de   mexericos,   de  insinuações.  Mas,  as  meninas  mais  taludes  cochichavam  a  respeito  da  mestra;  trocavam  gracejos  contemplando-a,  de  soslaio,  muito  espantadas  de  que  ela  não  acompanhasse o contentamento dos amigos de Alexandre, que eram, então, muitos,  quando devera ser a mais interessada no desfecho do aleive urdido pelo celerado  Crapiúna.         
  Notava-se-lhe, no entanto, certo cuidado excepcional no arrumo dos cabelos  em grossas tranças luminosas, dum brilho  escuro de cobras negras, a escolha do  vestido   de   chita   cabocla,   guarnecido   de   rendas,   e   as   posturas   faceiras,   a  disfarçarem o alvoroço do coração. Seus  olhos, onde brilhavam lampejos fugaces,  se fitavam, a curtos intervalos, na foz da larga estrada da cidade, e seus ouvidos,  com  avidez  aguçado,  colhiam  frases  soltas,  palavras  esparsas  dos  trabalhadores  que chegavam, e traziam notícias últimas dos últimos acontecimentos.          
  — Estive na Casa da Câmara — dizia um — Tem gente que faz medo. A sala  estava atopetada, e os soldados não deixavam mais entrar o povo que se espalhava  por fora, pela escada do rendengue abaixo, até à rua. Ouvi dizer que a Chica Seridó  contou tudo...          
 — Eu vi o Crapiúna — afirmava outro — Estava como uma onça acuada. Os  olhos pareciam duas brasas.         —  Não  viste  a  Gabrina?  —  inquiriu  uma  mulher  —  Pois  eu  tive  pena  dela.  Fazia apertos no coração. Tão moça, tão bonitinha e faceira e implicada na história  do  roubo.  Eu,  Deus  me  livre  de  tal,  se  me  visse  em  semelhante  vergonheira,  era  capaz de morrer.         
 — Foi sempre uma desmiolada — acentuava uma velha - Conheço-a desde  menina. Era um diabinho em figura de gente. Também a mãe, Deus perdoe os seus  pecados, não se importava com ela; fazia-lhe todas as vontades... Sempre digo que  essa criação d"agora não presta. Filhos muito senhores de si, por qualquer descuido,  se  desgarram.  Os  meus  não  punham  pé  em  ramo  verde.  Muito  amor,  mas  muito  respeito e cabresto curto.          
 —  Nestes  tempos  de  miséria  —  ponderou  um  carpinteiro  idoso  —  ninguém  tem  folga  para  cuidar  da  criação  dos  filhos.  Vão  se  criando  ao  Deus-dará,  como  filhos de pobre.          
 —  Os  mais  bem  criados  não  estão  livres  de  uma  desgraça.  Não  valem  cuidados, nem vigilâncias; a miséria entra pelas gretas das fechaduras, empesta o ar  e tira o juízo.          
 —  Quando  saí  —  informou  um  recém-chegado  —  a  Chica  ainda  estava  falando.  Ela,  que  tem  partes  com  o  demônio,  estava  se,  vendo  para  explicar  a  embrulhada das sacas de feijão e de farinha  recebidas de Crapiúna, os cortes de  vestido e os brincos de oiro. Imaginem vocês que aquela inocente, passada pelos  corrimboques, não maldou. Se eu fosse delegado, ela ia, mas era pra cadeia, para  não se fazer de besta, pensando que os outros têm um tê na testa.          
 — Ladina como ela só... Quem a ouvir, não a leva presa.            
  Luzia não perdia uma sílaba do que se dizia. Colhia, aqui e ali, fragmentos de  narrativas, observações, notícias incompletas, que devorava na ânsia de saber tudo,  principalmente o que concernia a Gabrina e a Alexandre, de quem não haviam ainda  falado. E Teresinha? Onde se metera? Por onde andava que não vinha para dar-lhe,  como  prometera,  informações  seguras,  anunciar-lhe  a  feliz  nova  da  libertação  do  preso, ou trazê-lo?         
  Correram horas de ansiedade, da pungente tortura de esperar, suportada de  rosto sereno, onde não havia uma contração de impaciência.          
  As  sombras  informes  da  penitenciária,  das  grandes  paredes  de  andaimes  complicados, se alastravam pela encosta do morro; o anilado perfil das serranias se  esfumava em turva neblina de mormaço, e a viração, caída como um hálito de febre,  revolvia  o  pó  em  torno  das  moitas  mortas,  rugia  nas  palhas  dos  alpendres  e  barracas, anunciando o pendor do sol para o ocaso flamejante.        
   Do  alto  do  morro  ela  divisava  a  faixa  de  oiticicas  seculares,  marcando  o  contorno  do  leito  do  rio  estanque,  e  a  cidade,  como  um  enorme  crustáceo  farto  à  sesta, as torres da matriz alvejando em plena luz, o vermelho, o vasto telhado da  casa da Câmara, no qual, tanta vez, demorara o olhar saudoso e compadecido do  homem querido, sofrendo, ali, aviltante prisão, e donde ela, enternecida, esperava,  agora, ver alar-se o anjo da esperança triunfante. Mas, não partia de lá, nem o eco  de uma voz de alvíssaras, nem um sinal auspicioso animava a paisagem, tocada de  tons quentes de brasa, numa imobilidade de coisa morta, num silêncio triste de sítio  desolado, quando ela desejava que a natureza, as coisas vivas, as coisas mortas  participassem da sua ansiedade, do seu desejo quase raro, quase ignorado.       
   As  meninas  cosiam,  diligentes,  agrupadas  em  derredor  da  mestra,  numa  garrulice  de  passarada  inquieta.  ranchos  de  operárias  davam  a  última  demão  ao  trabalho  do  dia;  retirantes  fatigados  da  derradeira  caminhada  se  aliviavam  das  cargas de material, e os feitores contavam e notavam em cadernos apolegados, o  pessoal que vinha chegando lentamente.          
 Apareceu por último, Raulino, rúbida figura de bretão, muito alto, muito magro,  de músculos túmidos, os revoltos cabelos  ruivos  empoeirados,  erguidos  em  trunfa  sobre a fronte tostada.         
  — Então? — inquiriu Luzia, erguendo-se a encontrá-lo.         
  —  Está  solto.  Não  o  vi,  porque  havia  gente  como  formiga  defronte  do  armazém.  Teresinha  saiu  com  ele.  Estava  desfigurado,  dizem,  como  quem  se  levanta da cama de moléstia maligna. Credo! Parecia um defunto em pé.          
 — Não falou com ele?          
 — Fiz o possível; mas tinha pressa de chegar aqui antes do ponto.          
 — Está mesmo livre. Não é, seu Raulino?         
 —  Tão  livre  como  eu,  que  lhe  estou  falando.  Também  não  foi  sem  tempo,  porque  se  o  pobre  ficasse  mais  alguns  dias  na  cadeia,  talvez  fosse  desta  para  melhor. Saía dali para a cova.         
 — E agora?...          
 —  Agora...  é  cuidar  da  saúde,  e  trabalhar.  Pobre  não  tem  direito  de  ficar  doente. Barco parado não ganha frete...         
 — Acha que ficará bom?          
 — Alexandre é rijo e moço. Com alguns dias de ar livre, fica capaz de outra,  do que Deus o livre. Aquilo é madeira de lei; o cupim da moléstia há de custar a roê- la.         
 — Ainda bem.           
 Luzia voltou-se para as meninas, e ordenou-lhes que dobrassem as costuras,  embora não soasse ainda a hora de terminar a tarefa. Pensou, então, em abandonar  o  trabalho,  voar  a  casa,  onde,  talvez,  a  estivesse  Alexandre  esperando,  ansioso.  Mas, primeiro a obrigação, o cumprimento do dever remunerado pelo pão de cada  dia. E ficou, aparentemente, calma, resignada à lentidão do tempo, porque o sol, que  o governava, como que havia parado, desceu escandecido, na calma imensidade de  oiro alastrado. Dona      Inacinha     errava,     rabujenta,     entre     as   turmas      de    costureiras,  resmoneando censuras graves, cheias de desgosto.            
 — Tudo muito mal feito, obra albardeira, mal-acabada e feita à pressa: não  paga o pirão que custa.         
 — Vocês mesmo — continuava, com asperezas fanhosas de voz, traindo a  irritarão  incoerente  de  celibatária  —  não  se  emendam.  O  que  lhes  digo  sobre  o  serviço  entra  por  uma  orelha,  e  sai  pela  outra.  Estas  costuras  encardidas  bem  mostram que foram feitas por porcalhonas. Vejam as da Luzia. Dá gosto lidar com  uma  pessoa  assim  cuidadosa  e  cumpridora  dos  seus  deveres.  Os  pospontos  parecem feitos por máquina. Vocês me põem doida. Estou vendo a hora de perder a  paciência e o juízo. Se vivem grazinando na conversa, em vez de olharem para o  que estão fazendo.        
   E  mais  rubro  se  acendia,  riscado  de  veiazinhas  tensas,  o  grande  nariz  da  beata, montado de grandes óculos cintilantes.          
 Quando  chegou  a  turma  de  Luzia,  estranhou  que  as  peças  costuradas  já  estivessem todas arrumadas em pilhas.           
 — Como? Tão cedo, e já acabada a tarefa?          — É que eu — observou Luzia, enleado — desejava sair hoje mais cedo...             Por que não me disse há mais tempo? Pode ir. Você merece contemplações.  Dá conta do serviço, como uma moça de vergonha.          
 Acrescentou  depois,  sorrindo,  com  ironia,  e  cravando  nela  os  pequeninos  olhos maliciosos:            
 —  Hoje  é  dia  grande  para  você,  sua  sonsa.  Já  me  disseram:  sei  tudo.  Vá,  ande, e seja bemsucedida. Como é para bom fim, não me importa de dar-lhe um  suetozinho...             
  Luzia corou; agradeceu o favor, e partiu veloz, açoitada pela ventania morna e  violenta  que  lhe  relevava  as  formas,  colando-lhe,  como  uma  túnica  de  estátua,  o  vestido ao corpo, mal disfarçando os graciosos contornos, modelados por inspirado  escopro.         
  O  coração  pulsou-lhe  inquieto,  ao  avistar  o  tecto  da  casinha,  vergando  ao  peso  das  telhas  enegrecidas  pelas  intempéries,  deslocadas  pelos  tufões.  Naquele  abrigo, onde gemia a  mãe doente, e que ela amava como lugar do sofrimento dos  fortes  resignados  e  dos  crentes;  naquele  sítio,  onde  Alexandre  lhe  propusera  viverem eternamente juntos, ligados pelo  mesmo afeto espontâneo e sincero, e lhe  dera os cravos vermelhos que lhe haviam envolvido o coração com raízes vigorosas,  e  o  inebriaram  com  o  seu  perfume  suavíssimo;  sob  aquele  tecto  velho,  a  vacilar  sobre   as   forquilhas   de   aroeira,   passara   dias   de   amargura,   noites   de   vigília  torturantes, e os momentos mais venturosos de sua existência humilde, ignorada; e  ali,  àquela  hora  melancólica,  contrastando  com  as  pompas  deslumbrantes  do  crepúsculo, encontraria a satisfação dos seus supremos desejos.          
  Exausta  da  caminhada,  estacou  para  tomar  fôlego  e  consertar  as  vestes,  como quem se aparelha para um lance de efeito. Prosseguiu, lívida e trêmula, com  precauções de menina criminosa na iminência de castigo merecido.        
   A latada do alpendre estava deserta. Sobre a trempe fumegava uma grande  panela de barro. Os utensílios domésticos estavam arrumados no jirau. O silêncio,  um silêncio triste de abandono, era interrompido pelo queixume triste dos ganchos  de  ferro,  donde  pendia  a  rede,  em  que  a  mãe  se  baloiçava,  defronte  da  porta  do  quarto escancarada.           
  —   Que   é   isto?   —   perguntou-lhe   a   velha   —   Supus   que   viesses   com  Alexandre...         
  — Não — respondeu ela. — Vim do morro.          
  — Não foste à cadeia?          
  — Fui trabalhar.          
  — Que modos, filha? Esperava ver-te alegre e ditosa...         
  — Quem sou eu para merecer tanto?          
  — Tens alguma coisa? Estás cansada, não é?... Sempre digo que te matas  sem proveito com os teus excessos de labutação.         
  — Teresinha não apareceu?          
  — Não.          
  — Sabe que Alexandre já está livre?          
  — Deus seja louvado!         
  —  Agora  vamos  cuidar  de  nós  —  concluiu  Luzia,  atirando  o  manto  branco  sobre a corda atravessada ao canto do quarto. E, voltando ao alpendre, tratou do  jantar da doente, que a seguia com os olhos carinhosos, olhos de mãe.          
 —  Bem  mereço  este  castigo.  Sou  eu  a  culpada.  Abandonei-o  por  soberba,  capricho...  Teve  razão.  Não  devia  perguntar  por  mim  —  murmurou,  enchendo  de  caldo  a  tigela.  —  Eu,  no  lugar  dele,  não  viria  atrás  de  uma  ingrata  feroz...  Ah!  os  homens nada desculpam; não  perdoam... São vingativos porque não são capazes  de querer bem como nós, que, por eles, esquecemos tudo...         
  —  Que  tens,  filha?  —  repetiu  a  velha,  recebendo  o  caldo  fumegante.  —  Choraste?         
  — Não — respondeu ela, a voz salteada, comovida. — É a fumaça que me  faz arder os olhos...            
  E   sentou-se   à   soleira   da   porta,   desmanchando,   lentamente,   as   bastas  tranças, do lustre fulvo da asa da caraúna, as tranças que vendera por causa dele,  dessa  criatura  ingrata,  que  os  seus  olhos,  flébeis  de  decepção  e  de  saudade,  procuram, em vão, topar, de súbito, surgindo onde o caminho torcia, encoberto de  moitas mortas de mofumbas e juremas, a cujos galhos, desordenadamente hirtos,  contorcidos, a ventania vultarna dava movimento, gestos de aflição, nuns silvos de  estertor.      

CAPÍTULO  XXIV            

  Separando-se  de  Alexandre,  Teresinha,  começou  de  sofrer  a  extenuante  reação  do  esforço empregado  para  salvá-lo.  Essa  generosa  empresa,  que  a  seqüestrara à influência deletéria dos hábitos de viciosa passiva, que lhe despertara  afetos adormecidos no coração, encrostado ao atrito do infortúnio e lhe deparava a  inefável satisfação de ser útil, fora, muitos dias, o pólo da gravitação do seu espírito.  Nesse período de agitação do cérebro ocioso e vazio, ela só pensava na iniqüidade  do constrangimento de um inocente, no martírio da enxovia imunda, na arrogância  petulante de Crapiúna e no cruel insulto, que a chicoteara como um relho. Alcançado  o  anelo  de  justiça  e  vindita,  parecia  faltar-lhe  a  razão  de  viver.  As  pétalas  de  sua  alma, sob um fino, um suave orvalho do bem, se contraíam tristonhas, como folhas  que,  saciadas  de  luz  e  oxigênio,  se  encolhem  para  adormecerem  ao  avizinhar  da  treva,  e  se  expandem  viçosas  ao  raiar  da  seguinte  aurora.  Ela,  porém,  se  sentia  sepultada em noite sem esperança de alvorecer, sem o consolo delicioso do sonho a  doirar a ignomínia da realidade, onde imergira, como num tremedal de lama gulosa.         
  Restava, entretanto, o remate da obra meritória, a felicidade de Alexandre e  Luzia;  vê-los  casados,  muito  amigos  um  do  outro;  e  fruir  o  saboroso  quinhão  de  ventura do lar abençoado. Mas, os dois pareciam separados pela teia de aranha de  melindres  fúteis  ou  amarrados  ao  poste  de  caprichos  injustificáveis.  Seria  mais  nobre,  mais  humano,  se  estreitarem  em  decisivo  amplexo,  como  faria  ela,  sem  ponderar    conveniências,  escrúpulos,  circunstâncias, num arroubo  de   paixão  vitoriosa.          
  As  reservas  de  Luzia  irritavam-na  como  estulta  resistência.  E  murmurava,  caminhando  a  esmo,  injúrias  contra  ela,  recriminações  a  Alexandre,  um  mazanza,  que ficava no armazém embiocado de fadiga, quando a liberdade e o amor deveriam  restituir-lhe  as  forças,  dar-lhe  asas  para  voar,  como  um  passarinho  evadido  para  junto da criatura querida.           
   —  Arre  lá!  —  exclamava  indignada  —  Que  se  arranjem,  que  se  separem,  cada um para o seu lado. Que me importa!... Bem-querer não é obrigado, nem eu  tenho nada com isso. Eu me intrometi demais em negócios alheios... Chega a meter- me raiva tamanha cerimônia entre pobres diabos, que não têm onde caírem mortos,  quanto mais vivos...            
  Considerava depois, que não mudaria o seu destino se eles fossem felizes.  Ela  seria  esquecida,  porque  o  dia  do  benefício  é  véspera  da  ingratidão.  Na  embriaguez  de  gozos  divinos,  não  se  lembrariam  dela  que  havia  sofrido  por  eles;  não teriam uma palavra de dó da pobre Teresinha, mulher à-toa, desprezada como  vil  trapo  humano,  atirado  ao  monturo  dos  resíduos  sociais,  vagabunda  sem  rumo,  sem triste vintém para comprar um bocado, carecendo de tudo e não sabendo onde  buscar cinco patacas do aluguel do quarto, abandonado, havia mais de mês.          
  A recordação dessa dívida, surgia a horrível idéia de ser forçada a volver ao  poste  da  infâmia,  onde  passara  noites  acocorada  à  soleira  da  porta,  fumando  cigarros, mutuando gracejos torpes com as vizinhas; ou, solitária, bocejando, a lutar  com o sono, aguardando o inesperado amante, que a provasse de alimento para o  dia seguinte deixando-lhe o  imundo bafio hircico de homem luxurioso, impregnado  na sua pele. Vinha-lhe, então, invencível nojo à passividade abjeta de coisa que se  vende, tábua de lavar roupa, como dissera Crapiúna; assaltava-a o terror de volver  àquele lamaçal infecto, como se o contágio da pureza, o exemplo da honestidade  impoluta e forte, em combate com a miséria, lhe houvessem infundido no coração,  fechado aos afetos sãos e benfazejos, um nobre impulso de amor-próprio. Faltava- lhe, porém, coragem para resistir ao pendor criminoso, volver a trabalhar como as  outras  desgraçadas,  nas  obras  da  Comissão,  carregar  água,  tijolos,  areia.  Que  poderia  fazer  para  ganhar,  além  da  ração,  algum  dinheiro,  uma  criatura  franzina,  desacostumada   a   esforços   musculares,   e,   por   cúmulo   de   males,   aberta   dos  peitos?...            
  — Como há de ser, Deus do céu? — exclamava, aflita — Como hei de viver  agora, sozinha, sem parentes e aderentes nessa desgraceira!...             
  E seguia, lentamente, na direção da casa de Luzia, contornando os quintais e  as  casas  extremas  da  cidade,  para  evitar  o  trajeto  nas  ruas  cheias  de  gente,  mendigos, enfermos e a praga de meninos esfomeados.          
  Na várzea, varada de trilhos claros que riscavam o chão negro, ela encontrou,  àquela triste hora da tarde, magotes de retirantes, cobertos de pó, marchando em  filas tortuosas, das quais, como de um rastilho de suplício marcado pelas vítimas, se  destacavam indivíduos ou famílias, que paravam emaciados, rendidos de cansaço e  se sentavam para repoisarem, recobrarem alento e comporem os andrajos, antes de  penetrarem na cidade.         
  Esse   espetáculo   de   todos   os   dias,   na   sua   monotonia   sinistra,   não   a  impressionava mais, porque se habituara à vizinhança da miséria nas formas mais  lúgubres  e  vis.  Vira  crianças,  a  sugarem  os  seios  murchos  das  mães  mortas;  cadáveres desses entezinhos abandonados sobre a estrada, devorados por urubus  e  cães  vorazes:  criaturas,  ainda  vivas  e  exangues,  torturadas  pelas  bicadas  de  carcarás a lhes arrancarem, aos pedaços, as carnes ulceradas e podres. Vira mães  desnaturadas ocultarem em crateras de formigueiros, o fruto de amores criminosos,  ou  traficarem  com  filhas  impúberes;  pais  desalmados,  incestuosos  e  delinqüentes  dos  mais  torpes  crimes,  como  se  o  concurso  de  todas  as  dores  e  de  todas  as  baixezas,      condensando-se         em    enorme       e   fantástico     suplício,    os   houvera  transformado   em   monstros   hediondos,   rebalçando-se   em   lances   trágicos   de  ferocidade   inconsciente.   Diante   dela   haviam   tombado,   fulminados   pela   fome,  indivíduos de aparência sadia e robusta, estrebuchando no chão como epilépticos a  tragarem  terra  aderente  aos  dedos  sangrentos  e  blasfemarem  contra  o  Deus  impassível  que  os  desamparava,  os  renegava  filhos  pecadores,  condenados,  em  vida, às torturas daquele inominável inferno da miséria.         
  Milhares de criaturas haviam sido provadas nesses transes inenarráveis; no  entanto, ela  havia  apenas sofrido  o   ferrete    da    ignomínia.  Era, pois,  incomparavelmente,  mais  feliz  que  aqueles  pobres  alquebrados,  que  passavam  lentamente, restos de uma raça de trabalhadores heróicos e fortes, desbaratada sob  o látego do castigo do céu. Se devia cair mais, descer mais fundo no sorvedoiro da  infâmia, padecer como aqueles mártires, desejaria ser levada por uma moléstia para  a vida onde ninguém sofre.         
  A  sua  imaginação  desvairada  volviam,  com  esses  pensamentos  tristes,  as  figuras  de  Alexandre  e  Luzia:  ela  caminhando  para  a  praia,  confundida  no  êxodo,  conduzindo  a  mãe  estropiada;  ele,  feliz,  bem  colocado  no  emprego  e  apoiado  na  confiança  dos  Comissários.  E  não  se  conformava  com  o  romance  passional  sem  desenlace, empatado pelo egoísmo de ambos.          
  Desviando-se,   insensivelmente,   Teresinha   foi   ter   ao   sobpé   da   encosta  íngreme cerrada pelos rochedos, chamados Fortaleza, nos quais terminava o renque  de casas da Leonor, onde morava Rosa Veado. Aí o caminho, que era uma breve  ladeira cavada entre pedrouços, estava obstruído por um grupo de três indivíduos,  uma   família   que   subia   a   passo   tardo,   tangendo   um   velho   burro,   pelado   e  esquelético, carregando duas malas e, no meio da carga, os utensílios domésticos e  o  oratório  de  cedro  envernizado,  cheio  de  santos.  Um  velho,  de  longas  barbas  brancas,  puxava  o  animal  pelo  cabresto;  ao  lado,  ia  a  mulher,  também  idosa,  de  formas  cheias;  atrás,  marchava  uma  rapariga  loira,  de  corpo  franzino  e  flexível,  acusando  o  despontar  da  adolescência.  O  burro,  de  grandes  orelhas  bambas,  vacilava  a  cada  passo,  e  era  animado  pelos  seus  condutores  com  palmadas  carinhosas  nas  ancas,  estalidos  de  lábios  soando  como  largos  beijos,  e  vozes  de  estímulo. Mas o mísero bufava, arquejava, e mal se podia equilibrar sobre as patas  corridas de suor, trêmulas, hesitantes.           
  —  Que  maçada!  —  resmungava  Teresinha,  obrigada  a  seguir  o  moroso  grupo, parar quando ele parava, a marchar com ele, bem chegada à mocinha loira —  Esta só a mim acontece...        
    Entretanto, o animal, vergado de fadiga, tirava-lhe funda piedade. O oratório,  encimado  pela  pequena  cruz  singela,  a  balançar  surgindo  dentre  o  amarrado  de  cordas de crina, evocava meiga saudade, fantasmas de anjos esvoaçando através  de   sua   memória   obscurecida,   recordações   vagas,   místicas   comoções,   talvez  provocados  pela  parte  dos  santos  no  infortúnio  dos  adoradores,  aquela  família  de  crentes, que não os abandonava, como tutelares do lar vazio.          
  —  Vamos,  vamos!  —  dizia  a  mocinha  ao  animal  —  Caminha  mais  um  bocadinho; estamos quase em riba.             
  Essa voz tinha sonoridade consoante às recordações de Teresinha; era a de  uma pessoa querida, morta, ou, havia muito, ausente, depois de feliz encontro na  sua carreira aventurosa pelo mundo. Quem seria? Onde ouvira falar aquela criatura,  que  lhe  alvoroçava  o  coração?  E  à  revolta  contra  o  obstáculo,  sobreveio  intensa  curiosidade de ver a mocinha, de saber quem era.          
  O burro, com supremo esforço, deu mais alguns passos e chegou ao cimo da  pequena  ladeira,  junto  dos  grandes  molhes  de  granito  retangulares  e  erguidos  a  prumo,  como  ameias  de  uma  fortaleza. Aí,  como  se  houvesse  esgotado  o  alento,  vacilou,  respirou  com  força;  soltou  um  surdo  gemido  doloroso  e  caiu  aniquilado,  contemplando com os grandes olhos súplices, o velho que puxava o cabresto para  lhe suspender a cabeça, ao passo que a moça tentava erguê-lo pela cauda.            
  —   Aliviemo-lo   da   carga   —   ordenou   o   velho   —   Está   afrontado,   pobre  Macaco... Também há três dias que nem retraços tem comido.            
  O caminho estava desobstruído e franco; mas Teresinha apiedada do pobre  animal,  estacara  trêmula  e  lívida,  cosida  aos  rochedos,  numa  postura  de  horror,  pregando o olhar esgazeado no grupo sugestivo, a poucos passos de distância.             
 — Macaco! Será possível! — gaguejou ela, espavorida.             
 Vendo-a ali parada, a mocinha se dirigiu a ela:             
 — Minha senhora, faça a esmola de nos dar uma mãozinha para tirarmos a  carga daquele pobre.          
 — Maria da Graça! — bradou Teresinha.          
 — Sra dona conhece-me? Minha Nossa Senhora!... É... é...             
  Maria recuou, transida de susto, mal confiando nos seus olhos.             
 — Que é?... — perguntaram, a um tempo, os dois velhos, muito empenhados  em tirar o oratório de cima do burro, imóvel, estirado no chão.            
 — É... é a Teresa — respondeu a mocinha, com um grande gesto de espanto.           
 —  Teresa!  Minha  filhinha!...  —  exclamou  a  velha,  num  grito  de  surpresa  alegre, no qual retumbava a ternura toda do coração de mãe. — Tu!... tu aqui?           
   E,  atirando-se  à  filha,  enlaçou-a  nos  braços,  beijando-a  com  apaixonado  frenesi  na  face,  na  fronte,  nos  cabelos,  como  quem  sacia  longa  e  cruel  sede  de  amor.          
 Hirta  e  gelada,  desfigurado  o  rosto  por  violentas  contrações  de  estupor,  e  lívida como um morto, Teresinha não pôde fazer um gesto; mas, a carícia maternal  lhe agitava todas as febras do coração, e todo o seu corpo tremia convulsionado. Só  os olhos espantados, viviam, cintilando com uma lucidez ingênita.           —Teresa,  filha  da  minha  alma,  —  continuou  a  mãe  —  Deus  te  abençoe!  Minha Virgem Santíssima, é ela mesma!... Seu Marcos, veja, é a nossa filha!...                  
  O velho erguera-se. As grandes barbas, alvejando à luz do sol poente, davam  venerando  relevo  ao  esquálido  rosto,  macerado,  tostado  pelo  mormaço  do  sertão.  Os pequenos olhos azuis, de um azul de céu empoeirado de neblinas, brilhavam no  fundo das órbitas sombrias, com um bruxuleio de lâmpada de santuário. Na postura,  nos andrajos e na voz soturna e firme, corporizava a nobreza da miséria da miséria  superior.            
 — Teresa de Jesus! — murmurou ele, com um suspiro, que lhe assomou aos  lábios,  como  um  silvo  de  tormenta  —  Já  pedi  a  Deus  que  perdoasse  os  seus  pecados. Estes santos, que nos acompanham, sabem que rezei por ela, como um  pai reza por uma filha ingrata, perdida e morta.          
  Ao choque destas palavras de condenação  implacável, Teresinha cambaleou,  e caiu prostrada de dor, nos braços da mãe angustiada.           
  Maria  da  Graça  contemplava,  muito  aflita,  o  pai  e  a  mãe,  e,  no  transe  incompreensível, considerava a intensidade da cena, dolorosa, inconsiderável.           
  —  É  nossa  filha,  seu  Marcos  —  continuou  a  velha,  acariciando  a  filha  e  conchegando-a ao seio. — Tenha dó dela, meu marido do coração! Veja como está  acabada a nossa filhinha!...       
  —  Você  sabe,  mulher  —  gemeu  Marcos  —  que  já  padeci  por  ela  todas  as  dores deste mundo...          — Também ela tem sofrido... É uma infeliz...         
  — Infeliz! Assim foi de sua vontade...          
  — Seu Marcos...          
  — Sabe que mais, mulher? Vamos cuidar deste pobre animal, nosso amigo  velho,  que  não  nos  abandonou  e  está  aqui  morrendo  por  nossa  causa  ...  Ah!  os  bichos têm, às vezes, mais coração que as criaturas.     —   Meu   pai!   —   soluçou   Teresinha,   como   se   as   duras   palavras   lhe  estrangulassem as entranhas.             
  Ele,   porém,   parecia   intangível.   A  súplica   da   filha,   queixumes   de   alma  penitenciada a estorcer-se no silício da vergonha não ecoou no coração, donde ele  arrancara,  num  paroxismo  de  opróbrio,  a  poluída  imagem  da  pecadora,  que  não  podia volver a profanar o tabernáculo do culto incondicional à honra e à integridade  da  família.  No  peito  lhe  ficara  um  buraco  lúgubre,  o  ninho  vazio  transformado  em  cova, encerrando, para sempre, um sublime afeto estiolado.          
  A  um  gesto  imperativo  do  pai,  Maria  da  Graça,  despertada  da  estupefação  que  lhe  gelava  o  sangue  nas  veias,  o  ajudou  a  desatar  a  trouxa  de  redes,  as  azenhas dos dois baús, cobertos de coiro cru e tauxiados de pregos doirados e, por  último, as cilhas da cangalha  que, retirada do suarento dorso do burro, lhe expôs as  mataduras  da  espinha,  as  chagas  rubras  dos  omoplatas,  sobre  as  quais  vieram  adejar, zumbindo, grandes varejeiras, de asas nacaradas e revestidos de cintilantes  coiraças,  oxidadas  de  verde  metálico.  No  espaço  voavam,  em  largas  espirais,  urubus famintos, dos quais alguns mais ousados se despenhavam, de asas quase  fechadas, até perto dos rochedos, onde poisavam, aguardando o abundante repasto  da carniça ainda viva.           
  Macaco,  aliviado  da  carga,  tentava  erguer-se  sobre  as  pernas  dianteiras,  rolando um olhar de terror para os lúgubres pássaros, que pontuavam de negro as  arestas das rochas, mas, faltavam-lhe as forças e recaia ofegante.                  
  — Se ao menos — dizia Marcos — houvesse por aqui uma pouca d"água e  alguns retraços...           
   Clara, indiferente à sorte do animal, acariciava e consolava a filha desditosa:            
  —  Tem  paciência,  meu  coração.  Teu  pai  tem  ímpetos  de  crueldade,  mas  passam, porque a alma é de oiro. Coitado! Sofreu tanto por ti...          
  — Tem razão... tem razão, mamãe — gemia Teresinha. — Sou uma ingrata,  uma doida, mas... assim mesmo... não sou tão ruim que mereça menos compaixão  que este animal...            
   E entrou a chorar em convulsão, murmurando frases inteligíveis, que o pranto  e os soluços entrecortavam.     —  Seu  Marcos,  meu  marido  da  minha  alma  —  suplicava  a  mãe.  —  Tenha  pena desta pobre.       
   —  Ah!  Papai  —  balbuciou,  trêmula,  Maria  da  Graça  —  tenha  compaixão  dela... Coitadinha de Teresa...         
 — Era melhor — resmungou o velho, abalado pelas lágrimas da mulher e da  filha caçula, que era o seu ídolo.  — Melhor seria que essa mulher, em vez de estar  ai  a  chorar,  ela  que  conhece  a  cidade,  nos  ajudasse,  mostrasse  que  ainda  tem  préstimo...           
   Teresinha ergueu-se de repente; enxugou o rosto na saia e partiu. Sabia que  Rosa Veado morava perto, no renque de casas da Leonor, e foi procurá-la, seguida  pelos olhares da mãe e irmã, tomadas de surpresa, ao passo que o velho teimava  em reanimar o burro com palavras afetuosas.        
   Pouco     depois     ela    voltou,    trazendo     uma      grande     cuia    cheia    d"água...  Pressentindo  o  precioso  líquido,  Macaco  nitriu  surdamente,  como  se  sorrisse  de  satisfação;  ergueu  a  cabeça  e,  agitando  os  grandes  lábios  negros  e  ávidos,  a  sorveu, a longos, a ruidosos tragos.            
 —  Deus  lhe  pague  —  disse  o  velho,  restituindo  a  Teresinha,  cuia  vazia.  —  Disseram-me  que  era  possível  encontrar  aqui  uma,  pousada,  um  tecto  caridoso,  onde pudéssemos descansar da viagem através desse sertão ingrato.         
 —  Deram-me  —  balbuciou  Teresinha,  hesitante  de  medo  —  chave  daquela  casa,  a  casa  da  fortaleza,  onde  ninguém  mora  há  muitos  anos,  porque  é  mal- assombrada...          
 —  Virgem  Maria!...  Credo!  —  exclamaram  Maria  da  Graça  e  Clara,  numas  projeções espavoridas de olhos sobre a velha prumada, cujas paredes, esburacadas  e marcadas de grande reboco, pareciam apoiadas nos rochedos. Ervas morta das  goteiras  desdentadas,  donde  esguichavam  piando,  em  desordenado  vôo,  grandes  morcegos, estonteados pela tênue luz crepuscular.            
  Pouco depois, o grupo estava cercado de moradores da vizinhança, cada qual  mais  curioso  e  empenhado  em  socorrê-lo.  Vieram  em  seguida,  e  quase  sobre  os  passos de Teresinha, Rosa Veado e o Chico, um guapo tipo de homem; a Marciana  que  mantinha,  nas  proximidades,  uma  bodega  bem  sortida  e  possuía  já  algumas  libras de oiro em obra, comprado aos retirantes a troco de gêneros alimentícios; e,  esgueirando-se por entre os circunstantes, o bando infalível, barulhento de meninos,  os mais pequenos nus, os outros enrolados em trapos, em molambos.           
 —  Anda,  Francisco  —  ordenou  Rosa  ao  filho  —  dá  um  adjutório  a  estas  criaturas... Abre a casa; leva as malas...          —  Amanhã  —  exclamaram  os  meninos,  tripudiando  em  volta  do  burro  —  urubus têm festas! Este mesmo está aqui e está no céu das formigas!...            Rosa Veado tomou o oratório; beijou-o, com reverência, que outras mulheres,  outras devotas, imitaram, silenciosamente.            
 —  O  senhor  —  observou  ela  ao  velho  Marcos  —  tem  coragem.  Eu  não  passava a noite naquela casa amaldiçoada, nem que me matassem.          
 — Eu só tenho medo dos vivos — ponderou o velho.         
 — É que vossa mercê não sabe o que nela se tem dado, coisas de arrepiar  coiro e cabelo...         
 — Que me importa visagens e almas do outro mundo, ou artes do demônio?  Por ora, eu careço, que me arranjem alguma coisa para matar a fome deste animal...  
 — Não é difícil — atalhou Marciana. Mas, o senhor deve saber que o milho está pela  hora da morte...         
 — Ainda tenho meios, graças a Deus, e, além da paga, ficaria agradecido.          
  Marcos desatou da cintura uma faixa elástica, tecida de algodão, e tirou dela  alguns  patacões  de  prata.  A  vista  das  moedas,  desapareceram  as  hesitações  de  Marciana, que se desmanchou logo em cumprimentos e palavras de pesar pela sorte  da família e prometeu prove-la, sem demora, do necessário, preparando a casa mal- assombrada para aboletá-la com a possível comodidade naquela noite.        
  Não era raro aparecerem, entre os retirantes, famílias abastadas que haviam  abandonado  os  lares,  levando  dinheiro  e  jóias  sem  valor  por  não  terem  o  que  comprar, mesmo a preços exorbitantes.  Marcos, depois de inútil resistência, viu-se  nessa triste situação. De esperança em  esperança de mudança de tempo, vira os  gados morrerem nos campos devastados; consumira, com parcimônia cautelosa, as  provisões acumuladas, os surrões de farinha de mandioca, os paiós de milho, arroz  em casca e feijão; as matalotagens em salmoira ou empilhadas se esgotaram por  encanto, porque não tivera coragem de recusar esmola aos famintos que passavam  pela  sua  fazenda.  Os  vaqueiros,  agregados  e  pessoal  de  fábrica,  empregados  na  labutação de criadores e agricultores, na maioria escravos velhos e crias de casa,  não  tinham  que  fazer;  eram  bocas  inúteis.  Alforriou-os  deu-lhes  liberdade  para  ganharem a vida.          Cansado  de  resistir  e  lutar,  aguardando,  em  vão,  sinais  de  inverno,  viu-se,  afinal,  só,  sem  um  amigo,  um  companheiro,  um  vizinho,  numa  redondeza  de  dez  léguas,  exposto  aos  assaltos  de  bandidos,  que  enchiam  a  região,  e  resolveu  emigrar.  Arrumou  em  algumas  malas  o  indispensável,  a  roupa  da  família  e  algum  dinheiro, enterrando o resto  com a prataria, velha baixela e jóias numa brenha de  serrotes  ásperos  e  pedregosos.  Organizou  o  comboio  com  três  burros  e  outros  tantos  cavalos  de  sela,  e  partiu  na  direção  de  Sobral,  a  cidade  intelectual,  rica  e  populosa,   empório   do   comércio   do   norte   da   província,   na   qual   o   Governo  estabelecera opulentos celeiros.         
   Na  longa  e  penosa  travessia,  à  falta  d"água  e  pasto,  morreram  os  cavalos,  depois dois burros. Foi forçado a abandonar malas, reduzir as cargas a uma só para  que Macaco, o animal sobrevivente, a pudesse agüentar. Pela primeira vez na vida,  tiveram de viajar a pé, a curtas jornadas, para não fatigarem o animal e poderem  suportar, sem se estropiarem, a penosa marcha de exílio.         
   Muita  vez,  arranchados  à  sombra  de  oiticicas  frondosas,  oferecera  um  patacão  por  uma  cuia  d"água.  Os  raros  bebedoiros  subsistentes  ficavam  longe  da  estrada  real:  era  preciso  fazer  enormes  desvios  para  os  alcançar.  Cortava-lhe  o  coração  ver  a  filha,  a  meiga  Maria  da  Graça,  descorado  o  rosto  de  criança  na  moldura dos cabelos de oiro, rendido o frágil corpo, os pezinhos dilacerados pelas  agruras  dos  caminhos  e  veredas,  os  rubros  lábios  ressequidos  e  rachados,  as  entranhas devoradas pela sede, adormecer no regaço da mãe, também mortificada,  mas  resistindo  resignada,  com  esse  valor  divino  que  torna  invencíveis  as  mães  aflitas.          
  Ele sofria a tortura inigualável de não a poder socorrer, mesmo com o sangue  de suas veias; de pedir, em vão, ao céu luminoso, impassível, sorridente, a gota de  orvalho  que  alentasse  aquele  lírio,  nascido  nas  ruínas  de  sua  alma,  a  vergar  emurchecido, tostado pelo sol inexorável, quando, no delírio da febre, a pobrezinha,  com ânsia, balbuciava: "Água... água, papai!"; e ele via dos olhos da mãe, resignada  e  heróica,  a  implorar  misericórdia  ao  Deus  de  amor  e  justiça,  por  intercessão  daqueles santos companheiros de infortúnio, rolarem grossas lágrimas silenciosas.         
  Quando  algum  comboieiro  lhe  cedia,  de  graça,  a  metade  da  sua  borracha  d"água salobra, recusando a pródiga paga por não ter ânimo de vendê-la a cristãos,  Marcos,  superior  às  dores  físicas,  sorria  de  alegria  de  ver  saciadas  e  salvas  da  morte horrível as criaturas idolatradas e o fiel animal, e apenas umedecia os lábios e  sentia  alentarem-se-lhe  as  indômitas  energias  para  chegar  ao  termo  da  dolorosa  viagem pelo sertão combusto.           
  —  Deus  é  grande!  —  exclamava,  em  arroubos  de  fé  inquebrantável.  —  Coragem, mulher, ânimo filhinha!... Vamos para adiante, parar aqui é morrer!... Mais  alguns dias, estaremos salvos!...            
 A  salvação  estava  em  Sobral,  na   cidade  formosa  e  opulenta,  o  oásis  hospitaleiro anelado pelas caravanas de pegureiros esquálidos.         
 E  chegaram,  padecendo  todas  as  inclemências  da  jornada,  caminhando  à  noite  para  evitarem  a  torreira  do  sol.  Por  inculcas,  souberam  que  no  subúrbio  da  cidade,  poderiam  encontrar  um  
rancho,  modesto  abrigo,  onde  pudessem  esperar  dias menos aflitivos.       
   A  casa  mal-assombrada  era  quase  uma,  tapera.  O  repuxo  das  paredes;  os  esteios   esconsos,   cobertos   de   colmeias   abandonadas;   o   tecto,   velado   sob  empoeiradas colgaduras de teia de aranha; o telhado desfalcado, invadido de ervas  mortas; as portas emperradas e o chão, aluído por túneis de formigueiros, sinalavam  longo   abandono.  Essa   vivenda   maldita,   preservada   pela   superstição,   estivera  sempre  fechada.  Ninguém  lhe  conhecia  já  o  proprietário,  cujo  procurador,  morto  havia muitos anos, deixara a chave à custódia de Marciana.          
  Ao   penetrar   no   asilo   de   duendes,   onde   se   ouviam,   à   noite,   gemidos  lancinantes, rumores de correntes arrastadas assobios diabólicos, Rosa Veado, que  se  encarregara  de  prepará-la  para  aboletar  os  hóspedes,  persignou-se,  balbuciou  uma Ave-Maria e acostou-se às outras mulheres, apiedadas da família de Marcos.  Mal  acenderam  a  vela,  uma  coruja  espantada  esvoaçou,  gaguejando  pavorosa  gargalhada  de  louco,  e  enormes  vampiros  agitaram  a  luz,  o  ar  deslocado  pelo  remígio das grandes asas desvairadas.     — Credo! — gritaram as mulheres,  recuando de medo. — Te desconjuro, pé- de-pato!           
  Passado o susto, entraram e vasculharam, num instante, a sala, impregnada  de forte cheiro de estrume de morcego. Uma levou as redes e as atou aos cantos nos armadores enferrujados; outra  sobraçou, reverente, o oratória que foi colocado sobre uma das malas conduzidas  pelo Chico, que foi depois à venda da Marciana buscar um pote d"água e um caneco  de folha-de-flandres novo. Apareceu, por sua vez, a bodegueira, trazendo um bule  com café, três casais de xícaras de ruim  louça, esmaltada de flores vermelhas, um  pires  com  açúcar  escuro  mascavado,  e  algumas  roscas  e  bolachas,  duras  como  pedra.           
  — Aí está, seu capitão — disse ela a Marcos — Já tem onde encostar o corpo  e  o  que  foi  possível  arranjar  para  entreter  a  barriga.  Até  amanhã.  Vossa  senhoria  deve ter o corpo pedindo rede... Com Deus amanheça. Se precisar de alguma coisa,  é só bater na derradeira porta da esquina.           
  Marcos  contemplava,  penalizado,  o  burro,  que  Teresinha  alimentava  com  punhados de milho amolecido; tomou Maria da Graça pela mão, e recolheu-se.            
 — Vai dormir, filhinha...         
 — E mamãe?          
 — Está com a outra, tratando o Macaco. Virá mais tarde.          
   Clara  ficara  ao  lado  da  filha  infeliz,  amimando-lhe  os  cabelos,  dirigindo-lhe  palavras de amor e conforto, e recomendando-lhe que suportasse, com paciência,  as explosões da cólera paterna, até conseguir ser abençoada.                    
 —  Ele  tem  razão,  mamãe  —  balbuciava  a  moça,  com  voz  embargada  pelo  hercúleo esforço para conter o pranto. — É o castigo, castigo merecido pelos meus  pecados, que são muitos. Não peço que me perdoe, mas tenho padecido tanto com  o abandono, que não poderei mais viver sozinha no mundo. Rogue a papai que não  me  bote  para  fora  de  casa.  Embora  não  me  tenha  mais  como  filha,  porque  morri  para ele, deixe que eu fique, como negra cativa. Tratarei o Macaco, carregarei água,  tomando conta da cozinha, da roupa, pois não me desprezo de fazer todo o serviço.          
 —  Sei  que  não  és  má,  filha  do  coração.  Foi  aquele  malvado,  meu  Deus  perdoai-me,  que  te  botou  a  perder...  Eras  uma  criança...  
 —  Não  o  culpe,  mamãe.  Cazuza era bom e me quis bem até morrer. Só depois de ficar sem ele foi que me  senti na desgraça, por não ter vivalma caridosa que me amparasse.        
 — Por que não voltaste?          
 — Tive medo e... vergonha. Faltou-me coragem para afrontar a ira do papai...          
  Passaram as duas horas conversando, e alimentando, aos poucos, o precioso  muar  desfalecido.  Por  fim,  teve  Clara  de  obedecer  aos  repetidos  chamados  do  marido para não o exasperar.            
  — Anda — disse ela. — Teu pai já está impaciente. Vem comigo.          
  — Não preciso de descanso. Vá, mamãe, que ficarei vigiando este pobre.           
   Clara  imprimiu-lhe  na  fronte  um  longo  beijo,  e  partiu,  murmurando:  Pobre  filha! Deus te abençoe. Parece que lhe quero ainda mais por ser infeliz.  O rígido velho, curtido de preconceitos e fechado o coração nas resoluções  inabaláveis, como num túmulo, não podia conciliar o sono. A espaços, erguia-se da  rede, ia à porta, sempre aberta; contemplava a filha culpada, acocorada ao lado do  burro  enfermo;  e,  no  misterioso  silêncio  da  noite  estrelada,  ouvia  um  murmúrio  dolente,  um  estertor  de  fonte,  que  se  estanca,  o  pranto  de  Teresinha  velando  o  animal  para  que  os  urubus,  postados  nas  arestas  dos  rochedos,  como  vedetas  sinistras, não o devorassem vivo.     

 CAPÍTULO  XXV           

  Com      irrepreensível     impaciência,      esperou     Luzia    que    algum     dos    raros  conhecidos  lhe  trouxesse  as  últimas  notícias  dos  acontecimentos  do  dia.  A  cada  momento, se lhe afiguravam vultos de homem, esboçados nos cúmulos da poeira,  que o vento rijo da tarde revolvia, em redemoinhos, pela estrada, como um sinal do  vento  baixo,  rasteiro,  sinal  de  seca.  Talvez  Alexandre  livre,  remido  da  infâmia,  radiante  de  ternura  a  lhe  sorrir  com  amor.  Tinha  estremecimentos  de  júbilos  comedidos; a efêmera visão fugia com as colunas de pó desfeitas, e a pobre recaía  desiludida numa dolorosa apatia de quem espera em vão.          
  Ninguém aparecia. Alexandre, cheio de brio, magoado pela crueza com que  ela o tratara, não viria, contido pelo mesmo propósito que a condenava a estar ali, a  estorcer-se  em  voluntário  suplício,  estimulada  de  fútil  obstinação  em  resistir  ao  impulso de correr a recebê-lo no limiar do cárcere.         
  Nem vivalma. Estavam todos, àquela hora, recebendo, em ração, o salário da  semana, pago aos sábados, nos postos de distribuição de socorros, ou na obra da  penitenciária.  Ela  via  as  suas  meninas  amadas,  Quinotinha  e  outras  da  tenda  de  costuras,  sobraçando  saquinhos  cheios  de  víveres;  as  suas  companheiras  de  trabalho aguardando a chamada, a  tagarelarem com a garridice de maracanãs nos  roçados; outras tristes, desconsoladas, recebendo os quinhões que deveriam passar  às   mãos   de   atravessadores,   em   paga   de   adiantamentos   usurários;   muitas  agrupadas em torno da figura  hercúlea, vermelha e ruiva de Raulino Uchoa, com a  distinção de tipo de outra raça, entre os ouvintes, emaciados de privações, minados  pelos  tóxicos  das  raízes  de  mucunã,  de  pau-mocó,  esboroadas  em  farinha.  Ele  costumava matar o tempo com a narrativa pinturesca das façanhas inverossímeis de  amansador de animais bravios, orelhudos  que nunca tinham visto gente, as áfricas  de vaqueiro de fama, temido dos 
barbatões  mais ferozes das catingas e carrascões  impenetráveis, as proezas de caçadas de onças acuadas em furnas sombrias, onde  ele   as    agredia,     armado  de   uma simples azagaia.      Contava      das    viagens  extraordinárias, aventurosas pelo sertão  inundado, da intrepidez com que afrontava  o ímpeto dos rios desbordantes, nadando em cavaletes de molungu no tempo — até  parecia sonho — em que Deus ainda se lembrava, piedoso, do Ceará, para dar-lhe  chuvas  copiosas  e  fertilizadoras  dos  campos,  trombas  d"água  devastadoras,  rotas  nas  cumeadas  das  serras,  descendo  em  catadupas  raivosas,  invencíveis,  pelos  telhados,  encostas  verdejantes,  arrastando  rochedos,  árvores,  plantações,  até  se  espraiarem  na  planície,  à  maneira  de  um  mar,  arrombando  açudes,  soterrando  bebedores,   cavados   durante   a   seca.   Descrevia   com   a   linguagem   fantasiosa,  ardente,  de  vigoroso  colorido,  com  as  imagens  vivas,  sugestivas  do  rude  estilo  sertanejo, o fragor das correntes raivosas de concerto com o ribombo ininterrupto da  trovoada,  o  relampear  das  nuvens  negras  e  maciças,  es  ziguezagues  fulvos  a  riscarem o céu, com letras cabalísticas, ameaçadoras, traçadas pela ira de Deus; o  estrondo  horrível  dos  coriscos,  o  pavor  do  gado,  haurindo,  a  largos  sorvos;  o  ar  saturado de ozonona, reunido, em magotes, nos cômoros da planície encharcada.          
  Presos   aos   lábios   do   narrador   imaginoso,   os   retirantes   mal   continham  lágrimas, ouvindo-o evocar, entre episódios da vida sertaneja, fatos e coisas, dons  do  céu,  para  sempre  perdidos,  água,  verdura,  roçados,  safras  opimas,  alegria  e  fartura, cortados os corações pela amarga saudade de recordar tempos felizes.          
  Luzia meditava, fitos os olhos, com uns gestos de sufocado pranto, nas rubras  chamas  vacilantes,  desprendidas  dos  tições,  quase  apagados,  espevitadas  pelo  vento e crepitando nuns feixes de centelhas intermitentes.           
  —  Ninguém  —  murmurou  ela,  magoada  pelo  abandono  —  Nem  vivalma!  E  Teresinha? Que será feito daquela cabeça de vento? Onde se meteria? Nem pensa  em mim, que a espero... Ah! Se ela soubesse... Qual... está com ele, e eu, coitada  de mim...           
  Cada vez mais espessa, a neblina da tarde, com uns restos de calor, entrava  a  redondeza.  Casas,  árvores  mortas  confundiam-se  desconformes,  no  esboço  da  paisagem, esfumada em claro-escuro. As manchas das sombras alastravam, como  um  líquido  negro,  devorando  os  tons  luminosos.  No  céu,  puríssimo,  piscavam,  espertas, álacres, como uns pequeninos olhos, estrelas e constelações. Papa-ceia, o  astro   da   melancolia,   librava-se   no   poente   ainda   claro,   como   lúcida   lágrima,  mensageira da dor ignota, oculta nas profundezas misteriosas do espaço, tremeluzia  prateada  como  pólo  das  esperanças  e  das  mágoas  dos  tristes,  e  parecia  vacilar  atraída pelo sol, atufado em nuvens purpúreas.        
   Pela estrada, abeirada à casa, passavam mulheres e meninos conduzindo as  rações. Vinham da cidade ou do morro do curral do Açougue; deviam de saber de  Alexandre  e  Teresinha,  mas  Luzia  não  ousou  interrogá-los.  Apareceu,  depois,  Romana à frente do grupo de bandoleiras desenvoltas. A roliça cabocla, de dentes  aculeados não ria dessa vez. Lamentava,  com as outras, a sorte de Crapiúna, que  se  desgraçara,  apanhado  na  arapuca  armada  ao  outro.  Metia-lhes  intenso  dó  o  Belota, tão bom para elas, uma vítima da amizade, ou das más companhias. Nada  diziam  em  defesa  de  Crapiúna;  consideravam,  entretanto,  injustiça  prenderem  o  outro, homem incapaz de fazer mal e sempre, bem procedido no serviço. Só tinha o  defeito  de  jogar,  mas  o  Governo  devia  saber  que  ele  não  se  podia  manter  com  o  reles  soldo;  era  homem  como  os  paisanos.  Ninguém  vive  enchendo  a  barriga  de  vento como os camaleões.            
 — Olha a Luzia! — observou uma — Nem parece que o homem dela foi solto!          
 — Vote! — atalhou outra — A modos que  estaria mais alegre se ele ficasse  na cadeia toda a vida.         
 — Qual o quê! — ponderou Romana. — Aquilo é soberbia. Quer mostrar que  não faz caso de nada neste mundo. Impáfia ali é mata. Deixa estar que há de ser  castigada.          
 — Aquilo, mulher, é calibre do sangue. Nem o demônio tira. Por isso é que  vive sempre apartada das outras, metida com ela cheia de coisas como se fora uma  senhora dona.          
 —  Conheço  muitas  mais  melhores  que  não  se  desprezam  de  tratar  bem  e  falar com a gente.          
 — Só a Teresinha lhe caiu em graça. As duas se entendem. Deus as fez...            
 Esses comentários eram feitos em voz alta, para que Luzia os ouvisse; esta,  porém,  minada  embora  de  rancor  surdo  a  Romana  que  não  a  poupava  com  insinuações  perversas,  duma  ironia  picante,  e  passava  por  ali  de  propósito  para  molestá-la, fingia não ouvir, resistindo ao impulso de assaltá-la, arrancar-lhe a língua  danada, esmagá-la aos pés, como réptil nojento e venenoso.        
   O grupo desapareceu. Passaram depois desconhecidos que,  confundidos ao  lusco-fusco, a saudavam com boa noite. A velha mãe reclamava os seus cuidados, para iluminar o quarto e dar-lhe o  remédio, que, abaixo de Deus, a salvara.            
 —  Tiveste  notícias  de  Alexandre?  —  perguntou-lhe  ela,  interrompendo  o  terço, rezado a meia voz.          — Não — respondeu Luzia, com fingida indiferença — Depois de saber que  estava solto, fiquei descansada... tirei dele o juízo...          
 — E Teresinha?         
 — Sei lá!...          
 — Estou tão acostumada com ela, que já lhe sinto a falta quando se demora...          
 — Ainda é cedo. Virá quando a lua sair...          
 — Sabes que mais, filha? Acho-te hoje tão mudada!         
 — É que estou imaginando  no que devemos fazer, agora que não temos já  obrigação  de  velar  por  ele.  O  coração  me  pede  que  vamos  embora;  mas  não  podemos. Não há remédio senão ficarmos. Será como Deus quiser. Eu terei sempre  forças   para   trabalhar   e   viver...   sem   ser   pesada   a   ninguém,   apesar   de   me  desprezarem e fazerem pouco de mim.         
 —  Não  fales  assim,  filha.  Os  fortes  também  enfraquecem  quando  Deus  os  desampara.          
 — Deus! Deus já não se lembra de nós, que somos cristãos, que o adoramos  e amamos...         
 — Tem fé nele, que é pai de misericórdia.          
 —  Para  falar  a  verdade,  mãezinha,  eu,  às  vezes,  não  acredito  em  nada.  A  desgraça  endurece  o  coração.  Por  causa  dela,  os  pais  abandonam  os  filhos;  maridos  desprezam  as  mulheres  e  as  criaturas  viram  bichos,  ou  ficam  piores  que  eles. Para o fim do mundo, só falta que as mulheres não tenham mais filhos, pois já  ninguém ama.          
 — E eu que pensava...          
 — Em quê?          
 — Não te quero pôr de confissão, mas. .. sempre desejava saber se Alexandre  nunca te falou em casamento.  — A mim?          
 — Pensei que se engraçara de ti. Fiquei com a mosca na orelha desde aquele  mimo dos cravos.         
 — Os cravos! É verdade que, um dia, ele me disse: "se casássemos, iríamos  viver juntos em uma casinha da ladeira da Mata-fresca." Não respondi sim, nem não.  Depois apareceu o impute, e foi preso. Sofri mais com essa desgraça do que ele; até  parecia que todos me olhavam como ladra, e só o abandonei quando suspeitei que  era  igual  aos  outros  homens,  queria  bem  a  outra  e  me  enganava  cruelmente.  A  última vez que vi ele, deixei-lhe os cravos na grade da cadeia. Essas pobres flores,  guardadas no meu seio, como um breve milagroso, não podiam mais ficar comigo.  Ele que as desse a outra. Mais tarde arrependi-me: revoltei-me contra esse ciúme à- toa,  que  não  me  envergonhava,  porque  as  mulheres  ricas  também  se  enciumam;  mas era uma fraqueza. Tive ímpetos de pedir-lhe perdão. Uma voz, que vinha daqui,  do coração, aconselhava que eu quebrasse a teima de abandoná-lo e fugir dele...  Seria rebaixar-me, fazer como essas que continuam a querer bem ao homem que as  despreza, surra e maltrata; seria contra o meu gênio de não dar braço a torcer, de  não dar parte de fraca, de sofrer calada.          
 — E é por isso que tens andado capionga? Ah! Coração de mãe adivinha.          
 — Era ...          
 — Pois foi muito feia ação desconfiar dele.          
 — A gente não suspeita por querer.         
 —  Quando  se  quer  de  verdade,  não  há  suspeita  que  entre  no  coração.  Eu  nunca maldei do defunto teu pai, quando ele passava meses ausente, comprando  garrotes no Piauí. Só pensava que poderia apanhar moléstias, morrer sem confissão  e em não estar eu a seu lado para tratar dele.         
 — Era seu marido. Alexandre não é nada  meu. Ninguém me tira da cabeça  que, agora, limpo de pena e culpa e por ser bom, caridoso e bonito homem, todas as  mulheres  querem  bem  a  ele.  Homem  que  sofre  é,  comparando  mal,  como  Jesus  Cristo. As mulheres andam atrás dele.            
  Houve,   então,   longa   pausa.   Nos   pequeninos   olhos   parados   da   velha,  desanimados, demorava uma funda impressão de surpresa, com um brilho gasto de  mágoa.            
 — Além disso — continuou Luzia, com um ligeiro movimento, dos ombros —  Elas  têm  o  mesmo  direito  que  eu.  Mas  não  me  conformo...  Pode  mais  do  que  a  minha  vontade  essa  suspeita,  que  me  põe  o  coração  escuro  e  mau...  Sabe,  mãezinha, em que estou pensando agora?... Um horror, que até tenho vergonha de  dizer...  Antes  uma  boa  morte  que  descobrir  a  outra  pessoa  o  que  me  passa  pela  mente... Olhe...                    
 E  sussurrou,  com  voz  soturna,  como  um  sopro  de  cansaço,  ao  ouvido  da  velha:            
 — Imagino que, neste momento ele está com Teresinha...         
 — Credo! Filha!         
 —  É  um  horror,  não  é?...  Parece  que  estou  vendo  eles  juntos,  alegres  e  satisfeitos. Ele todo agradecimentos; ela cheia de si... Sim, porque se está solto a  ela o deve... Ela tem direito à recompensa. É justo que não se lembrem de mim...          
 — Que maldade, filha de minha alma...          
 —  Sim,  como  não  hei  de  ser  má,  de  ter  más  entranhas,  se  uma  cobra  venenosa  me  morde  o  coração!  E  sou  culpada  de  tudo  por  ser  desconfiada...  soberba... maldita... Luizia-Homem é o que eu sou... uma bruta desalmada...          
 —  Que  coisa  sem  pé  nem  cabeça?  Estou  estranhando  isso...  Sossega...  Teresinha, tão boa para nós, não tarda aí, quando a lua nascer.          
 — Veja aquele clarão... Já está fora.         
 — Ela foi cheia trasantontem. Aquilo é fogo no pasto.           
  Havia,   com   efeito,   no   horizonte,   um   clarão   de   incêndio,   onde   surgia,  lentamente, um enorme disco.            
 — Qual — exclamou Luzia, com uns gestos violentos, e um amargo tom de  sarcasmo — Aquela mesma? Onde está, está muito bem... gozando o que muito lhe  custou ganhar... Não se me dava de apostar...          
 —  Não  faças  juízo  à  toa  —  disse  a  velha,  com  energia  —  maldando  da  outra...          
 — Não maldo por querer. É uma coisa que me vem à cabeça e que me tira o  juízo...  Ah!  Eu  não  era  assim.  Não  era.  Em  nada  pensava,  nada  tinha,  que  me  afligisse  ou  me  tirasse  noites  de  sono.  Não  fora  o  seu  puxado,  vivia  sossegada,  pensando somente no dia d"amanhã, em ganhar a vida. Era feliz, consolada com a  minha sorte.          
 —  Não  eras,  não.  Nunca  te  vi  assim...  São  repiquetes  de  mau  gênio  que  passam depressa. Agora, se não te dás bem aqui, se te sentes mal, iremos, como  querias, para as praias. Raulino irá conosco...          —  Para  a  praia!  Não  vou  mais,  não...  posso.  Hei  de  ficar  aqui  até  quando  Deus permitir... Até... morrer. Quem sabe?          
 — Aí está! Não te entendo. Há bocadinho, falavas nessa viagem que não te  saía da cabeça... Agora...           — Pensei melhor.          
 — Qual, filha! Andas tão atarantada que já não pensas coisa com coisa.          
 —  É  mesmo,  mãezinha.  Até  parece  que  estou  lesa.  Ah!  se  eu  pudesse  esquecer tudo como se fora um sonho, desses que a gente dá graças a Deus e cria  alma nova, quando se acabam... ou se desperta...          — Tu estás, mas é muito alterada. Vem dormir, anda, que Teresinha rebenta  por aí sem demora, e as duas vão levar a noite grazinando como duas amigas.           
  A velha Josefa benzeu-se ao terminar o  terço, interrompido pelo diálogo com  a  filha.  Ergueu-se  apoiada  ao  portal,  e  gemendo,  tanto  lhe  custava  distender  as  articulações emperradas; e, arrastando as grandes chinelas, dirigiu-se, claudicante,  para  a  rede.  O  quarto  estava  iluminado  pela  candeia  mortiça,  crepitando  na  cantoneira,  asseado,  muito  arrumado;  as  malas  encostadas  à  parede,  duas  redes  armadas  nos  ângulos,  e,  no  chão,  a  esteira  de  Teresinha,  a  pele  de  carneiro,  um  simples tapete para se não resfriarem os pés da enferma. De uma corda, pendiam  várias peças de roupa.            
 —  Deixa-me  —  disse  a  velha,  arfando  de  fadiga  e  afastando  a  filha  que  pretendia ajudá-la. 
 — Deixa-me andar sozinha para experimentar as minhas forças.  Se  me  acostumo  a  estar  sentada  e  a  andar  pelas  mãos  dos  outros,  fico  mesmo  enferrujada  de  todo...  Ah!  Se  Nossa  Senhora  me  tirasse  esta  canseira,  podia  eu  dizer que estava sarada... Isto vai devagarinho... Moléstia é como preaca de frecha:  entra no corpo de repente, e custa a sair.          
 — Tenho fé — disse Luzia, mais calma  e com meiguice, abrindo a rede para  que ela se sentasse — isto vai passar.            
  Quem a viu e quem a vê, nota logo grande melhora.            
 — Tenho esperança de rolar mais alguns dias por este mundo, e só peço a  Deus que me não faça sofrer, quando chegar a minha hora. Bem sei que não hei de  ficar para semente... Tu, que és o meu  sangue, tomarás o meu lugar, sendo o que  eu fui, uma mulher de bem, trabalhadeira e temente a Deus.          
 — Não fale nisso.          
 —  Como  não  fala!,  se  não  me  sai  da  cabeça  o  pensamento  de  morrer,  deixando-te sozinha, sem encosto, sem proteção.          
 — Quando tal acontecesse, quando Deus me castigasse com essa desgraça,  eu teria coragem para suportá-la. O trabalho não mete medo a Luzia-Homem.        
 — Bate na boca, filha. Luzia, mulher e  bem mulher, fraca como as outras, é o  que tu és.          
  Ela  sentia  a  verdade  das  palavras  da  mãe.  A  ansiedade,  as  dúvidas,  as  suspeitas cruéis em tumulto absurdo e monstruoso comprovavam a sua debilidade  de mulher amorosa. Compreendia, então, a perversidade de Gabrina, vingando-se  de  Alexandre  por  meio  da  declaração  falsa;  compreendia  por  que  havia  mulheres  criminosas,  que  se  rebaixavam  satisfeitas,  que  se  depravavam  despudoradas,  arrojadas,  por  impulsos  de  paixão  irresistível,  fora  da  senda  do  dever,  olvidando  honra,  família  e  o  decoro,  que  é  o  esmalte  das  almas  boas  para  tombarem,  desfigurados  o  corpo  e  a  alma,  até  à  lama  do  enxurro  humano,  como  nojentos  dejetos do vicio.          
 Havia, entre essas míseras, culpadas por depravação moral, desviadas pela  educação,  contaminadas  pelo  contágio  do  exemplo.  A  maioria,  porém,  era  de  inconscientes, sem imputação, dignas de perdão como pensava ela, que não podia  expungir do coração os maus instintos, que o dominavam e ali grelavam, como ervas  daninhas, à sombra propícia da suspeita e do despeito. E Luzia que padecera pela  prisão  do  homem  amado,  que  sentira  nas  próprias  carnes  o  estigma  com  que  o  pretendiam marcar, que seria capaz de fazer por ele o extremo sacrifício da própria  vida, seria capaz de estrangulá-lo, de arrancar-lhe as entranhas, de cevar-se no seu  sangue, à simples idéia de vê-lo nos braços de outra mulher.            
 —  Eu  morreria  descansada  —  disse  a  mãe,  suspirando  —  se  te  deixasse  casada com Alexandre, que seria incapaz de te dar má vida.       
 — Casada! — retrucou a filha, arrancada, de súbito, às tristes idéias. — Quem  quererá se casar comigo?...       —  Não  digas  semelhante  coisa,  tamanhas  asneiras...  A  mim,  me  palpita  o  coração que amanhã terás vergonha dessas suspeitas, porque Alexandre virá e tudo  passará, como se nada houvesse acontecido. Tu, então, arrependida, reconhecerás  que, quando moça está influída para casar, não tem o juízo assente; vê tudo pelo  avesso,  de  pernas  para  o  ar,  e  fica  mouca  aos  conselhos.  No  meu  tempo,  as  raparigas  não  pensavam  nisso;  quando  davam  fé  estavam  na  igreja  com  o  moço  escolhido  pelos  pais.  Hoje,  está  tudo  mudado...  Meninas  que  ainda  cheiram  a  cueiros,  já  têm  opinião  e  caprichos  como  qualquer  mulher  feita.  Deus  louvado,  sempre foste muito bem procedida e obediente. Veio-te, agora, essa influência de  querer bem... Já não veio sem tempo... já tardava e não te m nada de mal; mas, é  preciso ter juízo para não desmanchar o que esta tão bem principiado. Vê bem o  que  te  digo;  deixa-te  de  histórias  e  teimas.  Se  procurares  com  uma  candeia,  não  encontrarás outro tão do meu gosto.          
 — E se ele não me falar mais em casamento?         
 — Paciência! É porque não tinha de ser.          
 — E eu?...          
 — Tu!... Pois não és mulher forte, capaz de viver sozinha, sem ser pesada a  ninguém, trabalhando para comer?... Não és Luzia-Homem?...          
 — Eu não sou nada — murmurou Luzia,  abraçando a mãe e escondendo-a  quase na onda de cabelos revoltos. — Sou uma infeliz, que está sendo castigada,  sou uma doida, que não sabe o que faz... Perdoe-me, mãezinha da minha alma...          
 — Ai que me tiras o fôlego — gemeu a velha, sufocada pela veemente carícia  da filha. — Não reparas que só tenho de gente a figura com a pele sobre os ossos?  Deixa estar que tudo há de sair bem, se Deus não mandar o contrário... Dá-me outra  colher de remédio. Quero ver se pego no sono. Fecha a porta e vem dormir.          
 — E Teresinha?          
 — Deixa estar que ela não se perde. Sabe de olhos fechados o caminho da  casa.          
 —  Tem  razão,  mãezinha.  O  melhor  é  esperar  sossegada  o  que  tem  de  acontecer.         
   Depois de dar o remédio à mãe e acomodá-la para passar a noite, Luzia saiu  ao terreiro a passear em roda da casa, a contemplar a lua, que ascendia em pleno  esplendor. Interrogou o céu e a terra, silenciosos, impassíveis; espreitou em todas  as direções, até aonde a sua vista alcançava, e perscrutou os mais leves rumores  que a viração lhe trazia em rajadas violentas. Nada correspondia à sua ansiedade. A  solidão  lhe  recusava  alento  às  débeis  esperanças  e  conforto  às  mágoas,  que  os  conselhos maternais não conseguiram aplacar de todo. Entretanto, a confidência à  mãe idolatrada, fora um transbordamento salutar, e ela experimentava a sensação  de desafogo, como se o coração, libertado de cruciante aperto, pudesse pulsar sem  se,  contentar  em  estreito  âmbito.  Ligeiro  torpor  lhe  invadia  os  membros  que  ela  tentava   em   vão   estimular,   distendendo-os   em   contorções   preguiçosas   a   lhe  desenharem, com harmonioso relevo, as linhas vigorosas, exuberantes de graça.            
 — Não teimes em esperar, filha — observou a mãe — até fora de horas. —  Anda, e fecha bem a porta. Eu não descanso enquanto estiveres aí a rondar de um  lado para outro, como quem está rnalucando.          
 —  Amanhã  é  domingo,  mãezinha.  O  luar  está  tão  bonito  que  a  gente  tem  pena de se deitar. Parece dia...          
 — Que horas são?         
 —  O  Setestrelo  já  está  alto  e  as  Três  Marias  estão  descambando.  Ainda  agorinha tive um susto! Correu uma zelação, que parecia uma tocha.          
—  Deus  a  guie.  É  sinal  de  desgraça.  Anda,  anda,  vem  para  dentro,  que  a  friagem te pode fazer mal.       Luzia  obedeceu.  Depois  de  fechar  a  porta,  tomou  a  bênção  à  mãe;  e,  desatando  os  cordões  da  saia  branca,  estirou-se,  extenuada,  na  esteira,  onde  Teresinha  dormira  tantas  noites.  E,  todavia,  mole  de  fadiga,  não  pôde  conciliar,  calmamente, o sono. Torcia-se, mudava de postura, como se o seu corpo robusto  excedesse  ao  molde  ali  deixado  pela  amiga  ausente,  cuja  recordação,  engastada  em seu cérebro, era o carvão da suspeita, comburente, agora, em brasa de remorso.        
   Ela imitava as desenvolturas da outra, da criatura dedicada, que renunciara a  todos os seus hábitos para participar, com a  placidez de uma consciência satisfeita,  da  pobreza  e  das  tristezas  daquele  mísero  lar.  Julgava  ouvir  passos  cautelosos,  abafados  pelo  ruído  das  folhas  agitadas  pelo  vento,  e  Teresinha  e  Alexandre  lhe  apareciam  como  espectros,  exprobrando-lhe  a  injusta  desconfiança,  e  exigindo  reparação.  Acusada  por  si  mesma,  Luzia  não  se  podia  defender;  a  culpa  era  demasiado  evidente.  Abandonada  pelas  energias  musculares,  que  eram  o  seu  estigma, oberada de vergonha, ela suplicou, em atrição, lhe perdoassem; e, como se  um filtro purificador lhe lavasse a alma da mácula do cruel pecado, adormeceu no  delicioso enlevo de um sonho de ventura inefável.      

CAPÍTULO  XXVI            

  Não  acabara  Luzia  de  pentear  os  cabelos  que,  depois  de  vendidos  eram  tratados  com  maior  carinho,  quando  chegou  Raulino,  conduzindo  a  trouxa  de  mantimentos e uma grande cabaça d"água.        
  — Muito bom dia, sra Luzia!          
  — Bom dia, seu Raulino. Você vem hoje carregado.          
  — É que aumentei a trouxa com a cabaça e contrapeso que lhe mandaram.         
  — Para mim?          
  —  Sinharsim.  Meti  os  pés  da  rede  quando  vinham  quebrando  as  barras  e  imaginei que vosmecês estariam carecidas d"água. Como estou morando, agora, na  cadeia nova, para botar sentido nas obras, de noite, enchi a cabaça na jarra e fui à  cidade  receber  as  rações  porque  as  do  armazém  da  Comissão  são  melhores  e  medidas com lavagem. Foi uma lembrança mandada por Deus, porque, chegando  lá, topei na porta o Alexandre...          
 — Alexandre!          
 —  Em  carne  e  osso.  Depois  de  dar-lhe  mão  de  amigo,  pedi-lhe  que  me  aviasse depressa para poder eu chegar aqui cedinho. Ele, meio banzeiro, perguntou  por vosmecê, pela tia Zefinha e pelos outros conhecidos. Coitado! Está branco, com  a cara encerada, que mete dó ver, tão desfeita uma criatura, que vendia saúde...          
 — Está doente?         
 —  Como  quem  passou  obra  de  um  mês  enterrado  naquela  prisão  porca  e  fedorenta que mais parece um chiqueiro que morada de cristãos.          
 — É horrível!          
 — Mas a demora foi dar notícias de vosmecê, ficou ligeiro e alegre que não  parecia o mesmo. Mediu... Mediu é um modo de falar: fez a olho, as rações. Era o  que  a  mão  dava.  Ele  por  uma  banda  e  eu  pela  outra.  E  não  fomos  mais  longe  porque já era uma dor de consciência. O homem quer bem a vosmecês mesmo de  verdade. Fez perguntas e re-perguntas; quis saber do puxado da tia Zefinha; se sra  Luzia ainda estava na obra, se passou lá trabalhando o dia de ontem, um horror de  coisas que fui respondendo só para dar-lhe gosto. Agora está como quer. Há males  que  vêm  para  bem.  Melhorou  no  emprego  e  recebeu  uma  dinheirama  de  coiro  e  cabelo.           
 Luzia  desembrulhava  os  gêneros  e  os  arrumava,  aparentando  indiferença  à  loquacidade de Raulino, que falava pelos cotovelos. Os sertanejos ladinos são, em  geral,  admiráveis  narradores,  de  imaginação  acesa,  fecundos  em  descrição,  cujos  menores incidentes são debuxados com vigor.          
  —  Que  é  isto?  —  perguntou  Luzia,  indicando  um  guardanapo  de  linho  amarrado nas quatro pontas.       — Isto é pães — respondeu Raulino.  — Quando eu vinha vindo, a dona do  Promotor chamou-me e deu-me essa frouxinha, dizendo por aqui assim: "Leve isto  para Luzia, seu Raulino, diga-lhe que estou muito agradecida pelo trabalho da roupa  para os pobres, uma perfeição de costura. Diga-lhe mais que apareça: desejo muito  ver os meus bonitos cabelos."           
  Luzia baixou os olhos, e estremeceu ligeiramente.           
 — Ora, — continuou o sertanejo — eu  não entendi bem o que a dona queria  dizer,  mas  fiquei  malinando  que  também  gosta,  como  todo  o  mundo,  dessa  sua  cabeleira,   comparando   mal,   parecida   com   as   das   mães-d"águas   encantadas,  lavando-se  na  lagoa  em  noite  de  luar,  com  os  cabelos  de  vara  e  meia  boiando  e  embaraçando-se nos aguapés cheirosos, como eu vi com estes olhos, que a terra  fria  há  de  comer,  de  uma  feita,  que  eu  estava  de  tocaia,  esperando  patarrões  brabos.  A  noite  estava  clara  que  nem  dia.  Cansado  de  esperar  e  resfriado  pela  fresca do sereno, passei por uma modorra.              Quando  dei  fé,  ouvi  o  barulho  de  um  corpo  espalhando  a  água;  levei  a  lazarina à cara, e, pensando que eram os patos, ia papocar fogo. Divulguei, então, o  corpo de uma mulher, luzindo molhado e nadando como uma marreca. Ainda fico frio  quando me lembro dessa visagem. Os meus cabelos se arrepiam como espinho de  cuandu.  Quis  gritar,  mas  tinha  um  nó  na  garganta.  Passou-me  uma  névoa  pelos  olhos  e  deixei  cair  a  espingarda.  Quando  dei  acordo  de  mim,  afirmei  bem  a  vista  para ver o que era. A lagoa estava serena como um espelho. Tudo quieto. Só ouvia  sapos  ateimando:  foi,  não  foi,  e  os  cururus  roncando.  Não  quis  mais  saber  de  histórias; apanhei a arma e meti o pé na carreira. Só tomei fôlego quando avistei a  casa. Sra Luzia a modos que não me acredita?         
   Luzia sorriu, com branda ironia.           
 — Pois fique sabendo — continuou Raulino, com muita convicção — que não  foi  só  a  mim  que  ela  apareceu.  O  Isidro,  rapaz  destemido  e  caçador  de  fama,  também viu a mãe-d"água de uma feita que estava tarrafeando curimatãs. Por sinal  que não apanhou uma triste piaba naquela lagoa, que tinha mais peixe do que água.  Voltou da pescaria com as mãos abanando, capiongo, meio leso e contou o caso à  noiva,  moça  (falando  com  o  devido  respeito)  bonita  como  uma  imagem.  Ela  ficou  desconfiada  e  quis,  por  fina  força,  ir,  fora  de  horas,  à  lagoa.  O  rapaz  fez  todo  o  possível para tirar-lhe da cabeça semelhante doidice; disse-lhe  que era um perigo  porque  as  mães-d"água  são  ciumentas  das  moças  que  estão  para  casar,  que  houvera  muita  desgraça  por  causa  disso;  pediu,  rogou  por  tudo  quanto  havia  de  mais sagrado. Ela prometeu não ir, mas cada vez mais desconfiada teimou, porque  mulher,  quando  malda,  não  chega  ao  moirão  com  duas  razões.  Fugiu  de  casa  quando estavam todos recolhidos e foi à lagoa. Não lhe conto nada. Ao amanhecer,  deram por falta da moça. Foi um Deus-nos-acuda. Ninguém dava notícias dela. O  noivo ficou como um doido; mas, lembrando-se da história da mãe-d"água, pôs-se a  rastejar  e  encontrou  o  rasto  da  chinelinha  da  infeliz,  bem  marcado  no  caminho  orvalhado.            
 Acompanhou-o com outras pessoas, também rastejadoras, e foram bater na  beira  d"água.  Estavam  imaginando  no  que  teria  acontecido,  quando  ouviram  uma  risada  de  mangação.  Pensaram  que  era  a  moça  escondida  para  zombar  deles.  Bateram  o  mato  em  redor,  o  pacoval,  cheio  de  ninhos  de  azulões  e  papa-arroz.  Nada.  Os  passarinhos  fugiam  espavoridos,  e  um  bando  de  garças,  alvas  como  capuchos de algodão, voava remando no ar. Os homens olharam uns para os outros  sem  saberem  o  que  fizessem.  O  Isidro,  mais  morto  do  que  vivo,  numa  aflição  de  meter dó, encarou n"água como se quisesse ver-lhe o fundo. Quem dera a risada?  Aonde fora a moça parar? Onde se escondera? O rasto ali estava provando que ela  não voltara para trás...           
  — Mas... é verdade isso? — inquiriu Luzia, com terror.          
  — Acredite, como se estivesse vendo.  Eu não sou homem de inventar, nem  de dizer uma coisa por outra. Ouça o resto. Um vaqueiro velho foi buscar uma cuia,  pregou dentro uma vela acesa e largou-a em cima d"água. A cuia vagou à toa, de um  lado para outro, conforme assoprava o vento; foi, depois, seguindo para o centro, até  que ficou parada, obra de cinqüenta braças de distância. Nisto, o Isidro, num abrir e  fechar d"olhos, tirou o gibão de coiro  e largou o braço n"água. Chegando ao lugar,  onde  a  cuia  estava  parada,  mergulhou,  e...  Que  horror!...  Nem  gosto  de  me  lembrar...  Num  instantinho,  voltou  à  flor  d"água;  tomou  fôlego  e  mergulhou  outra  vez... Quando deram fé, ele surgiu com um corpo nos braços e nadou para a terra  como  um  desesperado.  Vinha  como  um  bicho  feroz,  arquejando,  enlameado,  coberto de ervas e raízes encharcadas. Os outros foram ao seu encontro para ajudá- lo.  Trazia  a  noiva  morta.  Os  olhos  azuis  da  defunta  estavam  esbugalhados  e  vidrados.  A  boca  meia  aberta,  parecia  querer  falar.  Tinha  as  mãos  juntas  sobre  o  peito, aqui, lá nela, e amarradas em nó cego, com as duas tranças de cabelos loiros,  compridos como os seus, sra Luzia...         
  — Que desgraça! Credo! Morreu de ciúmes!...          
 —  Que  ciúmes!  Foi  afogada  pela  mãe-d"água.  A  malvada  amarrou-lhe  as  mãos para que a pobre se não pudesse salvar, pois nadava como uma piaba. Era  dela  a  risada  que  ouviram;  ria  da  sua  obra  maldita...  Depois  dessa  tragédia,  os  comboieiros, que navegam para aquelas bandas e passam de noite pela beira da  lagoa, ouviram arrepiados de medo, aquela risada medonha.          
 — Isso é busão! — disse do quarto a velha, atenta à história.          
 — Ah! Tia Zefa, vosmecê estava acordada?         
 — Desde madrugada.          
  —  Busão  ou  não  —  ponderou  Raulino  —  o  caso  é  verdadeiro.  Quando  a  gente  não  pode  explicar  as  coisas  diz  que  é  busão;  mas  o  fato  é  que  há  no  oco  deste mundo velho muita coisa, que nem doutores, nem padres conhecem. E, com  esta, vou andando.           
  Habituada      às    histórias   extraordinárias      do   imaginoso      sertanejo,     Luzia  experimentou, todavia, forte abalo, ouvindo a reprodução da lenda, sempre viva nas  recordações da infância, dura quadra despercebida, de gozos facilmente olvidados,  porque é bem verdade que só o sofrimento tem o poder de cavar na memória sulcos  indeléveis. É por isso que há estranho encanto, espécie de amargura e de saudade  em exumar tristezas, em reviver lances de desgraça, como narrar crises de moléstia,  lutas entre a vida e a morte, os dissabores, as desilusões, as mágoas suportadas  com resignação, com heroísmo, que se nos afiguram obstáculos transpostos, vitórias  alcançados contra a fatalidade, os cruéis inimigos ocultos, intangíveis, à maneira das  tiranias    onipotentes     das    forças    misteriosas      que    engendram, nas    terríveis  profundezas   do   infinito,   as   calamidades,   os   cataclismos   e   os   assombrosos  fenômenos que assinalam o eterno combate entre o que destrui e o que produz.           
  — Espere pelo café, seu Raulino — disse Luzia.          
  —  Estava  quase  requerendo  —  tornou  o  sertanejo.  Por  essa  bebida,  sou  como macaco por banana. No tempo da fartura, eu era capaz  de    tomar    uma  canada de café por dia.          
 — Não viu, por ai, Teresinha?          
 — Nharnão, pensei que ela estava aqui.          
 — Esperei-a toda a noite.          
 — Deixe estar que aquela não se perde com duas razões.         
 — Sempre estou com cuidado nela.        
 — O Alexandre disse-me que ela esteve  com ele desde que  foi  solto  até  à  tardinha, quando o deixou com promessa de se encontrarem aqui hoje.          
 — Aqui! — exclamou Luzia, alvoroçada.          
 —  Sinharsim.  Pelo  menos,  foi  o  que  ouvi  da  própria  boca  dele  —  afirmou  Raulino, tirando uma grande pitada de caco do corrimboque de chifre de carneiro.          
 — É para dar que pensar — observou a velha.         
 —  O  mais  certo  —  considerou  Raulino  —  é  ter  ela  ficado  no  quarto  da  Gangorra, pensando, talvez, que, preso Crapiúna, vosmecês não precisassem mais  de  companhia.  Poderiam  dormir  descansadas  sem  receio  de  alguma  traição  do  excomungado.         
 — Se soubesse onde era a casa, iria buscá-la, tanta falta me faz... Coitada!  Aquilo só é ruim para si.         
 — É pena, sra Luzia, porque ela teve bons  princípios e foi bem afamilhada.  Mas, caiu-lhe em cima a desgraça. Eu também tive a mesma sorte. Meus avós eram  gente de consideração, bem arranjada; e, como me vê, poderia comer em pratos de  ouro,  se  não...  Para  que  lembrar  tristezas  que  não  pagam  dívidas?  Tive  currais  cheios  de  vacas  de  leite;  apanhava  meus  oitenta  bezerros  por  ano;  possuía  bons  cavalos  de  sela,  e  o  demônio,  em  figura  de  mulher,  levou  tudo.  Hoje,  ando  a  trabalhar  para  não  morrer  de  fome,  com  vergonha  de  me  dar  a  conhecer  à  parentalha  que  tenho  aqui  mesmo  em  Sobral.  Fui  nascido  e  criado  na  ribeira  do  Jaguaribe. Ainda é do meu sangue essa gente de Xerez. Somos todos Furnas...         
 — Que feio nome?          
 —  É  meio  esquisito,  mas  é  de  gente  muito  graúda,  de  muitas  posses  e  honrarias, espalhada por estes sertões numa parentalha, que nunca mais se acaba,  como a gente dos olhos-d’água do Pajé, os Rochas e os Cavalcantes...          
  Agora, vou mesmo que já tocou a primeira vez da missa do dia.            
 — Se mãezinha tivesse com quem ficar, iria também à missa.          
 —  Não  seja  essa  a  dúvida,  filha  —  observou  a  enferma.  —  Basta  que  me  deixes ao alcance da mão um caneca d"água.         
 — E vou mesmo. Há muito que não piso na igreja. É mesmo um pecado...         
 Raulino  despediu-se,  sorvendo,  com  estrépito,  outra  pitada,  e  partiu  no  seu  passo  de  andarilho,  bamboleando  num  chouto  mole,  miúdo,  o  corpo  erecto  e  musculoso.         
  Preparada a refeição da mãe, Luzia ataviou-se, com o seu melhor vestido, um  roupão de cassa lisa, que, amarrado à cintura, lhe desenhava as formas graciosas, e  saiu na direção da cidade.         
  Não era a missa um pretexto para sair; mas, ao profundo sentimento religioso  se aliava a casquilhice inocente de exibir os belos vestidos, as últimas fantasias da  arte decorativa da mulher,  importadas do Recife, uns trajes vaporosos de renda  e  cambraia,  feitos  com  requintes  convencidos  de  elegância,  com  raro  gosto,  pelas  adoráveis criaturas que os vestiam. Nada havia de censurável em que as moças da  cidade,   metidas   durante   toda   a   semana   em   casa,   ocupadas   em   trabalhos  sedentários  de  renda  e  labirinto,  se  desforrassem  desse  retraimento  nas  festas  religiosas, celebradas, sempre, com extraordinário esplendor. Imitando à gente rica,  Luzia, além do intuito de cumprir um piedoso dever, nutria a esperança de encontrar  Teresinha ou Alexandre, obter notícias deles, ou, pelo menos, encurtar a distância  que os separava.          
  Ao passar pela Rua do Menino Deus, ela esmoreceu a marcha; aproximou-se  do  armazém  da  Comissão  e  olhou  atentamente  para  dentro,  erguendo-se  nas  pontas dos pés, para ver, através da multidão de indigentes, aglomerados à porta, a  criatura querida.      
    Quando  avistou  a  cadeia,  cujas  grades  negras  estavam  cheias  de  presos  amaciados e lívidos, sentiu-se a moca cortada de terror. Crapiúna estava ali dentro,  como fera cativa, devorando-a, talvez, naquele momento, com os olhos injetados por  uma congestão de cobiça e raiva impotente.           
  — Moça, ó! Moça! — disse um menino que se aproximou dela correndo. — Ali  tem um preso que quer falar com vosmecê. Luzia  repeliu,  com  um  gesto  enérgico  de  negação,  o  esperto  pequeno,  que  insistia no chamado, e apressou o passo para distanciar-se da sinistra prisão, onde  uma voz rouca e vibrante, como um rugido, a voz de Crapiúna, bradava suplicante, e  amaldiçoava:          
   — Luzia, Luzia!... Meu coração, meu amor da minha alma, tem pena de mim!  Perdoa-me pelo amor de Deus! Vem! É um instantinho... Não te farei mal. Vem! Só  duas palavras!... Ah! Não me ouves; não queres saber de mim!... Mulher do diabo!...  Deixa estar, safada, amaldiçoada, que não ficarei preso toda a vida... Nem que tu  vás para o inferno...  O soldado gritava, estorcia-se delirante, agarrado às enormes barras de ferro  do portão, brandindo-as, abalando-as com inútil esforço para quebrá-las, arrancá-las  dos gonzos chumbados ao portal de granito.          
  Perseguida  pelo  eco  dos  brados  de  insânia  desesperada,  ela  penetrou  no  templo,  como  num  abrigo  inexpugnável,  defeso  à  maldade  humana,  à  curiosidade  vexatória daquela gente que, lá fora, a considerava criatura impassível de coração, e  se  apiedava  do  prisioneiro,  cuja  dor  feroz  lembrava  a  simpatia  dos  grandes  infortúnios.         
  A  imensa  nave  da  matriz  desbordava  de  fiéis,  amontoados,  em  confusa  massa inquieta, alumiada pelos jorros de crua luz, que se projetavam das arcadas  laterais, recentemente rasgadas nas formidáveis paredes de pedra e cal, sobre os  mantos  alvíssimos  das  mulheres  ajoelhadas.  No  fundo  resplendia  a  capela-mor,  o  tabernáculo, esculpido pelo cinzel do mestre João Francisco, o entalhador, com duas  séries  de  elegantes  colunas  coríntias,  enleadas  de  parreira,  a  vinha  do  Senhor,  e  rematadas  de  folhas  de  acanto,  todas  brancas,  de  figos  doirados  e  sustendo  a  arquitrave e a curva do arco que emoldurava a grande tela de Bindsay, a Assunção  de Nossa Senhora. Mais abaixo, dominando a banquete de prata maciça e os bustos  dos  Apóstolos,  emergia,  dentre  palmas,  dentre  flores,  a  imagem  da  Virgem  da  Conceição, a padroeira da cidade, coroada de oiro, de palrarias, quase escondida no  amplo  manto  de  veludo  azul,  marchetado  de  estrelas,  bordado  com  carinho  pelas  órfãs da Casa de Caridade. As chamas dos círios esmoreciam na suntuosa claridade  da manhã, como pálidas placas, dissolvendo-se em tênues fios de fumo, a sumirem- se no ambiente saturado de incenso e de um odor agro de cera derretida.         
  Luzia,  sobressaltada  pela  imprecação  minaz  do  soldado,  cujas  palavras  brutais lhe contundiam o cérebro, pensara encontrar na casa de Deus, aos pés da  Mãe  Santíssima,  refúgio  e  conforto  à  sua  alma  atribulada.  Mas,  ali  mesmo  a  perseguia  a  protérvia  da  multidão.  De  pé,  hesitante  na  escolha  do  lugar  para  ajoelhar-se, era alvo de olhares, que a lapidavam, trocados entre as mulheres, que desembuchavam a malícia atroz dos ruins sarcasmos. Uma crispação de surpresa,  de curiosidade assanhada agitou a onda viva que a cercava. Raparigas e meninas,  matronas e velhas, fitaram-na com insistência, imobilizadas de pasmo, e de boca em  boca perpassou ininterrupto murmúrio, cochichado de todos os lados:            — É a Luzia!... A Luzia-Homem!...            
  Prostrada à meia-sombra de um confessionário de jacarandá, salientemente  adornado  de  arabescos  estranhos,  absorta  em  sincera  prece,  ela  ouviu  a  missa,  celebrada pelo vigário Vicente Jorge de Sousa, cuja voz sonora e forte, recitando as  orações do ritual, dominava os pigarros, as tosses incontinentes e o choro clássico  das crianças que aguardavam o batismo, ocultas sob os lençóis das mães, que ali  mesmo,  as  amamentavam.  Rezou  pela  mãe  entrevada,  por  Teresinha;  rendeu  graças a Deus pela libertação de Alexandre; e quando se ergueu a Hóstia, ao ruído  de peitos percutidos, do som argentino da campainha, tangida pelo sacristão, José  Fialho, um velho doce e respeitável, pediu ao Deus sofredor e resignado, ao Deus  de amor e misericórdia, como Jesus pedira ao pai celestial perdão para os algozes  que o flagelaram e o crucificaram, se apiedasse do infeliz soldado, vítima da insânia  de  uma  paixão  brutal.  E,  como  se  esse  generoso  impulso  rompesse  os  diques  à  inefável  caudal  de  consolação,  sentiu-se  alvoroçada  de  suavíssima  alegria,  desse  gozo  incomparável  da  alma  purificado,  expungida  das  sombras  do  remorso.  Seus  olhos,  fitos  no  doce  semblante  da  imagem  da  Virgem,  ,e  aljofraram  de  pranto,  lágrimas de reconhecimento, porque Deus se compadecera de Luzia-Homem, ouvira  a sua prece.         
   As  últimas  palavras  do  sacerdote,  recitando,  de  cor,  o  evangelho  de  São  João, os fiéis se ergueram com sussurro,  espraiaram-se pelo patamar, sob um sol  intenso,  e  se  dispersaram  em  todas  as  direções,  descendo  pelo  suave  declive  do  cúmulo, onde se ergue o templo, acrópole da cidade.          No átrio, do lado da pia d"água benta, bela concha de lioz, erecta no centro da  pequena  capela  consagrada  a  São  João  Batista,  dezenas  de  mães  piedosas  esperavam  o   batismo   dos    filhinhos,   crianças     sadias,    nédias,     sorridentes,  espantadas,  pequeninos  seres  informes,  moribundos,  esqueléticos  e  arroxeados,  mal podendo emitir lamentoso vagido. Do outro lado, reunidos em grupos, estavam  os   nubentes,   rapazes   e   moças,   de   olhos   baixos,   confusos,   vexados   como  delinqüentes de amores criminosos, vindo pedir absolvição ao sacramento.           
  Luzia  permaneceu,  no  recinto  sagrado,  ajoelhada,  até  que  se  esvaziou  a  imensa  nave;  e,  quando  se  dispunha  a  sair,  foi  atraída  pelo  choro  das  crianças  e  pelo doloroso contraste das mães venturosas e das mães aflitas: umas, radiantes de  amor;   outras,   tristes.   acabrunhadas   de   mágoa,   animando,   desenganadas,   as  inocentes vítimas, para as quais a água lustral seria a extrema-unção.            
   — Se lhe fosse dado — pensava ela — casar como aquelas ditosas moças,  realizando o supremo anelo da mãe doente; se o seu amor fosse, como o daquelas  mães,  matronas  beneméritas,  sorrindo  aos  filhos  vigorosos,  abençoado  por  Deus,  experimentarei  o  inefável  júbilo  de  sentir-se  mulher,  humanizada,  completa  e  fecunda.  Não  temeria  que  os  seus  filhos  definhassem:  defendê-los-ia  contra  as  moléstias traiçoeiras e as intempéries, inimigas das criaturas tenras, as flores e as  crianças.  Dos  seus  seios  de  Pomona  correria  perene  manancial  de  vida,  que  as  pequeninas  bocas  rosadas  sorveriam,  sôfregas.  E  as  suas  entranhas  virginais  latejavam  em  alvoroço.  Havia  dentro  dela,  a  insurreição  dos  gérmens  da  vida  sofreados,  e  um  clamor  de  instintos,  entoando  o  hino  de  glória  à  maternidade  vitoriosa.           — Vamos aos batizados — disse o vigário, chegando ao átrio, revestido de  roquete rendilhado e cingindo estola roxa, de finíssimo lavor. — Os noivos não têm  pressa,  que  esperem  —  acrescentou,  atirando  por  cima  dos  óculos  de  ouro,  um  olhar de ironia aos grupos do outro lado.             
  Ao  começar  a  cerimônia,  Luzia  se  esgueirou  e  saiu,  buscando  a  casa  pelo  caminho mais longo e afastado da cadeia, onde Crapiúna imprecava, ameaçador e  furioso.           
  A mãe se arrastara até  à porta do quarto, onde vigiava a panela fumegante,  sobre  a  trempe  de  pedras,  e  ouvia  Quinotinha  ler,  muito  devagar,  e  por  vezes  soletrando, no jornal O Sobralense, a notícia dos episódios da audiência da véspera.             
 — Tudo isso — inquiriu a velha — está escrito aí?           
  — Está, sim, senhora — respondeu a rapariguinha — Aqui no fim tem um pé,  que diz: "Alexandre, a vítima da perversa aleivosia do soldado, que, assim, desdoira  a  farda  dos  bravos  heróis  do  Paraguai,  companheiros  de  jornada  gloriosa  dos  lendários Sampaio e Tibúrcio, é noivo de Luzia-Homem, a extraordinária mulher, que  é uma das melhores operárias da construção da penitenciária."            
   Luzia ouviu o último tópico, e prorrompeu indignada:             
  — 0 quê? Pois falam de mim nas folhas?... Era só o que me faltava.           
  — Sim — afirmou Quinotinha sorridente — Veja!...             
   E as duas repetiram a leitura; a menina transbordante de alegria; ela, confusa,  quase  não  acreditando  nos  seus  olhos,  diante  dos  quais  dançavam  as  colunas  e  letras  do  jornal,  mal  impresso  na  tipografia  Miragaia,  a  primeira  estabelecida  em  Sobral.          
  — Só vim aqui mostrar isto a vosmecês. Agora, vou indo que saí quase fugida  — disse Quinotinha, partindo a correr.          
  — Vai, anda, levadinha — murmurou a velha sorrindo. — Essa menina é uma  capeta.   Sabe   ler   letra   redonda!   Vejam   só!...   Agora   que   chegaste,   deixa-me  descansar um pouco na rede, enquanto me preparas um caldo.            
   Luzia  conduziu  a  mãe,  e  voltou  a  cuidar  da  cozinha.  Atordoada  ainda  pela  leitura  do  jornal,  ficou  algum  tempo  pensativa,  percebendo,  então,  por  que  toda  a  gente a contemplava no trajeto  para a igreja, por que tanto se arrebatava Crapiúna,  e os cochichos das mulheres durante a missa. Era uma vergonha estar na folha com  aquele  horrível  nome  —  Luzia-Homem,  tanto  se  lhe  agarrara  o  cruel  estigma.  Ao  emergir desse cismar, olhou, de soslaio, para o caminho, e, divisando um vulto de  homem que se aproximava devagar, correu para o quarto com a tigela de caldo para  a mãe.           Era Alexandre que se aproximava, a passo indeciso e lento.             
  — Ó! Da casa!          
  — É voz conhecida — observou a velha.         
  — É... é... — balbuciou Luzia comovida.        
  — Ó! De fora! Quem é? — respondeu a enferma, falando com esforço.          
  — Sou eu... tia Zefa.          
  — Eu quem?         
  — O Alexandre.          
  — Ah! Meu filho! Não te dizia, Luzia?... Vai ter com ele.          
   Alexandre,  fora  do  alpendre,  raspava  com  a  unha  a  casca  seca  de  um  dos  esteios  de  pau  branco.  Deparando-se-lhe  a  moça,  parada,  indecisa,  à  porta  do  quarto, avançou para ela e a saudou com ligeiro sorriso.            
  — Adeus, sra Luzia.          
  — Adeus, seu Alexandre.          
  — As duas mãos geladas, hirtas, mãos de autômatos, apenas se tocaram.         
  — Como está? — perguntou Luzia, de olhos baixos.          
  — Eu! Melhor de ontem para hoje, como quem saiu da prisão.          
  — É horrível!...         
  — Nem pode fazer idéia do que é...          
  — Abanque-se...          
  — Estou bem. A demora é pouca. Vinha saber como está tia Zefa e vosmecê.          
  — Boas, graças a Deus.            
   Houve pausa cruciante de enleio e vexame para ambos. Muito pálidos, muito  comovidos, não sabiam mais que dizer. Luzia, por fim, rompeu o silêncio:            
  — O senhor viu por aí Teresinha?          
  — Esteve, ontem, comigo, à tardinha. Prometeu estar aqui hoje...          
  — Não veio desde ontem.          
  — É esquisito.          
  — É. Não acha? O senhor não quer falar com mãezinha? Pode entrar.  Alexandre  entrou  no  quarto,  e  Luzia  ficou  só  no  alpendre,  inteiriça,  imóvel,  contemplando o céu, em êxtase. E assim ouviu as ruidosas manifestações da alegria  da  mãe,  as  perguntas  precipitadas  que  ela  dirigia  a  Alexandre,  as  palavras  de  consolação, afetuosas, sinceras, embebidas de maternal carinho.          
  Venha sempre ver a gente — suplicava a velha, sorrindo. Virei,  sim.  Virei  amanhã,  se  Deus  quiser.  Só  tenho  medo  de  importunar  —  respondeu Alexandre, com ligeiro tom de mágoa.          
   Sentindo Alexandre a seu lado, quando ele saiu do quarto, Luzia, arrancada  de  súbito  à  meditação,  fez  um  gesto  de  susto.  A  atitude  do  moço  era  a  de  quem  hesita   em   dizer   alguma   coisa,   de   abrir-lhe   o   coração,   sufocado   de   ternura.  Vencendo, por fim, o enleio,  ele tirou do bolso os cravos murchos, e, como criança  medrosa recitando um recado, murmurou:           
  — Aqui estão estas flores, que a senhora esqueceu no baldrame da grade da  cadeia... Adeus... Até outra vez...          
 — Até... — suspirou ela arquejante, guardando as flores no seio, e apertando- as contra o peito, em frenético amplexo, enquanto ele lhe voltava as costas, e partia.          
 — Seu Alexandre!...             
  O moço estacou ansioso, não ousando encarar nela.           
 —  Quero  pedir-lhe  uma  coisa  —  disse  a  moça,  caminhando  para  ele,  vagarosa e humilhada. — Não repare... no que tenho feito... Sou má de nascença...  Minha sorte é fazer os outros padecerem... Tenha dó de mim... Peço... Peço-lhe que  me perdoe...          
 —  Luzia!  —  exclamou  ele,  numa  explosão  de  ternura,  estendendo-lhe  os  braços para ampará-la, porque ela vacilava.          
 —  Perdoe-me  —  repetiu  a  mísera,  vencida,  com  voz  angustiada,  quase  à  surdina, estacando diante de Alexandre, que sorria.      

CAPÍTULO  XXVII             

Dias depois, soube Luzia do paradeiro de Teresinha. Raulino contou-lhe como a encontrara, sucumbida, em amarga tristeza, a se  penitenciar no serviço doméstico de uma família desconhecida.           
  —  É  possível  —  exclamou  Luzia  —  que  aquela  pobre  esteja  vivendo  de  aluguel? Por que nos abandonou sem motivo?          
 — Eu não sei dizer — observou Raulino. — O que sei é que ela está servindo  a uns retirantes ricos, aboletados na casa da fortaleza. Não me disse porquê. Ali há  coisa. Se vosmecê se encontrar com ela, não a conhece.          
 — Coitadinha!          
 —  Não  é  mais  aquela  mulherzinha  espevitada  e  alegre.  Não  fala  quase.  A  modos que lhe botaram mau olhado!          
 — Quem sabe se não a intrigaram comigo?     
 — Não duvido. Há gente  para tudo. Quando eu lhe disse que íamos trabalhar  nas obras da ladeira da Mata-fresca, ela ficou calada, imaginando, e disse-me por  aqui assim: "A Luzia é feliz; vai sair deste inferno... Eu é que estou condenada por  toda  a  vida."  E,  como  eu  lhe  inculcasse  que  devia  abandonar  aquela  gente,  os  patrões, para, vir conosco, abanou a cabeça, desanimada que metia pena... Ah! Sra  Luzia! Imagine que a pobre faz todo o serviço; até trata de um burro velho, pele e  osso, sem préstimo para nada.         
 — Se seu Raulino fosse comigo, iria vê-la.         
 — Ora, ora, ora!... É já. Que não farei eu para servir ao meu anjo  da  guarda?  Olhe, benefício no meu coração pega de galho. Vamos por detrás do cemitério velho  e num instante, estamos lá. Pelo caminho continuaram a conversar, Luzia marchava  ligeira movendo o corpo com flexões de faceirice, a cabeça erecta, e o semblante  sereno,  rebrilhando  ao  júbilo  de  encontrar  a  amiga.  Raulino  aligeirava  a  travessia,  contando,  com  a  avidez  contumaz  do  sucesso,  as  suas  maravilhas,  as  suas  histórias.          
 — Sabe — disse ela, abeirando ao assunto que a preocupava naqueles dias  — que vamos morar na ladeira?     — Já sei. O Alexandre teimou em deixar o serviço da comissão. Eu, no caso  dele,  não  largava  o  certo  pelo  duvidoso.  Empregado,  como  está,  não  arranjará  melhor  arrumação.  Enfim,  pode  ser  que  melhore.  Na  serra,  a  gente  está  mais  à  fresca, tem água com fartura.           
 —  E  vai  para  longe  desse  povaréu  de  pobres,  esfomeados  que  cortam  o  coração... Não é?          
 —  Lá  isso  é  verdade.  O  doutô,  engenheiro  das  obras  pesque  é  inglês  ou  alemão. Não sei bem que língua ele fala. Bota o Alexandre no mesmo emprego que  aqui tem, com uma gratificação de três mil-réis por dia, afora a ração. Quando é a  viagem?          
 — Por estes dias. Talvez, depois d"amanhã.          
 — E eu rente...          
 — Também vai?          
 — Se estou nomeado feitor!... De mais a  mais, já resolvi não largar de mão a  gente  que  me  quer  bem.  Comigo  vai  uma  troça  de  rapazes  de  primeira  ordem;  homens que são mouros no trabalho.          
 —  E  eu  que  tenho  pena  de   deixar  aquela  casinha,  onde  curti  tantas  amarguras!          
 — É assim mesmo. A gente tem saudade quando abandona o poleiro antigo;  mas, ao depois, tendo junto os seus, se  conforma depressa, e as saudades voam  como folhas secas tangidas por um pé de vento.          
 — Quero ver se Teresinha também nos acompanha.          
 — Ela é meia bandoleiro.         
 — Mas, tenho certeza de que me quer muito bem.         
 —  Não  digo  o  contrário.  Experimente...  E...  a  propósito...  Sabe  que  o  Crapiúna  fez,  outro  dia,  na  cadeia  um  rolo  danado?  Estava  como  uma  fera.  Pensavam até que havia perdido o juízo.            
  Luzia sentiu percorrer-lhe o corpo intensa crispação de terror.           
 — Mas eu — continuou Raulino — disse logo que aquilo era cachaça.          
 — Quem sabe!... Talvez não — arriscou Luzia.           
  Haviam chegado ao renque de casas da Leonor, que terminava na casa mal- assombrada.          
  —   E   aqui   —   disse   Raulino,   indicando   o   pardieiro   desengonçado.   
 —  Abeiremos às pedras da fortaleza, Teresinha deve estar nos fundos.             
  Junto  dos  rochedos  a  prumo,  havia  uma  latada  de  palhas  de  carnaúba,  recentemente  construído  para  servir  de  abrigo  ao  burro,  que  ali  estava  de  pé,  sonolento,  espantando,  devagar,  com  açoites  da  cauda  pelada,  as  moscas  que  erravam  sobre  as  chagas  da  sarnelha  e  das  espáduas,  quase  cicatrizadas  numas  manchas negras, lubrificadas com azeite de carrapato. Mais adiante, alguém lavava  roupa,  com  um  lânguido  bater  cadenciado  de  pano  molhado,  algumas  peças  enxombradas, arrumadas, em tulha, sobre um lajedo úmido.                     
  — Teresinha! — chamou Luzia.            
  Cessou o rumor de lavagem, e Luzia insistiu.             
  — Teresinha, sou eu, Luzia!...             
  E,  avançando  de  jacto,  deparou-se-lhe  a  amiga,  que  se  erguera,  seminua,  com uma saia a tiracolo, molhada, colada ao corpo.             
 — Que é isto? — exclamou Luzia, passando-lhe o braço nos ombros.          
 —  Nada  —  suspirou  a  amiga,  baixando  os  olhos,  quase  opacos,  de  infinita  tristeza. — Estou pagando as minhas culpas...           — Ingrata! E eu que esperei, que passei noites em claro, pensando em você.            — Para que afligir os outros com a minha desgraça!           
 — Que desgraça! Deus teve pena de nós.             
 E, com um meigo gesto de ternura, conchegou-lhe a cabeça ao seio.            
 — Sou amaldiçoada ...           
 — Amaldiçoada? Que maluquice! E por isso está servindo de negra cativa?  Como está você mudada, magra! Como ficou outra em tão poucos dias!...           
 —  Teresa,  deixe,  minha  filha;  não  te  mates  tanto  —  disse,  dentro  de  casa,  uma voz carinhosa.            — Quem é? — perguntou Luzia.           
 — É... é... — balbuciou Teresinha, com os olhos trêmulos,  rasos de lágrimas  — É... minha mãe...       
 — Tua mãe?!           
 — Sim, ela mesma.         
    E contou como encontrara a família, contou as suas alegrias por se mais não  achar  só  no  mundo,  desprezada  e  vilipendiada,  alegrias  que  foram  efêmeras,  desfeitas pela cólera do pai que lhe recusara a bênção, e a tratava como estranha à  família. Os carinhos da mãe, o doce contacto da irmãzinha, a suave Maria da Graça,  que era um anjo de bondade, mal lhe leniam  a rudez fulminante do golpe, que lhe  lascara  o  coração,  e  o  expusera,  retalhado,  à  luz  com  as  suas  máculas,  como  chagas   sangrentas,   descascados.   Desde   aquele   momento,   horrorizada   de   si  mesma,  obrigada  a  baixar  os  olhos  diante  dos  entes  queridos,  sabedores  do  seu  grande crime, e evitando o frio olhar paterno, se consagrara inteira à redenção do  passado nefando, pelo castigo cruel e merecido.          
 — Tive ímpetos — concluiu ela, aos soluços — de trepar naquelas pedras e  atirar-me de lá de cabeça para baixo, mas... não tive coragem de morrer...          
 —  Deixa-te  disso  —  acudiu  Luzia,  com  ternura  —  Aqui  estou  eu  para  te  ajudar, para te pagar o muito que me fizeste, porque se sou feliz, a ti é que devo e a  Deus.           
  Vim atrás de ti. Iremos juntos para a serra, onde vamos trabalhar.            
 — Não posso... E meu pai?         
 — Teu pai, mãe, irmã irão mais nós. Alexandre encontrará meio de arrumar  todos  como  uma  família.  Não  é  possível  que,  depois  de  vivermos  como  duas  amigas, nos separemos, talvez para sempre.         
 — Se conseguisse isso, seria um alivio para mim. Pelo menos, deixaríamos  esta casa maldita, onde não se pode pregar olhos toda a noite. Já vivo com o corpo  moído; doem-me as cadeiras que, às vezes, não me atrevo a torcer-me; tenho nos  ouvidos um besouro a zunir sem parar.  Quando consigo passar por uma modorra,  me vêm sonhos agoniados; sonho que me caem os dentes, o Cazuza me arrasta  pelos cabelos para me atirar num despenhadeiro, e acordo em meio da queda. Esta  noite senti mãos frias que me encalcavam o peito, mãos de defunto a me sufocarem,  e  ouvi  uma  voz  fanhosa  a  dizer  coisas  sem  pé  nem  cabeça.  Despertei  com  o  coração a saltar pela goela. Vi, então, um vulto branco que se desmanchava no ar, e  com um gemido surdo e... gritei... Mamãe, que passa a noite a rezar, correu a ver o  que era... Eu estava, como quem perdeu o juízo, apontando para o fundo escuro do  quarto... Ah! Luzia! Nem pode imaginar o que tenho sofrido...        
  — Coitadinha!..          
  — Hoje de manhã, quando mamãe contou o caso a meu pai, ele respondeu...  Que foi que ele disse? Deixa ver se me lembro... Ah!... Não se amofine, mulher; é o  remorso. Depois, acrescentou com voz mais branda: Veja se arranja uma retirante  limpa para certos serviços, para que ela não se mate tanto... Dando casa e comida,  não falta quem queira trabalhar.           
  O burro, num acesso de impaciência, orneou.           
  —  Está  pedindo  milho  —  observou  Teresinha  —  Este  malvado  é  os  meus  pecados.  Estava  quase  morto;  não  se  dava  nada  por  ele.  Recobrou  as  forças,  comendo  da  minha  mão;  e,  quanto  mais  o  trato,  mais  manhoso  fica.  Parece  de  propósito para judiar comigo. Se o ponho a andar, empaca; fica como uma pedra;  não se mexe. Outro dia ao passar por ele, mordeu-me de furto... E é só comigo que  ele implica.          —  Tem     paciência, minha     negra. O que  estás    padecendo  é  bem  recompensado pela fortuna de haveres encontrado tua família.         
   Raulino,  que  estivera  à  parte,  examinando  o  animal  enfermo,  com  olhares  magistrais   de   conhecedor,   aproveitou  o   ensejo   para   encartar   uma   das   suas  anedotas sobre astúcias e manhas de burros.           
  — Era por volta da era de sessenta. Não me lembra bem o ano; só sei que eu  era  rapazote;  pelo  tope  dos  doze.  Andava  por  estes  sertões  uma  comissão  de  doutores,  observando  o  céu  com  óculos  de  alcance,  muito  complicados,  tomando  medida das cidades e povoações e apanhando amostras de pedras, de barro, ervas  e matos, que servem para meizinhas, borboletas, besouros e outros bichos.            Os maiorais dessa comissão eram  homens de saber, Capanema, Gonçalves  Dias,  Gabaglia,  um  tal  de  Freire  Alemão,  e  um  doutô  médico  chamado  Lagos  e  outros. Andavam encoirados como nós vaqueiros; davam muita esmola e tiravam, de  graça,  o  retrato  da  gente,  com  uma  geringonça,  que  parecia  arte  do  demônio.  Apontavam para a gente o óculo de uma caixinha parecida gaita de foles e a cara da  gente,  o  corpo  e  a  vestimenta  saíam  pintados,  escarrados  e  cuspidos,  num  vidro  esbranquiçado como coalhada.    Uma tarde, chegaram, ao pôr-do-sol, à fazenda do  velho.  Iam  no  rumo  da  gruta  do  Ubajarra. Aboletaram-se  no  copiar,  derrubando  o  comboio, que era um estandarte de malas, instrumentos, espingardas, na casa dos  passageiros.  Depois  de  jantarem  um  bom  trassalho  de  carne  de  vaca  gorda  que  parecia um leitão, assada no espeto, algumas lingüiças e um chibarro aferventado  com pirão escaldado, armaram as redes nos  esteios. Veio a noite, clara como dia,  sem uma nuvem no céu, liso como um espelho. Convidava mesmo a gente a dormir  na fresca do alpendre. Ali pelas sete horas, disse a eles o velho: "Achava melhor  vossas senhorias passarem cá para dentro, porque vem aí um pé d"água de alagar."  Ora, os doutores, que sabiam tudo e adivinhavam pelas estrelas as mudanças de  tempo,  zombaram  do  aviso;  saíram  para  o  terreiro  e  olharam  para  o  céu,  sempre  limpo  e  claro,  para  verem  o  que  diziam  as  estrelas.  O  mais  sábio  deles,  o  doutô  Capanema,  disse  que  o  velho  estava  sonhando  com  chuva,  mania  de  sertanejos,  que  não  pensam  noutra  coisa.  Teimaram  em  ficar  no  alpendre,  embora  o  velho  continuasse a assegurar que se arrependeriam. Quando estavam ferrados no sono,  ali pelas onze horas, acordaram debaixo d"água e correram com a rede nas costas,  em procura de abrigo dentro de casa, todos admirados uns dos outros, como haviam  mangado  do  velho.  De  manhã,  antes  de  deixarem  o  
rancho,  foram  agradecer  a  hospedagem,  e  um  deles  perguntou  ao  velho:  "Como  é  que  vossa  senhoria  percebeu sinais de chuva, que escaparam a  nós outros científicos, envergonhados  do quinau de mestre que nos deu?" O velho sorriu, e respondeu: "É muito simples.  Tenho ali, no cercado, um burro velho que, quando se está formando chuva, rincha  de certo modo: é aquela certeza. A chuva vem sem demora. Foi por isso que avisei  a  vossa  senhoria."  O  tal  de  Gonçalves  Dias,  pequenino,  muito  ladino  e  esperto,  começou a bulir com os outros, dizendo  a eles: "Estamos numa terra, onde burros  sabem mais que astrônomos." Foi gargalhada  geral. Aí está — concluiu Raulino —  de quanto é capaz um burro velho.   Ninguém se fie em semelhante raça de bicho...          
  Dispunha-se a contar outras histórias, quando apareceram Clara e Maria da  Graça, que já conheciam Luzia, por informações de Teresinha.           
  —  A  Teresa  —  disse  Clara  com  voz  lenta  e  meiga  —  quer  muito  bem  à  senhora e eu já lhe quero também muito pelas ausências que ela lhe fez.          
 — Esta é a Luzia-Homem? — perguntou a  ingênua Maria da Graça — Pois é  bonita moça. Não tem nada de homens... Não é, mamãe?...          
 — É apelido que lhe puseram, filhinha. Não digas mais semelhante palavra.         
 — Não faz mal — observou Luzia, visivelmente enleada — É assim que me  tratam.          
 — Perdoe — balbuciou a rapariga — Pensei que era mesmo o seu nome...            E, logo, houve palestra cordial, como se fossem conhecidas de longa data. O  projeto  da  mudança  para  a  Meruoca  foi  acolhido  com  entusiástica  alegria;  mas  faltava  o  essencial:  o  consentimento  de  Marcos.  Não  ousando  a  mulher  e  a  filha  consultá-lo, Raulino e Luzia resolveram procurá-lo para saberem a sua opinião.         
  Marcos estava na sala da frente, sentado na rede branca,  enfeitada a ponto  de   marca,   com   vistosas   ramagens   vermelhas   e   largas   varandas   franjadas,  arrastando  na  esteira,  onde  ele  deixara,  em  desalinho,  um  livro,  As  Missões  Abreviadas marcado com os óculos de oiro, o lenço de ganga azul e uma caixa de  rapé de tartaruga, restos da abastança perdida. Com as largas mãos descarnadas,  eriçadas  de  pêlos,  sustendo  a  cabeça,  vergada  ao  peso  das  idéias  tristes  que  a  povoavam, o velho meditava, baloiçando-se lentamente.          Raulino chegou à porta; Luzia após ele.                   
  — Dá licença, seu capitão Marcos — disse Raulino, cortesmente.          
  — Quem é? — respondeu o velho tomado de surpresa.         
  — É de paz.          
  — Queira entrar...            
  O velho ergueu-se; examinou-os com os pequenos olhos azuis e profundos;  demorou-os sobre Luzia alguns instantes; e, indicando as malas que, com as redes,  davam a mobília da sala, principiou, com uma pausa triste, a voz seca, penetrante e  cava:            — Abanquem-se. Não ignorem a desarrumação, pois somos com boieiros de  passagem.          — Eu e esta moça somos muito camaradas de sua filha, dona Teresinha.            Marcos  tornou-se  lívido.  Raulino  continuou,  com  a  desenvoltura  de  homem  despachado e ladino:             —  E  sabemos  que  a  vossa  senhoria   não  se  lhe  daria  de  achar  uma  arrumação...         
 —  Ainda  tenho  algumas  migalhas  —  atalhou  o  velho  —  para  não  morrer  à  fome...         
 — Sabemos; mas, não seria mau ganhar alguma, ainda que só chegue para o  prato.          
 — Contanto que seja serviço ao alcance de minhas forças... Eu já não posso  com trabalhos puxados...           —  Não  há  dúvida.  É  serviço  nas  posses  de  vossa  senhoria,  nas  obras  do  Governo...          
 — Onde é isso?          
 —  Na Meruoca...          
 — Já lá estive, há muitos anos, em compra de farinha.          
 —  Então  está  feito?  Nós  ficamos  muito  agradecidos  a  vossa  senhoria,  que  nos faz um favorzão. Esta moça é sra Luzia-Homem. Ela, estava com acanhamento  de falar.          
 —  Eu  não  sou  mau,  dona  —  murmurou  o  velho,  compungido.  —  Os  desgostos me puseram assim. Era feliz,  na minha fazenda, uma situação bem boa,  que não me dava cabedais, mas produzia com que viver sem ser pesado a ninguém.  Entrou-me,  um  dia,  de  repente,  a  desgraça  em  casa  e  fugiu-me  para  sempre,  o  sossego. Vi... minha santa mulher envergonhada; ela e a filha caçula a chorarem,  escondidas pelos cantos para me não amargurarem. Eu mesmo, tão ralado na vida,  parecia  oco,  sem  alma,  como  se  me  houvessem  roubado  o  coração.  E  saía  atrás  dele,  à  toa  pelo  mato,  como  um  desmiolado,  em  procura  da  filha  ingrata,  que  o  levara. Dias e noites, passei na aflição de sentir-me atolado na lama, estas barbas  sujas, evitando os amigos e conhecidos, que me procuravam. Eu tinha vergonha de  encarar  nos  próprios  bichos,  quanto  mais  em  cristãos,  que  conheciam  a  infâmia...  Pedi a Deus que me matasse, e Deus não  me ouviu... Conservou-me a vida para  castigo meu, para que eu ficasse no mundo como um condenado... Depois, o tempo  foi  roendo  o  que  me  restava  de  melindre.  A  negra  chaga  fechou  por  fora;  mas  continuou  alastrando  por  dentro...  Afinal,  a  gente  se  acostuma  a  tudo...  Rezei  por  alma da ingrata e jurei que, dali em diante, só existiria para mim a filha mais moça,  essa inocente que não tinha culpa da crueldade da outra...                      
  A  voz  do  velho  rangia-lhe  na  garganta,  em  vibrações  metálicas;  tinha  as  modulações pungentes do estertor de uma alma estrangulada pelo mais querido dos  afetos.             
—   Moça   —   continuou   ele,   erguendo-se   e   dirigindo-se   a   Luzia,   que   o  contemplava,  comovida.  —  A  senhora  é  mulher  de  bem;  possui  mãe,  tem  pai?...  Conserve  a  sua  honra;  defendas  mesmo  a  preço  da  própria  vida...  Há  filhos  que  matam   os   pais...   Pois   há   piores   monstros   da   natureza —   as   filhas   que   os  desonram...  Os  mortos  deixam  de  sofrer;  mas,  os  vivos,  infamados  de  dor  e  vergonha, ficam com a alma enferma para sempre...           
 — Teresinha também tem sofrido tanto — observou, a medo, Luzia.          
 — Não me falem nela, se querem que  os acompanhe... Se a ela perdoasse,  era capaz de matar-me outra vez — murmurou o velho, cujos olhos azuis fulgiram  num relâmpago de cólera.          
   Clara ouvia de longe, atrás duma porta, esse doloroso colóquio. Não ousou  entrar  na  sala  para  ajudar  Luzia  na  defesa  de  Teresinha  tanto  conhecia  as  crises  terríveis daquela mágoa inextinguível; mas os seus lábios trêmulos, lábios doloridos  de  mãe  amantíssima,  nuns  estos  brandos  de  ternura,  murmuravam,  súplices,  desconsolados:             
 — Pobre da minha filhinha!...           
  Parece que açoitam diante de mim, a minha filha do coração.                     

   CAPÍTULO  XXIX             

  O sol repontava no horizonte, como um rubro e enorme disco. Surgindo de  um lago de oiro incandescente, quando o cortejo do êxodo se pôs em marcha, pela  estrada da serra.          
  Luzia  percorreu,  com  enternecimentos  de  saudade,  os  recantos  da  casa  vazia, onde ficavam o pilão, o jirau da latada, a trempe de pedra, os tições extintos,  enterrados  sob  tulhas  mornas  de  cinza,  tristes  vestígios  dos  habitantes  que  a  abandonavam. Contemplou, com lágrimas comovidas, o lar apagado, o terreiro, em  torno, limpo, varrido, as árvores mortas, os mandacarus carcomidos até ao alcance  dos dentes dos animais vorazes, a paisagem triste, coisas mudas e mestas, que se  lhe afiguravam companheiros de infortúnio, dos quais se despedia para sempre. E  partiu, conduzindo, à cabeça, uma pequena trouxa.         
  Seis possantes rapazes e Raulino iam à frente, revezando-se na condução da  tia Zefa, estirada na rede, amarrada a um  caibro longo e flexível. A bagagem, duas  malas  e  os  cacarecos  de  serventia  doméstica,  foi  levada  na  véspera  por  outros  trabalhadores e Alexandre, que  se adiantara para preparar a nova morada, o ninho  da ventura sonhada. A família de Marcos também partira com ele.         
  Ao  passar  a  rede  pelas  últimas  casas  da  Lagoa  do  Junco,  perguntavam  as  mulheres debruçadas sobre as janelas:           
  — Vai vivo ou morto?         
  — Bem viva, graças a Deus, respondia Raulino.          
  — Deus a conserve. Boa viagem!                    
 Luzia lançou demorado olhar ao morro do curral do Açougue, onde começava  de  alvejar,  de  reboco,  a  penitenciária,  enleada  na  floresta  de  andaimes,  quase  pronta  para  receber  a  cumeeira.  E  ocorreu-lhe,  como  recordação  piedosa,  a  triste  sina  dos  condenados  que  ali  ficavam,  por  toda  a  vida,  encerrados,  como  em  sepultura de pedra e cal. Dentre eles, surgia o espectro minaz de Crapiúna, cujos  gritos  terríveis  de  desespero  ecoavam  ainda  no  coração  dela,  por  mais  que  se  esforçasse por varrê-los da memória, e  libertar-se da implacável obsessão, que lhe  toldava a serenidade do amor vitorioso.          
 Desviando os olhos do morro sinistro, que fora o seu Calvário de vilipêndio,  compensado pela florescência dos instintos sagrados e do afeto redentor de Luzia- Homem,   ela   resfolegou   aliviada,   como   se   dentro   daquelas   paredes   maciças,  colossais,   ficassem   encarcerados   o   passado,   as   mágoas,   os   dissabores   dos  opressivos dias de miséria.          
  A  estrada  coleava  pelo  terreno  ondulado,  cômoros  calvos  e  vales  cortados  pelos sulcos dos regatos extintos, e alteando insensivelmente, ao passo que, com a  montanha, se aproximavam, cada vez mais nítidos, o arvoredo, as manchas peladas  dos  roçados  estéreis,  as  cintas  de  granito,  os  talhados  a  pique,  em  precipícios  medonhos,  e  grotões  sombrios,  destacados,  num  esmalte  bronzeado  de  neblina  vaporosa.          
 Madrugadores   serranos   desciam   para   a   cidade,   dirigindo   comboios   de  farinha,  de  rapadura,  o  derradeiro  produto  da  lavoura  agonizante.  Troteando  à  cadência  do  ranger  das  
cangalhas,  eles  saudavam  aos  viajantes,  repetindo  a  pergunta caridosa: "Vai vivo ou morto?" — quando, tirando o chapéu, se afastavam  para darem passagem à rede da tia Zefa.         
  À  margem  da  estrada,  dentre  moitas  de  mofumbos  ressequidos  e  juremas  desgrenhadas,  uns  fios  de  fumo  azulado  erguiam-se,  em  tênues  espirais,  dos  ranchos  de  retirantes,  acordados  àquela  hora  da  manhã,  e  pedindo,  plangentes,  uma esmolinha pelo amor de Deus.          Depois de duas horas de marcha, interrompida a espaços, para descanso dos  carregadores, tornou-se o solo mais acidentado em sucessivas colinas e contrafortes  tortuosos, dilatados, como raízes colossais pelo sertão, partido em vales profundos,  refrescados  pelas  filtrações  da  serrania,  sombreados  por  vegetação  da  folhagem  pardacenta,   retorcido   e   crestada.   Mais   longe,   uma   descida   íngreme,   sobre  estratificações da piçarra cortante, os levou ao sopé da montanha, onde começava a  ladeira,  e  apareciam  as  primeiras  árvores,  os  oitizeiros  frondosos,  cedros,  paus- d"arco e angicos em floração estiolada, contornando o riacho da Mata-fresca, do qual  restava  intermitente  fio  d"água  a  deslizar  sobre  lages,  e  gotejando  de  pedra  em  pedra,  como  vagarosa  lágrima.  O  séquito  parou  ao  abrigo  de  grandes  rochedos,  rolados e amontoados em confusão, por esforço titânico.  Forte aragem rumorejava  encanada pelo boqueirão, com um ruído de mar longínquo.            
 — Estamos quase em casa! — exclamou  Raulino. — Mas o rabo é o mais  difícil de esfolar. Ainda temos um pedaço de ladeira de suar topete. Se pudéssemos  ir pelo atalho, encurtaríamos metade do caminho, mas a rede não pode passar na  vereda cheia de voltas, troncos e barrancos que é mesmo uma escada de demônios.  — Não há dúvida, seu Raulino — observou um dos rapazes, limpando, com o  dedo, o suor que lhe perolava  a fronte. — Nem que fosse carga mais pesada; nós  somos cabras de talento; vamos bater lá num fôlego, quanto mais a tia Zefinha que é  leviana como uma pena.          
 — Vocês são mas é uns prosas — tornou o sertanejo, ironicamente. — Vejam  como  estão  melados!  Com  qualquer  forcinha  ficam  botando  a  alma  pela  boca.  Vamos  ver  se  chegamos  à  Cova  da  Onça  sem  arriar.  Um  trago  da  branca  está  esperando a gente lá em riba. Vosmecê, sra Luzia, que é ligeira, vá pelo atalho que  é melhor. Quando chegar no primeiro cotovelo da ladeira, quebre a mão esquerda  por  uma  vereda  trilhada,  que  desce  de  cabeça  abaixo;  chega  no  fundo  da  grota;  passa  entre  dois  muros  de  pedra;  atravessa  o  riacho  e  sobe  por  dentro  de  um  bananal.  Chegando  na  lombada  do  oiteiro,  avista  logo  a  casinha  no  meio  de  laranjeiras.          
 — Você já esteve aqui, seu Raulino? — inquiriu Luzia.          
 — Ora, ora, ora! Eu conheço o oco do mundo. Oh! Aqui vai a Teresinha. Veja  o rasto dela, pequenino, delgado no meio que não toca no chão. Se apertar o passo  ainda a pega, porque ela vai cansada. O rasto miúdo e encalcado mostra que vai  devagar... Eu rastejo, como se lesse no chão, até por cima da pedra, folharal e até  dentro d"água...            
 E, voltando-se para os carregadores:            
 — Vambora! Pega de jeito; acerta o  passo, cabroeira mofina!... Vamo, vamo,  que é meio-dia... Agüenta o balanço! Aonde vocês botam o pirão que comem? Até  daqui a um tiquinho, sra Luzia...           
  E  seguiram,  em  festiva  algazarra,  estimulando-se  com  gritos,  graçolas  que  repercutiam, com fragor, nas quebradas do boqueirão. Raulino os tangia com ordens  de  comando,  emitidas  no  tom  gutural  dos  vaqueiros,  voz  retumbante,  que  ele  pretendia fosse ouvida a léguas.         
  Luzia foi subindo após eles, sem esforço, lentamente, até à primeira volta da  ladeira,  daí  em  diante  cavada  na  aresta  das  rochas,  talhadas,  a  prumo,  sobre  o  grotão profundo. Desse sítio agreste, descortinou o panorama do sertão, cinzento de  mormaço,  terminando  no  recorte  azulado  das  serranias,  ao  nascente,  avultando,  erectos, denteados e finos, como agulhas de catedral gótica, os picos, que eriçam as  crateras extintas dos olhos-d’água do Pajé. Uma facha verde-escuro, serpeando a  perder-se  no  horizonte,  assinalava  o  interminável  renque  de  oiticicas  seculares,  marcando o sulco do rio estanque; depois espelhavam ao sol glorioso daquele dia  abrasador,  a  cidade  em  agrupamento  informe,  apenas  esboçado,  as  casas  das  fazendas abandonadas, ponteando,  aqui e ali, a planície devastada e quieta, como  um imenso pântano.          
  Enternecida  na  contemplação  daquele  espetáculo  extraordinário,  na  sua  tristeza de paisagem morta, o sertão devastado como a terra combusta do Profeta,  ouvia  o  festivo  alarido  dos  silvos  das  cigarras  escondidas  nos  troncos  vetustos,  e  hauria   o   ar   fresco   da   montanha,   embalsamado   pelo   capitoso perfume   das  imburanas, a descascarem, numa exuberância magnífica de seiva.          
  Desse   enlevo,   arrancou-a   o   brado   longínquo   de   Raulino,   gritando   aos  carregadores da rede. Do outro lado do desfiladeiro, mais longe ainda, Alexandre, do  terreiro  da  casinha,  respondia,  radiante  de  alegria  pela  aproximação  dos  entes  queridos.           
  Obedecendo  à  indicação  do  sertanejo,  Luzia  desceu  pela  tortuosa  ladeira,  que  ia  no  fundo  da  grota, e,  sustendo-se  nos  arbustos  das  margens  para  não  escorregar,  colhendo  flores  silvestres,  parando,  a  revezes,  para  desembaraçar  as  vestes dos espinhos que a detinham, chegou à garganta, que Raulino designara por  dois muros de pedra, duplo dique donde se despenhava, em catadupas, o riacho,  quando Deus dava ao Ceará chuvas benfazejas e fecundantes. Erguendo a saia, ela  fruiu  a  delícia,  havia  muito  não gozada,  de  imergir  n"água  sussurrante,  os  pés  pequeninos,  as  pernas  roliças  e  musculosas, adornadas  de  aveludada  pelúcia  negra. Com as vestes presas ao joelho, curvou-se, colheu aljôfares cristalinos nas  palmas côncavas das mãos, e banhou o rosto e os cabelos, polvilhados pela poeira  do caminho.             Interrompeu-a   pavoroso   grito,   e   uma   voz,   que   ela,   transida   de   terror,  reconheceu, rugiu:            —  Foi  o  diabo  que  te  atravessou  no  meu  caminho.  É  a  última  vez  que  me  empatas, peitica do inferno!...             
  Luzia, na confusão da surpresa, tentou recuar, esconder-se nas fendas dos  rochedos; mas, vencendo o impulso de cobardia, e avançando, cautelosa, deparou- se-lhe  Teresinha,  na  outra  margem  da  torrente,  algemada  de  terror,  agitando,  frenética, os braços, presa a voz na garganta e as pernas paralisadas, chumbadas  ao solo. Aquém, arquejava Crapiúna em estos de cólera, tentando galgar as pedras  que os separavam.            
 —  Desta  vez  —  grunhia  o  soldado  —  nem  Deus  te  acode,  ladra  ordinária.  Fugi,  durante  a  faxina  da  madrugada,  para vir  lavar  o  meu  peito...  Ah!...  Vais  ver  para quanto presto, cachorra!...            
 Em convulsão de nervos enrijados, Teresinha estertorava agoniada, agitando,  com uns acenos epilépticos, as mãos desarticuladas.            
 —  Deixe  a  rapariga,  seu  Crapiúna  —  bradou  Luzia,  avançando,  resoluta  e  destemida.        
  O soldado voltou-se como um tigre, ferido pelas costas.           
  Diante  da  moça,  em  postura  de  firmeza  impávida,  magnífica  de  vigor  e  de  beleza, o soldado empalideceu, fez-se lívido, e recuou, como se um prestígio sobre- humano lhe aplacasse os ímpetos incoercíveis de cólera e de vingança.            
 — Luzia! — murmurou ele, quase súplice — Não lhe quero fazer mal... Sou  um  desgraçado,  um  miserável...  Pedi-lhe  outro  dia,  pelo  amor  de  Deus,  um  instantinho de atenção. Não fez caso; não teve dó de mim... Agora vai se decidir a  minha sorte...           
 —  Arrede-se;  deixe-me  passar!...  —  intimou  Luzia,  com  força,  num  tom  imperativo, breve e seco.         —  Escute-me,  meu  coração...  Nenhum  homem  neste  mundo  lhe  quer  bem  como eu.           
 — Deixe-me passar!...           
  — Passar!?...            
  Luzia avançou agressiva. —   Pensas   —   continuou   Crapiúna,   recuando,   transfigurado   o   rosto   por  diabólico sorriso — Pensas que tenho medo de Luzia-Homem? Desgraça pouca é  bobagem...           
   E  atirou-se  de  um  salto  sobre  Luzia,  que,  empolgando-o  quase  no  ar,  o  torceu, e, atirando-o ao chão, subjugado, comprimiu-lhe o peito com os joelhos.           
  O séquito parara na Cova da Onça, cerca de cem metros de altura, donde se  viam, distintamente, os lutadores.Crapiúna gemia, espumava de raiva, medonho, sob a pressão inexorável que  o esmagava.               —   Miserável,   miserável!   —   gritava Luzia,   rubra   de   pudor,   de   cólera,  procurando  deter  as  mãos  crispadas  do  soldado  a  lhe  rasgarem  o  vestido  —  Alexandre!... Raulino!...             
  A voz vibrante de angústia retumbou nas quebradas do boqueirão, como um  clangor de clarim, e a de Raulino Uchoa respondeu como um eco:             
  — Agüente; tenha mão nesse malvado, que já vou!...           
   Aproveitando  um  movimento  da  rapariga  para  compor  o  traje,  Crapiúna  ergueu-se,  e  recuou  de  salto.  Arquejava  de  cansaço,  e  da  boca  lhe  borbulhava  sangrenta espuma. Os olhos, injetados, fulgiam de volúpia brutal, louca, fixando-se  desvairados em Luzia, desgrenhada, o seio nu  e as pernas esculturais a surgirem  pelos rasgões das saias, caídas em farrapos.          
  Ébrio  de  luxúria,  exasperado  pela  invocação  de  Alexandre,  o  monstro,  recobrado o alento, acometeu-a, rugindo.          
  Luzia conchegou ao peito as vestes dilaceradas, e, com a destra, tentou lhe  garrotear o pescoço; mas, sentiu-se presa pelos cabelos e conchegada ao soldado  que, em convulsão horrenda, delirante, a ultrajava com uma voracidade comburente  de beijos. Súbito, ela lhe cravou as unhas no rosto para afastá-lo e evitar o contacto  afrontoso.           
  Dois   gritos   medonhos   restrugiram   na   grota.   Crapiúna,   louco   de   dor,  embebera-lhe no peito a faca, e caía com o rosto mutilado, deforme, encharcado de  sangue.             
   —  Mãezinha!...  —  balbuciou  Luzia,  abrindo  os  braços  e  caindo,  de  costas,  sobre as lajes.           Raulino      precipitara-se       no    despenhadeiro.        
   Agarrando-se  aos arbustos  encravados  nos  interstícios  dos  rochedos,  escorregando  onde  o  penhasco  se  inclinava  em  rápido  declive,  saltando  com  energia  indômita  por  sobre  as  fendas,  pendurando-se  nos  cipós  que  entreteciam  a  floresta,  atufando-se  nas  frondes  das  árvores,  passando  de  uma  a  outra  com  agilidade  de  símio,  ou  deslizando  pelos  troncos nodosos, enleados de orquídeas, chegou ao fundo da gruta.           
  Lá, em cima, se ouviam os brados dos carregadores e os grandes gemidos  dilacerados da mãe angustiada:     — Meu Deus, Mãe Santíssima, valei-a, salvai a minha filhinlia!...            
   Momentos depois, o sertanejo surgiu do matagal, perto das pedras do riacho,  ofegante  do  esforço  da  fantástica  descida,  atassalhada  a  roupa,  escoriados  os  braços e pernas pelos espinhos, as mãos feridas, ensangüentadas.          
   Luzia,  hirta  e  lívida,  jazia  seminua.  Nos  formosos  olhos,  muito  abertos,  parecia fulgir ainda o derradeiro alento. Os cabelos, numa desordem, escorriam pela  rocha, forrada de lodo, e caíam no regato, cuja água, correndo em murmúrio lâmure,  brincava  com  as  pontas  crespas  das  intonsas  madeixas  flutuantes.  Na  destra  crispada,  encastoado  entre  os  dedos,  encravado  nas  unhas,  extirpado  no  esforço  extremo  da  defesa,  estava  um  dos  olhos  de  Crapiúna,  como  enorme  opala,  esmaltada de sangue, entre filamentos coralinos dos músculos orbitais e os farrapos  das   pálpebras   dilaceradas.   Sobre   o   seio,   atravessado   pelo   golpe   assassino,  demoravam,  tintos  de  sangue,  como  se  reflorissem  cheios  de  seiva,  cheios  de  fragância, os cravos murchos que lhe dera Alexandre.         
    Raulino recuou, cortado de terror, ante o cadáver; e, num turbilhão de cólera,  rugiu,  arrepiado,  apertando  os  dentes,  e,  com  uns  gestos,  que  eram  crispações  medonhas de fera, esquadrinhou o terreno, buscando e rebuscando o criminoso.          
   Crapiúna,  ganindo  de  dor,  estorcia-se,  erguia-se,  nuns  movimentos  loucos,  comprimido,  sob  as  mãos,  o  rosto  mutilado;  caía  e  erguia-se  de  novo,  até  que  rolando de pedra em pedra, se sumiu no precipício...          
   Voltando,      então,     para     junto     do    corpo     de    Luzia,     Raulino      curvou-se  compungido; apalpou-lhe o peito, ainda morno; e, aproximando os lábios da divina  cabeça da heroína, gemeu com intensa amargura, as palavras doloridas de unção  aos moribundos:                      
  — Jesus!... Jesus!... Seja contigo!... Jesus, Maria e José!...                                                                    FIM