Visualizar obra

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha 

Capítulo I 

Preliminares 

O Planalto Central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os 
mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que 
descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza 
afastando-o consideravelmente para o interior. 

De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a principio o 
traço contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias; depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral 
revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e 
escancelando-se em baias, repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de 
escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15° paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas... 

Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental. Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando à bacia do S. Francisco. 
Vê-se, do fato, que três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas, aí se substituem, ou 
se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que a partir do extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as vistas inexpertas dos forasteiros. A princípio abeiradas do mar progridem em sucessivas cadeias, sem rebentos laterais, até as raias do litoral paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as formações sedimentárias do interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do fastígio das escarpas; e quem a alcança como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica todos os exageros descritivos — do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina. 

É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico, topográfico e geológico a nenhuma se afigura tão 
afeiçoada à Vida. 
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se, estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões cuja urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões calcárias, ou diques de rochas eruptivas básicas, do mesmo passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas. 
A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, 
traçando originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e 
canalizassem as suas energias eternas para os recessos das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em traçados uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos terrenos até além do Paraná a feição de largos plainos ondulados, desmedidos. 

Entretanto, para leste a natureza é diversa. 
Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos afloramentos gnáissicos; e o talude dos planaltos 
dobra-se do socalco da Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos que, após apontarem as alturas de píncaros centralizados pelo Itatiaia, levam até o âmago de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas ao penetrar-se este Estado nota-se, malgrado o tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as caudais revelam este pendor insensível com derivarem em leitos contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas: o rio Grande rompe, rasgando-a com a força viva da corrente, a serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante os fundos vales de erosão do rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas as sublevações que vão de Barbacena a Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências, e jazem sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do ouro. 

A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os da borda marítima. A região 
continua alpestre. O caráter das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que se 
empilham as placas do itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam nivelando-se às cimas da serra do Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando "travessões" sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se destinam à bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, onde se abrem as cavernas do homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial do solo. 

De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez 
sotopondo-se a outras, mais modernas de espessos estratos de grés. 
Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante. Mal estudado embora, caracteriza-o 
notável significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do sul ali se extinguem, soterradas, numa 
inumação estupenda, pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece 
elevada, alongando-se em planuras amplas, ou avultando em falsas montanhas de denudação, descendo em 
aclives fortes, mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos num horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices dos albardões distantes, que perlongam a costa. 

Verifica-se. assim, a tendência para um aplainamento geral. 
Porque, neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arqueanas, a região 
montanhosa de minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte. 

A serra do Grão Mogol raiando as lindes da Bahia, é o primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas 
imitando cordilheiras, que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham, da do 
Cabral mais próxima, à da Mata da Corda alongando-se para Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os sulcos de erosão que as retalham são cortes geológicos expressivos. Ostentam em plano vertical, sucedendo-se a partir da base, as mesmas rochas que vimos substituírem em alongado roteiro pela superfície: embaixo os rebentos graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas mais recentes; no alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os flancos em vales monoclínicos, os lençóis de grés, predominantes e oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais caprichosos modelos. 

Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regímen torrencial sobre o terreno permeável e 
móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando-as, talhando-as em quebradas que se fizeram cañons, e se fizeram vales em declive, até orlarem de escarpamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência dos materiais trabalhados variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas, desvendando-se em fraguedos que mal relembram, na altura, o antiqüíssimo "Himalaia brasileiro", desbarrancado, em desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais caprichosos, se escalonam em alinhamentos incorretos de menires colossais, ou em círculos enormes, recordando na disposição dos grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas ou então, pelos visos das escarpas, oblíquos e sobreanceando as planuras que, interopostos, ladeiam, lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira, desabada... 

Mas desaparecem de todo em vários pontos. 
Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata 
de tabuleiros suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos 
quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida 
em chapadões ondulantes —grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros... 
Atravessêmo-la. 

Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: no rumo firme do norte a série do 
grés figura-se progredir até ao plateau arenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo-as às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico do Bom Jesus da Lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações intensas (porque a serra Geral segue por ali como anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros), se desvendam, ressurgindo, as formações antigas. 
Desenterram-se as montanhas. 

Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou 
antes um prolongamento, porque é a mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e alteando-se com os mesmos contornos alpestres e perturbados, nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos huronianos das cadeias paralelas de Sincorá. 

Deste ponto em diante, porém, o eixo da serra Geral se fragmenta, indefinido. Desfaz-se. A cordilheira 
eriça-se de contrafortes e talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do Paraguaçu, e um dédalo de serranias tortuosas, pouco elevadas mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre o largo dos gerais, cobrindo-os. Transmuda-se o caráter topográfico, retratando o desapoderado embater dos elementos, que ali reagem há milênios entre montanhas derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos começa a derivar em desnivelamentos consideráveis. Revela-os o S. Francisco, no vivo infletir com que torce para o levante, indicando do mesmo passo a transformação geral da região. 
Esta é mais deprimida e mais revolta. 

Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente esparsos. Último rebento da 
serra principal, a da Itiúba reúne-lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da Furna, Cocais e Sincorá. Alteia-se um momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte, originando a corredeira de quatrocentos quilômetros à jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até além do Monte Santo; e para leste, passando sob as chapadas de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso. 

E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a 
amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido... 

A entrada sertão 

Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte. 
Demarca-o de uma banda, abrangendo dois quadrantes, em semicírculo, o rio de S. Francisco: e de outra, 
encurvando também para sudeste, numa normal a direção primitiva, o curso flexuoso do Itapicuru-açu. Segundo a mediana, correndo quase paralelo entre aqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o traço de um outro rio, o Vaza-Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estupendo degrau, por onde descem para o mar ou para jusante de Paulo Afonso as rampas esbarrancadas do planalto, não há situações de equilíbrio para uma rede hidrográfica normal. 
Ali reina a drenagem caótica das torrentes, a naquele da Bahia facies excepcional e selvagem. 

Terra ignota 

Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão grande trato de território, que quase 
abarcaria a Holanda (9º 11" — 10º 20" de lat. e 4° — 3° de long. O.R.J. ), notícias exatas ou pormenorizadas. As nossas melhores cartas, enfeixando informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota, em que se aventura o rabisco de um rio problemático ou idealização de uma corda de serras. 

E. que transpondo o Itapicuru, pelo lado do sul, as mais avançadas turmas de povoadores estacaram em 
vilarejos minúsculos — Maçacará, Cumbe ou Bom Conselho — entre os quais o decaído Monte Santo tem visos 
de cidade: transmontada a Itiúba, a sudoeste, disseminaram-se pelos povoados que a abeiram acompanhando insignificantes cursos de água, ou pelas raras fazendas de gado, estremados todos por uma tapera obscura — Uauá, ao norte e a leste pararam às margens do S. Francisco, entre Capim Grosso e Santo Antônio da Glória. 

Apenas naquele último rumo se avantajou uma vila secular, Jeremoabo, batizando o máximo esforço de 
penetração em tais lugares, evitados sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral baiano procurando o 
interior. 
Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços. 
Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga 
metrópole, predestinava-se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história. Porque enquanto as bandeiras do sul lhe paravam à beira e envesgando, depois, pelos flancos da Itiúba, se lançavam para Pernambuco e Piauí até o Maranhão as do levante, repelidas pela barreira intransponível de Paulo Afonso, iam procurar, no Paraguaçu e rios que lhe demoram ao sul, linhas de acesso mais praticáveis, Deixavam-no de permeio, inabordável, ignoto. 

É que mesmo trilhando o último daqueles rumos, adstritas a itinerário menos longo, as salteava 
impressionadoramente o aspecto estranho da terra repontando em transições imprevistas. 

Deixando a orla marítima e seguindo em cheio para o ocidente, tinham, transcorridas poucas léguas, 
amolentada ou desinfluída a atração das "entradas" aventurosas, e extinta a miragem do litoral opulento. Logo a partir de Camassari as formações antigas cobrem-se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas, revestidas do terreno arenoso de Alagoinhas que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação em roda transmuda-se, copiando estas alternativas com a precisão de um decalque. 

Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim, depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou avançam em promontório nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica — arbustos flexuosos entrechassados de bromélias rubras — prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas decompostas. 

Deste lugar em diante, reaparecem os terrenos terciários esterilizadores, sobre os mais antigos que, 
entretanto, depois, dominam em toda a zona centralizada em Serrinha. Os morros do Lopes e do Lajedo 
aprumam-se, à maneira de disformes pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem, beirando de um e outro lado as abas das serras da Saúde e da Itiúba, até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam-lhes os mesmos contornos das encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas. 
O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada da borda de um planalto. 

Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas 
excursões para o interior. Não a alteraram nunca. 
Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastos do bandeirante os trilhos de uma via férrea. 
Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos 
desvios para o poente e para o sul, jamais comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.

Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoadores, consoante vários 
destinos, dividiam-se em Serrinha. E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real do Bom Conselho que, desde o século 17, os levava a Santo Antônio da Glória e Pernambuco — uns e outros 
contorneavam sempre, evitando-a sempre, a paragem sinistra e desolada, subtraindo-se a uma travessia 
torturante. 

De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão interferir o S. Francisco em pontos afastados — 
Juazeiro e Santo Antônio da Glória —, formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto. 


Em caminho para Monte Santo 

No entanto quem se abalança a atravessá-lo, partindo de Queimadas para nordeste, não se surpreende a 
princípio. Recurvo em meandros, o Itapicuru alenta vegetação vivaz; e as barrancas pedregosas do Jacurici 
debruam-se de pequenas matas. O terreno, areento e chão, permite travessia desafogada e rápida. Aos lados do caminho ondulam tabuleiros rasos. A pedra, aflorando em lajedos horizontais, mal movimenta o solo, 
esgarçando a tênue capa das areias que o revestem. 

Vêem-se, porém, depois, lugares que se vão tornando crescentemente áridos. 
Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio, está-se em pleno agreste, no dizer 
expressivo dos matutos: arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde 
irrompem, solitários, cereus rígidos e salientes, dando ao conjunto a aparência de uma margem de desertos. E o facies daquele sertão inóspito vai-se esboçando, lenta e impressionadoramente... 

Galga-se uma ondulação qualquer — e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho 
de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo 
requeimado das caatingas. 

Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se operou a decomposição in situ do 
granito, originando algumas manchas argilosas, as copas virentes dos ouricurizeiros circuitam — parêntesis 
breves abertos na aridez geral — as bordas das ipueiras. Estas lagoas mortas, segundo a bela etimologia 
indígena, demarcam obrigatória escala ao caminhante. Associando-se às cacimbas e "caldeirões", em que se abre a pedra, são-lhe recurso único na viagem penosíssima. Verdadeiros oásis, têm contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizadas em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poento e pardo, graças à placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem. 

Algumas denotam um esforço dos filhos do sertão. Encontram-se, orlando-as, erguidos como represas entre 
as encostas, toscos muramentos de pedra seca. Lembram monumentos de uma sociedade obscura. Patrimônio comum dos que por ali se agitam nas aperturas do clima feroz, vêm em geral, de remoto passado. 
Delinearam-nos os que se afoitaram primeiro com as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes. 

Mas transpostos estes pontos — imperfeita cópia das barragens romanas remanescentes na Tunísia — 
entra-se outra vez nos areais exsicados. E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem pequenas ondulações, todas da mesma forma e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade. Patenteiam-se-lhe uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida que ele avança. Raras vezes, como no povoado minúsculo de Cansanção, larga emersão de terreno fértil se recama de vegetação virente. 

Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, 
outras, agravando todas no aspecto paupérrimo o traço melancólico das paisagens... 

Nas cercanias de Quirinquinquá, porem, começa a movimentar-se o solo. O pequeno sítio ali ereto alevanta-
se já sobre alta expansão granítica, e atentando-se para o norte divisa-se região diversa — riçada de vales e 
serranias, perdendo-se ao longe em grimpas fugitivas. A serra de Monte Santo, com um perfil de todo oposto aos redondos contornos que lhe desenhou o ilustre Martins, empina-se, a pique, na frente, em possante dique de quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a massa gnáissica que Constitui toda a base do solo. 
Dominante sobre seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela erosão eólia, afigura-se cortina de muralha monumental. Termina em crista altíssima, estremando-lhe o desenvolvimento no rumo de 13° NE, a cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte vasto. Observa-se, então, que atenuados para o sul e leste, os acidentes predominantes da terra progridem avassalando os quadrantes do norte. 

O sítio do Caldeirão, três léguas adiante, ergue-se à margem dessa sublevação metamórfica; e alcançando-o, 
e transpondo entra-se. afinal, em cheio, no sertão adusto... 

Primeiras impressões 

É uma paragem impressionadora
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o 
desenho de relevos estupendos. O regímen torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo-se em cenários em que ressalta predominante, o aspecto atormentado das paisagens. 

Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no 
contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma 
flora decídua embaralhada em esgalhos — é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos 
elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às 
soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas: e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas. 

As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície sem intervalos na ação 
demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região. 

Dissociam-na nos verões queimosos; degradam-na nos invernos torrenciais. Vão do desequilíbrio 
molecular, agindo surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas. Ligam-se e completam-se. E consoante o preponderar de uma e outra, ou o entrelaçamento de ambas, modificam-se os aspectos naturais. As mesmas assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares, que surgem em numerosos pontos, dando, às vezes, a ilusão de encontrar-se, de repente, naqueles ermos vazios, majestosas ruinarias de castelos — adiante se cercam de fraguedos, em desordem, mal seguros sobre as bases estreitas, em ângulos de queda, incombentes e instáveis, feito loghans oscilantes, ou grandes desmoronamentos de dolmens; e mais longe desaparecem sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses "mares de pedra" tão característicos dos lugares onde imperam os regímens excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda 
— restos de velhíssimas chapadas corroídas —, se derramam, ora em alinhamentos relembrando velhos 
caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajens fraturadas, delatando idênticas 
violências. As arestas dos fragmentos, onde persistem ainda cimentados ao quartzo os cristais de feldspato, são novos atestados desses eleitos físicos e mecânicos que, despedaçando as rochas, sem que se decomponham os seus elementos formadores, se avantajaram ao vagar dos agentes químicos em função dos fatos meteorológicos normais. 

Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento incisivo de rudeza extrema. 
Atenuando-o em parte, deparam-se várzeas deprimidas, sedes de antigos lagos, extintos agora em ipueiras 
apauladas, que demarcam os pousos dos vaqueiros. Recortam-nas, no entanto, abertos em caixão, os leitos as mais das vezes secos de ribeirões que só se enchem nas breves estações das chuvas. Obstruídos, na maioria, de espessos lastros de blocos entre os quais, fora das enchentes súbitas, defluem tênues fios de água, são uma reprodução completa dos oueds que marginam o Saara. Despontam-lhes em geral, normais às barrancas, estratos de um talcoxisto azul-escuro em placas brunidas reverberando a luz em fulgurar metálico — e sobre elas, cobrindo extensas áreas, camadas menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios de quartzo, interceptando-lhes, discordantes, os planos estratigráficos. Estas últimas formações, silurianas talvez, cobrem de todo as demais à medida que se caminha para NE e apropriam-se a contornos mais corretos. Esclarecem a gênese dos tabuleiros rasos, que se desatam, cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até Jeremoabo. 

Para o norte, porém, inclinam-se mais fortemente as camadas. Sucedem-se cômoros despidos, de pendores 
resvalantes, descaindo em quebradas onde enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos seus topos 
divisam-se, alinhadas em fileiras, destacadas em lâminas, as mesmas infiltrações quartzosas, expostas pela 
decomposição dos xistos em que se embebem. 

À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros, aspérrimos rebrilham, estonteadoramente — ofuscante, num 
irradiar ardentíssimo. 

As erosões constantes quebram, porém, a continuidade destes estratos que ademais, noutros pontos, 
desaparecem sob as formações calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. A feição ruiniforme destas, 
casa-se bem a dos outros acidentes. E nos trechos em que elas se estiram, planas, pelo solo, desabrigadas de todo ante a acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos, crivam-se, escarificadas, de cavidades circulares e 
acanaladuras fundas, diminutas mas inúmeras, tangenciando-se em quinas de rebordos cortantes, em pontas e duríssimos estrepes que impossibilitam as marchas. 

Deste modo, por qualquer vereda, sucedem-se acidentes pouco elevados mas abruptos, pelos quais tornejam 
os caminhos, quando não se justapõem por muitas légua aos leitos vazios dos ribeirões esgotados. E por mais 
inexperto que seja o observador — ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e das voragens... 

Um sonho de geólogo 

É uma sugestão empolgante. 
Vai-se de boa sombra com um naturalista algo romântico, imaginando-se que por ali turbilhonaram, largo 
tempo, na idade terciária, as vagas e as correntes. 

Porque, a despeito da escassez de dados permitindo uma dessas profecias retrospectivas, no dizer elegante 
de Huxley, capaz de esboçar a situação daquela zona em idades remotas, todos os caracteres que sumariamos reforçam a concepção aventurosa. 

Alentam-na ainda: o estranho desnudamento da terra; os alinhamentos notáveis em que jazem os materiais 
fraturados, orlando, em verdadeiras curvas de nível, os flancos das serranias; as escarpas dos tabuleiros 
terminando em taludes a prumo, que recordam falaises; e, até certo ponto, os restos da fauna pliocena, que fazem dos caldeirões enormes ossuários de mastodontes, cheios de vértebras caldeirões desconjuntadas e partidas, como se ali a vida fosse, de chofre, salteada e extinta pelas energias revoltas de um cataclismo. 

Há também a presunção derivada de situação anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de Fred. 
Hartt, de fato, estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existência de inegáveis bacias cretáceas; e sendo os fósseis que as definem idênticos aos encontrados no Peru e México, e contemporâneos dos que Agassiz descobriu no Panamá — todos estes elementos se acolchetam no deduzir-se que vasto oceano cretáceo rolou as suas ondas sobre as terras fronteiras das duas Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico. Cobria, assim, grande parte dos Estados setentrionais brasileiros, indo bater contra os terraços superiores dos planaltos, onde extensos depósitos sedimentários denunciam idade mais antiga, o paleozóico médio. 

Então, destacadas das grandes ilhas emergentes, as grimpas mais altas das nossas cordilheiras mal 
apontavam ao norte, na solidão imensa das águas... 

Não existiam os Andes o Amazonas, largo canal entre altiplanuras das Guianas e as do continente, 
separava-as, ilhadas. Para as bandas do sul o maciço de Goiás — o mais antigo do mundo — segundo a dedução dedução de Gerber, o de Minas e parte do Planalto Paulista, onde fulgurava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam o núcleo do continente futuro . . . 

Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as Nassas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o 
conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os 
chapadões de Barbacena e a Bolívia. Simultaneamente ,ao abrir-se a época terciária, se realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas: tranca-se, num extremo, o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se lentamente, a América. 

Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia, que se resumiam nos cachopos de quartzito de Monte 
Santo e visos de Itiúba, esparsos pelas águas, avolumaram-se, num ascender contínuo. Elas nesse vagaroso 
altear-se, enquanto as regiões mais altas recém-desvendadas, se salpintavam de lagos, toda a parte média daquela escarpa permanecia imersa. Uma corrente impetuosa, de que é forma decaído a atual da nossa costa, enlaçava-a. E embatendo-a longamente, domina enquanto o resto do país, ao sul, se erigia já constituído, e corroendo-a, e triturando-a, remoinhando para oeste e arrebatando todos os materiais desagregados, modelava aquele recanto da Bahia até que ele emergisse de todo, seguindo o movimento geral das terras, feito informe amontoado de montanhas derruídas. 

O regímen desértico ali se firmou, então, em flagrante antagonismo com as disposições geográficas: sobre 
uma escarpa, onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos clássicos. 
Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, 
fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por ali entretece a trama das raízes, obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os princípios exsolvidos — acumulando-os pouco a pouco na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir, 
contudo, nos estios longos, as insolações inclementes e as águas selvagens, degradando o solo. 

Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho do sertão — quase um 
deserto — quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados 
grandes... 

Capítulo II 

Golpe de vista do alto de Monte Santo 

Do alto da serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, 
nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras, ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium aquarum, progridem para o norte. 

Mostram-no as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e 
fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. 
Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do 
Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros 
torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de 
Jeremoabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhada pelo Vaza-Barris em Cocorobó, inflete 
para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço-de-Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elítica 
curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte, de novo se dispersam e decaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco. 

Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos parece dobrar-se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do Patamuté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris um curso tortuoso do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa. 

Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenas tributários, o 
Bendegó e Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as 
depressões do solo. Têm a existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais. São rios que sobem. Enchem-se de súbito; transbordam; reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valos em torcicolos, cheios de pedras, e secos. 

O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o 
traçado atual se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio através de esforço contínuo e longo. A 
sua função como agente geológico é revolucionária. As mais vezes cortado, fracionando-se em gânglios 
estagnados, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, 
captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo, vazando, como o indica o dizer português, substituindo-lhe com vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras, até Jeremoabo. 

Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regímen brutal — calcando-o em terreno agro, sem os cenários 
opulentos das serras e dos tabuleiros ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais 
disposições naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros, 
retalhados de algares; morros que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram a acidentação caótica de boqueirões escancelados e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar os pendores, no despertar os horizontes e no desatar — amplíssimos — os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e surpreendedora de cores... 

Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar 
escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos. 

Do alto da Favela 

Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar para abranger de um lance o conjunto da terra. E nada mais 
divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os 
mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e 
caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares, 
sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectiva inteiramente nova. E quase compreendia que os matutos crendeiros de imaginativa ingênua, acreditassem que "ali era o céu...”. 

O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a 
distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande. 

Em roda uma elipse majestosa de montanhas... 
A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de cima, próxima, mas íngreme e alta; a de 
Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã —ligam-se e articulam-se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida. 

Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a 
impressão alentadora de se achar sobre plateau elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras. 

Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d"água, divagando, serpeantes... 
Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas 
via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos 
incontáveis, um acervo enorme de casebres... 


Capítulo III 

O clima 

Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres geológicos e topográficos, a par dos demais 
agentes físicos, mutuam naqueles lugares as influências características de modo a não se poder afirmar qual o 
preponderante. 

Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente sobre os últimos, estes, por sua vez, 
contribuíram para o agravamento daquelas; e todas persistem nas influência recíprocas. Deste perene conflito 
feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a dignificação mesológica do local. Não há abrangê-la em todas 
modalidades. Escasseiam-nos as observações às coisas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos. 

Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o 
definir. 

Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito, que tombara à margem do Bendegó e 
era já, desde 1810, conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e Wollaston. Rompendo, porém, a 
região selvagem, desertus austral, como a batizou, mal atentou para a teria recamada de uma flora extravagante, sylva horrida, no seu latim alarmado. Os que o antecederam e sucederam palmilharam, ferretoados da canícula, as mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito tempo. 

O que se segue são vagas conjeturas. Atravessamo-lo no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o apenas nessa quadra, vimo-lo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, 
desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra. Além disto os dados de um termômetro único e de um aneróide suspeito, misérrimo arsenal científico com que ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos darão de climas que divergem segundo as menores disposições topográficas, criando aspectos díspares entre lugares limítrofes. O de Monte Santo, por ex., que é, ao primeiro comparar, muito superior ao de Queimadas, diverge do dos lugares que lhe demoram ao norte, sem a continuidade que era lícito prever de sua situação intermédia. A proximidade das massas montanhosas torna-o estável, lembrando um regímen marítimo em pleno continente: escala térmica oscilando em amplitudes insignificantes; firmamento onde a transparência dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos reinantes, o SE no inverno e o NE no estio — alternando-se com rigorismo raro. Mas está insulado. Para qualquer das bandas, deixa-o o viajante num dia de viagem. Se vai para o norte, salteiam-no transições fortíssimas: a temperatura aumenta; carrega-se o azul dos céus; embaciam-se os ares; e as ventanias rolam desorientadamente de todos os quadrantes — ante a tiragem intensa dos terrenos desabrigados, que dali por diante se estiram. Ao mesmo tempo espelha-se o regímen excessivo: o termômetro oscila em graus disparatados passando, já em outubro, dos dias com 35° à sombra para as madrugadas frias. 

No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. Crescem a um tempo as máximas e as mínimas, até que no 
fastígio das secas transcorram as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas. 
A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades emissiva e absorvente dos 
materiais que a formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso. 
Insola-se e enregela-se, em 24 horas. Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os e reflete-os, e 
refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada, rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas aquecidas, a efervescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida. 

Desce a noite, sem crepúsculo, de chofre — um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente — e todo este calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa . . . 

Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas nuvens, tufando em cúmulos, pairam 
ao entardecer sobre as areias incendidas. Desaparece o sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou, de 
preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um sol escuro, porque se sente uma dolorosa impressão de faúlhas invisíveis; mas toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro cai, como nas proximidades das tormentas; e mal se respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pela soalheira se concentra numa hora única da noite. 

Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos estivais das secas, em que prevalece a 
intercadência de dias esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos martirizados 
sertanejos. 

Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, 
turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo. 

Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos meses; reinando calmarias pesadas — ares 
imóveis sob a placidez luminosa dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem-se, então, as correntes 
ascensionais dos vapores aquecidos sugando à terra a umidade exígua; e quando se prolongam, esboçando o 
prelúdio entristecedor da seca, a secura da atmosfera atinge a graus anormalíssimos. 


Higrômetros singulares 


Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e 
bizarros. 

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um 
canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, 
onde as colinas se dispunham circulando a um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em 
tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim 
em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina. 

O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços largamente abertos, face 
volvida para os céus, — um soldado descansava. 

Descansava... havia três meses. 
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma 
banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, 
derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, à vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes... 

E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a 
ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. 
Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao 
turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de 
modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares. 

Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro. 
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a 
montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, 
porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes . . . 

Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos 
turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto: cada 
partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a 
surda combustão da terra. 
Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros. 
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, 
atentando-se para os descambados, ao longe, não se distinguia o solo. 

O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar 
através de um prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes... 


Capítulo IV 
As secas 

O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus 
aspectos predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum. 

De fato, a inflexão peninsular, extremada pelo cabo de S. Roque, faz que para ele convirjam as lindes interiores de seis Estados — Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí — que o tocam ou demoram distantes poucas léguas. 

Desse modo é natural que as vicissitudes climáticas daqueles nele se exercitem com a mesma intensidade, 
nomeadamente em sua manifestação mais incisiva, definida numa palavra que é o terror máximo dos rudes 
partícios que por ali se agitam — a seca. 

Escusamo-nos de longamente a estudar, averbando o desbarate dos mais robustos espíritos no aprofundar-lhe a gênese, tateantes ao través de sem número de agentes complexos e fugitivos. Indiquemos, porém, inscrita num traçado de números inflexíveis, esta fatalidade inexorável. 

De fato, os seus ciclos — porque o são no rigorismo técnico do termo — abrem-se e encerram-se com um ritmo tão notável que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada. 

Revelou-o, pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando um quadro por si mesmo bastante eloqüente, em que os aparecimentos das secas, no século passado e atual, se defrontam em paralelismo singular, sendo de presumir que ligeiras discrepâncias indiquem apenas defeitos de observação ou desvios na tradição oral que as registrou. 

De qualquer modo ressalta à simples contemplação uma coincidência repetida bastante para que se remova a 
intrusão do acaso. 

Assim, para citarmos apenas as maiores, as secas de (1710-1711), (1723-1727), (1736-1737), (1744-1745), 
(1777-1778), do século 18, se justapõem às de ( 1808-1809 ), ( 1824-1825 ) (1835-1837), (1844-1845), 
(1877-1879), do atual. 

Esta coincidência, espelhando-se quase invariável, como se surgisse do decalque de uma quadra sobre outra, 
acentua-se ainda na identidade das quadras remansadas e longas que, em ambas, atreguaram a progressão dos estragos. 

De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745-1777), houve no nosso outro 
absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável, com a correspondência exatíssima das datas (1845-1877). 

Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam-se novos dados fixos e positivos, aparecendo com um rigorismo de incógnitas que se desvendam. Observa-se, então, uma cedência raro perturbada na marcha do flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre nove e doze anos, e sucedendo-se de maneira a 
permitirem previsões seguras sobre a sua irrupção. 

Entretanto, apesar desta simplicidade extrema nos resultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na 
fórmula aritmética mais simples, permanece insolúvel. 

Hipóteses sobre a gênese das secas 

Impressionado pela razão desta progressão raro alterada, e fixando-a um tanto forçadamente em doze anos, um naturalista, o barão de Capanema, teve o pensamento de rastrear nos fatos extraterrestres, tão característicos pelos períodos invioláveis em que se sucedem, a sua origem remota. E encontrou na regularidade com que repontam e se extinguem, intermitentemente, as manchas da fotosfera solar, um símile completo. 

De fato, aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra, negrejando dentro da cercadura fulgurante 
das fáculas, lentamente derivando à feição da rotação do Sol, têm entre o máximo e o mínimo da intensidade, um período que pode variar de nove a doze anos. E como desde muito a intuição genial de Herschel lhes descobrira o influxo apreciável na dosagem de calor emitido para a Terra, a correlação surgia inabalável, neste estear-se em dados geométricos e físicos acolchetando-se num efeito único. 

Restava equiparar o mínimo das manchas, anteparo à irradiação do grande astro, ao fastígio das secas no planeta torturado — de modo a patentear, cômpares, os períodos de umas e outras. 

Falhou neste ponto, em que pese à sua forma atraentíssima, a teoria planeada: raramente coincidem as datas do paroxismo estival, no Norte, com as daquele. 

O malogro desta tentativa, entretanto, denuncia menos a desvalia de uma aproximação imposta rigorosamente por circunstâncias tão notáveis, do que o exclusivismo de atentar-se para uma causa única. Porque a questão, com a complexidade imanente aos fatos concretos, se atém, de preferência, a razões secundárias, mais próximas e enérgicas, e estas, em modalidades progredindo, contínuas, da natureza do solo à disposição geográfica, só serão definitivamente sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos agentes preponderantes do clima sertanejo. 

Como quer que seja, o penoso regímen dos Estados do Norte está em função de agentes desordenados e 
fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeitas às perturbações locais, derivadas da natureza da terra, e a reações 
mais amplas, promanadas das disposições geográficas. Daí as correntes aéreas que o desequilibram e variam. 

Determina-o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção de nordeste, oriunda da forte aspiração dos planaltos interiores que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são, como se sabe, sede de grandes depressões barométricas, no estio. Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março, pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria conformação da terra, na passagem célere por sobre os chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto de saturação diminuindo as probabilidades das chuvas, e repelindo-o, de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente, intacta, sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia dos mares. 

De fato, a disposição orográfica dos sertões, à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para 
nordeste paralelamente à monção reinante — , facilita a travessia desta. Canaliza-a. Não a contrabate num 
antagonismo de encostas, abarreirando-a, alteando-a, provocando-lhe resfriamento e a condensação em chuvas. 

Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica. 
Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo em direção perpendicular àquele vento, 
determine a dynamic colding, consoante um dizer expressivo. 
Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hipótese. 

Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam, prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando-nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles Estados. levando a borda até aos extremos da Bahia, não poderemos considerá-la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que correndo de leste a oeste corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha a monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação imediata nos aguaceiros diluvianos que tombam então, de súbito, sobre os sertões ? 

Este desfiar de conjeturas tem o valor de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que 
duplamente nos interessa pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o 
destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo plano o influxo até hoje inutilmente agitado dos alísios, e é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio sertanejo para quem a persistência do nordeste — o vento da seca, como o batiza expressivamente — equivale à permanência de uma situação 
irremediável e crudelíssima. 

As quadras benéficas chegam de improviso. 

Depois de dois ou três anos, como de 1877-1879, em que a insolação rescalda intensamente as chapadas 
desnudas, a sua própria intensidade origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de modo 
considerável, a pressão atmosférica. Apruma-se maior e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais dos ares aquecidos, antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras, num desencadear de tufões violentos, alteiam-se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados. 

Então parece tornar-se visível o anteparo das colunas ascendentes, que determinam o fenômeno, na colisão 
formidável com o nordeste. 

Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio 
caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não 
umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes, para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras... 

Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se os sertões, revivescendo. Passam, porém não raro, num giro célere, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando-lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra —reabrindo o ciclo inflexível das secas... 

As caatingas 

Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua. 
Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas. 
Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e 
desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante . . . 

Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos — mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o 
tapete das gramíneas murchas — e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto, 
semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no 
tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência. 

Esta impõe-se, tenaz e inflexível. 
A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível para a luz, desatando-se os 
arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado das sombras e alteando-se presos mais aos raios do Sol do que aos troncos seculares de ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando-o pressente-se de algum modo, como o indicaremos adiante, a inumação da flora moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno, é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela sucção dos estratos completando as insolações, entre dois meios desfavoráveis — espaços candentes e terrenos agros —as plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda. 

As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de contato com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva. Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas, à ponta dos galhos para diminuírem o campo da insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores , anteparos intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as... 

Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regímen bruto. 

Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos... Mas, reduzidas todas as funções, a planta, estivando, em vida latente, alimenta-se das reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe os estios, pronta a transfigurar-se entre os deslumbramentos da primavera. 

Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries, em disposição singularíssima. 
Vêem-se numerosos aglomerados em capões ou salpintando, isolados, as macegas, arbúsculos de pouco mais de metro de alto, de largas folhas espessas e luzidias, exuberando floração ridente em meio da desolação geral. São os cajueiros anões, os típicos anacardia humilis das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas. Estes vegetais estranhos, quando ablaqueados em roda, mostram raízes que se entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá-los. O eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que ele vai repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo. 

Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada. 

Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece 
derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa. 

Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte. 

As águas que fogem no volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo d"água cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os gravatás e ananases bravos, trançados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a mesma forma, adrede feita àquelas paragens estéreis. As suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a condensação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por maneira a debelar-se o perigo máximo à vida vegetativa, resultante de larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas radículas. 

Sucedem-se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente resistentes. 

As nopaleas e cactus, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes vegetais, de Saint-Hilaire. Tipos 
clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se aos regímens bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva entre os seus cladódios túmidos. 

As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus —talvez um 
futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão, que a toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável. 

Ora, quando ao revés das anteriores as espécies não se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa, 
observam-se dispositivos porventura mais interessantes: unem-se, intimamente abraçadas, transmudando-se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam-se, congregam-se, arregimentam-se. São deste 
número todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem, sessenta por cento das caatingas; os alecrins-dos-tabuleiros, e os canudos-de-pito, heliotrópios arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espiga, destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos... 

Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt, e é possível que as primeiras vicejem, noutros climas, isoladas. Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes, no subsolo, em apertada trama, retém as águas, retêm as terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço, o solo arável em que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção insaciável dos estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo — porque há, no fato, um traço superior à passividade da evolução vegetativa... 

O juazeiro 

Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, à vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados sobre o depauperamento geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos — à maneira de oásis verdejantes e festivos. 

A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas, e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à vida. 

Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando ao descer das tardes breves sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, eles dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos... 

Caracterizam a flora caprichosa da plenitude do estio. 

Os mandacarus ( cereus jaramacaru ), atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam-se tesos triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora se deprime. O olhar, perturbado pelo acomodar-se à 
contemplação penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo os seus caules 
direitos e corretos. No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo 
monotonia inaturável, sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto. 

Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções inferiores, fracionando-se em ramos 
fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos e 
ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos. Aprazem-se no leito abrasante das lajens graníticas 
feridas pelos sóis. 

Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado uma flor única intensamente rubra. Aparecem de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. É que estreitíssima frincha lhes permitiu insinuar, através da rocha, a raiz longa e capilar até a parte inferior, onde acaso existam, livres de evaporação, uns restos de umidade. 

E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, 
humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador; às ripsalides serpeantes, flexuosas, como víboras verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epifitas, de um glauco empalecido, presos por adligantes aos estipites dos ouricurizeiros, fugindo do solo bárbaro para o remanso da copa da palmeira. 

Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias-do-inferno opúntias de palmas diminutas, diabolicamente erriçadas de espinhos — com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens... 

E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles ermos, entre árvores sem folhas e sem flores. Toda a flora, como em uma derrubada, se mistura em baralhamento indescritível. É a catanduva, mato doente, da etimologia indígena, dolorosamente caída sobre o seu terrível leito de espinhos ! 

Vingado um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso... 

É a sylva oestu aphylla, a sylva borrida, de Martius, abrindo no seio iluminado da natureza tropical um vácuo de deserto. 

Compreende-se, então, a verdade da frase paradoxal, de Aug. de Saint-Hilaire: "Há, ali, toda a melancolia dos 
invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!" 

A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo 
pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquises; e, oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial de vegetação hibernante, nos gelos . . . 

A tormenta 

Mas no empardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente. 
Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas 
negras. 
Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos 
tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas. 

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam 
grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano... 

Ressurreição da flora 

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto. 
Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical. 
É uma mutação de apoteose. 

Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estafolhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à 
margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encostas, as moitas floridas do alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando-os nas frondes enfolhadas, e — dominando a revivescência geral — não já pela altura senão pelo gracioso do porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irradiantes em círculo, os galhos numerosos. 

O umbuzeiro 

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. 
Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto
e veio descaindo, pouco a pouco, numa interdecadência de estios flamívomos e invernos torrenciais, 
modificando-se à feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim, 
desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas das reservas guardadas em grande cópia nas raízes. 


E reparte-as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato de sertão, tão estéril que nele escasseiam os carnaubais tão providencialmente dispersos nos que o convizinham até ao Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz matuto que ali vive o mesmo que a mauritia para os garaunos dos llanos. 

Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. Abre-lhe o seio acariciador e amigo, onde os ramos recurvos e entrelaçados 
parecem de propósito feitos para a armação das redes bamboantes. E ao chegarem os tempos felizes dá-lhe os frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada tradicional. 

O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas. Realça-se-lhe, então, o porte, levantada, em recorte firme, a copa arredondada, num plano perfeito sobre o chão, à altura atingida pelos bois mais altos, ao modo de plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas semelham grandes calotas esféricas. Dominam a flora sertaneja nos tempos felizes, como os cereus melancólicos nos paroxismos estivais. 

A jurema 

As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, 
que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico — derramam-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do "verde” e o termo da "magrém" — quando, em pleno flagelar da seca, Ihes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d"água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas, e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante. 


O sertão é um paraíso 

E o sertão é um paraíso... 

Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam, em varas, pelas tigüeras num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva; correm pelos tabuleiros altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fimbria dos banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu trote, brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores; e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós espertos que se aninham aos pares, nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos ou novilhos desgarrados... 

Manhãs sertanejas 

Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca 
melhor, engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação de asas, céleres, ruflando. — Sulcam-nos as notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes... enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta... 

Assim se vão os dias. 

Passam-se um, dois, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra, até que surdamente, 
imperceptivelmente, num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca se desenhe outra vez nas ramagens mortas das árvores decíduas.... 

Capítulo V 


Uma categoria geográfica que Hegel não citou 

Resumamos, enfeixemos estas linhas esparsas. 
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagi: 
sobre o homem, criando diferenciações étnicas: 

As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os 
litorais e as ilhas. 
Os llanos da Venezuela; as savanas que alargam o vale do Mississípi, os pampas desmedidos e o próprio 
Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos 
primeiros. 

Em que pese aos estios longos, as trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações, não se 
incompatibilizam com a vida. 
Mas não fixam o homem à terra. 
A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um 
incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e 
desarmar de tendas, por aqueles plainas — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão. 

Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única 
da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias. 

Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar a humanidade pelo 
vinculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da 
Mongólia, varejadas, em corridas doidas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos. 

Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador 
germânico. 
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no 
inverno, acredita-se que são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes... 

Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de 
originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de 
abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas. 

Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a 
desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. 
A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e 
arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de 
convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das 
soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor. 

Dilatam-se os horizontes. O firmamento sem o azul carregado dos desertos alteia-se, mais profundo, ante o 
expandir revivescente da terra. 

E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono. 

Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a 
nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo 
assombrador da seca. 

A natureza compraz-se em um jogo de antíteses. 
Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas — 
posta, como mediadora, entre os vales nimiamente férteis e as estepes mais áridas. 

Relegando a outras páginas a sua significação como fator de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na 
economia da terra. 
A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdobram-se, lacunas 
inexplicáveis, às vezes sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo clássico do Saara — que é um termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Indico, entrando pelo Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão africana ao plateau arábico ardentíssimo de Nedjed e avançando daí para as areias dos bejabans, na Pérsia — são tão ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuaria de um cataclismo, uma irrupção do Atlântico, precipitando-se, águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o Norte da- África e desnudando-a furiosamente. 

Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um significado superior. 

Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a 
partir dos pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam as zonas 
exuberantes por excelência, onde os arbustos de outras se fazem árvores e o regímen, oscilando em duas estações únicas, determina uniformidade favorável à evolução dos organismos simples, presos diretamente às variações do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da eclética, que coloca a Terra em condições biológicas inferiores às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma montanha única sintetiza, do sopé às cumeadas, todos os climas do mundo. 

Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios, o equador termal, de traçado 
perturbadíssimo de inflexões vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é impossível; passando dos desertos às florestas, do Saara, que o repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta meridional da Arábia paupérrima; varando o Pacífico num longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e abeirando, depois, em lento descambar para o sul, a Hilae portentosa do Amazonas. 

Da extrema aridez à exuberância extrema... 
É que a morfologia da terra viola as leis gerais dos clima. Mas todas as vezes que o facies geográfico não as 
combate de todo a natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, mas emocionante, para quem consegue lobrigá-la ao, através de séculos sem conto, entorpecida sempre pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível, num evolver seguro, a terra como um organismo, se transmuda por intuscepção, indiferente aos elementos que lhe tumultuam à face. 

De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a exemplo da Austrália, permanecem estéreis 
se anulam, noutros pontos, os desertos. 

A própria temperatura abrasada acaba lhes dar um mínimo de pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as 
areias móveis, riscadas pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde, imobilizam-se, a pouco 
e pouco, presas nas radículas das gramíneas; o chão ingrato e a rocha estéril decaem sob a ação imperceptível 
dos líquens, que preparam a vinda das lecídeas frágeis; e por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de 
vegetação escassa, as savanas e as estepes mais vivazes da Ásia Central, surgem, num crescendo, refletindo 
sucessivas fases de transfigurações maravilhosas. 

 

Como se faz um deserto 

Ora, os sertões do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a este critério natural, figuram 
talvez o ponto singular de uma evolução regressiva. 

Imaginamo-los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia se insurgiu contra a gravidade da 
ciência, a emergirem, geologicamente modernos, de um vasto mar terciário. 
À parte essa hipótese absolutamente instável, porém, o certo é que um complexo de circunstâncias lhes tem 
dificultado regímen contínuo, favorecendo flora mais vivaz. 

Esboçamos anteriormente algumas. 
Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável — o homem. 
Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o 
decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos.
Começou isto por um desastroso legado indígena. 

Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo. 
Entalhadas as árvores pelos cortantes dgis de diorito; encoivarados, depois de secos, os ramos, 
alastravam-lhes por cima, crepitando, as caiçaras, em bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam-na. 
Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, de todo exaurida, aquela mancha da terra fosse, 
imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto — como o denuncia a etimologia tupi, jazendo dali por 
diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna de nota, as famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados, de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos, aparecendo maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogadas em macegas, espelhando aqui o aspecto adoentado da catanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta. 

Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no 
centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regímen francamente pastoril. 

Abriram-se desde o alvorecer do século 17, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, 
compáscuos sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora. 

Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas 
lufadas violentas do nordeste. Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do 
silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava 
perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para 
desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o 
norteavam, balizando a marcha das bandeiras. 

Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das 
grupiaras; feriu-a a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas... 

Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em meados deste século, no atestar de 
velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. 
Durante meses seguidos viu-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas. 

Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos... 
Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor-lhes paradeiros. E ao 
terminar a seca lendária de 1791-1792, a "grande seca", como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou todo o Norte, da Bahia ao Ceará, o governo da metrópole figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados, estabelecendo desde logo, como corretivo único, severa proibição ao corte das florestas. 

Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17 de março de 1796, 
nomeando um juiz conservador das matas; e a de 11 de junho de 1799, decretando que “se coíba a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes ( da Bahia e Pernambuco ) que têm assolado a ferro e fogo preciosas 
matas... que tanto abundavam e já hoje ficam a distancias consideráveis etc.". 

Aí estão dizeres preciosos relativos diretamente à região que palidamente descrevemos. 
Há outros, cômpares na eloqüência. 
Deletreando-se antigos roteiros dos sertanistas do Norte, destemerosos caatingueiros que pleiteavam 
parelhas com os bandeirantes do Sul, nota-se a cada passo uma alusão incisiva à bruteza das paragens que 
atravessavam, perquirindo as chapadas, em busca das "minas de prata" de Melchior Moreia — e passando quase todos à margem do sertão de Canudos, com escala em Monte Santo, então o Pico-araçá dos tapuias. E falam nos "campos frios" ( certamente à noite, pela irradiação intensa do solo desabrigado ) cortando léguas de caatinga sem água nem caravatá que a tivesse e com raízes de umbu e mandacaru, remediando a gente" no penoso desbravar das veredas . 

Já nessa época, como se vê, tinham função proverbial às plantas, para as quais, hoje, apelam os nossos 
sertanejos. 
É que o mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos 
estratos, com as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez-se uma 
componente nefasta entre as forças daquele clima demolidor. Se o não criou, transmudou-o, agravando-o. Deu um auxiliar à degradação das tormentas, o machado do caatingueiro; um supletivo à insolação, a queimada. 

Fez, talvez, o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável. Di-lo 
uma comparação histórica. 

Como se extingue o deserto 

Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Biserta, à ourela do Saara, encontra ainda, no 
desembocar dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos oueds, restos de antigas construções romanas. Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos árabes que os substituíram. 

Os romanos depois da tarefa da destruição de Cartago tinham posto ombros à empresa incomparavelmente 
mais séria de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica. 

Perceberam com segurança o vício original da região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela 
sua péssima distribuição adstrita aos relevos topográficos. Corrigiram-no. O regímen torrencial que ali aparece, intensíssimo em certas quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as de outros países férteis e exuberantes, era, como nos sertões do nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra desabrigada, desarraigando a vegetação mal presa a um solo endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando em escarpamentos, pelo norte e pelo levante, no Mediterrâneo, deixando o solo, depois de uma revivescência transitória, mais desnudo e estéril. O deserto, ao sul, parecia avançar, dominando a paragem toda, vingando-lhe os últimos acidentes que não tolhiam a propulsão do simum. 

Os romanos fizeram-no recuar. Encadearam as torrentes; represaram as correntezas fortes, e aquele regímen 
brutal, tenazmente combatido e bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens. Excluído o alvitre de irrigações sistemáticas dificílimas, conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre a terra. As ravinas recortando-se em gânglios estagnados dividiram-se açudes abarreirados pelas muralhas que trancavam os vales, e os oueds, parando, intumesciam-se entre os morros, conservando largo tempo as grandes massas líquidas, até então perdidas, ou levando-as, no transbordarem, em canais laterais aos lugares próximos mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas, irradiantes por toda a parte, e embebendo o solo. De sorte que este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esforço de irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá único — monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo sobre o clima, melhorando-o. Por fim a Tunísia, onde haviam aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se reduzira a um litoral povoado de traficantes ou númidas erradios, com suas tendas de tetos curvos branqueando nos ares como quilhas encalhadas — se fez, transfigurada, a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora quase exclusiva, de trigo, dos romanos. 

Os franceses, hoje, copiam-lhes em grande parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos 
monumentais e dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de 
palancas, os oueds mais bem dispostos, e talham pelo alto das suas bordas, em toda à largura das serranias que os ladeiam, condutos derivando para os terrenos circunjacentes, em redes irrigadoras. 

Deste modo as águas selvagens estacam, remansam-se, sem adquirir a força acumulada das inundações 
violentas, disseminando-se, afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas derivações cruzadas. E a histórica paragem, liberta da apatia do moslim inerte, transmuda-se volvendo de novo à fisionomia antiga. A 
França salva os restos da opulenta herança da civilização romana, depois desse declínio de séculos. 

Ora, quando se traçar, sem grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte, ver-se-á que 
eles se apropriam a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros. 

A idéia não é nova. Sugeriu-a há muito, em memoráveis sessões do Instituto Politécnico do Rio, em 1877, 
o belo espírito do conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo símile, que acima apontamos. 
Das discussões então travadas onde se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida 
experiência de Capanema à mentalidade rara de André Rebouças — foi a única coisa prática, factível, 
verdadeiramente útil que ficou. 

Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as 
chapadas; depósitos colossais ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feitos 
cáspios artificiais; e por fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade do problema, estupendos alambiques para a destilação das águas do Atlântico!… 
O alvitre mais modesto porém, efeito imediato de um ensinamento histórico, sugerido pelo mais elementar 
dos exemplos, suplanta-os. Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico. 

O martírio secular da terra 

Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a 
conformação do solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente esboçamos, a influência daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos terrenos expostos, a inclinação dos estratos, que os retalham, e a rudeza dos relevos topográficos, agravam, do mesmo passo, a crestadura dos estios e a degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações demoradas para as inundações subitâneas, a terra, mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco, invadir pelo regímen francamente desértico. 

As fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas, em que pese à revivescência que acarretam, 
preparam de algum modo a região para maiores vicissitudes. Desnudam-na rudemente, expondo-a cada vez mais desabrigada aos verões seguintes; sulcam-na numa molduragem de contornos ásperos; golpeiam-na e 
esterilizam-na; e, ao desaparecerem, deixam-na ainda mais desnuda ante a adustão dos sóis. O regímen decorre num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de catástrofes. 

Deste modo a medida única a adotar-se deve consistir no corretivo destas disposições naturais. Pondo de 
lado os fatores determinantes do flagelo, oriundos da fatalidade de leis astronômicas ou geográficas inacessíveis à intervenção humana, são, aquelas, as únicas possíveis de modificações apreciáveis. 

O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis 
pormenores técnicos. 

A França copia-o hoje, sem variantes, revivendo o traçado de construções velhíssimas. 
Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do 
território sertanejo, três conseqüências inevitáveis decorreriam: atenuar-se-iam de modo considerável a 
drenagem violenta do solo e as suas conseqüências lastimáveis; formar-se-lhes-iam à ourela, inscritas na rede das derivações, fecundas áreas de cultura; e fixar-se-ia uma situação de equilíbrio para a instabilidade do clima, porque os numerosos e pequenos açudes, uniformemente distribuídos e constituindo dilatada superfície de evaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência moderadora de um mar interior, de 
importância extrema. 

Não há alvitrar-se outro recurso. As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados lagos 
como o de Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a última das 
conseqüências da seca — a sede; e o que há a combater e a debelar nos sertões do Norte — é o deserto. 

O martírio do homem, ali, é reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida. 

Nasce do martírio secular da terra… 

O HOMEM 

I. Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade do meio físico e sua reflexão na História. Ação 
do meio na fase inicial da formação das raças. A formação brasileira no Norte. 

II. Gênese dos jagunços; colaterais prováveis dos paulistas. Função histórica do rio S. Francisco. O vaqueiro, 
mediador entre o bandeirante e o padre. Fundações jesuíticas na Bahia. Um parêntesis irritante. Causas 
favoráveis à formação mestiça dos sertões, distinguindo-a dos cruzamentos no litoral. Uma raça forte. 

III. O sertanejo. Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho. Os vaqueiros. Servidão inconsciente; vida primitiva. A 
vaquejada e a arribada. Tradições. A seca. Insulamento no deserto. Religião mestiça: seus fatores históricos. 
Caráter variável da religiosidade sertanejo: a Pedra Bonita e Monte Santo. As missões atuais. 

IV. Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo. Um gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso, 
representante natural do meio em que nasceu. Antecedentes de família: os Maciéis. Uma vida bem auspiciada. 
Primeiros reveses; e a queda. Como se faz um monstro. Peregrinações e martírios. Lendas. As prédicas. Preceitos de montanista. Profecias. Um heresiarca do século 2 em plena idade moderna. Tentativa de reação legal. Hégira para o sertão. 

V. Canudos — antecedentes — aspecto original — e crescimento vertiginoso. Regimen da urbs. Polícia de 
bandidos. População multiforme. O templo. Estrada para o céu. As rezas. Agrupamentos bizarros. Por que não 
pregar contra a República ? Uma missão abortada. Maldição sobre a Jerusalém de taipa. 


Capítulo I 


Complexidade do problema etnológico no Brasil 

Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças 
do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos. 
Está apenas delineado. 

Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente 
encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a pré-história indígena patenteiam modelos de obervação sutil e conceito critico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente firmado, contravindo ao 
pensar dos caprichosos construtores da ponte alêutica, o autoctonismo das raças americanas. 

Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacam-se o 
nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça organização cientifica de Meyer, a rara lucidez 
de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gordon no definir, de uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erige-se autônomo entre as raças o homo americanus. 

A face primordial da questão ficou assim aclarada. Que resultem do "homem da Lagoa Santa" cruzado com 
o pré-colombiano dos sambaquis; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte, de que se supõe oriundos os tupis tão numerosos na época do descobrimento — os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa terra. 

Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena, as investigações convergiram para a 
definição da sua psicologia especial; e enfeixaram-se, ainda, em algumas conclusões seguras. 

Não precisamos revivê-las. Sobre faltar-nos competência. nos desviaríamos muito de um objetivo 
prefixado. 

Os dois outros elementos formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O negro banto, ou 
catre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos 
tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força. 

Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do 
celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado. 

Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico 
diferenciados — e ainda, sob todas as suas formas; as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e apostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas. 

É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o 
indo-guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas. 

É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão 
dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema. 

É fácil demonstrar. 

Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três elementos constituintes de nossa 
raça em si mesmos, intactas as capacidades que Ihes são próprias. 

Vemos, de pronto, que. mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às 
combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitável determina, no caso mais simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram-se; originam número igual de subformações — substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mamaluco ou curiboca e o cafuz . 
As sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravando-o e dificultando-o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante as dosagens variáveis do sangue. 

O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um 
entrelaçamento consideravelmente complexo. 
Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz. 
Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território; 
as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças 
constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda. 

Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os 
nossos antropólogos. Forrando-se, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão 
complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave 
influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma 
meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de 
subjetivismo no animo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de coisas tão sérias com uma 
volubilidade algo escandalosa, atentas as proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os 
materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e 
fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica sonhadora alguns precipitados fictícios. 

Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e 
decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano 
depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígine. 

Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao 
mais breve choque da crítica: devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias. 

Outros vão terra a terra de mais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos 
pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam-no o mais característico tipo da nossa 
subcategoria étnica. 

O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio. 

Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de 
um tipo étnico único, quando há, certo, muitos. 

Não temos unidade de raça. 

Não a teremos, talvez, nunca. 

Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida 
nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. 

Estamos condenados à civilização. 
Ou progredimos, ou desaparecemos.
A afirmativa é segura. 

Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a outro elemento igualmente 
ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em 
grande parte decorreram. 

A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns momentos.
Variabilidade do meio físico 
Contravindo à opinião dos que demarcam aos países quentes um desenvolvimento de 30° de latitude, o 
Brasil está longe de se incluir todo em tal categoria. Sob um duplo aspecto, astronômico e geográfico, aquele 
limite é exagerado. 

Além de ultrapassar a demarcação teórica vulgar, exclui os relevos naturais que atenuam ou reforçam os agentes meteorológicos, criando climas equatoriais em altas latitudes ou regímens temperados entre os trópicos. Toda a climatologia, inscrita nos amplos lineamentos das leis cosmológicas gerais, desponta em qualquer parte adicta de preferência às causas naturais mais próximas e particulares. Um clima é como que a tradução fisiológica de uma condição geográfica. E definindo-o deste modo concluímos que o nosso país, pela sua própria estrutura, se imprópria a um regímen uniforme. 

Demonstram-no os resultados mais recentes, e são os únicos dignos de fé, das indagações meteorológicas. 
Estas o subdividem em três zonas claramente distintas: a francamente tropical, que se expande pelos Estados do Norte ao sul da Bahia, com uma temperatura média de 26°; a temperada, de S. Paulo ao Rio Grande, pelo Paraná e Santa Catarina, entre os isotermos 15° e 20°; e como transição — a subtropical, alongando-se pelo Centro e Norte de alguns Estados, de Minas ao Paraná. 

Aí estão. claras, as divisas de três habitats distintos. 
Ora, mesmo entre as linhas mais ou menos seguras destes despontam modalidades, que ainda os 
diversificam. 
Indiquemo-las a traços rápidos. 

A disposição orográfica brasileira, possantes massas sublevadas que se orientam perlongando o litoral 
perpendicularmente ao rumo do SE, determina as primeiras distinções em largos tratos de território que 
demoram ao Oriente, criando anomalia climatológica expressiva. 
De fato, o clima aí inteiramente subordinado aos facies geográficos viola as leis gerais que o regulam. A 
partir dos trópicos para o Equador a sua caracterização astronômica, pelas latitudes, cede às causas secundárias perturbadoras. Define-se, anormalmente, pelas longitudes. 

É um fato conhecido. Na extensa faixa da costa, que vai da Bahia à Paraíba, se vêem transições mais 
acentuadas, acompanhando os paralelos, no rumo do ocidente, do que os meridianos, demandando o norte. As diferenças no regímen e nos aspectos naturais, que segundo este rumo são imperceptíveis, patenteiam-se, claras, no primeiro. Distendida até às paragens setentrionais extremas, a mesma natureza exuberante ostenta-se sem variantes nas grandes matas que debruam a costa, fazendo que a observação rápida do estrangeiro prefigure dilatada região vivaz e feracíssima. Entretanto a partir do 13° paralelo as florestas mascaram vastos territórios estéreis, retratando nas áreas desnudas as inclemências de um clima em que os graus termométricos e higrométricos progridem em relação inversa, extremando-se exageradamente. 

Revela-o curta viagem para o ocidente, a partir de um ponto qualquer daquela costa. Quebra-se o encanto de 
ilusão belíssima. A natureza empobrece-se; despe-se das grandes matas; abdica o fastígio das montanhas; 
erma-se e deprime-se — transmudando-se nos sertões exsicados e bárbaros, onde correm rios efêmeros, e 
destacam-se em chapadas nuas, sucedendo-se, indefinidas, formando o palco desmedido para os quadros 
dolorosos das secas. 

O contraste é empolgante. 
Distantes menos de cinqüenta léguas, apresentam-se regiões de todo opostas, criando opostas condições à 
vida. Entra-se, de surpresa, no deserto. 

E, certo, as vagas humanas que nos dois primeiros séculos do povoamento embateram as plagas do Norte 
tiveram na translação para o ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota agitada dos 
mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e decíduas. O malogro da expansão baiana, que 
entretanto precedera à paulista no devassar os recessos do país, é exemplo frisante. 

O mesmo não sucede, porém, dos trópicos para o sul. 

Aí a urdidura geológica da terra, matriz de sua morfogenia interessante, persiste inalterável, abrangendo 
extensas superfícies para o interior, criando as mesmas condições favoráveis, a mesma flora, um clima altamente melhorado pela altitude, e a mesma feição animadora dos aspectos naturais. 

A larga antemural da cordilheira granítica, derivando a prumo para o mar, nas vertentes interiores descamba 
suavemente em vastos plainos ondulados. 

É a escarpa abrupta e viva dos planaltos. 

Sobre estes os cenários, sem os traços exageradamente dominadores das montanhas, revelam-se mais opulentos e amplos. A terra patenteia essa manageability of nature, de que nos fala Buckle, e o clima temperado quente desafia na benignidade o admirável regímen da Europa Meridional. Não o regula mais, como mais para o norte, exclusivamente, o SE. Rolando dos altos chapadões do interior, o NO prepondera então, em toda extensíssima zona que vai das terras elevadas de Minas e do Rio ao Paraná, passando por S. Paulo. 

Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma diferença essencial entre o Sul e o Norte, 
absolutamente distintos pelo regímen meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o 
sertão e a costa. 

Descendo à análise mais íntima desvendaremos aspectos particulares mais incisivos ainda. 

Tomemos os casos mais expressivos, evitando extensa explanação do assunto. 

Vimos em páginas anteriores que o SE, sendo o regulador predominante do clima na costa oriental, é 
substituído, nos Estados do Sul, pelo NO e nas extremas setentrionais pelo NE. Ora, estes, por sua vez, 
desaparecem no âmago dos planaltos, ante o SO que, como um hausto possante dos pampeiros, se lança pelo 
Mato Grosso, originando desproporcionadas amplitudes termométricas, agravando a instabilidade do clima 
continental, e submetendo as terras centrais a um regímen brutal, diverso dos que vimos rapidamente delineando. 

Com efeito, a natureza em Mato Grosso balanceia os exageros de Buckle. É excepcional e nitidamente 
destacada. Nenhuma se lhe assemelha. Toda a imponência selvagem, toda a exuberância inconceptível, unidas à brutalidade máxima dos elementos, que o preeminente pensador, em precipitada generalização, ideou no Brasil, ali estão francas, rompentes em cenários portentosos. Contemplando-as, mesmo através da frieza das 
observações de naturalistas pouco vezados a efeitos descritivos, vê-se que aquele regímen climatológico 
anômalo é o mais fundo traço da nossa variabilidade mesológica. 

Nenhum se lhe equipara no jogar das antíteses. A sua feição aparente é a de benignidade extrema: — a terra 
afeiçoada à vida; a natureza fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e calmos; e o solo 
abrolhando em vegetação fantástica — farto, irrigado de rios que irradiam pelos quatro pontos cardeais. Mas esta placidez opulenta esconde, paradoxalmente, germens de cataclismos, que irrompendo, sempre com um ritmo inquebrável, no estio, traindo-se nos mesmos prenúncios infalíveis, ali tombam com a finalidade irresistível de uma lei. 

Mal poderemos traçá-los. Esbocemo-los. 

Depois de soprarem por alguns dias as rajadas quentes e úmidas de NE, os ares imobilizam-se, por algum 
tempo, estagnados. Então "a natureza como que se abate extática, assustada; nem as grimpas das árvores 
balouçam; as matas, numa quietude medonha, parecem sólidos inteiriços. As aves se achegam nos ninhos, 
suspendendo os vôos e se escondem" . 

Mas, volvendo-se o olhar para os céus, nem uma nuvem! O firmamento límpido arqueia-se alumiado ainda 
por um Sol obscurecido, de eclipse. A pressão, entretanto, decai vagarosamente, numa descensão contínua, 
afogando a vida. Por momentos um cumulus compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte, ao sul. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida, em ventanias fortes. A 
temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas superfícies, apagando, numa inundação única, o divortium aquarum indeciso que as atravessa, adunando todas as nascentes dos rios e embaralhando-lhes os leitos em alagados indefinidos... 

É um assalto subitâneo. O cataclismo irrompe arrebatadamente na espiral vibrante de um ciclone. 
Descolmam-se as casas; dobram-se, rangendo, e partem-se, estalando, os carandás seculares; ilham-se os morros; alagoam-se os plainos... 

E uma hora depois o Sol irradia triunfalmente no céu puríssimo! A passarada irrequieta descanta pelas 
frondes gotejantes; suavizam os ares virações suaves — e o homem, deixando os refúgios a que se acolhera 
trêmulo, contempla os estragos entre a revivescência universal da vida. Os troncos e galhos das árvores rachadas pelos raios, estorcidas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por terra; as últimas ondas barrentas dos ribeirões, transbordantes; a erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos em tropel — mal relembram a investida fulminante do flagelo... 

Dias depois, os ventos rodam outra vez, vagarosamente, para leste; e a temperatura começa a subir de novo; 
a pressão a pouco e pouco diminui; e cresce continuamente o mal-estar, até que se reate nos ares imobilizados a componente formidável do pampeiro e ressurja, estrugidora, a tormenta, em rodeos turbilhonantes, enquadrada pelo mesmo cenário lúgubre, revivendo o mesmo ciclo, o mesmo círculo vicioso de catástrofe. 

Ora — avançando para o norte—desponta, contrastando com tais manifestações, o clima do Pará. Os 
brasileiros de outras latitudes mal o compreendem, mesmo através das lúcidas observações de Bates. 
Madrugadas tépidas, de 23° centígrados, sucedendo-se inesperadamente a noites chuvosas; dias que irrompem como apoteoses fulgurantes, revelando transmutações inopinadas: árvores, na véspera despidas, aparecendo juncadas de flores; brejos apaulados transmudando-se em prados. E logo depois, no círculo estreitíssimo de 24 horas, mutações completas: florestas silenciosas, galhos mal vestidos pelas folhas requeimadas ou murchas; ares vazios e mudos; ramos viúvos das flores recém-abertas, cujas pétalas exsicadas se despegam e caem, mortas, sobre a terra imóvel sob o espasmo enervante de um bochorno de 35°, à sombra. "Na manhã seguinte, o Sol se alevanta sem nuvens e deste modo se completa o ciclo — primavera, verão e outono num só dia tropical" . 

A constância de tal clima faz que se não percebam as estações que, entretanto, como em um índice 
abreviado, se delineiam nas horas sucessivas de um só dia, sem que a temperatura quotidiana tenha durante todo o ano uma oscilação maior que 1° ou 1°,5. Assim a vida se equilibra numa constância imperturbável. 

Entretanto, a um lado, para o ocidente, no Alto Amazonas manifestações diversas caracterizam novo 
habitat. E este, não há negá-lo, impõe aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios limítrofes. 

Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o 
termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa 
dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O 
Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas, de dezessete metros; expande-se em alagados vastos, em furos, em paranamirins ,entrecruzados em rede complicadíssima de mediterrâneo cindido de correntes fortes, dentre as quais emergem, ilhados, os igapós verdejantes. 

A enchente é unia parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo 
raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. 
É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com uma natureza 
que se demasia em manifestações dispares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços. 

Tal regímen acarreta o parasitismo franco. O homem bebe o leite da vida sugando os vasos túmidos das 
sifônias... 
Mas neste clima singular e típico destacam-se outras anomalias, que ainda mais o agravam. Não bastam as 
intermitências de cheias e estiagens, sobrevindo rítmicas como a sístole e a diástole da maior artéria na terra. 
Outros fatos tornam ao forasteiro inúteis todas as tentativas de aclimação real. 

Muitas vezes em plena enchente, em abril ou maio, no correr de um dia calmoso e claro, dentro da 
atmosfera ardente do Amazonas difundem-se rajadas frigidíssimas do sul.
É como uma bafagem enregelada do pólo...
O termômetro desce, então, logo, numa queda única e forte, de improviso. Estabelece-se por alguns dias 
uma situação inaturável. 

Os "regatões" espertos que esporeados pela ganância se avantajam até ali, e os próprios silvícolas enrijados pela adaptação, acolhem-se aos tejupás, tiritantes, abeirando-se das fogueiras. Cessam os trabalhos. Abre-se um novo hiato nas atividades. Despovoam-se aquelas grandes solidões alagadas, morrem os peixes nos rios, enregelados; morrem as aves nas matas silenciosas, ou emigram; esvaziam-se os ninhos; as próprias feras desaparecem, encafurnadas nas tocas mais profundas — ; e aquela natureza maravilhosa do Equador, toda remodelada pela reação esplêndida dos sois, patenteia um simulacro crudelíssimo de desolamento polar e lúgubre. É o tempo da "friagem". 

Terminemos, porém, esses debuxos rápidos. 

Os sertões do Norte, vimo-lo anteriormente, refletem, por sua vez, novos regímens, novas exigências 
biológicas. Ali a mesma intercadência de quadras remansadas e dolorosas se espelha mais duramente talvez, sob outras formas. 

Ora, se considerarmos que estes vários aspectos climáticos não exprimem casos excepcionais, mas 
aparecem todos, desde as tormentas do Mato Grosso aos ciclos das secas do Norte, com a feição periódica 
imanente às leis naturais invioláveis, conviremos em que há no nosso meio físico variabilidade completa
Daí os erros em que incidem os que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação exclusiva de 
um clima tropical. Esta exercita-se, sem dúvida, originando patologia sui generis, em quase toda a faixa 
marítima do Norte e em grande parte dos Estados que lhe correspondem, até ao Mato Grosso. O calor úmido das paragens amazonenses, por ex., deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; enervações periclitantes, em que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas... 

Daí todas as idiossincrasias de uma fisiologia excepcional: o pulmão que se reduz, pela deficiência da 
função e é substituído, na eliminação obrigatória do carbono, pelo fígado, sobre o qual desce pesadamente a 
sobrecarga da vida: organizações combalidas pela alternativa persistente de exaltações impulsivas e apatias 
enervadoras, sem a vibratilidade, sem o tonus muscular enérgico dos temperamentos robustos e sangüíneos. A seleção natural, em tal meio, opera-se à custa de compromissos graves com as funções centrais, do cérebro, numa progressão inversa prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando 
inexoravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como 
conseqüências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral. A aclimação traduz uma evolução 
regressiva. O tipo deperece num esvaecimento contínuo, que se lhe transmite à descendência até a extinção total. 

Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos. 

Isto não acontece em grande parte do Brasil Central e em todos os lugares do Sul. 
Mesmo na maior parte dos sertões setentrionais o calor seco, altamente corrigido pelos fortes movimentos 
aéreos provindos dos quadrantes de leste, origina disposições mais animadoras e tem ação estimulante mais 
benéfica. 

E volvendo ao sul, no território que do norte de Minas para o sudoeste progride até o Rio Grande, 
deparam-se condições incomparavelmente superiores: 

Uma temperatura anual média de 17° a 20°, num jogo mais harmônico de estações; um regímen mais fixo 
das chuvas que, preponderantes no verão, se distribuem no outono e na primavera de modo favorável às culturas. 
Atingindo o inverno, a impressão de um clima europeu é precisa: sopra o SO frigidíssimo sacudindo 
chuvisqueiros finos e esgarçando garoas; a neve rendilha as vidraças; gelam os banhados, e as geadas 
branqueiam pelos campos... 

... e sua reflexão na 

História 

A nossa história traduz notavelmente estas modalidades mesológicas. 
Considerando-a sob uma feição geral, fora da ação perturbadora dos pormenores inexpressivos, vemos, logo 
na fase colonial, esboçarem-se situações diversas. 

Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando-se o povoamento do país com idênticos 
elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da "Índia portentosa",abriu-se separação radical entre o Sul e o Norte. 

Não precisamos rememorar os fatos decisivos das duas regiões. São duas histórias distintas, em que se 
averbam movimentos e tendências opostas. Duas sociedades em formação, alheadas por destinos rivais — uma de todo indiferente ao modo de ser da outra, ambas, entretanto, evolvendo sob os influxos de uma administração única. Ao passo que no Sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no povo mais heterogêneo, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um largo movimento progressista em suma — tudo isto contrastava com as agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre menos fecundas, do Norte — capitanias esparsas e incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e imóveis, em função estreita dos alvarás da corte remota. 

A história é ali mais teatral porém menos eloqüente. 

Surgem heróis, mas a estatura avulta-lhes, maior, pelo contraste com o meio; belas páginas vibrantes mas 
truncadas, sem objetivo certo, em que colaboram, de todo desquitadas entre si, as três raças formadoras. 

Mesmo no período culminante, a luta com os holandeses, acampam, claramente distintos em suas tendas de 
campanha, os negros de Henrique Dias, os índios de Camarão e os lusitanos de Vieira. Mal unidos na guerra, 
distanciam-se na paz. O drama de Palmares, as correrias dos silvícolas, os conflitos na orla dos sertões, violam a transitória convergência contra o batavo. 

Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares, o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso 
tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida, realizando a anomalia de deslocar para 
uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha. 

Bateu-o, felizmente, a onda impetuosa do Sul. 

Aqui, a aclimação mais pronta, em meio menos adverso, emprestou, cedo, mais vigor aos forasteiros. Da 
absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamalucos audazes. O 
"paulista"— e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões 
do Sul — erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um 
dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da 
metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das "bandeiras"... 

Este movimento admirável reflete o influxo das condições mesológicas. Não houvera distinção alguma 
entre os colonizadores de um e outro lado. Em todos prevaleciam os mesmos elementos, que eram o desespero de Diogo Coelho. 

"Piores qua na terra que peste..." 
Mas no Sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto não se delia num 
clima enervante; tinha nova componente na própria força da terra; não se dispersava em adaptações difíceis. — 
Alterava-se, melhorando. O homem sentia-se forte. Deslocado apenas o teatro dos grandes cometimentos, podia volver para o sertão impérvio a mesma audácia que o precipitara nos périplos africanos. 
Além disto — frisemos este ponto escandalizando embora os nossos minúsculos historiógrafos — a 
disposição orográfica libertava-o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro. 

A serra do Mar tem um notável perfil em nossa história. A prumo sobre o Atlântico desdobra-se como a 
cortina de baluarte desmedido. De encontro às suas escarpas embatia, fragílima, a ânsia guerreira dos Cavendish e dos Fenton. No alto, volvendo o olhar em cheio para os chapadões, o forasteiro sentia-se em segurança. Estava sobre ameias intransponíveis que o punham do mesmo passo a cavaleiro do invasor e da metrópole. Transposta a montanha — arqueada como a precinta de pedra de um continente — era um isolador étnico e um isolador histórico. Anulava o apego irreprimível ao litoral, que se exercia ao norte; reduzia-o a estreita faixa de mangues e restingas, ante a qual se amorteciam todas as cobiças, e alteava, sobranceira às frotas, intangível no recesso das matas, a atração misteriosa das minas... 

Ainda mais — o seu relevo especial torna-a um condensador de primeira ordem, no precipitar a evaporação 
oceânica. 

Os rios que se derivam pelas suas vertentes nascem de algum modo no mar. Rolam as águas num sentido 
oposto à costa. Entranham-se no interior, correndo em cheio para os sertões. Dão ao forasteiro a sugestão 
irresistível das "entradas". 

A terra atrai o homem; chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo aspecto formosíssimo; arrebata-o, 
afinal, irresistivelmente na correnteza dos rios. 

Daí o traçado eloqüentíssimo do Tietê, diretriz preponderante nesse domínio do solo. Enquanto no S. 
Francisco, no Paraíba, no Amazonas, e em todos os cursos d"água da borda oriental, o acesso para o interior 
seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os sertanistas, sem uma remada, para o rio Grande e daí ao Paraná e ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em Goiás, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil inteiro. Segundo estas linhas de menor resistência, que definem os lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como ao norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a barreira intangível dos descampados brutos. 

Assim é fácil mostrar como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e contrastes entre os 
sucessos nos dois pontos do país, sobretudo no período agudo da crise colonial, no século 17. 
Enquanto o domínio holandês, centralizando-se em Pernambuco, reagia por toda a costa oriental, da Bahia 
ao Maranhão, e se travavam recontros memoráveis em que, solidárias, enterreiravam o inimigo comum as nossas três raças formadoras, o sulista, absolutamente alheio àquela agitação, revelava, na rebeldia aos decretos da metrópole, completo divórcio com aqueles lutadores. Era quase um inimigo tão perigoso quanto o batavo. Um povo estranho de mestiços levantadiços, expandindo outras tendências, norteado por outros destinos, pisando, resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e alvarás entibiadores. Volvia-se em luta aberta com a corte portuguesa, numa reação tenaz contra os jesuítas. Estes, olvidando o holandês e dirigindo-se, com Ruy de Montoya a Madri e Dias Tãno a Roma, apontavam-no como inimigo mais sério. 

De feito, enquanto em Pernambuco as tropas de von Schoppe preparavam o governo de Nassau, em S. 
Paulo se arquitetava o drama sombrio de Guaíra. E quando a restauração em Portugal veio alentar em toda a 
linha a repulsa ao invasor, congregando de novo os combatentes exaustos, os sulistas frisaram ainda mais esta separação de destinos, aproveitando-se do mesmo fato para estadearem a autonomia franca, no reinado de um minuto de Amador Bueno. 

Não temos contraste maior na nossa história. Está nele a sua feição verdadeiramente nacional. Fora disto 
mal a vislumbramos nas cortes espetaculosas dos governadores, na Bahia, onde imperava a Companhia de Jesus com o privilégio da conquista das almas, eufemismo casuístico disfarçando o monopólio do braço indígena. 

Na plenitude do século 17 o contraste se acentua.
Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do Equador. Até aos últimos 
quartéis do século 18, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas, 
incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes 
caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra, 
batendo-a em todos os pontos, descobrindo-a depois do descobrimento, desvendando-lhe o seio rutilante das 
minas. 

Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacionalidade em 
decomposição insanável, aqueles sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas, semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos reveses. 

Quando as correrias do bárbaro ameaçavam a Bahia, ou Pernambuco, ou a Paraíba, e os quilombos se 
escalonavam pelas matas, nos últimos refúgios do africano revoltoso — o sulista, di-lo a grosseira odisséia de 
Palmares, surgia como o debelador clássico desses perigos, o empreiteiro predileto das grandes hecatombes. 


É que o filho do Norte não tinha um meio físico que o blindasse de igual soma de energias. Se tal 
acontecesse, as bandeiras irromperiam também do oriente e do norte e, esmagado num movimento convergente, o elemento indígena desapareceria sem traços remanescentes. Mas o colono nortista, nas entradas para oeste ou para o sul, batia logo de encontro à natureza adversa. Refluía prestes ao litoral sem o atrevimento dos dominadores, dos que se sentem à vontade sobre uma terra amiga, sem as ousadias oriundas da própria atração das, na segunda metade do século 16, por Sebastião Tourinho, das, na segunda metade do século 16, por Sebastião Tourinho, no rio Doce, Bastião Álvares, no S. Francisco, e Gabriel Soares, pelo Norte da Bahia até às 
cabeceiras do Paraguaçu, embora tivessem depois os estímulos enérgicos das Minas de Prata, de Belchior Dias, são um pálido arremedo das arremetidas do Anhangüera ou de um Pascoal de Araújo. 

Apertados entre os canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o deserto, num bloqueio engravecido pela 
ação do clima, perderam todo o aprumo e este espírito de revolta, eloqüentíssimo, que ruge em todas as páginas da história do Sul. 

Tal contraste não se baseia, por certo, em causas étnicas primordiais. 

Delineada, deste modo, a influência mesológica em nosso movimento histórico, deduz-se a que exerceu 
sobre a nossa formação étnica. 

Ação do meio na fase inicial da formação das raças 

Volvamos ao ponto de partida. 

Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos do 
território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes pela própria 
diversidade das condições de adaptação. Além disso (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam 
gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas 
embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isto se verifica nas raças de todo definidas abordando outros climas, protegidas pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sangüíneo desses grandes organismos coletivos, que não diremos da nossa situação muito diversa ? Neste caso — é evidente — a justaposição dos 
caracteres coincide com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação correspondente erige-se como período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam, alterando o valor relativo da influencia do meio. Este como que estampa, então, melhor, no corpo em fusão, os seus traços característicos. Sem nos arriscarmos demais a paralelo ousado, podemos dizer que, para essas reações biológicas complexas, ele tem agentes mais enérgicos que para as reações químicas da matéria. 

Ao calor e à luz, que se exercitam em ambas, adicionam-se, então, a disposição da terra, as modalidades do 
clima e essa ação de presença inegável, essa espécie de força catalítica misteriosa que difundem os vários 
aspectos da natureza. 

Entre nós, vimo-lo, a intensidade destes últimos está longe da uniformidade proclamada. Distribuíram, 
como o indica a história, de modo diverso as nossas camadas étnicas, originando uma mestiçagem dissímil. 
Não há um tipo antropológico brasileiro
A formação brasileira no Nort
Procuremos, porém, neste intricado caldeamento a miragem fugitiva de uma sub-raça, efêmera talvez. 
Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo-nos ao nosso assunto. Definamos rapidamente os antecedentes históricos do jagunço. 

Ante o que vimos a formação brasileira do Norte é mui diversa da do Sul. As circunstâncias históricas, em 
grande parte oriundas das circunstâncias físicas, originaram diferenças iniciais no enlace das raças, 
prolongando-as até o nosso tempo. 
A marcha do povoamento, do Maranhão à Bahia, revela-as. 

Os primeiros povoadores 
Foi vagaroso. As gentes portuguesas não abordavam o litoral do Norte robustecidas pela força viva das 
migrações compactas, grandes massas invasoras capazes, ainda que destacadas do torrão nativo, de conservar, pelo número, todas as qualidades adquiridas em longo tirocínio histórico. Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempenho viril dos conquistadores. 

Deslumbrava-as ainda o Oriente. 

O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os 
passíveis do morra per ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros tempos o número 
reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da terra e a grandeza da população indígena. As instruções 
dadas, em 1615, ao capitão Fragoso de Albuquerque, a fim de regular com o embaixador espanhol em França o tratado de tréguas com La Ravardière, são claras a respeito. Ali se afirma "que as terras do Brasil não estão 
despovoadas porque nelas existem mais de 3 mil portugueses". 

Isto para o Brasil todo — mais de cem anos após o descobrimento. . .
Segundo observa Aires de Casal "a população crescia tão devagar que na época da perda do sr. d. Sebastião 
(1580) ainda não havia um estabelecimento fora da ilha de Itamaracá cujos vizinhos andavam por uns duzentos, com três engenhos de açúcar". 

Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e os dois outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2 mil brancos, 4 mil negros e 6 mil índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone. Nos primeiros cruzados, portanto, ele deve ter influído muito. 

Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde para essa mistura em larga escala. 
Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos, norteava-os a todos como um aforismo o ultra equinotialem non peccavi, na frase de Barleus. A mancebia com as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava. O padre Nóbrega definiu bem o fato, na célebre carta ao rei ( 1549) em que, pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos. 
Achava conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres "que fossem erradas, que todas achariam 
maridos, por ser a terra larga e grossa". A primeira mestiçagem fez-se, pois, nos primeiros tempos, intensamente, entre o europeu e o silvícola. "Desde cedo, di-lo Casal, os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados e aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do país com casta tupiniquina." 

Por outro lado, embora existissem em grande cópia mesmo no reino, os africanos tiveram, no primeiro 
século, uma função inferior. Em muitos lugares rareavam. Eram poucos, diz aquele narrador sincero, no Rio 
Grande do Norte, "onde os índios há largo tempo que foram reduzidos, apesar da sua ferocidade e cujos 
descendentes por meio das alianças com os europeus e africanos têm aumentado as classes dos brancos e dos pardos ". 

Estes excertos são expressivos.
Sem idéia alguma preconcebida, pode-se afirmar que a extinção do indígena, no Norte, proveio, segundo o 
pensar de Varnhagen, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio. 

Sabe-se ainda que havia no animo dos donatários a preocupação de aproveitar-lhes o mais possível a aliança, 
captando-lhes o apego. Este proceder refletia os intuitos da metrópole. Demonstram-no-lo as sucessivas cartas régias que, de 1570 a 1758 — em que pese "a uma série nunca interrompida de hesitações e contradições" — 
apareceram como minorativo à ganância dos colonos visando a escravização do selvagem. — Sendo que 
algumas, como a de 1680, estendiam a proteção ao ponto de decretar que se concedessem ao gentio terras "ainda mesmo as já dadas a outros de sesmaria", visto que deviam ter preferência os mesmos índios "naturais senhores da terra". 

Contribuiu para esta tentativa persistente de incorporação a Companhia de Jesus que, obrigando-se no Sul a 
transigências forçadas, dominava no Norte. Excluindo quaisquer intenções condenáveis, os jesuítas ali 
realizaram tarefa nobilitadora. Foram ao menos rivais do colono ganancioso. No embate estúpido da 
perversidade contra a barbaria, apareceu uma função digna àqueles eternos condenados. Fizeram muito. Eram os únicos homens disciplinados de seu tempo. Embora quimérica a tentativa de alçar o estado mental do aborígine às abstrações do monoteísmo, ela teve o valor de o atrair por muito tempo, até a intervenção oportuna de Pombal, para a nossa história. 

O curso das missões, no Norte, em todo o trato de terras do Maranhão à Bahia, patenteia sobretudo um lento 
esforço de penetração no âmago das terras sertanejas, das fraldas da Ibiapaba às da Itiúba, que completa de 
algum modo a movimentação febril das bandeiras. Se estas difundiam largamente o sangue das três raças pelas novas paragens descobertas, provocando um entrelaçamento geral, a despeito das perturbações que acarretavam — os aldeamentos, centros da força atrativa do apostolado, fundiam as malocas em aldeias; unificavam as cabildas; integravam as tribos. Penetrando fundo nos sertões, graças a um esforço secular, os missionários salvaram em parte este fator das nossas raças. Surpreendidos vários historiadores pela vinda, em grandíssima escala, do africano, que iniciada em fins do século 16 nunca mais parou até o nosso (1850) e considerando que ele foi o melhor aliado do português na quadra colonial, dão-lhe geralmente influência exagerada na formação do sertanejo do Norte. Entretanto, em que pese a esta invasão de vencidos e infelizes, e à sua fecundidade rara, e a suas qualidades de adaptação, apuradas na África adusta, é discutível que ela tenha atingido profundamente os sertões. 

É certo que o consórcio afro-lusitano era velho, anterior mesmo ao descobrimento, porque se consumara 
desde o século 15, com os azenegues e jalofos de Gil Eanes e Antão Gonçalves. Em 1530 salpintavam as ruas de Lisboa mais de 10 mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em Évora tinham maioria sobre os brancos. 

Os versos de um contemporâneo, Garcia de Resende, são um documento: 

"Vemos no reino meter,
Tantos cativos crescer,
Irem-se os naturais
Que, se assim for, serão mai
Eles que nós, a meu ver." 

A gênese do mulato 

 
Assim a gênese do mulato teve uma sede fora do nosso país. A primeira mestiçagem com o africano operou-se na metrópole. Entre nós, naturalmente, cresceu. A raça dominada, porém, teve, aqui, dirimidas pela situação social, as faculdades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humildade extrema, sem as rebeldias do 
índio, o negro teve, de pronto, sobre os ombros toda a pressão da vida colonial. Era a besta de carga adstrita a trabalhos sem folga. As velhas ordenações, estatuindo o "como se podem enjeitar os escravos e bestas por os acharem doentes ou mancos", denunciam a brutalidade da época. Além disto — insistamos num ponto 
incontroverso — as numerosas importações de escravos se acumulavam no litoral. A grande tarja negra debruava a costa da Bahia ao Maranhão, mas pouco penetrava o interior. Mesmo em franca revolta, o negro humilde feito 
quilombola temeroso, agrupando-se nos mocambos, parecia evitar o âmago do país. Palmares, com seus 30 mil mocambeiros, distava afinal poucas léguas da costa. 

Nesta última a uberdade da terra fixara simultaneamente dois elementos, libertando o indígena. A cultura 
extensiva da cana, importada da Madeira, determinara o olvido dos sertões. Já antes da invasão holandesa, do 
Rio Grande do Norte à Bahia havia 160 engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em 
rápido crescendo. 

O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e 
determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o 
indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou mal tolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missionários. 
A escravidão negra, constituindo-se derivativo ao egoísmo dos colonos, deixava aqueles mais desembaraçados 
que no Sul, nos esforços da catequese. Os próprios sertanistas ao chegarem, ultimando as rotas atrevidas, àquelas paragens, tinham extinta a combatividade. 
Alguns, como Domingos Sertão, cerravam a vida aventureira, atraídos pelos lucros das fazendas de criação, 
abertas naqueles grandes latifúndios. 


Deste modo se estabeleceu distinção perfeita entre os cruzamentos realizados no sertão e no litoral.
Com efeito, admitido em ambos como denominador comum o elemento branco, o mulato erige-se como 
resultado principal do último e o curiboca do primeiro. 


Capítulo II 

Gênese dos jagunços 


A demonstração é positiva. Há um notável traço de originalidade na gênese da população sertaneja, não 
diremos do Norte, mas do Brasil subtropical. 

Esbocemo-lo; e para não nos delongarmos demais, afastemo-nos pouco do teatro em que se desenrolou o 
drama histórico de Canudos, percorrendo rapidamente o rio de São Francisco, “o grande caminho da civilização 
brasileira”, conforme o dizer feliz de um historiador . 

Vimos, de relance, em páginas anteriores, que ele atravessa as regiões mais dispares. Ampla nas cabeceiras, 
a sua dilatada bacia colhe na rede de numerosos afluentes a metade de Minas, na zona das montanhas e das 
florestas. Estreita-se depois passando na parte mediana pela paragem formosíssima dos gerais. No curso inferior, a jusante de Juazeiro, constrita entre pendores que a desnivelam torcendo-a para o mar, torna-se pobre de tributários, quase todos efêmeros, derivando, apertada por uma corredeira única de centenares de quilômetros, até Paulo Afonso — e corta a região maninha das caatingas. 

Ora, sob esta tríplice disposição, é um diagrama da nossa marcha histórica, refletindo, paralelamente, as 
suas modalidades variáveis.
Balanceia a influência do Tietê. 

Enquanto este, de traçado incomparavelmente mais próprio a penetração colonizadora, se tornou o caminho 
predileto dos sertanistas visando sobretudo a escravização e o “descimento” do gentio, o S. Francisco foi, nas 
altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira; no curso inferior, o teatro das missões; e, na região média, a tem clássica do regímen pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia. 

Bateram-lhe por igual as margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro. 

Quando, mais tarde, maior cópia de documentos permitir a reconstrução da vida colonial, do século 17 ao 
fim do 18, é possível que o último, de todo olvidado ainda, avulte com o destaque que merece na formação da 
nossa gente. Bravo e destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a vantagem de um atributo supletivo que faltou a ambos — a fixação ao solo. 

As bandeiras, sob os dois aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a tem ou 
com o homem, buscando o ouro ou o escravo, desvendavam desmedidas paragens, que não povoavam e 
deixavam porventura mais desertas, passando rápidas sobre as malocas e as catas. 


A sua história, às vezes inextricável como os dizeres adrede obscuros dos roteiros, traduz a sucessão e 
enlace destes estímulos únicos revezando-se quer consoante a índole dos aventureiros, quer de acordo com a 
maior ou menor praticabilidade das empresas planeadas. E, neste permanente oscilar entre aqueles dois 
desígnios, a sua função realmente útil, no desvendar o desconhecido, repontava como incidente obrigado, 
conseqüência inevitável em que se não cuidava. 

Assim é que extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da serra das Esmeraldas, que 
desde meados do século 18 atraíra para os flancos do Espinhaço, um após outros, inacessíveis a constantes 
malogros, Bruzzo Spinosa, Sebastião Tourinho, Dias Adorno e Martins Carvalho, e desaparecendo ao norte o 
pais encantado que idealizara a imaginação romântica de Gabriel Soares, grande parte do século 17 é dominada pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos, centralizados pela figura brutalmente heróica de Antônio Raposo. É que se haviam apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa Sabará-buçu e as das 
Minas de Prata, eternamente inatingíveis; até que, renovadas pelas pesquisas indecisas de Pais Leme, que avivou, depois de um apagamento quase secular, as veredas de Glimmer; alentadas pelas oitavas de ouro de Arzão pisando em 1693 as mesmas trilhas de Tourinho e Adorno; e ao cabo francamente ressurgindo logo depois com 
Bartolomeu Bueno, em Itaberaba, e Miguel Garcia, no Ribeirão do Carmo, as entradas sertanejas volvessem ao anelo primitivo e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais fortes, pelo país inteiro. 

Ora, durante este período em que, aparentemente, só se observam, no litoral, a luta contra o batavo e, no 
âmago dos planaltos, o espantoso ondular das bandeiras, surgira na região que interfere o médio São Francisco um notável povoamento do qual os resultados somente depois apareceram. 

Função histórica do rio S. Francisco 

Formara-se obscuramente. Determinaram-no, em começo, as entradas a procura das minas de Moreia que, 
embora anônimas e sem brilho, parecem ter-se prolongado até o governo de Lancastro, levando até as serranias de Macaúbas, além do Paramirim, sucessivas turmas de povoadores . Vedado nos caminhos diretos e normais à costa, mais curtos porém interrompidos pelos paredões das serras ou trancados pelas matas, o acesso fazia-se pelo S. Francisco. Abrindo aos exploradores duas entradas únicas, à nascente e à foz, levando os homens do Sul ao encontro dos homens do Norte, o grande rio erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam. Porque provindos dos mais diversos pontos e origens, ou fossem os paulistas de Domingos Sertão, ou os baianos de Garcia d"Ávila, ou os pernambucanos de Francisco Caldas, com os seus pequenos exércitos de tabajaras aliados, ou mesmo os portugueses de Manuel Nunes Viana, que dali partiu da sua fazenda do Escuro, em Carinhanha, para comandar os emboabas no rio das Mortes, os forasteiros, ao atingirem o âmago daquele sertão, raro voltavam. 

A terra, do mesmo passo exuberante e acessível, compensava-lhes a miragem desfeita das minas cobiçadas. 
A sua estrutura geológica original criando conformações topográficas em que as serranias, últimos esporões e 
contrafortes da cordilheira marítima, têm a atenuante dos tabuleiros vastos; a sua flora complexa e variável, em que se entrelaçam florestas sem a vastidão e o trançado impenetrável das do litoral, com o “mimoso” das 
planuras e o “agreste” das chapadas, desafogadas, todas, salteadamente, nos vastos claros das caatingas; a sua conformação hidrográfica especial de afluentes que se ajustam, quase simétricos, para o ocidente e o oriente ligando-a, de um lado à costa, de outro ao centro dos planaltos — foram laços preciosos para a fusão desses elementos esparsos, atraindo-os, entrelaçando-os. E o regímen pastoril ali se esboçou como uma sugestão dominadora dos gerais. 

Nem faltava para isto, sobre a rara fecundidade do solo recamado de pastagens naturais, um elemento 
essencial, o sal, gratuito, nas baixadas salobras dos barreiros . 

Constituiu-se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século 18 
ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, "o quase único aspecto tranqüilo da nossa cultura". 
A parte os raros contingentes de povo adores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos, que ali se formaram? vinha do sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras. 

Os jagunços: colaterais prováveis dos paulistas 

Segundo o que se colhe em preciosas páginas de Pedro Taques, foram numerosas as famílias de S. Paulo 
que, em contínuas migrações, procuraram aqueles rincões longínquos, e acredita-se, aceitando o conceito de um historiógrafo perspicaz, que o "vale de S. Francisco, já aliás muito povoado de paulistas e de seus descendentes desde o século 18, tornou-se uma como colônia quase exclusiva deles" . É natural por isto que Bartolomeu Bueno, ao descobrir Goiás, visse, surpreendido, sinais evidentes de predecessores, anônimos pioneiros que ali tinham chegado, certo, pelo levante, transmontando a serra de Paranã; e que ao se reabrir em 1697 o ciclo mais 
notável das pesquisas do ouro, nas agitadas e ruidosas vagas de imigrantes, que rolavam dos flancos orientais da serra do Espinhaço ao talvegue do rio das Velhas, passassem mais fortes talvez, talvez precedendo as demais no descobrimento das minas de Caeté, e sulcando-as de meio a meio, e avançando em direção contrária como um refluxo promanado do Norte, as turmas dos "baianos", termo que, como o de "paulista", se tornara genérico no abranger os povoadores setentrionais. 


O vaqueiro 

É que já se formara no vale médio do grande rio uma raça de cruzados idênticos àqueles mamalucos 
estrênuos que tinham nascido em S. Paulo. E não nos demasiamos em arrojada hipótese admitindo que este tipo extraordinário do paulista, surgindo e decaindo logo no Sul, numa degeneração completa ao ponto de declinar no 
próprio território que lhe deu o nome, ali renascesse e, sem os perigos das migrações e do cruzamento, se 
conservasse prolongando, intacta, ao nosso tempo, a índole varonil e aventureira dos avós. 

Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela serra 
Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. 

O meio atraía-os e guardava-os. 

As entradas de um e outro lado da meridiana, impróprias à dispersão, facilitavam antes o entrelaçamento 
dos extremos do país. Ligavam-nos no espaço e no tempo. Estabelecendo no interior a contigüidade do 
povoamento, que faltava ainda em parte na costa, e surgindo entre os nortistas, que lutavam pela autonomia da pátria nascente, e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo-os por igual com as fartas boiadas que subiam para o vale do rio das Velhas ou desciam até as cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade, 
incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade. 

Os primeiros sertanistas que a criaram, tendo suplantado em toda a linha o selvagem, depois de o 
dominarem escravizaram-no e captaram-no, aproveitando-lhe a índole na nova indústria que abraçavam. 

Veio subseqüentemente o cruzamento inevitável. E despontou logo uma raça de curibocas puros quase sem 
mescla de sangue africano, facilmente denunciada, hoje, pelo tipo normal daqueles sertanejos. Nasciam de um 
amplexo feroz de vitoriosos e vencidos. Criaram-se numa sociedade revolta e aventurosa, sobre a terra farta; e tiveram, ampliando os seus atributos ancestrais, uma rude escola de forca e de coragem naqueles gerais 
amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a ema velocíssima, ou nas serranias de flancos 
despedaçados pela mineração superficial, quando as lavras baianas, mais tarde, lhes deram esse derivativo à 
faina dos rodeios. 

Fora longo traçar-lhes a evolução do caráter. Caldeadas a índole aventureira do colono e a impulsividade do 
indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente modificados apenas consoante as novas exigências da vida. E ali estão com as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até o fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo 
de rimas de três séculos... 

Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises — quando a roupa de 
couro do vaqueiro se faz a armadura flexível do jagunço — oriunda de elementos convergentes de todos os 
pontos, porém diversa das demais deste país, ela é inegavelmente um expressivo exemplo do quanto importam as reações do meio. Expandindo-se pelos sertões limítrofes ou próximos, de Goiás, Piauí, Maranhão, Ceará e Pernambuco, tem um caráter de originalidade completa expresso mesmo nas fundações que erigiu. Todos os povoados, vilas ou cidades, que lhe animam hoje o território, têm uma origem uniforme bem destacada das dos 
demais que demoram ao norte e ao sul. 

Enquanto deste lado se levantaram nas cercanias das minas ou à margem das catas, e no extremo norte, a 
partir de dilatada linha entre a Itiúba e Ibiapaba, sobre o local de antigas aldeias das missões, ali surgiram, todas, de antigas fazendas de gado. 


Escusamo-nos de apontar exemplos por demais numerosos. Quem considera as povoações do S. Francisco, 
das nascentes à foz, assiste à sucessão dos três casos apontados. 

Deixa as regiões alpestres, cidades alcandoradas sobre serras, refletindo o arrojo incomparável das 
bandeiras; atravessa depois os grandes gerais, desmedidas arenas feitas à sociedade rude, libérrima e forte dos vaqueiros; e atinge por fim as paragens pouco apetecidas, amaninhadas pelas secas, eleitas aos roteiros lentos e penosos das missões... 

É o que indicam, completando estes ligeiros confrontos, os traçados das fundações jesuíticas, no trato de 
terras que há pouco demarcamos. 

Fundações jesuíticas na Bahia 

Com efeito, ali, totalmente diversos na origem, os atuais povoados sertanejos se formaram de velhas aldeias 
de índios, arrebatadas, em 1758, do poder dos padres pela política severa de Pombal. Resumindo-nos aos que 
ainda hoje existem, próximos e em torno do lugar onde existia há cinco anos a Tróia de taipa dos jagunços, 
vemos, mesmo em tão estreita área, os melhores exemplos. 

De fato, em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinavam à posse de 
uma só família, a de Garcia d"Ávila (Casa da Torre), acham-se povoados antiqüíssimos. De Itapicuru-de-Cima a Jeremoabo e daí acompanhando o S. Francisco até os sertões de Rodelas e Cabrobó, avançaram logo no século 17 as missões num lento caminhar que continuaria até o nosso tempo. 

Não tiveram um historiador. 


A extraordinária empresa apenas se retrata, hoje, em raros documentos, escassos demais para traçarem a sua continuidade. Os que existem, porém, são eloqüentes para o caso especial que consideramos. Dizem, de modo iniludível, que, enquanto o negro se agitava na azáfama do litoral, o indígena se fixava em aldeamentos que se tornariam cidades. A solicitude calculada do jesuíta e a rara abnegação dos capuchinhos e franciscanos 
incorporavam as tribos à nossa vida nacional e quando no alvorecer do século 18 os paulistas irromperam em 
Pambu e na Jacobina, deram de vistas, surpresos, nas paróquias que, ali, já centralizavam cabildas. O primeiro daqueles lugares, 22 léguas a montante de Paulo Afonso, desde 1682 se incorporara à administração da metrópole. Um capuchinho dominava-o, desfazendo as dissenções tribais e imperando, humílimo, sobre os 
morubixabas mansos. No segundo preponderava, igualmente exclusivo, o elemento indígena da velhíssima 
missão do Saí. 

Jeremoabo aparece, já em 1698, como julgado, o que permite admitir-se-lhe origem muito mais remota. Aí o 
elemento indígena se mesclava ligeiramente com o africano, o canhembora ao quilombola . Incomparavelmente mais animado do que hoje, o humilde lugarejo desviava para si, não raro, a atenção de João de Lancastro, governador geral do Brasil, principalmente quando se exacerbavam as rivalidades dos chefes índios, munidos com as patentes, perfeitamente legais, de capitães. Em 1702 a primeira missão dos franciscanos disciplinou aqueles lugares, tornando-se mais eficaz que as ameaças do governo. Harmonizaram-se as cabildas; e o afluxo de 
silvícolas captados pela Igreja foi tal que em um só dia o vigário de Itapicuru batizou 3.700 catecúmenos . 

Perto se erigia, também vetusta, a missão de Maçacará, onde, em 1687, tinha o opulento Garcia d"Ávila uma 
companhia de seu regimento. Mais para o sul avultavam outras: Natuba, também bastante antiga aldeia, ereta 
pelos jesuítas; Inhambupe, que no elevar-se a paróquia originou larga controvérsia entre os padres e o rico 
sesmeiro precitado; Itapicuru ( 1639 ), fundada pelos franciscanos. 

Mais para o norte, ao começar o século 18, o povoamento, com os mesmos elementos, continuou mais 
intenso, diretamente favorecido pela metrópole. 

Na segunda metade do século 17 surgira no sertão de Rodelas a vanguarda das bandeiras do sul. Domingos 
Sertão centralizou na sua fazenda do Sobrado o círculo animado da vida sertaneja. A ação desse rude sertanista, naquela região, não tem tido o relevo que merece. Quase na confluência das capitanias setentrionais, próximo ao mesmo tempo do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e da Bahia, o rústico landlord colonial aplicou no trato de suas cinqüenta fazendas de criação a índole aventurosa e irrequieta dos curibocas. Ostentando, como os outros dominadores do solo, um feudalismo achamboado — que o levava a transmudar, em vassalos os foreiros humildes e em servos os tapuias mansos —, o bandeirante atingindo aquelas paragens, e havendo conseguido o seu ideal de riqueza e poderio, aliava-se na mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o padre. 1: que a metrópole, no Norte, secundava, sem vacilar, os esforços deste último. Firmara-se desde muito o princípio de combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento de catecúmenos era um reduto ante as incursões dos silvícolas soltos e indomáveis. 

Ao terminar o século 17, Lancastro fundou com o indígena catequizado o arraial da Barra, para atenuar as 
depredações dos Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto à feição da corrente do São Francisco sucederam-se os aldeamentos e as missões, em Nossa Senhora do Pilar, Sorobabé, Pambu, Aracapá, Pontal, Pajeú etc. É evidente, pois, que, precisamente no trecho dos sertões baianos mais ligados aos dos demais Estados do Norte — em toda a orla do sertão de Canudos — se estabeleceu desde o alvorecer da nossa história um farto povoamento, em que 
sobressaía o aborígine amalgamando-se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao ponto de dirimir a sua influência inegável. 

As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram-se no mesmo método. Do final do século 18 ao 
nosso, em Pombal, no Cumbe, em Bom Conselho e Monte Santo etc., perseverantes missionários, de que é 
modelo belíssimo Apolônio de Todi, continuaram até os nossos dias o apostolado penoso. 

Ora, toda essa população perdida num recanto dos sertões lá permaneceu até agora, reproduzindo-se livre de 
elementos estranhos, como que insulada, e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamento 
uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo. 

Enquanto mil causas perturbadoras complicavam a mestiçagem no litoral revolvido pelas imigrações e pela 
guerra; e noutros pontos centrais outros empeços irrompiam no rastro das bandeiras — ali, a população indígena, aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante. 

Causas favoráveis à formação mestiça nos sertões 

distinguindo-a dos cruzamentos no litoral 

Não sofismemos a História Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação do 
autóctone. Destaquemo-las. 

Foram, primeiro, as grandes concessões de sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso 
feudalismo tacanho. 

Os possuidores do solo, de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos 
dos dilatados latifúndios, sem raias, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole. 
A ereção de capelas, ou paróquias, em suas terras fazia-se sempre através de controvérsias com os padres; e 
embora estes afinal ganhassem a partida caíam de algum modo sob o domínio dos grandes potentados. Estes 
dificultavam a entrada de novos povoadores ou concorrentes e tornavam as fazendas de criação, dispersas em 
torno das freguesias recém-formadas, poderosos centros de atração à raça mestiça que delas promanava. 

Assim, esta se desenvolveu fora do influxo de outros elementos. E entregues à vida pastoril, a que por 
índole se afeiçoavam, os curibocas ou cafuzos trigueiros, antecedentes diretos dos vaqueiros atuais, divorciados inteiramente das gentes do sul e da colonização intensa do litoral, evolveram, adquirindo uma fisionomia original. Como que se criaram num país diverso. 

A carta régia de 7 de fevereiro de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento. Proibira, 
cominando severas penas aos infratores, quaisquer comunicações daquela parte dos sertões com o sul, com as minas de São Paulo. Nem mesmo as relações comerciais foram toleradas; interditas as mais simples trocas de produtos. 

Ora, além destes motivos, sobreleva-se, considerando a gênese do sertanejo no extremo norte, um outro: o 
meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do leito do Vaza-Barris ao do Parnaíba, no 
ocidente. 

 
Vimos-lhe a fisionomia original: a flora agressiva, o clima impiedoso, as secas periódicas, o solo estéril 
crespo de serranias desnudas, insulado entre os esplendores do majestoso araxá do centro dos planaltos e as 
grandes matas, que acompanham e orlam a curvatura das costas. Esta região ingrata para a qual o próprio tupi tinha um termo sugestivo pora-pora-eima, remanescente ainda numa das serranias que a fecham pelo levante ( Borborema ), foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o número, os indômitos Cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra, escalavrado pelas tormentas, endurado pela ossamenta rígida das pedras, ressequido pelas soalheiras, esvurmando espinheirais e caatingas. Ali se amorteciam, caindo no vácuo das chapadas, onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos minérios apetecidos, os arremessos das bandeiras. A tapui-retama misteriosa ataviara-se para o estoicismo do missionário. As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos. 
As bandeiras, que a alcançavam, decampavam logo, seguindo, rápidas, fugindo, buscando outras paragens. 

Assombrava-as a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da fé. Deixavam-na, sem que 
nada lhes determinasse a volta; e deixavam em paz o gentio. 

Daí a circunstância, revelada por uma observação feliz, de predominarem ainda hoje, nas denominações 
geográficas daqueles lugares, termos de origem tapuia resistentes às absorções do português e do tupi, que se exercitaram noutros pontos. Sem nos delongarmos demais, resumamos às terras circunjacentes a Canudos a exemplificação deste fato de linguagem, que tão bem traduz uma vicissitude histórica. 

"Transpondo o S. Francisco em direção ao sul, penetra-se de novo numa região ingrata pela inclemência do 
céu, e vai-se atravessando a bacia elevada do Vaza-Barris, antes de ganhar os trechos esparsos e mais deprimidos das chapadas baianas que, depois do salto de Paulo Afonso, depois de Canudos e de Monte Santo, levam a Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí, nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais ingratos, onde outrora se refugiaram os perseguidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, de novo aparecem, designando os lugares, os nomes bárbaros de procedência tapuia, que nem o português nem o tupi logrou suplantar. 


Lêem-se então no mapa da região com a mesma freqüência dos acidentes topográficos os nomes como 
Pambu, Patamuté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Maçacará, Cocorobó, Jeremoabo, Tragagó, Canché. Chorrochó, 
Quincuncá, Conchó, Centocé, Açuruá, Xique-Xique, Jequié, Sincorá, Caculé ou Catolé, Orobó, Mocugé, e 
outros, igualmente bárbaros e estranhos." 

É natural que grandes populações sertanejos, de par com as que se constituíam no médio S. Francisco, se 
formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas, evolvendo em círculo apertado durante três séculos, até a nossa idade, num abandono completo, de todo alheio aos nossos destinos, guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que. hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma uniformidade notável entre os que os povoam: feições e estaturas variando ligeiramente em torno de um modelo único, dando a impressão de um tipo antropológico invariável, logo ao primeiro lance de vistas distinto do mestiço proteiforme do litoral. Porque enquanto este patenteia todos os cambiantes da cor e se erige ainda indefinido, segundo o predomínio variável dos seus agentes formadores, e homem do sertão parece feito por um molde único, revelando quase os mesmos caracteres físicos, a mesma tez, variando brevemente do mamaluco bronzeado ao cafuz trigueiro; cabelo corredio e duro ou levemente ondeado; a mesma envergadura atlética e os mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições. nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes. 

A uniformidade, sob estes vários aspectos, é impressionadora. O sertanejo do norte é, inegavelmente, o tipo 
de uma subcategoria étnica já constituída. 

Um parêntesis irritante 

Abramos um parêntesis... 

A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, 
ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremadamente, através de largos períodos entre os quais a História é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem não se acrescentam, subtraem-se ou destróem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço 
— mulato, mamaluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos 
ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mais frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre as gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta — não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores. 

É que nessa concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção 
capitaliza atributos que a hereditariedade conserva, o mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma integração de esforços; é alguma coisa de dispersivo e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres próprios, oscilando entre influxos opostos de legados discordes. A tendência à regressão às raças matrizes caracteriza a sua instabilidade. 
É a tendência instintiva a uma situação de equilíbrio. As leis naturais pelo próprio jogo parecem extinguir, a 
pouco e pouco, o produto anômalo que as viola, afogando-o nas próprias fontes geradoras. O mulato despreza então, irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida; o mamaluco faz-se o bandeirante inexorável, precipitando-se, ferozmente, 
sobre as cabildas aterradas... 

Esta tendência é expressiva. Reata, de algum modo, a série contínua da evolução, que a mestiçagem partira. 
A raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando-a, 
obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu — porque todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança —
, como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas ? 

Uma raça forte 

Entretanto a observação cuidadosa do sertanejo do Norte mostra atenuado esse antagonismo de tendências e 
uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos do tipo emergente. 

Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a sua contraprova frisante. 

Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o 
fato de acarretar o elemento étnico mais elevado, mais elevadas condições de vida, de onde decorre a 
acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre eles a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável. 

A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de 
eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete — em círculo 
diminuto — esse combate surdo e formidável, que é a própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna 
caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da História. O grande professor de Gratz 
não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte "tende subordinar ao 
seu destino o elemento mais fraco antes o qual se acha", encontra na mestiçagem um caso perturbador. A 
expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. 
A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela 
guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste 
processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as nuanças da cor, da forma e do caráter, sem 
feições definidas, sem vigor, e as mais vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados 
inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades. 


É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização. 

Ora, os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram-se a esta última. O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados. 

A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores. O fator 
étnico preeminente transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização. 

Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São formações distintas, senão 
pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo 
tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu 
organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente. 

É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes históricas o libertaram, na fase 
delicadíssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a conquistar um dia. 

A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo 
fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, 
pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a `:ida civilizada por isto mesmo que não a atingiu de repente. 

Aparece logicamente. 

Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas 
se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento — nos 
sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de 
evolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos. porque é a sólida base física do 
desenvolvimento moral ulterior. 

Deixemos, porém, este divagar pouco atraente. 

Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método, 
despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos. 

Faltaram-nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos enredarmos em fantasias 
psíquico-geométricas, que hoje se exageram num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou 
traçando a norma verticalis dos jagunços. 

Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem 
abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas. 

Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, 
acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles 
desconhecidos singulares, que ali estão — abandonados — há três séculos. 


CapítuloIII 


O sertanejo 


O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do 
litoral. 

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o 
desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. 

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O 
andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. 
Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade 
deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a 
cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, 
descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. 
Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das 
trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável. 

É o homem permanentemente fatigado. 

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, 
no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude. 

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. 

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida 
operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias. 

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida 
sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas. 

É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da 
montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, 
desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando 
morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o 
“campeão” que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência. 

Mas se uma rês “alevantada” envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de 
gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas 
ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas. 

Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro. 

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moiras de 
espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque “por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo”... 

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças a pressão dos jarretes firmes, realiza a criação 
bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; 

saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; 
precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros . . . 

A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto 
que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira -estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção — "escanchado no rastro" do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia... 

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rès dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho 
retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta" com a aparência triste de um 
inválido esmorecido. 

Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho 

O gaúcho do Sul, ao encontrá-lo nesse instante, sobreolhá-lo-ia comiserado. 

O vaqueiro do Norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos não há 
equipará-los. O primeiro, filho dos plainos sem fins, afeito às correrias fáceis nos pampas e adaptado a uma 
natureza carinhosa que o encanta, tem, certo, feição mais cavalheirosa e atraente. A luta pela vida não lhe 
assume o caráter selvagem da dos sertões do Norte. Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos 
com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro 
assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do Equador. Não 
tem, no meio das horas tranqüilas da felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando 
aquela instável e fugitiva. Desperta para a vida amando a natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela 
vida, aventureiro, jovial, diserto, valente e fanfarrão, despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas, domando distancias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos o pala inseparável, como uma flâmula festivamente desdobrada. 

As suas vestes são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As amplas bombachas, adrede 
talhadas para a movimentação fácil sobre os baguaís, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se 
estragam em espinhos dilaceradores de caatingas. O seu poncho vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos 
esgalhos das árvores garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redomão 
desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, em que retinem as rosetas das esporas de prata; lenço de seda encarnado, ao pescoço; coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis, e tendo à cinta, rebrilhando, presas pela guaiaca, a pistola e a faca — é um vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta existência algo romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra-o o arreamento complicado e espetaculoso. O gaúcho andrajoso sobre um "pingo" bem aperado está decente, está corretíssimo. Pode atravessar sem vexames os vilarejos em festa. 

O vaqueiro 

O vaqueiro, porém, criou-se em condições opostas, em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes 
e horas cruéis, de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o sol, arrastando de 
envolta, no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças. 

Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. 
Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias. 

Fez-se forte, esperto, resignado e prático. 

Aprestou-se, cedo, para a luta. 

O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são 
uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; 
calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, 
articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo. 

Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não 
rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias.. . 

A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os 
apetrechos luxuosos daquele. São acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente, cobrindo as ancas do animal, peitorais que lhe resguardam o peito, e as joelheiras apresilhadas às juntas. 

Este equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Vestidos doutro modo não romperiam, 
incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes. 

Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta vestimenta original, de uma só cor — o pardo 
avermelhado do couro curtido — sem uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de 
longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana, com o pelo mosqueado virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu de couro. 

Isto, porém, é incidente passageiro e raro. 

Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão — largamente expandido nos 
sapateados, em que o estalo seco das alpercatas sobre o chão se perde nos tinidos das esporas e soalhas dos 
pandeiros, acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados — e cai na postura habitual, tosco, 
deselegante e anguloso, num estranho manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários. 

Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre extremas manifestações de força e 
agilidade e longos intervalos de apatia. 

Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem 
de reveses. Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de pronto. 

Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível, e não perde um 
minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte; 
preparando-se sempre para um rencontro que não vence e em que se não deixa vencer; passando da máxima 
quietude à máxima agitação; da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata como um raio 
pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas. Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia — passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à 
outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes. 

É inconstante como ela. É natural que o seja. Viver é adaptar-se. Ela talhou-o à sua imagem: bárbaro, 
impetuoso, abrupto. . . 

O gaúcho 


O gaúcho, o pealador valente, é, certo, inimitável, numa carga guerreira; precipitando-se, ao ressoar 
estrídulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada, firme no estribo; atufando-se 
loucamente nos entreveros; desaparecendo, com um grito triunfal, na voragem do combate, onde espadanam 
cintilações de espadas; transmudando o cavalo em projétil e varanda quadrados e levando de rojo o adversário no rompão das ferraduras, ou tombando, prestes, na luta, em que entra com despreocupação soberana pela vida. 

O jagunço 

O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é 
mais duro. 

Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito firme de o destruir, 
seja como for. 

Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões entusiásticas. A sua vida é uma conquista 
arduamente feita, em faina diuturna. Guarda-a como capital precioso. Não esperdiça a mais ligeira contração 
muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao "riscar da 
faca" não dá um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria. . . 

Se, ineficaz o arremesso fulminante, contrário enterreirado não baqueia, o gaúcho, vencido ou pulseado, é 
fragílimo nas aperturas de uma situação inferior ou indecisa. 

O jagunço, não. Recua. Mas, no recuar é mais temeroso ainda. É um negacear demoníaco. O adversário 
tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado 
das tocaias... 

Os vaqueiros 


Esta oposição de caracteres acentua-se nas quadras normais. 

Assim todo sertanejo é vaqueiro. À parte a agricultura rudimentar das plantações da vazante pela beira dos 
rios, para a aquisição de cereais de primeira necessidade, a criação de gado é, ali, a sorte de trabalho menos 
impropriada ao homem e à terra. 

Entretanto não há vislumbrar nas fazendas do sertão a azáfama festiva das estâncias do Sul. 

"Parar o rodeio" é para o gaúcho uma festa diária, de que as cavalhadas espetaculosas são ampliações 
apenas. No âmbito estreito das mangueiras ou em pleno campo, ajuntando o gado costeado ou encalçando os 
bois esquivos pelas sangas e banhados, os pealadores, capatazes e peões, preando à ilhapa dos laços o potro 
bravio, ou fazendo tombar, fulminado pelas bolas silvantes, o touro alçado, nas evoluções rápidas das carreiras, como se tirassem "argolinhas", seguem no alarido e na alacridade de uma diversão tumultuosa. Nos trabalhos mais calmos, quando nos rodeios marcam o gado, curam-lhe as feridas, apartam os que se destinam às charqueadas, separam os novilhos tambeiros ou escolhem os baguais condenados às chilenas do domador — o mesmo fogo, que encandesce as marcas, dá as brasas para os ágapes rudes de assados com couro ou ferve a água para o chimarrão amargo. 

Decorre-lhes a vida variada e farta. 

Servidão 

inconsciente 

O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do entancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe 
dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros 
da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos. 

Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, 
vivendo e morrendo na mesma quadra de terra — perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida 
inteira, fielmente, dos rebanhos que Ihes não pertencem. 

O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza. Sabe-lhes, quando muito, 
os nomes. 

Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau-a-pique à borda 
das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam. 

A primeira coisa que fazem é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: 
conhecer os "ferros" das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressos, por tatuagem a fogo, nas ancas do animal, 
completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper 
tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na "solta" primitiva. Porque o vaqueiro não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes por 
extraordinário esforço de memória, a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos 
vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o morrer de velho. Não lhe pertence. 

Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição 
admirável; e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um, para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu. 

Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois de muitos anos, e o criador feliz 
receber, ao invés da peça única que lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os produtos dela. 

Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos sertões. 

Indicamo-lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os grandes proprietários da terra e dos 
rebanhos a conhecem. Têm, todos, com o vaqueiro o mesmo trato de parceria, resumido na cláusula única de lhe darem, em troca dos cuidados que ele despende, um quarto dos produtos da fazenda. E sabem que nunca se violará a percentagem. 

O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se, ordinariamente, sem que esteja presente a parte 
mais interessada. É formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas 
cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte. Grava nestas o seu sinal particular; e conserva-as ou vende-as. Escreve ao patrão, dando-lhe conta minuciosa de todo o movimento do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores; e continua na faina ininterrupta. 

Esta, ainda que, em dadas ocasiões, fatigante, é a mais rudimentar possível. Não existe no Norte uma 
indústria pastoril. O gado vive e multiplica-se à gandaia. Ferrados em junho, os garrotes novos perdem-se nas 
caatingas, com o resto das malhadas. Ali os rareiam epizootias intensas, em que se sobrelevam o "rengue" e o 
"mal triste". Os vaqueiros mal procuram atenuá-las. Restinguem a atividade às corridas desabaladas pelos 
arrastadores. Se a bicheira devasta a tropa, sabem de específico mais eficaz que o mercúrio: a reza. Não precisam 
de ver o animal doente. Voltam-se apenas na direção em que ele se acha e rezam, tracejando no chão 
inextricáveis linhas cabalísticas. Ou então, o que é ainda mais transcendente, curam-no pelo rastro. 

E assim passam numa agitação estéril. 

Raro, um incidente, uma variante alegre, quebra a sua vida monótona. 

Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas. Se foge a algum boi levantadiço, 
toma da "guiada", põe pernas ao campeão. e ei-lo escanchado no rastro, jogado pelas veredas tiradas a facão. Se 
não pode levar avante a empresa, "pede campo", frase característica daquela cavalaria rústica, aos companheiros mais vizinhos, e lá seguem todos, aos dez, aos vinte, rápidos, ruidosos, amigos — "campeando", voando pelos 
tombadores e esquadrinhando as caatingas até que o bruto, "desautorizado" dê a venta no termo da corrida, ou tombe, de rijo, mancornado às mãos possantes que se lhe aferram aos chifres. 

A vaquejada 

Esta solidariedade de esforços evidencia-se melhor na "vaquejada", trabalho consistindo essencialmente no 
reunir, e discriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de 
mistura, em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos. 

Realizam-na de junho a julho. 


Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea complanada e limpa, o 
"rodeador", congrega-se a vaqueirama das vizinhanças. Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem-se as funções que a cada um caberão na lide. E para logo, irradiantes pela superfície da arena, arremetem com as caatingas que a envolvem os encourados atléticos. 

O quadro tem a movimentação selvagem e assombrosa de uma corrida de tártaros. 

Desaparecem em minutos os sertanejos, perdendo-se no matagal circundante. O rodeio permanece por 
algum tempo deserto. . . 

De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépido de galhos estalando, 
um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira, 
embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo que estaca esbarrado, o vaqueiro, teso nos estribos... 

Traz apenas exígua parte do rebanho. Entrega-a aos companheiros que ali ficam, `"de esteira"; e volve em 
galope desabalado, renovando a pesquisa. Enquanto outros repontam além, mais outros, sucessivamente, por 
toda a banda, por todo o âmbito do rodeio, que se anima, e tumultua em disparos: bois às marradas ou 
escarvando o chão, cavalos curveteando, confundidos e embaralhados sobre os plainos vibrantes num 
prolongado rumor de terremoto. Aos lados, na caatinga, os menos felizes se agitam às voltas com os marruás 
recalcitrantes. O touro largado ou o garrote vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue-o o 
vaqueiro. Cose-se-lhe no rastro. Vai com ele às últimas bibocas. Não o larga; até que surja o ensejo para um ato decisivo: alcançar repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso num estribo e 
uma das mãos presa às crinas do cavalo; agarrar com a outra a cauda do boi em disparada e com um rapelão 
fortíssimo, de banda, derribá-lo pesadamente em terra... Põe-lhe depois a pela ou a máscara de couro, levando-o jugulado ou vendado para o rodeador. 

Ali o recebem ruidosamente os companheiros. Conta-lhes a façanha. Contam-lhe outras idênticas, e 
trocam-se as impressões heróicas numa adjetivação ad boc, que vai num crescendo do "destalado" ríspido ao 
"temero" pronunciado num trêmulo enrouquecido e longo. 

Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças reunidas. Apartam-nas. Separam-se, seguindo 
cada um para sua fazenda tangendo por diante as reses respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as notas do "aboiado" . . . 

A arribada 

Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, 
desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas à feira; 
considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além, um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o "de saia", e derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas regidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples. 

E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com 
o refrão monótono: 

E cou mansão 

E cou...é cão... 

ecoando saudoso nos descampados mudos... 

Estouro da boiada 

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estremeção repentino, aqueles centenares de dorsos 
luzidios. Há uma parada instantânea .Entrebatem-se, enredam-se, trançam-se e alteiam-se fisgando vivamente o 
espaço, e inclinam-se, embaralham-se milhares ele chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura. . . 

 

A boiada arranca. 

 

Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros. 

 

Origina o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma 
rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um 
solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-os embolados, em 
vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos. 

 

E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, 
estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e 
esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e 
longo de trovão longínquo... 

 

Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em 
lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os 
habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a "arribada" — 
milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado 
na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que 
deixa após si aquela avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e 
galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do 
cavalo — o vaqueiro ! 

 

Já se lhe tem associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro da boiada. 
Renova-se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos a despender, a 
atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão 
pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado. 

 

Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente. as notas melancólicas 
do aboiado. 

Tradições 

Volvem os vaqueiros ao pouso e ali, nas redes bamboantes, relatando as peripécias da vaquejada ou famosas 
aventuras de feira, passam as horas matando, na significação completa do termo, o tempo, e desalterando-se com a umbuzada saborosíssima, ou merendando a iguaria incomparável de jerimum com leite. 

Se a quadra é propícia, e vão bem as plantações da vazante, e viça o "panasco" e o "mimoso" nas soltas dilatadas, e nada revela o aparecimento da seca, refinam a ociosidade nos braços da preguiça benfazeja. Seguem para as vilas se por lá se fazem festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos que os povoados sertanejos reproduzem, intactos, com os mesmos programas de há três séculos. E entre eles a exótica "encamisada", que é o mais curioso exemplo do aferro às mais remotas tradições. Velhíssima cópia das vetustas quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península, contra os castelos árabes, e de todo esquecido na terra onde nasceu, onde a sua mesma significação é hoje inusitado arcaísmo, esta diversão dispendiosa e interessante, feita à luz de lanternas e archotes, com os seus longos cortejos de homens a pé, vestidos de branco, ou à maneira de muçulmanos, e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, desfilando rápidos, em escaramuças e simulados recontros, é o encanto máximo dos matutos folgazãos. 

Danças 

Nem todos, porém, a compartem. Baldos de recursos para se alongarem das rancharias, agitam-se, então, 
nos folguedos costumeiros. Encourados de novo, seguem para os sambas e cateretês ruidosos, os solteiros, 
famanazes no "desafio, sobraçando os machetes, que vibram no "choradinho" ou "baião", e os casados levando 
toda a "obrigação", a família. Nas choupanas em festa recebem-se os convivas com estrepitosas salvas de 
ronqueiras e como em geral não há espaço para tantos, arma-se fora, no terreiro varrido, revestido de ramagens, 
mobiliado de cepos e troncos, e raros tamboretes, mas imenso, alumiado pelo luar e pelas estrelas! o salão de 


baile. "Despontam o dia" com uns largos traços de aguardente, a "teimosa". E rompem estrídulamente os 
sapateados vivos. 

 

Um cabra destalado ralha na viola. Serenam, em vagarosos meneios, as caboclas bonitas. Revoluteia,, 
"brabo e corado", o sertanejo moço. 

 

Desafios 

 

Nos intervalos travam-se os desafios. 

 

Enterreiram-se, adversários, dois cantores rudes. As rimas saltam e casam-se em quadras muita vez 
belíssimas. 

 

Nas horas de Deus, amém, 

Não é zombaria, não! 

Desafio o mundo inteiro 

Pra cantar nesta função ! 

 

O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da quadra: 

 

Pra cantar nesta função, 

Amigo, meu camarada, 

Aceita teu desafio 

O "fama" deste sertão! 

 

É o começo da luta que só termina quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia, 
repinicando nervosamente o machete, sob uma avalancha de risos saudando-lhe a derrota. E a noite vai 
deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras venham quebrando e cantem as sericóias nas 
ipueiras, dando o sinal de debandar ao agrupamento folgazão. 

 

Terminada a festa volvem os vaqueiros à tarefa ou à rede preguiçosa. 

 

Alguns, de ano em ano, arrancam dos pousos tranquilos para remotas paragens. Transpõem o S. Francisco; 
mergulham nos gerais enormes do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele 
e do Tocantins em alagados de onde partem os rios indiferentemente para o levante e para o poente; e penetram 
em Goiás, ou, avantajando-se mais para o norte, as serras do Piauí. 

 

Vão à compra de gados. Aqueles lugares longínquos, pobres e obscuros vilarejos que o Porto Nacional 
extrema, animam-se, então, passageiramente, com a romaria dos "baianos" São os autocratas das feiras. Dentro 
da armadura de couro, galhardos, brandindo a guiada, sobre os cavalos ariscos, entram naqueles vilarejos com 
um desgarre atrevido de triunfadores felizes. E ao tornarem — quando não se perdem para todo o sempre, sem 
tino, na "travessia" perigosa dos descampados uniformes — reatam a mesma vida monótona e primitiva. 

 

A seca 

 

De repente, uma variante trágica. 

 

Aproxima-se a seca. 

 

O sertanejo adivinha-a e graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo. 

 

Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do 
Ceará. 

 

Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais 
que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem 
tem o berço embalado pelas vibrações da terra. 

 


Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, 
emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através 
de um sem numero de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível. 

 

Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos 
se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. 
Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício de verão, especa e 
fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo arável à 
orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas. 

 

Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta longamente nos quadrantes; e 
perquire os traços mais fugitivos das paisagens. 

 

Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais 
comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as "chuvas do caju" em 
outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e "pintam" as 
caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais 
numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e 
abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, 
transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, 
com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se 
lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia 
menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, 
transvoando a outros climas. 

 

É o prelúdio da sua desgraça. 

 

Vê-o acentuar-se num crescendo, até dezembro. 

 

Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas 
que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês 
Porque, em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência. 

 

E a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis 
pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de 
janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se 
deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou 
todas, é inevitável o inverno benfazejo. 

 

Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso, tem base positiva, e é aceitável desde 
que se considera que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d"água nos ares, e, dedutivamente, 
maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas. 

 

Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os 
seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. 
Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o 
último. 

 

Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as 
alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno: se, ao contrário, o Sol atravessa 
abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças. 

 

A seca é inevitável. 

 

Insulamento no deserto 

 

Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas 
pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos 
fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, 
tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve — a 


insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé 
religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá 
se vão, descampados em fora, famílias inteiras — não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e 
enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns 
para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões 
propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes as velas dos penitentes... 
Mas os céus persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a Terra; progride o espasmo assombrados da seca. O 
matuto considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as 
fundagens das ipueiras, ou, ao longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em 
mugidos prantivos “farejando a água"; — e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o 
esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício. Arremete de alvião a 
enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes; outras, 
após enormes fadigas, esbarra em uma lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é 
mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se, ou sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como 
frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo. 

Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que 
desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estipites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o "bró", que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extinguem a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos — forte e carinhoso — defendendo-se e estendendo à prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana. 

Baldam-se-lhe, porém, os esforços. 

A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, contrastando com a fuga das seriemas, que 
emigram para outros "tabuleiros", e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de 
morcegos agravam a "magrém", abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, 
tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas. 


À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua lancharia 
pobre. 

 

É mais um inimigo a suplantar. 

 

Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, 
assalta-a. Mas não a tiro, porque sabe que, desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima 
da fumaça", é invencível. 

 

O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, 
irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe. 

 

Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua 
desdita — a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e 
quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do 
olhar. Mas o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-se de súbito, antes de 
envolver a Terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, 
para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa. 

 

Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os 
filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras. 

 

Segue, a pé agora, porque se Ihe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla 
ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o 
arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e 
intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais Ihe dói, os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro. 

E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás... 

 
Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em busca do último repasto. 

Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca das 
marizeiras não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolando, pelas chapadas, zunindo em 
prolongações uivadas na galhada estrepitante das caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se afinal. 

Passa certo dia, a sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia. 

 

Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas 
as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares 
onde o não mate o elemento primordial da vida. 

 

Atinge-os. Salva-se. 

 

Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, 
revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e 
instável, os mesmos dias longos de transes e provações demoradas. 

 

Religião mestiça 

 

Insulado deste modo no país, que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver 
estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o 
sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta. 

 

O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um 
monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do 
africano. E o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente 
arrebatar pelas superstições mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios emocionais distintos. 

 

A sua religião é como ele — mestiça. 

 

Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças de que surge, sumaria-lhes identicamente as 
qualidades morais. E um índice da vida de três povos. E as suas crenças singulares traduzem essa aproximação 
violenta de tendências distintas. E desnecessário descrevê-las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e 
maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares 
claros; os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas 
das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas-sem-cabeça notívagos; todos os mal-assombramentos, 
todas as tentações do maldito ou do diabo — este trágico emissário dos rancores celestes em comissão na Terra; 
as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos, para que 
favoreça a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para "amassar" e 
"vender" sezões; todas as visualidades, todas aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias 
insanos; e as romarias piedosas; e as missões; e as penitências.... todas as manifestações complexas de 
religiosidade indefinida são explicáveis. 

 

Fatores históricos da religião mestiça 

 


Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do 
selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do 
descobrimento e da colonização. 

 

Este último é um caso notável de atavismo, na Historia. 

 

Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, 
intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes 
numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoidecem — espontaneamente recordamos a fase 
mais crítica da alma portuguesa, a partir do final do século 16, quando, depois de haver por momentos 
centralizado a História, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada 
pela corte oriental de d. Manuel. 

O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com d. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio 
moral, quando "todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular". 

 

Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta na orla marítima pelo influxo modificador de outras 
crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a 
nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, 
em que o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na 
península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de 
súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de 
mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas... E da mesma 
gente que após Alcácer-Quibir, em plena "caquexia nacional", segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, 
procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas. 

 

De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, 
irresistivelmente nos assaltam, empolgantes" as figuras dos profetas peninsulares de outrora—o rei de 
Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotados ao martírio, arrebatando na mesma 
idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras. 

 

Esta justaposição histórica calca-se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo 
sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na 
mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, 
para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de 
modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte. 

 

Mas não antecipemos. 

 

Caráter variável da religiosidade 

sertaneja 

 

Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as reações do meio, determinando psicologia 
especial. 

 

O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro, está em função imediata da 
terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar resulta, 
mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em 
paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as 
tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas, e deste entrelaçamento resulta, copiando o 
contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista 
pelo futuro e a exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se estremes das 
tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos revela nas 
quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas de 
estádio inferior. 

 

É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros 
Haúças, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da 
Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de 


vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do 
tupi. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes. 

 

Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registro paupérrimo, à meia luz das 
candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, 
encanta-se. 

 

O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos povoados, inumam-nos à beira das 
estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para 
que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz mas renovada 
sempre. E o vaqueiro, que segue arrebatadamente, estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma 
cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca 
viu talvez, talvez de um inimigo. 

 

A terra é o exílio insuportável, o morto um bem -aventurado sempre. 

 

O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos 
entre as lágrimas; referve o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto, a uma 
banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a 
felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação dominadora daquelas 
almas ingênuas e primitivas. 

 

No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão interessantes, aberrações 
brutais, que a derrancam ou maculam. 

 

A "Pedra Bonita" 

 

As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos 
sequer. Tomemos um fato, entre muitos, ao acaso. 

 

No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em 
formas caprichosas, na serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo 
anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito 
gigantesco, ergue-se um bloco solitário — a Pedra Bonita. 

 

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um 
mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à 
pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei d. Sebastião. Quebrada a pedra, a que 
subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em 
holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade 
ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto. 

 

Passou pelo sertão um frêmito de necrose... 

 

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa 
comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O 
sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e, afirmam os jornais do tempo, em copia 
tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado. 

 

Por outro lado, fatos igualmente impressionadores contrabatem tais aberrações. A alma de um matuto é 
inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo 
devotamento. 

 

Vimo-la, neste instante, pervertida pelo fanatismo. Vejamo-la transfigurada pela fé. 

 

Monte Santo 

 

Monte Santo é um lugar lendário. 

 


Quando, no século 17, as descobertas das minas determinaram a atração do interior sobre o litoral, os 
aventureiros que ao norte investiam com o sertão, demandando as serras da Jacobina, arrebatados pela miragem 
das minas de prata e rastreando o itinerário enigmático de Belchior Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra 
solitária — a Piquaraçá dos roteiros caprichosos — , dominando os horizontes, norteava-lhes a marcha 
vacilante. 

 

Além disto, atraía-os por si mesma, irresistivelmente. 

 

É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com grandes pedras arrumadas, apareciam 
letras singulares — um A, um L e um S — ladeadas por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e não 
avante, para o ocidente ou para o sul, o el-dorado apetecido. 

 

Esquadrinharam-na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto, seguindo, afinal, para outros rumos, com as 
suas tropas de potiguaras mansos e forasteiros armados de biscainhos . . . 

 

A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina ... 

 

No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário — Apolônio de Todi. Vindo da missão de 
Maçacará, o maior apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha, "achando-a semelhante 
ao calvário de Jerusalém", que planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais 
imponente templo da fé religiosa. 

 

Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos e o auxílio franco que lhe deram os 
povoadores dos lugares próximos. Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo a 
montanha, entre as raladas de tufão violento que se alteou das planícies apagando as tochas; e, por fim, o sermão 
terminal da penitencia, exortando o povo a "que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em 
tão grande desamparo das coisas espirituais". 

 

"E aqui, termina , sem pensar em mais nada disse que daí em diante não chamariam mais serra de 
Piquaraçá, mas sim Monte Santo." 

 

E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas 
catedrais da Terra. 

 

A população sertaneja completou a empresa do missionário. 

 

Hoje quem sobe a extensa via-sacra de três quilômetros de comprimento, em que se origem, a espaços, 25 
capelas de alvenaria, encerrando painéis dos "passos", avalia a constância e a tenacidade do esforço despendido. 

 

Amparada por muros capeados; calçada em certos trechos; tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada 
em degraus, ou rampeada, aquela estrada branca, de quartzolito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das 
procissões da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa. 
Começa investindo com a montanha, segundo a normal de máximo declive, em rampa de cerca de vinte graus. 
Na quarta ou quinta capelinha inflete à esquerda e progride menos íngreme. Adiante, a partir da capela maior — 
ermida interessantíssima ereta num ressalto da pedra a cavaleiro do abismo — , volta à direita, diminuindo de 
declive até a linha de cumeadas. Segue por esta segundo uma selada breve. Depois se alteia, de improviso, 
retilínea, em ladeira forte, arremetendo com o vértice pontiagudo do monte, até o Calvário no alto ! 

 

A medida que ascende, ofegante, estacionando nos “passos”, o observador depara perspectivas que seguem 
num crescendo de grandezas soberanas: primeiro, os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em 
planícies vastas; depois, as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o 
olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto da 
pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos telhados. 

 

E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da redondeza e passam os crentes pelos mesmos 
flancos em que vaguearam outrora, inquietos de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê-se que Apolônio de 
Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra descobrindo o el-dorado 
maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto... 

 

As missões atuais 


 

Infelizmente o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas exceções, o missionário moderno é um 
agente prejudicialíssimo no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. Sem a altitude dos 
que o antecederam, a sua ação é negativa: destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos 
ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não tem o talento e não tem a arte 
surpreendente da transfiguração das almas. Segue vulgarmente processo inverso do daqueles: não aconselha e 
consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. E brutal e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da 
sombra de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. Sobe ao púlpito das igrejas 
do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo, numa 
algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão. 

 

É ridículo, e é medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe 
da boca trágicas. 

 

Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida — não a conhece; mas brama em 
todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado 
avalanchas de penitencias, extravagando largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e 
engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora... 

 

E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o. 

 

Os "Serenos" 

 

Busquemos um exemplo único, o último. 

 

Em 1850 os sertões de Cariri foram alvorotados pelas depredações dos Serenos, exercitando o roubo em 
larga escala. 

 

Aquela denominação indicava "companhias de penitentes" que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno 
das cruzes misteriosas, se agrupavam, adoidadamente, numa agitação macabra de flagelantes, impondo-se o 
cilício dos espinhos, das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo dia, 
repentinamente, da matriz do Crato, dispersos, em desalinho — mulheres em prantos, homens apreensivos, 
crianças trementes — em procura dos flagícios duramente impostos. Dentro da igreja, missionários recém-vindos 
haviam profetizado próximo fim do mundo. Deus o dissera — em mau português, em mau italiano e em mau 
latim — estava farto dos desmandos da Terra... 

 

E os derivados foram pelos sertões em fora, esmolando, chorando, rezando, numa mandria deprimente, e como a 
caridade pública não os podia satisfazer a todos, acabaram — roubando. 

 

Era fatal. Os instrutores do crime foram, afinal, infelicitar outros lugares e a justiça a custo reprimiu o 
banditismo incipiente. 


Capítulo IV 

 

Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo 

 

É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal 
extraordinária — Antônio Conselheiro... 

 

A imagem é corretíssima. 

 

Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas 
formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que 
por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos 
nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas, posto em função 
do meio, assombra. É uma diátese e é uma síntese. As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos 
sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal 
social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência 
superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício. Porque 
ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais — vagos, 
indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa 
individualidade. 

 

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas 
das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo 
feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O 
temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase 
passividade pela própria receptividade mórbida do espirito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais 
fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante. 

 

É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida 
resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade... 

 

Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda: acompanhá-las juntas é 
observar a mais completa mutualidade de influxos. 

 

Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta 
contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A 
multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou 
para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o 
meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas 
mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em. todos os atos e 
disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão 
alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranqüilidade, a altitude e a resignação soberana de um 
apóstolo antigo. 

 

Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva. 

 

Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de 
atavismo. 

 

A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando-lhe as 
relações com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos 
ancestrais da espécie. 

 

Um gnóstico bronco 

 

Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antropologista encontrá-lo-ia normal, marcando 
logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da evolução. O 
que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o 
segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização — um 
anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu 


misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro de nossa era, aspectos religiosos vulgares. 
Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em período angustioso da 
vida portuguesa. 

 

Poderíamos apontá-los em cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja, 
quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na 
última fase do mundo romano em que, precedendo o assalto dos bárbaros, a literatura latina do ocidente 
declinou, de súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio. 

 

Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiolatras, os maniqueus bifrontes entre o 
ideal cristão emergente e o budismo antigo, os discípulos de Markos, os encratitas abstinentes e macerados de 
flagícios, todas as seitas em que se fracionava a religião nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses 
hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E foram normais. Acolchetaram-se bem a todas as 
tendências da época em que as extravagâncias de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de Marco Aurélio, com 
as suas procissões fantásticas, os seus mistérios e os seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao 
Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador filósofo... 

 

A história repete-se. 

 

Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco. 

 

Veremos mais longe a exação do símile. 

 

Grande homem pelo avesso 

 

Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que 
patenteou, caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência intelectual, 
mas não o isolou — incompreendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde — no meio em que agiu. 

 

Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, 
mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: 
apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi 
além. Era um servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a 
carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, 
impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível. 

 

A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley 
lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia. 

 

Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem 
facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados. Não a 
transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu 
misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, 
difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram. 

 

Representante natural do meio em que nasceu 

 

O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou-a sem a comprimir, numa 
harmonia salvadora. De sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à 
única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns. 

 

Antecedentes de família. Os Maciéis 

 

A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. Esclarece o conceito etiológico da 
doença que o vitimou. Delineemo-la de passagem. 

 

"Os Maciéis, que formavam, nos sertões entre Quixeramobim e Tamboril, uma família numerosa de homens 
válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação, vieram, pela lei fatal dos tempos, a 
fazer parte dos grandes fastos criminais do Ceará, em uma guerra de família. Seus êmulos foram os Araújos, que 
formavam uma família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da província. 


 

Viviam na mesma região, tendo como sede principal a povoação de Boa Viagem, que demora cerca de dez 
léguas de Quixeramobim. 

 

Foi uma das lutas mais sangrentas dos sertões do Ceará, a que se travou entre estes dois grupos de homens, 
desiguais na fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências, e numerosos." 

 

Assim começa o narrador consciencioso breve notícia sobre a genealogia de Antônio Conselheiro. 

 

Os fatos criminosos a que se refere são um episódio apenas entre as razias, quase permanentes, da vida 
turbulenta dos sertões. Copiam mil outros de que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios dos mandões de 
aldeia e a exploração pecaminosa por eles exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo. Luta de famílias — é 
uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis, comprometendo as próprias descendências 
que esposam as desavenças dos avós, criando uma quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os 
rancores e as vinganças. 

 

Lutas entre Maciéis e Araújos 

 

Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos Maciéis em propriedade de família 
numerosa, a dos Araújos. 

 

Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida. Eram "homens vigorosos, simpáticos, bem 
apessoados. verdadeiros e serviçais" gozando em toda a redondeza de reputação invejável. 

 

Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras, não viam, porém, com bons olhos, a família 
pobre que lhes balanceava a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e boiadas grandes. Criadores 
opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar 
castigo aos delinqüentes. E como estes eram bravos até à temeridade, chamaram a postos a guarda pretoriana dos 
capangas. 

 

Assim apercebidos abalaram na expedição criminosa para Quixeramobim. 

 

Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota. Os Maciéis, reunida toda a parentela, 
rapazes desempenados e temeros, haviam-se afrontado com a malta assalariada, repelindo-a vigorosamente, 
suplantando-a, espavorindo-a. 

 

O fato passou em 1333. 

 

Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados, cuja imbecilidade triunfante passara por 
tão duro trato, apelaram para recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não faltam hoje, facínoras de 
fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram dois, dos melhores: José Joaquim de Meneses, 
pernambucano, sanhudo, célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões famosos; e um cangaceiro 
terrível, Vicente Lopes, de Aracatiaçu. Reunida a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos e genros de 
Silvestre, seguiu, de pronto, para a empreitada criminosa. 

 

Ao acercarem-se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicários — embora fossem em maior número — 
temeram-lhes a resistência. Propuseram-lhes que se entregassem, garantindo-lhes, sob palavra, a vida. Aqueles, 
certos de não poderem resistir por muito tempo, aquiesceram. Renderam-se. A palavra de honra dos bandidos 
teve o valor que poderia ter. Quando seguiam debaixo de escolta e algemados, para a cadeia de Sobral, logo no 
primeiro dia da viagem foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião, entre outros, o chefe da família, 
Antônio Maciel, e um avô de Antônio Conselheiro . 

 

Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado além disto com as pernas amarradas por baixo 
da barriga do cavalo que montava, a sua fuga é inexplicável. Afirma-a, contudo, a sisudez de cronista sincero. 

 

Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário. Perseguiram-no. Bem armados, bem montados, 
encalçaram-no, prestes, em monteria bárbara, como se fossem sobre rastros de suçuarana bravia. O foragido, 
porém, emérito batedor de matas, seguido na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a escolta perseguidora 
chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio da Passagem, perto de Quixeramobim, ocultou-se exausto, numa 
choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica. 


 

Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os perseguidores. Eram nove horas da manhã. Houve então uma 
refrega desigual e tremenda. O temerário sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou-se 
com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se avantajara 
aos demais. Este caiu transversalmente à soleira da porta, impedindo-a que se fechasse. A irmã de Miguel 
Carlos, quando procurava arrastá-lo dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara-a o próprio Pedro Veras, que 
pagou logo a façanha, levando à queima-roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores recuaram 
por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse rapidamente a porta. 

 

Isto feito, o casebre fez-se um reduto. Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de 
espingarda. Os bandidos não ousaram investi-lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de 
folhas. 

 

O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no abrigo em chamas, Miguel Carlos resolve abandoná-lo. 
Derrama toda a água de um pote na direção do fundo da choupana, apagando momentaneamente as brasas, e, 
saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja-se, de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra o círculo 
assaltante. Rompe-o e afunda na caatinga. . . 

 

Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico criador de Tapaiara; e no dia das 
núpcias, já perto da igreja, tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero da noiva 
desditosa. 

 

Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo... 

 

Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra irmã, Helena Maciel, a "Nêmesis da 
família", conforme o dizer do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos, muitos dos quais 
desconhecidos senão fabulados pela imaginação fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a 
urdidura de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto que o rastreava, em Quixeramobim. 

 

Diz a narrativa a que acima nos reportamos: 

 

"Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O que é certo é que, não obstante a sorte 
tivera aquele seu apaniguado, costumava estar na vila. 

 

Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de Freitas, viu entrar um indivíduo, que procurava 
comprar aguardente. Dando-o como espião, falou em matá-lo ali mesmo, mas, sendo detido pelo dono da casa, 
tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, à faca, ao sair da vila, no riacho da Palha. 

 

Uma manhã, finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado com uma sua parenta, e foi 
banhar-se no rio, que corre por trás dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila, junto a 
garganta que conduz a pequena praça Cotovelo. Nos fundos da casa indicada era então a embocadura do riacho 
da Palha, que em forma quase circular contornava aquela praça, e de inverno constituía uma cinta lindíssima de 
águas represadas. Miguel Carlos estava já despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de 
inimigos, que o esperavam acocorados por entre o denso "mata-pasto". Estranhos e parentes de Miguel Carlos, 
tomando as roupas depostas na areia, e vestindo-as ao mesmo tempo que corriam, puseram-se em fuga. Em 
ceroulas somente, e com a sua faca em punho, ele correu também na direção dos fundos de uma casa, que quase 
enfrenta com a embocadura do riacho da Palha; casa na qual morava em 1845 Manuel Francisco da Costa. 
Miguel Carlos chegou a abrir o portão do quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá-lo, foi 
prostrado por um tiro, partido do séquito que o perseguia. Outros dizem que isto se dera quando ele passava pelo 
buraco da cerca de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a sua faca na mão, quando Manuel de 
Araújo, chefe do bando, irmão do noivo outrora assassinado, pegando-o por uma perna, lhe cravou uma faca. 
Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra facada na carótida, morrendo ambos 
instantaneamente, este por baixo daquele ! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito, pisou a pés a 
cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita da perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo !" 

 

Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio Mendes Guerreiro, da família de 
Araújo, agente do correio da Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só no propósito de matá-los. 

 

Helena não se abateu com esta desgraça. Nêmesis da família imolou um inimigo aos manes do seu irmão. 
Foi ela, como ousou confessar muitos anos depois, quem mandou espancar barbaramente a André Jacinto de 


Souza Pimentel, moço de família importante da vila, aparentado com os Araújos, a quem atribuía os avisos que 
estes recebiam em Boa Viagem, das vindas de Miguel Carlos. Desse espancamento resultou uma lesão cardíaca, 
que fez morrer em transes horrorosos o infeliz, em verdade culpado dessa derradeira agressão dos Araújos. 

 

O fato de ter sido o crime perpetrado por soldados do destacamento de linha, ao mando do alferes Francisco 
Gregório Pinto, homem insolente, de baixa educação e origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez 
acreditar muito tempo que fora esse oficial mal reputado o autor do crime. 

 

Helena deixara-se ficar queda e silenciosa. 

 

Inúmeras vítimas anônimas fez esta lota sertaneja, que dizimava os sequazes das duas famílias, sendo o 
último dos Maciéis — Antônio Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Viagem. Ficou célebre muito 
tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele e seus parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da 
energia dessa família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para uma luta com poderosos tais, como 
os da Boa Viagem e Tamboril. 

 

Uma vida bem auspiciada 

 

Nada se sabe ao certo sobre o papel que coube a Vicente Mendes Maciel, pai de Antônio Vicente Mendes 
Maciel ( o Conselheiro ), nesta luta deplorável. Os seus contemporâneos pintam-no como "homem irascível mas 
de excelente caráter, meio visionário e desconfiado, mas de tanta capacidade que, sendo analfabeto, negociava 
largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de memória, sem mesmo ter escrita para 
os devedores". 

 

O filho, sob a disciplina de um pai de honradez proverbial e ríspido, teve educação que de algum modo o 
isolou da turbulência da família. Indicam-no testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente tranqüilo e 
tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído, avesso à troça, raro 
deixando a casa de negócio do pai, em Quixeramobim, de todo entregue aos misteres de caixeiro consciencioso, 
deixando passar e desaparecer vazia a quadra triunfal dos vinte anos. Todas as histórias, ou lendas entretecidas 
de exageros, segundo o hábito dos narradores do sertão, em que eram muita vez protagonistas os seus próprios 
parentes, eram-lhe entoadas em torno evidenciando-lhes sempre a coragem tradicional e rara. A sugestão das 
narrativas, porém, tinha o corretivo enérgico da ríspida sisudez do velho Mendes Maciel e não abalava o animo 
do rapaz. Talvez ficasse latente, pronta a se expandir em condições mais favoráveis. O certo é que falecendo 
aquele em 1855, vinte anos depois dos trágicos sucessos que rememoramos, Antônio Maciel prosseguiu na 
mesma vida corretíssima e calma. 

 

Arrostando com a tarefa de velar por três irmãs solteiras revelou abnegação rara. Somente depois de as ter 
casado procurou, por sua vez, um enlace que lhe foi nefasto. 

 

Primeiros reveses 

 

Data daí a sua existência dramática. A mulher foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária, que 
desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios. 

 

A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação de caráter. Perde os hábitos sedentários. 
Incompatibilidades de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima índole desta, tornam instável a 
sua situação. 

 

Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões. 

 

Nesta agitação, porém, percebe-se a luta de um caráter que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de 
fortuna, Antônio Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens do lar, ao chegar a 
qualquer nova sede de residência procura logo um emprego, um meio qualquer honesto de subsistência. Em 
1859, mudando-se para Sobral, emprega-se como caixeiro. Demora-se, porém, pouco ali. Segue para Campo 
Grande, onde desempenha as funções modestas de escrivão do juiz de paz. Daí, sem grande demora, se desloca 
para Ipu. Faz-se solicitador, ou requerente no forum. 

 

Nota-se já em tudo isto um crescendo para profissões menos trabalhosas, exigindo cada vez menos a 
constância do esforço; o contínuo despear-se da disciplina primitiva, a tendência acentuada para a atividade mais 


irrequieta e mais estéril, o descambar para a vadiagem franca. Ia-se-lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a 
antiga serenidade. 

 

Este período de vida mostra-o, todavia, aparelhado de sentimentos dignos. Ali estavam, em torno, 
permanentes lutas partidárias abrindo-lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros, 
ligando-se aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha o prestígio tradicional da família. 
Evitou-as sempre. E na descensão contínua, percebe-se alguém que perde o terreno, mas lentamente, reagindo, 
numa exaustão dolorosa. 

 

A queda 

 

De repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em 
queda formidável. Foge-lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o 
infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta 
obscuridade. 

 

Desce para o sul do Ceará. 

 

Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere com ímpeto de alucinado, à noite, um parente, que o 
hospedara. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima reconhecendo a não 
culpabilidade do agressor. Salva-se da prisão. Prossegue depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E 
desaparece... 

 

Passam-se dez anos. O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido. Apenas uma ou outra vez 
lhe recordavam o nome e o termo escandaloso da existência, em que era magna pars um Lovelace de coturno 
reúno, um sargento de polícia. 

 

Graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens natais breve resquício de sua lembrança. 

 

Morrera por assim dizer. 

 

Como se faz um monstro 

 

... E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face 
escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico 
bastão em que se apóia o passo tardo dos peregrinos... 

 

É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos 
dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos. 
Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida do Crato. Das palavras desta 
testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos. 
Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves 
e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, 
alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e 
rude... 

 

Tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das 
rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e 
as violas festivas. 

 

Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma 
sombra, das chapadas povoadas de duendes... 

 

Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos. 

 

Dominava-os, por fim, sem o querer. 

 

No seio de uma sociedade primitiva, que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas 
compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de não 
vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo 0 domínio que, sem 


cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjeturas ou lendas que para logo 
o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, 
exteriorizada. Espelhavam-na a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro 
incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão 
poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e 
dessa intuspecção delirante, entre os quais envolve a loucura nos cérebros abalados. Remodelava-o à sua 
imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente, a vida, lançando-lhe dentro os erros de 2 mil anos. 

 

Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus... 

 

O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato. 

 

Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três 
raças. 

 

E cresceu tanto que se projetou na História... 

 

Peregrinações e martírios 

 

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874. 

 

Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos — camisolão 
azul, sem cintura; chapéu de abas largas derrubadas, e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia 
papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas. 

 

Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava os 
pousos solitários. Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro. 

 

Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte da Bahia. Ia-lhe crescendo o prestígio. Já não 
seguia só. Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis. Não os chamara. Chegavam-lhe espontâneos, 
felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provações e misérias. 

 

Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândula de vencidos da vida, vezada à mandria e à 
rapina. 

 

Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro, 
encerrando a imagem do Cristo. 

 

Nas paradas pelos caminhos prendiam-no a um galho de árvore; e, genuflexos, rezavam. Entravam com ele, 
triunfalmente erguido, pelos vilarejos e povoados, num coro de ladainhas. 

 

Assim se apresentou o Conselheiro, em 1816, na vila do Itapicuru-de-Cima. Já tinha grande renome. 

 

Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império. 

 

"Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande 
influencia no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que 
impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e 
alimenta-se tenuamente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e 
ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo 
sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guindo-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem 
cultura". 

 

Estes dizeres rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distancia, delatam bem a 
fama que ele já granjeara. 

 

Lendas 

 

Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária. Foi, ali, naquele mesmo ano, 
entre o espanto dos fiéis, inopinadamente preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida 


excepcional e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam-no assassino da esposa e da 
própria mãe. 

 

Era uma lenda arrepiadora. 

 

Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê-la. Revelara, por isto, que era traído; e como este, 
surpreso, lhe exigisse provas do delito, propôs-se apresentá-las sem tardança. Aconselhou-o a que fantasiasse 
qualquer viagem, permanecendo, porém, nos arredores, porque veria, à noite, invadir-lhe o lar o sedutor que o 
desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando-se cerca de meia légua, torceu depois de rédeas, 
tornando, furtivamente, por desfreqüentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde pudesse 
observar bem e agir de pronto. 

 

Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto aproximando-se de sua vivenda. Viu-o 
achegar-se cautelosamente e galgar uma das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu-o com um tiro. 

 

Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a esposa infiel, adormecida. 

 

Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara... e viu com horror que era a sua própria mãe, que se 
disfarçara daquele modo para a consecução do plano diabólico. 

 

Fugira, então, na mesma hora apavorado, doido, abandonando tudo, ao acaso, pelos sertões em fora... 

 

A imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade 
trágica. 

 

O asceta 

 

Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1870 a repressão legal o atingiu quando já se ultimara a evolução 
do seu espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta despontava, inteiriço, da rudeza 
disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto preconizam os 
velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e 
das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava-se-lhe como uma couraça 
amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios mais 
duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das 
secas; inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das 
caatingas... 

 

Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, 
esse 

sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria, "descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e 
importuno da alma impaciente por fugir..." 

 

Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão era incidente mínimo. Recebeu-a 
indiferente. Proibiu aos fiéis que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da Bahia. Ali, a sua 
fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de 
órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do 
camisolão comprido, feito uma mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentos caindo pelos ombros, 
emaranhando-se nos pelos duros da barba descuidada, que descia até à cintura — aferroaram a curiosidade geral. 

 

Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e "pelos sinais" dos crentes assustados e das beatas retransidas de 
sustos. 

 

Interrogaram-no os juízes estupefatos. 

 

Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não 
murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea. 

 

A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente nas estradas. Não formulou a mais leve 
queixa. 

 


Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico. 

 

Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita — no dia do embarque para o Ceará pediu às 
autoridades que o livrassem da curiosidade pública, a única coisa que o vexava. 

 

Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia, é posto em liberdade. E no mesmo ano 
reaparece na Bahia entre os discípulos, que o aguardavam sempre. 

 

Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara, no momento de ser preso—tomou 
aspectos de milagre. 

 

Tresdobrou a sua influência. 

 

Vagueia, então, algum tempo, pelos sertões de Curaçá, estacionando ( 1877 ) de preferência em Chorrochó, 
lugarejo de poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores daquele 
trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica-lhe, ainda hoje, a estada. E, mais venerável talvez, pequena 
árvore, à entrada da vila, que foi por muito tempo objeto de uma fitolatria extraordinária. À sua sombra 
descansara o peregrino. Era um arbusto sagrado. A sua sombra curavam-se os crédulos doentes; as suas folhas 
eram panacéia infalível. 

 

O povo começava a grande série de milagres de que não cogitava talvez o infeliz... 

 

De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até ao litoral, em Vila do Conde 
( 1887 ). 

 

Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, 
Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe, Mucambo, Maçacará, Pombal, Monte Santo, Tucano e outros viram-no 
chegar, acompanhado da farândola de fiéis. Em quase todas deixava um traço da passagem: aqui um cemitério 
arruinado, de muros reconstruídos; além uma igreja renovada; adiante uma capela que se erguia, elegante 
sempre. 

 

A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silencio, alevantando imagens, cruzes e 
bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam-se as ocupações normais. Ermavam-se as 
oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das 
feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o 
mando, fazia-se autoridade única. 

 

Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e 
quando era grande a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, 
para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes. 

 

As prédicas 

 

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, 
feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema 
das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, 
preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas... 

 

Era truanesco e era pavoroso. 

 

Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalise... 

 

Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava 
demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopéia fatigante. 

 

Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido por uma ou outra frase mais decisiva. 
Enunciava-a e emudecia; alevantava a cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos 
extremamente negros e vivos, e o olhar — uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo. A 
multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, sob o estranho hipnotismo daquela insânia 
formidável. 


 

E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre: conseguia não se tornar ridículo... 

 

Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões, estadeava o 
sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem as ouviu não se forra a aproximações históricas sugestivas. 
Relendo as páginas memoráveis em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoidados 
chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência integral de suas aberrações extintas. Não há desejar 
mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das 
mesmas palavras quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos entre os povos. O 
retrógrado do sertão reproduz o facies dos místicos do passado. Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso de 
uma perspectiva através dos séculos... 

 

Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários que Fouillée compara, em imagem feliz, à des 
coureurs sur le champ de la civilisation, de plus en plus en retard. 

 

Preceitos de montanista 

 

É um dissidente do molde exato de Themison. Insurge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, 
estadeando o mesmo argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. Esboça uma moral que 
é a tradução justalinear da de Montano: a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com 
a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção do casamento. 

 

O frígio pregava-a, talvez como o cearense, pelos ressaibos remanescentes das desditas conjugais. Ambos 
proíbem severamente que as moças se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras; insistem do mesmo modo, 
especialmente sobre o luxo dos toucados; e — o que é singularíssimo — cominam, ambos, o mesmo castigo a 
este pecado: o demônio dos cabelos, punindo as vaidosas com dilaceradores pentes de espinho. 

 

A beleza era-lhes a face tentadora de Satã. O Conselheiro extremou-se mesmo no mostrar por ela invencível 
horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem 
sátiros. 

 

Profecias 

 

Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do passado as concepções absurdas do 
esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo da Terra... O mesmo milenarismo 
extravagante, o mesmo pavor do anti-Cristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo 
próximo... 

 

Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo quanto os maculasse com um leve traço da vaidade. Todas as 
fortunas estavam a pique da catástrofe iminente e fora temeridade inútil conservá-las. 

 

Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da vida um purgatório duro; e não a manchassem nunca 
com o sacrilégio de um sorriso. O juízo final aproximava-se, inflexível. 

 

Prenunciavam-no anos sucessivos de desgraças: 

 

". . .Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão. 

 

" Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. 

 

" Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças. 

 

" Em 1899 ficarão as águas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se 
confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... 

 

" Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus 
disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam porque há um só 
pastor e um só rebanho !" 

 


Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora o próprio Cristo que pressagiara a sua 
vinda quando 

 

"na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus apóstolos perguntou: Senhor! para o fim desta 
edade que signaes vós deixaes ? 

 

"Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae 
terno, prégando sermões pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas e capellinhas e dando 
seus conselhos..." 

 

E no meio desse extravagar adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça 
levando-o à insurreição contra a forma republicana: 

 

"Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a 
Inglaterra, a Prussia com a Prussia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exercito. 

 

"Desde o princípio do mundo que encantou com todo seu exercito e o restituio em guerra. 

 

"E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até os copos e elle disse: Adeus mundo! 

 

"Até mil e tantos a dois mil não chegarás ! 

 

"Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada deste papel da Republica. O fim desta 
guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até á junta grossa . . . " 

 

Um heresiarca do século 2 em plena idade moderna 

 

O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para 0 
Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o 
reino de mil anos e suas delícias. 

 

Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do judaísmo ? 

 

Não há encobri-lo. Ademais este voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões, 
não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço judaico. Montano reproduz-se em 
toda a história, mais ou menos alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra 
a jerarquia eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição 
primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas canonizados dos concílios. 

 

A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, 
prometido, delongado sempre e, ao cabo, de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século 2. 

 

Abeirara-se apenas do catolicismo mal compreendido. 

 

Tentativas de reação legal 

 

Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas homílias, penitências que, de ordinário 
redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se cemitérios em 
abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros e carpinteiros trabalhavam de graça; os 
abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. Durante dias seguidos, na 
azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos salários se averbavam nos céus. 

 

E terminada a empresa o predestinado abalava... para onde ? Ao acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões 
em fora, pelas chapadas multívias, sem olhar sequer para os que o encalçavam. 

 

Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre. A dar-se crédito a testemunho valioso , 
aquele, em geral, estimulava-lhe ou permitia-lhe as práticas pelas quais, sem nada usufruir, promovia todos os 
atos de onde saem os rendimentos do clero: batizados, desobrigas, festas e novenas. 

 


Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo endemoninhado que ao menos lhe acrescia a 
côngrua reduzida. Percebeu-o em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando por paradeiro a esta transigência, 
senão mal disfarçada proteção, por uma circular dirigida a todos os párocos. 

 

"Chegando ao nosso conhecimento que, pelas freguesias do centro deste arcebispado, anda um indivíduo 
denominado Antônio Conselheiro, pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas e uma 
moral excessivamente rígida com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade 
dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Rev.ma, que não consinta em sua freguesia semelhante abuso, 
fazendo saber aos paroquianos que Ihes proibimos, absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto 
como, competindo na Igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os novos, 
um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtuoso. não tem autoridade para exercê-lo. 

 

"Entretanto sirva isto para excitar cada vez 

 

mais o zelo que V. Rev.ma, no exercício do ministério da pregação, a fim de que os seus paroquianos, 
suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento de doutrina etc.” 

 

Foi inútil a intervenção da Igreja. 

 

Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. 
E, como se desejasse reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve constantemente ao 
Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou para os poderes constituídos, em oficio onde, depois de 
historiar ligeiramente os antecedentes do agitador, disse: 

 

". . . Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no referido arraial construindo uma capela a 
expensas do povo. 

 

"Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável, para o lugar, todavia os excessos e 
sacrifícios não compensam este bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais justo e fundado o receio de 
grandes desgraças. 

 

"Para que V. S. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta dizer que é acompanhado por centenas e centenas de 
pessoas, que ouvem-no e cumprem suas ordens de preferência às do vigário da paróquia. 

 

"O fanatismo não tem limites e assim é que, sem medo de erro, e firmado em fatos, posso afirmar que 
adoram-no, como se fosse um Deus vivo. 

 

"Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja 
féria semanal é de quase cem mil-réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses, aos quais 
Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse 
dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam 
para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que tem sido remetidas para outras obras do 
Chorrochó, termo do Capim Grosso." 

 

E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos: 

 

"Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, está aquele 
municiado como se tivesse de ferir uma batalha campal, e consta que estão à espera que o vigário vá ao lugar 
denominado Junco para assassiná-lo. Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos 
de cacetes, facas, facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de ser infenso a Antônio Conselheiro." 

 

Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não foi correspondido. Nenhuma providencia se 
tomou até meados de 1887, quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o arcebispo ao presidente da 
província, pedindo providências que contivessem o "indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel que, pregando 
doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e 
arrastando-o após si, procurando convencer de que era Espírito-Santo etc." 

 

Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu-se ao ministro do Império, pedindo um lugar para o 
tresloucado no hospício de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o notável 


argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago; e o presidente oficiou de novo ao prelado, 
tornando-o ciente da resolução admirável do governo. 

 

Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram durante o Império. 

 

Mais lendas 

 

O Conselheiro continuou sem tropeços na missão pervertedora, avultando na imaginação popular. 

 

Apareciam as primeiras lendas. 

 

Não as arquivaremos todas. 

 

Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa ocasião, quando se construía a 
belíssima igreja que lá está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem pesado baldrame, o predestinado 
trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida, que dois homens apenas o levantem; e o que não haviam 
conseguido tantos, realizaram os dois rapidamente, sem esforço algum... 

 

Outra vez — ouvi o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado fanatizar! — chegou a Monte Santo e 
determinou que se fizesse uma procissão pela montanha acima, até a última capela, no alto. Iniciou-se à tarde a 
cerimônia. A multidão derivou, lenta, pela encosta clivosa, entoando benditos, estacionando nos "passos", 
contrita. Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto, agitada pela ventania forte a cabeleira longa, 
arrimando-se ao bordão inseparável. Desceu a noite. Acenderam-se as tochas dos penitentes, e a procissão, 
estendida na linha de cumeadas, traçou uma estrada luminosa no dorso da montanha... 

 

Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca escada de 
pedra, e queda-se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas... 

 

A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela, enquanto outros permanecem fora ajoelhados 
sobre a rocha aspérrima. 

 

O contemplativo, então, levanta-se. Mal sofreia o cansaço. Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, 
pendida para o chão a cabeça, humílimo e abatido, arfando. 

 

Ao abeirar-se do alta-mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão 
estremece toda, assombrada... Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem 
Santíssima... 

 

Estas e outras lendas são ainda correntes no sertão. natural. Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio 
Conselheiro reunia no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente de redução da 
nossa nacionalidade. Arrastava o povo sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as 
aberrações daquele. Favorecia-o o meio e ele realizava, às vezes, como vimos, o absurdo de ser útil. Obedecia à 
finalidade irresistível de velhos impulsos ancestrais; e jugulado por ela espelhava em todos os atos a 
placabilidade de um evangelhista incomparável. 

 

De feito, amortecia-lhe a nevrose inexplicável placidez. 

 

Certo dia o vigário de uma freguesia sertaneja vê chegar à sua porta um homem extremamente magro e 
sucumbido: longos cabelos despenteados pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de 
peregrino a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um lado entre as camândulas da cintura, e o 
manto poento e gasto, e a borracha d"água, e o bordão comprido... 

 

Dá-lhe o pároco com que se alimente, aceita um pedaço de pão apenas; oferece-lhe um leito, prefere uma tábua 
sobre que se deita sem cobertas, vestido, sem mesmo desatacar as sandálias. 

 

No outro dia o singularíssimo hóspede, que poucas palavras até então pronunciara, pede ao padre lhe conceda 
pregar por ocasião da festa que ia realizar-se na igreja. 

 

— Irmão não tendes ordens; a Igreja não permite que pregueis. 

 


— Deixai-me, então, fazer a via-sacra. 

 

— Também não posso, vou eu fazê-la, contraveio mais uma vez o sacerdote. 

 

O peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer palavra tirou de sob a túnica um lenço. Sacudiu 
o pó das alpercatas. E partiu. 

 

Era o clássico protesto inofensivo e tranqüilo dos apóstolos . . . 

 

Hégira para o sertão 

 

A reação, porém, crescendo, malignou-lhe o animo. Dominador incondicional, principiou de se irritar ante a 
menor contrariedade. 

 

Certa vez, em Natuba, estando ausente o vigário, com quem não estava em boas graças, apareceu e mandou 
carregar pedras para consertos da igreja. Chega o padre; vê a invasão dos domínios sagrados; irrita-se e resolve 
pôr embargos à desordem. Era homem prático; apelou para o egoísmo humano. 

 

Tendo a Câmara, dias antes, imposto aos proprietários o calçamento dos passeios das casas, cedeu ao povo, para 
tal fim, as pedras já acumuladas. 

 

O Conselheiro não se limitou, desta vez, a sacudir as sandálias. Saiu-lhe da boca a primeira maldição, às portas 
da cidade ingrata; e partiu. 

 

Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência política do local o chamou. O templo desabava em 
ruínas; o mato invadira todo o cemitério; e a freguesia era pobre. Só podia renová-los quem tão bem dispunha 
dos matutos crédulos. O apóstolo deferiu ao convite. Mas fê-lo através de imposições discricionárias, 
relembrando, com altanaria destoante da pacatez antiga, a afronta recebida. 

 

Iam-no tornando mau. 

 

Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma 
feição combatente inteiramente nova. 

 

Originou-a fato de pouca monta. 

 

Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas 
tábuas tradicionais, que substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos etc. 

 

Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou-o a imposição; e planeou revide 
imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as 
tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o "auto-de-fé", que a fraqueza das autoridades não 
impedira, e pregou abertamente a insurreição contra as leis. 

 

Avaliou, depois, a gravidade do atentado. 

 

Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte Santo, para o norte. 

 

O acontecimento repercutira na capital, de onde partiu numerosa força de polícia para prender o rebelde e 
dissolver os grupos turbulentos. Estes naquela época não excediam a duzentos homens. A tropa alcançou-os em 
Maceté, lugar desabrigado e estéril entre Tucano e Cumbe, nas cercanias dás serras do Ovó. As trinta praças, 
bem armadas, atacaram impetuosamente a turba de penitentes depauperados, certas de os destroçarem à primeira 
descarga. Deram, porém, de frente, com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente desbaratadas, 
precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar o exemplo o próprio comandante. 

 

Esta batalha minúscula teria, infelizmente, mais tarde muitas cópias ampliadas. 

 

Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a hégira do profeta. Não procuravam mais os 
povoados, como dantes. Demandavam o deserto. 

 


O desbarato da tropa prenunciava-lhes perseguições mais vigorosas; e, certos do amparo da natureza selvagem, 
contavam com a vitória enterreirando entre as caatingas os novos contendores. Estes partiram, de fato, sem perda 
de tempo, da Bahia, em número de oitenta praças, de linha. Mas não prosseguiram além de Serrinha, de onde 
tornaram sem se aventurarem com o sertão. Antônio Conselheiro, porém, não se iludiu com o inexplicável recuo, 
que o salvara. Arrastou a matula de fiéis, a que se aliavam, dia a dia, dezenas de prosélitos, pelas trilhas 
sertanejas fora, seguindo prefixado rumo. 

 

Conhecia o sertão. Percorrera-o todo numa romaria ininterrupta de vinte anos. Sabia de paragens ignotas de onde 
o não arrancariam. Marcara-as já, talvez prevenindo futuras vicissitudes. 

 

Endireitou, rumo firme, em cheio para o norte. 

 

Os crentes acompanharam-no. Não inquiriram para onde seguiam. E atravessaram serranias íngremes, tabuleiros 
estéreis e chapadas rasas, longos dias, vagarosamente, na marcha cadenciada pelo toar das ladainhas e pelo passo 
tardo do profeta. . . 


Capítulo V 

 

Canudos: antecedentes 

 

Canudos , velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinqüenta 
capuabas de pau-a-pique. 

 

Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário 
de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então 
ainda florescente, população suspeita e ociosa, "armada até aos dentes" e "cuja ocupação, quase exclusiva, 
consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão" , de 
tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio. 

 

Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro — e o seu nome claramente se explica — tinha, 
como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. 
Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893: tajupares em abandono; vazios os 
pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, 
em ruínas... 

 

Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, 
centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se, em pouco tempo, na Tróia de taipa 
dos jagunços. 

 

Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito. 

 

A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, 
amplíssimo e alto, para os céus... 

 

Crescimento vertiginoso 

 

Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores 
convergentes das vilas e povoados mais remotos. 

 

Diz uma testemunha : “Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, 
ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio 
Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda, nas feiras, extraordinária 
quantidade de gado cavalar, vacum, caprino etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, 
casas etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.” 

 

Assim se mudavam os lares. 

 

Inhambupe, Tucano, Cumbe, Itapicuru, Bom Conselho, Natuba, Maçacará, Monte Santo, Jeremoabo, Uauá, e 
demais lugares próximos; Entre Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana e outros sítios remotos, forneciam 
constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão topavam grupos 
sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as mobílias toscas, as canastras e os oratórios, 
para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, 
chegando, afinal, conjuntas, a Canudos. 

 

O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas. 

 

A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; e, à medida que se formava, 
a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoitada. Era a objetivação daquela insânia 
imensa. 

 

Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo. 

 

Aquilo se fazia a esmo, adoidadamente. 

 

Aspecto original 

 


A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas 
semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas, 
cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores — tinha o aspecto perfeito de uma cidade 
cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto. 

 

Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal separando o 
baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras 
orientando-se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma 
multidão de loucos... 

 

Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga 
morada romana: um vestíbulo exíguo, um atrium servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de 
recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de 
camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de 
César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas modalidades 
evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigwan 
dos peles-vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza 
repugnante, traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça. 

Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos, lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, 
ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados aos cantos, viam-se insignificantes acessórios: o bogó ou borracha, espécie de balde de couro para o transporte de água; pares de caçuás  ( jacás de cipó ) e os aiós, bolsa de caça, feita das fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório tosco. Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião mestiça em traços incisivos de manipansos: Santos Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias Santíssimas, feias como megeras... 

Por fim as armas — a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada. de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesados como montantes; as bestas e as espingardas. 


Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino, carregada com escumilha, até à "legítima de 
Braga", cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina portátil, capaz de arremessar 
calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca-de-sino. 

 

Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia com a feição média entre a de um 
acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a das 
igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam-no como vivenda 
única, amplíssima, estendida pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã tumultuário de Antônio 
Conselheiro. 

 

Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a certa distancia era visível. Confundia-se 
com o próprio chão. Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vaza-Barrís, que o limitava do 
levante ao sul abarcando-o. 

 

Emoldurava-o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas, uniformes, prolongando-se, ondeantes, até às 
serranias distantes, sem uma nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal revestidas, em raros pontos, de 
acervos de bromélias, encimadas, noutros, pelos cactos esguios e solitários. O monte da Favela, ao sul, 
empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto 
selvagem. À meia encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda... 

 

A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos Pelados, termina de chofre em barranca a prumo 
sobre o rio e este, dali por diante progredindo numa inflexão forte para montante, abarca o povoado em leito 
escavado e fundo, como um fosso. Ali vão ter quebradas de bordas a pique, abertas pelas erosões intensas por 
onde, no inverno, rolam acachoando afluentes efêmeros tendo os nomes falsos de rios: o Mucuim, o Umburanas, 
e outro, que sucessos ulteriores denominariam da Providência. 

 


Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia ao sul contra as vertentes da Favela e 
dominado no ocidente pelas lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, 
desatava-se para o levante segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se em 
roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito postigos em baluarte desmedido, abriam-se, 
estreitas, as gargantas em que passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores fortes do Caipã; 
o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as 
vertentes do Calumbi; e o do Rosário. 

 

Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado nascente ao fundo dos sertões do 
Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos os pontos, 
carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário 
humilde da antiga Capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. 
Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra 
da promissão — Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras.. . 

 

Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à gandaia pelo alto dos cômoros. A noite 
acendiam-se as fogueiras nos pousos dos peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o arraial; e, 
uníssonas, entrecruzavam-se, ressoando nos pousos e nas casas, as vozes da multidão penitente, na melopéia 
plangente dos benditos. 

 

Ao clarear da manhã entregavam-se à azáfama da construção dos casebres. Estes, a princípio apinhando-se 
próximos à depressão em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados ao viés das encostas breves 
até ao rio, começaram a salpintar, esparsos, o terreno rugado, mais longe. 

 

Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de um plano de 
defesa. Sucediam-se escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo, eretas numa e outra 
margem do Vaza-Barris, para jusante, até Trabubu e o ribeirão de Macambira. Pontilhavam o do Rosário, 
transpondo o rio e contornando a Favela. Espalhavam-se pelos cerros que se sucediam inúmeros seguindo o 
rumo de Uauá. Inscritas em cercas impenteráveis de gravatás, plantados na borda de um fosso envolvente, cada 
uma era, do mesmo passo, um lar e um reduto. Dispunham-se formando linhas irregulares de baluartes. 

 

Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a no crescimento rápido, um 
círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo 
volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas 
de pedra, não se revelavam a distancia. Vindo do levante, o viajor que as abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os 
cerros, as choupanas exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar uma rancharia esparsa de vaqueiros 
inofensivos. Atingia, de repente, a casaria compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia. 

 

Para quem viesse do sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado o alto da Favela, ou as ladeiras fortes que se 
derivam para o rio Sargento, o casario aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior, 
francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista aquilatar-lhe as condições de defesa. 

 

Eram na aparência deploráveis. O arraial parecia disposto para o choque das cargas fulminantes, rolando 
impetuosas, com a força viva de uma queda, pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas, 
varejá-lo-ia em tiros mergulhantes. Podia assediá-lo todo, batendo todas as estradas, com uma bateria única. 

 

Tinha, entretanto, condições táticas preexcelentes. Compreendera-as algum Vauban inculto... 

 

Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até ao rio, fechavam-no, a oeste, uma muralha e 
um valo. De fato, infletindo naquele rumo, o Vaza-Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas a 
pique dos morros sobranceiros, torcia para norte feito um cañon fundo. A sua curva forte rodeava, 
circunvalando-a, a depressão em que se erigia o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a oeste e norte 
pelas ladeiras das terras mais altas, que dali se entumescem até aos contrafortes extremos do Cambaio e do 
Caipã; e ao sul pela montanha. 

 

Canudos era uma tapera dentro de uma furna. A praça das igrejas, rente ao rio, demarcava-lhe a área mais baixa. 
Dali, segundo um eixo orientado ao norte, se expandia alteando-se a. pouco e pouco, em plano inclinado breve, 
feito um valo largo, em declive. Lá dentro se apertavam os casebres, atulhando toda a baixada, subindo, mais 
esparsos, pelas encostas de leste, transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpitando, raras, o alto 
dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa — como se vê — não se ilhava em uma eminência, 


assoberbando os horizontes, a cavaleiro dos assaltos. Entocara-se. Naquela região belíssima, em que as linhas de 
cumeadas se rebatem no plano alto dos tabuleiros, escolhera precisamente o trecho que recorda uma vala comum 
enorme.. . 

 

Regímen da "urbs" 

 

Lá se firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante. 

 

Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas, todas as condições do estádio social inferior. Na 
falta da irmandade do sangue, a consangüinidade moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o 
arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio dos primeiros 
agrupamentos bárbaros. 

 

O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto. Absorvia-o a psicose 
coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas 
eleitorais e saqueadores de cidades — jagunços. 

 

População multiforme 

 

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais dispares elementos, do crente fervoroso 
abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao 
ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e 
bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas 
sucessivas à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem 
extraordinário do qual a aparência protéica — de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo 
claudicante —estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças. 

 

Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a 
preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de 
instituições garantidoras de um destino na terra. 

 

Eram-lhe inúteis. Canudos era o cosmos. 

 

E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem 
demora; o último pouso na travessia de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira 
vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus... 

 

Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos 
beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das 
pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota-parte, 
revertendo o resto para a "companhia". Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento 
do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha 
restante. Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado mortal do bem-estar mais breve. 
Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam-se bem, vendo-se em 
andrajos. Este desprendimento levado às últimas conseqüências chegava a despi-los das belas qualidades morais, 
longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda 
copia velhos modelos históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade. 
A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural 
iminente, o olvido do além maravilhoso anelado. 

 

O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras suportadas. 

 

De todas as páginas de catecismo que soletrara ficara-lhe preceito único: 

 

Bem-aventurados os que sofrem. . . 

 

A extrema dor era a extrema-unção. O sofrimento duro a absolvição plenária; e teriaga infalível para a peçonha 
dos maiores vícios. 

 


Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão de somenos . Consentia de boa 
feição que errassem, mas que todas as impurezas e todas as escorralhas de uma vida infame caíssem, afinal, gota 
a gota, nas lágrimas vertidas. 

 

Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauto donzela teve, certa vez, uma 
frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza: 

 

"Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal !" 

 

Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos 
espúrios não tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante dos bancklings entre os 
germanos. Eram legião. 

 

Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida 
conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora 
malbaratá-los agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as 
uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O 
que urgia era antecipá-lo pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as agonias da 
fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os 
dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das 
cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial inteiro ! — saiu, do 
banquete minúsculo, repleto, empanzinado, como se volvesse de festim soberbo. 

 

Este regímen severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais vibrátil a enervação enferma dos 
crentes e preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio 
Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos cuja índole se 
contrapunha à sua placabilidade humilde. 

 

Canudos era o homízio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e 
vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem 
singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste 
natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão 
surgia mostruoso dentre aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos Batistas truculentos, 
capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários... 

 

Polícia de bandidos 

 

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas 
demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a "poeira", no dizer dos jagunços — viam-se 
diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o 
crime abominável de faltar às rezas. 

 

Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, 
antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinqüência especial, traduzindo-se na inversão 
completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves 
faltas. 

 

O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito 
imposto! 

 

Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns 
barris do líquido inconcesso. Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas 
ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, 
desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E 
volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de 
palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata. 

 

Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe 
nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas, fora do povoado, estas 
podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de 


tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por 
valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que 
despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia 
Estadual da Bahia. 

 

Depredações 

 

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades ! 
No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da Vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as 
autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razia escandalosa, torturou o escrivão 
dos casamentos que se viu em palpos de aranhas para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, 
tosquiando-o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário. 

 

Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém Ihes tomava conta dos desmandos. 

 

Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito 
diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes 
conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a 
fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro. 

 

Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, 
trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade 
triunfante de um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a lei marca, 
denominando-as "eleições", eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa 
civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo. 

 

Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para 
recontros mais valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém , exigia, 
digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado — 
ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, 
crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que Ihes era o 
Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões: 

 

Do céu veio uma luz 

Que Jesus Cristo mandou 

Santo Antônio Aparecido 

Dos castigos nos livrou! 

 

Quem ouvir e não aprender 

Quem souber e não ensinar 

No dia do Juízo 

A sua alma penara! 

 

Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e 
avivam-lhe, porventura, os últimos tragos da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por 
excelência. 

 

O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. 
Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, 
felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência, que Ihes fora a 
própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e pelas anquiloses, Ihes era a 
celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna. 

 

O templo 

 

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo. 

 

A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, 
no aspecto modestíssimo, a pureza principal da religião antiga. 

 


Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita 
combatente. 

 

Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã, enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os 
rebanhos de cabras, ou abalavam para "fazer o saco" nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em piquetes 
vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada. 

 

Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As 
paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes 
que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem. 

 

É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet... 

 

Devia ser como foi. Devia surgir, mole, formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos 
gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhes a forma dúbia de santuário e de 
antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, 
a suprema piedade e os supremos rancores... 

 

Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a 
carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem 
regras; de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis, cabriolando num delírio de 
curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um 
hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante. 

 

Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes. O povo enxameando 
embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as 
tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante 
sobre o edifício monstruoso. 

 

Não faltavam braços para a tarefa. .Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, 
por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa 
Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de 
gados. 

 

Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como obrigatória a prova 
desafiando-lhes a fé inabalável. 

 

Estrada para o céu 

 

Os ingênuos contos sertanejos desde muito Ihes haviam revelado as estradas facinadoramente traiçoeiras que 
levam ao inferno. Canudos, imunda ante-sala do paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo — 
repugnante, aterrador, horrendo... 

 

Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentando esperanças singulares. “Os aliciadores da seita se ocupam em 
persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares 
tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, 
onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.” 

 

Chagavam. 

 

Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os 
flancos entorroados das colinas... 

 

Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam no misticismo lamentável. . . 

 

As rezas 

 

Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob 
a latada coberta de folhagens. Derramava-se pela praça. Ajoelhava-se. 

 


Difundia-se nos ares o coro da primiera reza. 

 

A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos. 

 

Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões 
vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras. 

 

Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de A. Conselheiro , a multidão repartia-se, separados os sexos, em 
dois agrupamentos destacados . E em cada um deles s um baralhamento enorme de contrastes... 

 

Agrupamentos bizarros 

 

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas — êmulas das bruxas das igrejas 
— revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição: as "solteiras" , termo que nos 
sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas, "soltas" na gandaíce sem freios; as "moças 
donzelas" ou "moças damas", recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas 


 

Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; 
rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto 
estranho. 

 

Todas as idades, todos os tipos, todas as cores... 

 

Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas, trunfas escandalosas, 
de africanas madeixas castanhas e louras de brancas legítimas embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, 
sem uma flor. o toucado 

ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia 
lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a 
monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos 
cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos, ou de 
nôminas encerrando "cartas santas", únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador. 

 

Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que 
ressurgiam, impressionadoramente suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces 
rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas 
emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, 
mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem 
repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum angulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos 
"benditos" lúgubres como responsórios... 

 

As reveses, as fogueiras quase abafadas. vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da 
viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba. Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil 
dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela 
armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos os outrora, felizes pelo abandono das 
boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porem mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes , 
recidivos de todos os delitos. 

 

Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis interessantes e vários. Já são famosos alguns. 
Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e amplia. Lugar-tenentes do 
ditador humilde, tomam armados a frente do ajuntamento. Mas na há distinguir-se-lhes neste instante, na atitude 
e no gesto, o desgarre provocante dos valentões incorrigíveis. 

 

De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau e esvai-se-lhes contemplativo e vago. . . 

 

José Venâncio, o terror da Volta Grande. deslumbra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos 
processos à revelia, dobrando, contrito, o fronte para a terra. 

 

Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, 
mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante 


de ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado. 
Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas 
de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz 
entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, 
afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado à bala e à 
faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio. 

 

Joaquim Tranca-pés, outro espécimen de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o major 
Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as 
arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-torta, do Itapicuru, 
espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo. O ágil Chico 
Ema, a quem se confiara coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, 
predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos. 

 

Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio 
Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó... 

 

A massa restante dos fiéis volve-lhes, intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas incríveis, 
olhares carinhosos, refertos de esperanças. 

 

O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de “coração mole", segundo o dizer expressivo dos matutos, mas 
espírito infernal no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no 
chão, tendo ao lado o filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de heroísmo, mais 
tarde. 

 

Alheio à credulidade geral , um explorador solerte, Vila -Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de 
todos. O comandante da praça, o "chefe do povo", o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba 
genuflexa. 

 

No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado 
pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, 
observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e 
transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes. 
Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das 
igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas 
de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as 
rezas. 

 

E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; 
o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto. alheio à desordem, vivendo num investigar 
perene pelas drogarias primitivas das matas. 

 

O "beija" das imagens 

 

As rezas, em geral, prolongavam-se. Percorridas todas as escalas das ladainhas, todas as contas dos rosários, 
rimados todos os benditos, restava ainda a cerimônia final do culto, remate obrigado daquelas. 

 

Era o "beija" das imagens. 

 

Instituíra-o o Conselheiro, completando no ritual fetichista a transmutação do cristianismo incompreendido. 

 

Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo, contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em 
êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, 
com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia 
uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os 
santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um , por 
todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num 
crescendo, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas à meia voz, dos 
mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, 
para que se não perturbasse a solenidade. 


 

O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a 
agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia, adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à 
medida que passavam as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras 
alcançavam as derradeiras filas dos crentes. E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. 
Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no contágio 
irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às 
imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava à multidão um 
desvairamento irreprimível. Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se movimentos 
impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes, de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas 
de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças assustadiças 
desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o 
estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que 
explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro... 

 

Mas de repente o tumulto cessava. 

 

Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à porta do santuário, aberta e 
enquadrando a figura singular de Antônio Conselheiro. 

 

Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava... 

 

Por que não pregar contra a República ? 

 

Pregava contra a República; é certo. 

 

O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio 
religioso. 

 

Mas não traduzia o mais pálido intuito político; o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como 
a monárquico-constitucional. 

 

Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que 
só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro. 

 

Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, 
ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido. 
Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século 17, porém, nela topariam relações 
antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os 
demonopatas de Varzenis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam em 
todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual 
dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas 
superiores. 

 

Os perfectionists exagerados rompem, então, lógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a 
sombria Sturmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença 
alemã... 

 

Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável. 

 

Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de 
improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais 
modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos 
por uma civilização de empréstimo; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos 
códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as 
exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles 
rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, 
separam-no-los três séculos . . . 

 


E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não 
vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação 
partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de 
melhores causas, batemo-los a carga de baionetas. reeditando por nossa vez o passado, numa "entrada" inglória, 
reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras... 

 

Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, 
adversário sério, estrênuo paladino do extinto regímen, capaz de derruir as instituições nascentes. 

 

E Canudos era a Vendéia... 

 

Entretanto, quando nos últimos dias do arraial foi permitido o ingresso nos casebres estraçoados, salteou o animo 
dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em 
ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável. 

 

Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos imagens mutiladas e rosários 
de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente os 
desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais 
ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a 
psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, 
lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. 
Porque o que nelas vibra em todas as linhas é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca 
significação política, permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a 
ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — 
pecado mortal de um povo —heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do anti-Cristo. Os rudes poetas, 
rimando-lhe os desvairos em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixaram 
bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e 
eloqüente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo. 

 

Copiemos ao acaso alguns: 

 

"Sahiu D. Pedro segundo 

"Para o reino de Lisboa 

"Acabosse a monarquia 

“O Brasil ficou atôa ! 

 

A República era a impiedade: 

 

"Garantidos pela lei 

"Aquelles malvados estão 

"Nós temos a lei de Deus 

"Elles tem a lei do cão ! 

 

"Bem desgraçados são elles 

"Pra fazerem a eleição 

"Abatendo a lei de Deus 

"Suspendendo a lei do cão ! 

 

"Casamento vão fazendo 

"Só para o povo iludir 

""Vão casar o povo todo 

"No casamento civil! 

 

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve: 

 

"D. Sebastião já chegou 

"E traz muito regimento 

"Acabando com o civil 

"E fazendo o casamento ! 

 


"O Anti-Cristo nasceu 

"Para o Brasil governar 

"Mas ahi está o Conselheiro 

"Para delle nos livrar! 

 

“ Visita nos vem fazer 

“Nosso rei D. Sebastião. 

“Coitado daquelle pobre 

“Que estiver na lei do cão! 

 

A lei do cão... 

 

Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentários. 

 

Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados... 

 

Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta. 

 

Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a 
bala. 

 

Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática. 

 

Uma missão abortada 

 

Em 1895, em certa manhã de maio, no alto de um contraforte da Favela, apareceu, ladeada de duas outras, figura 
estranha àqueles lugares. Era um missionário capuchinho. 

 

Considerou por instantes o arraial imenso, embaixo. Desceu devagar a encosta. 

 

Daniel vai penetrar na furna dos leões .. 

 

Acompanhemo-lo. 

 

Seguido de frei Caetano de S. Léu e do vigário do Cumbe, frei João Evangelista de Monte-Marciano passa o rio 
e abeira-se dos primeiros casebres. Alcança a praça desbordante de povo “perto de mil homens armados de 
bacamartes, garrucha, facão etc.”; e tem a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um acampamento de 
beduínos. Não se lhe entibia, porém, o ânimo blindado pela fortaleza tranqüila dos apóstolos. Passa, impassível, 
por diante da capela, em cuja porta se adensam mais compactos agrupamentos. Envereda logo por um beco 
tortuoso. Atravessa-o, seguido dos companheiros de apostolado. Enquanto às portas os moradores surpreendidos 
saem a vê-los, "ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador e sinistro, denunciando consciências 
perturbadas e intenções hostis". 

 

Chega por fim à casa do velho vigário do Cumbe (que não se abria há mais de ano, porque a tanto remontava a 
sua ausência, ressentido por desacato que sofrera) e mal se refaz da jornada extenuadora. Comoviam-no o 
espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados até os dentes, e o quadro emocionante daquela 
Tebaida turbulenta. 

 

Antolham-se-lhe novas impressões desagradáveis. 

 

A breve trecho passam-lhe à porta oito defuntos levados sem sinal algum religioso para o cemitério ao fundo da 
igreja velha: oito redes de caroá sob que arcavam carregadores ofegantes passando, rápidos, ansiosos por 
alijá-las, como se na cidade sinistra o morto fosse um desertor do martírio, indigno da atenção mais breve. 

 

Entrementes, correra a nova da chegada, sem que o Conselheiro se abalasse ao encontro dos emissários da Igreja. 
Permanecera indiferente, assistindo aos trabalhos de reconstrução da capela. Procuraram-no, então, os padres. 

 

Deixam a casa. Tomam de novo pela viela sinuosa. Entram na praça. Atravessam-na, sem que o menor brado 
hostil os perturbe, e ao chegarem à sede dos trabalhos "os magotes de homens cerram fileiras junto à porta da 
capela" abrindo-lhes extensa ala. 


 

Do ajuntamento temeroso parte animadora saudação de paz: "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristal" à qual 
era de praxe a resposta: 

 

"Para sempre seja louvado tão bom Senhor!" 

 

Entram no pequeno templo e acham-se diante de Antônio Conselheiro, que os acolhe com boa sombra; e, com a 
placabilidade habitual, dirige-lhes a mesma saudação pacífica. 

 

Retrato do Conselheiro 

 

"Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum 
trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente 
levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente" 
impressionaram grandemente os recém-vindos . 

 

Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da 
visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os a 
visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos, 
vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado 
sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante por súbitos acessos de tosse... 

 

Não se podiam exigir melhores preliminares à missão. 

 

Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário anulá-la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, 
como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam a distância, pareceu-lhe que a 
oportunidade era de moldo para interpelação decisiva. 

 

Era uma precipitação, sobre inútil, contraproducente. O insucesso sobreveio, inevitável. 

 

. . . “ aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim 
muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão 
pobre tantas famílias entregues à ociosidade, num abandono e misérias tais que diariamente se davam de oito a 
nove óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do sr. arcebispo, ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a 
dispersar-se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral." 

 

Esta intransigência, este mal sopitado assomo, partindo a finura diplomática nas arestas rígidas do dogma, não 
teria, certo, o beneplácito de S. Gregório — o Grande — a quem não escandalizaram os ritos bárbaros dos 
saxônios; e foi um desafio imprudente. 

 

"Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam-se de gente e ainda não acabara eu de falar e já eles a uma voz 
clamavam: 

 

Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro !"" 

 

Era a desordem iminente. Sobresteve-a, porém, a placidez admirável, a mansuetude — por que não dizer cristã ? 
— de Antônio Conselheiro. Que o próprio missionário fale: 

 

"Este os fez calar, e voltando-se para mim disse: 

 

— É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados, porque V. V.Rev.ma há de saber que a polícia 
atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Maceté, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo da 
monarquia deixei-me prender, porque reconhecia o governo, hoje não, porque não reconheço a República." 

 

Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas 
não o tato finíssimo de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima-Petri: 

 

"— Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas e, aceitando todas as formas de 
governo. ensina que os poderes constituídos regem os povos em nome de Deus." 

 


Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero... 

 

E continuou: 

 

"É assim em toda parte: a Franca, que é uma das principais nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos, 
mas há mais de vinte anos é República; e todo o povo, sem exceção dos monarquistas de lá, obedece às 
autoridades e às leis do governo." 

 

Fr. Monte-Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações políticas, insciente da significação real da desordem 
sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira, a estatura anômala de 
propagandista, faltando apenas ter sob as dobras do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz: 

 

"Nós, mesmo aqui no Brasil, a principiar do bispo até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente 
vós não vós quereis sujeitar ? 

 

É mau pensar esse, e uma doutrina errada a vossa!" 

 

A frase final vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão partiu pronta, a réplica arrogante: 

 

"V.Rev.ma é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro!" 

 

Desta vez ainda o tumulto. prestes a explodir, retraiu-se a um gesto lento do Conselheiro que. voltando-se para o 
missionário, disse 

 

" — Eu não desarmo a minha gente, mas também não estorvo a santa missão." 

 

Esta iniciava-se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca 
de cinco mil assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam : 

 

"... carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas c facões, de cartucheiras à cinta e gorro à cabeça, na 
atitude de quem vai à guerra." 

 

Assistia-a também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível como um fiscal severo, "deixando escapar 
alguma vez gestos de desaprovação que os maiores da grei confimavam com incisivos protestos." 

 

Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas um ou outro exaltado, violando velho 
privilégio, se permitia sulcar de apartes a oratória sagrada. 

 

Assim que, praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a matéria e refrear as paixões, pela 
sobriedade, sem entretanto exigir demoradas angústias, porque "podia-se jejuar muitas vezes comendo carne ao 
jantar e tomando, pela manhã, uma chávena de café", tolheu-lhe o sermão irreverente e irônica contradita: 

 

— Ora ! isto não é jejum, é comer a fartar !" 

 

No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no descabido tema político pioraram as coisas. 
Começou intensa propaganda contra a pregação do padre maçon protestante e republicano" "emissário do 
governo e que de inteligência com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro e 
exterminar todos eles." 

 

Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou-se com ela acirrando-a temerariamente. Escolheu como 
assunto da prédica subsequente o homicídio, e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando em corda na 
casa do enforcado espraiou se em alusões imprudentes que temos por escusado registrar. 

 

A reação foi imediata. Chefiava-a João Abade, cujo apito vibrando e na praça, congregou todos os fiéis. O caso 
passou em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos arrancaram dali em algazarra estrepitante de vivas ao Bom 
Jesus e ao Divino Espírito Santo, na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo-lhes sentir que 
deles não careciam para a salvação eterna. 

 

Estava extinta a missão. Excetuando “55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões” , 
o resultado fora nulo, ou antes, negativo. 


 

Maldição sobre a Jerusalém de taipa 

 

O missionário “como outrora os apóstolos às portas das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias" 
apelando para o veredictum tremendo da Justiça Divina... 

 

E abalou, furtando-se a seguro pelos becos, acompanhado dos dois sócios de reveses... 

 

Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela. 

 

Atinge o alto da montanha. Pára um momento... 

 

Considera pela última vez o povoado, embaixo... 

 

É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se “ ao Divino Mestre diante de ,lerusalém." 

 

Mas amaldiçoou... 


A LUTA 

 

Preliminares 

 

I. Antecedentes . 

II. Causas próximas da luta. Uauá. 

III. Preparativos da reação. A guerra das caatingas. 

IV. Autonomia duvidosa. 


Capítulo I 

 

Preliminares 

 

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras 
insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões 
alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Brito Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em 
Jequié se cometiam toda a sorte de atentados. 

 

Antecedentes 

 

O mal era antigo. 

 

O trato do território, que recortam as cadeias de Sincorá até às margens do S. Francisco, era, havia muito, 
dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão. 

 

Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina-a a própria opulência. Procuram-na há duzentos anos 
irrequietos aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles, esquadrinhando afanosamente os 
flancos das suas serranias e as nascentes dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas 
e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, 
a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda 
corrente o ouro em pó e o diamante bruto. 

 

De sorte que, sem precisarem despertar pela cultura as energias de um solo em que não se fixam e atravessam na 
faina desnorteada de faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos 
fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco, se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o 
banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada. 

 

O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o 
capangueiro decaído. 

 

A transição e antes de tudo um belo caso de reação mesológica. 

 

Caracterizemo-la, de relance. 

 

Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes, interpostos tão a propósito na quadra colonial, 
entre o torvelinho das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador formando o cerne da nossa 
nacionalidade nascente e criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as utopias 
românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de esboçarem talvez a única feição útil da nossa 
atividade naqueles tempos, tiveram desde o começo do século 18, quando se desvendaram as lavras do rio de 
Contas à Jacobina, perigosos agentes que, se Ihes não derrancaram o caráter varonil, o nortearam a lamentáveis 
destinos. De feito, transmudaram-se em contato com os sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente, 
espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao revés dos já existentes, não tinham o 
gérmen de uma fazenda de gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região, estacionando largo 
tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram 
aparelhos para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas que vão de Macaúbas e Açuruá, 
novas paragens opulentas, atraindo-os para o âmago das terras. 

 

Devassaram-nas até nova barreira, o rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhes antolhou, 
cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale da rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina, em 
carta dirigida à rainha Maria II (1794) , afirmava "que as suas minas eram a coisa mais rica de que nunca se 
descobriu nos domínios de Sua Majestade". 

 

Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás. 

 

Não deram mais um passo além. Ultimara-se uma empresa deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, 
nodoando-os, os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro 
surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa historia, tão malsinada de indisciplinados heróis, adquiria um de seus 
mais sombrios atores. Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranqüila dos 


 

 

Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante 
observa , de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas. 

 

O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, c a arma à bandoleira. Tomba 
genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário, transudante... E reza. Sonda longo tempo, batendo no 
peito, as velhas culpas. Ao cabo cumpre devotamente a promessa que fizera para que lhe fosse favorável o 
último conflito que travara: entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete 
lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos , feliz pelo tributo que rendeu. 
Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa. 

 

Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira fase de uma decadência que começou em 1856; 
Xique-Xique, onde durante decênios se digladiaram liberais e conservadores; Macaúbas, Monte Alegre e outras, 
e todas as fazendas de seus termos, delatam, nas vivendas derruídas ou esburacadas à bala, esse velho regímen de 
desmandos. 

 

São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado. 

 

O conceito é paradoxal, mas exato. 

 

Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços. Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e 
batendo-se lealmente pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas batalhas em que entram, 
militarmente, arregimentados. 

 

campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irrequieta, e por uma 
ociosidade singular sulcada de tropelias. 

 

Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratilidade incomparável do 
bandeirante. Teremos o jagunço. 

 

É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já 
diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros — na atividade bifronte que oscila, hoje, das 
vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando 
abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, 
ampara-o de idêntico modo ante as exigências da vida combatente: dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a 
composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projéteis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na 
galena argentífera do Açuruá... 

 

É natural que desde o começo do século passado a história dramática dos povoados do S. Francisco começasse a 
refletir uma situação anômala . E embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem 
rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as 
desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, 
denunciam a gênese remota que esboçamos. 

 

Exemplifiquemos. Todo o vale do rio das Éguas e, para o norte, o do rio Preto, formam a pátria original dos 
homens mais bravos e mais inúteis da nossa terra . Dali abalam para as algaras aventurosas alugando a bravura 
aos potentados, e têm sempre, culminando-lhas, o incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do 
grande rio. Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade mineira de Januária, que conquistaram, 
tornando a Carinhanha, de onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte a história das 
depredações avulta cada vez maior, até Xique-Xique, lendária nas campanhas eleitorais do Império. 

 

Não há traçá-la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e 
sinistra. 


O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História 
inteira. 

 

Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e indigno labéu. O mais frágil "positivo" pode 
atravessar, inerme e indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os "piquás" atestados de 
diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só termo da viagem. O forasteiro, alheio às lotas partidárias, atravessa-os 
igualmente imune. 

 

Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca — 
tremendo — ao ver aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampado na volta do caminho... 

 

Mas perde em momentos o modo. O clavinoteiro — chefe aproxima-se. Saúda-o com boa sombra; dirige-lhe a 
palavra risonha; e mete-lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige um tributo — um cigarro. Acende-o 
numa pancada única do isqueiro; e deixa-o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna. 

 

São numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles valentes desgarrados. 

 

Cerca de dez ou oito léguas de Xique-Xique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, ereto entre 
montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais. 

 

Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados, tornando-se interventoras neutras ante as 
facções combatentes. E: uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamenta com os criminosos; 
balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros tratados 
de paz, sancionando a soberania da capangagem impune. 

 

Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido na própria transigência das leis. 

 

Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e desbordando para o norte. 

 

Porque o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico , com diverso nome Distingue-o do 
jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba, de lamina rígida e longa, suplanta a fama 
tradicional do clavinote de boca-de-sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as 
isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, 
defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso. 

 

A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las. 

 

A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos 
sertões. 


Capítulo II 

 

Causas próximas da luta 

 

Determinou-a incidente desvalioso. 

 

Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as 
caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela 
cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja 
nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado. 

 

O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a 
época em que, sendo juiz do Bom Conselho, fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada 
pelos adeptos daquele. 

 

Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à 
provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a 
bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força. 

 

O caso passou em dias de outubro de 1896. 

 

Historiemos, adstritos a documentos oficiais: 

 

"Era esta a situação quando recebi do dr. Arlindo Leôni, juiz de direito de Juazeiro, um telegrama urgente 
comunicando-me correrem boatos mais ou menos fundados de que aquela florescente cidade seria por aqueles 
dias assaltada por gente de Antônio Conselheiro, pelo que solicitava providências para garantir a população e 
evitar o êxodo que da parte desta já se ia iniciando. Respondi-lhe que o governo não podia move. força por 
simples boatos e recomendei, entretanto, que mandasse vigiar as estradas em distancia e, verificado o movimento 
dos bandidos, avisasse por telegrama, pois o governo ficava prevenido para enviar incontinente, em trem 
expresso, a força necessária para rechaçá-los e garantir a cidade. 

 

Desfalcada a força policial aquartelada nesta capital, em virtude das diligências a que anteriormente me referi, 
requisitei do sr. general comandante do distrito cem praças de linha, a fim de seguirem para Juazeiro, apenas me 
chegasse aviso do juiz de direito daquela comarca. Poucos dias depois recebi daquele magistrado um telegrama 
em que me afirmava estarem os sequazes de Antônio Conselheiro distantes de Juazeiro pouco mais ou menos 
dois dias de viagem. Dei conhecimento do fato ao sr. general que, satisfazendo a minha requisição, fez seguir, 
em trem expresso e sob o comando do tenente Pires Ferreira, a força preparada, a qual devia ali proceder de 
acordo com o juiz de direito. 

 

Esse distinto oficial, chegando ao Juazeiro, combinou com aquela autoridade seguir ao encontro dos bandidos, a 
fim de evitar que eles invadissem a cidade." 

 

Não se podem imaginar móveis mais insignificantes para sucessos tão graves. O trecho acima extratado, 
entretanto, diz de modo claro que, desdenhando os antecedentes da questão, o governo da Bahia não lhe deu a 
importância merecida. 

 

Antônio Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas 
cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes 
de sua vida romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de uma peregrinação 
incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, 
demarcando-lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, 
quase uma cidade; de Chorrochó à Vila do Conde, de Itapicuru a Jeremoabo, não havia uma só vila, ou lugarejo 
obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de 
um templo ou a dádiva providencial de um açude; insurgira-se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem 
política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras de cidades que invadira; destroçara 
completamente, em 1893, forte diligencia policial, em Macete, e fizera voltar outra, de oitenta praças de linha, 
que seguira até Serrinha; em 1894, fora, nu Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão na qual, 
impugnando a proposta de um deputado, chamando a atenção dos poderes públicos para a "parte dos sertões 
perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro", outros eleitos do povo, e entre eles um sacerdote, 
apresentaram-no como benemérito do qual os conselhos se modelavam pela ortodoxia a cristã mais rígida; fizera 


voltar, abortícia, em 1895, a missão apostólica planeada pelo arcebispo baiano, e no relatório alarmante a 
propósito escrito por frei João Evangelista afirmara o missionário a existência, em Canudos — excluídas as 
mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos — de mil homens, mil homens robustos e destemerosos "armados 
até aos dentes"; por fim, sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se 
entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam 
havia, em toda a parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam... E achou-se suficiente para debelar uma 
situação de tal porte uma força de cem soldados. 

 

Relata o general Frederico Solon, comandante do 3.° Distrito Militar: 

 

"A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, 
pessoalmente feita pelo dr. governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os 
fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente. 

 

Confiando no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não 
hesitei; fazendo-lhe apresentar. sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9.° Batalhão de 
Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções, o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês, para 
Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do rio S. Francisco, comandando três oficiais e 
104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois 
um médico com mais alguns recursos para o exercício de sua profissão. O mais correu pelo Estado." 

 

Aquele punhado de soldados foi recebido com surpresa em Juazeiro, onde chegou a 7 de novembro, pela manhã. 

 

Não obstou a fuga de grande parte da população, subtraindo-se ao assalto iminente. Aumentou-a. Conhecendo a 
situação, os habitantes viram, de pronto, que um contingente tão diminuto tinha o valor negativo de exercer 
maior atração sobre a horda invasora. 

 

Previram a derrota inevitável. E enquanto os partidários encobertos do Conselheiro, que os havia em toda a roda, 
se rejubilavam, prefigurando-a, alguns homens sinceros pediram ao comandante expedicionário para não seguir 
avante. 

 

As dificuldades encontradas na aquisição de elementos essenciais à marcha ali retiveram a força até ao dia 12 em 
que partiu, ao anoitecer, quando, certo, já chegara a Canudos a nova da investida . Partiu sem os recursos 
indispensáveis a uma travessia de duzentos quilômetros, em terreno agro e despovoado, orientada por dois guias 
contratados em Juazeiro. 

 

De sorte que logo em princípio o comandante reconheceu inexeqüível dar à marcha uma norma capaz de poupar 
as forças das praças. No sertão, mesmo antes do pleno estio, é impossível o caminhar de homens equipados, 
ajoujados de mochilas e cantis, depois das dez horas da manhã. Pelos tabuleiros o dia desdobra-se abrasador, 
sem sombras; a terra nua reverbera os ardores da canícula, multiplicando-os; e sob o influxo exaustivo de uma 
temperatura altíssima aceleram-se de modo pasmoso as funções vitais, determinando assaltos súbitos de cansaço. 
Por outro lado raro é possível o itinerário disposto de maneira a aproveitarem-se as horas da madrugada ou da 
noite. É forçoso avançar a despeito das soalheiras fortes até às cacimbas dos pousos dos vaqueiros. 

 

Além disto, aqueles lugares estão, como vimos, entre os mais desconhecidos da nossa terra. Poucos se têm 
afrontado com o aspérrimo vale do Vaza-Barris que, das vertentes orientais da Itiúba até Jeremoabo, se prolonga 
inóspito, desfreqüentado , tendo, de léguas em léguas, esparsas, insignificantes vivendas. É o trecho da Bahia 
mais assolado pelas secas. 

 

Por um contraste explicável entre as disposições orográficas, rodeiam-no, contudo, paragens exuberantes: ao 
norte o belo sertão de Curaçá e as várzeas feracíssimas estendidas para leste até Santo Antônio da Glória, 
perlongando a margem direita do S. Francisco; a oeste as terras fecundas centralizadas em Vila Nova da Rainha. 
Emolduram, porém, o deserto. O Vaza-Barris, quase sempre seco, atravessa-o, feito um oued tortuoso e longo. 

 

Piores que os "gerais, onde ficam vários ", as vezes mais atilados pombeiros , sem rumo, desnorteados pela 
uniformidade dos plainos indefinidos, as paisagens sucedem-se, uniformes e mais melancólicas mostrando os 
mais selvagens modelos, engravecidos por uma flora aterradora. 

 

A própria caatinga assume um aspecto novo. E uma melhor caracterização da flora sertaneja, segundo os vários 
cambiantes que apresenta acarretando denominações diversas, talvez a definisse mais acertadamente como a 


paragem clássica das catanduvas, progredindo, extensa, para o levante e para o sul até às cercanias de Monte 
Santo . 

 

A pequena expedição penetrou-a logo ao segundo dia de viagem, quando, depois de repousar bivacando duas 
léguas além de Juazeiro, teve que calcar, seguidamente, quarenta quilômetros de estrada deserta, até uma ipueira 
minúscula, a lagoa do Boi, onde havia uns restos de água. Dali por diante caminhou no deserto com escalas por 
Caraibinhas, Mari, Mucambo, Rancharia e outros pousos solitários, ou fazendas. Alguns estavam abandonados. 
O estio prenunciava a seca. 

 

Os raros moradores, ou por evitá-la, ou aterrados pelas novas alarmantes, haviam abalado para o norte tangendo 
por diante os rebanhos de cabras, únicos animais afeitos àquele clima e àquele solo. 

 

Uauá 

 

A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia penosíssima. 

 

Este arraial — duas ruas desembocando numa praça irregular — é o ponto mais animado daquele trecho do 
sertão. Como a maior parte dos vilarejos pomposamente gravados nos nossos mapas, é uma espécie de transição 
entre maloca e aldeia — agrupamento desgracioso de cerca de cem casas mal feitas e tijupares pobres, de aspecto 
deprimido e tristonho. 

 

Alcançam-no quatro estradas que, a partir de Jeremoabo passando em Canudos, de Monte Santo, de Juazeiro e 
Patamuté, conduzem para a sua feira, aos sábados, grande número de tabaréus sem recursos para viagens longas 
a lugares mais prósperos. Ali chegam por ocasião das festas como se procurassem opulenta capital das "terras 
grandes"; entrajados das melhores vestes, ou encourados de novo; pasmos ante os mostradores de duas ou três 
casas de negócio, e contemplando no barracão da feira, no largo, os produtos de uma indústria pobre em que 
aparecem, como valiosos espécimens, courinhos curtidos e redes de caroá. Nos demais dias, aberta uma ou outra 
venda, deserta a praça, Uauá figura-se um local abandonado. E foi num destes que a população recolhida, 
aguardando a passagem das horas mais ardentes, despertou surpreendida por uma vibração de cornetas. 

 

Era a tropa. 

 

Entrou pela rua em continuação à entrada e fez alto no largo. Foi um sucesso. Entre curiosos e tímidos, os 
habitantes atentavam para os soldados — poentos, mal firmes na formatura, tendo aos ombros as espingardas 
cujas baionetas fulguravam — como se vissem exército brilhante. 

 

Ensarilhadas as armas, a força acantonou. 

 

Fez-se em torno um círculo de vigilância: postaram-se sentinelas à saídas dos quatro caminhos e nomeou-se o 
pessoal das rondas. 

 

Feito praça de guerra, o vilarejo obscuro era, entretanto; uma escala transitória. A expedição, depois de breve 
descanso, devia abalar imediatamente para Canudos, ao alvorecer do dia subseqüente, 20. Não o fez. Ali, como 
em toda a parte, variavam, díspares, as informações, impedindo ajuizar-se sobre as coisas. 

 

De sorte que todo aquele dia foi despendido inutilmente, em indagações, sendo resolvido o acometimento para o 
imediato, depois de demora prejudicialíssima. E ao cair da noite operou-se um incidente só explicado na manhã 
seguinte: a população, quase na totalidade, fugira. Deixara as vivendas, sem ser percebida em pequenos grupos 
deslizando, furtivos, entre os claros das guardas avançadas. No repentino êxodo lá se foram os próprios doentes, 
famílias inteiras, ao acaso, pela noite dentro, dispartindo espavoridos, descampados em fora. 

 

Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os demais lugares convizinhos estava sob o domínio de Canudos. 
Habitavam-no dedicados adeptos de Antônio Conselheiro; de sorte que, mal a força fizera alto no largo, 
haviam-se aqueles precipitado para o arraial ameaçado, onde chegaram no amanhecer de 20, levando o alarma... 

 

Aquela fuga de uma população em massa delatava que os emissários haviam tido tempo de voltar prevenindo os 
moradores do contra-ataque, resolvido pelos homens de Canudos. Ficaria, assim, o campo livre aos lutadores. 

 

Os expedicionários não ligaram, porém, grande importância ao caso. Aprestaram-se para continuar a marcha na 
manhã seguinte; e inscientes da gravidade das coisas repousaram tranqüilamente, acantonados. 


 

Primeiro combate 

 

Despertou-os o adversário, que imaginavam ir surpreender. 

 

Na madrugada de 21 desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento dos jagunços... 

 

Um coro longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda adormida, reboando longamente nos ermos desolados. A 
multidão guerreira avançava para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. Parecia uma procissão 
de penitência, dessas a que há muito se afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os 
estios longos geram os flagícios das secas. 

 

O caso é original e verídico. Evitando as vantagens de uma arrancada noturna, os sertanejos chegavam com o dia 
e anunciavam-se de longe. Despertavam os adversários para a luta. 

 

Mas não tinham, ao primeiro lance de vistas, aparências guerreiras. Guiavam-nos símbolos de paz: a bandeira do 
Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. 
Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam-se no 
grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas 
dos altares. Alguns, como nas romarias piedosas, tinham à cabeça as pedras dos caminhos e desfiavam rosários 
de coco. Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados. Seguiam para a 
batalha rezando, cantando — como se procurassem decisiva prova às suas almas religiosas. 

 

Eram muitos. Três mil. disseram depois informantes exagerados, triplicando talvez o número. Mas avançavam 
sem ordem. Um pelotão escasso de infantaria que os aguardasse, distribuído pelas caatingas envolventes, 
dispersá-los-ia em alguns minutos. 

 

O arraial na frente, porém, não revelava lutadores a postos. Dormia. 

 

A multidão aproximou-se, tudo o indica, até beirar a linha de sentinelas avançadas. E despertou-as. Os vedetas 
estremunhando, surpresos, dispararam, à toa, as carabinas e refluíram precipitadamente para a praça que ficava à 
retaguarda, deixando em poder dos agressores um companheiro, espostejado a faca. Foi, então, o alarma: 
correndo estonteadamente pelo largo e pelas ruas; saindo, seminus, pelas portas; saltando pelas janelas; 
vestindo-se e armando-se às carreiras e às encontroadas... Não formaram. Mal se distendeu às pressas, dirigida 
por um sargento, incorreta linha de atiradores. Porque os jagunços lá chegaram logo, de envolta com os 
fugitivos. E o recontro empenhou-se brutalmente, braço a braço, adversários enleados entre disparos de 
garruchas e revólveres, pancadas de cacetes e coronhas, embates de facões e sabres — adiante, sobre a frágil 
linha de defesa. Esta cedeu logo. E a turba fanatizada, entre vivas ao Bom Jesus e ao Conselheiro, e silvos 
estridentes de apitos de taquara, desdobrada, ondulante, a bandeira do Divino, erguidos para os ares os santos e 
as armas, seguindo empós o curiboca audaz que levava meio inclinada em aríete a grande cruz de madeira — 
atravessou o largo arrebatadamente... 

 

Este movimento foi instantâneo e foi, afinal, a única manobra percebida pelos que testemunhavam a ação. Dali 
por diante não a descrevem os próprios protagonistas. Foi uma desordem de feira turbulenta. 

 

Na maioria, as praças, protegidas pelas casas, e abrindo-lhes as paredes em seteiras, volveram à defensiva franca. 

 

Foi a salvação. Os matutos conjuntos à roda dos símbolos sacrossantos, no largo, começaram de ser fuzilados em 
massa. Baquearam em grande número; e tornou-se-lhes a luta desigual a despeito da vantagem numérica. Batidos 
pelas armas de repetição, opunham um disparo de clavinote a cem tiros de Comblain. Enquanto o soldado os 
alvejava em descargas nutridas, os jagunços revolviam os aiós, tirando sucessivamente a pólvora, a bucha e as 
balas do demorado processo da carga de seu armamento grosseiro; enfiando depois pelo cano largo do trabuco a 
vareta; cevando-o devagar, socando lá dentro aqueles ingredientes como se enchessem uma mina; escorvando-o 
depois; aperrando-o afinal, e ao cabo disparando-o; realizando o heroísmo de uma imobilidade de dois minutos 
na estonteadora ebriez do tiroteio... 

 

Renunciaram, por isto, transcorrido algum tempo, à operação inexeqüível. Caíram sobre os contrários, de facão 
desembainhado e ferrão em riste, vibrando as foices reluzentes. 

 


Mas foi-lhes ainda nefasta esta arremetida doida. Rareavam-se-lhes as fileiras sem vantagem contra adversários 
abrigados, ou aparecendo de golpe nas janelas, que se abriam em explosões de descargas. Numa delas, um 
alferes, serodiamente espertado, bateu-se longo tempo, quase desnudo, abocando, sobre o peitoril, a carabina ao 
peito dos assaltantes, sem errar um tiro; até cair morto, sobre o leito em que dormira e não tivera tempo de 
deixar. 

 

O conflito continuou, deste modo, ferozmente, cerca de quatro horas, sem episódios dignos de nota e sem 
vislumbrar um único movimento tático; batendo-se cada um por conta própria, consoante as circunstâncias. No 
quintal da casa em que se aboletara, o comandante se ateve à missão única compatível com a desordem: 
distribuía, jogando-os por sobre a cerca, cartuchos, sofregamente retirados, às mancheias, dos cunhetes abertos a 
machado. 

Reunidos sempre em volta da bandeira do Divino, estraçoada de balas e vermelha como um pendão de guerra, os 
jagunços enfiavam pelas ruas. Contorneavam o arraial. Volviam ao largo, vozeando imprecações e vivas, em 
ronda desnorteada e célere. E foram, lentamente, nesses giros revoltos, abandonando a ação e dispersando-se 
pelas cercanias. Reconheciam a inutilidade dos esfoços feitos, ou imaginavam atrair os antagonistas para o 
plaino desafogado da várzea. 

Como quer que fosse, abandonaram, a pouco e pouco, o campo. Em breve, ao longe, desapareceu, listrando uma ponta das caatingas, a bandeira sagrada que reconduziam a Canudos. 


Os soldados não os encalçaram. Estavam exaustos. 

Uauá patenteava quadro lastimoso. Lavraram incêndios em vários pontos. Sobre os soalhos e balcões 
ensagüentados, à soleira das portas, pelas ruas e na praça, onde dardejava o sol, contorciam-se os feridos e 
estendiam-se os mortos. 

 

Entre estes, dezenas de sertanejos — 150 — diz a parte oficial do combate, número desconforme ante as dez 
mortes — um alferes, um sargento, seis praças e os dois guias — e dezesseis feridos da expedição. Apesar disto, 
o comandante, com setenta homens válidos, renunciou prosseguir na empresa. Assombrara-o o assalto. Vira de 
perto o arrojo dos matutos. Apavorara-o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas 
conseqüências o desanimavam. O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-se, 
inútil, ante os feridos, alguns graves. 

 

A retirada impunha-se, por tudo isto, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, idéia que fazia tremer 
aqueles triunfadores. Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram 
dali sob um sul ardentíssimo. 

 

Foi como uma fuga. 

 

A travessia para Juazeiro fez-se a marchas, em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, 
fardas em trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da derrota. Parecia que lhes vinham em 
cima, nos rastros, os jagunços. A população alarmou-se, reatando o êxodo. Ficaram de fogos acesos na estação 
da via-férrea todas as locomotivas. Arregimentaram-se todos os habitantes válidos, dispostos ao combate. E as 
linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja... 


Capítulo III 

 

Preparativos da reação 

 

O revés de Uauá requeria reação segura. 

 

Esta, porém, preparou-se sob extemporânea disparidade de vistas entre o chefe da força federal da Bahia e o 
governador do Estado. Ao otimismo deste, resumindo a agitação sertaneja a desordem vulgar acessível às 
diligencias policiais, contrapunha-se aquele, considerando-a mais séria, capaz de determinar verdadeiras 
operações de guerra. 

 

De tal modo, a segunda expedição organizou-se sem um plano firme, sem responsabilidades definidas, através de 
explicações recíprocas entre as duas autoridades independentes e iguais. Compôs-se a princípio de 100 praças e 8 
oficiais de linha, e 100 praças e 3 oficiais da força estadual. 

 

Assim constituída, seguiu, a 25 de novembro, para Queimadas, sob o comando de um major do 9.° Batalhão de 
Infantaria, Febrônio de Brito. 

 

Simultaneamente o comandante do Distrito apelava para o governo federal requisitando, para a aparelhar melhor, 
4 metralhadoras Nordenfeldt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250 soldados: 100 do 26.° Batalhão, de 
Aracaju, e 150 do 33.º, de Alagoas. 

 

Todo este aparato era justificável. Sucediam-se informações alarmantes, dando, dia a dia, realce à gravidade das coisas. À parte os exageros que houvessem, delas se colhia a grandeza do número de rebeldes e os sérios 
empecilhos inerentes à região selvagem em que se acoitavam. 

Estas novas, porém, baralhavam-nas sem número de versões contraditórias agravadas pelos interesses 
inconfessáveis de uma falsa política sobre a qual nos dispensamos de discorrer. 

Nem os apontaremos, embora largo tempo se perdesse, inútil, nesse agitar estéril de minudências desvaliosas — 
enquanto as linhas telegráficas vibravam da orla dos sertões para o Brasil inteiro, e permanecia, expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição, à frente de 243 praças de pré. 

Baldo de recursos e a braços com toda espécie de dificuldades; oscilando no desencontro das informações; ora 
em desalentos, afigurando-se-lhe insuperável a empresa; ora cheio de inesperadas esperanças no alcançar o fim 
que se propunha, dali abalou somente em dezembro, para Monte Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia 
novo reforço de cem praças. 

 

Esta avançada já ia adstrita a um plano de campanha. 

 

O comandante do Distrito compreendera a situação. Planeara atacar a revolta por dois pontos, fazendo avançar 
para um objetivo único não uma, mas duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9.° de Infantaria Pedro 
Nunes Tamarindo. Era um plano compatível com as circunstâncias da luta: estabelecer antes de tudo um cerco à 
distancia; bater os insurretos parceladamente e apertá-los em movimentos envolventes de forças pouco 
numerosas e adestradas. 

 

Realmente, libertas, estas, da morosidade própria às grandes massas, ajustar-se-iam melhor às escabrosidades do 
terreno, e do mesmo passo enfraqueceriam todas as causas de insucesso. Por outro lado, por mais original que 
seja o método combatente dos matutos — guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga! — 
rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer, permitindo dar aos grupos dispersos o 
centro unificador de um objetivo prefixado. Atacá-los, atraindo-os para diferentes pontos, é vencê-los. 

 

Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas 
sertanejas tinham organização militar correlativa — visando a formação sistemática de "tropas irregulares", que, 
sem o embaraço das unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem folgadamente no trançado das 
matas e sobre as asperezas do solo, auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares. 

 

Daí as façanhas que crivam a nossa história nos 17 e 18 séculos; o sem conto de revoltas debeladas ou quilombos 
dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de "capitães-do-mato", através de batalhas ferocíssimas e sem 


nome. Imitando o próprio sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam-nos graças à mesma norma 
que se traduz por uma fórmula paradoxal: — dividir para fortalecer. 

 

Devíamos, num transe igual, adotá-la. Era sem dúvida um recuo inevitável à guerra primitiva. Mas, quando não 
o impusesse o jagunço solerte e bravo, impunha-o a natureza excepcional que o defendia. 

 

Vejamos. 

 

A guerra das caatingas 

 

Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando-lhe o 
remanso com um retinir de esporas insolentes — e formulam leis para a guerra, pondo em equação as batalhas, 
têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios 
feldmarechais — guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque heróico trocado pelo lápis calculista — se 
ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens. 

Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território — orlando as fronteiras e quebrando o 
embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias — se tornam 
de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, aos dois beligerantes 
oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os 
desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema 
tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores. 

 

Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na 
luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas 
multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. 

 

E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível... 

 

As caatingas não o escondem apenas, amparam-no. 

 

Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende. Segue pelos caminhos em torcicolos, 
aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. 
Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das 
conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados. 

 

É que nada pode assustá-los. Certo, se os adversários imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em 
momentos. Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos 
finos quebrem o arranco das manobras prontas. E lá se vão, marchando, tranqüilamente heróicos... 

 

De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... 

 

A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre 
as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. 
Nada vêem. 

 

Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras. 

 

E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, 
irrompendo de toda a banda. 

 

Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto. Forma-se 
celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vareda estreita. 
Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente 
dentro das galhadas... 

 

Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projéteis dos atiradores invisíveis batendo em cheio 
nas fileiras. 

 

A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções enérgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, 
escalonando-se por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; — e o comandante resolve carregar 


contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o 
matagal numa expansão irradiante de cargas. Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas. Nesse 
momento surge o antagonismo formidável da caatinga. 

 

As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas 
impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que Ihes arrebata das mãos as armas, e não 
vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de 
baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do sol joeirados pelas árvores 
sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos 
como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos... 

Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm à toa, num labirinto de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras... 

Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem; —enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projetis tio adversário. 

De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu. 

As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem 
de recontro braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou perdidas; golpeados de gilvazes; 
claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos... 

 

Reorganiza-se a tropa. Renova-se a marcha. A coluna estirada a dois de fundo deriva pelas veredas em fora, 
estampando no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso 
das baionetas ondulantes. Alonga-se; afasta-se; desaparece. 

 

Passam-se minutos. No lugar da refrega , então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no 
máximo. Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos. . . 

 

Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa, indistinta, ao longe; e, sopesando as espingardas 
ainda aquecidas, tomam precípites pelas veredas dos pousos ignorados. 

 

A força vai prosseguindo mais cautelosa agora. 

 

Subjugam o animo dos combatentes, caminhando em silencio, o império angustioso do inimigo impalpável e a 
expectativa torturante dos assaltos imprevistos. O comandante rodeia-os de melhores resguardos: ladeiam-nos 
companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um esquadrão de 
praças escolhidas. 

 

No descair de encosta agreste, porém, escancela-se um sulco de quebrada que é preciso transpor. Felizmente as 
barrancas, esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de gramíneas; cactos esguios avultando 
raros, entre blocos em monte; ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca... 

 

Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhões. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela 
ladeira agreste. Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito já está toda a vanguarda, armas fulgurantes, feridas 
pelo sol, feito uma torrente escura transudando raios... 

 

E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la estacar de súbito. 

 

Passa, ressoando, uma bala. 

 

Desta vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto, parecendo feitos por um atirador único. 

 


A disciplina contém as fileiras; debela o pânico emergente; e, como anteriormente, uma seção se destaca e vai, 
encosta acima, rastreando a direção dos estampidos. O torvelinho dos ecos numerosos, porém, torna aquela 
variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa naqueles ares ardentes, continuam lentos, 
assustadores, seguros. 

 

Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores pesquisam-nos inutilmente. 

 

Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos. E quando as 
últimas armas desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, desenterra-se de montões de blocos — feito 
uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas — um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e 
rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o trágico caçador de brigadas... 

 

Estas seguem desenfluídas de todo. Daí por diante velhos lutadores têm pavores de crianças. Há estremecimentos 
em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas macegas. O exército sente na própria força a própria 
fraqueza. 

 

Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente 
sangrado pelo inimigo, que o assombra e que foge. 

 

A luta é desigual. A força militar decai a um plano interior Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua 
nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória. Enquanto o minotauro, impotente e 
possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, 
aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora 
agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo. 

 

Então — nas quadras indecisas entre a "seca" e o "verde", quando se topam os últimos fios de água no lodo das 
ipueiras e as últimas folhas amarelecidas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e foge ante o flagelo 
iminente, aquele segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a 
palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a jornada se alongue, e as habitações 
rareiem, e se extingam as cacimbas e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde sesteiam os 
vaqueiros fatigados. 

 

Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. 
Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados. 


O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, ouricuri virente, a mari 
elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás — sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro apenas lobriga a fosforescência azulada das cumanãs dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante... 

A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a 
marcha dos exércitos. 


Capítulo IV 

Autonomia duvidosa 

Ia-o demonstrar a campanha emergente... cópia mais ampla de outras que em todo o Norte têm aparecido, 
permitindo aquilatar-se de antemão tais dificuldades. 


As medidas planeadas pelo general Solon denotavam, portanto, exata previsão de sucessos semelhantes, na luta 
excepcionalíssima para a qual nenhum Jomini delineara regras, porque invertia até os preceitos vulgares da arte 
militar. 

 

Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem 
como o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias 
servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto 
da Bretanha, onde uma revolta, depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a 
Europa, só cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama, "as colunas infernais" do general Turreau — 
pouco numerosas mas céleres, imitando a própria fugacidade dos vendeanos, até encurralá-los num círculo de 
dezesseis campos entrincheirados. 

 

Não se olhou, porém, para o ensinamento histórico. 

 

É que se preestabelecera a vitória inevitável sobre a rebeldia sertaneja insignificante. 

 

O governo baiano afirmou "serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de 
fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo 
comandante do Distrito significavam mais prevenção que receio"; e aditava "não ser tão numeroso o grupo de 
Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens etc." 

 

Contravinha o chefe militar entendendo ter a repressão legal vingado o círculo das diligências policiais, 
cumprindo-lhe não mais prender criminosos, "mas extirpar o móvel de decomposição moral que se observava no 
arraial de Canudos em manifesto desprestígio à autoridade e às instituições", acrescentando que a força federal 
deveria seguir bastante forte para se subtrair à contingência de "retiradas prejudiciais e indecorosas". O governo 
estadual, porém, agindo dentro do elástico art. 6.° da Constituição de 24 de fevereiro, cerrou a controvérsia 
levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado, e repelindo a intervenção que lhe implicava 
incompetência para manter a ordem nos seus próprios domínios. Deslembrara-se que em documento público se 
confessara desarmado para suplantar a revolta e que, apelando para os recursos da União, justificava, 
naturalmente, a intervenção que procurava encobrir. 

 

Vinha serôdio o falar em soberania apisoada pelos turbulentos impunes. Ademais ninguém se iludia ante a 
situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente 
moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da novrose. A desordem local ainda, podia ser núcleo de 
uma conflagração em todo o interior do Norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior 
dos próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já à Bahia, 
mas ao país inteiro. 

 

Foi o que sucedeu. A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo norte 
e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível, miraculosamente erguida pelos 
exegetas constitucionais, a soberania do Estado... 

 

Para a resguardar melhor foi removido da Bahia o chefe da força militar, que traçara a sua atitude retilineamente 
pela lei. E somente depois disto a coluna do major Febrônio — até então oscilante entre Monte Santo e 
Queimadas e objetivando nas contramarchas as vacilações do governo — seguiu reforçada pela tropa policial e 
adstrita as deliberações do governo baiano. 

 

Perdera-se esterilmente o tempo — que o adversário aproveitara, aparelhando-se a um revide enérgico. Num raio 
de três léguas em roda de Canudos, fizera-se o deserto. Para todos os rumos e por todas as estradas e em todos os 
lugares, os escombros carbonizados das fazendas e dos pousos avultavam, insulando o arraial num grande 
círculo isolador, de ruínas. Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história. 


Travessia do Cambaio 

 

I. Monte Santo. Triunfos antecipados. 

 

II. Incompreensão da campanha. Em marcha para Canudos. 

 

III. O Cambaio. Baluartes sine calcii linimenti. Primeiro recontro. Episódio trágico. 

 

IV. Nos Tabuleirinhos. Segundo combate. A Legio Fulminata de João Abade. Novo milagre de Antônio 
Conselheiro. 

 

V. Retirada. 


VI. Procissão dos jiraus


Capítulo I 

 

Monte Santo 

 

No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo. 

 

O povoado de frei Apolônio de Todi ia, a partir daquela data, celebrizar-se como base das operações de todas as 
arremetidas contra Canudos. Era o que mais se avantajava por aqueles sertões em fora na direção do objetivo da 
campanha, permitindo, além disto, mais rápidas comunicações com o litoral, por intermédio da estação de 
Queimadas. 

 

A tais requisitos aliavam-se outros. 

 

Vimos-lhe em páginas anteriores a gênese tocante. 

 

Não dissemos, porém, que, criando-o, o estóico Anchieta do Norte aquilatara bem as condições privilegiadas do 
local. 

 

De fato, a vila — ereta no sopé da serrania de onde promana a única fonte perene da redondeza — contrasta, 
insulada, com a esterilidade ambiente. Decorre isto de sua situação topográfica. A sublevação de rochas 
primitivas que se alteiam aos lados, para o norte e para leste, levanta-se como anteparo aos ventos regulares, que 
até lá progridem, e torna-se condensador admirável dos escassos vapores que ainda os impregnam, graças ao 
resfriamento decorrente de uma ascensão repentina pelos flancos das serranias. Depõe-se, então, aqueles, em 
chuvas quase regulares, originando regímen climatológico mais suportável, a dois passos dos sertões estéreis 
para onde rolam, mais secos, os ventos, depois da travessia. 

 

De sorte que, enquanto em roda se desenrolam plainos desolados, num raio de alguns quilômetros partindo de 
Monte 

Santo se estende região incomparavelmente mais vivaz. Recortam-na pequenos cursos d"água resistentes às 
secas. Pelas baixadas, para onde descaem os morros, notam-se rudimentos de florestas, transmudando-se as 
caatingas em cerradões virentes; e o rio de Cariacá com seus tributários minúsculos, embora efêmero como os 
demais das cercanias, não se esgota de todo nas maiores secas: fraciona-se, retalhado em cacimbas reduzidas a 
imperceptíveis filetes deslizando entre pedras, mas permitindo ainda que resistam ao flagelo os habitantes 
convizinhos. 

 

É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem remansada, predileta aos que se aventuram naquele 
sertão bravio. Não surgia pela primeira vez na historia. Muito antes dos que agora o procuravam, outros 
expedicionários, por ventura mais destemerosos e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado, 
norteados por outros desígnios. Mas quer para os bandeirantes do século 17, quer para os soldados destes 
tempos, o lugar predestinado constituiu-se escala transitória e breve, mal relumbrando em acontecimentos de 
maior monta. Não deixa, contudo, de ser expressiva a sua função histórica, entre devassadores de sertão, 
distintos por opostos intuitos e desunidos por três séculos, porem tendo — como veremos — a afinidade dos 
mesmos rancores e das mesmas arrancadas violentas. 

 

Ali estacionara o pai de Robério Dias, Belchior Moreia, na sua rota atrevida "do rio Real para as serras da 
Jacobina pelo rio Itapicuru acima, buscando os sertões de Maçacará". E em torno desta "entrada" continuaram 
outras, orientadas pelos roteiros confusos, nos quais, todavia, o antigo nome da serra — Piquaraçá — se lê 
sempre, demarcando uma paragem benfazeja naqueles terrenos agros. 

 

Por isto centralizou, de algum modo, a primeira agitação feita em torno das lendárias "minas de prata", desde as 
pesquisas inúteis do Muribeca, que até lá chegara e não passara avante, "com pouco efeito e pouca diligência", 
até ao tenaz Pedro Barbosa Leal, acompanhando as trilhas de Moreia e estacionando por muitos dias na 
montanha, onde marcas indecifráveis denotavam a passagem de antecessores igualmente audazes. 

 

Passaram-se porém, os tempos. Ficou perdida no sertão a serrania misteriosa onde muitos imaginavam, talvez, a 
sede do el-dorado apetecido, ate que Apolônio de Todi a transformasse em templo majestoso e rude, como 
vimos. 

 

E hoje quem segue pelo caminho de Queimadas, trilhando um solo abrolhando cactos e pedras, ao divisá-la, das 
cercanias de Quirinquinquá, duas léguas aquém — estaca: volve em cheio pare o levante a vista deslumbrada, e 


acredita que o ondular dos ares referventes e a fascinação da luz lhe alteiam defronte, entre o firmamento claro e 
as chapadas amplas, uma miragem estonteadora e grande. 

 

A serra feita dessa massa de quartzito, tão própria às arquiteturas monumentais da terra, alteia-se, ao longe, 
acrescida a altitude pelas várzeas deprimidas em torno. Lança, retilínea, a linha de cumeadas. A vertente oriental 
cai, a pique, lembrando uma muralha, sobre o vilarejo. Este ali se encosta, sobre o socalco breve, humílimo, 
assoberbado pela majestade da montanha. 

 

Entretanto é por esta acima ate ao vértice que se prolonga, saindo da praça, a mais bela de sues ruas — a 
via-sacra dos sertões, macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde tem passado multidões sem conta em um 
século de romarias. A religiosidade ingênua dos matutos ali talhou , em milhares de degraus, coleante, em 
caracol pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de mais de dois quilômetros, como se 
construísse uma escada pare os céus... 

 

Esta ilusão é empolgante ao longe. 

 

Vêem-se as capelinhas alvas, que a pontilham a espaços,, subindo a principio em rampa fortíssima, derivando 
depois, tornejantes, à feição dos pendores; alteando-se sempre, eretas sobre despenhadeiros, perdendo-se nas 
alturas, cada vez menores, diluídas a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até à última, no alto... 

 

E quem segue pelo caminho de Queimadas, atravessando um esboço do deserto, onde agonize uma flora de 
gravetos — arbustos que nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos, cardos agarrados a pedras ao 
modo de tentáculos constritores, bromélias desabotoando em floração sanguinolenta — avança rápido, ansiando 
pela paragem que o arrebata. 

 

Chega; e não sofreia doloroso desapontamento. 

 

A estrada vai até à praça, retangular, em declive, de chão estriado de enxurros. No centro o indefectível barracão 
da feira tem, ao lado, pequena igreja, e de outro o único ornamento da vila — um tamarineiro, secular talvez. Em 
torno casas baixas e velhas; e, sobressaído, um sobrado único que seria mais tarde o quartel-general das tropas. 

 

Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para 
larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra. 

 

Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que 
assume a distancia, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, 
brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão 
brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de 
alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em 
ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que 
morre, desconhecida à historia, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas 
baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, tem todas a mesma forma — tetos 
deprimidos sobre quatro muros de barro — gizadas todas por esse estilo brutalmente chato a que tanto se 
afeiçoavam os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a 
linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas. 

 

Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que Ihe cria em roda — como um 
parêntesis naquele sertão aspérrimo — situação aprazível e ridente. 

 

A campanha incipiente ia agravar o seu aspecto. Menos que arraial obscuro, transformá-lo-ia em grandíssimo 
quartel acaçapado, envolto de casernas. 

 

Triunfos antecipados 

 

Ali acantonaram as 543 praças, 14 oficiais combatentes e 3 médicos — toda a "primeira expedição regular" 
contra Canudos. Era uma massa heterogênea de três cascos de batalhões, o 9.°, o 26.° e o 33.°, tendo, adidas, 
duzentas e tantas praças de policia e pequena divisão de artilharia, dois canhões Krupp 7 ½ e duas metralhadoras 
Nordenfeldt. 

 

Menos de uma brigada, pouco mais de um batalhão completo. 


 

Entretanto, afinados pelo otimismo oficial, as autoridades receberam os lutadores em triunfo, antes da batalha. 
Engalanou-se o vilarejo pobre, transfigurando-se, ataviado de bandeiras e ramagens, com o ornamento supletivo 
dos vivos fortes das fardas e irradiação das armas. 

 

E fez-se um dia de festa. A missão mais concorrida, a mais animada feira, jamais tiveram tanto brilho. Tudo 
aquilo era uma novidade estupenda. Ao chegarem da rota fatigante, rompendo, surpreendidos, pelas ruas cheias 
de combatentes, os vaqueiros amarravam o "campeão" à sombra do tamarineiro, na praça, e iam quedar-se, longo 
tempo, contemplando as "peças" em que tanto ouviam falar e nunca haviam visto, capazes de esboroar 
montanhas e abalar com um só tiro, mais forte que o de mil "roqueiras", o sertão inteiro. E aqueles titãs, 
enrijados pelos climas duros, estremeciam dentro das armaduras de couro considerando as armas portentosas da 
civilização. 

 

Galgavam, muitos, logo, os lombilhos retovados e largavam, transidos de susto, da vila, demandando a caatinga. 
Alguns volviam a toda a brida para o norte, tocando para Canudos. Ninguém os percebia. Na alacridade dos 
festejos, não se distinguiam os emissários solertes de Antônio Conselheiro — espiando, observando, indagando, 
contando o numero de praças, examinando todo o trem de guerra e desaparecendo depois, rápidos, 
precipitando-se para a aldeia sagrada. 

 

Outros ali ficavam, encapotados, contemplando tudo aquilo com ironia cruel, certos do preludio hilariante de um 
drama doloroso. O profeta não podia errar: a sua vitoria era fatal. 

 

Dissera-o — os invasores não veriam sequer as torres das igrejas sacrossantas. 

 

Acendiam-se recônditos altares. E o riso dos soldados, e o estrépito das botas, percutindo as calcadas, e o vibrar 
dos clarins, e os vivas entusiásticos das ruas coavam-se pelas paredes, penetravam as frestas das casas e iam 
perturbar, lá dentro, as preces abafadas dos fiéis genuflexos... 

 

No banquete, preparado na melhor vivenda, ao mesmo tempo se ostentava o mais simples e emocionante gênero 
de oratória — a eloqüência militar, esta eloqüência singular do soldado, que e tanto mais expressiva quanto é 
mais rude — feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras magicas — 
Pátria, Glória e Liberdade —ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes. Os 
rebeldes seriam destruídos a ferro e fogo... Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, 
rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos tabuleiros vastos, deixariam sulcos 
sanguinolentos. Era preciso um grande exemplo e uma lição. Os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, 
que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições, requeriam corretivo enérgico. Era 
preciso que saíssem afinal da barbaria em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela 
civilização adentro, a pranchadas. 

 

O exemplo seria dado. Era a convicção geral. Dizia-o a despreocupação e todo o arrebatamento feliz de uma 
população inteira; e a alegria ruidosa e vibrante dos oficiais e das praças; e toda aquela festa — ali — na véspera 
dos combates, a dois passos do sertão referto de emboscadas... 

 

À tarde grupos ruidosos salpintavam a praça. Derivavam pelos becos. Espalhavam-se pelas cercanias. Atraídos 
pela novidade de uma perspectiva rara, outros ascendiam a montanha pela ladeira sinuosa orlada de capelinhas 
brancas. 

 

Paravam nos "passos", refazendo-se para a ascensão exaustiva. Examinavam, curiosos, os registros e estampas, 
que pendiam as paredes, e os altares toscos; e subiam. 

 

No "alto da Santa Cruz", batidos pelas lufadas fortes do nordeste, consideravam em torno. 

 

Ali estava — defronte o sertão... 

 

Uma breve opressão salteava os mais tímidos; mas desaparecia prestes. Volviam tranqüilos para a vila, onde se 
acendiam as primeiras luzes, ao cair da noite... 

 

Decididamente a campanha começara bem auspiciada. 

 

Monte Santo antecipara-lhe as honras da vitória. 


Capítulo II 

 

Incompreensão da campanha 

 

Foi um mal. 

 

Sob a sugestão de um aparato bélico, de parada, os habitantes preestabeleceram o triunfo; invadida pelo contagio 
desta crença espontânea, a tropa, por sue vez, compartiu-lhes as esperanças. 

 

Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos. 

 

Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. Está nela o 
melhor estímulo dos que vencem. A historia militar e toda feita de contrastes singulares. Além disto a guerra é 
uma coisa monstruosa e ilógica em tudo. Na sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas 
inquinam-na todos os estigmas do banditismo original. Sobranceiras ao rigorismo da estratégia, aos preceitos da 
tática, à segurança dos aparelhos sinistros, a toda a altitude de uma arte sombria, que põe dentro da frieza de uma 
fórmula matemática o arrebentamento de um schrapnel e subordina a parábolas invioláveis o curve violento das 
balas, permanecem — intactas — todas as brutalidades do homem primitivo. E estas são, ainda, a vis a tergo dos 
combatentes. 

 

A certeza do perigo estimula-as. A certeza da vitoria deprime-as. 

 

Ora, a expedição ia, na opinião de toda a gente, positivamente — vencer. A consciência do perigo determinaria 
mobilização rápida e um investir surpreendedor com o adversário. A certeza do sucesso imobilizou-a quinze dias 
em Monte Santo. 

 

Analisemos o caso. O comandante expedicionário deixara em Queimadas grande parte de munições, para não 
protelar por mais tempo a marcha e impedir que os inimigos ainda mais se robustecessem. Assim, teve o intento 
de uma arremetida fulminante. Revoltado com as dificuldades que encontrara, entre as quais se notava quase 
completa carência de elementos de transporte, dispusera-se a ir celeremente ao couto dos rebeldes, embora 
levando apenas a munição que as praças pudessem carregar nas patronas. Isto, porém, não se realizou. De sorte 
que a partida rápida de uma localidade condena a demora inconseqüente na outra. Esta somente se justificaria se, 
ponderando melhor a seriedade das coisas, ele a aproveitasse para agremiar melhores elementos, fazendo vir de 
Queimadas o resto dos trens de guerra. Os inconvenientes de uma longa pausa, justificá-los-iam as vantagens 
adquiridas. Ganharia em forca o que perdesse em celeridade. Às aventuras de um plano temerário, resumindo-se 
numa investida e num assalto, substituiria operação mais lenta e mais segura. Não fez isto. Fez o inverso: depois 
de longa inatividade em Monte Santo, a expedição partiu ainda menos aparelhada do que quando ali chegara 
quinze dias antes, abandonando, ainda uma vez, parte dos restos de um trem de guerra já muitíssimo reduzido. 
Entretanto, contravindo ao modo de ver dos propagandistas de uma vitoria fácil, chegavam constantes 
informações sobre o numero e recursos dos fanáticos. E no disparatado das opiniões — entre as que elevavam 
aquele, no máximo, a quinhentos. e as que o firmavam, decuplicando-o, no mínimo, em cinco mil, cumpria 
inferir-se uma média razoável. Além disto, de envolta num sussurrar de cautelosas denuncias e mal boquejados 
avisos, esboçava-se a hipótese de uma traição. Apontavam-se influentes mandões locais, cujas velhas relações 
com o Conselheiro sugeriam, veemente, a presunção de que o estivessem auxiliando a socapa, fornecendo-lhe 
recursos e instruindo-o dos menores movimentos da investida. Ainda mais, sabia-se que a tropa, quando mesmo 
o maior sigilo rodeasse as deliberações, seria, no avançar, precedida e ladeada pelos espias espertos do inimigo, 
muitos dos quais, verificou-se depois, dentro da própria vila acotovelavam os expedicionários. Uma surpresa, 
depois de tantos dias perdidos e em tais circunstâncias, era inadmissível. Em Canudos saberiam da estrada 
escolhida pare a linha de operações com antecedência bastante pare se fortificarem os seus trechos mais difíceis, 
de sorte que, reeditando o cave de Uauá, o alcance do arraial preestabelecia a preliminar de um combate em 
caminho. Assim a partida da base de operações, do modo por que se fez, foi um erro de oficio. A expedição 
endireitava pare o objetivo da lute como se voltasse de uma campanha. Abandonando novamente parte das 
munições, seguia como se, pobre de recursos em Queimadas, paupérrima de recursos em Monte Santo, ela fosse 
abastecer-se — em Canudos... Desarmava-se à medida que se aproximava do inimigo. Afrontava-se com o 
desconhecido, ao acaso, tendo o amparo único da fragilidade de nossa bravura impulsiva. 

 

A derrota era inevitável. 

 

Porque a tais deslizes se aditaram outros, denunciando a mais complete ignorância da guerra. 

 


Revela-a a ordem do dia organizadora das forças atacantes. 

 

Escassa como uma ordem qualquer distribuindo contingentes, não há rastrear-se nela a mais fugaz indicação 
sobre o desdobramento, formaturas ou manobras das unidades combatentes, consoante os vários caves fáceis de 
prever. Não há uma palavra sobre inevitáveis assaltos repentinos. Nada, afinal, visando uma distribuição de 
unidades, de acordo com os caracteres especiais do adversário e do terreno. Adstrito a uns rudimentos de tática 
prussiana, transplantados as nossas ordenanças, o chefe expedicionário, como se levasse o pequeno corpo de 
exercito pare algum campo esmoitado da Bélgica, dividiu-o em três colunas, parecendo dispô-lo, de antemão, 
pare recontros em que lhe fosse dado entrar repartindo em atiradores, reforço e apoio. Nada mais, além desse 
subordinar-se a uns tantos moldes rígidos de velhos ditames clássicos de guerra. 

 

Ora, estes eram inadaptáveis no momento. 

 

Segundo o exato conceito de Von der Goltz, qualquer organização militar deve refletir alguma coisa do 
temperamento nacional. Entre a incoercível tática prussiana, em que é tudo a precisão mecânica da bala, e a 
nervosa tática latina, em que é tudo arrojo cavalheiresco da espada, tínhamos a esgrima perigosa com os 
guerrilheiros esquivos cuja força estava na própria fraqueza, na fuga sistemática, num vaivém doidejante de 
arrancadas e recuos, dispersos, escapantes do seio da natureza protetora. Eram por igual inúteis as cargas e as 
descargas. Contra tais antagonistas e num tal terreno não havia supor-se a probabilidade de se estender a mais 
apagada linha de combate. Não havia até a possibilidade de um combate no rigorismo técnico do termo. A luta, 
digamos com mais acerto, uma monteria a homens, uma batida brutal em torno à ceva monstruosa de Canudos, 
ia reduzir-se a ataques ferozes, a esperas ardilosas, a súbitas refregas, instantâneos recontros em que fora absurdo 
admitir-se que se pudessem desenvolver as fases principais daquele, entre os dois extremos dos fogos violentos, 
que o iniciam, o epílogo delirante das cargas de baioneta. Função do homem e do solo, aquela guerra devia 
impulsionar-se a golpes de mão de estrategista revolucionário e inovador. Nela iam surgir, tumultuariamente, 
fundidas, penetrando-se, simultâneas, todas as situações, naturalmente distintas, em que se pode encontrar 
qualquer força em operações — a de repouso, a de marcha e a de combate. O exercito marchando pronto a 
encontrar o inimigo em todas as voltas dos caminhos, ou a vê-lo romper dentre as próprias fileiras surpreendidas, 
devia repousar nos alinhamentos da batalha. 

 

Nada se deliberou quanto a condições tão imperiosas. O comandante limitou-se a formar três colunas e a ir para 
a frente, pondo diante da astúcia sutil dos jagunços a potência ronceira de três falanges compactas — homens 
inermes carregando armas magníficas. Ora, um chefe militar deve ter algo de psicológico. Por mais mecanizado 
que fique o soldado pela disciplina, tendendo para esse sinistro ideal de homúnculo, feito um feixe de ossos 
amarrados por um feixe de músculos, energias inconscientes sobre alavancas rígidas, sem nervos, sem 
temperamento, sem arbítrio, agindo como um autômato pela vibração dos clarins, transfiguram-no as emoções da 
guerra. E a marcha nos sertões desperta-as a todo o instante. Trilhando veredas desconhecidas, envolto por uma 
natureza selvagem e pobre, o nosso soldado, que é corajoso na frente do inimigo, acovarda-se, invadido de 
temores, todas as vezes que este, sem 

aparecer, se revela, impalpável dentro das tocaias. Assim, se um tiroteio das guardas de frente se constitui, na 
campanha, aviso salutar ao resto dos lutadores, naquelas circunstâncias anormais era um perigo. Quase sempre 
as seções se baralhavam, sacudidas pelo mesmo espanto, numa desordem súbita, tendendo a um refluxo 
instintivo para a retaguarda. 

 

Era natural que fossem previstas estas conjunturas inevitáveis. Para atenuá-las, as diversas unidades deviam 
seguir com o máximo afastamento, embora agissem, no primeiro momento, completamente isoladas. Este 
dispositivo, além de lhes altear o ânimo, pela certeza de um pronto auxílio por parte das que fora da ação 
imediata do inimigo podiam acometê-lo levando a força moral do ataque, evitava o alastramento do pânico e 
facultava um desdobramento desafogado. Embora a direção dos vários movimentos escapasse da autoridade de 
um comando único, substituída pela iniciativa mais eficaz dos comandantes de pequenas unidades, agindo 
autônomas de acordo com as circunstancias do momento, impunha-se largo fracionamento das colunas. Era 
parodiar a norma guerreira do adversário, seguindo-a paralelamente, em traçados mais firmes e opondo-lhe a 
mesma dispersão, única capaz de amortecer as causas de insucesso de anular o efeito de repentinas emboscadas, 
de criar melhores recursos de reação, e de acarretar, ao cabo, a vitória, do único modo por que esta poderia ser 
alcançada, feito uma soma de sucessivos ataques parciais. 

 

Em síntese, as forcas, dispersas em marcha, a partir da base das operações, deviam ir, a pouco e pouco, 
apertando os fanáticos, concentrar-se em Canudos. 

 


Fez-se sempre o contrário. Partiam unidas, em colunas dentro da estrutura maciça das brigadas. Avançavam 
emboladas pelos caminhos em fora. Iam dispersar-se, repentinamente — em Canudos... 

 

Em marcha para Canudos 

 

Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897. 

 

Tomaram pela estrada do Cambaio. 

 

É a mais curta e a mais acidentada. Ilude a princípio, perlongando o vale do Cariacá, numa cinta de terrenos 
férteis sombreados de cerradões que prefiguram verdadeiras mates. 

 

Transcorridos alguns quilômetros, porem, acidenta-se; perturba-se em trilhas pedregosas e torna-se menos 
praticável à medida que se avizinha do sopé da serra do Acaru. Dali por diante se encurva pare leste 
transmontando a serrania por três ladeiras sucessivas, até galgar o sitio da Lajem de Dentro, alçado trezentos 
metros sobre o vale. 

 

Gastaram-se dois dias pare atingir-se este ponto. A artilharia reduzia a marcha. Ascendiam penosamente os 
Krupps, enquanto os sapadores na frente reparavam a estrada, desentulhando-a e destocando-a, ou abrindo 
desvios contornantes, evitando fortíssimos declives. E a tropa, que tinha as condições de sucesso na mobilidade, 
paralisava-se presa no travão daquelas massas metálicas. 

 

Transposta a Lajem de Dentro e a divisória das vertentes do Itapicuru e do Vaza-Barris, a estrada desce. 
Torna-se, porem, mais seria a travessia, metendo-se no acidentado de contrafortes, de onde fluem os tributários 
efêmeros do Bendegó. A bacia de captação deste desenha-se, então, ligando as abas de três serras, a do Acaru, a 
Grande e do Atanásio, que se articulam em desmedida curve. A expedição entrou por aquele vale fundo como 
uma furna ate a um outro sitio. Ipueiras, onde acampou. Foi uma temeridade. O acampamento, envolto de 
fraguedos, centralizaria os fogos do inimigo, se este aparecesse pelo topo dos morros. Felizmente não chegavam 
até lá os jagunços. De sorte que na antemanhã seguinte, rumo firme ao norte, a tropa prosseguiu pare Penedo, 
salve de uma posição dificílima. 

 

Tinha meio caminho andado. As estradas pioravam crivadas de veredas, serpeando em morros, alçando-se em 
rampas, caindo em grotões, desabrigadas, sem sombras... 

 

Até Mulungu, duas léguas além de Penedo, os sapadores estradaram o solo pare os canhões, e a jornada 
remorava-se no passo tardo da divisão que os guarnecia. 

 

Entretanto era imprescindível a máxima celeridade. Tornava-se suspeita a paragem: restos de fogueiras a 
margem do caminho e vivendas incendiadas davam sinais do inimigo . Em Mulungu, à noite, eles se tornaram 
evidentes. Alarmou-se o acampamento. Tinham-se distinguido, próximos, encobertos na sombra, rondando em 
torno, vultos fugazes, de espias. Os soldados dormiram em armas. E no amanhecer de 17 a expedição que se 
encravara nas montanhas, muito aquém ainda de um objetivo que podia ser atingido em três dias de marcha, 
começou de ser terrivelmente torturada. 

 

Acabaram-se as munições de boca. Foram abatidos os dois últimos bois para quinhentos e tantos combatentes. 
Isto valia por um combate perdido. A feição da luta agravava-se em plena marcha, antes de se dar um tiro. 
Prosseguir para Canudos, poucas léguas distante, era quase a salvação. Era lutar pela vida. 

 

Completando o transe, desapareceram à noite, em grande parte, os cargueiros contratados em Monte Santo. E, 
sob o pretexto de providenciar para urgente remessa de munições, o comissário daquela vila largou para 
ignoradas paragens — e não voltou. 

Alguém, entretanto, salvou a lealdade sertaneja, o guia Domingos Jesuíno. Conduziu as tropas para a frente até ao rancho das Pedras, onde acamparam. 

Estavam cerca de duas léguas de Canudos. 


E à noite um observador que do acampamento atentasse para o norte, distinguiria talvez, escassas, em bruxuleios longínquos, fulgindo e extinguindo-se, intermitentes, muito altas, como estrelas rubras entre nevoeiros, algumas luzes vacilantes. Demarcavam as posições inimigas. 


 

Ao alvorecer, desdobraram-se imponentes. 


Capítulo III 

 

O Cambaio 

 

As massas do Cambaio amontoavam-se na frente, dispostas de modo caprichoso, fundamente recortadas de 
gargantas longas e circulantes como fossos, ou alteando-se em patamares sucessivos, lembrando desmedidas 
bermas de algum baluarte derruído, de titãs. 

 

A imagem é perfeita. São vulgares naquele trato dos sertões esses aspectos originais da terra. As lendas das 
"cidades encantadas", na Bahia, que tem conseguido dar à fantasia dos matutos o complemento de sérias 
indagações de homens estudiosos, originando pesquisas que fora descabido relembrar, não tem outra origem . 

 

E não se acredite que as exagere a imaginação daquelas gentes simples, iludindo tanto a expectativa dos graves 
respigadores que por ali têm perlustrado, levando ansioso anelo de sabias sociedades ou institutos, onde se 
debateu o cave interessante. Frios observadores atravessando escoteiros aquele estranho vale do Vaza-Barris tem 
estacado, pasmos, ao defrontar: 

 

"serras de pedra naturalmente sobrepostas formando fortalezas e redutos inexpugnáveis com tal perfeição que 
parecem obras de arte" . 

 

Às vezes esta ilusão se amplia. 

 

Surgem necrópoles vastas. Os morros, cuja estrutura se desvenda em pontiagudas apófises, em rimas de blocos, 
em alinhamentos de penedias, caprichosamente repartidos, semelham, de fato, grandes cidades mortas ante as 
quais o matuto passe, medroso, sem desfitar a espora dos ilhais do cavalo em disparada, imaginando lá dentro 
uma população silenciosa e trágica de almas do outro mundo... 

 

São deste tipo as "casinhas" que se vêem pare lá do Aracati, perto da estrada de Jeremoabo a Bom Conselho; e 
outras, despontando por todos aqueles lugares e imprimindo um traço singularmente misterioso naquelas 
paisagens melancólicas. 

 

Baluartes sine calcii linimenti 

 

A serra do Cambaio é um desses monumentos rudes 

 

Certo ninguém lhe pode enxergar geométricas linhas de cortinas ou parapeitos bojando em redentes circuitados 
de fossos. Eram piores aqueles redutos bárbaros. Erigiam-se à têmpera dos que os guarneciam. E à distância, 
indistintos os ressaltos das pedras e desfeitos os vincos das quebradas, o conjunto da serra incute, de fato, no 
observador, a impressão de topar, de súbito, fraldejando-a, subindo por ela em patamares sucessivos e estendidas 
pelas vertentes, as barbacãs de velhíssimos castelos, onde houvessem embatido, outrora, assaltos sobre assaltos 
que os desmantelaram e aluíram, reduzindo-os a montões de silhares em desordem, mal aglomerados em 
enormes hemiciclos, sucedendo-se em renques de plintos, e torres, e pilastras truncadas, avultando mais ao longe 
no aspecto pinturesco de grandes colunatas derruídas... 

 

Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas. Surge, disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas 
súbitas e insolações intensas, disjungida e estalada — num desmoronamento secular e lento. 

 

A estrada pare Canudos não a torneja. Ajusta-se-lhe, retilínea, às ilhargas, subindo em declive, constrangida 
entre escarpas, mergulhando por fim, feito um túnel, na angustura de um desfiladeiro. A tropa por ali enfiou... 

 

Naquela hora matinal a montanha deslumbrava. Batendo nas arestas das lajens em pedaços, os raios do sol 
refrangiam em vibrações intensas alastrando-se pelas assomadas, e dando a ilusão de movimentos febris, 
fulgores vivos de armas cintilantes, como se em rápidas manobras forças numerosas ao longe se apercebessem 
para o combate. Os binóculos, entretanto, percorriam inutilmente as encostas desertas. O inimigo traía-se apenas 
na feição ameaçadora da terra. Encantoara-se. Rentes com o chão, rebatidos nas dobras do terreno, entaliscados 
nas crastas — esparsos, imóveis, expectantes —, dedos presos aos gatilhos dos clavinotes, os sertanejos 
quedavam em silencio, tenteando as pontarias, olhos fitos nas colinas ainda distantes, embaixo, marchando após 
os exploradores que esquadrinhavam cautelosamente as cercanias. 

 


Caminhavam vagarosamente. Atulhavam as primeiras ladeiras cortadas à meia encosta. Seguiam devagar, sem 
aprumo, empurradas pelos canhões onde se revezavam soldados ofegantes em auxílio aos muares impotentes à 
tração vingando aqueles declives. 

 

E foi nesta situação que as surpresou o inimigo. 

 

Dentre as frinchas, dentre os esconderijos, dentre as moitas esparsas, aprumados no alto dos muramentos rudes, 
ou em despenhos ao viés das vertentes — apareceram os jagunços, num repentino deflagar de tiros. 

 

Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, de baixo das trincheiras do Cambaio. 

 

Primeiro recontro 

 

O recontro fez-se em vozeria em que, através dos costumeiros vivas ao "Bom Jesus" e ao "nosso Conselheiro", 
rompiam brados escandalosos de linguagem solta, apostrofes insolentes, e entre outras uma frase desafiadora que 
no decorrer da campanha soaria invariável como um estribilho irônico: 

 

"Avança ! fraqueza do governo !" 

 

Houve uma vacilação em toda a linha. A vanguarda estacou e pareceu recuar. Conteve-a, porém, uma voz 
imperiosa. O major Febrônio rompeu pelas fileiras alarmadas e centralizou a resistência — em replica 
fulminante e admirável, atentas as desvantajosas condições em que se realizou. Conteirados rapidamente, os 
canhões bombardearam os matutos a queima-roupa, e estes, vendo pelo primeira vez aquelas armas poderosas, 
que decuplavam o efeito despedaçando pedras, debandaram, tontos, numa diversão instantânea. Aproveitando 
este refluxo foi feita a investida, iniciada, de pronto, pelas cento e tantas praças do 33.° de Infantaria. 
Tropeçando, escorregando nas lajens, contornando-as, ou transpondo-as aos saltos, insinuando-se pelos talhados, 
atirando a esmo para a frente, as praças arremeteram com as rampas; e logo depois a linha do assalto se estirou, 
tortuosa e ondulante, extremada a direita pelo 9.º e à esquerda pelo 16.° e a policia baiana. 

 

O combate generalizou-se em minutos, e, como era de prever, as linhas romperam-se de encontro aos obstáculos 
do terreno. Foi um avançar em desordem. Fracionados, galgando penhascos a pulso, carabinas presas aos dentes 
pelas bandoleiras, ou abordoando-se às armas, os combatentes arremeteram em tumulto — sem o mínimo 
simulacro de formatura, confundidos batalhões e companhias—, vagas humanas raivando contra os morros, num 
marulho de corpos, arrebentando em descargas, espadanando brilhos de aço, e estrugindo em estampidos sobre 
que passavam, estrídulas, as notas dos clarins soando a carga. 

 

Embaixo, na ladeira em que ficara a artilharia, os animais de tração e os cargueiros, espavoridos pelas balas, 
partindo os tirantes, sacudindo fora canastras e bruacas, desapareciam a galope ou tombavam pelas taludes 
íngremes. Acompanhou-os o resto dos tropeiros, fugindo, surdos às intimativas feitas com revolveres 
engatilhados, e agravando o tumulto. 

 

No alto, mais longe, pelo teso da serra, reapareciam os sertanejos. Pareciam dispostos em duas sortes de 
lutadores: os que se agitavam, velozes, surgindo e desaparecendo, às carreiras, e os que permaneciam firmes nas 
posições alterosas. A cavaleiro do assalto, estes iludiam de modo engenhoso a carência de espingardas e o lento 
processo de carregamento das que possuíam. Para isto se dispunham em grupos de três ou quatro rodeando a um 
atirador único, pelas mãos do qual passavam, sucessivamente, as armas carregadas pelos companheiros 
invisíveis , sentados no fundo da trincheira . De sorte que se alguma bala fazia baquear o clavinoteiro, substituía-
o logo qualquer dos outros. Os soldados viam tombar, mas ressurgir imediatamente, indistinto pelo fumo, o 
mesmo busto, apontando-lhes a espingarda. Alvejavam-no de novo. Viam-no outra vez cair, de bruços, baleado 
Mas viam outra vez erguer-se, invulnerável, assombroso terrível, abatendo e aprumando-se, o atirador fantástico. 

 

João Grande 

 

Este ardil foi logo descoberto pelas diminutas frações atacantes que se avantajaram ate às canhoneiras mais altas. 
Chegaram ali esparsas. A fugacidade do inimigo e o terreno davam por si mesmos a tropa distribuição tática 
mais própria, circunstância que, aliada ao pequeno alcance das armas daquele, tornara a expedição quase indene. 
Os únicos tropeços a escalada eram as asperezas do solo. As cargas amorteciam-se nas escarpas. Não as 
esperavam os jagunços. Certos da inferioridade de seu armamento bruto, pareciam desejar apenas que ali 
ficassem, como ficaram, a maior parte das balas destinadas a Canudos. E falseavam a peleja franca. Via-se entre 
eles, sopesando o clavinote curto, um negro corpulento e ágil. Era o chefe, João Grande. Desencadeava as 


manobras, estadeando ardilezas de facínora provecto nas correrias do sertão.... Imitavam-lhe os movimentos, as 
carreiras, os saltos, as figurações selvagens, os sertanejos amotinados — num vaivém de avançadas e recuos, ora 
dispersos, ora agrupados, ou desfilando em fileiras sucessivas, ou repartindo-se extremamente rarefeitos; e a 
rojões, rolantes pelos pendores, subindo, descendo, atacando, fugindo, baqueando trespassados de balas, muitos; 
mal feridos, outros, em plena descida, e rolando até ao meio das praças, que os acabavam a coice de armas. 

 

Desapareciam inteiramente, às vezes. 

 

Os projetis das mannlichers estralavam à toa na ossamenta rígida da serra. As seções avançadas ascendiam, 
porém, mais rápidas, pelas barrancas; conquistando o terreno, até que outra irrupção repentina do adversário Ihes 
tomasse a frente, ou as aferrasse de soslaio. Algumas, então, paravam. Algumas recuavam mesmo, tolhidas de 
espanto, sem que as animassem oficiais acobarbados, cujos nomes pouparam as partes oficiais, mas não os 
comentários acerbos dos companheiros. A maior parte regia. Rompia o espingardeamento à queima-roupa sobre 
os fanáticos dizimando-os, espalhando-os, em grandes correrias pelos cerros. 

 

Por fim o rude cabecilha predispô-los, ao que se figura, a recontro decisivo, braço a braço. O seu perfil de gorila 
destacou-se temerariamente à frente de um bando de súbito congregado. Num belo movimento heróico avançou 
sobre a artilharia. Cortou-lhe, porem, o passo a explosão de uma lanterneta estraçoando-o e aos caudatários mais 
próximos, enquanto os demais fugiam para as posições primitivas de envolta, agora, com as avançadas da tropa. 
Contingentes misturados de todos os corpos saltavam afinal dentro das ultimas trincheiras à direita, perdendo o 
oficial que até lá os levara, Venceslau Leal. 

 

Estava conquistada a montanha após três horas de conflito. A vitoria, porem, resultava da coragem cega junta à 
mais completa indisciplina de fogo — e compreende-se que mais tarde a ordem do dia relativa ao feito desse 
preeminente lugar as praças graduadas. Os seus cabos de guerras foram os cabos de esquadra. Sobre os jagunços 
em fuga confluíram cargas em desordem: soldados em grupos, turbas sem comando, disparando à toa as 
carabinas, num fanfarrear irritante e numa alacridade feroz de monteiros no último lance de uma batida a 
javardos. 

 

Os jagunços escapavam-se-lhes adiante. Perseguiram-nos. 

 

A artilharia, embaixo, começou a rodar, puxada a pulso, pelas ladeiras acima. 

 

Realizara-se a travessia; e, tirante o dispêndio de munições, eram poucas as perdas—quatro mortos e vinte e 
tantos feridos. Em troca os sertanejos deixaram 115 cadáveres, contados rigorosamente. 

 

Episódio trágico 

 

Fora uma hecatombe Cumulou-a um episódio trágico. A algara tumultuária teve um desfecho teatral. 

 

Foi no volver das últimas bicadas da serra... 

 

Ali sobre barranca agreste, avergoada de algares, se alteava, oblíqua e mal tocando por um dos extremos o solo, 
imensa lajem presa entre duas outras que a sustinham pelo atrito, semelhando um dolmem abatido. Este abrigo 
coberto tinha, na frente, a barbacã de um muro de rocha viva. Nele se acoitaram muitos sertanejos—cerca de 
quarenta, segundo um espectador do quadro —provavelmente os que possuíam as derradeiras cargas dos 
trabucos. 

 

A terra protetora dava aos vencidos o último reduto. 

 

Aproveitaram-no. Abriam sobre os perseguidores um tiroteio escasso, e fizeram-nos estacar um momento, 
fazendo parar, mais longe, a artilharia que se aprestou a bombardear o pequeno grupo de temerários. 

 

O bombardeio reduziu-se a um tiro. A granada partiu levemente desviada do alvo, e foi arrebentar numa das 
junturas em que se engastava a pedra. Dilatou-a. Abriu-a, de alto a baixo. 

 

E o bloco despregado desceu pesadamente, em baque surdo, sobre os infelizes, sepultando-os... 

 

Reatou-se a marcha. Adiante, numa exaustão crescente, percebida no rarear dos tiros, os últimos defensores do 
Cambaio tocavam para Canudos. Desapareceram, por fim. 


Capítulo IV 

 

Nos Tabuleirinhos 

 

As colunas chegaram à tarde em Tabuleirinhos, quase a orla do arraial, e não prosseguiram aproveitando o 
ímpeto da marcha perseguidora. Combalidos da refrega e famintos desde a véspera, tiveram apenas abrandada a 
sede na água impura da lagoa minúscula do Cipó, e acamparam. Fizeram-no, porém, com o desleixo das fadigas 
acumuladas e, talvez, também com a ilusão enganadora do triunfo recente. De sorte que não pressentiram, em 
torno, a sobre-rolda dos jagunços. Porque a nova da investida chegara ao arraial com os foragidos; e para quebrar 
o ímpeto do invasor sobrestante , grande numero de lutadores de lá partiram. Meteram-se, imperceptíveis, pelas 
caatingas; e aproximaram-se do acampamento. 

 

À noite circularam-no. A tropa adormeceu sob a guarda terrível do inimigo.. 

 

Segundo combate 

 

Ao amanhecer, porém, nada lho revelou; e, formadas cedo, as colunas dispuseram-se ao último arranco sobre o 
arraial, depois de um quarto de hora e marche-marche sobre o terreno, que ali é desafogado e chão. 

 

Mas antes de abalarem sobreveio ligeiro contratempo. Um schrapnel emperrara na alma de um dos canhões 
resistindo a todos os esforços pare a extração. Adotou-se, então, o melhor dos alvitres: disparar o Krupp na 
direção provável de Canudos. 

 

Seria uma aldravada batendo às portas do arraial, anunciando estrepitosamente o visitante importuno e perigoso. 

 

De fato, o tiro partiu... E a tropa foi salteada por toda a banda! Reeditou-se o episódio de Uauá. Abandonando as 
espingardas imperfeitas pelos varapaus, pelos fueiros dos carros, pelas foices, pelas forquilhas, pelas aguilhadas 
longas e pelos facões de folha larga, os sertanejos enterreiraram-na, surgindo em grita, todos a um tempo, como 
se aquele disparo lhes fosse um sinal prefixo para o assalto. 

 

Felizmente os expedicionários, em ordem de marcha, tinham prontas as armas para a réplica, que se realizou 
logo em descargas rolantes e nutridas. 

 

Mas os jagunços não recuaram. O arremesso da investida jogara-os dentro dos intervalos dos pelotões. E pela 
primeira vez os soldados viam, de perto, as faces trigueiras daqueles antagonistas, até então esquivos, afeitos às 
correrias velozes nas montanhas... 

 

A primeira vítima foi um cabo do 9.°. Morreu matando. 

 

Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro. 

 

A onda assaltante passou sobre os dois cadáveres. 

 

Tomara-lhe a frente um mamaluco possante — rosto de bronze afeado pela pátina das sardas —, de envergadura 
de gladiador sobressaindo no tumulto. Este campeador terrível ficou desconhecido à história. Perdeu-se-lhe o 
nome . Mas não a imprecação altiva que arrojou sobre a vozeria e sobre os estampidos, ao saltar sobre o canhão 
da direita, que abarcou nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro: 

 

"Viram, canalhas, o que é ter coragem ? !" 

 

A guarnição da peça recuara espavorida, enquanto ela rodava, arrastada a braço, apresada. 

 

Era o desastre iminente. 

 

Avaliou-o o comandante expedicionário, que tudo indica ter sido o melhor soldado da própria expedição que 
dirigia. Animou valentemente os companheiros atônitos e, dando-lhes o exemplo, precipitou-se contra o grupo. E 
a luta travou-se braço a braço, brutalmente, sem armas, a punhadas, quase surda: um torvelinho de corpos 
enleados, de onde se difundiam estertores de estrangulados, ronquidos de peitos ofegantes, baques de quedas 
violentas... 

 


O canhão retomado volveu à posição primitiva. As coisas, porém, não melhoraram. Apenas repelidos os 
jagunços, num retroceder repentino que não era uma fuga, mas uma negaça perigosa, fervilhavam no matagal 
rarefeito, em roda: vultos céleres, fugazes, indistintos, aparecendo e desaparecendo nos claros das galhadas. 
Novamente esparsos e intangíveis, punham, ressoantes, sobre os contrários, os projetis grosseiros — pontas de 
chifre, seixos rolados, e pontas de pregos — de sua velha ferramenta da morte, desde muito desusada . 
Renovavam o duelo à distancia, antepondo as espingardas de pederneira e os trabucos de cano largo às 
mannlichers fulminantes. Volviam ao sistema habitual de guerra, o que era delongar indefinidamente a ação, 
dando-lhe um caráter mais sério que o do ataque violento anterior, fazendo-a derivar cruelmente monótona, sem 
peripécias, na iteração fatigante dos mesmos incidentes, até ao esgotamento completo do adversário que, 
relativamente incólume, cairia afinal exausto de os bater, vencido pelo cansaço de minúsculas vitórias, num 
asfaltamento trágico de algozes enfastiados de matar; punhos amolecidos e frouxos pelo multiplicado dos golpes; 
forças perdidas em arremessos doidos contra o vácuo. 

 

A situação desenhou-se insanável. 

 

Restava aos invasores um recurso em desespero de causa: o avançar aforradamente, deslocando o campo do 
combate, e cair sobre o arraial, assaltantes e assaltados, tendo às ilhargas os guerrilheiros atrevidos, e talvez na 
frente, antes da entrada daquele, outros reforços tolhendo-lhes o passo. Mas, nesse pelejar em marcha de três 
quilômetros, as munições, prodigamente gastas na façanha prejudicial do Cambaio, talvez se extinguissem em 
caminho e não podia alvitrar-se o meio extremo de se ultimar a empresa a choques de armas brancas, ante a 
sobrecarga muscular dos soldados famintos e combalidos, a que se aditavam cerca de setenta feridos, 
agitando-se, inúteis, na desordem. 

 

Estava, aliém disto, excluída a hipótese eficaz de um bombardeio preliminar: restavam apenas vinte litros de 
artilharia. 

 

A retirada impô-se urgente e inevitável. Reunida em plena refrega a oficialidade, o comandante definiu-lhe a 
situação e determinou que optasse por uma das pontas do dilema: o prosseguimento da luta até ao sacrifício 
completo ou o seu abandono imediato. Foi aceita a última sob a condição expressa de não se deixar uma única 
arma, um único ferido e não ficar um único cadáver insepulto. 

 

Este recuo, entretanto, era de todo contraposto aos resultados diretos do combate. Como na véspera, as perdas 
sofridas de um e outro lado estavam fora de qualquer paralelo. A tropa perdera apenas quatro homens, excluídos 
trinta e tantos feridos, ao passo que os contrários, desconhecidos o número dos últimos, foram dizimados. 

 

Um dos médicos contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da lagoa do Cipó e o 
sol —batendo de chapa na sua superfície, destacava-a sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como 
uma nódoa amplíssima, de sangue... 

 

A Legio Fulminata de João Abade 

 

A retirada foi a salvação. Mas o investir de arranco com o arraial, arrostando tudo, talvez fosse a vitória. 

 

Desvendemos — arquivando depoimentos de testemunhas contestes — um dos casos originais dessa campanha. 
Algum tempo depois de travado o conflito em Tabuleirinhos, os habitantes de Canudos, impressionados com a 
intensidade dos tiroteios, alarmaram-se; e prevendo as conseqüências que adviriam se os soldados ali chegassem, 
de chofre, caindo sobre a beataria medrosa, João Abade reuniu o resto dos homens válidos, cerca de seiscentos, 
seguindo em reforço aos companheiros. A meio caminho, porém, a sua coluna foi inopinadamente colhida pelas 
balas. Atirando contra os primeiros agressores no lugar do encontro, os soldados mal apontavam; de sorte que, 
na maior parte, os tiros, partindo em trajetórias altas, se lançavam segundo o alcance máximo das armas. Ora, 
todos estes projetis perdidos, passando sobre os combatentes, iam cair, adiante, no meio da gente de João Abade. 
Os jagunços, perplexos, viam os companheiros baqueando, como fulminados; percebiam o assovio tenuíssimo 
das balas e não lobrigavam o inimigo. Em torno os arbúsculos estonados e raros não permitiam tocaias; os cerros 
mais próximos viam-se desnudos, desertos. E as balas desciam incessantes, aqui, ali, de soslaio, de frente, pelo 
centro da legião surpreendida, pontilhando-a de mortos — como uma chuva silenciosa de raios... Um assombro 
supersticioso sombreou logo nos rostos mais enérgicos. Volveram, atônitos, as vistas para o firmamento 
ofuscante, varado pelos ramos descendentes das parábolas invisíveis; e não houve, depois, contê-los. 
Precipitaram-se, desapoderadamente, para Canudos, onde chegaram originando alarma espantoso. 

 


Não havia ilusão possível: o inimigo, dispondo de engenhos de tal ordem, ali estaria em breve, sobrestante, no 
rastro dos derradeiros defensores do arraial. Quebrou-se o encanto do Conselheiro. Tonto de pavor, o povo 
ingênuo perdeu, em momentos, as crenças que o haviam empolgado. Bandos de fugitivos, sobraçando trouxas 
estavanadamente feitas, porfiavam na fuga, atravessando rápidos, a praça e os becos, demandando as caatingas, 
sem que as contivessem os cabecilhas mais prestigiosos; enquanto as mulheres, em desalinho, em gritos, 
soluçando, clamando, numa algazarra indefinível, mas ainda fascinadas, agitando os relicários, rezando, se 
agrupavam à porta do santuário implorando a presença do evangelizador. 

 

Novo milagre de Conselheiro 

 

Mas Antônio Conselheiro, que nos dias normais mesmo evitava encará-las, naquelas aperturas estabeleceu 
separação completa. Subiu com meia dúzia de fiéis para os andaimes altos da igreja nova, e fez retirar, depois, a 
escada. 

 

O agrupamento agitado ficou embaixo, imprecando, chorando, rezando. Não olhou sequer o apóstolo esquivo, 
atravessando impassível sobre as tábuas que infletiam, rangendo. 

Atentou para o povoado revolto, em que se atropelavam, prófugos, os desertores da fé, e preparou-se para o 
martírio inevitável. . . 

 

Neste comenos sobreveio a nova de que a força recuava. 

 

Foi um milagre. A desordem desfechava em prodígio. 


Capítulo V 

 

Retirada 

 

Começara, de fato, a retirada. 

 

Extintas as esperanças de sucesso, resta aos exércitos infelizes o recurso desse oscilar entre a derrota e o triunfo, 
numa luta sem vitórias em que, entretanto, o vencido vence em cada passo que consegue dar para a frente, 
pisando, indomável, o território do inimigo — e conquistando a golpes de armas todas as voltas dos caminhos. 

 

Ora, a retirada do major Febrônio se, pelo restrito do campo em que se operou, não se equipara a outros feitos 
memoráveis, pelas circunstâncias que a enquadraram é um dos episódios mais emocionantes de nossa história 
militar. Os soldados batiam-se ia para dois dias, sem alimento algum, entre os quais mediava o armistício 
enganador de uma noite de alarmas; cerca de setenta feridos enfraqueciam as fileiras; grande número de 
estropiados mal carregavam as armas; os mais robustos deixavam a linha de fogo para arrastarem os canhões ou 
arcavam sob feixes de espingardas, ou, ainda, em padiolas, transportavam malferidos e agonizantes; e, na frente 
desta multidão revolta, se estendia uma estrada de cem quilômetros, em sertão maninho, inçado de tocaias... 

 

Ao perceberem o movimento, os jagunços encalçaram-na. 

 

Capitaneava-os, agora, um mestiço de bravura inexcedível e ferocidade rara, Pajeú. Legítimo cafuz, no seu 
temperamento impulsivo acolchetavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam. Era o tipo 
completo do lutador primitivo —ingênuo, feroz e destemeroso —, simples e mau, brutal e infantil, valente por 
instinto, herói sem o saber — um belo caso de retroatividade atávica, forma retardatária de troglodita sanhudo 
aprumando-se ali com o mesmo arrojo com que, nas velhas idades, vibrava o machado de sílex à porta das 
cavernas... 

 

Este bárbaro ardiloso distribuiu os companheiros pelas caatingas, ladeando as colunas. 

 

Estas marchavam lutando. Dando um último choque partindo o círculo assaltante, começou a desfilar pelas 
veredas ladeirentas, sem que se lobrigasse, neste movimento gravíssimo, o mais sério das guerras, o mais breve 
resquício de preceitos táticos, onde avulta a clássica formatura em escalões, permitindo às unidades combatentes 
alternarem-se na repulsa. 

 

É que a expedição perdera de todo em todo a estrutura militar, nivelados oficiais e praças de pré pelo mesmo 
sacrifício. Enquanto o comandante, cujo animo não afrouxara, procurava os pontos mais arriscados; enquanto 
capitães e subalternos sobraçando carabinas, se precipitavam, de mistura com as praças de pré, em cargas feitas 
sem vozes de comando, um sargento, contra todas as praxes, dirigia a vanguarda. 

 

Desta maneira penetravam de novo nas gargantas do Cambaio. Ali estava a mesma passagem temerosa, 
estreitando-se em gargantas, ou içada à meia encosta, num releixo sobre os abismos; entalando-se entre escarpas; 
aberta a esmo ao viés das vertentes; sobranceada em todo o percurso pelas trincheiras alterosas. Uma variante 
apenas: de bruços ou de supino sobre as pedras, desenlapando-se à boca das furnas, esparsos pelas encostas, 
viam-se os jagunços vitimados na véspera. 

 

Os companheiros sobreviventes passavam-lhes, agora, de permeio, parecendo uma turba vingadora de demônios 
entre caída multidão de espectros... 

 

Não arremetiam mais em chusma sobre a linha, desafiando as últimas granadas; flanqueavam-na, em correrias 
pelos altos, deixando que agisse quase exclusiva, a sua arma formidável — a terra. Esta bastava-lhes. O curiboca 
que partira a lazarina ou perdera o ferrão no torvelinho volvia o olhar em torno — e a montanha era um arsenal. 
Ali estavam blocos esparsos ou arrumados em pilhas vacilantes prestes a desencadear o potencial de quedas 
violentas, pelos declives. Abarcava-os; transmudava a espingarda imprestável em alavanca; e os monólitos 
abalados oscilavam, e caíam, e rolavam, a princípio em rumo incerto entre as dobras do terreno, depois, mais 
rápidos, pelas normais de máximo declive, despenhando-se, por fim, vertiginosamente, em saltos espantosos; e 
batendo contra as outras pedras, e esfarelando-as em estilhas, passavam como balas rasas monstruosas sobre as 
tropas apavoradas. 

 

Estas, embaixo, salvavam-se cobertas pelo ângulo morto do próprio caminho à meia encosta, sob uma avalancha 
de blocos e graeiros. As fadigas da marcha abatiam-nas mais que o inimigo. O sol culminara ardente e a luz crua 


do dia tropical, caindo na região pedregosa e despida, refluía aos espaços num flamejar de queimadas grandes 
alastrando-se pelas serras. 

 

A natureza toda quedava-se imóvel naquele deslumbramento, sob o espasmo da canícula. Os próprios tiros mal 
quebravam o silencio: não havia ecos nos ares rarefeitos, irrespiráveis. Os estampidos estalavam, secos, sem 
ressoarem; e a brutalidade humana rolava surdamente dentro da quietude universal das coisas... 

 

A travessia das trincheiras foi lenta. 

 

Entretanto, os sertanejos por bem dizer não agrediam. 

 

Num tripúdio de símios amotinados pareciam haver transmudado tudo aquilo num passatempo doloroso e num 
apedrejamento. Desfilavam pelos altos em corrimaças turbulentas e ruidosas. Os lutadores embaixo seguiam 
como atores infelizes, no epílogo de um drama mal representado. Toda a agitação de dois dias sucessivos de 
combates e provações tinha o repentino desfecho de uma arruaça sinistra. Piores que as descargas, ouviam 
brados irônicos e irritantes, cindidos de longos assovios e cachinadas estrídulas, como se os encalçasse uma 
matula barulhenta de garotos incorrigíveis. 

 

Assim chegaram, ao fim de três horas de marcha, a Bandegó-de-Baixo. Salvou-os a admirável posição desse 
lugar, breve planalto em que se complana a estrada, permitindo mais eficazes recursos de defesa. 

 

O último recontro aí se fez, ao cair da noite, à meia luz dos rápidos crepúsculos do sertão. 

 

Foi breve, mas temeroso. Os jagunços deram a última investida com a artilharia, que timbravam em arrebatar à 
tropa. As metralhadoras, porém, disparadas a cavaleiro, rechaçaram-nos; e, varridos à metralha, deixando vinte 
mortos, rolaram para as baixadas perdendo-se na noite... 

 

Estavam findas as horas de provações. 

 

Um incidente providencial completou o sucesso. Fustigado talvez pelas balas, um rebanho de cabras ariscas 
invadiu o acampamento, quase ao tempo em que refluíam os sertanejos repelidos. Foi uma diversão feliz. 
Homens absolutamente exaustos apostaram carreiras doidas com os velozes animais em torno dos quais a força 
circulou delirante de alegria, prefigurando os regalos de um banquete, após dois dias de jejum forçado; e, uma 
hora depois, acocorados em torno das fogueiras, dilacerando carnes apenas sapecadas — andrajosos, imundos, 
repugnantes —, agrupavam-se, tintos pelos clarões dos braseiros, os heróis infelizes, como um bando de canibais 
famulentos em repasto bárbaro... 

 

A expedição no outro dia, cedo, prosseguiu para Monte Santo. 

 

Não havia um homem válido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicavam, a 
cada passo, com os pés sangrando, varados de espinhos e cortados pelas pedras. Cobertos de chapéus de palha 
grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal 
alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria. 

A população recebeu-os em silêncio. 


Capitulo VI 


Procissão dos jiraus


Naquele mesmo dia, à tarde, animaram-se de novo as encostas do Cambaio. O fragor dos combates, porém, 
trocara-se pela assonância das litanias melancólicas. Lentamente, caminhando para Canudos, extensa procissão derivava pelas serras. Os crentes substituíam os trabalhadores e volviam para o arraial, carregando aos ombros, em toscos pálios de jirau de paus roliços amarrados com cipós, os cadáveres dos mártires da fé. 

O dia fora despendido na lúgubre pesquisa, a que se dedicara a população inteira. Haviam-se esquadrinhado 
todas as anfractuosidades, e todos os dédalos rasgados entre pedras, e todos os algares fundos, e todas as taliscas apertadas... 

Muitos lutadores ao baquearem pelas ladeiras, em resvalos, tinham caído em barrocais e grotas; outros, mal 
seguros pelas arestas pontiagudas das rochas atravessando-lhes as vestes, balouçavam-se sobre abismos; e, 
descendo às grotas profundas, e alando-se aos vértices dos fraguedos abruptos, colhiam-nos os companheiros compassivos. 

 

À tarde ultimava-se a missão piedosa. 

 

Faltavam poucos, os que a tropa queimara. 

 

O fúnebre cortejo seguia agora para Canudos... 

 

Muito baixo no horizonte, o sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das 
chapadas remotas, e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o 
dorso da montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito, que seguia à cadência das rezas. 
Deslizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus 
últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguravam por instantes, como enormes círios, prestes 
acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia luz do crepúsculo. 

 

Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandescente de Órion alevantava-se sobre os 
sertões . . . 


Expedição Moreira César 

 

I. O coronel Antônio Moreira César e o meio que o celebrizou. Primeira expedição regular. Como a aguardam os 
jagunços. 

 

II. Partida de Monte Santo. Primeiros erros. Nova estrada. Psicologia do soldado. 

 

III. O primeiro encontro. Pitombas. "Em acelerado!" Dois cartões de visita a Antônio Conselheiro. No alto da 
Favela. Um olhar sobre Canudos. 

 

IV. A ordem de batalha e o terreno. Cidadela-mundéu. Ataques. Saques antes do triunfo. Recuo. Ao bater da 
Ave-Maria. 

 

V. Sobre o Alto do Mário. 

 

VI. Retirada; debandada; fuga. Um arsenal ao ar livre e uma diversão cruel. 


Capítulo I 

 

Moreira César e o meio que o celebrizou 

 

O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente, coincidia com uma fase crítica da nossa 
história. 

 

A pique ainda das lamentáveis conseqüências de sanguinolenta guerra civil, que rematara ininterrupta série de 
sedições e revoltas, emergentes desde os primeiros dias do novo regímen, a sociedade brasileira, em 1897, tinha 
alto grau de receptividade para a intrusão de todos os elementos revolucionários e dispersivos. E quando mais 
tarde alguém se abalançar a definir, à luz de expressivos documentos, a sua psicologia interessante naquela 
quadra, demonstrará a inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém-inaugurado, 
como se este, pelo avantajar-se em demasia ao curso de uma evolução vagarosa, tivesse, como efeito 
predominante, alastrar sobre o país, que se amolentara no marasmo monárquico, intenso espírito de desordem, 
precipitando a República por um declive onde os desastres repontavam, ritmicamente, delatando a marcha cíclica 
de uma moléstia. 

 

O governo civil, iniciado em 1894, não tivera a base essencial de uma opinião pública organizada. Encontrara o 
país dividido em vitoriosos e vencidos. E quedara na impotência de corrigir uma situação que, não sendo 
francamente revolucionária e não sendo também normal, repelia por igual os recursos extremos da forca e o 
influxo sereno das leis. Estava defronte de uma sociedade que, progredindo em saltos, da máxima frouxidão ao 
rigorismo máximo, das conspirações incessantes aos estados de sítio repetidos, parecia espelhar incisivo 
contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida. 

 

De sorte que, lhe sendo impossível substituir o lento trabalho de evolução para alevantar a primeira ao nível da 
última, deixava que se verificasse o fenômeno inverso: a significação superior dos princípios democráticos 
decaía — sofismada, invertida, anulada. 

 

Floriano Peixoto 

 

Não havia obstar essa descensão. O governo anterior, do marechal Floriano Peixoto, tivera, pelas circunstâncias 
especialíssimas que o rodearam, função combatente e demolidora. Mas, no abater a indisciplina emergente de 
sucessivas sedições, agravara a instabilidade social e fora de algum modo contraproducente, violando 
flagrantemente um programa preestabelecido. Assim é que, nascendo do revide triunfante contra um golpe de 
Estado violador das garantias constitucionais, criara o processo da suspensão de garantias; abraçado tenazmente 
à Constituição, afogava-a; fazendo da legalidade a maior síntese de seus desígnios, aquela palavra, distendida à 
consagração de todos os crimes, transmudara-se na fórmula antinômica de uma terra sem leis. De sorte que o 
inflexível Marechal de Ferro tivera, talvez involuntariamente, porque a sua figura original é ainda um intricado 
enigma, desfeita a missão a que se devotara. Apelando, nas aperturas das crises que o assoberbaram, 
incondicionalmente, para todos os recursos, para todos os meios e para todos os adeptos, surgissem de onde 
surgissem, agia inteiramente fora da amplitude da opinião nacional, entre as paixões e interesses de um partido 
que, salvante bem raras exceções, congregava todos os medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, 
evitam as imposições severas de um meio social mais culto. E ao debelar, nos últimos dias de seu governo, a 
Revolta de Setembro, que enfeixara todas as rebeldias contrariadas e todos os tumultos dos anos anteriores, 
formara, latentes, prestes a explodir, os germens de mais perigosos levantes. 

 

Destruíra e criara revoltosos. Abatera a desordem com a desordem. Ao deixar o poder não levara todos os que o 
haviam acompanhado nos transes dificílimos do governo. Ficaram muitos agitadores, robustecidos numa intensa 
aprendizagem de tropelias, e estes viam-se contrafeitos no plano secundário a que naturalmente volviam. 
Traziam o movimento irreprimível de uma carreira fácil e vertiginosa demais para estacar de súbito: dilataram-na 
pela nova situação adentro. 

 

Viu-se, então, um caso vulgaríssimo de psicologia coletiva: colhida de surpresa, a maioria do país inerte e 
absolutamente neutral constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os elementos condenáveis que cada 
cidadão, isoladamente, deplorava. Segundo o processo instintivo, que lembra na esfera social a herança de 
remotíssima predisposição biológica, tão bem expressa no "mimetismo" psíquico de que nos fala Scipio Sighele, 
as maiorias conscientes, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos 
que Ihes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas — sobretudo nas ruas —, 
individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo. Sem ideais, sem orientação 
nobilitadora, peados num estreito círculo de idéias, em que o entusiasmo suspeito pela República se aliava a 


nativismo extemporâneo e à cópia grosseira de um jacobinismo pouco lisonjeiro à história — aqueles agitadores 
começaram a viver da exploração pecaminosa de um cadáver. O túmulo do marechal Floriano Peixoto foi 
transmudado na arca de aliança da rebeldia impenitente e o nome do grande homem fez-se a palavra de ordem da 
desordem. 

 

A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da indiferença geral 
todas as mediocridades irritadiças conseguiram imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço 
mais vivo que a caracteriza. Não lhes bastavam as cisões remanescentes, nem os assustava uma situação 
econômica desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última insolúvel. E como o exército se erigia, 
ilogicamente, desde o movimento abolicionista até à proclamação da República, em elemento ponderador das 
agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no, atraíam-no afanosa e imprudentemente. 

 

Ora, de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era quem parecia haver herdado a 
tenacidade rara do grande debelador de revoltas. 

 

O feiticismo político exigia manipansos de farda. 

 

Escolheram-no para novo ídolo. 

 

Moreira César 

 

E à nova do desastre, avolumando a gravidade da luta nos sertões, o governo não descobriu quem melhor lhe 
pudesse balancear as exigências gravíssimas. Escolheu-o para chefe da expedição vingadora. 

 

Em torno do nomeado criara-se uma legenda de bravura. 

 

Recém-vindo de Santa Catarina, onde fora o principal ator no epílogo da campanha federalista do Rio Grande, 
tinha excepcional renome feito de aclamações e apodos, consoante o modo de julgar incoerente e extremado da 
época em que eram vivos os mínimos incidentes da guerra civil distendida da baía do Rio de Janeiro para o Sul, 
pela Revolta da Esquadra. 

 

Entre dois extremos, do arrojo de Gumercindo Saraiva à abnegação de Gomes Carneiro, a opinião nacional 
oscilava espelhando os mais díspares conceitos no aquilatar vitoriosos e vencidos; e nessa instabilidade, nesse 
baralhamento, nesse afogueado expandir da nossa sentimentalidade suspeita, o que de fato se fazia em todos os 
tons, com. todas as cores e sob aspectos vários — era a caricatura do heroísmo. Os heróis imortais de quarto de 
hora, destinados a suprema consagração de uma placa à esquina das ruas, entravam, surpreendidos e de repente, 
pela história dentro, aos encontrões, como intrusos desapontados, sem que se pudesse saber se eram bandidos ou 
santos, envoltos de panegíricos e convícios, surgindo entre detirambos ferventes, ironias e invectivas 
despiedadas, da sangueira de Inhanduí, da chacina de Campo Osório, do cerco memorável da Lapa, dos barrocais 
do pico do Diabo, ou do platonismo marcial de Itararé. 

 

Irrompiam a granel. Eram legião. Todos saudados; amaldiçoados todos. 

 

Ora, entre eles, o coronel Moreira César era figura à parte. 

 

Surpreendiam-se igualmente ao vê-lo admiradores e adversários. O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura 
diminuta —um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parêntesis — era organicamente inapto para a carreira 
que abraçara. 

 

Faltava-lhe esse aprumo e competição inteiriça que no soldado são a base física da coragem. 

 

Apertado na farda, que raro deixava, o dólmã feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe a postura. 

 

A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo. Nada, absolutamente, traía a 
energia surpreendedora e temibilidade rara de que dera provas, naquele rosto de convalescente sem uma linha 
original e firme: pálido, alongado pela calva em que se expandia a fronte bombeada, e mal alumiado por olhar 
mortiço, velado de tristeza permanente. 

 


Era uma face imóvel como um molde de cera, tendo a impenetrabilidade oriunda da própria atonia muscular. Os 
grandes paroxismos da cólera, e a alacridade mais forte, ali deviam amortecer-se inapercebidos, na lassidão dos 
tecidos, deixando-a sempre fixamente impassível e rígida. 

 

Aos que pela primeira vez o viam custava-lhes admitir que estivesse naquele homem de gesto lento e frio, 
maneiras corteses e algo tímidas, o campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo que idealizavam. Não tinha 
os traços característicos nem de um, nem de outro. Isto, talvez, porque fosse as duas coisas ao mesmo tempo. 

 

Justificam-se os que o aplaudiam e os que o invectivavam. Naquela individualidade singular entrechocavam-se, 
antinômicas, tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de intensidade. Era 
tenaz, paciente, dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo, ambicioso. Uma alma proteiforme constrangida em 
organização fragílima. 

 

Aqueles atributos, porém, velava-os reserva cautelosa e sistemática. Um único homem os percebeu ou decifrou 
bem, o marechal Floriano Peixoto. Tinha para isto a afinidade de inclinações idênticas. Aproveitou-o, na ocasião 
oportuna, como Luís XI aproveitaria Bayard, se pudesse enxertar na bravura romanesca do cavaleiro sem 
máculas as astúcias de Fra Diávolo. 

 

Moreira César estava longe da altitude do primeiro e mais longe ainda da depressão moral do último. Não seria, 
entretanto, imperdoável exagero considerá-lo misto reduzido de ambos. Alguma coisa de grande e incompleto, 
como se a evolução prodigiosa do predestinado parasse, antes da seleção final dos requisitos raros com que o 
aparelhara, precisamente na fase crítica em que ele fosse definir-se como herói ou como facínora. Assim, era um 
desequilibrado. Em sua alma a extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio, a calma soberana em 
desabrimentos repentinos e a bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante. 

 

Tinha o temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente 
em placidez enganadora. 

 

Entretanto, não raro, a sua serenidade partia-se rota pelos movimentos impulsivos da moléstia, que somente mais 
tarde, mercê de comoções violentas, se desvendou inteiramente nas manifestações físicas dos ataques. E se 
pudéssemos acompanhar a sua vida assistiríamos ao desdobramento contínuo do mal, que lhe imprimiu, como a 
outros sócios de desdita, um feitio original e interessante, definido por uma sucessão por demais eloqüente de 
atos que, aparecendo intercalados por períodos de calma crescentemente reduzidos, constituem os pontos 
determinantes da curva inflexível em que o arrebatava a fatalidade biológica. 

 

De feito, eram correntes entre os seus companheiros de armas os episódios frisantes que, de tempos a tempos, 
com ritmo inabalável, lhe interferiam a linha de uma carreira militar correta como poucas. 

 

Fora longo rememorá-los, além do perigo de incidirmos no arquivar versões exageradas ou falsas. 

 

À parte, porém, todos os casos duvidosos, definidos sempre pelo traço preponderante de vias de fato 
violentíssimas — aqui o ultraje, a rebencadas, de um médico militar, além a arremetida a faca, felizmente tolhida 
em tempo, contra um oficial argentino, por certa palavra mal compreendida —, apontamos, de relance, os mais 
geralmente conhecidos. 

 

Um, sobretudo, dera relevo à sua energia selvagem. 

 

Foi em 1884, no Rio de Janeiro. Um jornalista, ou melhor, um alucinado, criara, agindo libérrimo graças à 
frouxidão das leis repressivas, escândalo permanente de insultos intoleráveis na corte do antigo Império; e tendo 
respingado sobre o Exército parte das alusões indecorosas, que por igual abrangiam todas as classes, do último 
cidadão ao monarca, foi infelizmente resolvido por alguns oficiais, como supremo recurso, a justiça fulminante e 
desesperadora do linchamento. 

 

Assim se fez. E entre os subalternos encarregados de executar a sentença — em plena rua, em pleno dia, diante 
da justiça armada pelos Comblains de toda a força policial em armas — figurava, mais graduado, o capitão 
Moreira César, ainda moço, à volta dos trinta anos, e tendo já em seus assentamentos, averbados, merecidos 
elogios por várias comissões exemplarmente cumpridas. E foi o mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez 
no esfaquear pelas costas a vítima, exatamente na ocasião em que ela, num carro, sentado ao lado de autoridade 
superior do próprio Exército, se acolhera ao patrocínio imediato das leis... 

 


O crime acarretou-lhe a transferência para Mato Grosso, e dessa Sibéria canicular do nosso Exército tornou 
somente após a proclamação da República. 

 

Vimo-lo nessa época. 

 

Era ainda capitão e embora nunca houvesse arrancado da espada em combate, recordava um triunfador. Nos dias 
ainda vacilantes do novo regímen, o governo parecia desejar ter perto de si aquele esteio firme — o homem para 
as crises perigosas e para as grandes temeridades. A sua figura de menino atravessava os quartéis e as ruas 
envolta de murmúrio simpático e louvaminheiro, comentando-lhe em lisonjarias os lances capitais da vida, 
acerca dos quais, entretanto, era de todo muda uma fé de ofício de burocracia inofensivo e tímido, repleta de 
encômios ao desempenho de missões pacíficas. 

 

Por um contraste expressivo, nos documentos da profissão guerreira é que estava a placabilidade de uma 
existência acidentada, revolta e turbulenta em que, não raro, relampagueara a faca, ao lado da espada 
inteiramente virgem. 

 

Esta saiu-lhe da bainha, afinal, nos últimos anos da existência. Em 1893, já coronel, porque galgara velozmente 
três postos em dois anos, ao declarar-se a Revolta da Armada o marechal Floriano Peixoto destacou-o armado de 
poderes discricionários para Santa Catarina, como uma barreira à conflagração que se reanimara no sul e 
ameaçava os Estados limítrofes. Seguiu; e em ponto algum do nosso território pesou tão firme e tão 
estrangulador o guante dos estados de sítios. 

 

Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável maldade, dizem-no de sobra. Abalaram 
tanto a opinião nacional que, ao terminar a revolta, o governo civil, recém-inaugurado, pediu contas de tais 
sucessos ao principal responsável. A resposta, pelo telégrafo, foi pronta. Um "não", simples, seco, atrevido, 
cortante, um dardo batendo em cheio a curiosidade imprudente dos poderes constituídos, sem o atavio, sem o 
rodeio, sem a ressalva da explicação mais breve. 

 

Meses depois chamaram-no ao Rio de Janeiro. 

 

Embarca com o seu batalhão, o 7.°, num navio mercante; e em pleno mar, com surpresa dos próprios 
companheiros prende o comandante. Assaltara-o — sem que para tal houvesse o mínimo pretexto — a suspeita 
de uma traição, um desvio na rota, adrede disposto para o prender e aos soldados. O ato seria absolutamente 
inexplicável se não o caracterizássemos como aspecto particular da desorganização psíquica que o vitimava. 

 

Não lhe diminuiu, contudo, o prestígio. Fez-se dono do batalhão que comandava; deu-lhe um pessoal que 
ultrapassava, de muito, o número regulamentar de praças, entre as quais — em manifesta violação da lei — 
dezenas de crianças que não podiam carregar as armas; e, imperando incondicionalmente, organizou o melhor 
corpo do Exército, porque nos longos intervalos lúcidos patenteava, francas, qualidades eminentes e raras de 
chefe disciplinador e inteligente, contrastando com os paroxismos da exaltação intermitente. 

 

Estes tomaram-se, por fim, mais ostensivos e repetidos — num crescendo inflexível. 

 

Nomeado para a expedição contra Canudos, estadeou-os numa série de desatinos, culminados afinal por uma 
catástrofe. 

 

Vê-los-emos em breve, extremados por dois ímpetos de impulsivo: a partida caprichosa de Monte Santo, de 
improviso, com espanto de seu próprio Estado-maior, precisamente na véspera do dia prefixo em detalhe para a 
marcha; e, três dias mais tarde, o arremesso contra o arraial, de mil e tantos homens exaustos de uma carreira de 
léguas, precisamente na véspera do dia marcado para o assalto. 

 

Estes últimos fatos, e a sua identidade está no objetivarem a mesma nevrose, tiveram a intercorrência dos 
ataques. 

 

Foram uma revelação. 

 

Todos os acidentes singulares de sua existência desconexa, viu-se afinal que eram sinais comemorativos 
enfeixando uma diagnose única e segura... 

 


Realmente, a epilepsia alimenta-se de paixões; avoluma-se no próprio expandir das emoções subitâneas e fortes; 
mas, quando, ainda larvada, ou traduzindo-se em uma alienação apenas afetiva, solapa surdamente as 
consciências, parece ter na livre manifestação daquelas um derivativo salvador atenuando os seus efeitos. De 
sorte que, sem exagero de frase, se pode dizer que há muitas vezes num crime, ou num lance raro de heroísmo, o 
equivalente mecânico de um ataque. Contido o braço homicida, ou imobilizado, de chofre, o herói no arremesso 
glorioso, o doente pode surgir, ex-abrupto, sucumbindo ao acesso. Daí esses atos inesperados, incompreensíveis 
ou brutais, em que a vítima procura iludir instintivamente o próprio mal, buscando muitas vezes o crime como 
um derivativo à loucura. 

 

Durante longo tempo numa semiconsciência de seu estado, numa série de delírios breves e fugazes, que ninguém 
percebe, que nem ela às vezes percebe, sente crescer a instabilidade da vida. E luta tenazmente. Os intervalos 
lúcidos fazem-se-lhe ponto de apoio à consciência vacilante à procura de motivos inibitórios numa ponderação 
cada vez mais penosa das condições normais ambientes. Aqueles, entretanto, a pouco e pouco se enfraquecem. A 
inteligência abalada afinal mal se subordina às condições exteriores ou relaciona os fatos e, em contínuo descair, 
baralha-os, perturba-os, inverte-os, deforma-os. O doente cai, então, no estado crepuscular, segundo uma 
expressão feliz, e condensa no cérebro, como se fosse a soma de todos os delírios anteriores, instável, pronto a 
desencadear-se em ações violentas, que o podem atirar no crime ou, acidentalmente, na glória, o potencial da 
loucura. 

 

Cabe à sociedade, nessa ocasião, dar-lhe a camisa de força ou a púrpura. Porque o princípio geral da relatividade 
abrange as mesmas paixões coletivas. Se um grande homem pode impor-se a um grande povo pela influência 
deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas. 

 

Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades. Despontavam efêmeras 
individualidades singulares; e entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu 
passado salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos. 

 

É cedo ainda para que se lhe defina a altitude relativa e a depressão do meio em que surgiu. Na apreciação dos 
fatos o tempo substitui o espaço para a focalização das imagens: o historiador precisa de certo afastamento dos 
quadros que contempla. 

 

Cerremos esta página perigosa. 

 

Primeira expedição regular 

 

Deferindo ao convite que lhe fora feito, o coronel Moreira César seguiu a 3 de fevereiro para a Bahia, levando o 
batalhão que comandava, o 7.° de Infantaria, entregue à direção do major Rafael Augusto da Cunha Matos; uma 
bateria do 2.° Regimento de Artilharia, comandada pelo capitão José Agostinho Salomão da Rocha; e um 
esquadrão do 9.° de Cavalaria, do capitão Pedreira Franco. 

 

Era o núcleo da brigada de três armas, que se constituiu logo com a celeridade que as circunstâncias 
demandavam, ligando-se-lhe três outros corpos, desfalcados tolos: o 16.°, que estava em S. João d"El-Rei, de 
onde abalou dirigido pelo coronel Sousa Meneses, com 28 oficiais e 290 praças; cerca de 140 soldados do 33.°, o 
9.°, de Infantaria, do coronel Pedro Nunes Tamarindo e pequenos contingentes da força estadual baiana. 

 

O chefe expedicionário não se demorou na Bahia. Recolhida toda a força que lá estava, prosseguiu 
imediatamente para Queimadas, onde, cinco dias apenas depois que partira da capital da República, a 8 de 
fevereiro, estava toda a expedição reunida — quase 1.300 combatentes, fartamente municiados, com 15 milhões 
de cartuchos e setenta tiros de artilharia. 

 

A mobilização fora, como se vê, um prodígio de rapidez. Continuou rápida. Deixando em Queimadas, "1.ª base 
de operações", sob o comando de um tenente, platônica guarnição de oitenta doentes e setenta crianças, que não 
suportavam o peso das mochilas, seguiu o grosso da tropa para a ""2.a base de operações", Monte Santo, onde a 
20 estava pronta para a investida. 

 

Chegara, porém, mal auspiciada. Um dia antes a enervação doentia do comandante explodira numa convulsão 
epileptiforme, em plena estrada, antes do sítio de Quirinquinquá; e fora de caráter tal que os cinco médicos do 
corpo de saúde previram uma reprodução de lastimáveis conseqüências. Os principais chefes de corpos, porém, 
bem que cientes de um diagnóstico, que implicava seriamente a firmeza e as responsabilidades do comando geral 
ante as condições severas da luta, forraram-se, cautelosos e tímidos, à menor deliberação a respeito. 


 

O coronel Moreira César abeirava-se do objetivo da campanha condenado pelos próprios médicos que 
comandava. 

 

É natural que não fossem as operações concertadas com a indispensável lucidez e que as inquinassem, desde o 
primeiro passo nos caminhos, todos os erros e inexplicáveis descuidos e inexplicável olvido de preceitos 
rudimentares, já rudemente corrigidos ou expostos com a maior clareza nos desastres anteriores. Nada se 
resolveu de acordo com as circunstâncias especialíssimas da empresa. Ficou dominando todas as decisões um 
plano único, um plano de delegado policial enérgico: lançar a marche-marche mil e tantas baionetas dentro de 
Canudos. 

 

Isto no menor tempo possível. Os engenheiros militares Domingos Alves Leite e Alfredo do Nascimento, 
tenentes do Estado-maior de 1ª classe, adidos à brigada, tiveram uma semana para reconhecer a paragem 
desconhecida e áspera. Na exigüidade de tal prazo não Ihes era possível a escolha de pontos estratégicos, que 
firmassem uma linha de operações indispensáveis. O vertiginoso mesmo dos levantamentos militares estava 
aquém dessa missão de afogadilho, adstrita a trianguladas fantásticas — bases medidas a olho, visadas 
divagantes pelos topos indistintos das serras, distâncias averbadas nos ponteiros dos podômetros presos às botas 
dos operadores apressados. Estes esclareciam-se inquirindo os raros habitantes dos lugares percorridos: era o 
arquivar longuras calcadas numa unidade traiçoeira, a légua, de estimativa exagerada pelo amor-próprio do 
matuto vezado às caminhadas longas; rumos desesperadamente embaralhados ou linhas de ensaios em que um 
erro de cinco graus era um primor de rigorismo; informes sobre acidentes, contextura do solo e aguadas, de 
existência problemática e dúbia. 

 

Subordinaram ao comandante o levantamento feito. Foi, sem maior exame, aprovado. 

 

De acordo com ele escolheu-se a nova estrada. Envolvente a do Cambaio, pelo levante, e mais longa de nove ou 
dez léguas, tinha, ao que se figurava, a vantagem de se arredar da zona montanhosa. Largando de Monte Santo, 
as forças demandariam o arraial do Cumbe no rumo seguro de ESE, e, atingindo este, infletindo, rota em cheio 
para o norte, fraldejando as abas da serra de Aracati, em marcha contornante, a pouco e pouco rumando a NNO, 
iriam interferir no sítio do Rosário a antiga estrada de Maçacará. Escolhido este caminho não se cogitou de o 
transformar em linha de operações, pela escolha de dois ou três pontos defensáveis, garantidos de guarnições 
que, mesmo diminutas, pudessem estear a resistência, dado que houvesse um insucesso, um recuo ou uma 
retirada. 

 

Crítica 

 

Ninguém cogitava na mais passageira hipótese de um revés. A exploração realizada fora até um transigir 
dispensável com as velharias da estratégia: bastava o olhar perspícuo do guia, capitão Jesuíno, para aclarar a 
rota. 

 

Sabia-se, no entanto, que esta atravessaria longos trechos de caatingas exigindo aberturas de picadas, e extenso 
areal de quarenta quilômetros onde, naquela quadra, na plenitude do estio, não se compreendia a viagem sem que 
os combatentes fossem arcando sob carregamento de água, a exemplo das legiões romanas na Tunísia. Para 
obviar este inconveniente, levaram uma bomba artesiana, como se fossem conhecidas as camadas profundas da 
terra pelos que lhe ignoravam a própria superfície, e houvesse, entre as fileiras, argutos rabdomantes capazes de 
marcar, com a varinha misteriosa, o ponto exato em que existisse o lençol líquido a aproveitar-se. Veremos a sua 
função mais longe. 

 

Entretanto ia-se marchar o desconhecido, por veredas desfreqüentadas, porque todas as travessias por ali se 
resumem no trecho de uma estrada secular, a de Bom Conselho a Jeremoabo, contornando e evitando pelo 
levante os agros tabuleiros que lhe demoram ao norte, e descem insensivelmente para o Vaza-Barris, formando 
no ligeiro divortium aquarum, entre este e o Itapicuru, desmedidos areais sem o mais exíguo regato, porque 
absorvem, numa sucção de esponja, os mais impetuosos aguaceiros. 

 

A jornada pressupunha-se longa e inçada de tropeços: 150 quilômetros, um mínimo de 25 léguas, que valiam por 
uma longura décupla, ante o despovoamento e a maninhez da terra. Era natural que se garantisse ao menos a 
pretensa base de operações, para que se não insulasse inteiramente a tropa no deserto. Apesar disto, Monte 
Santo, com as suas péssimas condições de defesa, dominada pela serrania a prumo, de onde meia dúzia de 
inimigos podiam batê-la toda, a salvo, ficaria sob o comando do coronel Meneses com uma guarnição deficiente 
de poucas dezenas de praças. De sorte que os jagunços poderiam facilmente tomá-la, enquanto o resto da tropa 


seguisse para Canudos. Não o fizeram. Mas era de presumir que o fizessem, porque lá chegavam informes 
acordes todos no assegurar que os sertanejos se aparelhavam fortemente para a luta. 

 

Cresce a população de Canudos 

 

Eram certas as notícias. 

 

Canudos aumentara em três semanas de modo extraordinário. A nova do último triunfo sobre a expedição 
Febrônio, avolumada pelos que a espalhavam, romanceada já de numerosos episódios, destruíra as últimas 
vacilações dos crentes que até então tinham temido procurar o falanstério de Antônio Conselheiro. 

 

Como nos primeiros tempos da fundação, a todo o momento, pelo alto das colinas, apontavam grupos de 
peregrinos em demanda da paragem lendária — trazendo tudo, todos os haveres; muitos carregando em redes os 
parentes enfermos, moribundos ansiando pelo último sono naquele solo sacrossanto, ou cegos, paralíticos e 
lázaros, destinando-se ao milagre, à cura imediata, a um simples gesto de taumaturgo venerado. Eram, como 
sempre, toda a sorte de gente: pequenos criadores, vaqueiros crédulos e possantes, de parceria, na mesma 
congérie, com os vários tipos da mangalaça sertaneja; ingênuas mães de família, irmanadas a zabaneiras 
incorrigíveis e trêfegas. No coice dessas procissões, viam-se, invariavelmente, sem compartirem das litanias 
entoadas, estranhos, seguindo sós, como de sobre-rolda ao movimento dos fiéis, os bandidos soltos —capangas 
em disponibilidade, procurando um teatro maior à índole aventureira e à valentia impulsiva. No correr do dia 
pelas estradas de Calumbi, de Maçacará, de Jeremoabo e de Uauá, convergindo dos quadrantes, chegavam 
cargueiros repletos de toda a sorte de mantimentos, enviados diretamente a Canudos pelos adeptos que de longe 
o avitualhavam, em Vila Nova da Rainha, Alagoinhas, em todos os lugares. Havia abastança e um entusiasmo 
forte. 

 

Como aguardam os jagunços a nova expedição 

 

Logo ao apontar da manhã distribuíam-se os trabalhos. Não faltavam braços; havia-os até de sobra. 
Destacavam-se piquetes vigilantes, de vinte homens cada um, ao mando de cabecilha de confiança, para vários 
pontos de acesso — em Cocorobó, junto à confluência do Macambira, na baixada das Umburanas e no alto da 
Favela, a fim de renderem os que ali haviam atravessado a noite, velando. Seguiam para as insignificantes 
plantações, estiradas pelas duas margens do rio, os que na véspera já tinham pago o tributo de se entregarem ao 
serviço comum. Dirigiam-se para as obras da igreja, outro; e outros — os mais ardilosos e vivos — para mais 
longe, para Monte Santo, para o Cumbe, para Queimadas, em comissões delicadas, indagando acerca dos novos 
invasores, confabulando com os fiéis que naquelas localidades se afrontavam com a vigilância das autoridades, 
adquirindo armamentos, ajeitando contrabandos afinal fáceis de serem feitos, espiando tudo, de tudo inquirindo 
cautelosamente. 

 

E partiam felizes. Pelos caminhos fora passavam pequenos grupos ruidosos, carregando armas ou ferramentas de 
trabalho, cantando. Olvidavam os morticínios anteriores. No ânimo de muitos repontava a esperança de que os 
deixariam, afinal, na quietude da existência simples do sertão. 

 

Trincheiras 

 

Os chefes, porém, não se iludiam. Premunidos de cautelas, concertaram na defesa urgente. Pelos dias ardentes, 
viam-se os sertanejos esparsos sobre o alto dos cerros e à ourela dos caminhos, rolando, carregando ou 
amontoando pedras, rasgando a terra a picareta e a enxada numa faina incessante. Construíam trincheiras. 

 

O sistema era, pela rapidez, um ideal de fortificação passageira: aberta cavidade circular ou elíptica, em que 
pudesse ocultar-se e mover-se à vontade o atirador, bordavam-na de pequenos espaldões de pedras justapostas, 
com interstícios para se enfiar o cano das espingardas. As placas de talcoxisto, facilmente extraídas com todas as 
formas desejadas, facilitavam a tarefa. Explicam o extraordinário número desses fojos tremendos que 
progredindo, regularmente intervalados, para todos os rumos, crivando a terra toda em roda de Canudos, 
semelhavam canhoneiras incontáveis de uma fortaleza monstruosa e sem muros. Eram locadas, cruzando os 
fogos sobre as veredas, de tal modo que, sobretudo nos longos trechos onde aquelas seguem aproveitando o leito 
seco dos riachos, tornavam dificílima a travessia à tropa mais robusta e ligeira. E como previssem que esta, 
procurando escapar àquelas passagens perigosas, volvesse aos lados assaltando e conquistando as trincheiras que 
as orlavam, fizeram próximas, no alto das barrancas, outras mais distantes e identicamente dispostas, em que se 
pudessem acolher e continuar o combate os atiradores repelidos. De sorte que, seguindo pelos caminhos ou 
abandonando-os, os antagonistas seriam sempre colhidos numa rede de balas. 


 

É que os rebeldes dispensavam quaisquer ensinamentos para estes preparativos. A terra era um admirável 
modelo: serrotes empinando-se em redutos, rios escavando-se em passagens cobertas e fossos; e, por toda a 
parte, as caatingas trançadas em abatises naturais. Escolhiam os arbustos mais altos e frondosos. Trançavam-lhes 
jeitosamente os galhos interiores, sem lhes desfazer a fronde, de modo a se formar, dois metros sobre o chão, 
pequeno jirau, suspenso, capaz de suportar comodamente um ou dois atiradores invisíveis, ocultos na folhagem. 
Eram uma usança avoenga aqueles mirantes singulares com os quais desde muito vezavam tocaiar os canguçus 
bravios. Os mutãs dos indígenas intercalavam-se, deste modo, destacadamente , completando o alinhamento das 
trincheiras. Ou então dispositivos mais sérios. Descobriam um cerro coroado de grandes blocos redondos, em 
acervos. Desentupiam as suas junturas e as largas brechas, onde viçavam cardos e bromélias; abriam-nas como 
postigos estreitos, mascarados de espessos renques de gravatás; limpavam depois os repartimentos interiores; e 
moviam-se, por fim, folgadamente, entre os corredores do monstruoso blocausse dominante sobre as várzeas e os 
caminhos, e de onde podiam, sem riscos, alvejar os mais remotos pontos. 

 

Armas 

 

Não ficavam nisto os preparativos. Reparavam-se as armas. No arraial estrugia a orquestra estridente das 
bigornas, à cadência dos malhos e marrões: enrijando e maleando as foices entortadas; aguçando e aceirando os 
ferrões buídos; temperando as laminas largas das facas de arrasto, compridas como espadas; retesando os arcos, 
que lembram uma transição entre as armas dos selvagens e a antiga besta de polé; consertando a fecharia perra 
das velhas espingardas e garruchas. E das tendas abrasantes irrompia um ressoar metálico de arsenais ativos. 

 

Pólvora 

 

Não era suficiente a pólvora adquirida nas vilas próximas, faziam-na: tinham o carvão, tinham o salitre, 
apanhado à flor da terra mais para o norte, junto ao S. Francisco, e tinham, desde muito, o enxofre. O explosivo 
surgia perfeito, de uma dosagem segura, rivalizando bem com os que adotavam nas caçadas. 

 

Balas 

 

Não faltavam balas. A goela larga dos bacamartes aceitava tudo: seixos rolados, pedaços de pregos, pontas de 
chifres, cacos de garrafas, esquírolas de pedras. 

 

Lutadores 

 

Por fim não faltavam lutadores famanazes cujas aventuras de pasmar corriam pelo sertão inteiro. 

 

Porque a universalidade do sentimento religioso, de par com O instinto da desordem, ali agremiara não baianos 
apenas senão filhos de todos os Estados limítrofes. Entre o jagunço do S. Francisco e o cangaceiro do Cariris, 
surgiam, sob todos os matizes, os valentões tradicionais dos conflitos sertanejos, variando até então apenas no 
nome, nas sedições parceladas, dos "calangros", dos "balaios" ou dos "cabanos". 

 

Correra nos sertões um toque de chamada... 

 

João Abade 

 

Dia a dia chegavam ao arraial singulares recém-vindos, absolutamente desconhecidos. Vinham "debaixo do 
cangaço": a capanga atestada de balas e o polvarinho cheio; a garrucha de dois canos atravessada à cinta, de onde 
pendia a "parnaíba" inseparável; à bandoleira, o clavinote de boca-de-sino. Nada mais. Entravam pelo largo, sem 
que lhes indagassem a procedência, como se fossem antigos conhecidos. Recebia-os o astuto João Abade que, 
pleiteando-lhes parelhas na turbulência, tinha a ascendência de uma argúcia rara e uns laivos de superioridade 
mental, graças talvez à circunstância de haver estudado no liceu de uma das capitais do Norte, de onde fugira 
após haver assassinado a noiva, o seu primeiro crime. O certo é que os dominava e disciplinava. "Comandante da 
rua", título inexplicável naquele labirinto de bitesgas, sem abandonar o povoado exercia-lhe absoluto domínio 
que estendia pela redondeza, num raio de cinco léguas em volta, percorrida continuamente pelas rondas velozes 
dos piquetes. 

 

Obedeciam-no incondicionalmente. Naquela dispersão de ofícios, múltiplos e variáveis, onde ombreavam o 
tabaréu crendeiro e o facínora despejado, estabelecera-se raro entrelaçamento de esforços; e a mais perfeita 
conformidade de vistas volvidas para um objetivo único: reagir à invasão iminente. 


 

Houve, todavia, segundo o revelaram alguns prisioneiros no termo da campanha, uma parada súbita na azáfama 
guerreira, um como sobressalto, estuporando a grei revoltosa e pondo-a a pique de dissolução repentina: foi 
quando, voltando dos diversos pontos os emissários, que tinham ido indagar sobre a marcha invasora, trouxeram, 
a par de informações seguras quanto ao número e armamentos dos soldados, o renome do novo comandante. 

 

Imobilizou a atividade febril dos jagunços a síncope de um espanto extraordinário. Exagerara-se demais na 
distensão das mais extravagantes fantasias a temibilidade daquele. Era o anti-Cristo, vindo jungir à derradeira 
prova os penitentes infelizes. Imaginaram-no herói de grande número de batalhas, quatorze como especificou um 
rude poeta sertanejo, no canto que depois consagrou à campanha; e prefiguraram a devastação dos lares, dias de 
torturas sem nome, a par duríssimos tratos. Canudos dissolvido a bala, a fogo, e a espada... 

 

Deram-lhe um apelido lúgubre —"Corta-cabeças".. . 

 

Segundo depois se soube, nenhuma das expedições foi aguardada com ansiedade igual. Houve mesmo algumas 
deserções, rareando principalmente as fileiras que deviam tornar-se mais fortes, a dos adventícios perigosos que 
para lá iam não já sob o estímulo de uma crença senão pelo anelo dos desmandos e dos conflitos. Os piquetes, ao 
tornarem dos arredores, chegavam desfalcados de alguns daqueles sinistros companheiros. 

 

Mas esse movimento de temor redundara em movimento seletivo. Expungira o arraial de incrédulos e tímidos. A 
grande maioria dos verdadeiros crentes permaneceu resignada. 

 

Procissões 

 

Desinfluído embora, o povo volvera-se para a última instância da fé religiosa. E não raro, então, atirando para o 
lado as armas emperradas, o arraial inteiro saía em longas procissões de penitência pelos descampados. 

 

Cessaram, de chofre, os contingentes de peregrinos. Cessou o mourejar febril dos preparativos bélicos. Os 
piquetes que diariamente, ao clarear das manhãs, seguiam para diversos pontos, não mais passavam pelas 
veredas entoando as cantigas altas e festivas; embrenhavam-se, cautos, pelas moitas, quedando-se largas horas, 
silenciosos, vigilantes. 

 

Rezas 

 

Nesta situação aflitíssima, saiu a campo, alentando os combatentes robustos mas apreensivos, a legião fragílima 
da beataria numerosa. Ao anoitecer, acesas as fogueiras, a multidão, genuflexa, prolongava além do tempo 
consagrado, as rezas, dentro da latada. 

 

Esta, entressachada de ramas aromáticas de caçatinga, tinha, extremando-a, à porta do santuário, uma pequena 
mesa de pinho coberta de toalha alvíssima. 

 

Abeirava-a, ao findar dos terços, uma figura estranha. 

 

Revestido da longa camisa de azulão, que lhe descia, sem cintura, desgraciosamente, escorrida pelo corpo 
alquebrado abaixo; torso dobrado, fronte abatida e olhos baixos, Antônio Conselheiro aparecia. Quedava longo 
tempo, imóvel e mudo, ante a multidão silenciosa e queda. Erguia lentamente a face macilenta, de súbito 
iluminada por olhar fulgurante e fixo. E pregava. 

 

A noite descia de todo e o arraial repousava sob o império do evangelista humílimo e formidável... 


Capítulo II 

 

Partida de Monte Santo 

 

Iam partir as tropas a 22 de fevereiro. E consoante a praxe, na véspera, à tarde, formaram numa revista em ordem 
de marcha para que se lhes avaliassem o equipamento e as armas. 

 

A partida realizar-se-ia no dia subseqüente, irrevogavelmente. Determinara-a a "ordem de detalhe". 

 

Neste pressuposto alinharam-se os batalhões num quadrado, perlongando as faces do largo de Monte Santo. 

 

Ali estavam: o 7.°, com efetivo superior ao normal, comandado interinamente pelo major Rafael Augusto da 
Cunha Matos; o 9.°, que pela terceira vez se aprestava à luta, ligeiramente desfalcado, sob o comando do coronel 
Pedro Nunes Tamarindo; frações do 33.° e 16.°, dirigidas pelo capitão Joaquim Quirino Vilarim; a bateria de 
quatro Krupps do 2.° Regimento, comandada pelo capitão José Salomão Agostinho da Rocha; um esquadrão de 
cinqüenta praças do 9.° de Cavalaria, ao mando do capitão Pedreira Franco; contingentes da polícia baiana, 
corpo de saúde chefiado pelo dr. Ferreira Nina; e comissão de engenharia. Excetuavam-se setenta praças do 16.°, 
que ficariam com o coronel Sousa Meneses guarnecendo a vila. 

 

Eram ao todo 1.281 homens — tendo cada um 220 cartuchos nas patronas e cargueiros, à parte a reserva de 60 
mil tiros no comboio geral. 

 

Fez-se a revista. Mas contra a expectativa geral, ao invés da voz de ensarilhar armas e debandar, ressoou a 
corneta ao lado do comando em chefe, dando a de "coluna de marcha". 

 

O coronel Moreira César, deixando depois, a galope, o lugar onde até então permanecera, tomou-lhe logo a 
frente. 

 

Iniciava-se quase ao cair da noite a marcha para Canudos. 

 

O fato foi de todo inesperado. Mas não houve o mais leve murmúrio nas fileiras. A surpresa, retratando-se em 
todos os olhares, não perturbou o rigor da manobra. Retumbaram os tambores na vanguarda; deslocaram-se 
sucessivamente as seções, desfilando, adiante, a dois de fundo, ao penetrarem o caminho estreito; abalou o trem 
da artilharia; rodaram os comboios. . . 

 

Um quarto de hora depois, os habitantes de Monte Santo viam desaparecer, ao longe, na última curva da estrada, 
a terceira expedição contra Canudos. 

 

Primeiros erros 

 

A vanguarda chegou em três dias ao Cumbe sem o resto da força, que ficara retardada algumas horas — com o 
comandante retido numa fazenda próxima por outro ataque de epilepsia. 

 

E na antemanhã de 26, tendo alcançado na véspera o sítio de Cajazeiras, a duas e meia léguas do Cumbe, 
abalaram ramo direto ao norte, para Serra Branca mais de três léguas na frente. 

 

Esta parte do sertão, na orla dos tabuleiros que se dilatam até Jeremoabo, diverge muito das que temos 
rapidamente bosquejado. É menos revolta e é mais árida. Rareiam os cerros de flancos abruptos e estiram-se 
chapadas grandes. O aspecto menos revolto da terra, porém, encobre empeços porventura mais sérios. O solo 
arenoso e chato, sem depressões em que se mantenham, reagindo aos estios, as cacimbas salvadoras, é 
absolutamente estéril. E como as maiores chuvas ao caírem, longamente intervaladas, mal o embebem, prestes 
desaparecendo sorvidas pelos areais, cobre-o flora mais rarefeita transmudando-se as caatingas em catanduvas. 

 

Na plenitude do estio de novembro a março, a desolação é completa. Quem por ali se aventura tem a impressão 
de varar por uma roçada enorme de galhos secos e entrançados, onde a faúlha de um isqueiro ateia súbitos 
incêndios, se acaso estes não se alastram espontaneamente no fastígio das secas, nos meio-dias quentes, quando 
o Nordeste atrita rijamente as galhadas. Completa-se então a ação esterilizadora do clima, e por maneira tal que 
naquele trato dos sertões — sem um povoado e onde passam, rápidos, raros viajantes pela estrada de Jeremoabo 
a Bom Conselho — inscrito em vasto círculo irregular tendo como pontos determinantes os povoados que o 


abeiram, do Cumbe ao sul, a Santo Antônio da Glória ao norte, de Jeremoabo a leste, a Monte Santo a oeste, se 
opera lentamente a formação de um deserto. 

 

As árvores escasseiam. Dominando a vegetação inteira, quase exclusivos em certos trechos, enredam-se, em 
todos os pontos, mirrados arbúsculos de mangabeiras, único vegetal que ali medra sem decair, graças ao látex 
protetor que lhe permite, depois das soalheiras e das queimadas, cobrir de folhas e de flores os troncos 
carbonizados, à volta das estações propicias. 

 

Nova estrada 

 

Mas a expedição por ali enveredava na quadra mais imprópria. E tinha que caminhar, de arranco, sob 
temperatura altíssima que esgotava os soldados e não os insolava mercê da secura extrema dos ares, até o ponto 
prefixado, onde a existência de uma cacimba facultaria a alta. 

 

A travessia foi penosamente feita. O terreno inconsistente e móvel fugia sob os passos aos caminhantes; 
remorava a tração das carretas absorvendo as rodas até ao meio dos raios; opunha, salteadamente, flexíveis 
barreiras de espinheirais, que era forçoso destramar a facão; e reduplicava, no reverberar intenso das areias, a 
adustão da canícula. De sorte que ao chegar, à tarde, à serra Branca, a tropa estava exausta. Exausta e sequiosa. 
Caminhara oito horas sem parar, em pleno arder do sol bravio do verão. 

 

Mas para a sede inaturável, que resulta da quase completa depleção das veias esgotadas pelo suor, 
encontraram-se, ali, na profundura de uma cava, alguns litros d"água. 

 

Fora previsto o transe, como vimos. Procurou-se cravar o tubo da bomba artesiana. A operação, porém — e os 
seus efeitos eram impacientemente aguardados — resultou inútil. Era inexeqüível. Ao invés de um bate-estacas 
que facilitasse a penetração da sonda, haviam conduzido aparelho de função inteiramente oposta, um macaco de 
levantar pesos. 

 

Ante o singularíssimo contratempo, só havia alvitrar-se a partida imediata, malgrado a distância percorrida, para 
o sítio do Rosário, seis léguas mais longe. 

 

A tropa combalida abalou à tarde. 

 

A noite colheu-a na marcha, feita ao brilho das estrelas, varando pelas veredas rendilhadas de espinho... 

 

Calcula-se o que foi essa jornada de oito ou dez léguas, sem folga. Mil e tantos homens penetrando, quase em 
cambaleios, torturados de sede, acurvados sob as armas, em pleno território inimigo. O tropear soturno das 
fileiras, o estrépido dos reparos e carretas, os tinidos das armas, esbatiam-se na calada do ermo, e naquela 
assonância ilhada no silêncio se afogavam imperceptíveis estalidos nas macegas. 

 

Ladeavam a tropa — em rastejamentos à ourela dos desvios — os espias dos jagunços. 

 

Ninguém cuidava neles. Abatidos de um dia inteiro de viagem os expedicionários, deslumbrados da luta, iam sob 
o anelo exclusivo dos pousos apetecidos. Seguiam imprudentemente, de todo entregues ao tino e lealdade dos 
guias. 

 

Mas afinal pararam, em plena estrada: alguns estropiados perdiam-se distanciados à retaguarda e os mais 
robustos mesmo a custo caminhavam. Foi uma alta breve, ilusório descanso: praças caídas ao longe dos 
caminhos, oficiais dormindo, os que dormiam, com as rédeas dos cavalos enleadas aos punhos. E reatada a 
marcha, na antemanhã seguinte, reconheceram que estavam na zona perigosa. Cinzas de fogueiras a cada passo 
encontradas e algumas ainda mornas; restos de repastos em que eram preexcelente vitualha jabutis assados e 
quartos de cabrito; rastros frescos na areia, entranhando-se tortuosamente nas caatingas, diziam que os sertanejos 
ali tinham estado, e passado também a noite, rodeando-os, invisíveis, nas rondas cautelosas. 

 

Na Porteira Velha a vanguarda parece mesmo havê-los surpreendido, ocasionando precípite debandada. Ficaram 
junto à fogueira uma pistola de dois canos e um ferrão de vaqueiro. 

 

O Rosário foi alcançado antes do meio-dia, ao tempo que caía violento e transitório aguaceiro, como soem 
sobrevir durante aquela quadra nos sertões. Aquele sítio, destinado a celebrizar-se no correr da campanha, era o 
que eram os demais das cercanias: uma ou duas casas pequenas de telha vã, sem soalho; ladeadas de uma cerca 


de achas, ou paus roliços; fronteando um terreno limpo com algumas árvores franzinas; e tendo, pouco distante, 
a cacimba ou a ipueira que determinou a escolha do local. 

 

A expedição ali campou. Estava no âmago do território inimigo; e, ao que se afigura, invadiram-na pela primeira 
vez as apreensões da guerra. 

 

Di-lo incidente expressivo. 

 

No dia 1.° de março, precisamente na hora em que outra chuva passageira e forte caía sobre a tropa desabrigada, 
estrugiram as notas de um alarma. O inimigo certo aproveitara o ensejo para sobressaltear os invasores, 
ligando-se ao furor dos elementos e surgindo naquele chuveiro, de improviso, armas disparadas no fragor da 
trovoada que abalava a altura... 

 

Correndo e caindo, resvalando no chão escorregadio e encharcado; esbarrando-se em carreiras cruzadas sob o 
fustigar das bátegas, oficiais e praças procuravam a formatura impossível, vestindo-se, apresilhando cinturões e 
talins, armando-se às carreiras; surdos às discordes vozes de comando; alinhando seções e companhias ao acaso, 
num tumulto. E daquele enredamento de fileiras rompeu aforradamente, de arremesso, um cavaleiro isolado, sem 
ordenanças, precipitando-se a galope entre os soldados tontos, e lançando-se pela estrada, na direção provável do 
inimigo, mal alcançado pelo engenheiro militar Domingos Leite. 

 

Era o coronel Moreira César. 

 

Felizmente o inimigo imaginário, a quem ia entregar-se, procurando-o naquela arremetida inútil, era um comboio 
de gêneros enviados por um fazendeiro amigo, das cercanias . 

Tirante este incidente o dia passou em completa paz, tendo vindo à tarde um correio de Monte Santo e cavalos 
para o esquadrão que até ali viajara em muares imprestáveis 

E, na alta madrugada no dia 2, os batalhões marcharam para o Angico onde chegaram às 11 horas da manhã, 
acampando dentro do grande curral do sítio em abandono. 


Estava assente o plano definitivo da rota, adrede concebido de modo a diminuir o esfalfamento das marchas 
forçadas anteriores: descansando todo o resto do dia no rancho do Vigário a tropa abalaria, a 3, para o Angico, andando apenas uns oito quilômetros, e ali, novamente descansando, pernoitaria. Decampando a 4, iria diretamente sobre Canudos, depois de caminhar pouco mais de légua e meia. Como estavam em pleno território inimigo, tomaram-se dispositivos para garantir o acampamento, rodeando-o de piquetes e sentinelas circulares. 

 

O coronel César internou-se na caatinga próxima, onde mandou armar a sua barraca. Ali, não ocultou aos chefes 
dos corpos a segurança absoluta na vitória. Apresentaram-lhe vários alvitres atinentes a rodearem de maiores 
resguardos a investida, um dos quais, aventado pelo comandante do 7.°, impunha a modificação preliminar da 
ordem até então adotada na marcha. Sugeria a divisão em duas, da coluna até então unida, destinando-se uma 
forte vanguarda para o reconhecimento e o primeiro combate; entrando a outra na ação, como reforço. Desse 
modo, se por qualquer circunstância se verificassem poderosos os recursos do adversário, tornar-se-ia factível 
um recuo em ordem para Monte Santo, onde se reorganizariam, aumentadas as forças. 

 

Contra o que era de esperar, o chefe expedicionário não desadorou o alvitre. A tropa prosseguiria a 3, pelo 
amanhecer, adstrita a um plano lucidamente traçado. 

 

Em marcha para o Angico 

 

Entretanto ao marchar para o Angico levava uma ordem que era a mesma da partida do Cumbe: na frente um 
piquete de exploradores montados; um guia, Manuel Rosendo, experimentado e bravo, e a comissão de 
engenharia; uma companhia de atiradores do 7.°, comandada pelo tenente Figueira; a ala direita do 7.° com o 
major Cunha Matos, marchando de costado, levando no centro o respectivo comboio de munições; 1.ª a Divisão 
do 2.° Regimento, sob a imediata direção de Salomão da Rocha; ala esquerda do 7.°, dirigida pelo capitão 
Alberto Gavião Pereira Pinto; 2 a Divisão de Artilharia, do 1.° tenente Marcos Pradel de Azambuja; ala direita 
do 9.°, sob o mando do coronel Tamarindo, separada da esquerda, dirigida pelo capitão Felipe Simões, pelo 
respectivo comboio. 


 

À retaguarda o corpo de saúde; contingentes do 16.°, do capitão Quirino Vilarim; e o comboio geral guardado 
pela polícia baiana. 

 

Por último a cavalaria. O coronel César, na vanguarda, ia entre a companhia de atiradores e a ala direita do 7.°. 

 

Tinham partido às cinco horas da manhã. Alcançavam a região característica dos arredores de Canudos: 
fortemente riçada de serranias vestidas de vegetação raquítica, de cardos e bromélias; recortada de regatos 
derivando em torcicolos — num crescente enrugamento da terra cada vez mais adversa, onde a vinda recente das 
chuvas ainda não estendera a vestimenta efêmera da flora revivente, velando-lhe os pedroiços e os algares. 

 

Os chuvisqueiros da véspera, como sucede na plenitude do estio, haviam passado sem deixarem traços. O solo 
requeimado absorvera-os e repelira-os, permanecendo ressequido e agro. Em roda, até aonde se estendia o olhar, 
pelo bolear dos cerros, pelas rechãs que se estiram nos altos, pelas várzeas que os circuitam, pelas serranias de 
flancos degradados, por toda a parte, o mesmo tom nas paisagens a um tempo impressionadoras e monótonas: a 
natureza imóvel, caída num grande espasmo, sem uma flor sobre as ramagens nuas, sem um bater de asas nos 
ares quietos e serenos... 

 

A coluna em marcha, estirada numa linha de três quilômetros, cortava-a em longo risco negro e tortuoso. 

 

Viam-se, adiante e próximas, ao norte, as últimas serranias que rodeiam Canudos, sem que este abeirar-se do 
objetivo da luta conturbasse o ânimo dos soldados. 

 

Psicologia do soldado brasileiro 

 

Seguiam tranqüilamente a passo ordinário e seguro. 

 

Da extensa linha da brigada evolava-se um murmúrio vago de milhares de sílabas emitidas à meia voz, aqui, ali, 
repentinamente salteadas de risos joviais. Os nossos soldados estadeavam o seu atributo preeminente naquela 
alacridade singular com que se aproximavam do inimigo. Homens de todas as cores, amálgamas de diversas 
raças, parece que no sobrevir dos lances perigosos e no abalo de emoções fortíssimas lhes preponderam, 
exclusivas, no animo, por uma lei qualquer de psicologia coletiva, os instintos guerreiros, a imprevidência dos 
selvagens, a inconsciência do perigo, o desapego à vida e o arremesso fatalista para a morte. 

 

Seguem para a batalha como para algum folguedo turbulento. Intoleráveis na paz que os molifica, e infirma, e 
relaxa; inclassificáveis nas paradas das ruas, em que passam sem garbo, sem aprumo, corcundas sob a espingarda 
manejada, a guerra é o seu melhor campo de instrução e o inimigo o instrutor predileto, transmudando-os em 
poucos dias, disciplinando-os, enrijando-os, dando-lhes em pouco tempo, nos exercícios extenuadores da marcha 
e do combate, o que nunca tiveram nas capitais festivas — a altivez do porte, a segurança do passo, a precisão do 
tiro, a celeridade das cargas. Não sucumbem à provação. São inimitáveis no caminhar dias a fio pelos mais 
malgrados caminhos. Não bosquejam a reclamação mais breve nas piores aperturas; e nenhuns se lhes 
emparelham no resistir à fome, atravessando largos dias à brisa, segundo o dizer de seu calão pinturesco. Depois 
dos mais angustiosos transes, vimos valentes escaveirados meterem à bulha o martírio e troçarem, rindo, com a 
miséria. 

 

No combate, certo, nenhum é capaz de entrar e sair, como o prussiano, com um podômetro preso à bota—é 
desordenado, é revolto, é turbulento, é um garoto heróico e terrível, arrojando contra o adversário, de par com a 
bala ou a pranchada, um dito zombeteiro e irônico. Por isto se imprópria ao desdobramento das grandes massas 
nas campanhas clássicas. Manietam-no as formaturas corretas. Estonteia-o o mecanismo da manobra complexa. 
Tortura-o a obrigação de combater adstrito ao ritmo das cornetas; e de bom grado obediente aos amplos 
movimentos da estratégia, seguindo, impassível, para os pontos mais difíceis, quando o inimigo lhe chega à 
ponta do sabre quer combater a seu modo. Bate-se, então, sem rancor, mas estrepitosamente, fanfarrão, folgando 
entre as cutiladas e as balas, arriscando-se doidamente, barateando a bravura. Fá-lo, porém, de olhos fixos nos 
chefes que o dirigem e de cuja energia parece viver exclusivamente. De sorte que a mínima vacilação daqueles 
tem, de chofre, extintas todas as ousadias e cai num abatimento instantâneo salteado de desânimos invencíveis. 

 

Ora, naquela ocasião, tudo vaticinava aos expedicionários a vitória. Com tal chefe não havia cogitar em reveses. 
E endireitavam firmes para a frente, impacientes por virem às mãos com o adversário esquivo. Vendiam 
escandalosamente a pele do urso sertanejo. Gizavam antecipadas façanhas; coisas de pasmar, depois, aos 
ouvintes crédulos e tímidos; cenas jocotrágicas — lá dentro, na tapera monstruosa, quando a varressem a tiro. E 


faziam planos bizarros, projetos prematuros, iniciados todos por uma preliminar ingênua: "Quando eu voltar. . . 
". 

 

Alguns, às vezes, saíam-se com um pensamento extravagante, e no burburinho confuso passava, sulcando-o, um 
ondular de risos mal contidos... 

 

Além disto, aquela manhã resplandescente os alentava. O belo firmamento dos sertões arqueava-se sobre a terra 
— irisado — passando em transições suavíssimas do zênite azul à púrpura deslumbrante do oriente. 

 

Ademais o adversário que deixara livre até ali o caminho, desdenhando os melhores trechos para o cortar, 
ameaçava-os de mil único contratempo sério: o toparem vazio o arraial sedicioso. 

 

Assustava-os esse desapontamento provável; a campanha transformada em passeio militar penoso; a volta 
inglória, sem o dispêndio de um cartucho. 


Capítulo III 

 

Pitombas 

 

Iam nestas disposições admiráveis quando chegaram a Pitombas. 

 

O pequeno ribeirão que ali corre, recortando fundamente o solo, ora ladeia, ora atravessa a estrada, 
interrompendo-a, serpeante. Por fim a deixa antes de chegar ao sítio a que dá o nome, arqueando-se em volta 
longa, um quase semicírculo de que o caminho é a corda. 

 

O primeiro encontro 

 

Tomou por esta a tropa. E, quando a vanguarda lhe atingiu o meio, estourou uma descarga de meia dúzia de 
tiros. 

 

Era afinal o inimigo. 

 

Algum piquete de sobre-ronda à expedição, ou ali aguardando-a, que aproveitara a conformação favorável do 
terreno para um ataque instantâneo, ferindo-a de soslaio, e furtando-se a seguro pelas passagens cobertas das 
ribanceiras do rio. 

 

Mas atirara com firmeza: abatera, mortalmente ferido, um dos subalternos da companhia de atiradores, o alferes 
Poli, além de seis a sete soldados. Descarregara as armas e fugira a tempo de escapar à réplica, que foi pronta. 

 

Para logo conteirados os canhões da divisão Salomão, a metralha explodiu no matagal rasteiro. Os arbustos 
dobraram acamando-se, como à passagem de ventanias ríspidas. Varreram-no. 

 

Logo depois nos ares, ainda ressoantes dos estampidos, correu triunfalmente o ritmo de uma carga, e 
destacando-se, desenvolvida em atiradores, do grosso da coluna, a ala direita do 7.° lançou-se na direção do 
inimigo, atufando-se nas macegas, a marche-marche, roçando-as a baioneta. 

 

Foi uma diversão gloriosa e rápida. 

 

O inimigo furtara-se ao recontro. Volvidos minutos, a ala tornou à linha da coluna entre aclamações, enquanto o 
antigo toque de "trindades", era agora o sinal da vitória, soava em vibrações altíssimas. O comandante em chefe 
abraçou, num lance de alegria sincera, o oficial feliz que dera aquele repelão valente no antagonista, e 
considerou auspicioso o encontro. Era quase para lastimar tanto aparelho bélico, tanta gente, tão luxuosa 
encenação em campanha destinada a liquidar-se com meia dúzia de disparos. 

 

"Esta gente está desarmada..." 

 

As armas dos jagunços eram ridículas. Como despojo os soldados encontraram uma espingarda pica-pau, leve e 
de cano finíssimo, sob a barranca. Estava carregada. O coronel César, mesmo a cavalo, disparou-a para o ar. Um 
tiro insignificante, de matar passarinho. 

 

— Esta gente está desarmada... — disse tranqüilamente. 

 

E reatou-se a marcha, mais rápida agora, a passos estugados, ficando em Pitombas os médicos e feridos, sob a 
proteção do contingente policial e resto da cavalaria. O grosso dos combatentes perdeu-se logo em adiante, em 
avançada célere. Quebrara-se, de vez, o encanto do inimigo. Os atiradores e flanqueadores, na vanguarda, batiam 
o caminho e embrenhavam-se nas caatingas, rastreando os espias que acaso por ali houvesse, desinçando-as das 
tocaias prováveis, ou procurando alcançar os fugitivos que endireitavam para Canudos. 

 

O recontro fora um choque galvânico. A tropa, a marche-marche, prosseguia, agora, sob a atração irreprimível da 
luta, nessa ebriez mental perigosíssima, que estonteia o soldado duplamente fortalecido pela certeza da própria 
força e a licença absoluta para as brutalidades máximas. 

 

O pânico e a bravura 

 


Porque num exército que persegue há o mesmo automatismo impulsivo dos exércitos que fogem. O pânico e a 
bravura doida, o extremo pavor e audácia extrema, confundem-se no mesmo aspecto. O mesmo estonteamento e 
o mesmo tropear precipitado entre os maiores obstáculos, e a mesma vertigem, e a mesma nevrose torturante 
abalando as fileiras, e a mesma ansiedade dolorosa, estimulam e alucinam com idêntico vigor o homem que foge 
à morte e o homem que quer matar. É que um exército é, antes de tudo, uma multidão, "acervo de elementos 
heterogêneos em que basta irromper uma centelha de paixão para determinar súbita metamorfose, numa espécie 
de geração espontânea em virtude da qual milhares de indivíduos diversos se fazem um animal único, fera 
anônima e monstruosa caminhando para dado objetivo com finalidade irresistível". Somente a fortaleza moral de 
um chefe pode obstar esta transfiguração deplorável, descendo, lúcida e inflexível, impondo uma diretriz em que 
se retifique o tumulto. Os grandes estrategistas têm, instintivamente, compreendido que a primeira vitória a 
alcançar nas guerras está no debelar esse contágio de emoções violentas e essa instabilidade de sentimentos que 
com a mesma intensidade lançam o combatente nos mais sérios perigos e na fuga. Um plano de guerra riscado a 
compasso numa carta exige almas inertes — máquinas de matar — firmemente encarrilhadas nas linhas que 
preestabelece. 

 

Mas estavam longe deste ideal sinistro os soldados do coronel Moreira César, e este ao invés de reprimir a 
agitação ia ampliá-la. Far-se-ia o expoente da nevrose. 

 

Sobreviera, entretanto, ensejo para normalizar a situação. 

 

Chegaram a Angico, ponto determinado da última parada. Ali, estatuíra-se em detalhe, repousariam. 
Decampariam pela manhã do dia seguinte: cairiam sobre Canudos após duas horas de marcha. O ímpeto que 
trazia a tropa, porém, teve uma componente favorável nas tendências arrojadas do chefe. Obsediava-o o anseio 
de vir logo às mãos com o adversário. 

 

A alta no Angico foi de um quarto de hora; o indispensável para mandar tocar a oficiais; reuni-los sobre pequena 
ondulação dominante sobre os batalhões, ofegantes em torno; e apresentar-lhes, olvidando o axioma de que nada 
se pode tentar com soldados fatigados, o alvitre de prosseguirem naquela arremetida até o arraial: 

 

— Meus camaradas ! como sabem, estou visivelmente enfermo. Há muitos dias não me alimento; mas Canudos 
está muito perto. . . Vamos tomá-lo ! 

 

Foi aceito o alvitre. 

 

—Vamos almoçar em Canudos! — disse, alto. 

 

Respondeu-lhe uma ovação da soldadesca. 

 

A marcha prosseguiu. Eram onze horas da manhã. 

 

Dispersa na frente a companhia de atiradores revolvia as moiteiras, dentre as quais, distantes, raros tiros, 
espaçados, de adversários em fuga, estrondavam, como se tivessem o intuito único de a atraírem e ao resto da 
tropa; espelhando estratégia ardilosa, armada a arrebatá-la até ao arraial naquelas condições desfavoráveis — 
combalida e exausta de uma marcha de seis horas. 

 

"Em acelerado !" 

 

Há um atestado iniludível desta arrancada louca, encurtando o fôlego dos soldados perto da batalha: para que se 
não remorasse o passo de carga da infantaria, foi permitido às praças arrojarem de si as mochilas, cantis e 
bornais, e todas as peças do equipamento, excluídos os cartuchos e as armas, que a cavalaria, à retaguarda, ia 
recolhendo, à medida que encontrava. 

 

Neste avançar desapoderado, galgaram a achada breve do alto das Umburanas. Canudos devia estar muito perto, 
ao alcance da artilharia. A força fez alto... 

 

Dois cartões de visita ao Conselheiro 

 

O guia Jesuíno, consultado, apontou com segurança a direção do arraial. Moreira César pôs em batalha a divisão 
Pradel e, graduada a alça de mira para três quilômetros, mandou dar dois tiros segundo o rumo indicado. 

 


— Lá vão dois cartões de visita ao Conselheiro. . . — disse, quase jovial, com o humorismo superior de um forte. 

 

A frase passou como um frêmito entre as fileiras. Aclamações. Renovou-se a investida febrilmente. 

 

O sol dardejava a prumo. Transpondo os últimos acidentes fortes do terreno, os batalhões abalaram, dentro de 
uma nuvem pesada e cálida, de poeira. 

 

De súbito, surpreendeu-os a vista de Canudos. 

 

Estavam no alto da Favela. 

 

Um olhar sobre Canudos 

 

Ali estava, afinal, a tapera enorme que as expedições anteriores não haviam logrado atingir. 

 

Aparecia, de improviso, toda, numa depressão mais ampla da planície ondulada. E no primeiro momento, antes 
que o olhar pudesse acomodar-se àquele montão de casebres, presos em rede inextricável de becos estreitíssimos 
e dizendo em parte para a grande praça onde se fronteavam as igrejas, o observador tinha a impressão exata de 
topar, inesperadamente, uma cidade vasta. Feito grande fosso escavado, à esquerda, no sopé das colinas mais 
altas, o Vaza-Barris abarcava-a e inflectia depois, endireitando em cheio para leste, rolando lentamente as 
primeiras águas da enchente. A casaria compacta em roda da praça a pouco e pouco se ampliava, distendendo-se, 
avassalando os cerros para leste e para o norte até às últimas vivendas isoladas, distantes, como guaritas 
dispersas — sem que uma parede branca ou telhado encaliçado quebrasse a monotonia daquele conjunto 
assombroso de 5 mil casebres impactos numa ruga da terra. As duas igrejas destacavam-se, nítidas. A nova, à 
esquerda do observador — ainda incompleta, tendo aprumadas as espessas e altas paredes mestras, envolta de 
andaimes e bailéus, mascarada ainda de madeiramento confuso de traves, vigas e baldrames, de onde se alteavam 
as pernas rígidas das cábreas com os moitões oscilantes; erguida dominadoramente sobre as demais construções, 
assoberbando a planície extensa; e ampla, retangular, firmemente assente sobre o solo, patenteando nos largos 
muros grandes blocos dispostos numa amarração perfeita — tinha, com efeito, a feição completa de um baluarte 
formidável. Mais humilde, construída pelo molde comum das capelas sertanejas enfrentava-a a igreja velha. E 
mais para a direita, dentro de uma cerca tosca, salpintado de cruzes pequenas e mal feitas — sem um canteiro, 
sem um arbusto, sem uma flor — aparecia um cemitério de sepulturas rasas, uma tibicuera triste. 
Defrontando-as. do outro lado do rio, breve área complanada contrastava com o ondear colinas estéreis: algumas 
árvores esparsas, pequenos renques de palmatórias rutilantes e as ramagens virentes de seis pés de quixabeiras 
davam-lhe o aspecto de um jardim agreste. Aí caía a encosta de um esporão do morro da Favela, avantajando-se 
até ao rio, onde acabava em corte abrupto. Estes últimos rebentos da serrania tinham a denominação apropriada 
de Pelados, pelo desnudo das faldas. Acompanhando o espigão na ladeira, que para eles descamba em boléus, 
via-se, a meio caminho, uma casa em ruínas, a fazenda Velha. Sobranceava-a um socalco forte, o Alto do Mário. 

 

No fastígio da montanha, a tropa. 

 

Chegada da força 

 

Chegaram primeiro a vanguarda do.. 7.º e a artilharia, repulsando violento ataque pela direita, enquanto o resto 
da infantaria galgava as últimas ladeiras. Mal atentaram para o arraial. Os canhões alinharam-se em batalha, ao 
tempo que chegavam os primeiros pelotões embaralhados e arfando — e abriram o canhoneio disparando todos a 
um tempo, em tiros mergulhantes. 

 

Não havia errar o alvo desmedido. Viram-se os efeitos das primeiras balas em vários pontos; explodindo dentro 
dos casebres e estraçoando-os, e enterroando-os; atirando pelos ares tetos de argilas e vigamentos em estilhas; 
pulverizando as paredes de adobes; ateando os primeiros incêndios... 

 

Em breve sobre a casaria fulminada se enovelou e se adensou, compacta, uma nuvem de poeira e de fumo, 
cobrindo-a 

 

Não a divisou mais o resto dos combatentes. O troar solene da artilharia estrugia os ares; reboava longamente por 
todo o âmbito daqueles ermos, na assonância ensurdecedora dos ecos refluídos das montanhas... 

 

Rebate 

 


Mas, passados minutos, começaram a ouvir-se, nítidas dentro da vibração dos estampidos, precípites vozes 
argentinas. O sino da igreja velha batia, embaixo, congregando os fiéis para a batalha. 

 

Esta não se travara ainda. 

 

À parte ligeiro ataque de flanco, feito por alguns guerrilheiros contra a artilharia, nenhuma resistência tinham 
oposto os sertanejos. As forças desenvolveram-se pelo espigão aladeirado, sem que uma só descarga perturbasse 
o desdobramento; e a fuzilaria principiou, em descargas rolantes e nutridas, sem pontarias .Oitocentas 
espingardas arrebentando, inclinadas, tiros rasantes, pelo tombador do morro... 

 

Entre os claros do fumo lobrigava-se o arraial. Era uma colmeia alarmada: grupos inúmeros, dispersos, 
entrecruzando-se no largo, derivando às carreiras pelas barrancas do rio, dirigindo-se para as igrejas, rompendo, 
sopesando as armas, dos becos; saltando pelos tetos... 

 

Alguns pareciam em fuga, ao longe, no extremo do arraial, pervagantes na orla das caatingas, desaparecendo no 
descair das colinas. Outros aparentavam incrível tranqüilidade, atravessando a passo tardo a praça, alheios ao 
tumulto e às balas respingadas da montanha. 

 

Toda uma companhia do 7.°, naquele momento, fez fogo, por alguns minutos, sobre um jagunço, que vinha pela 
estrada de Uauá. E o sertanejo não apressava o andar. Parava às vezes. Via-se o vulto impassível aprumar-se ao 
longe considerando a força por instantes, e prosseguir depois, tranqüilamente. Era um desafio irritante. 
Surpreendidos, os soldados atiravam nervosamente sobre o ser excepcional, que parecia comprazer-se em ser 
alvo de um exército. Em dado momento ele sentou-se à beira do caminho e pareceu bater o isqueiro, acendendo 
o cachimbo. Os soldados riram. O vulto levantou-se e encobriu-se, lento e lento, entre as primeiras casas. 

 

Dali nem um tiro partira. Diminuíra a agitação da praça. Cortavam-na os últimos retardatários. Viram-se passar, 
correndo, carregando ou arrastando pelo braço crianças, as últimas mulheres, na direção da latada, procurando o 
anteparo dos largos muros da igreja nova. 


 

Capítulo IV 

 

A ordem de batalha 

 

Por fim emudeceu o sino. 

 

A força começou a descer, estirada pelas encostas e justapostas às vertentes. Deslumbrava num irradiar de 
centenares de baionetas. Considerando-a o chefe expedicionário disse ao comandante de uma das companhias do 
7.°, junto ao qual se achava: 

 

— Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro !... à baioneta ! 

 

Era uma hora da tarde. 

 

Feita a descida, a infantaria desenvolveu-se, em parte, no vale das quixabeiras, estremada à direita pelo 7.°, que 
se alinhara segundo o traçado do Vaza-Barris, e à esquerda pelos 9.º e 16.° mal distendidos em terreno 
impróprio. A artilharia, no centro, sobre o último esporão dos morros avançado e a prumo sobre o rio, fronteiro e 
de nível com as cimalhas da igreja nova — fez-se o eixo desta tenalha prestes a fechar-se, apertando os flancos 
do arraial. 

 

Era a mais rudimentar das ordens de combate: a ordem paralela simples, feita para os casos excepcionalíssimos 
de batalhas campais, em que a superioridade do número e da bravura, excluindo manobras mais complexas, 
permita, em terreno uniforme, a ação simultânea e igual de todas as unidades combatentes. 

 

O terreno. Crítica 

 

Ali era inconceptível. Centralizada pela eminência onde estavam os canhões, a frente do assalto tinha, ao lado 
umas de outras, formas topográficas opostas; à direita, breve área de nível, facultando investida fácil porque o 
rio, naquele ponto, além de raso, corre entre bordas deprimidas; à esquerda, a terra mais revolta descaindo em 
recostos resvalantes e separadas do arraial por um fosso profundo. A observação mais rápida indicava, porém, 
que estas disposições da extrema esquerda, sendo de todo desfavoráveis para os lutadores que devessem 
percorrê-las rapidamente correndo para o assalto, eram, por outro lado, elemento tático de primeira ordem para 
uma reserva que ali estacionasse, de prontidão, destinando-se a uma diversão ligeira, ou a intervir 
oportunamente, segundo as modalidades ulteriores do recontro. Deste modo, o relevo geral do solo ensinava. por 
si mesmo, a ordem oblíqua, simples ou reforçada numa das alas, e, ao invés do ataque simultâneo, o ataque 
parcial pela direita firmemente apoiado pela artilharia, cujo efeito, atirando a cerca de pouco mais de cem metros 
do inimigo, seria fulminante. 

 

Além disto, não havia mais surpresas naquela luta e, caso o adversário desdobrasse, de súbito, imprevistos 
recursos de defesa, as tropas de reforço, agindo fora do círculo tumultuário do combate, poderiam mais 
desafogadamente mover-se, segundo as eventualidades emergentes, em manobras decisivas, visando objetivos 
firmes. O coronel Moreira César, porém, desdenhara essas condições imperiosas e, arrojando à batalha toda a sua 
gente, parecia contar menos com a bravura do soldado e competência de uma oficialidade leal que com uma 
hipótese duvidosa: o espanto e o terror dos sertanejos em fuga, colhidos de improviso por centenares de 
baionetas. Revelou — claro — este pensamento injustificável, em que havia a insciência de princípios 
rudimentares da sua arte de par com o olvido de acontecimentos recentes; e cumulou tal deslize planeando a 
mais desastrosa das disposições assaltantes. 

 

De feito, acometendo a um tempo por dois lados, os batalhões, de um e outro extremo, carregando convergentes 
para um objetivo único, fronteavam-se a breve trecho, trocando entre si as balas destinadas ao jagunço. Enquanto 
a artilharia, podendo a princípio bombardear as igrejas e centro do povoado, a pouco e pouco ia tendo restringido 
o âmbito de sua ação, à medida que avançavam aqueles, até perdê-la de todo, obrigada a emudecer na fase aguda 
da peleja generalizada, fugindo ao perigo de atirar sobre os próprios companheiros, indistintos com os 
adversários dentro daquele enredamento de casebres. 

 

A previsão de tais inconvenientes, entretanto, não requeria vistas aquilinas de estrategista emérito. Revelaram-se 
nos primeiros minutos da ação. 

 

Cidadela-mundéu 


 

Esta foi iniciada heroicamente, abalando toda a tropa ao ressoar das cornetas de todos os corpos ao tempo que, 
vibrando de novo o sino da igreja velha, uma fuzilaria intensa irrompia das paredes e tetos das vivendas mais 
próximas ao rio e estrondavam, numa explosão única, os bacamartes dos guerrilheiros adensados dentro da igreja 
nova. 

 

Favorecido pelo terreno, o 7.° Batalhão marchou em acelerado, sob uma saraivada de chumbo e seixos rolados, 
até à borda do rio. Em breve, vingando a barranca oposta, viram-se à entrada da praça os primeiros soldados, em 
grupos, sem coisa alguma que lembrasse a formatura do combate. Alguns ali mesmo tombaram ou rolaram na 
água, arrastados na corrente, que se listrava de sangue. A maioria avançou, batida de soslaio e de frente. Na 
extrema esquerda uma ala do 9.°, vencendo as dificuldades da marcha cheia de tropeços, tomara posição à 
retaguarda da igreja nova, enquanto o 16.° e a ala direita do 7.° investiam pelo centro. O combate desenrolou-se 
logo em toda a plenitude, resumindo-se naquele avançar temerário. Não teve, depois, a evolução mais simples, 
ou movimento combinado, que revelasse a presença de um chefe. 

 

Principiou a fracionar-se em conflitos perigosos e inúteis, numa dissipação inglória do valor. Era inevitável. 
Canudos, entretecido de becos de menos de dois metros de largo, trançados, cruzando-se em todos os sentidos, 
tinha ilusória fragilidade nos muros de taipa que o formavam. Era pior que uma cidadela inscrita em polígonos 
ou blindada de casamatas espessas. Largamente aberto aos agressores que podiam derruí-lo a coices de arma, 
que podiam abater-lhe a pulso as paredes e tetos de barro, ou vará-lo por todos os lados, tinha a inconsistência e 
a flexibilidade traiçoeira de uma rede desmesurada. Era fácil investi-lo, batê-lo, dominá-lo, varejá-lo, aluí-lo ; era 
dificílimo deixá-lo. Completando a tática perigosa do sertanejo, era temeroso porque não resistia. Não opunha a 
rijeza de um tijolo à percussão e arrebentamento das granadas, que se amorteciam sem explodirem, furando-lhe 
de uma vez só dezenas de tetos. Não fazia titubear a mais reduzida seção assaltante, que poderia investi-lo, por 
qualquer lado, depois de transposto o rio. Atraía os assaltos; e atraía irreprimivelmente o ímpeto das cargas 
violentas, porque a arremetida dos invasores, embriagados por vislumbres de vitória, e disseminando-se, 
divididos pelas suas vielas em torcicolos, lhe era o recurso tremendo de uma defesa surpreendedora. 

 

Na história sombria das cidades batidas, o humílimo vilarejo ia surgir com um traço de trágica originalidade. 

 

Intacto — era fragílimo; feito escombros — formidável. 

 

Rendia-se para vencer, aparecendo, de chofre, ante o conquistador surpreendido, inexpugnável e em ruínas. 

 

Porque a envergadura de ferro de um exército, depois de o abalar e desarticular todo, esmagando-o, tornando-o 
montão informe de adobes e madeiras roliças, se sentia inopinadamente manietada, presa entre tabiques 
vacilantes de pau a pique e cipós, à maneira de uma suçuarana inexperta agitando-se, vigorosa e inútil, nas 
malhas de armadilha bem feita. 

 

A prática venatória dos jagunços inspirara-lhes, talvez, a criação pasmosa da "cidadela-mundéu"... 

 

Ora, as tropas do coronel Moreira César faziam-na desabar sobre si mesmas. 

 

Conflitos parciais 

 

A princípio, transposto o Vaza-Barris, a despeito de algumas baixas, o acometimento figurara-se fácil. Um 
grupo, arrastado por subalternos valentes, arrancara atrevidamente contra a igreja nova, sem efeito algum 
compensando-lhe o arrojo, perdendo dois oficiais e algumas praças. Outros, porém, contornando aquele núcleo 
resistente, lançaram-se às primeiras casas marginais ao rio. Tomaram-nas e incendiaram-nas; enquanto os que as 
guarneciam fugiam, adiante, em busca de outros abrigos. Perseguiram-nos. E nesse perseguir tumultuário, 
realizado logo nos primeiros minutos do combate, começou a esboçar-se o perigo único e gravíssimo daquele 
fossado monstruoso; os pelotões dissolviam-se. Entalavam-se nas vielas estreitas, enfiando a dois de fundo por 
ali dentro, atropeladamente. Torciam centenares de esquinas que se sucediam de casa em casa; dobravam-nas em 
desordem, de armas suspensas uns, atirando outros ao acaso, à toa, para a frente; e dividiam-se, a pouco e pouco, 
em seções pervagantes para toda a banda; e partiam-se, estas, por seu turno, em grupos aturdidos cada vez mais 
dispersos e rarefeitos, dissolvendo-se ao cabo em combatentes isolados... 

 

De longe se tinha o espetáculo estranho de um entocamento de batalhões, afundando, de súbito, no casario 
indistinto, em cujos tetos de argila se enovelava a fumarada dos primeiros incêndios. 

 


Deste modo, o ataque assumiu logo o caráter menos militar possível. Diferenciou-se em conflitos parciais no 
cunhal das esquinas, à entrada e dentro das casas. 

 

Estas eram tumultuariamente investidas. Não opunham o menor tropeço. Escancarava-as um coice de arma nas 
portas ou nas paredes, rachando-as, abrindo por qualquer lado passagens francas. Estavam vazias muitas. 
Noutras os intrusos tinham, de repente, abocado ao peito um cano de espingarda, ou baqueavam batidos de tiros 
à queima-roupa, rompendo dos resquícios das paredes. Acudiam-nos os companheiros mais próximos. 
Enredava-se o pugilato corpo a corpo, brutalmente, até que os soldados, mais numerosos, transpusessem o portal 
estreito do casebre. Lá dentro, encouchado num recanto escuro, o morador repelido descarregava-lhes em cima o 
último tiro e fugia. Ou então esperava-os a pé firme, defendendo tenazmente o lar paupérrimo. E revidava 
terrivelmente — sozinho — em porfia com a matula vitoriosa, com a qual se afoitava, apelando para todas as 
armas: repelindo-a a faca e a tiro; vibrando-lhe foiçadas; aferroando-a com a aguilhada ; arremessando-lhe em 
cima os trastes miseráveis; arrojando-se, afinal, ele próprio, inerme, desesperadamente, resfolegando, procurando 
estrangular o primeiro que lhe caísse entre os braços vigorosos. Em torno mulheres desatinadas disparavam em 
choros, e rolavam pelos cantos; até baquear no chão, cosido à baioneta ou esmoído a coronhadas, pisoado sob o 
rompão dos coturnos, o lutador temerário. 


Reproduziam-se tais cenas. 

Saque antes do triunfo 

Quase sempre, depois de expugnar a casa, o soldado faminto não se forrava à ânsia de almoçar, afinal, em 
Canudos. Esquadrinhava os jiraus suspensos. Ali estavam carnes secas ao sol; cuias cheias de paçoca, a farinha de guerra do sertanejo; aiós repletos de ouricuris saborosos. A um canto os bogós transudantes, túmidos de água cristalina e fresca. Não havia resistir. Atabalhoadamente fazia a refeição num minuto. Completava-a largo trago de água. Tinha, porém, às vezes, um pospasto crudelíssimo e amargo — uma carga de chumbo... 

 

Os jagunços à porta assaltavam-no. E invertiam-se os papéis, revivendo o conflito, até baquear no chão — 
cosido à faca e moído a pauladas, pisado pela alpercata dura o lutador imprudente. 

 

No labirinto das vielas 

 

Muitos se perdiam no inextricável dos becos. Correndo no encalço do sertanejo em fuga, topavam, de súbito, na 
frente, desembocando doma esquina, cerrado magote de inimigos. Estacavam, atônitos, apenas o tempo 
necessário para uma pontaria mal feita e uma descarga; e recuavam, depois, metendo-se pelas casas dentro, onde 
os salteavam, às vezes, novos agressores entocaiados; ou arrolavam-se atrevidamente, dispersando o 
agrupamento antagonista e dispersando-se — reeditando os mesmos episódio; animados todos pela ilusão de 
uma vitória vertiginosamente alcançada, de que Ihes eram sintoma claro toda aquela desordem, todo aquele 
espanto, todo aquele alarido e todo aquele pavor do povoado revolto e miserando — alarmado à maneira de um 
curral invadido por onças bravias e famulentas. 

 

De resto, não tinham insuperáveis obstáculos enfreando-lhes o ímpeto. Os valentes temerários, que apareciam 
em vários pontos, defendendo os lares, tinham o contrapeso do mulherio acobardado, sacudido das casas a 
pranchada, a bala e a fogo, e fugindo para toda a banda, clamando, rezando; ou uma legião armada de muletas—
velhos trementes, aleijões de toda espécie, enfermos abatidos e mancos. 

 

De sorte que nestas correrias desapoderadas, presos pela vertigem perseguidora, muitos se extraviaram, às tontas, 
no labirinto das vielas; e, tentando aproximar-se dos companheiros, desgarravam-se mais e mais — quebrando, a 
esmo, mil esquinas breves, perdidos por fim, no arraial convulsionado e imenso. 

 

Situação inquietadora 

 

À frente do seu Estado-maior, na margem direita do rio, o chefe expedicionário observava este assalto. acerca do 
qual não podia certamente formular uma única hipótese. A tropa desaparecera toda nos mil latíbulos de Canudos. 
Lá dentro rolava ruidosamente a desordem, numa assonância golpeada de estampidos, de imprecações, de gritos 
estrídulos, vibrantes no surdo tropear das cargas. Grupos esparsos, seções em desalinho de soldados, magotes 
diminutos de jagunços, apareciam, por vezes, inopinadamente, no claro da praça; e desapareciam, logo, mal 
vistos entre o fumo, embrulhados, numa luta braço a braço... 

 

Nada mais. A situação era afinal inquietadora. 


 

Nada prenunciava desânimo entre os sertanejos. 

 

Os atiradores da igreja nova permaneciam firmes, visando todos os pontos quase impunemente, porque a 
artilharia por fim evitava alvejá-la temendo quaisquer desvios de trajetória, que lançassem as balas entre os 
próprios companheiros encobertos; e, estalando em cheio no arruído da refrega, ouviam-se mais altas as 
pancadas repetidas do sino na igreja velha. 

 

Além disto, a ação abrangia apenas a metade do arraial. 

 

A outra, à direita, onde terminava a estrada de Jeremoabo, estava indene. 

 

Menos compacta — era menos expugnável. Desenrolava-se numa lomba extensa, permitindo a defesa a 
cavaleiro do inimigo, e obrigando-o a escaladas penosíssimas. De sorte que, ainda quando a parte investida fosse 
conquistada, aquela restaria impondo talvez maiores fadigas. 

 

Realmente, embora sem o torvelinho dos becos, as casas isoladas, em disposição recordando vagamente 
tabuleiros de xadrez, facultavam extraordinário cruzamento de fogos, permitindo a um atirador único apontar 
para os quadrantes sem abandonar uma esquina. Considerando aquele lado do arraial a situação aclarava-se. Era 
gravíssima. Ainda contando com o sucesso franco na parte combatida, os soldados triunfantes, mas exaustos, 
arremeteriam, inúteis, com aquela encosta separada da praça pelo fosso natural de uma sanga profunda. 
Compreendeu-o o coronel Moreira César. E ao chegarem a retaguarda, a polícia e o esquadrão de cavalaria, 
determinou que aquela seguisse à extrema direita, atacando o bairro ainda indene e completando a ação que se 
desdobrara toda na esquerda. A cavalaria, secundando-a, teve ordem de atacar pelo centro, entre as igrejas. 

 

Uma carga de cavalaria em Canudos... 

 

Era uma excentricidade. A arma clássica das planícies rasas, cuja força é o arremesso do choque, surgindo de 
improviso no fim das disparadas velozes, ali constrita entre paredes, carregando, numa desfilada dentro de 
corredores. . . 

 

O esquadrão — cavalos abombados, rengueando sobre as pernas bambas — largou em meio galope curto até à 
beira do rio, cujas águas respingavam chofradas de tiros; e não foi adiante. Os animais assustadiços refugavam. 
Dilacerados à espora, chibateados à espada, mal vadearam até o meio da corrente, e empinando, e curveteando, 
freios tomados nos dentes, em galões, cuspindo da sela os cavaleiros, volveram em desordem à posição 
primitiva. Por seu turno, a polícia, depois de transpor o rio com água pelos joelhos, numa curva a jusante, 
vacilava ao deparar o álveo resvaladio e fundo da sanga que naquele ponto corre de norte a sul, separando do 
resto do arraial o subúrbio que devia acometer. 

 

O movimento complementar quebrava-se assim aos primeiros passos. O chefe expedicionário deixou então o 
lugar em que permanecera, à meia encosta dos Pelados, entre a artilharia e o plaino das quixabeiras 

 

— Eu vou dar brio àquela gente... 

 

Moreira César fora de combate 

 

E descia. A meio caminho, porém, refreou o cavalo. Inclinou-se, abandonando as rédeas, sob o arção dianteiro 
do selim. Fora atingido no ventre por uma bala. 

 

Rodeou-o logo o Estado-maior. 

 

— Não foi nada; um ferimento leve, disse, tranqüilizando os companheiros dedicados. Estava mortalmente 
ferido. 

 

Não descavalgou. Volvia amparado pelo tenente Ávila, para o lugar que deixara, quando foi novamente atingido 
por outro projétil. Estava fora de combate. 

 

Devia substituí-lo o coronel Tamarindo, a quem foi logo comunicado o desastroso incidente. Mas aquele nada 
podia deliberar recebendo o comando quando desanimava de salvar o seu próprio batalhão, na outra margem do 
rio. 


 

Era um homem simples, bom e jovial, avesso a bizarrear façanhas. Chegara aos sessenta anos candidato a uma 
reforma tranqüila. Fora, ademais, incluído contra a vontade na empresa. E, ainda quando tivesse envergadura 
para aquela crise, não havia mais remediá-la. 

 

A polícia, investindo, copiara afinal o modo de agir dos outros assaltantes — varejando casas e ateando 
incêndios. 

 

Não se rastreava na desordem o mais leve traço de combinação tática; ou não se podia mesmo imaginá-la. 

 

Aquilo não era um assalto. Era um combater temerário contra barricada monstruosa, que se tornava cada vez 
mais impenetrável à medida que a arruinavam e carbonizavam, porque sob os escombros, que atravancavam as 
ruas, sob os tetos abatidos e entre os esteios fumegantes, deslizavam melhor, a salvo, ou tinham mais invioláveis 
esconderijos, os sertanejos emboscados. 

 

Além disto, despontava, inevitável, contratempo maior: a noite prestes a confundir os combatentes exaustos de 
cinco horas de peleja. 

 

Recuo 

 

Mas antes que ela sobreviesse, começou o recuo. Apareceram sobre a ribanceira esquerda, esparsos, em grupos 
estonteadamente correndo, os primeiros contingentes repelidos. Em breve outros se lhes aliaram no mesmo 
desalinho, rompendo dos cunhais das igrejas e dentre os casebres marginais: soldados e oficiais de mistura, 
chamuscados e poentos, fardas em tiras, correndo, disparando ao acaso as espingardas, vociferando, alarmados, 
tontos, titubeantes, em fuga... 

 

Este refluxo que começara à esquerda propagou-se logo à extrema direita. De sorte que, rebatida às posições 
primitivas, toda a linha do combate rolou torcida e despedaçada a tiros pela borda do rio abaixo. 

 

Sem comando, cada um lutava a seu modo. Destacaram-se ainda diminutos grupos para queimarem as casas 
mais próximas ou travarem breves tiroteios. Outros, sem armas e feridos, principiaram a repassar o rio. 

 

Era o desenlace. 

 

Repentinamente, largando as últimas posições, os pelotões, de mistura, numa balbúrdia indefinível, sob a 
hipnose do pânico, enxurraram na corrente rasa das águas ! 

 

Repelindo-se; apisoando os malferidos, que tombavam; afastando rudemente os extenuados trôpegos; 
derrubando-os, afogando-os, os primeiros grupos bateram contra a margem direita. Aí, ansiando por vingá-la, 
agarrando-se às gramíneas escassas, especando-se nas armas, filando-se às pernas dos felizes que conseguiam 
vencê-las, se embaralham outra vez em congérie ruidosa. Era um fervilhar de corpos transudando vozear 
estrídulo, e discordante, e longo, dando a ilusão de alguma enchente repentina, em que o Vaza-Barris, 
engrossado, saltasse, de improviso, fora do leito, borbulhando, acachoando, estrugindo . . . 

 

Ao bater da Ave-Maria 

 

Naquele momento o sineiro da igreja velha interrompeu o alarma. 

 

Vinha caindo a noite. Dentro da claridade morta do crepúsculo soou, harmoniosamente, a primeira nota da 
Ave-Maria. 

 

Descobrindo-se, atirando aos pés os chapéus de couro ou os gorros de azulão, e murmurando a prece habitual, os 
jagunços dispararam a última descarga... 


Capítulo V 

 

Sobre o Alto do Mário 

 

Os soldados, transposto o rio, acumularam-se junto à artilharia. Eram uma multidão alvorotada sem coisa alguma 
recordando a força militar, que se decompusera, restando, como elementos irredutíveis, homens atônitos e 
inúteis, e tendo agora, como preocupação exclusiva, evitarem o adversário que tão ansiosamente haviam 
procurado. 

 

O cerro em que se reuniam estava próximo demais daquele, e passível, talvez, de algum assalto, à noite. Era 
forçoso abandoná-lo. Sem ordem, arrastando os canhões, deslocaram-se logo para o Alto do Mário, quatrocentos 
metros na frente. Ali improvisaram um quadrado incorreto, de fileiras desunidas e bambas, envolvendo a 
oficialidade, os feridos, as ambulâncias, o trem da artilharia e os cargueiros. Centralizava-o uma palhoça em 
ruínas — a fazenda Velha; e dentro dela o comandante-em-chefe moribundo... 

 

A expedição era agora aquilo: um bolo de homens, animais, fardas e espingardas, entupindo uma dobra de 
montanha. . . 

 

Tinha descido a noite — uma destas noites ardentíssimas mas vulgares no sertão, em que cada estrela, fixa, sem 
cintilações, irradia como um foco de calor e os horizontes, sem nuvens, iluminam-se, de minuto em minuto, 
como se refletissem relâmpagos de tempestades longínquas... 

 

Não se via o arraial. Alguns braseiros sem chamas, de madeiras ardendo sob o barro das paredes e tetos; ou luzes 
esparsas de lanternas mortiças bruxuleando nas sombras, deslizando vagarosamente, como em pesquisas 
lúgubres, indicavam-no embaixo, e traindo também a vigília do inimigo. Tinham, porém, cessado os tiros e nem 
uma voz dali subia. Apenas na difusão luminosa das estrelas desenhavam-se, dúbios, os perfis imponentes das 
igrejas. Nada mais. A casaria compacta, as colinas circundantes, as montanhas remotas, desapareciam na noite. 

 

O acampamento em desordem contrastava a placidez ambiente. Constritos entre os companheiros, cento e tantos 
feridos e estropiados por ali se agitavam ou se arrastavam, torturados de dores e da sede, quase pisados pelos 
cavalos que espavoridos nitriam, titubeando no atravancamento das carretas e fardos dos comboios. Não havia 
curá-los no escuro onde fora temeridade incrível o rápido fulgurar de um fósforo. Além disto não bastava para 
tantos o número reduzido de médicos, um dos quais — morto, extraviado ou preso — desaparecera à tarde para 
nunca mais tornar . 

 

O coronel Tamarindo 

 

Faltava, ademais, um comando firme. O novo chefe não suportava as responsabilidades, que o oprimiam. 
Maldizia talvez, mentalmente, o destino extravagante que o tornara herdeiro forçado de uma catástrofe. Não 
deliberava. A um oficial, que ansiosamente o interpelara sobre aquele transe, respondera com humorismo triste, 
rimando um dito popular do Norte: 

 

" É tempo de murici cada um cuide de si..." 

 

Foi a sua única ordem do dia. Sentado na caixa de um tambor, chupando longo cachimbo, com o estoicismo 
doente do próprio desalento, o coronel Tamarindo, respondendo de tal jeito, ou por monossílabos, a todas as 
consultas, abdicara a missão de remodelar a turba esmorecida e ao milagre de subdividi-la em novas unidades de 
combate. 

 

Ali estavam, certo, homens de valor e uma oficialidade pronta ao sacrifício. O velho comandante, porém, tivera a 
intuição de que um ajuntamento em tais conjunturas não significa a soma das energias isoladas e avaliara todos 
os elementos que, nas coletividades presas de emoções violentas, reduzem sempre as qualidades pessoais mais 
brilhantes. Quedava impassível, alheio à ansiedade geral, passando de modo tácito o comando a toda a gente. 
Assim, oficiais incansáveis davam por conta própria providências mais urgentes; retificando o pretenso 
quadrado, em que se misturavam, a esmo, praças de todos os corpos; organizando ambulâncias e dispondo 
padiolas; reanimando os ânimos; abatidos. Pelo espírito de muitos passara mesmo o intento animador de um 
revide, um novo assalto logo ao despontar da manhã, descendo a força toda, em arremetida violenta, sobre o 
fanáticos, depois que os abalasse um bombardeio maior do que o realizado. E concertavam-se em planos visando 
corrigir o revés com um lance de ousadia. Porque a vitória devia ser alcançada a despeito dos maiores sacrifícios. 
Pensavam: nos quatro lados daquele quadrado mal feito inscreviam-se os destinos de República. Era preciso 


vencer. Repugnava-os, revoltava-os, humilhava-os angustiosamente aquela situação ridícula e grave, ali, no meio 
de canhões modernos, sopesando armas primorosas, sentados sobre cunhetes repletos de cartuchos — e 
encurralados por uma turba de matutos turbulentos... 

 

A maioria, porém, considerava friamente as coisas. Não se iludia. Um rápido confronto entre a tropa que chegara 
horas antes, entusiasta e confiante na vitória e a que ali estava, vencida, patenteava-lhe uma solução única — a 
retirada. 

 

Alvitre de retirada 

 

Não havia alvitrar outro recurso, ou protraí-lo sequer. 

 

Às onze horas, juntos os oficiais, adotaram-no, unânimes. Um capitão de infantaria foi incumbido de cientificar 
da resolução o coronel Moreira César. Este impugnou-a logo, dolorosamente surpreendido; a princípio calmo, 
apresentando os motivos inflexíveis do dever militar e demonstrando que ainda havia elementos para uma 
tentativa qualquer, mais de dois terços da tropa apta para o combate e munições suficientes; depois, num 
crescendo de cólera e de angústia, se referiu à mácula que para sempre lhe sombrearia o nome. Finalmente 
explodiu: não o sacrificassem àquela cobardia imensa... 

 

Apesar disto manteve-se a resolução. 

 

Protesto de Moreira César 

 

Era completar a agonia do valente infeliz. Revoltado, deu a sua última ordem: fizessem uma ata de tudo aquilo, 
deixando-lhe margem para um protesto, em que incluiria o abandono da carreira militar. 

 

A dolorosa reprimenda do chefe ferido por duas balas não moveu, contudo, a oficialidade incólume. 

 

Rodeavam-na, perfeitamente válidos ainda, centenares de soldados, oitocentos talvez; dispunha de dois terços 
das munições e estava em posição dominante sobre o inimigo... 

 

Mas a luta sertaneja começara, naquela noite, a tomar a feição misteriosa que conservaria até o fim. Na maioria 
mestiços, feitos da mesma massa dos matutos que os soldados, abatidos pelo contragolpe de inexplicável revés, 
em que baqueara o chefe reputado invencível, ficaram sob a sugestão empolgante do maravilhoso, invadidos de 
terror sobrenatural, que extravagantes comentários agravavam. 

 

O jagunço, brutal e entroncado, diluía-se em duende intangível. Em geral os combatentes, alguns feridos mesmo 
no recente ataque, não haviam conseguido ver um único; outros, os da expedição anterior, acreditavam, atônitos 
e absortos ante o milagre estupendo, ter visto, ressurretos, dois ou três cabecilhas que, afirmavam convictos, 
tinham sido mortos no Cambaio; e para todos, para os mais incrédulos mesmo, começou a despontar algo de 
anormal nos lutadores-fantasmas, quase invisíveis, ante os quais haviam embatido impotentes, mal os 
lobrigando, esparsos e diminutos, rompendo temerosos dentre ruínas, e atravessando incólumes os braseiros dos 
casebres em chamas. 

 

É que grande parte dos soldados era do Norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o dos heróis dos 
contos infantis, o nome de Antônio Conselheiro. E a sua lenda extravagante, os seus milagres, as suas façanhas 
de feiticeiro sem par, apareciam-lhes — então — verossímeis, esmagadoramente, na contraprova tremenda 
daquela catástrofe. 

 

Pelo meio da noite todas apreensões se avolumaram. As sentinelas cabeceavam nas fileiras frouxas do quadrado, 
estremeceram, subitamente despertas, contendo gritos de alarma. 

 

Um rumor indefinível avassalara a mudez ambiente e subia pelas encostas. Não era, porém, um surdo tropear de 
assalto. Era pior. O inimigo, embaixo, no arraial invisível — rezava. 

 

E aquela placabilidade extraordinária — ladainhas tristes, em que predominavam, ao invés de brados varonis, 
vozes de mulheres, surgindo da ruinaria de um campo de combate — era, naquela hora, formidável. Atuava pelo 
contraste. Pelo burburinho da soldadesca pasma, os kyries estropiados e dolentes entravam, piores que 
intimações enérgicas. Diziam, de maneira eloqüente, que não havia reagir contra adversários por tal forma 
transfigurados pela fé religiosa. 


 

A retirada impunha-se. 

 

Pela madrugada uma nova emocionante tornou-a urgentíssima. Falecera o coronel Moreira César. 

 

Retirada 

 

Era o último empuxo no desânimo geral. Os aprestos da partida fizeram-se, então, no atropelo de um tumulto 
indescritível. De sorte que, quando ao primeiro bruxulear da manhã uma força constituída por praças de todos 
corpos abalou, fazendo a vanguarda, encalçada pelas ambulâncias, cargueiros, fardos, feridos e padiolas, entre as 
quais a que levantava o corpo do comandante malogrado, nada indicava naquele momento a séria operação de 
guerra que ia realizar-se. 

 

A retirada era a fuga. Avançando pelo espigão do morro no rumo da Favela e dali derivando pelas vertentes 
opostas, por onde descia a estrada, a expedição espalhava-se longamente pelas encostas, dispersando-se sem 
ordem, sem formaturas. 

 

Neste dar as costas ao adversário que, desperto, embaixo, não a perturbara ainda, parecia confiar apenas na 
celeridade do recuo, para se libertar. Não se dividira em escalões, dispondo-se à defesa-ofensiva característica 
desses momentos críticos da guerra. Precipitava-se, à toa, pelos caminhos fora. Não retirava, fugia. Apenas uma 
divisão de dois Krupps, sob o mando de um subalterno de valor, e fortalecida por um contingente de infantaria, 
permanecera firme por algum tempo no Alto do Mário, como uma barreira anteposta à perseguição inevitável. 

 

Vaia 

 

Ao mover-se, afinal, esta fração abnegada foi rudemente investida O inimigo tinha na ocasião o alento do ataque 
e a certeza na própria temibilidade. Acometeu ruidosamente, entre vivas entusiásticos, por todos os lados, em 
arremetida envolvente. Embaixo começou a bater desabaladamente o sino; a igreja nova explodia em descargas, 
e, adensada no largo, ou correndo para o alto das colinas, toda a população de Canudos contemplava aquela 
cena, dando ao trágico do lance a nota galhofeira e irritante de milhares de assovios estridentes, longos, 
implacáveis... 

 

Mais uma vez o drama temeroso da guerra sertaneja tinha o desenlace de uma pateada lúgubre. 

 

O desfecho foi rápido. A última divisão de artilharia replicou por momentos e depois, por sua vez, abalou 
vagarosamente, pelo declive do espigão acima, retirando. 

 

Era tarde. Adiante até onde alcançava o olhar, a expedição, esparsa e estendida pelos caminhos, estava, de ponta 
a ponta, flanqueada pelos jagunços... 


Capítulo VI 

 

Debandada. Fuga 

 

E foi uma debandada. 

 

Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se 
estorciam feridos: jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a 
carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas 
estradas e pelas trilhas que as recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes . . 


 

Entre os fardos atirados à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico — tristíssimo pormenor! — 
o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não houve um breve simulacro de repulsa contra os inimigos, que 
não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, 
como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se. 

 

Salomão da Rocha 

 

Apenas a artilharia, na extrema retaguarda, seguia vagarosa e unida, solene quase, na marcha habitual de uma 
revista, em que parava de quando em quando para varrer a disparos as margens traiçoeiras; e prosseguindo 
depois, lentamente, rodando, inabordável, terrível... 

 

A dissolução da tropa parara no aço daqueles canhões cuja guarnição diminuta se destacava maravilhosamente 
impávida, galvanizada pela força moral de um valente. 

 

De sorte que no fim de algum tempo em torno dela se adensaram, mais numerosos, os perseguidores. 

 

O resto da expedição podia escapar-se a salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de 
Salomão da Rocha, como de encontro a uma represa, embatia, e parava, adunava-se, avolumando, e recuava, e 
partia-se a onda rugidora dos jagunços. 

 

Naquela corrimaça sinistra em que a ferocidade e a cobardia revoluteavam confundidos sob o mesmo aspecto 
revoltante, abriu-se de improviso um episódio épico. 

 

Contidos a princípio em distancia, os sertanejos constringiam a pouco e pouco o círculo do ataque, em roda das 
duas divisões, que os afrontavam, seguindo a passo tardo, ou, de súbito, alinhando-se em batalha e arrebentando 
em descargas, fulminando-os. . . 

 

As granadas explodindo entre os restolhos secos do matagal incendiavam-nos; ouviam-se lá dentro, de envolta 
com o crepitar de queimadas sem labaredas, extintas nos brilhos da manhã claríssima, brados de cólera e de dor; 
e tontos de fumo, saltando dos esconderijos em chamas, rompentes à ourela da caatinga junto à estrada, os 
sertanejos em chusma, gritando, correndo, disparando os trabucos e as pistolas — assombrados ante aquela 
resistência inexplicável, vacilantes no assaltar a zargunchadas e à faca o pequeno grupo de valentes indomáveis. 

 

Estes, entretanto, mal podiam prosseguir. Reduziam-se. Um a um tombavam os soldados da guarnição estóica. 
Feridos ou espantados, os muares da tração empacavam; torciam de rumo; impossibilitavam a marcha. 

 

A bateria afinal parou. Os canhões, emperrados, imobilizaram-se numa volta do caminho... 

 

O coronel Tamarindo, que volvera à retaguarda, agitando-se destemeroso e infatigável entre os fugitivos, 
penitenciando-se heroicamente, na hora da catástrofe, da tibieza anterior, ao deparar com aquele quadro 
estupendo, procurou debalde socorrer os únicos soldados que tinham ido a Canudos. Neste pressuposto ordenou 
toques repetidos de "meia volta, alto !". As notas das cornetas, convulsivas, emitidas pelos corneteiros sem 
fôlego, vibraram inutilmente. Ou melhor — aceleraram a fuga. Naquela desordem só havia uma determinação 
possível: "debandar!". 

 

Debalde alguns oficiais, indignados, engatilhavam revólveres ao peito dos foragidos. Não havia contê-los. 
Passavam; corriam; corriam doidamente; corriam dos oficiais; corriam dos jagunços; e ao verem aqueles, que 
eram de preferência alvejados pelos últimos, caírem malferidos, não se comoviam. O capitão Vilarim batera-se 


valentemente quase só, e ao baquear, morto, não encontrou entre os que comandava um braço que o sustivesse. 
Os próprios feridos e enfermos estropiados lá se iam, cambateando, arrastando-se penosamente, imprecando os 
companheiros mais ágeis... 

 

As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis... 

 

Por fim cessaram. Não tinham a quem chamar. A infantaria desaparecera... 

 

Pela beira da estrada, viam-se apenas peças esparsas de equipamento, mochilas e espingardas, cinturões e sabres, 
jogados a esmo por ali fora, como coisas imprestáveis. 

 

Inteiramente só, sem uma única ordenança, o coronel Tamarindo lançou-se desesperadamente, o cavalo a galope, 
pela estrada — agora deserta — como se procurasse conter ainda, pessoalmente, a vanguarda. E a artilharia ficou 
afinal inteiramente em abandono, antes de chegar ao Angico. 

 

Os jagunços lançaram-se então sobre ela. 

 

Era o desfecho. O capitão Salomão tinha apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em 
cima os golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara. 

 

Consumara-se a catástrofe... 

 

Logo adiante, na ocasião em que transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado 
do cavalo por uma bala. O engenheiro militar Alfredo do Nascimento alcançou-o ainda com vida. Caído sobre a 
ribanceira, o velho comandante murmurou ao companheiro que o procurara a sua última ordem: 

 

— Procure o Cunha Matos... 

 

Esta ordem dificilmente podia ser cumprida. 

 

Um arsenal ao ar livre 

 

A terceira expedição anulada, dispersa, desaparecera. E como na maioria os fugitivos evitassem a estrada, 
desgarraram sem rumo, errando à toa no deserto, onde muitos, entre eles os feridos, se perderam para sempre, 
agonizando e morrendo no absoluto abandono. Alguns, desviando-se da rota, foram bater no Cumbe ou em 
pontos mais remotos. O resto chegou no outro dia a Monte Santo. O coronel Sousa Meneses, comandante da 
praça, não os esperou. Ao saber do desastre largou à espora feita para Queimadas, até onde se prolongara aquela 
disparada. 

 

Enquanto isto sucedia, os sertanejos recolhiam os despojos. Pela estrada e pelos lugares próximos jaziam 
esparsas armas e munições, de envolta com as próprias peças dos fardamento, dólmãs e calças de listra 
carmesim, cujos vivos denunciadores demais no pardo da caatinga os tornavam incompatíveis com a fuga. De 
sorte que a maior parte da tropa não se desarmara apenas diante do adversário. Despira-se... 

 

Assim na distância que medeia do Rosário a Canudos, havia um arsenal desarrumado, ao ar livre, e os jagunços 
tinham com que se abastecerem a fartar. A expedição Moreira César parecia ter tido um objetivo único: 
entregar-lhes tudo aquilo, dar-lhes de graça todo aquele armamento moderno e municiá-los largamente. 

 

Uma diversão cruel 

 

Levaram para o arraial os quatro Krupps ; substituíram nas mãos dos lutadores da primeira linha as espingardas 
velhas de carregamento moroso pelas Mannlichers e Comblains fulminantes; e como as fardas, cinturões e 
bonés, tudo quanto havia tocado o corpo maldito das praças, lhes maculariam a epiderme de combatentes 
sagrados, aproveitaram-nos de um modo cruelmente lúgubre. 

 

Os sucessos anteriores haviam-lhes exacerbado, a um tempo, o misticismo e a rudeza. Partira-se o prestígio do 
soldado, e a bazófia dos broncos cabecilhas repastava-se das mínimas peripécias dos acontecimentos. A força do 
governo era agora realmente a "fraqueza" do governo, denominação irônica destinada a permanecer por todo o 
curso da campanha. Haviam-na visto chegar — imponente e terrível — apercebida de armas ante as quais eram 
brincos de criança os clavinotes brutos; tinham-na visto rolar terrivelmente sobre o arraial, e assaltá-lo, e 


invadi-lo, e queimá-lo, varando-o de ponta a ponta; e, depois destes arrancos temerários, presenciaram o recuo, e 
a fuga, e a disparada doida, e o abandono pelos caminhos fora das armas e bagagens. 

 

Era sem dúvida um milagre. O complexo dos acontecimentos perturbava-os e tinha uma interpretação única: 
amparava-os visivelmente a potência superior da divindade. 

 

E a crença, revigorada na brutalidade dos combates, crescendo, maior, num reviver de todos os instintos 
bárbaros, malignou-lhes a índole. 

 

Atesta-o fato estranho, espécie de divertimento sinistro, lembrando a religiosidade trágica dos Achantis, que 
rematou estes sucessos. 

 

Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os 
cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas 
duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por 
cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, 
cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas... 

 

A catinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagantemente 
colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e 
estribos oscilantes . . . 

 

Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho 
seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo. 

 

Era assombroso.. . Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas 
pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão 
demoníaca. 

 

Ali permaneceu longo tempo... 

 

Quando, três meses mais tarde, novos expedicionários seguiam para Canudos, depararam ainda o mesmo 
cenário: renques de caveiras branqueando as orlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, esgarçados nos ramos 
dos arbustos e, de uma banda — mudo protagonista de um drama formidável — o espectro do velho 
comandante... 


Quarta expedição 

 

I. Desastres. Canudos — uma diátese. A rua do Ouvidor e as caatingas. Versões disparatadas. Mentiras heróicas. 
O cabo Roque. Levantamento em massa. Planos. Um tropear de bárbaros. 

 

II. Mobilização de tropas. Concentração em Queimadas. Organiza-se a expedição. Delongas. Não há um plano 
de campanha. A comissão de engenheiros. A marcha. Incidentes. Um guia temeroso: Pajeú. Passagem nas 
Pitombas. O alto da Favela. Uma divisão aprisionada. 

 

III. Coluna Savaget. Cocorobó. Diante das trincheiras. Carga de baionetas excepcional. A travessia. Macambira e 
Trabubu. Emissário inesperado. Destrói-se um plano de campanha. 

 

IV. Vitória singular. Começo de uma batalha crônica. Aventuras do cerco. Caçadas perigosas. Desânimos. A 
atitude do comando-em-chefe. 

 

V. O assalto: preparativos; o recontro. Nova vitória desastrosa. Nos flancos de Canudos. Triunfos pelo telégrafo. 

 

VI. Pelas estradas. Os feridos. Primeiras notícias certas. Versões e lendas. 

 

VII. A brigada Girard. Heroísmo estranho. Em viagem para Canudos. 

 

VIII. Novos reforços. O marechal Carlos Machado Bitencourt. Colaboradores prosaicos demais. 


Capítulo I 

Desastres 

A nova deste revés foi um desastre maior. 


A quarta expedição organizou-se através de grande comoção nacional, que se traduziu em atos contrapostos à 
própria gravidade dos fatos. Foi a princípio o espanto; depois um desvairamento geral da opinião; um intenso 
agitar de conjeturas para explicar o inconceptível do acontecimento o induzir uma razão de ser qualquer para 
aquele esmagamento de uma força numerosa, bem aparelhada e tendo chefe de tal quilate. Na desorientação 
completa dos espíritos, alteou-se logo, primeiro esparsa em vagos comentários, condensada depois em inabalável 
certeza, a idéia de que não agiam isolados os tabaréus turbulentos. Eram a vanguarda de ignotas falanges prontas 
a irromperem, de remanente, em toda a parte, convergentes sobre o novo regímen. E como nas capitais, federal e 
estaduais, há muito, meia dúzia de platônicos, revolucionários contemplativos e mansos, se agitavam 
esterilmente na propaganda da restauração monárquica, fez-se de tal circunstância ponto de partida para a mais 
contraproducente das reações. 

 

Canudos — uma diátese 

 

Era preciso uma explicação qualquer para sucessos de tanta monta. Encontraram-na: os distúrbios sertanejos 
significavam pródromos de vastíssima conspiração contra as instituições recentes. Canudos era uma Coblentz de 
pardieiros. Por detrás da envergadura desengonçada de Pajeú se desenhava o perfil fidalgo de um Brunswick 
qualquer. A dinastia em disponibilidade de Bragança, encontrara afinal um Monck, João Abade. E Antônio 
Conselheiro — um Messias de feira — empolgara nas mãos trementes e frágeis os destinos de um povo... 

 

A República estava em perigo; era preciso salvar a República. Era este o grito dominante sobre o abalo geral... 

 

Exageramos ? 

 

Deletreemos, ao acaso, qualquer jornal daqueles dias. 

 

Doutrinava-se: "O que de um golpe abalava o prestígio da autoridade constituída e abatia a representação do brio 
da nossa pátria no seu renome, na sua tradição e na sua força era o movimento armado que, à sombra do 
fanatismo religioso, marchava acelerado contra as próprias instituições, não sendo lícito a ninguém iludir-se mais 
sobre o pleito em que audazmente entravam os saudosos do Império, francamente em armas." 

 

Concluía-se: "Não há quem a esta hora não compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir com a 
República a unidade do Brasil ." 

 

Explicava-se: "A tragédia de 3 de março, em que juntamente com o Moreira César perderam a vida o ilustre 
coronel Tamarindo e tantos outros oficiais briosíssimos do nosso Exército, foi a confirmação de quanto o partido 
monarquista à sombra da tolerância do poder público, e graças até aos seus involuntários alentos, tem crescido 
em audácia e força." 

 

Afirmava-se: "Trata-se da restauração; conspira-se; forma-se o exército imperialista. O mal é grande; que o 
remédio corra parelhas com o mal. A monarquia arma-se ? Que o presidente chame às armas os republicanos ." 

 

E assim por diante. A opinião nacional esbatia-se de tal modo na imprensa. Na imprensa e nas ruas. 

 

Alguns cidadãos ativos congregaram o povo na capital da 

República e resumiram-lhe a ansiedade patriótica numa moção incisiva: 

 

"O povo do Rio de Janeiro reunido em meeting e ciente do doloroso revés das armas legais nos sertões da Bahia, 
tomadas pela caudilhagem monárquica, e congregado em torno do governo, aplaudindo todos os atos de energia 
a cívica que praticar pela desafronta do Exército e da pátria, aguarda ansioso, a sufocação da revolta." 

 

A mesma toada em tudo. Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, transmudando em legiões — coorte 
misteriosa marchando surdamente na sombra — meia dúzia de retardatários, idealistas e teimosos. 

 

O presidente da República por sua vez quebrou a serenidade habitual: 


 

""Sabemos que, por detrás dos fanáticos de Canudos, trabalha a política. Mas nós estamos preparados, tendo todos 
os meios para vencer, seja como for contra quem for." 

 

Empastelamento de jornais monárquicos 

 

Afinal a multidão interveio. 

 

Copiemos: "Já era tarde e a excitação do povo aumentava na proporção de sua massa sempre crescente; assim 
nesta indignação lembraram-se dos jornais monarquistas, e todos por um, em um ímpeto de desabafo, foram às 
redações e tipografias dos jornais Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo, e, apesar de ter a polícia corrido para 
evitar qualquer assalto a esses jornais, não chegou a tempo de evitá-lo, pois a multidão aos gritos de viva a 
República e à memória de Floriano Peixoto invadiu aqueles estabelecimentos e destruiu-os por completo, 
queimando tudo". 

 

Então começaram a quebrar e inutilizar tudo quanto encontraram, atirando, depois, os objetos, livros, papéis, 
quadros, móveis, utensílios, tabuletas, divisões etc., para a rua de onde foram logo conduzidos para o largo de S. 
Francisco de Paula, onde formaram uma grande fogueira, ficando outros em montes de destroços na mesma rua 
do Ouvidor ." 

 

A rua do Ouvidor e as caatingas 

 

Interrompamos, porém, este respigar em ruínas. Mais uma vez, no decorrer dos sucessos que nos propusemos 
narrar, forramo-nos à demorada análise de acontecimentos que fogem à escala superior da História. As linhas 
anteriores têm um objetivo único: fixar, de relance, símiles que se emparelham na mesma selvatiqueza. A rua do 
Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização 
adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num 
recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha 
parceiros porventura mais perigosos. 

 

Valerá a pena defini-los ? 

 

A força portentosa da hereditariedade, aqui, como em toda a parte e em todos os tempos, arrasta para os meios 
mais adiantados — enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura — trogloditas completos. Se o curso 
normal da civilização em geral os contém, e os domina, e os manieta, e os inutiliza, e a pouco e pouco os destrói, 
recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca, às vezes, a curiosidade dos sociólogos 
extravagantes, ou as pesquisas da psiquiatria, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das 
leis eles surgem e invadem escandalosamente a História. São o reverso fatal dos acontecimentos, o claro-escuro 
indispensável aos fatos de maior vulto. 

 

Mas não têm outra função, nem outro valor; não há analisá-los. Considerando-os, o espírito mais robusto 
permanece inerte a exemplo de uma lente de flintglass, admirável no refratar, ampliadas imagens fulgurantes, 
mas imprestável se a focalizam na sombra. 

 

Deixemo-los; sigamos. 

 

Antes, porém, insistamos numa proposição única: atribuir a uma conjuração política qualquer a crise sertaneja 
exprimia palmar insciência das condições naturais da nossa raça. 

 

Considerações 

 

O caso, vimo-lo anteriormente, era mais complexo e mais interessante. Envolvia dados entre os quais nada 
valiam os sonâmbulos erradios e imersos no sonho da restauração imperial. E esta insciência ocasionou desastres 
maiores que os das expedições destroçadas. Revelou que pouco nos avantajávamos aos rudes patrícios 
retardatários. Estes, ao menos, eram lógicos. Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, 
só podia fazer o que fez — bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três 
séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, 
mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas. 

 


Reagiu. Era natural. O que surpreende é a surpresa originada por tal fato. Canudos era uma tapera miserável, fora 
dos nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página truncada e sem número das 
nossas tradições. Só sugeria um conceito — e é que, assim como os estratos geológicos não raro se perturbam, 
invertidos, sotopondo-se uma formação moderna a uma formação antiga, a estratificação moral dos povos por 
sua vez também se baralha, e se inverte, e ondula riçada de sinclinais abruptas, estalando em flaults, por onde 
rompem velhos estádios há muito percorridos. 

 

Sob tal aspecto era, antes de tudo, um ensinamento e poderia ter despertado uma grande curiosidade. A mesma 
curiosidade do arqueólogo ao deparar as palafitas de uma aldeia lacustre, junto a uma cidade industrial da 
Suíça... 

 

Entre nós, de um modo geral, despertou rancores. Não vimos o traço superior do acontecimento. Aquele 
afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para 
estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las. Não entendemos a lição eloqüente. 

 

Na primeira cidade da República, os patriotas satisfizeram-se com o auto-de-fé de alguns jornais adversos, e o 
governo começou a agir. Agir era isto — agremiar batalhões. 

 

Versões disparatadas 

 

As primeiras notícias do desastre prolongaram por muitos dias a agitação em todo o país. A parte de combate do 
major Cunha Matos, deficientíssima, mal indicando as fases capitais da ação, eivada de erros singulares, tinha 
apenas a eloqüência do alvoroço com que fora escrita. Incutia nos que a liam o pensamento de uma hecatombe, 
ulteriormente agravada de outras informações. E estas, instáveis, acirrando num crescendo a comoção e a 
curiosidade públicas, desencontradamente, lardeadas de afirmativas contraditórias, derivavam pelos espíritos 
inquietos num desfiar de conjeturas intermináveis. 

 

Não havia acertar no abstruso das opiniões com a mais breve noção sobre as coisas. Ideavam-se sucessos 
sofregamente aceitos com todos os visos de realidade, até que outros, diversos, os substituíssem, dominando por 
um dia ou por uma hora as atenções, e extinguindo-se por sua vez diante de outras versões efêmeras. De sorte 
que num alarma crescente — do boato medrosamente boquejado no recesso dos lares à mentira escandalosa 
rolando com estardalhaço pelas ruas — se avolumaram apreensões e cuidados. Era uma tortura permanente de 
dúvidas cruciantes. Nada se sabia de positivo. Nada sabiam mesmo os que haviam compartido o revés. Na 
inconsistência dos boatos, uma informação única tomava os mais diversos cambiantes. 

 

Mentiras heróicas 

 

Afirmava-se: o coronel Tamarindo não fora morto; salvara-se valorosamente, com um punhado de companheiros 
leais,. e estava caminho de Queimadas. Contravinha-se: salvara-se, mas estava gravemente ferido em Maçacará, 
onde chegara exausto. 

 

Depois uma afirmativa lúgubre: o infeliz oficial fora de tato trucidado. E assim em seguida. 

 

Agitavam-se idéias alarmantes: os sertanejos não eram "um bando de carolas fanáticos", eram um "exército 
instruído, disciplinado" — admiravelmente armados de carabinas Mauser , tendo ademais artilharia, que 
manejavam com firmeza. Alguns dos nossos, e entre eles o capitão Vilarim, haviam sido despedaçados por 
estilhas de granadas... 

 

O cabo Roque 

 

Nessas incertezas, a verdade aparecia, às vezes, sob uma forma heróica. A morte trágica de Salomão da Rocha 
foi uma satisfação ao amor-próprio nacional. Aditou-se-lhe depois, mais emocionante, a lenda do cabo Roque, 
abalando comovedoramente a alma popular. Um soldado humilde, transfigurado por um raro lance de coragem 
marcara a peripécia culminante da peleja. Ordenança de Moreira César, quando se desbaratara a tropa, e o 
cadáver daquele ficara em abandono à margem do caminho, o lutador leal permanecera a seu lado, guardando a 
relíquia veneranda abandonada por um exército. De joelhos junto ao corpo do comandante, batera-se ate ao 
último cartucho, tombando, afinal, sacrificando-se por um morto.. . 

 

E a cena maravilhosa, fortemente colorida pela imaginação popular, fez-se quase uma compensação à 
enormidade do revés. Abriram-se subscrições patrióticas; planearam-se homenagens cívicas e solenes; e, num 


coro triunfal de artigos vibrantes e odes ferventes, o soldado obscuro transcendia à História quando —vítima da 
desgraça de não ter morrido —, trocando a imortalidade pela vida, apareceu com os últimos retardatários 
supérstites em Queimadas. 

 

A este desapontamento aditaram-se outros, à medida que a situação se esclarecia. A pouco e pouco se reduzia 
por um lado, agravando-se por outro, a catástrofe. Os trezentos e tantos mortos das informações oficiais 
ressurgiam. Três dias depois do recontro, três dias apenas, já se achava em Queimadas, a duzentos quilômetros 
de Canudos, grande parte da expedição. Uma semana depois, verificava-se, ali, a existência de 74 oficiais. Duas 
semanas mais tarde, no dia 19 de março, lá estavam —salvos — 1.081 combatentes. 

 

Vimos quantos entraram em ação. Não subtraiamos. Deixemos aí, registrados, estes algarismos inexoráveis. Eles 
não diminuíram, com a sua significação singularmente negativa, o fervor das adesões entusiásticas. 

 

Levantamento em massa 

 

Os governadores de Estado, os congressos, as corporações municipais, continuaram vibrantes no anelo 
formidável da vingança. E em todas as mensagens, variantes de um ditado único, monótono pela simulcadência 
dos mesmos períodos retumbantes, persistiu, como aspiração exclusiva, o esmagamento dos inimigos da 
República, armados pela caudilhagem monárquica. Como o da capital federal, o povo das demais cidades 
entendeu também deliberar na altura da situação gravíssima, apoiando todos os atos de energia cívica que 
praticasse o governo pela desafronta do Exército e ( esta conjunção valia por cem páginas eloqüentes) da pátria. 
Decretou-se o luto nacional. Exararam-se votos de pesar nas atas das sessões municipais mais remotas. 
Sufragaram-se os mortos em todas as igrejas. E, dando à tristeza geral a nota supletiva da sanção religiosa, os 
arcebispados expediram aos sacerdotes dos dois cleros ordem para dizerem nas missas a oração Pro pace. 
Congregaram-se em toda a linha cidadãos ativos, aquartelando. Ressurgiram batalhões, o "Tiradentes", o 
"Benjamim Constant", o "Acadêmico" e o "Frei Caneca", feitos de veteranos já endurados ao fogo da revolta 
anterior, da Armada; enquanto agremiando patriotas de todos os matizes formavam-se outros, o "Deodoro", o 
"Silva Jardim", o "Moreira César"... Não bastava. 

 

Planos 

 

No quartel-general do Exército abriram-se inscrições para o preenchimento dos claros de diversos corpos. O 
presidente da República declarou, em caso extremo, chamar às armas os próprios deputados do Congresso 
federal, e, num ímpeto de lirismo patriótico, o vice-presidente escreveu ao Clube Militar propondo-se 
valentemente cingir o sabre vingador. Fervilhavam planos geniais, idéias raras, incomparáveis. Engenheiros 
ilustres apresentavam o traçado de um milagre de engenharia — uma estrada de ferro de Vila Nova a Monte 
Santo, saltando por cima de Itiúba, e feita em trinta dias, e rompendo de chofre, triunfalmente, num coro 
estrugidor de locomotivas acesas, pelo sertão bravio dentro. 

 

É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da República. . . 

 

Diziam-no informes surpreendedores: aquilo não era um arraial de bandidos truculentos apenas. Lá existiam 
homens de raro valor — entre os quais se nomeavam conhecidos oficiais do Exército e da Armada, foragidos 
desde a revolta de setembro, que o Conselheiro avocara ao seu partido. 

 

Um tropear de bárbaros 

 

Garantia-se: um dos chefes do reduto era um engenheiro italiano habilíssimo, adestrado talvez nos polígonos 
bravios da Abissínia. Expunham-se detalhes extraordinários: havia no arraial tanta gente que tendo desertado 
cerca de setecentos só lhes deram pela falta muitos dias depois. E sucessivas, impiedosas, novas notícias 
acumulavam-se sobre o fardo extenuador de apreensões, premindo as almas comovidas. Assim, estavam já 
expugnadas pelos jagunços Monte Santo, Cumbe, Maçacará e, talvez, Jeremoabo. As hordas invasoras, depois de 
saquearem aquelas vilas, marchavam convergentes para o sul, reorganizando-se no Tucano, de onde, acrescidas 
de novos contingentes, demandavam o litoral, avançando sobre a capital da Bahia . . . 

 

As gentes alucinadas ouviam um surdo tropear de bárbaros ... 

 

Os batalhões de Moreira César eram as legiões de Varo. . . Encalçavam-nos, na fuga, catervas formidandas. 

 


Não eram somente os jagunços. Em Juazeiro, no Ceará, um heresiarca sinistro, o padre Cícero, conglobava 
multidões de novos cismáticos em prol do Conselheiro. Em Pernambuco, um maníaco, José Guedes, surpreendia 
as autoridades, que o interrogavam, com a altaneria estóica de um profeta. Em Minas, um quadrilheiro 
desempenado, João Brandão, destroçava escoltas e embrenhava-se no alto sertão do S. Francisco, tangendo 
cargueiros ajoujados de espingardas. 

 

A aura da loucura soprava também pelas bandas do sul: o monge do Paraná, por sua vez, aparecia nessa 
concorrência extravagante para a história e para os hospícios. 

 

E tudo isto, punha-se de manifesto, eram feituras de uma conjuração que desde muito vinha solapando as 
instituições. A reação monárquica tomava afinal a atitude batalhadora precipitando nas primeiras escaramuças, 
coroadas do melhor êxito, aquela vanguarda de retardatários e de maníacos. 

 

O governo devia agir prontamente. 


Capítulo II 

 

Mobilização de tropas 

 

Descoloraram-se batalhões de todos os Estados: 12.°, 25.°, 30 .º, 31.°, 32.°, do Rio Grande do Sul; o 27.°, da 
Paraíba; o 34.°, do Rio Grande do Norte; o 33.° e o 35.°, do Piauí; o 5.°, do Maranhão; o 4.°, do Pará; o 26.º, de 
Sergipe; o 14.° e o 5.°, de Pernambuco; o 2.°, do Ceará; o 5.° e parte do 9.° de Cavalaria, Regimento da 
Artilharia da Capital Federal: o 7.°, o 9.° e o 16.º, da Bahia. 

 

O comandante do 2.° Distrito Militar, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, convidado para assumir a 
direção da luta, aceitou-a, tendo antes, numa proclamação pelo telégrafo, definido o seu pensar sobre as coisas: 
"Todas as grandes idéias tem os seus mártires; nós estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à 
geração futura uma República honrada, firme e respeitada." 

 

A mesma nota em tudo: era preciso salvar a República. . . 

 

Concentração em Queimadas 

 

As tropas convergiam na Bahia. Chegavam àquela capital em batalhões destacados e seguiam imediatamente 
para Queimadas. Esta medida, além de corresponder à urgência de uma organização pronta naquela vila — feita 
base de operações provisórias — , impunha-se por outro motivo igualmente sério. 

 

É que, generalizando-se de um conceito falso, havia no ânimo dos novos expedicionários uma suspeita 
extravagante a respeito das crenças monárquicas da Bahia. Ali saltavam com altaneria provocante de 
triunfadores em praça conquistada. Aquilo, preestabelecera-se, era um Canudos grande. A velha capital com o 
seu aspecto antigo, alteada sobre a montanha, em que embateram por tanto tempo as chusmas dos "varredores do 
mar", batavos e normandos; conservando, a despeito do tempo, as linhas tradicionais da antiga metrópole do 
oceano; ereta para a defesa, com os seus velhos fortes disjungidos, esparsos pelas eminências, acrópoles 
desmanteladas, canhoneiras abertas para o mar; com as suas ladeiras a prumo, envesgando pela montanha 
segundo o mesmo traçado das trincheiras de taipa de Tomé de Sousa; e com as suas ruas estreitas e embaralhadas 
pelas quais passaria hoje Fernão Cardim ou Gabriel Soares sem notar diferenças sensíveis — aparecia-lhes como 
uma ampliação da tapera sertaneja. Não os comovia; irritava-os. Eram cossacos em ruas de Varsóvia. Nos 
lugares públicos a população surpreendida ouvia-lhes comentários acerbos, enunciados num fanfarrear contínuo, 
sublinhado pelo agudo retinir das esporas e das espadas. E a animadversão gratuita, dia a dia avolumando-se, 
traduzia-se ao cabo em desacatos e desmandos. 

 

Citemos um caso único: os oficiais de um batalhão, o 30.°, levaram a dedicação pela República a um assomo 
iconoclasta. Em pleno dia tentaram despedaçar, a marretadas, um escudo em que se viam as armas imperiais, 
erguido no portão da alfândega velha. A soldadesca por seu lado, assim edificada, exercitava-se em correrias e 
conflitos. 

 

A paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia. A imprensa e a mocidade do Norte, afinal, protestaram e, 
mais eloqüente que as mensagens então feitas, falava em toda a parte o descontentamento popular, prestes a 
explodir. 

 

Assim, como medida preventiva, os batalhões chegavam, desembarcavam, atulhavam os carros da Estrada de 
Ferro Central e seguiam logo para Queimadas. De sorte que em pouco tempo ali estavam todos os corpos 
destinados à marcha por Monte Santo; e o comandante geral das forças, em ordem do dia de 5 de abril, pôde 
organizar a expedição: 

 

Organiza-se a 4.ª expedição 

 

"Nesta data ficam assim definitivamente organizadas as forças sob meu comando: 

 

Os 7.°, 14.° e 30.° Batalhões de Infantaria constituem a 1 a Brigada sob o comando do coronel Joaquim Manuel 
de Medeiros; 16.°, 25.° e 27.° Batalhões da mesma arma, a 2 a Brigada ao mando do coronel Inácio Henrique 
Gouveia; 5.° Regimento da Artilharia de Campanha, 5.° e 9.º Batalhões de Infantaria, a 3.ª Brigada sob o 
comando do coronel Olímpio da Silveira; 12.°, 31.° e 33.° da mesma arma e uma divisão de artilharia, a 4.ª 
Brigada sob o comando do coronel Carlos Maria da Silva Teles; 34.°, 35.° e 40.º, a 5.ª Brigada sob o comando 


do coronel Julião Augusto de Serra Martins; 26.°, 32.° da Infantaria e uma divisão de artilharia, a 6.ª Brigada sob 
o comando do coronel Donaciano de Araújo Pantoja. 

 

A 1.ª, 2ª e 3ª Brigadas formaram uma coluna, sob o comando do general João da Silva Barbosa, ficando 
responsável pela mesma, até a respectiva apresentação daquele general, o coronel comandante da 1.ª Brigada; a 
4.ª, 5.ª e 6.ª Brigadas outra coluna, sob o comando do general Cláudio do Amaral Savaget." 

 

Crítica 

 

Estava constituída a expedição. 

 

A ordem do dia nada dizia quanto ao desdobramento das operações, talvez porque este, desde muito conhecido, 
pouco se desviara do traçado anterior. Resumia-se naquela divisão de colunas. Ao invés de um cerco à distancia, 
para o que eram suficientes aqueles dezesseis corpos articulando-se em pontos estratégicos e a pouco 
constringindo-se em roda do arraial, planeara-se investir com os fanáticos por dois pontos, seguindo uma das 
colunas, a primeira, por Monte Santo, enquanto a segunda, depois de reunida em Aracaju, atravessaria Sergipe 
até Jeremoabo. 

 

Destas vilas convergiriam sobre Canudos. 

 

Linhas já escritas dispensam o insistir na importância de semelhante plano — cópia ampliada de erros anteriores, 
com uma variante única: em lugar de uma eram duas as massas compactas de soldados que iriam tombar, todos a 
um tempo, englobadamente, nas armadilhas da guerra sertaneja. E quando, agitando as mais favoráveis 
hipóteses, isto não acontecesse, era fácil verificar que a plena consecução dos itinerários preestabelecidos 
problematizava ainda um desenlace satisfatório da campanha. À simples observação de um mapa ressaltava que 
a convergência predeterminada, embora se realizasse, não determinaria o esmagamento da rebelião, mesmo à 
custa do alvitre extremo e doloroso da batalha. 

 

As estradas escolhidas, do Rosário e de Jeremoabo, interferindo-se fora do povoado, num ponto de sua 
amplíssima periferia, eram inaptas para o assédio. Os jagunços batidos numa direção única, no quadrante de 
sudeste, tinham, caso fossem desbaratadas, francos para o ocidente e para o norte, os caminhos do Cambaio, do 
Uauá e da Várzea da Ema; todo o vasto sertão do S. Francisco, asilo impenetrável a que se acolheriam a salvo e 
onde se aprestariam para a réplica. Ora, a consideração desse abandono em massa do arraial raiava pelo mais 
exagerado otimismo. Os sertanejos resistiriam, como resistiram, e, reagindo aos assaltos feitos apenas por um 
único flanco, teriam como tiveram, pelos outros, mil portas por onde comunicarem com as cercanias e 
abastecerem-se à vontade. 

 

Eram circunstâncias fáceis de deduzirem-se. E, previstas, apontavam naturalmente um corretivo único: uma 
terceira coluna, que, partindo de Juazeiro ou Vila Nova, e vencendo uma distancia equiparada às percorridas 
pelas outras, com elas convergisse, trancando a pouco e pouco aquelas estradas, originando por fim um bloqueio 
efetivo. 

 

Não se cogitou, porém, desta divisão suplementar indispensável. Não havia tempo para tal. O país inteiro ansiava 
pela desafronta do Exército e da pátria... 

 

Era preciso marchar e vencer. O general Savaget seguiu logo, nos primeiros dias de abril, para Aracaju; e o 
comandante-em-chefe, em Queimadas, dispôs-se para a investida. 

 

Delongas 

 

Mas esta só se realizaria dois meses depois, em fins de junho. Os lutadores, soldados e patriotas, chegavam à 
obscura estação da estrada de ferro do S. Francisco e quedavam impotentes para a partida. 

 

O grande movimento de armas de março fora uma ilusão. Não tínhamos exército, na significação real do termo, 
em que se inclui, mais valiosa que a existência de alguns milhares de homens e espingardas, uma direção 
administrativa, técnica e tática, definida por um Estado-maior enfeixando todos os serviços, desde o transporte 
das viaturas aos lineamentos superiores da estratégia, órgão preparador por excelência das operações militares. 

 


Faltava tudo. Não havia um serviço de fornecimento organizado, de sorte que numa base de operações 
provisória, presa ao litoral por uma estrada de ferro, foi impossível conseguir-se um depósito de víveres. Não 
havia um serviço de transporte suficiente para cerca de cem toneladas de munições de guerra. 

 

Por fim não havia soldados: os carregadores de armas, que por ali desembarcaram, não vinham dos polígonos de 
tiro, ou campos de manobra. Os batalhões chegavam, alguns desfalcados, menores que companhias, com o 
armamento estragado e carecendo das noções táticas mais simples. Era preciso completá-los, armá-los, vesti-los, 
municiá-los, adestrá-los e instruí-los. 

 

Queimadas fez-se um viveiro de recrutas e um campo de instrução. Os dias começaram a escoar-se 
monotonamente em evoluções e manobras, ou exercícios de fogo, numa linha de tiro improvisada num sulco 
aberto na caatinga próxima. E o entusiasmo marcial dos primeiros tempos afrouxava, molificando na insipidez 
daquela Cápua invertida, em que bocejavam, remansando, centenares de valentes, marcando passo diante do 
inimigo . . . 

 

Dali seguiram, batalhão por batalhão, iludindo em transporte parcial a carência de viaturas, para Monte Santo, 
onde a situação não variou. Continuaram até meados de junho os mesmos exercícios e a mesma existência 
aleatória de mais de 3 mil homens em armas, dispostos aos combates mas impotentes para a partida e — 
registremos esta circunstância singularíssima — vivendo à custa dos recursos ocasionais de um município pobre 
e talado pelas expedições anteriores. 

 

A custo terminara-se a linha telegráfica de Queimadas, pela comissão de engenheiros militares, dirigida pelo 
tenente-coronel Siqueira de Meneses. E foi a única coisa apreciável durante tanto tempo perdido. O 
comandante-em-chefe, sem carretas para o transporte de munições, desapercebido dos mais elementares 
recursos, quedava-se, sem deliberar, diante da tropa acampada, e mal avitualhada por alguns bois magros e 
famintos dispersos em torno sobre as macegas secas das várzeas. O deputado do quartel-mestre-general não 
conseguira sequer um serviço regular de comboios, que partindo de Queimadas abastecessem a base das 
operações, de modo a armazenar reservas capazes de sustentar por oito dias a tropa. De sorte que ao chegar o 
mês de julho, quando a 2 .ª coluna, atravessando Sergipe, se abeirava de Jeremoabo, não havia em Monte Santo 
um único saco de farinha em depósito. A penúria e uns como prenúncios de fome condenavam à imobilidade a 
divisão em que se achava o principal chefe da campanha. 

 

Esta estagnação desalentava os soldados e alarmava o país. Como um diversivo, ou um pretexto de afastar por 
alguns dias de Monte Santo mil e tantos concorrentes aos escassos recursos da coluna, duas brigadas seguiram 
em reconhecimentos inúteis até ao Cumbe e Maçacará. Foi o único movimento militar realizado e não teve 
sequer o valor de aplacar a impaciência dos expedicionários. 

 

Uma delas, a 3 .ª de Infantaria — recém-formada com o 5.º e 9.° Batalhões de Artilharia, porque esta se 
reconstituíra com a anexação de uma bateria de tiro rápido e com o 7.º destacado da 1.ª — estava sob o comando 
de um oficial incomparável no combate, mas de temperamento irrequieto demais para aquela apatia. E ao chegar 
a Maçacará, depois de prear em caminho alguns cargueiros que demandavam o arraial sedicioso, em vez de 
volver à base de operações esteve na iminência de seguir, isolada, pela estrada do Rosário, para o centro da luta 
O coronel Thompson Flores, planeando este movimento indisciplinado e temerário, mal contido pela sua 
oficialidade, delatava, bem que exagerada pelo seu forte temperamento nervoso, a situação moral dos 
combatentes. Revoltava-os a todos a imobilidade em que se amortecera o arranco o marcial dos primeiros dias. 

 

Estremeciam muitos imaginando o desapontamento de receberem, de improviso, a nova da de Canudos pelo 
general Savaget . Calculavam os efeitos daquela dilação ante a opinião pública ansiosa por um desenlace; e 
consideravam quão útil se tornaria ao adversário alentado por três vitórias aquele armistício de três meses. 

 

Esta última consideração era capital. 

 

Não há um plano de campanha 

 

O general Artur Oscar determinou de agir traçando, a 19 de junho, a ordem do dia da partida na qual "deixa à 
imparcialidade da História a justificativa de tal demora". Sem o laconismo próprio de tais documentos, o general, 
após augurar inevitável vitória sobre a gente de Antônio Conselheiro, "o inimigo da República", aponta às tropas 
os perigos que as saltearão à entrada do sertão, onde "o inimigo as atacará pela retaguarda e flancos" no meio 
daquelas "matas infelizes" eivadas "de caminhos obstruídos, trincheiras, surpresas de toda a sorte, e tudo quanto 
a guerra tem de mais odioso". Em que pese à sua literatura alarmante, eram dados verdadeiros estes. A comissão 


de engenharia realizara reconhecimentos acordes no afirmarem, mais viva, a aspereza do solo, cujos traços 
topográficos impunham três condições ao favorável sucesso da campanha: forças bem abastecidas, que 
dispensassem os recursos das paragens pobres; mobilidade máxima; e plasticidade, que as adaptasse bem às 
flexuras do terreno revolto e agro. 

 

Crítica 

 

Eram três requisitos essenciais, completando-se. Mas nem um só foi satisfeito . As tropas partiriam da base de 
operações — à meia ração. Seguiriam chumbadas às toneladas de um canhão de sítio. E avançariam em brigadas 
cujos batalhões, a quatro de fundo, guardavam esses intervalos de poucos metros. 

Persistia a obsessão de uma campanha clássica. Mostram-na as instruções entregues, dias antes, aos comandantes 
de corpos. Resumo de uns velhos ;preceitos que cada um de nós, leigos no ofício, pode encontrar nas páginas do 
Vial, o que em tal documento se depara — é a teimosia no imaginar, impactas , dentro de traçados gráficos, as 
guerrilhas solertes dos jagunços. 

O chefe expedicionário alongou-se exclusivamente numa distribuição de formaturas. Não se preocupou com o 
aspecto essencial de uma campanha que, reduzida ao domínio estrito da tática — se resumia no aproveitamento 
do terreno e numa mobilidade vertiginosa. Porque a sua tropa mal distribuída ia seguir para o desconhecido, sem 
linhas de operações — adstrita aos reconhecimentos ligeiros feitos anteriormente, ou dados colhidos, de relance, 
por oficiais das outras expedições — e nada existe de prático naquelas instruções sobre serviço de segurança na 
vanguarda e nos flancos. Em compensação ostenta a preocupação da ordem mista, em que os corpos, na 
emergência da batalha , se deveriam desenvolver, com as distâncias regulamentares , de modo que cada brigada, 
desarticulando-se em campo raso, pudesse, geometricamente — cordões de atiradores, linhas de apoio e reforço, 
e reservas — agir com a segurança mecânica estatuída pelos luminares da guerra. E o chefe expedicionário citou, 
a propósito, Ther Brun. Não quis inovar. Não imaginou que o frio estrategista invocado, um gênio que não valia 
na ocasião as ardilezas de um capitão do mato, capitularia os dispositivos preceituados de idealização sem nome, 
nas guerras sertanejas — guerras à gandaia, sem programas rígidos, sem regras regulares, rodeadas de mil casos 
fortuitos, e aos recontros súbitos em todas as voltas dos caminhos ou tocaias em toda a parte. 

 

Copiou instruções que nada valiam, porque estavam certas demais. Quis desenhar o imprevisto. A luta, que só 
pedia um chefe esforçado e meia dúzia de sargentos atrevidos e espertos, ia iniciar-se enleada em complexa rede 
hierárquica — uns tantos batalhões maciços entalando-se em veredas flexuosas e emperrados diante de 
adversários fugitivos e bravos. Prendeu-se-lhe, além disto, às ilhargas, a mola de aço de um With-worth de 32, 
pesando 1.700 quilos ! A tremenda máquina, feita para a quietude das fortalezas costeiras — era o entupimento 
dos caminhos, a redução da marcha, a perturbação das viaturas, um trambolho a qualquer deslocação vertiginosa 
de manobras. Era, porém, preciso assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço, ainda que se 
pusessem de parte medidas imprescindíveis. 

 

Exemplifiquemos: as colunas partiram da própria base das operações em situação absolutamente inverossímil — 
à meia ração. Marcharam em desdobramentos que, como veremos em breve, não as forravam dos assaltos. Por 
fim, não tiveram a garantia de uma vanguarda eficaz, de flanqueadores capazes de as subtraírem a surpresas. 

 

Os que as acompanhavam nada valiam. Tinham que marchar, ladeando o grosso da tropa por dentro das 
caatingas, e estas tolhiam-lhes o passo. Soldados vestidos de pano, rompendo aqueles acervos de espinheirais e 
bromélias, mal arriscariam alguns passos, deixando por ali, esgarçados, os fardamentos, em tiras. 

 

Entretanto, poderiam avançar adrede predispostos à remoção de tais inconvenientes. Bastava que fossem 
apropriadamente fardados. O hábito dos vaqueiros era um ensinamento. O flanqueador devia meter-se pela 
caatinga, envolto na armadura de couro do sertanejo — garantido pelas alpercatas fortes, pelos guarda-pés e 
perneiras, em que roçariam inofensivos os estiletes dos xiquexiques pelos gibões e guarda-peitos, protegendo-lhe 
o tórax, e pelos chapéus de couro, firmemente apresilhados ao queixo, habilitando-o a arremessar-se, imune, por 
ali adentro. Um ou dois corpos assim dispostos e convenientemente adestrados acabariam por copiar as 
evoluções estonteadoras dos jagunços, sobretudo considerando que ali estavam, em todos os batalhões, filhos do 
Norte, nos quais o uniforme bárbaro não se ajustaria pela primeira vez. 

 

Não seria, isto, excessiva originalidade. Mais extravagantes são os dólmãs europeus de listas vivas e botões 
fulgentes, entre os gravetos da caatinga decídua. Além disto, atestam-no os nossos admiráveis patrícios dos 
sertões, aquela vestidura bizarra, capaz, em que pese ao seu rude material, de se afeiçoar aos talhos de uma 
plástica elegante, parece que robustece e enrija. É um mediador de primeira ordem ante as intempéries. Atenua o 
calor no estio, atenua o frio no inverno; amortece as mais repentinas variações de temperatura; normaliza a 
economia fisiológica e produz atletas. Harmoniza-se com as maiores vicissitudes da guerra. Não se gasta; não se 


rompe. Depois de um combate longo, o lutador exausto tem o fardamento intacto e pode repousar sobre uma 
moita de espinhos. Ao ressoar de um alarma súbito, apruma-se, de golpe, na formatura, sem uma prega na sua 
couraça flexível. Marcha sob uma chuva violenta e não tirita encharcado; depara, adiante, um hervaçal em 
chamas e rompe-o aforradamente; entolha-se-lhe um ribeirão correntoso e vadeia-o, leve, da véstia impermeável. 

 

Mas isto seria uma inovação extravagante. Temeu-se colar à epiderme do soldado a pele coriácea do jagunço. A 
expedição devia marchar corretíssima. Corretíssima e fragílima. 

 

Partira em primeiro lugar, no dia 14, a comissão de engenharia, protegida por uma brigada. Levava uma tarefa 
árdua. afeiçoar à marcha as trilhas sertanejas; e retificá-las, ou alargá-las, ou nivelá-las, ou ligá-las por estivas e 
pontilhões ligeiros, de modo que em tais veredas, cindidas de boqueirões e envesgando pelos morros, passasse 
aquela artilharia imprópria — as baterias de Krupp, alguns canhões de tiro rápido, e o aterrador 32, que por si só 
requeria estrada de rodagem, consolidada e firme. 

 

Esta estrada foi feita. Abriu-a num belo esforço, e com tenacidade rara, a comissão de engenharia, 
desenvolvendo-a ao alto da Favela, num percurso de quinze léguas. 

 

A comissão de engenharia 

 

Para este trabalho notável houve um chefe — o tenente-coronel Siqueira de Meneses. 

 

Siqueira de Meneses 

 

Ninguém até então compreendera com igual lucidez a natureza da campanha, ou era mais bem aparelhado para 
ela. Firme educação teórica e espírito observador tornavam-no guia exclusivo daqueles milhares de homens, 
tateantes em região desconhecida e bárbara. Percorrera-a quase só, acompanhado de um ou dois ajudantes, em 
todos os sentidos. Conhecia-a toda; e infatigável, alheio a temores, aquele campeador, que se formara fora da 
vida dos quartéis, surpreendia os combatentes mais rudes. Largava pelas chapadas amplas, perdia-se no deserto 
referto de emboscadas, observando, estudando e muitas vezes lutando. Cavalgando animais estropiados, inaptos 
a um meio galope frouxo, afundava nos grotões; varava-os; galgava os cerros abruptos, em reconhecimentos 
perigosos; e surgia no Caipã, em Calumbi e no Cambaio, em toda a parte, mais preocupado com a carteira de 
notas e os croquis ligeiros do que com a vida. 

 

Atraía-o aquela natureza original. A sua flora estranha, o seu facies topográfico atormentado, a sua estrutura 
geognóstica ainda não estudada — antolhavam-se-lhe, largamente expandidas, em torno, escritas numa página 
revolta da terra que ainda ninguém lera. E o expedicionário destemeroso fazia-se, não raro, o pensador 
contemplativo. Um pedaço de rocha, o cálice de uma flor ou um acidente do solo, despeavam-no das 
preocupações da guerra, levando-o à região remansada da ciência. 

 

Conheciam-no os vaqueiros amigos das cercanias e por fim os próprios jagunços. Assombrava-os aquele homem 
frágil, de fisionomia nazarena, que, apontando em toda a parte com uma carabina à bandoleira e um podômetro 
preso à bota, lhes desafiava a astúcia e não tremia ante as emboscadas e não errava a leitura da bússola portátil 
entre os estampidos dos bacamartes. 

 

Por sua vez o comandante-em-chefe avaliara o seu valor. O tenente-coronel Meneses era o olhar da expedição. 
Oriundo de família sertaneja do Norte e tendo até próximos colaterais entre os fanáticos, em Canudos, aquele 
jagunço alourado, de aspecto frágil, física e moralmente brunido pela cultura moderna, a um tempo impávido e 
atilado — era a melhor garantia de uma marcha segura. E deu-lhe um traçado que surpreendeu os próprios 
sertanejos. 

 

Estrada de Calumbi 

 

Entre os caminhos que demandavam Canudos, dois, o do Cambaio e o de Maçacará, haviam sido trilhados pelas 
expedições anteriores. Restava o de Calumbi, mais curto e em muitos pontos menos impraticável, sem as 
trincheiras alterosas do primeiro ou vastos plainos estéreis do último. Tais requisitos faziam crer que fosse 
inevitavelmente escolhido. Neste pressuposto os sertanejos fortificaram-no de tal maneira que a marcha da 
expedição por ali acarretaria desastre completo, muito antes do arraial. 

 

O plano esboçado pela comissão de engenharia evitou-o, norteando a estrada mais para o levante, beirando os 
contrafortes de Aracati. 


 

A marcha para Canudos 

 

Por ali avançaram, parceladamente, as brigadas. 

 

A de artilharia, decampando de Monte Santo, a 17, deparou, logo aos primeiros passos, dificuldades sérias. 
Enquanto os canhões mais ligeiros chegavam, transcorridos dez quilômetros, ao Rio Pequeno, o obstruente 32 
ficara distanciado de uma légua. Pela estrada, escorregadia e cheia de tremedais, ronceavam penosamente as 
vinte juntas de bois que o arrastavam, guiadas por inexpertos carreiros, uns e outros pouco afeitos àquele gênero 
de transportes, inteiramente novo e em 

 

que toda a sorte de empecilhos surgiam a todo o instante e a cada passo, nas flexuras fortes do caminho, na 
travessia das estivas mal feitas, ou em repentinos desnivelamentos, fazendo adornar a máquina pesadíssima. 

 

Somente no dia 19, à tarde, gastando três dias para percorrer três léguas, chegou o canhão retardatário ao 
Caldeirão Grande, permitindo que se reorganizasse a brigada de artilharia que, juntamente com a 2.ª, de 
Infantaria, tendo à vanguarda o 25.° Batalhão do tenente-coronel Dantas Barreto, prosseguiria na manhã 
subsequente para a Gitirana, distante oito quilômetros da estação anterior, com a mesma marcha fatigante e 
remorada. 

 

Naquele mesmo dia saíra de Monte Santo o comandante geral e o grosso da coluna constituído pelas 1.ª e 3.ª 
Brigadas, com o efetivo de 1.933 soldados. 

 

Toda a expedição em caminho, forte de uns 3 mil combatentes, avançou até ao Aracati, 46 quilômetros além de 
Monte-Santo, de idêntico modo: as grandes divisões progredindo isoladas, ou concentrando-se e dispersando-se 
logo, distanciando-se às vezes demais, contrastando sempre a investida ligeira da vanguarda com o tardo 
caminhar da artilharia. 

 

O 5.° Corpo de Polícia Baiana 

 

Mais afastado ainda, no coice de toda a tropa, ia o grande comboio geral de munições, sob o mando direto do 
deputado do quartel-mestre-general, coronel Campelo França, e guarnecido com 432 praças, o 5.° Corpo de 
Polícia Baiana — o único entre todos que se talhara pelas condições da campanha. Recém-formara-se com 
sertanejos engajados nas regiões ribeirinhas do S. Francisco. Mas não era um batalhão de linha, como não era um 
batalhão de polícia. Aqueles caboclos rijos e bravos, joviais e bravateadores, que mais tarde, nos dias 
angustiosos do assédio de Canudos, descantariam, ao som dos machetes, modinhas folgazãs, debaixo de 
fuzilarias rolantes eram um batalhão de jagunços. Entre as forças regulares de um e outro matiz, imprimiam o 
traço original da velha bravura a um tempo romanesca e bruta, selvagem e heróica, cavaleira e despiedada, dos 
primeiros mestiços, batedores de bandeiras. Eram o temperamento primitivo de uma raça, guardado, intacto, no 
insulamento das chapadas, fora da intrusão de outros elementos e aparecendo, de chofre, com a sua feição 
original; misto interessante de atributos antilógicos, em que uma ingenuidade adorável e a lealdade levada até ao 
sacrifício, e o heroísmo distendido até à barbaridade, se confundem e se revezam, indistintos. Vê-lo-emos ao 
diante. 

 

Alteração da formatura 

 

O 5.° Corpo e o comboio, partindo por último, de Monte Santo, à reçaga da expedição, quando deviam 
centralizá-la, seguiam, ao cabo, completamente isolados. E isto acontecia aos demais batalhões. A despeito da 
formatura estatuída, verificara-se logo a impossibilidade de uma concentração imediata, na emergência da 
batalha. Adstrito ao trabalho dos sapadores, todo o trem da artilharia ficava, por vezes, longamente separado do 
resto da coluna, como um trambolho obstruente entre a vanguarda e comboio geral. De sorte que se, por um 
golpe de ousadia, os jagunços, em trechos adrede escolhidos, houvessem salteado o último, o refluxo da 
primeira, correndo em auxílio, estacaria de encontro às baterias engasgadas nas veredas estreitas. 

 

Revela-o o roteiro pormenorizado da marcha. Enquanto o grosso da coluna decampava, no alvorecer de 21, do 
Rio Pequeno, pouco mais de uma légua de Monte Santo, e chegava, seriam nove horas da manhã, ao Caldeirão 
Grande, depois de caminhar duas léguas, já desta escala largara à retaguarda da artilharia o canhão 32, protegido 
pela Brigada Medeiros. Na mesma ocasião, mais avantajada, a Brigada Gouveia atingia a Gitirana, à noite, onde 
já se achavam a comissão de engenheiros e o general Artur Oscar, que até lá fora, escoteiro, seguido de um 
piquete de vinte praças de cavalaria e do 9.° de Infantaria. Considerando-se que o comboio dirigido pelo coronel 


Campelo França e protegido pelo 5.º de Polícia ficara à retaguarda , vê-se que a tropa se espalhara em longura de 
quase quatro léguas, violando-se inteiramente as instruções preestabelecidas. 

 

No amanhecer do dia 22, enquanto o general Barbosa, que permanecera o resto do dia anterior em Caldeirão, 
levantava acampamento seguindo para Gitirana, daí partia o comandante geral com a Primeira Brigada, o 9.º 
Batalhão da 3.ª e 25.° da 2.ª, a ala de cavalaria do major Carlos de Alencar e a artilharia, levando o dispositivo 
prefixado: na frente o 14.° e 30.° Batalhões, no centro a cavalaria e a artilharia; depois dois outros corpos, o 9.° e 
o 25.°. Ora, enquanto o comandante geral seguia rapidamente naquele dia, chegando em pouco tempo com a 
vanguarda a Juá, 7.600 metros além de Gitirana, imobilizava-se a artilharia nesta última escala aguardando que a 
comissão de engenheiros ultimasse a abertura de picadas e trabalhos de sapa; e, como o grosso das forças vinha 
ainda pela estrada do Caldeirão, estas mais uma vez se subdividiam forçadamente, ficando em condições 
desvantajosas na emergência de um assalto, porque não vinham adrede dispostas a afastamentos tão largos, que 
deviam ter sido de antemão estabelecidos, realizando-se não como um vício de mobilidade mas como requisito 
tático indispensável. 

 

As brigadas reuniram-se, por fim, na noite daquele dia, em Juá. Ali chegou, às 6 horas, logo após a artilharia, o 
resto da coluna composta dos 5.°, 7.°, 15.°, 16.° e 27.° corpos de infantaria. Executava-se o comboio, retardado 
num trecho qualquer dos caminhos. 

 

Daquele ponto seguiram os dois generais, na manhã de 23, para Aracati, 12.800 metros na frente, fazendo a 
vanguarda os batalhões do coronel Gouveia. Mas a artilharia, protegida pelos do coronel Medeiros, só se moveu 
ao meio-dia, depois que os engenheiros, apoiados pela Brigada Flores, executaram penosíssimos trabalhos de 
reparos. 

 

Pormenorizamos, miudeando-a aos menores incidentes, esta marcha, para que se revelem as condições 
excepcionais que a rodearam. 

 

Depois da partida de Juá e atingida a velha fazenda do Poço, totalmente em ruínas, sobreveio incidente indicador 
do quanto era conhecido o terreno em que se avançava. 

 

Incidentes 

 

Ao invés de prosseguirem em rumo para a direita — buscando a fazenda do Sítio, de um sertanejo aliado, Tomás 
Vila-Nova inteiramente dedicado à nossa gente — entraram os sapadores por um desvio, a esquerda. Quando já 
iam longe, depois de algumas horas de trabalho, reconheceu o tenente-coronel Siqueira de Meneses a 
impossibilidade de afeiçoar os caminhos com a presteza necessária. "Tais eram o grande movimento de terras a 
fazer-se, o cerrado da caatinga, os pesados lajedos a remover-se, além dos acidentes do terreno para a descida e 
subida dos veículos". Abandonando então todo o trabalho feito, procurou o sítio de Vila-Nova. Esclarecido por 
este, atacou à tarde a nova vereda que, embora alongando a distância, tinha melhores condições de viabilidade. A 
artilharia por ali só avançou ao cair da tarde, passando pelo sítio dos Pereiras. Foi acampar a meia-noite na lagoa 
da Laje, dois quilômetros aquém de Aracati, onde já estava havia muito toda a coluna. Ficara ainda mais à 
retaguarda, com a 3.ª Brigada, o moroso 32, à borda a pique de um ribeirão, o dos Pereiras, que o adiantado da 
noite obstara se pudesse atravessar. 

 

Entrava-se, no entanto, na zona perigosa. Nesse dia, na lagoa da Laje, o piquete do comando geral, guiado por 
um alferes, surpresara alguns rebeldes que destelhavam a casa ali existente. O recontro foi rápido. Os sertanejos, 
de surpresa acometidos por uma carga, fugiram sem replicar. Um único ficou. Estava sobre o telhado levadio e 
ao descer viu-se circulado. Reagiu apesar de ferido. Afrontou-se com o adversário mais próximo, um anspeçada; 
desmontou-o; e arrancou-lhe das mãos a clavina, derreando-o com ela a coronhadas. Encostou-se depois à parede 
do casebre e fez frente aos soldados, girando-lhes à cabeça a arma, em molinete. Batido, porém, de toda a banda, 
baqueou, exausto e retalhado. Mataram-no. Era a primeira façanha, exígua demais para tanta gente. 

 

Suceder-se-lhe-iam outras. 

 

No dia 24 agravou-se a marcha. A coluna, que decapara de Aracati ao meio-dia, porque teve de aguardar a vinda 
dos retardatários da véspera, endireitou, unida, para Juetê, distante 13.200 metros — para mais uma vez se 
subdividir. 

 

Os caminhos pioravam. 

 


Tornou-se necessário, além dos trabalhos de sapa, abrir mais de uma légua de picada contínua através de uma 
caatinga feroz que naquele trecho justifica bem o significado da denominação indígena do lugar . 

Relata o chefe desse trabalho memorável: 

 
"Ao xiquexique, palmatória, rabo-de-raposa, mandacarus, croás, cabeça-de-frade, culumbi, cansação, favela, 
quixaba e a respeitabilíssima macambira, reuniu-se a muito falada e temida cumanã, espécie de cipó com aspecto arborescente, imitando no todo a uma planta cultivada nos jardins, cujas folhas são cilíndricas. A poucos centímetros do chão o tronco divide-se em muitos galhos, que se multiplicam numa profusão admirável, formando uma grande copa, que se mantém no espaço por seus próprios esforços ou favorecido por algumas plantas que vegetam de permeio. Estende suas franças de folhas cilíndricas com oito caneluras e igual número de 
filetes em gume e pouco salientes, semelhando-se a um enorme polvo de milhões de antenas, como elas flexíveis e elásticas, cobrindo, não raras vezes, considerável superfície do solo, emaranhando-se, por entre a esquisita e raquítica vegetação destas paragens, em uma trama impenetrável. A foice mais afiada dos nossos soldados do contingente de engenharia ("chineses", na frase gaiata dos companheiros dos corpos combatentes) e polícia dificilmente as decepava nos primeiros golpes, oferecendo, portanto, resistência inesperada ao empenho que 
todos traziam em ir por diante. Nesse labirinto de nova espécie, teve a comissão de engenharia em poucas horas de abrir mais de seis quilômetros de estrada, tendo ao encalço a artilharia, que a atropelava impaciente. O ingente 
esforço desenvolvido pelos distintos e patriotas republicanos, empenhados neste pesadíssimo labor, não impediu 
que a noite os viesse surpreender, antes de chegar à espécie de clareira denominada pelo povo do lugar de 
Queimadas, onde esta vegetação traiçoeira desaparecia de sua frente, como que tomada de medo. Antes que o 
desânimo, o cansaço e o sono se apoderassem dos nossos soldados resignados e trabalhadores, a citada comissão 
representada nesta ocasião pelo chefe, tenentes Nascimento e Crisanto, alferes Ponciano, Virgílio e Melquíades, 
os dois últimos da polícia, o terceiro auxiliar e o quarto comandante do contingente de engenharia, pois o capitão 
Coriolano e tenente Domingos Ribeiro achavam-se mais atrás em outros trabalhos, tomou o alvitre de mandar 
acender, já escura a noite, de distancia em distancia, grandes fogueiras para à sua luz prosseguirem os obreiros 
da boa causa da pátria. 

 

"Assim concluiu-se com alegria geral e contentamento, das oito para nove horas da noite, este último trecho, em 
que a cumanã se dissolveu em mais benigna vegetação ao sair das Queimadas de que já falamos. O canhão 32, 
não podendo vencer os obstáculos avolumados pela noite, ficou dentro da picada até o dia seguinte e com ele o 
dr. Domingos Leite, que trabalhava desde o Rio Pequeno com uma turma de "chineses" no empenho de levá-lo a 
Canudos. 

 

Pouco depois de nove horas estava a comissão reunida e acampada na clareira debaixo de chuvas torrenciais, que 
se prolongaram até ao dia seguinte, a todos contrariando, a todos causando mal-estar e aborrecimentos. Aí 
também acampou a brigada de artilharia, o 16.° e o 25.° Batalhões de Infantaria, tendo-se conservado em 
proteção ao 32 o 27.° que dormiu na picada. Foi magnífico, esplêndido mesmo, o espetáculo que a todos 
vivamente impressionou, vendo a artilharia com seus metais faiscantes e polidos, altiva de sua força soberana, 
atravessar garbosa e imponente, como rainha do mundo, por entre os fantásticos clarões de grandes fogos, acesos 
no deserto, como que pelo gênio da liberdade, para mostrar-lhe o caminho do dever, da honra e da glória." 

 

Durante este tempo chegava a Juetê, onde pernoitou, o general Oscar, com o Estado-maior e o piquete de 
cavalaria. Ao passo que o general Barbosa, com a l.ª e 3.ª Brigadas, endireitava para a fazenda do Rosário, 4.700 
metros na frente. 

 

Ali chegou na antemanhã seguinte o comandante geral; e mais tarde o resto da divisão, tendo-se tornado. ainda, 
necessário taludar as ribanceiras do rio Rosário para que o atravessasse a artilharia. 

 

Um guia temeroso: Pajeú 

 

O inimigo apareceu outra vez. Mas célere, fugitivo. Algum piquete que bombeava a tropa. Dirigia-o Pajeú. O 
quadrilheiro famoso visara, à primeira vista, um reconhecimento. Mas, de fato, como o denunciaram ulteriores 
sucessos, trazia objetivo mais inteligente: renovar o delírio das cargas e um marche-marche doido, que tanto 
haviam prejudicado a expedição anterior. Aferrou a tropa num tiroteio rápido, de flanco, fugitivo, 
acompanhando-a velozmente por dentro das caatingas. Desapareceu. Surgiu, logo depois, adiante. Caiu num 
arremesso vivo e fugaz sobre a vanguarda, feita neste dia pelo 9.° de Infantaria. Passou, num relance, 
acompanhado de poucos atiradores, por diante, na estrada. Não foi possível distingui-los bem. Trocadas algumas 
balas, desapareceram. Ficou aprisionado e ferido um curiboca de doze ou quatorze anos, que nada revelou no 
interrogatório a que o sujeitaram. 

No Rosário 

A tropa acampou, sem outros sucessos, naquele sítio. 

Reuniram-se os combatentes, exceto a 3.ª Brigada que se avantajara até às Baixas, seis quilômetros na frente. 

O comandante-em-chefe enviou, ao general Savaget, um emissário reiterando o compromisso anterior de se 
encontrarem, a 27, nas cercanias de Canudos. 

Decamparam a 26, seguindo para o rancho do Vigário dezoito quilômetros mais longe, após pequena alta nas Baixas. 

Estavam a cerca de oitenta quilômetros de Monte Santo. Em plena zona perigosa. A breve troca de balas da 
véspera pressupunha eventualidades de combates. Talvez, esclarecidos pelo reconhecimento feito, os jagunços se dispusessem a refregas mais sérias. Denunciava-os, como sempre, de algum modo, a fisionomia da terra, a conformação do terreno que dali por diante se acidenta erriçado de cômoros escalvados, até às Baixas, onde se alcantila a serra do Rosário, de flancos duros e vegetação rara. 

As tropas iam escalar pelo sul a antemural que circunscreve Canudos. Progrediam cautelosas na rota. Não 
ressoaram mais as cornetas. Formados cedo, os batalhões marcharam até ao sopé da serrania. Galgaram-na. 
Derivaram, depois, na descida pelo boqueirão que a separa do rancho do Vigário. 

Toda a coluna se subdividiu ainda, largamente fracionada: enquanto a vanguarda atingia, ao entardecer, o pouso, a artilharia ligeira, que abandonara com os engenheiros o ronceiro 32, vinha pelos primeiros recostos da vertente e aquele ascendia vagarosamente, do outro lado, à feição dos trabalhos de sapa que lhe estradavam as ladeiras. A noite, e com a noite uma chuva torrencial batida de ventanias violentas, desceu sobre os expedicionários que, em tais condições, seriam facilmente desbaratados pelas guerrilhas dos adversários, velhos conhecedores do terreno. 
Não o fizeram. Tinham mais bem disposta outra posição, como veremos. Deixaram também em paz o comboio que seguia, perdido à retaguarda, pela estrada de Juetê. Haviam afrouxado os animais de tiro; e toda a carga de 53 carroças e sete grandes carros de bois passara, subdividida, para as costas dos rijos sertanejos do 5.° Batalhão da Polícia. 

 

Passou, entretanto, em paz, a noite. No dia subseqüente, 27, emprazado para o encontro temeroso das duas 
colunas — apisoando ovantes os escombros do arraial investido — pôs-se tudo em movimento para a última 
jornada. E na alacridade singular sulcada de impaciências, de apreensões, e de entusiasmo vibrante, que antecede 
a vinda da batalha, ninguém cogitou nos companheiros remorados. 

 

As brigadas abalaram, deixando de todo esquecido, ao longe, o comboio desguarnecido por completo, porque os 
seus soldados, já arcando sob grandes fardos, já auxiliando os raros muares que ainda suportavam as cargas, 
estavam nas mais impróprias condições para o mais ligeiro recontro. 

 

Seguiram as brigadas: na frente a do coronel Gouveia com duas bocas de fogo; no centro a do coronel Olímpio 
da Silveira e a cavalaria; e depois, sucessivamente, as dos coronéis Thompson Flores e Medeiros. Atravessaram 
sobre dois pontilhões ligeiros o riacho do Angico. Estiraram-se vagarosamente, estrada em fora, numa linha de 
dez quilômetros. 

 

Rompia a marcha o 25.° Batalhão, ladeado de dois pelotões de flanqueadores, inúteis, mal rompendo a golpes de 
facão as galhadas. 

 

Passagem nas Pitombas 

 

De sorte que os jagunços os assaltaram, de surpresa, antes da chegada, ao meio-dia, no Angico. Foi mais sério o 
ataque, ainda que não valesse o nome de combate, que mais tarde lhe deram. Pajeú congregara os piquetes, que 
se sucediam daquele ponto até Canudos, e viera, de soslaio, sobre a força. Esta, sobre uma rampa escampada, 
ficou em alvo ante os tiros por elevação dos sertanejos imperfeitamente distinguidos na orla do matagal, 
embaixo; mas replicou com firmeza, perdendo apenas dois soldados, um morto e outro ferido. E continuou 
avançando em ordem, a passo ordinário, até ao sítio memorável de Pitombas, onde houvera o primeiro encontro 
de Moreira César com os fanáticos. 

 


O lugar era lúgubre. 

 

Recordações cruéis 

 

Despontavam em toda a banda recordações cruéis; molambos já incolores, de fardas, oscilando à ponta dos 
esgalhos secos; velhos selins, pedaços de mantas e trapos de capotes esparsos pelo chão, de envolta com 
fragmentos de ossadas. À margem esquerda do caminho, erguido num tronco — feito um cabide em que 
estivesse dependurado um fardamento velho — o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, 
mãos esqueléticas calçando luvas pretas... 

 

Jaziam-lhe aos pés o crânio e as botas. 

 

E do correr da borda do caminho ao mais profundo das macegas, outros companheiros de infortúnio: esqueletos 
vestidos de fardas poentas e rotas, estirados no chão, de supino, num alinhamento de formatura trágica; ou 
desequilibradamente arrimados aos arbustos flexíveis, que, oscilando à feição do vento, lhes davam singulares 
movimentos de espectros — delatavam demoníaca encenação adrede engenhada pelos jagunços. Nada Ihes 
haviam tirado, excluídas as munições e as armas. Uma praça do 25.° encontrou, no lenço envolto na tíbia 
descarnada de um deles, um maço de notas somando quatro contos de réis — que o adversário desdenhara, como 
a outras coisas de valor para ele despiciendas. 

 

Os combatentes, assombrados, mal atentaram naquele cenário; porque o inimigo continuava aferroando-os, de 
esguelha. Repelido no recontro anterior, depois que o contornara pela direita uma companhia do 25.° dirigida 
pelo capitão Trogílio de Oliveira, recuava, atacando. 

 

O 25.° e logo após o 27.°, do major Henrique Severino da Silva, prosseguiram repelindo-o, até ao Angico. 

 

Era meio-dia. A batalha parecia iminente. Em vários pontos, partindo dos flancos e da frente, estalavam tiros 
destacados. O comandante geral tomou as disposições mais convenientes para repelir o adversário que tudo 
denotava ir aparecer, rodeando-o. Um piquete de cavalaria dirigido pelo alferes Marques da Rocha, de seu 
Estado-maior, enviado a bater o matagal, à esquerda, revolveu-o, entretanto, inutilmente. A avançada prosseguiu. 

 

Duas horas depois, ao transpor o general o teso de uma colina o ataque recrudesceu, de súbito. Fizeram-se alguns 
disparos de Krupp. Um sargento de cavalaria e algumas praças arrojaram-se temerariamente na caatinga. 
Varrem-na. A marcha continuou. Na frente o 25.° vanguardeado por uma companhia de exploradores, e 
sucessivamente seguidos do 27.° e o 16.°, replicava aos tiroteios escassos e acelerava a investida. 

 

Aproximava-se a noite. A vanguarda arremeteu com as últimas ladeiras vivas do caminho, nas Umburanas. 
Subiu-as ofegante, sem vacilar na marcha. Repeliu mais uma vez o ataque sério, pelo flanco. 

 

E vingou a montanha. 

 

No último passo da ascensão se lhe antolhou um plano levemente inclinado, entre duas largas ondulações, 
fechado adiante por alguns cerros desnudos. 

 

Era o alto da Favela. 

 

O alto da Favela 

 

Naquele ponto este morro lendário é um vale. Subindo-se tem-se a impressão imprevista de se chegar numa 
baixada. 

 

Parece que se desceu. Toda a fadiga da ascensão difícil se volve em penoso desapontamento ao viajor exausto. 
Constringe-se o olhar repelido por toda a sorte de acidentes. Ao contrário de uma linha de cumeadas, depara-se, 
no prolongamento do caminho do Rosário, um talvegue, um sulco extenso, espécie de calha desmedida trancada, 
transcorridos trezentos metros, pela barragem de um cerro. 

 

Atingindo este, vêem-se-lhe aos lados, esbotenando-lhes os flancos e corroendo-os, fundos rasgões de enxurros 
que drainam a montanha. Por um deles, o da direita, se enfia, entalando-se em passagem estreita de rampas vivas 
e altas, quase verticais, lembrando restos de antigos túneis, aquele caminho, descendo, em desnivelamentos 
fortes. À esquerda outra depressão, terminando na encosta suave de um morro, o do Mário, se dilata na extensão 


maior de norte a sul, fechando-se, naquele primeiro rumo, ante outro cerro, que oculta o povoado e tomba, de 
chofre, pelo outro, em boqueirão profundo até ao leito do Umburanas. À frente, em nível inferior, a fazenda 
Velha. O pequeno Serrote dos Pelados cai logo, em seguida, em declive, até o Vaza-Barris, embaixo. E para 
todos os quadrantes — para leste, buscando o vale do Macambira, aquém das cumeadas do Cocorobó e a estrada 
de Jeremoabo que o atravessa; para o norte, derivando para a vasta planície ondeada; para o ocidente, procurando 
os leitos dos pequenos rios, o Umburanas e o Mucuim perto do extremo da estrada do Cambaio; para todos os 
lados, o terreno descamba com o mesmo facies que lhe imprimem sucessivos cômoros empolando-se numa 
confusão de topos e talhados. Tem-se a imagem real de uma montanha que desmorona, avergoada pelas 
tormentas, escancelando-se em gargantas, que as chuvas torrenciais de ano a ano reprofundam, sem o abrigo de 
vegetação que lhe amorteça a crestadura dos estios e as erosões das torrentes. 

 

Porque o morro da Favela, como os demais daquele trato dos sertões, não tem nem mesmo o revestimento 
bárbaro da caatinga. E desnudo e áspero. Raros arbúsculos, esmirrados e sem folhas, raríssimos cereus ou 
bromélias esparsas, despontam-lhe no cimo sobre o chão duro, entre as junturas das placas xistosas justapostas 
em planos estratigráficos, nitidamente visíveis, expondo, sem o disfarce da mais tênue camada superficial, a 
estrutura interior do solo. Entretanto, embora desabrigado, quem o alcança pelo sul não vê logo o arraial, ao 
norte. Tem que descer, como vimos, em suave declive, a larga plicatura em que se arqueia, em diedro, a 
montanha, numa selada entre lombas paralelas. 

 

Fuzilaria 

 

Por ali enveredou, ao anoitecer, a testa da coluna e uma bateria de Krupp, seguidas do resto da 2.ª Brigada e da 
3.ª, ficando a 1.ª e o grosso da tropa retardados à retaguarda. Mas deram poucos passos mais. O tiroteio frouxo, 
que até então acompanhara os expedicionários, progredira num crescendo contínuo, à medida que se realizava a 
ascensão, transmudando-se ao cabo, no alto, em fuzilaria furiosa. 

 

E desencadeou-se uma refrega original e cruenta. 

 

Não se via o inimigo — encafurnado em todas as socavas, metido dentro das trincheiras-abrigos, que minavam 
as encostas laterais, e encoberto nas primeiras sombras da noite que descia. 

 

As duas companhias do 25.° Batalhão suportaram valentemente o choque. Desenvolvendo-se em atiradores 
avançaram, disparando, ao acaso, as armas — enquanto as duas brigadas, que as precediam, se abriram para que 
passasse a bateria. Esta, jogada violentamente para a frente, arrastada, mais a pulso que pelos muares exaustos e 
espantados, passou entre elas, em acelerado, ruidosamente. Subiu o cômoro fronteiro. Alinhou-se em batalha, no 
alto. Desenrolou-se no ar a bandeira nacional. Uma salva de 21 tiros de granadas atroou sobre Canudos . . . 

 

O general Artur Oscar, a cavalo junto aos canhões, observou pela primeira vez, esbatido no clarão do luar 
deslumbrante, a misteriosa cidade sertaneja; e teve o mais fugaz dos triunfos na eminência varejada em que se 
expusera temerariamente. 

 

Porque a situação era desesperadora. A sua tropa, batida por todos os flancos, envolta pelo inimigo a cavaleiro, 
comprimia-se numa flexura estreita que lhe impedia as manobras. 

 

Se estivesse toda reunida era possível uma solução: prosseguir logo, vencendo a perigosa travessia, e juntar-se ao 
general Savaget que, depois de uma marcha entrecortada de combates, fizera alto três quilômetros adiante. Não 
havia, porém, chegado a 1.ª Brigada, que ficara protegendo a bateria de tiro rápido e o 32; e mais moroso ainda, 
o comboio ficara no Angico, distanciado de duas léguas. 

 

Crítica 

 

Aquele plano de campanha dera o único resultado que podia dar. A expedição homogênea que, pelo seu 
dispositivo inicial, não podia fracionar-se, porque vinha adstrita a uma direção única e abastecida por um 
comboio único, dividira-se precisamente ao chegar ao objetivo da luta. De sorte que a arremetida doida rematada 
por uma salva real, de balas, sobre Canudos, era a mais contraproducente das vitórias. O chefe expedicionário 
definiu-a depois como um combate de êxito brilhante, mercê do qual o inimigo fugira, abandonando-lhe a 
posição expugnada. Entretanto todos os sucessos ulteriores revelaram a ânsia irreprimível da tropa por 
abandoná-la e o empenho persistente, dos jagunços, em impedir que ela dali saísse. 

 

Trincheiras dos jagunços 


 

Aquilo era uma armadilha singularmente caprichosa. Quem percorresse mais tarde as encostas da Favela 
avaliava-a. Estavam minadas. A cada passo uma cava circular e rasa, protegida de tosco espaldão de pedras, 
demarcava uma trincheira. Eram inúmeras; e volvendo todas para a estrada os planos de fogo quase à flor da 
terra, indicavam-se adrede dispostas para um cruzamento sobre aquela. 

 

Explicavam-se, assim, os ataques ligeiros, feitos em caminho e a insistência, a partir do Angico, do inofensivo 
tiroteio em que os sertanejos, salteando e correndo, tinham evidente intuito de atrair a expedição segundo um 
rumo certo, impedindo-lhe a escolta de qualquer atalho entre tantos que dali por diante levam ao arraial. 

 

Triunfara-lhes o ardil. Os expedicionários, sob o estímulo da ânsia perseguidora contra o antagonista disperso na 
frente, em fuga, haviam imprudentemente enveredado, sem uma exploração preparatória, pela paragem 
desconhecida, acompanhando, sem o saberem, um guia ardiloso e terrível, com que contavam —Pajeú. 

 

E tombaram na tocaia com aquele aprumo de triunfadores. Mas a breve trecho o perderam, num tumultuar de 
fileiras retorcidas, quando, em réplica ao bombardeio que tempesteava a um lado, correu vertiginoso, de extremo 
e de alto a baixo, nas encostas, incendiando-as, um relampaguear de descargas terríveis e fulminantes, rompendo 
de centenares de trincheiras, explodindo debaixo do chão como fogaças. 

 

Continua a fuzilaria 

 

Era um fuzilamento em massa... 

 

Os batalhões surpreendidos fizeram-se multidão atônita, assombrada e inquieta: centenares de homens 
esbarrando-se desorientadamente, tropeçando nos companheiros que baqueavam, atordoados pelos estampidos, 
deslumbrados pelos clarões dos tiros, e tolhidos, sem poderem arriscar um passo na região ignota sobre que 
descera a noite. 

 

A réplica, alvejando as encostas, era inútil. Os jagunços atiravam sem riscos, de cócaras ou deitados no fundos 
dos fossos, em cuja borda estendiam os canos das espingardas; excluindo o alvitre de os desalojar a cargas de 
baionetas, lançando-as desesperadamente contra os morros, ou de prosseguirem, aventurando-se a piores assaltos 
e abandonando a retaguarda, restava aos combatentes o de permanecerem a pé firme na posição perigosa 
aguardando o amanhecer. 

 

Acampamento na Favela 

 

Esta solução única foi favorecida pelo adversário. O ataque ao fim de uma hora amorteceu-se e afinal cessou 
inesperadamente. As brigadas acamparam na formatura da batalha. A 2.ª desenvolveu-se em linhas avançadas, 
do centro para a direita, tendo à retaguarda a 1.ª; a artilharia alinhou-se próxima, sobre o cerro fronteiro, 
extremada à direita pela bateria de tiro rápido tendo no centro o Withworth 32, que se confiara à guarda do 30.°, 
do tenente-coronel Tupi Caldas. O general, que comandara este batalhão quando coronel, pô-lo em pessoa 
naquele posto perigoso: 

 

"À honra do 30.° entrego a artilharia e fico tranqüilo." 

 

O resto do 5.° Regimento, do major Barbedo, emparcou, desenvolvendo-se para a esquerda, tendo próxima a ala 
de cavalaria do major Carlos Alencar. Perto da depressão, junto ao Alto do Mário, ponto fraco da posição, a que 
ulteriores sucessos dariam o nome de vale da Morte, se adensaram os batalhões do coronel Flores. Numa sanga 
menos enfiada pelos fogos se improvisou um hospital de sangue. Para lá se arrastaram 55 feridos, que com vinte 
mortos por ali esparsos, porque não havia como os remover, alteavam a 75 o número de baixas do dia, em pouco 
mais de uma hora de combate. 

 

Estendeu-se em torno um cordão de sentinelas; e a tropa, comandantes e praças deitados pelo chão na mais 
niveladora promiscuidade — repousou em paz. 

 

A inopinada quietude do inimigo dera-lhes a ilusão da vitória. Saudaram-na antecipadamente as bandas de 
música da 3.ª Brigada, esgotando até desoras um grande repertório de dobrados; e um luar admirável alteou-se 
sobre os batalhões adormecidos . . . 

 


Mas era uma placidez enganadora. Os sertanejos haviam conseguido o intento que Ihes ditara a astúcia. Tendo 
arrastado até lá a expedição, restava-lhes, de todo desprotegido, à retaguarda, o comboio de munições de guerra e 
de boca. No dia imediato assaltariam simultaneamente por dois pontos, na Favela e no Angico — e, ainda 
quando vitoriosas no primeiro as forças arremetessem com o arraial, alcançá-lo-iam desmuniciadas, inermes. 

 

Canudos 

 

Esta circunstância não pesou, porém, no ânimo dos que se haviam abeirado tão precipitadamente do centro das 
operações. 

 

Ao clarear da manhã de 28, reunidos na posição dominante da artilharia, oficiais e praças, contemplavam, afinal 
a "caverna dos bandidos", segundo o dizer pinturesco das ordens do dia do comandante-em-chefe. 

 

Canudos crescera ainda, porém tendo apenas mais amplo o aspecto primitivo: a mesma casaria vermelha, de 
tetos de argila, alargando-se cada vez mais esparsa pelo alto das colinas em torno do núcleo compacto abraçado 
pela volta viva do rio. Circunvalada nos quadrantes de sudoeste e noroeste por aquele, abrangida ao norte e a 
leste pelas linhas ondeantes dos cerros, emergia, a pouco e pouco, na claridade daquela hora matinal com a 
feição perfeita de uma cidadela de expugnação dificílima. Percebia-se que um corpo de exército ao cair no 
dédalo de sangas, que lhe enrugam em roda o terreno, marcharia como entre galerias estreitas de uma praça de 
armas colossal. Não havia lobrigar-se um ponto francamente acessível. 

 

A estrada de Jeremoabo entrando, duzentos metros antes, pelo leito seco do Vaza-Barris, metia-se entre duas 
trincheiras, que lhe orlavam uma e outra margem, mascaradas de sebes contínuas de gravatás bravios. A vereda 
"sagrada" de Maçacará — por onde seguia o Conselheiro nas suas peregrinações para o sul — tombando pelos 
morros, entre os quais se encaixa o Umburanas, era igualmente impraticável. As do Uauá e Várzea da Ema, ao 
norte, estavam livres, mas exigiam para atingirem-se longa e perigosa marcha contornante. 

 

A igreja nova, quase pronta, alevantava as duas altas torres, assoberbando a casaria humilde e completava a 
defesa. Enfiava pela frente todos os caminhos, batia o alto de todos os morros, batia o fundo de todos os vales. 
Não tinha ângulo morto a espingarda do atirador alcandorado em suas cimalhas espessas, em que só faltavam 
planos de fogo de canhoneiras, ou recortes de ameias. 

 

O terreno que na frente da Favela, ao norte, deriva até ao rio, empolado e revolto, abre-se, como vimos, para a 
esquerda na larga depressão, dando acesso ao morro do Mário e à linha de cumeadas em declive que se dirige 
para fazenda Velha. 

 

Ali estava a 3.ª Brigada, desde cedo, formada em colunas. 

 

Mais para a direita, dominante, a artilharia. Sucessivamente a 2.ª e a 1.ª Brigadas. A tropa amanhecera na 
formatura da batalha. Atendendo, porém, às vantagens táticas da posição, esta devia principiar e em grande parte 
sustentar-se com a artilharia, cujo efeito, no bater a tiros mergulhantes o arraial distante 1.200 metros, se 
acreditou capaz de acarretar em pouco tempo a mais completa vitória. 

 

As esperanças concentraram-se, por isto, no primeiro momento, nas baterias do coronel Olímpio da Silveira. 

 

Eram tão grandes que pouco antes de ser feito o primeiro disparo, às seis horas da manhã, numerosos 
combatentes de outras armas, aglomerados em volta dos canhões, tinham o papel neutral de espectadores, 
ansiando por um quadro terrivelmente dramático: Canudos ardendo sob a túnica molesta do canhoneio! Uma 
população fulminada dentro de 5 mil casebres em ruínas ! 

 

Era mais uma ilusão a ser duramente desfeita... 

 

O primeiro tiro partiu, disparando o Krupp da extrema direita. E determinou, de fato, um empolgante lance 
teatral. 

 

Os jagunços haviam dormido ao lado da tropa, por todas aquelas encostas riçadas de algares e, sem aparecerem, 
circularam-na para logo de descargas. 

 

Chuva de balas 

 


Mais tarde, relatando o feito, o chefe expedicionário se confessou impotente para descrever a imensa "chuva de 
balas que desciam dos morros e subiam das planícies num sibilo horrível de notas", que atordoavam. Por sua vez 
o comandante da 1.ª coluna afirmou em ordem do dia, que durante cinco anos, na guerra do Paraguai, jamais 
presenciara coisa semelhante. 

 

Realmente, os sertanejos revelaram uma firmeza de tiro surpreendedora. As descargas, nutridas, rolantes e 
violentíssimas, deflagrando pelos cerros como se as ateasse um rastilho único, depois de abrangerem a tropa 
desabrigada, bateram, convergentes, sobre a artilharia. Dizimaram-na. Tombaram dezenas de soldados e a 
metade dos oficiais. Sobre o cerro, varrido em minutos, permaneceu, entretanto, firme, a guarnição rarefeita e no 
meio dela, atravessando entre as baterias, impassível como se desse instrução num polígono de tiro, um velho de 
bravura serena e inamolgável — um valente tranqüilo, o coronel Olímpio da Silveira. Foi a salvação. Em tal 
emergência o abandono dos canhões seria o desbarato... 

 

Confusão e desordem 

 

Vibrara o alarma em todos os corpos. Instintivamente, sem direção fixa e sem ordem de comando, 3 mil 
espingardas dispararam a um tempo dirigidas contra os morros. Estes fatos passaram em minutos, e em minutos, 
na área comprimida em que se agitava, inútil, a expedição, viu-se a mais lastimável desordem. 

 

Ninguém deliberava. Todos agiam. Ao acaso, estonteadamente, sem campo para o arremesso das cargas ou para 
a manobra mais simples, os pelotões englobados atiravam a esmo em pontarias altas, para não se trucidarem 
mutuamente, contra o inimigo sinistro que os rodeava, intangível, surgindo por toda a parte e por toda a parte 
invisível. Neste tumulto, a 3.ª Brigada, no flanco esquerdo, disposta em colunas de batalhões e tendo na 
vanguarda o 7.º, começou a avançar, descendo, na direção da fazenda Velha, de onde rompiam mais fortes as 
descargas. Aquele batalhão, que quatro meses antes subira por aquele mesmo caminho em debandada, fugindo e 
atirando-lhe à margem o cadáver do coronel Moreira César, ia penitenciar-se do desaire. Completando esta 
circunstância especialíssima, acompanhava-o, logo depois, um sócio de reveses, o 9.°. O major Cunha Matos 
dirigia a vanguarda. Os vencidos da expedição anterior deparavam ensejo raro para a desafronta e tinham um 
chefe que, sob muitos aspectos, se equiparava ao comandante infeliz que ali tombara — o coronel Thompson 
Flores. Era um lutador de primeira ordem. Embora lhe faltassem atributos essenciais de comando e, 
principalmente, esta serenidade de ânimo, que permite a concepção fria das manobras dentro do afogueamento 
de um combate — sobravam-lhe coragem a toda a prova e um quase desprezo pelo antagonista por mais 
temeroso e forte, que o tornavam incomparável na ação. Demonstrou-o o ataque temerário que realizou. Fê-lo 
indisciplinadamente autônomo, sem determinação superior e com o intento firme de arrebatar, numa carga única, 
até à praça das igrejas, vitoriosos, os mesmos soldados que lá se tinham debandado, vencidos, quatro meses 
antes. A sua brigada investiu, batida em cheio pelos fogos diretos do inimigo entrincheirado; e, quase cem 
metros da posição primitiva, a vanguarda desenvolveu-se em atiradores. O coronel Flores que, a cavalo, lhe 
tomara a frente, descavalgou, então, a fim de pessoalmente ordenar a linha de fogo. Por um requinte dispensável, 
de bravura, não arrancara dos punhos os galões que o tornavam alvo predileto dos jagunços. Ao reatar-se, logo 
depois, a avançada, baqueou, ferido em pleno peito, morto. 

 

Baixas 

 

Substituiu-o o major Cunha Matos, que dignamente prosseguiu no movimento imprudentemente planeado, 
porque o 7.° Batalhão, entre os demais corpos, era o único que não podia recuar naquele terreno. O seu comando 
foi, porém, brevíssimo. Desmontado logo por um projetil certeiro, passou-o ao major Carlos Frederico de 
Mesquita. Este por sua vez foi, adiante, atingido por uma bala, assumindo a direção da brigada um capitão, 
Pereira Pinto. Era assombroso: o 7.° Batalhão teve em meia hora 114 praças fora de combate, e nove oficiais. 

 

Reduzira-se de um terço. Dissolvia-se à bala. Idêntico destroço lavrava noutros pontos. Rapidamente, com um 
ritmo inflexível, de minuto em minuto, as graduações dos chefes caíam em escalas assustadoras. O 14.° de 
Infantaria, ao abalar em reforço às linhas do flanco direito, perdera, transcorridos alguns metros, o comandante, 
maior Pereira de Melo. 

 

Substituiu-o o capitão Martiniano de Oliveira e, a breve trecho, foi retirado da linha, baleado O capitão Sousa 
Campos, que lhe sucedeu, apenas dados alguns passos, caiu morto. O 14.º prosseguiu comandado por um 
tenente. 

 

A mortandade alastrava-se deste modo por todas as linhas e, como uma agravante, ao fim de duas horas de um 
combate feito sem a mínima combinação tática, viu-se que as munições se esgotavam. A artilharia , dizimada na 


eminência em que permanecera valentemente, dera o último tiro, calando o canhoneio . Perdera a metade dos 
oficiais , e entre estes o capitão fiscal do 5.º Regimento, Nestor Vilar Barreto Coutinho. 

 

Começaram a chegar ao quartel-general reclamos insistintes para que fossem municiados os batalhões. 

 

Fez-se, então, seguir à retaguarda o capitão Costa e Silva, assistente do deputado do quartel-mestre-general , a 
fim de apressar a vinda do comboio. Resolução tardia. Dois ajudantes de ordens imediatamente enviados depois 
dele volveram de rédeas, as, percorrido um quilômetro. Não podiam romper as fuzilarias que trancavam a 
passagem. Cortara-se a retaguarda. E se parassem o tumulto, o estrépito de armas, o alarido confuso e 
estampidos insistentes, que estrugiam os ares em torno dos lutadores, no alto da Favela, eles perceberiam o 
tiroteio longínquo do 5.° de Polícia a braços com os jagunços, a duas léguas de distância.. 

 

Uma divisão aprisionada 

 

"Toda a primeira coluna estava aprisionada. Por mais estranho que se afigure o caso não havia aos triunfadores 
um meio de sair da posição que tinham conquistado. Confessa-o o general-em-chefe: "Atacado o comboio e 
interdita a passagem de qualquer soldado, como demonstraram os casos precedentes, tive de mandar uma força 
de cavalaria ao general Cláudio do Amaral Savaget, na intenção de receber socorro de munições, o que ainda 
uma vez contrariou o meu pensamento porque o piquete não pôde atravessar a linha de fogo do inimigo que 
tiroteava no flanco direito." Deste modo, batida no flanco direito, de onde tornara repelido o piquete de 
cavalaria; batida à retaguarda, que dois auxiliares não conseguiram romper; batida no flanco esquerdo, onde se 
sacrificara gloriosamente e estacara a 3.ª Brigada; e batida pela frente onde a artilharia, dizimada, perdera quase 
toda a oficialidade e emudecera, a expedição estava completamente suplantada pelo inimigo. 

 

Restava-lhe um recurso sobremaneira problemático e arriscadíssimo: saltar fora daquele vale sinistro da Favela, 
que era como uma vala comum imensa, a ponta de baionetas e a golpes de espadas. 

 

Fez-se, porém, uma última tentativa. Um emissário seguiu furtivamente, insinuando-se pelas caatingas, em busca 
da 2.ª coluna, que estacionara menos de meia légua, ao norte... 


Capítulo III 

 

Coluna Savaget 

 

A tropa do general Cláudio do Amaral Savaget partira de Aracaju. Fizera alto nas cercanias de Canudos, depois 
de uma marcha de setenta léguas. Viera pelo interior de Sergipe em brigadas isoladas até Jeremoabo, onde se 
organizara em 8 de junho, prosseguindo a 16, unida para o objetivo das operações. 

 

Forte de 2.350 homens, incluídas as guarnições de dois Krupps ligeiros, caminhara passo folgado e firme, para o 
que contribuíra dispositivo mais bem composto para as circunstâncias. 

 

Aquele general, sem avocar a si, inteira e rígida, uma autoridade, que sob tal forma seria contraproducente, 
repartira-a, sem deslize da inteireza militar, com os seus três auxiliares imediatos, coronéis Carlos Maria da Silva 
Teles, Julião Augusto da Serra Martins e Donaciano de Araújo Pantoja, comandantes da 4.ª , 5.ª e 6.ª Brigadas. E 
estes realizaram até às primeiras casas do arraial uma marcha que se destaca das demais. 

 

Não havia instruções prescritas. Não se ideara justapor ao áspero teatro da guerra a esquadria das formaturas, ou 
a retitude de planos preconcebidos. A campanha, compreenderam-na como a deviam compreender: imprópria a 
opulências de teorias guerreiras exercitadas através de um formalismo compacto; e girando toda em tática 
estreita e selvagem, feita de deliberações de momento. 

 

Pela primeira vez os lutadores suportavam-na numa atitude compatível: subdivididos em brigadas autônomas, 
para se não dispersarem; e móveis bastantes, para se modelarem à rapidez máxima das manobras ou movimentos 
que, subtraindo-as a surpresas, as preparassem a aguardar a única coisa que na guerra aventurosa e sem regras 
lhes era dado esperar — o inesperado. As três brigadas, ágeis, elásticas e firmes, abastecidas de comboios 
parciais, que lhes não travavam os movimentos: feitas para desenvolverem a envergadura à ginástica das 
guerrilhas e às asperezas da terra, repartindo a massa da divisão, substituíam-lhe a importância do número pela 
da velocidade e vigor das evoluções aptas a se realizarem nas mais circunscritas áreas de combate, sem os 
entraves dos elefantes de Pirro de uma artilharia imponente e imprestável. 

 

Viera na frente a 4 a composta dos 12.° e 31.° Batalhões comandados pelo tenente-coronel Sucupira de Alencar 
Araripe e major João Pacheco de Assis. 

 

Carlos Teles 

 

Dirigia-se o coronel Carlos Teles — a mais inteiriça organização militar do nosso Exército nos últimos tempos. 

 

Perfeito espécimen desses extraordinários lidadores riograndenses — bravos, joviais e fortes — era como eles 
feito pelo molde de Andrade Neves, um chefe e um soldado: arrojado e refletido, impávido e prudente, misto de 
arremessos temerários e bravura tranqüila; não desadorando o brigar ao lado da praça de pré no mais aceso dos 
recontros, mas depois de haver planeado friamente a manobra. 

 

A campanha federalista do Sul dera-lhe invejável auréola. A sua figura de campeador — porte dominador e alto, 
envergadura titânica, olhar desassombrado e leal — culminara-lhe o episódio mais heróico, o cerco de Bagé. 

 

A campanha de Canudos ia ampliar-lhe o renome. 

 

Compreendeu-a como poucos. Tinha a intuição guerreira dos gaúchos. 

 

De posse de sua brigada e, abalando com ela, isolado, para Simão Dias, onde chegou a 4 de maio, modelara-a em 
pequeno corpo de exército adaptando-a às exigências da luta. 

 

Aligeirou-a; adestrou-a; e como era impossível transmudar a instrução prática dos soldados que vinham de um 
severo exercício de batalhas nos campos do Rio Grande, procurou, malgrado o antagonismo do terreno, dar-lhe, 
em parte a mesma celeridade das marchas, o mesmo arranco vertiginoso das cargas. Escolheu, entre as 
companhias do 31.°, sessenta homens, cavaleiros adestrados, decaídos "monarcas das cochilhas" inaptos ao 
passo tardo dos pelotões de infantaria. E constituiu com eles um esquadrão de lanceiros, entregando-os ao 
comando de um alferes. Era uma inovação; e parecia um erro. A arma "fria e silenciosa" de Damiroff, feita para 
os arrancos e choques nas estepes e nos pampas, à primeira vista se impropriava em absoluto àquele solo revolto 
e recamado de espinheiros. 


Entretanto, mais tarde se verificou o alcance da medida. 

Os improvisados lanceiros tinham a prática das corridas pulando sobre as "covas de touro" das campinas do Sul. 

Vingaram de idêntico modo os barrocais do sertão. Fizeram reconhecimentos preciosos. E mais tarde, quando se reuniram as colunas no ermo da Favela, a lança fez-se-lhes a aguilhada do vaqueiro no arrebanhar o gado esparso pelas cercanias, único sustento com que contava a tropa combalida. 

Esta função dupla patentou-se valiosíssima, sob o primeiro aspecto, logo ao partir a divisão do general Savaget de Jeremoabo para Canudos. Levava esclarecida a marcha. 

Dias antes, vinte soldados daquele esquadrão haviam batido a estrada até às cercanias do povoado, e do 
reconhecimento resultava estar, aquela, franca até a serra Vermelha onde o terreno se acidenta nos primeiros 
cerros de Cocorobó. 

 

A coluna em marcha de duas léguas por dia, beirando o Vaza-Barris, passando sucessivamente pelos pequenos 
sítios de Passagem, Canabrava, Brejinho, Mauari, Canché, Estrada Velha e Serra Vermelha, chegou àquele ponto 
a 25 de junho certa de encontrar o inimigo. 

 

Pela primeira vez uma tropa expedicionária dos sertões não se deixava surpreender. 

 

Cocorobó 

 

Cocorobó, nome que caracteriza não uma serra única mas sem número delas, recorda restos de antiqüíssimos 
cañons, vales de erosão ou quebradas, abertos pelo Vaza-Barris em remotas idades, quando incomparavelmente 
maior efluía talvez de grande lago que cobria a planície rogada de Canudos. A massa de águas, então contida 
pelos acidentes mais possantes que ondulavam da favela ao Caipã, nos dois quadrantes de SO e NO e deste 
último espraiando-se pelo de NE, abarreirada pelas serranias de Poço-de-Cima e Canabrava, efluía para leste em 
escoadouros estreitos. 

 

Retrospecção geológica 

 

A sua conformação topográfica instiga esta retrospecção geológica. Com efeito, as serranias cortadas de 
angusturas, fracionando-se em serrotes de aclives vivos, figuram-se ruínas de uma barragem aluída e rota pelas 
enchentes. Aprumam-se entre várzeas, feito um recorte nas planuras, e, a despeito dos contornos incorretos, 
permitem que se lhes reviva o facies primitivo. São uma montanha fóssil. Definido pelas mesmas camadas 
silurianas, que vimos noutros trechos, o núcleo da terra, ali, aflora à medida que a ablação das torrentes lhe 
remove as formações sedimentárias mais modernas. E nesse exumar-se a serra primitiva ressurge espelhando na 
ousadia das curvas hipsométricas a potência dos elementos que há longos séculos a combatem. Porque, como na 
Favela, a caatinga resistente lhe morre no sopé; evita-a; deixa-lhe desnudos os flancos; e estes, já lastrados de 
blocos, já descendo a prumo, à maneira de muros em cujas junturas mal se apegam orquídeas enfezadas; ou 
alcantilando-se em fraguedos, repentinos ressaltos que os rasgam em pontas crivando-os até ao alto, onde se 
agrupam em grimpas serreadas, contrastam com os terrenos achanados em roda, não já na forma, senão na 
estrutura definidora. 

 

Quem segue de Canudos para Jeremoabo depara, entretanto, com uma passagem única — a brecha profunda por 
onde se enfia o Vaza-Barris, correndo para o levante. Rompe-a com ele, porque o rio é a única vereda, 
trilhando-lhe o leito vazio, e, transcorridos alguns metros, acredita haver varado por um postigo estreito. 
Acaba-se o desfiladeiro. Afastam-se vivamente as rampas abruptas que o formam; arqueando-se e desatando-se 
por diante, fronteando-se, contrapostas as concavidades numa arqueadura de anfiteatro amplíssimo. Ali dentro, 
porém, o terreno continua revolto; erguem-se outros cerros mais baixos, centralizando-o; e a primitiva passagem 
bifurca-se, encaixando-se na direita, em curva, o Vaza-Barris. Estas duas gargantas de larguras variáveis, 
apertando-se de cerca de vinte metros em dados pontos, progridem, encurvando-se a pouco e pouco, segundo o 
traçado dos dois galhos exteriores da serra; e, acompanhando-os, aproximam-se convergentes, depois do 
primitivo afastamento, até se unirem outra vez, formando outra passagem única sobre a estrada de Jeremoabo. 
Aos lados de ambas, antes deste cruzamento, em grande percurso, fronteiam os taludes dos cerros centrais com 
os das duas vertentes laterais, envolventes e maiores, eriçadas de penhascos acumulados a esmo ou agrupando-se 
em socalcos, repartindo-se em sucessivos patamares à maneira de galerias de um coliseu monstruoso. 

 


O desfiladeiro de Cocorobó é em pálido resumo aquele rasgão da terra, de extremos afunilados, que se 
subdividem de um e outro lado na forquilha de dois outros porventura ainda menos praticáveis. A estrada 
duplica-se na falsa encruzilhada de dois desvios que o Vaza-Barris percorre por igual nas enchentes, ilhando os 
cômoros centrais — até sair, unidos os dois braços, numa várzea desimpedida e vasta que o caminho de 
Jeremoabo corta pelo meio, estirando-se em cheio para leste. 

 

De sorte que quem a trilha em sentido oposto, vindo daquela vila para o ocidente, incide de idêntica maneira na 
bifurcação que a divide. Atravessa-a, metendo-se por uma das veredas, à direita ou à esquerda, até chegar à outra 
saída única. Transpõe-na. Mas livre da garganta multívia não encontra uma várzea complanada como a da outra 
banda. O solo, ainda que em menor escala, continua revolto. O Vaza-Barris, contorcido em meandros, alonga-se, 
entalado, entre cerros sucessivos. A estrada que o fraldeia, ou lhe acompanha o leito, perturba-se em atalhos, 
ondulante, tornejando sem número de encostas, derivando em aladeirados; e vai até ao vale de um ribeirão 
efêmero, ao qual deu o nome um dos cabecilhas sertanejos que ali tinha a vivenda, Macambira. 

 

Segue dali, perlongando qualquer das bordas do rio, até Canudos, menos de duas léguas na frente. 

 

Diante das trincheiras 

 

A vanguarda da força marchando neste sentido fez alto uns quinhentos metros antes daquela barreira, no dia 25 
de junho, pouco antes do meio-dia. 

 

O esquadrão de lanceiros descobrira o inimigo. Abeirara-se, galopando, dos entrincheiramentos grosseiros e 
vira-os, de relance. Recebido a tiro, volvera a toda a rédea, perdendo duas praças feridas, para junto da 5.ª 
Brigada na testa da coluna, que desenvolveu imediatamente em atiradores um dos seus batalhões, o 40.°, do 
major Nonato de Seixas, enquanto os dois outros, o 34.° e o 35.°, se dispunham de reforço. O general Savaget, 
prevenido do encontro, adiantara-se acompanhando a 4.ª Brigada. Estacou a quatrocentos metros da vanguarda, a 
fim de aguardar a 6.ª Divisão de Artilharia e os comboios marchando ainda cerca de três quilômetros à 
retaguarda. Enquanto isto passava, os corpos avançados, mais de oitocentos homens ao mando do coronel Serra 
Martins, iniciavam o ataque num tiroteio nutrido, em que os fogos irregulares da linha de atiradores se 
intermeavam das descargas rolantes dos pelotões que a reforçavam mais de perto, revidando vigorosamente aos 
tiros dos antagonistas. Estes sustentaram o choque com valor. "Audaciosos e tenazes, diz a parte do combate do 
comando geral, qualidades essas que eram ao que parece reforçadas pelas excelentes posições que ocupavam, as 
quais dominavam a planície em toda a extensão e grande trecho da estrada, não arredaram pé e, ao contrário, 
aceitaram e sustentaram com firmeza e energia o ataque, rompendo renhida fuzilaria sobre os nossos, tanto que 
começamos a ter algumas baixas por mortes e ferimentos." 

 

Era, como se vê, a reprodução justalinear dos episódios do Cambaio e da Favela. 

 

Os sertanejos reviviam em cenário idêntico todas as peripécias do dramalhão sinistro e monótono de que eram 
protagonistas invisíveis. Um maior tirocínio na guerra não Ihes variara o sistema, certo porque este, pela própria 
excelência, não comportava corretivos ou aditamentos. Atiravam, a seguro, do alto daqueles parapeitos 
desmantelados, sobre a força, inteiramente em alvo na planura descoberta e rasa embaixo. E os seus projetis 
começaram a rarear-lhe as fileiras mais próximas, derrubando os atiradores, caindo, adiante, entre os corpos que 
os apoiavam, e irradiando para mais longe em trajetórias altas, sulcando as últimas seções da retaguarda; 
expandindo-se, dominantes, sobre a expedição inteira. 

 

Não se adensavam, contudo, em descargas por demais cerradas. A justeza substituía-lhe a quantidade. 
Percebia-se que os atiravam combatentes avaros no contar, um a um, os cartuchos, timbrando em não perderem 
um único, firmando-os em pontarias cuidadosas. De sorte que, no fim de algum tempo, o tiroteio calculado, ante 
o qual estrondavam terrivelmente oitocentas Mannlichers, começou de se tornar funestíssimo. 

 

A 5.ª Brigada foi admirável de disciplina, afrontando-o por duas horas, na posição em que estacara, à margem do 
Vaza-Barris, abrigando-se entre os ralos arbustos que a revestem. Não adiantara, em todo esse tempo, um passo. 
A um simples lance de vista, punham-se de manifesto os riscos de uma investida visando as duas angusturas, que 
se lhe abriam fronteiras, e imporiam, durante o assalto, um desfilar em seções diminutas, capaz de lhe anular o 
vigor precisamente na fase mais decisiva. Por outro lado não havia evitá-las, contornando-as. À direita e à 
esquerda se sucediam montes crespos de contrafortes, e procurar entre eles um desvio qualquer pressupunha uma 
marcha de flanco, talvez dilatada, sob a vigilância do inimigo, o que seria problematizar ainda mais qualquer 
sucesso vantajoso. 

 


O general Savaget aquilatou com firmeza a conjuntura gravíssima. 

 

Em que pese aos seus oito batalhões, magnificamente armados, a luta era desigual. Depois de uma marcha 
segura, esclarecida por explorações eficazes que predeterminaram o dia e a sede do recontro, tinha-os, ali, havia 
duas horas, manietados, sacrificados e inúteis — sob o espingardeamento impune de um ajuntamento de 
matutos. 

 

O transe requeria combinações concretas, de momento; improvisos de estratégia, repentinos e de pronto 
executados. Nas aperturas do dilema acima exposto, porém, e diante do contraste das posições adversas, nenhum 
ocorria capaz de o resolver. O alvitre do momento resumia-se no reagir, arrastando tudo, ao bárbaro fuzilamento. 
Foi reforçada a vanguarda. Chegara a divisão de artilharia e um dos Krupps destacou-se logo para junto das 
linhas avançadas. 

 

Bombardeou-se a montanha. Arrojadas de perto as granadas e lanternetas, batendo-lhe em cheio os flancos ou 
ricochetando, confundiam nos ares as balas e estilhas de ferro com o lastro aspérrimo das encostas rijamente 
varridas; e, arrebentando entre fraguedos, deslocando-os, derrubando-os, fazendo-os rolar com estrépito pelos 
pendores abaixo, como um súbito derruir de lanços de muralhas, pareciam desmascarar inteiramente as posições 
contrárias. Mas foram contraproducentes. Estimularam réplica violentíssima, estupenda, inexplicável, expluindo 
maior e mais viva dentre o desabamento das trincheiras. Os atiradores suportavam-na a custo. Rareavam. Os dois 
batalhões de reforço, francamente engajados na ação, sacrificavam-se inutilmente tendo, crescente, o número de 
baixas. O resto da expedição, estirada em colunas numa linha de dois quilômetros para a retaguarda, permanecia 
imóvel. 

 

Era quase um revés. 

 

No fim de três horas de fogo os atacantes não tinham adquirido um palmo de terreno. A quinhentos metros dos adversários, não tinham — milhares de vistas fixas nas vertentes despidas — lobrigado um único sequer. Não Ihes avaliavam o número. Os cerros mais altos, bojando em esporões sobre a várzea, figuravam-se desertos. 
Batia-os de chapa o sol ofuscante e ardente; viam-se-lhes os mínimos acidentes da estrutura; podiam 
contar-se-lhes um a um os grandes blocos, que por ali se espalham, a esmo, mal equilibrados em bases estreitas ao modo de loghans oscilantes e prestes a caírem uns, outros acumulados em acervos imponentes; e 
distinguiam-se, intermeando-os, em touceiras, ou encimando-os, esparsas, as bromélias resistentes, caroás e 
macambiras de espatas lustrosas, retilíneas e longas, rebrilhando à luz como espadas ; viam se, mais raros, cactos esguios e desolados; mais longe, um tumultuar de cimos, do mesmo modo desertos. 

E daquele desolamento, daquela solidão absoluta e impressionadora, irrompia, abalando as encostas, uma 
"fuzilaria cerrada e ininterrupta como se ali estivesse uma divisão inteira de infantaria !" 

Carga de baionetas excepcional 

 

Os jagunços eram duzentos ou eram dois mil. Nunca se lhes soube, ao certo, o número. Na frente dos 
expedicionários o enigmático da campanha se antolhava mais uma vez, destinando-se a ficar para sempre 
indecifrável. Tolhendo-se-lhes deste modo o passo, só restavam decisões extremas: ou recuarem lentamente, 
lutando, até se subtraírem ao alcance das balas; ou contornarem o trecho inabordável, buscando um atalho mais 
acessível, em movimento envolvente aventuroso, de flanco, o que redundaria em desbarate inevitável; ou 
arremeterem em cheio com os outeiros, conquistando-os. O último alvitre era o mais heróico e o mais simples. 
Sugeriu-o o coronel Carlos Teles. O general Savaget adotou-o. Conforme confessa em documento oficial onde 
define, com lastimável desquerer, o adversário temível que o fizera parar, não podia admitir "que duas ou três 
centenas de bandidos sustivessem a marcha da segunda coluna por tanto tempo". E, como empenhara na ação 
pouco mais de um terço das tropas, esta circunstância salvou-o, tornando factível uma manobra arrojada, certo 
irrealizável se todos os batalhões, num arremesso único se tivessem embaralhado desde o começo às duas 
entradas do desfiladeiro. 

 

Planeou-a: "A 5.ª Brigada, que se mantinha desde o princípio nas suas posições por entre as caatingas, devia 
carregar pelo flanco esquerdo e pelo leito do rio, a fim de desalojar o inimigo dos cerros centrais e outeiros, que 
ficam desse lado, e a 4.ª pelo flanco direito devendo, antes, desenvolver-se em linha, ao sair da estrada para a 
várzea." 

 

O esquadrão de lanceiros, entre ambas, carregaria pelo centro. A 6.ª Brigada não compartiria o combate, 
permanecendo à retaguarda em reforço, e garantindo os comboios. 


 

Assim os cinco batalhões destinados à investida se dispunham na ordem perpendicular reforçada numa das alas, 
a da esquerda, onde os corpos avançados do coronel Serra Martins formavam em colunas sucessivas, enquanto, 
quatrocentos metros atrás e para a direita, se desdobrava, em linha, a Brigada Teles, tendo no flanco esquerdo o 
esquadrão de lanceiros. 

 

O conjunto da formatura projetava-se na superfície do nível da várzea com a forma exata de um desmedido 
martelo. 

 

E a carga, que logo depois se executou — episódio culminante da refrega — , semelhou, de fato, uma percussão, 
uma pancada única de 1.600 baionetas de encontro a uma montanha. 

 

Os assaltantes avançaram todos a um tempo: os pelotões da frente embatendo com os morros e enfiando pela 
bocaina da passagem esquerda, enquanto a 4.ª Brigada, a marche-marche, de armas suspensas e sem atirar, 
vencia velozmente a distancia que a separava do inimigo. Tomara-lhe a frente o coronel Carlos Teles. Este 
oficial notável — recordando Osório na postura e Turenne no arrojo cavalheiresco — sem desembainhar a 
espada, hábito que conservou em toda a campanha, atravessou com a sua gente todo o trecho do campo varejado 
de balas. 

 

No sopé da serrania, à esquerda, se abria o desfiladeiro da direita, por onde se meteu atrevidamente, em 
disparada, o esquadrão de cavalaria. A 4.ª Brigada, porém, evitou-o. Investiu com as encostas. Os jagunços não 
haviam contado com este movimento temerário, visando diretamente, a despeito dos obstáculos de uma ascensão 
difícil, as posições que ocupavam. Pela primeira vez se deixaram surpreender por inesperada combinação tática, 
que os desnorteava, obrigando-os a deslocarem para outros pontos os lutadores de antemão destinados a 
trancarem as duas passagens estreitas, por onde acreditavam investiria toda a tropa. A 4.ª Brigada, realizando a 
mais original das cargas de baionetas, por uma ladeira íngreme e crespa de tropeços acima, ia decidir do pleito. 

 

Foi um lance admirável. A princípio avançou corretíssima. Uma linha luminosa de centenares de metros se 
estirou, fulgurando. Ondulou à base dos cerros. Abarcou-os; e começou a subir. Depois inflectiu em vários 
pontos; envesgou, torcida, pelas encostas; e, a pouco e pouco, desarticulada, fragmentou-se. Os sertanejos, 
entocaiados a cavaleiro, golpeavam-na; partiam-na, por sua vez, as anfractuosidades do solo. A linha do assalto, 
rota em todos os pontos, subdividida em pelotões estonteadamente avançando, espelhou-se, revolta, nos 
pendores da serra... 

 

O coronel Teles, guiando-a pelo flanco direito do 31.° de Infantaria, perdeu nessa ocasião o cavalo que montava, 
atravessado por uma bala junto à espenda da sela. Substituiu-o. Reuniu as frações dispersas de combatentes, em 
que já se misturavam soldados dos seus dois corpos. Animou-os. Arrojou-os valentemente sobre as trincheiras 
mais próximas. Encontraram-nas vazias, tendo cada uma, ao fundo, dezenas de cartuchos detonados e ainda 
mornos. Consoante à tática costumeira, os jagunços deslizavam-lhes adiante, recuando, negaceando, apoiando-se 
em todos os acidentes, deslocando a área do combate, impondo todas as fadigas de uma perseguição improfícua. 
A breve trecho, porém, dominadas as primeiras posições, viu-se, sobre as vertentes que apertam o desfiladeiro 
naquele ponto, a 4 a Brigada, escalando-as. Dali tombavam os mortos e os feridos, alguns até ao fundo da 
garganta, embaixo, por onde tinham entrado os sessenta homens do esquadrão de lanceiros e a divisão de 
artilharia, quebrando-se, ambos, de encontro a forte trincheira posta de uma e outra margem do rio, na bifurcação 
das duas bocainas, feito uma represa. Nas vertentes da esquerda, a 5.ª Brigada, perdida igualmente a formatura 
primitiva, lutava do mesmo modo tumultuário. 

 

A ação tornou-se formidável. Cinco batalhões debatiam-se entre morros, sem vantagem sensível, depois de 
quatro horas de luta. Aumentara grandemente o número de feridos repulsados do alvoroto das cargas, 
titubeantes, caindo ou arrimando-se às espingardas, errantes pelas faldas, descendo-as, entre os mortos por ali 
jacentes, a esmo. 

 

Embaixo, no vale estreito, viam-se, sem dono, disparados em todos os sentidos, relinchando de pavor, os cavalos 
do esquadrão de lanceiros, que arrebentara arrojadamente sobre a forte trincheira do rio... 

 

A travessia 

 

Nesta enorme confusão alguns pelotões do 31.° de Infantaria galgaram, afinal, num ímpeto incomparável de 
valor, as trincheiras mais altas da vertente da direita. E cortadas, deste modo, as guarnições das que se sucediam 
a espaços pela linha de cumeadas, abandonaram-nas inesperadamente. Não era o recuo temeroso habitual; era a 


fuga. Os adversários foram ali, vistos de relance, pela primeira vez: dispersos pelos altos, correndo e sobraçando 
as armas, rolando e resvalando pelos declives, desaparecendo. Os soldados encalçaram-nos; e, revigorada logo 
em todos os pontos, a investida, num movimento único para frente, propagou-se até às alas da extrema esquerda. 
Era a vitória. Minutos depois as duas brigadas, num imenso alvoroto de batalhões a marche-marche, 
adensavam-se, confundidas, na última e única passagem do desfiladeiro. 

 

Os jagunços em desordem, contudo, depois do primeiro arranco da fuga, volveram ainda ao mesmo resistir 
inexplicável. Abandonando as posições e franqueando a travessia perigosa, recebiam, de longe, os triunfadores, a 
tiros longamente espaçados. 

 

O general Savaget foi atingido e desmontado juntamente com um ajudante de ordens e parte do piquete quando, 
à retaguarda da coluna, penetrava a garganta da direita e já se ouviam, ao longe, as aclamações triunfais dos 
combatentes da vanguarda. Como sempre, os sertanejos tornavam incompleto o sucesso, ressurgindo 
inexplicavelmente dentre os estragos de um combate perdido. Batidos, não se deixaram esmagar. Desalojados de 
todos os pontos, abroquelavam-se noutros, vencidos e ameaçadores, fugindo e trucidando, como os partas. 

 

Haviam, entretanto, sofrido sério revés, e a denominação, que ulteriormente deram de "batalhão talentoso" à 
coluna que lho infligira, por si só o denota. Porque o combate de Cocorobó, a princípio vacilante, indeciso numa 
dilação de três horas de tiroteios ineficazes, e ultimando-se por uma carga de baionetas fulminante, foi, de fato, 
um raro golpe de audácia apenas justificável, senão pelo dispositivo das tropas que o vibraram, pela sua natureza 
especial. Predominava nas fileiras o soldado rio-grandense. E o gaúcho destemeroso, se é frágil ao suportar as 
lentas provações da guerra, não tem par no se despenhar em súbitos lances temerários. 

 

A infantaria do Sul é uma arma de choque. Podem suplantá-la outras tropas, na precisão e na disciplina de fogo, 
ou no jogo complexo das manobras. Mas nos encontros à arma branca aqueles centauros apeados arremetem com 
os contrários, como se copiassem a carreira dos ginetes ensofregados das pampas. E a ocasião sorrira-lhes para a 
empresa estupenda levada a cabo com brilho inexcedível. 

 

À tarde, acampadas as forças além da passagem, verificaram-se as perdas sofridas: 178 homens fora de combate, 
dos quais 27 mortos, em que se incluíam dois oficiais mortos e dez feridos. 

 

A 6.ª Brigada, que não tomara parte na ação, foi encarregada do enterramento dos últimos, e acampou à 
retaguarda das duas outras, que ocupavam extensa rechã sobranceira à estrada. 

 

Macambira 

 

Depois disto a marcha se fez num combate contínuo. Foi lenta. Todo o dia 26 se despendeu em breve travessia 
até à confluência do Macambira, poucos quilômetros além de Cocorobó. 

 

O general Savaget comunicou, então, às tropas que no dia subseqüente, 27, segundo determinara o 
comando-em-chefe, deviam estar na orla de Canudos, de onde, feita a convergência das seis brigadas, iriam dar, 
reunidas, sobre o arraial. Este devia estar mui perto. Viam-se já, esparsas, pelo teso dos outeiros, as choupanas 
colmadas, de disposição especial anteriormente descrita: surgindo dentre trincheiras ou fossos mascarados de 
touceiras de bromélias, feitas a um tempo lares e redutos. 

 

A 2.,ª coluna ao avançar naquele dia — nos últimos passos da jornada —, tendo à vanguarda a 6.ª Brigada, com 
o 33.° de Infantaria à frente, penetrava os subúrbios da tremenda cidadela. E mal percorridos dois quilômetros, 
quando ainda restava no acampamento o grosso dos combatentes, empenharam-se, batidos de todos os flancos, 
em combate sério, os batalhões do coronel Pantoja. 

 

Nova carga de baionetas 

 

Foi, de pronto, adotado o expediente que na véspera tivera tão seguras efeitos. Os Batalhões 26.°, 33.° e 39.° 
desdobrando-se em linha, calaram as baionetas e lançaram-se impetuosamente pelos recostos das colinas. 
Galgaram-nas em tropel. E depararam em torno, por todos os lados, outras, sem número de outras, apontoando o 
terreno rugado, desatado por muitos quilômetros em roda... 

 

De todas elas, irrompendo dos casebres que as encimavam, convergiam descargas. O campo de combate, agora 
amplíssimo, estava adrede moderado às ardilezas do adversário: vencido qualquer um dos cômoros, viam-se 
centenares de outros a subir. Descida uma baixada, caía-se num dédalo de sangas. A investida seria um colear 


fatigante pelas linhas flexuosas dos declives. Poucos quilômetros adiante se lobrigava, indistinto, sob o aspecto 
tristonho de enorme cata abandonada, Canudos... 

 

Fuzilaria 

 

A peleja travara-se à ilharga e foi renhidíssima. 

 

A breve trecho os três batalhões da vanguarda viram-se impotentes para a suportarem: das choupanas atestadas 
de lutadores, de todas as trincheiras dispersas pelos cerros, partiam, convergentes, fuzilarias seguras, 
dizimando-os. 

 

Uma companhia do 39.º, logo no começo da ação, fora literalmente esmagada batendo um daqueles redutos 
selvagens. Vingara improvisamente o outeiro e no topo estacara à borda de um fosso largo, ao tempo que do 
casebre por este envolvido partiam dentre as rachas das paredes, batendo-a em cheio e à queima-roupa, 
descargas furiosas. Perdeu logo o comandante perdendo imediatamente depois, sucessivamente, dois subalternos 
que o substituíam, conquistando afinal a posição, depois de grandemente rarefeita, às ordens de um sargento. 

 

Diante desta resistência imprevista aquela brigada única. inapta para abranger a área extensíssima do combate, 
foi reforçada pelas duas outras. Sucessivamente os Batalhões 12.°, 31.°, 35.º e 40.º, enviados em reforço, 
avançaram. Eram mais de mil baionetas, quase toda a coluna, empenhadas no conflito. Os jagunços então 
recuaram; e recuando lentamente, de colina em colina, desalojados de um ponto para surgirem em outro, 
obrigando os antagonistas a um contínuo descer e subir de ladeiras, parecia desejarem arrebatá-los até ao arraial, 
exaustos e torturados de tiroteios. Volviam à tática invariável. O campo do combate começou a fugir debaixo dos 
pés aos assaltantes. As cargas de baionetas não tiveram então o brilho das de Cocorobó. Amolentava-as a 
retratilidade daquele recuo. Arrojados contra os cerros, os pelotões alcançavam os altos sem toparem mais um só 
adversário. Batidos logo na posição interjacente, enfiada pelos tiros partidos das eminências interpostas, 
desciam-na, em grupos, precipitadamente, buscando os ângulos mortos das baixadas — para reproduzirem, mais 
longe, a mesma escalada exaustiva e a mesma exposição perigosa às balas. 

 

Começaram a perder, além de grande número de praças, oficiais altamente graduados. O comandante do 12.º, 
tenente-coronel Tristão Sucupira, tombara moribundo quando seguia em esforço à vanguarda. O do 33.°, 
tenente-coronel Virgílio Napoleão Ramos, fora também retirado, ferido, da ação, assim como o capitão Joaquim 
de Aguiar, fiscal do mesmo corpo. E outros e muitos outros se sacrificaram nesse mortífero combate de 
Macambira, nome do sítio adjacente, porque, impropriando o terreno quaisquer combinações táticas capazes de 
balancearem as negaças vertiginosas do inimigo, todas as garantias de sucesso se resumiam na coragem pessoal. 
Alguns oficiais, como o capitão ajudante do 32.° com mais de um ferimento sério, se obstinavam no recontro, 
surdos à intimativa dos próprios comandantes determinando-lhes a retirada das linhas de fogo. Estas 
desatavam-se por três quilômetros. Deflagravam pelos outeiros, crepitavam, ressoantes, nas baixadas, e rolavam 
para Canudos... 

 

A noite fê-las parar, A expedição estava a um quarto de légua do arraial. Viam-se, fronteiras e altas, longe, 
branqueando no empardecer do crepúsculo, as torres da igreja nova... 

 

Estava enfim atingido o termo da marcha por Jeremoabo. A segunda coluna, porém, pagara-o duramente: tivera 
neste dia 148 homens fora de combate, entre os quais quarenta mortos, seis oficiais mortos e oito feridos. 
Somadas às perdas anteriores perfaziam 327 baixas, que tanto custara a travessia de menos de três léguas, de 
Cocorobó até àquele lugar. 

 

Mas tudo delatava sucesso compensador. Realizara-se pontualmente o itinerário preestabelecido: minutos depois 
de acampadas, as tropas do general Savaget ouviram, no flanco esquerdo, estrugindo o silêncio das noites 
sertanejas e reboando longamente pelos contrafortes da Favela o canhoneio àquela hora aberto pela vanguarda da 
1.ª coluna. 

 

Bombardeio 

 

No dia 28, tendo avançado cedo e tomado posição em pequeno platô, distante dois quilômetros do arraial, 
começou por sua vez a bombardeá-lo, enquanto os dois batalhões da Brigada Carlos Teles se avantajavam mais 
para a frente ainda, em reconhecimento rápido. Um piquete de cavalaria, dirigido por um valente, destinado a 
uma morte heróica, o alferes Wanderley, explorou o terreno pelo flanco esquerdo, até à Favela, onde àquela hora 
— oito da manhã — recrudescera, intenso, o canhoneio. 


 

A dois passos do comando-em-chefe, a segunda coluna estava pronta para o assalto. Chegara até ali ultimando 
uma travessia de setenta léguas com um combate de três dias 

 

Impusera-se ao inimigo; afeiçoara-se ao caráter excepcional da luta; e o movimento irreprimível da carga que 
iniciara em Cocorobó e prolongara ininterruptamente até àquele ponto poderia arrebatá-la, triunfante, ao centro 
de Canudos, em plena praça das igrejas. Vinha, a despeito das perdas que tivera, esperançosa e robusta. A ordem 
do dia de 26, em que o seu comandante lhe comunicou o próximo assalto, em companhia dos companheiros da 
1.ª coluna, é expressiva. 

 

Trabubu 

 

Foi dada em "Trabubu", na travessia dos desfiladeiros, e diz muito no próprio laconismo. A nova, 
entusiasticamente recebida, deriva de poucas palavras, corteses e despretensiosas: 

 

"Acampamento no campo de batalha de Cocorobó, 26 de junho de 1897. 

 

Meus camaradas. Acabo de receber do sr. general comandante-em-chefe um telegrama comunicando-me que 
amanhã nos abraçaremos em Canudos. Não podemos, portanto, faltar ao honroso convite, que é para nós motivo 
de justo orgulho e de completa alegria." 

 

A concentração almejada, através de um assalto convergente, far-se-ia, porém, fora do centro da campanha. 

 

Emissário inesperado 

 

Com surpresa geral dos combatentes da 2 .ª coluna, que —olhos fitos na Favela — esperavam ver, descendo as 
vertentes do norte, os batalhões da 1.ª, apareceu no acampamento um sertanejo notificando-lhes, por ordem do 
comandante-em-chefe, as aperturas em que se achava aquela, exigindo imediato socorro. A nova era 
inverossímil, e pareceu, nos primeiros momentos, uma traça do adversário. O homem ficou retido até que novo 
emissário a confirmasse. Este, um alferes honorário, adido à comissão de engenharia, não se fez esperar muito. O 
general-em-chefe apelava instantemente para o concurso da outra coluna. Ante o novo reclamo, e informações 
que o esclareciam, o general Savaget, que a princípio imaginara enviar apenas uma brigada levando munições, 
ficando as demais sustentando a posição conquistada, seguiu, inflectindo para a esquerda, com toda a sua gente. 
Chegou, seriam onze horas, ao alto da Favela, a tempo de libertar a tropa assediada. 

 

Destrói-se um plano de campanha 

 

Preposterara-se, porém, todo o plano de campanha e do mesmo passo se anulara o esforço despendido nas 
marchas pelo Rosário e Jeremoabo. 

 

Reunidas as colunas, tornou-se possível destacar um contingente para reaver o comboio retido à retaguarda. Foi 
cometido o encargo ao coronel Serra Martins que prontamente refluiu à reçaga da expedição intercisa, levando a 
5.ª Brigada — num oscilar perigoso entre dois combates — até às Umburanas, onde chegou ainda a tempo de 
impedir o desbarate do 5.° de Polícia e salvar parte dos volumes de 180 cargueiros que, dispersos pelos 
caminhos, tinham sido grandemente danificados pelos jagunços. 

 

Este movimento feliz, porém, de pouco atenuou as condições estreitas da tropa. Mal paliou o transe. Firmou-se 
logo um regímen desesperador de contrariedades de toda a sorte. 


Capítulo IV 

 

Vitória singular 

 

A ordem do dia relativa ao feito de 28 de junho caracteriza-o "uma página tarjada de horrores, mas perfumada de 
glória." 

 

Mas fora franco o revés. 

 

Não iludiu a História o fanfarrear do vencido. O exército vitorioso, segundo o brilhante eufemismo das partes 
oficiais armadas a velarem aquele insucesso, apresentava na noite daquele dia o caráter perfeito de uma 
aglomeração de foragidos. Triunfadores que não podiam ensaiar um passo fora da posição conquistada, tinham 
caído num período crítico da guerra: perdidos os alentos em recontros estéreis, ou duvidosas vitórias, que valiam 
derrotas, apoucando-lhes do mesmo passo as forças e o ânimo, sentiam-se dissociados e de algum modo unidos 
apenas pela pressão externa do próprio adversário que haviam julgado sopear facilmente. O heroísmo era-lhes, 
agora, obrigatório. A coragem, a bravura retransida de sobressaltos, um compromisso sério com o terror. 
Circulavam-nos os mais originais dos vencidos: impiedosos, enterreirando-os em todos os pontos no círculo de 
um assédio indefinido e transmudando-se em fiscal incorruptível, trancando todas as abertas à deserção. De sorte 
que, ainda quando carecessem de valor, os nossos soldados não tinham como se subtrair à emergência 
gravíssima em que se equiparavam heróis e pusilânimes. 

 

O medo 

 

A história militar, de urdidura tão dramática a recamar-se por vezes das mais singulares antíteses, está cheia das 
grandes glorificações do medo. A ânsia perseguidora do persa fez a resignação heróica dos "Dez mil"; a fúria 
brutal dos cossacos imortalizou o marechal Ney... 

 

Íamos enxertar-lhe, idêntico, senão na amplitude do quadro, na paridade do contraste, um capítulo emocionante 
— porque a tenacidade feroz do jagunço transfigurou os batalhões combalidos do general Artur Oscar. E eles ali 
quedaram unidos, porque os enlaçava a cintura de pedra das trincheiras, impertérritos, porque lhes era impossível 
o recuo; forçadamente heróicos, encurralados, cosidos à bala numa nesga de chão. . . 

 

Baixas 

 

Nada revelava mesmo breves linhas de acampamento no acervo das brigadas. Não se armaram barracas que 
roubariam espaço demais na área de si estreita. Não se ordenaram ou se dividiram as unidades combatentes. A 
tropa — 5 mil soldados, mais de novecentos feridos e mortos, mil e tantos animais de montada e tração, 
centenares de carguerios — sem flancos, sem retaguarda, sem vanguarda, desorganizara-se por completo. A 
primeira coluna tivera naquele dia 524 homens fora de combate que, com 75 da véspera, somavam 599 baixas. A 
segunda ligara-se-lhe desfalcada de 327 combatentes. Ao todo 926 vítimas. Fora sem número de estropiados, 
exauridos das marchas, sem número de famintos e grande maioria de pusilânimes sob a emoção dos morticínios 
recentes e vendo por ali estirados, insepultos, companheiros pela manhã ainda entusiastas e vigorosos: 

 

— Thompson Flores, vitimado no comando fatídico do 7.° de Infantaria; Tristão de Alencar Sucupira, que 
chegara agonizante com a 2.ª coluna; Nestor Vilar, capitão fiscal do 2.° Regimento, que caíra com mais de dois 
terços da oficialidade de artilharia; Gutierrez, oficial honorário, um artista que fora até lá atraído pela estética 
sombria das batalhas; Sousa Campos, que comandara por um minuto o 14.°... e outros de todas as graduações, 
lançados por toda a parte. 

 

Um rasgão de enxurros se escancelava, longo, longitudinalmente, afundando o sulco da garganta. E dentro dele 
mais de oitocentos baleados punham no tumulto a nota lancinante de sofrimentos irreparáveis. Aquela prega do 
solo, onde se improvisara um hospital de sangue, era a imagem material do golpe que sulcara a expedição, 
abrindo-a de meio a meio. Considerando-a, entibiavam-se os mais fortes. Porque, afinal, nada compensava tais 
perdas ou explicava semelhante desfecho a planos de campanha tão maduramente arquitetados. Triunfantes e 
unidas, as duas colunas imobilizaram-se impotentes ante a realidade. Apagavam-se as linhas de ordens do dia 
retumbantes. Estavam no centro das operações — e não podiam dar um passo à frente ou, o que era pior, não 
podiam dar um passo à retaguarda. Haviam esparzido profusamente pelos ares mais de um milhão de balas; 
haviam rechaçado o adversário em todos os encontros e sentiam-no porventura mais ameaçador em roda, 
prendendo-os, cortando-lhes o passo para o recuo, depois de o haverem tolhido para a investida. 

 


Realmente tudo delatava um assédio completo. A 5.ª Brigada no movimento que fizera à retaguarda perdera 
quatorze homens. O 5.° de Polícia, 45. Foram e voltaram num tirotear incessante pelos caminhos 
entrincheirados. 

 

A expedição, em pleno território rebelde, insulara-se sem a mais ligeira linha estratégica vinculando-a à base de 
operações em Monte Santo, a não ser que se considerasse tal a perigosa vereda do Rosário, repleta de 
emboscadas. E como o comboio reconquistado chegara reduzidíssimo, ficando mais de metade das cargas em 
poder dos sertanejos, ou inutilizada, a tropa perdera munições de inestimável valor na emergência, e ao mesmo 
tempo os aparelhara com cerca de 450.000 cartuchos, o bastante para prolongarem indefinidamente a resistência. 
Municiara-os. Completara o destino singular da expedição anterior que lhes dera espingardas. Estas estrondavam 
agora, a cavaleiro do acampamento. Os vencidos restiuíam daquele modo as balas, estadeando provocações 
ferozes, aos vitoriosos tontos, que não lhes replicavam. 

 

A noite descera sem que se atreguasse a luta; sem o mais curto armistício, permitindo que se corrigissem as 
fileiras. Um luar fulgurante desvendava-as às pontarias dos jagunços; e estes, batendo-as calculadamente em 
tiros longamente pausados, revelavam-lhes a vigilância temerosa, em torno. 

 

Um ou outro soldado, indisciplinadamente, revidava, disparando à toa, a arma, para os ares. Os demais, 
sucumbidos de fadigas, caídos sobre os fardos por ali esparsos a esmo, estirados sobre o chão duro, quedavam-se 
inúteis, abraçando as espingardas... 

 

Começo de uma batalha crônica 

 

A noite de 28 de junho iniciara uma batalha crônica. 

 

Daquela data ao termo da campanha a tropa iria viver em permanente alarma. 

 

Começou desde logo um regímen deplorável de torturas. Ao amanhecer de 29 verificaram-se insuficientes as 
munições de boca, para a ração completa das praças da 1.ª coluna, já abatidas por uma semana de alimentação 
reduzida. 

 

A 2.ª, embora mais bem avitualhada, não tinha por sua vez garantido o sustento por três dias, depois de o repartir 
com a outra. De sorte que logo no começo desta fase excepcional da luta se lançou mão dos últimos recursos, 
sendo naquele dia abatidos os bois mansos, que até lá tinham conduzido o pesado canhão 32. Ao mesmo tempo 
antolhava-se uma tarefa penosíssima: fazer daquele acervo de homens e bagagens um exército; ordenar os 
batalhões dissolvidos; reconstituir as brigadas; curar centenares de feridos; enterrar os mortos e desatravancar a 
área reduzida dos fardos e cargueiros, postos por toda a banda. Estes trabalhos indispensáveis realizavam-se, 
porém, sem método, atumultuadamente, sem a diretriz de uma vontade firme. A colaboração justificável dos 
comandantes de corpos, dos próprios subalternos, surgia espontânea, de todos os lados, no sugerir sem número 
de medidas urgentes. De modo que, a breve trecho, toda aquela gente, movendo-se às encontroadas, em todos os 
sentidos; improvisando trincheiras; agrupando-se ao acaso em simulacros de formatura; arrastando fardos e 
cadáveres; retirando os muares, cujas patas entaloadas eram ameaça permanente aos feridos que lhes rastejavam 
aos pés, não teve esforços convergentes e úteis. 

 

Não a dominava, todavia, inteiramente, a desesperança. 

 

Volvera-lhe com o amanhecer o valor; e, a despeito de tantos casos expressivos, não avaliara ainda bem a 
pervicácia feroz dos sertanejos. De sorte que nos espíritos ressurgiu o pensamento consolador de próximo 
desenlace, ante um bombardeio vigoroso que propiciavam as vantajosas posições da artilharia, emparcada a 
cavaleiro do arraial. Punha-se de manifesto que um vilarejo aberto do sertão não suportasse por muitas horas as 
balas mergulhantes de dezenove canhões modernos. 

 

Canhoneio. Réplica dos jagunços 

 

Mas o primeiro tiro partiu e bateu em Canudos como um calhau numa colmeia. O acampamento até àquele 
momento em relativa calma foi, como na véspera, improvisamente varrido de descargas; e, como na véspera, os 
combatentes compreenderam quase impossível a réplica em tiros divergentes, dispartindo pelo círculo 
amplíssimo do ataque. Além disto, encafurnados numa dobra de morro, atirando por elevação e sem alvo, as 
nossas descargas sobre inócuas implicavam estéril malbaratar das munições escassas. Por outro lado, o efeito do 
canhoneio se patenteou francamente nulo. As granadas, explodindo dentro das casas, perfuravam-lhes as paredes 


e os tetos e como que se amorteciam entre os frágeis anteparos de argila — estourando sem ampliarem o raio dos 
estragos, caindo muitas vezes intactas sem arrebentarem as espoletas. Por isso o alvo predileto foi, mais uma vez, 
a igreja nova, bojando no casario baixo, como um baluarte imponente. Ali se alinhavam os jagunços — por 
detrás das cimalhas das paredes mestras, engrimpados nas torres ou mais abaixo nas janelas abertas em ogivas, 
ou ao rés-do-chão sobre o embasamento cortado de respiradouros, estreitos à semelhança de troneiras. 

 

Conteirara-se, visando-a, o Withorworth 32, que viera adrede para lhe derrubar os muros. Rugiu, porém, neste 
dia, sobre ela sem a atingir: as balas passavam-lhe, silvando, sobre a cumeeira. Perdiam-se nos casebres unidos. 
Uma única tombou sobre o adro, escaliçando a fachada. As demais se perderam. Essa péssima estréia do colosso 
proveio, principalmente. do açodamento com que o açulavam. 

 

Era uma nevrose doida. A grande peça — o maior cão de fila daquela monteria — fez-se monstruoso fetiche 
desafiando o despertar de velhas ilusões primitivas. Rodeavam-no, ofegantes, ansiosamente, mal reprimindo o 
desapontamento das trajetórias desviadas, toda a espécie de lutadores. 

 

Até um médico, Alfredo Gama, não pôde forrar-se à ânsia de a apontar. Caiu vitimado. O escapamento de gases 
da peça mal obturada, incendiando um barril de pólvora, perto, fê-la explodir, matando-o e incinerando-o, assim 
como o 2.ª tenente Odilon Coriolano e algumas praças. 

 

Este incidente mostra como se combatia... 

 

É natural que a refrega resultasse inútil, traduzindo-se o bombardeio, estourar e inofensivo, numa salva 
imponente à coragem dos matutos. 

 

Ao cair da noite nada se adiantara. Verificara-se contraproducente aquele duelo à distância, ao mesmo passo que 
as descargas circulantes indicavam, iniludível agora a todos os combatentes, o assédio que os prendia. Era um 
sítio em regra —embora disfarçado no rarefeito das linhas inimigas, desatando-se, frouxas mas numerosas, em 
raios indefinidos pelos recostos do morro. Uma brigada, um batalhão, uma companhia mesmo, poderia vará-las 
pelos claros que as cindiam ou quebrá-las numa carga de baionetas; mas quando estacasse na marcha, sentir-se-ia 
novamente circulada, batida pelos flancos e tendo outra vez, em roda, como se brotassem do chão, os 
antagonistas inexoráveis, jarretando-lhe os movimentos. A tática invariável do jagunço expunha-se temerosa 
naquele resistir às recuadas, restribando-se em todos os acidentes da terra protetora. Era a luta da sucuri flexuosa 
com o touro pujante. Laçada a presa, distendia os anéis; permitia-lhe a exaustão do movimento livre e a fadiga da 
carreira solta; depois se constringia repuxando-o, maneando-o nas roscas contráteis, para relaxá-las de novo, 
deixando-o mais uma vez se 

esgotar no escarvar a marradas, o chão; e novamente o atrair, retrátil, arrastando-o — até ao exaurir completo... 

 

Havia ali uma inversão de papéis. Os homens aparelhados pelos recursos bélicos da indústria moderna é que 
eram materialmente fortes e brutais, jogando pela boca dos canhões toneladas de aço em cima dos rebeldes que 
lhes antepunham a esgrima magistral de inextricáveis ardis. Davam de bom grado aos adversários o engodo das 
vitórias inúteis, mas quando eles, depois de calçarem à bala o solo das caatingas, desdobravam bandeiras e 
enchiam os ermos quietos de toques de alvorada, como não possuíam esses requintes civilizados, 
compassavam-lhes os hinos triunfais com as balas ressoantes dos trabucos... 

 

O canhoneio de 29 não os abalara. Ao alvorecer de 30 todo o acampamento foi investido. Foi, como sempre, um 
choque, um sobressalto instantâneo, eterno reproduzir dos mesmos fatos. Aprontou-se mais uma vitória. Os 
inimigos, que rolavam de todos os lados, foram repelidos para todos os lados. Para voltarem horas depois, e 
serem ainda rechaçados; e retornarem, passado breve intervalo, e serem novamente repulsados —
intermitentemente , ritmicamente, feito o fluxo e refluxo de uma onda, batendo, monótona, os flancos da 
montanha. A artilharia, como na véspera, espalhou algumas balas sobre os tetos, embaixo. E uma fuzilaria 
frouxa, irradiando de lá e dos cerros próximos, como na véspera, sem variante alguma, caiu durante o dia sobre a 
tropa... 

 

Regímen de privações 

 

Firmara-se definitivamente um regímen insustentável. A estadia na Favela era sobremaneira inconveniente 
porque, além de acumular baixas diárias sem efeito algum, desmoralizava dia a dia a expedição, lhe malsinava o 
renome e tornar-se-ia em breve inaturável pelo esgotamento completo das munições. Abandoná-la era deixar as 
contingências de um cerco mais perigosas que as alternativas da batalha franca. Alguns oficiais superiores 
sugeriram então a única medida — forçada e urgente — a alvitrar-se : o assalto imediato ao arraial. 


 

"Seja, porém, como for, no dia 30 de junho as forças estavam bem dispostas; a artilharia podia continuar a 
bombardear Canudos durante algumas horas ainda; em seguida era possível levar-se um ataque à cidadela. Havia 
para isto a melhor disposição dos comandantes das colunas, brigadas e corpos e dos oficiais subaltenos e dos 
soldados cuja aspiração predominante era atingir o Vaza-Barris que lhes representava a abundância de que se 
achavam privados numa posição acanhada, enfiada por toda a parte, sem capacidade para dois quanto mais perto 
de 6 mil homens." 

 

O general-em-chefe, porém, repeliu o alvitre "acreditando que de Monte Santo chegasse, em breve, um comboio 
de gêneros alimentícios como lhe afiançara o deputado do quartel-mestre-general e só então, depois de três dias 
de ração completa, investiria sobre os baluartes do Conselheiro". 

 

Mas esse comboio não existia. Enviada a seu encontro, no dia 30, a brigada do coronel Medeiros, para o 
aguardar nas Baixas e dali o proteger até ao acampamento, aquele comandante, nada encontrando, prosseguiu na 
jornada para Monte Santo onde também nada existia. E o Exército, que à sua partida já sofria os primeiros 
aguilhões da fome, entrou num período de provações indescritíveis. 

 

Aventuras do cerco. Caçadas perigosas 

 

Vivia-se à aventura, de expedientes. De moto próprio, sem a formalidade, na emergência dispensável, de uma 
licença qualquer, os soldados principiaram a realizar, isolados ou em pequenos grupos, excursões perigosas pelas 
cercanias talando as raras roças de milho ou mandioca, que existiam; caçando cabritos quase selvagens por ali 
desgarrados, em abandono desde o começo da guerra; e arrebanhando o gado. Não havia evitá-las ou proibi-las. 
Eram o último recurso. A partir de 2 de junho só houve gêneros — farinha e sal, nada mais — para os doentes. 
As caçadas faziam-se, pois, obrigatoriamente, a despeito dos maiores riscos e os que a elas se abalançavam — 
vestindo a pele do jagunço, copiando-lhe a astúcia requintada a marcha cautelosa, acobertando-se em todos os 
sulcos do terreno — aventuravam-se a extremos lances temerários. 

 

Não se podem individuar os episódios parciais desta fase obscura e terrível da campanha. O soldado faminto, 
cevada a cartucheira de balas, perdia-se nas chapadas, presumindo-se de resguardos como se fosse à caça de 
leões. Atufava-se no bravio das moiteiras... Rompia a galhada inflexa, entressachada de gravatás mordentes. E 
— olhos e ouvidos armados aos mínimos contornos e aos mínimos rumores — atravessava longas horas na 
perquisição exaustiva... 

 

Às vezes era um esforço vão. Volvia à noite para o acampamento, desinfluído e com as mãos vazias. Outros, 
mais infelizes, não apareciam mais, perdidos por aqueles ermos; ou mortos nalguma luta feroz, para todo o 
sempre ignorada. Porque os jagunços por fim opunham tocaias imprevistas aos caçadores bisonhos que sem lhes 
pleitearem parelhas na ardileza, não lhas evitavam. 

 

Assim é que, não raro, depois de muitas horas de esforço inútil, o valente faminto dava tento, afinal, de um 
ressoar de sincerros, pressagos da caça apetecida, porque é costume trazerem-nos as cabras, no sertão; e 
reanimava-se esperançado. 

 

Recobrava-se um momento das fadigas. Refinando no avançar cauteloso, por não espantar a presa fugidia, 
retraía-se das trilhas descobertas para o âmago das macegas. Seguia serpejando, deslizando devagar, guiado 
pelas notas da campainha, a pontilharem, nítidas e claras, o silêncio das chapadas. Adiantava-se até as ouvir 
perto... e era feliz, em que pese à dolorosa contrariedade, se as ouvia novamente ao longe, indistintas, 
inatingíveis, ao través do embaralhado dos desvios. Porque não imaginava, em certas ocasiões, os riscos que 
corria: a um lado, nos recessos da caatinga, em vez do animal arisco negaceava, sinistro e traiçoeiro, 
procurando-o por sua vez, o jagunço. Acaroado com o chão, rente da barba a fecharia da espingarda e avançando 
de rastros, quedo e quedo entre as macegas, e fazendo a cada movimento tanger o sincero que apresilhara ao 
próprio pescoço, via-se, ao invés da cabra, o cabreiro feroz. A caça caçava o caçador. Este, inexperto ,caía, 
geralmente abatido por um tiro seguro, a não ser que atirasse primeiro sobre o vulto lobrigado ao último 
momento. 

 

Outras vezes ante um grupo de famintos aparecia, num revesso de colina, uma magueira fechada. Dentro, alguns 
bois, presos. Eram um chamariz ardilosamente disposto: e o cercado uma arapuca grande. Ante a imprevista 
descoberta, porém, mal desfechavam, aqueles, olhos indagadores em roda. Transpunham num pulo as cercas do 
curral. Arremetiam com os bois, abatendo-os a tiro ou jugando-os à faca... e espalhavam-se, tontos, alarmados, 
batidos de descargas envolventes, partidas das esperas, adrede predispostas aos lados... 


 

No acampamento ouviam-se muitas vezes tiroteios nutridos e longos, com ecos de combates. 

 

Estas aventuras ao cabo foram regulamentadas. As ordens de detalhe escalavam, de véspera, os batalhões para as 
caçadas. Eram verdadeiras sortidas de praças de armas em apuros. Mas inglórias. Um triste avançar sem 
bandeiras e sem clarins pela maninhez dos ermos. As linhas inimigas dobravam-se-lhes em frente, ralas, 
invisíveis, traidoras. Os corpos em diligencia escoavam-se-lhes pelos claros. Batiam longo tempo a terra, onde a 
entrada da estação sem chuvas se refletia já na flora emurchecida. Recebiam meia dúzia de tiros de adversários 
incorpóreos. 

 

Voltavam abatidos e exaustos. 

 

Apenas o esquadrão de lanceiros agia com algum efeito. Partia diariamente em batidas longas pelos arredores. 
Montando cavalos estropiados, que rengueavam sob a espora, os gaúchos faziam façanhas de pealadores. 
Largavam, sem medir distancias e perigos, pela região desconhecida; e, conseguindo sopear na carreira os bois 
esquivos, lançavam-nos em tropel, todas as tardes, para dentro de uma caiçara, à ilharga do acampamento. O 
inimigo perturbava-lhes a montaria. Além do trabalho de reunir as reses espantadiças, tinham o de impedir a sua 
dispersão ante súbitos assaltos. E nestes recontros rápidos e violentos, contendo do mesmo passo os bois 
alvorotados prestes a espalharem-se por toda a banda, e replicando, a disparos de mosquetão, às tocaias que os 
aferroavam; caindo, surpresos, numa tocaia ao transpor uma baixada, alvejados por um tiroteio subitamente 
partindo do alto; e não abandonando nunca a presa irrequieta; circulando-a, arremessando-a para diante e ao 
mesmo tempo contendo-a pelos flancos, fizeram prodígios de equitação e bravura. 

 

O gado diariamente adquirido — oito a dez cabeças — era, porém, um paliativo insuficiente ao minotauro de 6 
mil estômagos. Além disto, a carne cozida sem sal, sem ingrediente algum, em água salobra e suspeita, ou 
chamuscada em espetos, era quase intragável. Repugnava à própria fome. 

 

As pequenas roças de milho, feijão da vazante e mandioca, que atenuavam a princípio a sensaboria dessa 
alimentação de feras, exauriram-se prestes. Tornou-se necessário buscar outros recursos. 

 

Como os "retirantes" infelizes, os soldados apelaram para a flora providencial. Cavavam os umbuzeiros em roda, 
arrancando-lhes os tubérculos túmidos; catavam cocos dos ouricuris, ou talhavam os caules moles dos 
mandacarus, alimentando-se de cactos que a um tempo lhes disfarçavam ou iludiam a fome e a sede. Não lhes 
bastava, porém, este recurso, que para os mais inexpertos mesmo era perigoso. Alguns morreram envenenados 
pela mandioca brava e outras raízes, que não conheciam. 

 

Por fim a própria água faltava — tornando-se de aquisição dificílima. Nos regatos rasos do vale das Umburanas, 
não raro ficava de bruços, varado por um tiro, o soldado sequioso. 

 

Cada dia que passava aumentava esses transes. A partir de 7 de junho, cessou a distribuição de gêneros aos 
doentes. 

 

E os infelizes, mutilados, estropiados, abatidos de febres, começaram a viver da esmola incerta dos próprios 
companheiros. . . 

 

Desânimos 

 

À medida que se agravavam estes fatos, surgiam, conseqüentes, outros, igualmente sérios. Relaxava-se a 
disciplina; esgotava-se a resignação da soldadesca. Uns murmúrios afrontosos de protestos, ante os quais se 
fingia surda a oficialidade impotente para os fazer calar, surgiam irreprimíveis, inevitáveis, como borborigmos 
dos ventres vazios. 

 

Por um contraste irritante, os adversários batidos em todos os combates afiguravam-se fartamente abastecidos, 
ao ponto de aproveitarem apenas nos comboios assaltados as munições de guerra. A 5.ª Brigada, ao seguir certa 
vez até às Baixas, encontrara em suas vizinhanças, orlando os caminhos até próximo ao Angico, malas de carne 
seca esturradas, montes de farinha, café e açúcar, de mistura com as cinzas das fogueiras que os haviam 
consumido. Era um traço firme de altivez selvagem com que se arrojavam à luta os jagunços que, afinal, não 
tinham abastança tal que justificasse tais atos. Afeitos, porém, às parcimônias de frugalidade sem par, os rudes 
lidadores, que nas quadras benignas atravessavam o dia com três manelos de paçoca e um trago d"água, haviam 
refinado a abstinência disciplinadora, na guerra, ostentando uma capacidade de resistência incomparável. Os 


nossos soldados não a tinham. Não podiam tê-la. A princípio reagiram bem. Deram um epíteto humorístico à 
fome. Distraíram-se nas aventuras perigosas das caçadas ou no rastrear os rebutalhos das roças em abandono. Ao 
soar dos alarmas precipitavam-se às linhas de fogo, sem que o jejum lhes sopeasse o arroio. Depois fraquearam. 
Sobre o aniquilamento físico descia dolorosa incerteza do futuro. Estavam em função da sorte de uma brigada 
única, a 1.ª , que seguira à descoberta do comboio e da qual nada se sabia. Cada dia que passava sem novas de 
sua vinda sobrecarregava-lhes os desalentos. Além disto a insistência inflexível dos ataques tornara-se 
inaturável. Não havia uma hora de tréguas. Surgiam investidas súbitas à noite, pela manhã, no correr do dia, 
sempre improvisas, incertas, e variáveis; carregando às vezes sobre a artilharia, outras sobre um dos flancos, 
outras, mais sérias, por toda a banda. Estridulavam os clarins; formava a tropa toda em fileiras bambas, em que 
mal se distinguiam as menores subdivisões táticas, e batia-se nervosamente por algum tempo. Os assaltantes 
eram repelidos. Caía-se, de improviso, na calma anterior. Mas o inimigo ali ficava, a dois passos, sinistramente, 
acotovelando os triunfadores. Cessava o ataque. Mas de minuto em minuto, com precisão inflexível, caía uma 
bala entre os batalhões. Variava vagarosamente de rumo, percorrendo a pouco e pouco todas as linhas, de um a 
outro flanco, num giro longo e torturante, indo e vindo, devagar, traçando ponto a ponto o círculo espantoso, 
como se um atirador único, ao longe, do alto de algum cerro remoto, houvesse o compromisso bárbaro de ser o 
algoz de um exército. E era-o. Valentes ainda ofegantes de recontros em que entravam intrêmulos, estremeciam, 
por fim, ante o assovio daqueles projetis esparsos, transvoando ao acaso para o alvo imenso, escolhendo, entre 
milhares de homens, um vítima qualquer... 

 

Assalto ao acampamento. A "matadeira" 

 

E iam-se assim os dias, nesse intermitir de refregas furiosas e rápidas, e longas reticências de calma, pontilhadas 
de balas . . . 

 

Os assaltos, às vezes, contra toda a expectativa, não cessavam logo. Num crescendo aterrador, agitavam todas as 
linhas e tinham vislumbres de batalha. Num deles, a 1.° de julho, os sertanejos penetraram em cheio o 
acampamento até ao centro das baterias. O ódio votado aos canhões, que dia a dia lhes demoliam os templos, 
arrebatara-os à façanha inverossímil, visando a captura ou a destruição do maior deles, o Withworth 32, a 
"matadeira", conforme o apelidavam. Foram poucos, porém, os que se abalançaram à empresa. Onze apenas, 
guiados por Joaquim Macambira, filho do velho cabecilha de igual nome. Mas ante o grupo diminuto 
formaram-se batalhões inteiros. Deram-se cargas cerradas de baionetas a toques de corneta, como se fosse uma 
legião; até que baqueassem todos, salvo um único, que escapou miraculosamente. varando pelas fileiras agitadas. 

 

A tropa teve o adminículo de mais uma vitória pouco lisonjeira e acrescido o respeito ao destemor do adversário. 

 

O ascendente deste avultava dia a dia. Descobriam-se, mais próximas, avançando num constringir vagaroso, as 
trincheiras circulantes: pela esquerda, trancando o passo para a fazenda Velha; pela direita, ameaçando o posto 
de carneação e reduzindo a área do pequeno pasto em que estavam os animais de tração e montaria; e pela 
retaguarda, aproximando-se pelo caminho do Rosário. Os corpos destacados para as tomar e demolir 
tomavam-nas e demoliam-nas facilmente. Tornavam com poucas baixas ou de todo indenes. E no dia 
subseqüente volviam à mesma tarefa, reconstruídos durante a noite, e cada vez mais próximos, os 
entrincheiramentos ameaçadores. 

 

Enquanto se empregavam de tal modo os dias, reservavam-se as noites para o enterramento dos mortos, missão, 
além de lúgubre, perigosa, em que não raro o carregador aumentava a carga, caindo por sua vez entre os 
cadáveres, baqueando dentro da vala comum, que com as próprias mãos abria. 

 

É natural que uma semana depois da ocupação do morro se generalizasse o desânimo. Afrouxamento em toda a 
linha. A própria artilharia, verificando-se a ineficácia do canhoneio e a necessidade de poupar a munição 
reduzida, apenas atirava, certos dias, dois ou três tiros longamente espaçados... 

 

Atitude do comando-em-chefe 

 

Aguardava-se a brigada salvadora. Se por um golpe de mão, que o inimigo podia e não soube dar, ela tivesse 
cortado a marcha nas cercanias do Rosário ou do Angico, a expedição estaria perdida. Era a convicção geral. O 
estado da força facultava ainda uma defesa frouxa daquela posição, mas impossibilitava-lhe prolongar esse 
esforço por mais de oito dias. Somente o prestígio de alguns chefes de corpos a salvava da desorganização 
completa. Ficara em algumas brigadas, dominando a indisciplina emergente, a dedicação pessoal aos 
comandantes. 

 


O general Artur Oscar, que se obstinara a permanecer ali iludido, a princípio, pela miragem de um comboio, 
justificava-se, agora, pela impossibilidade absoluta de se mover. 

 

Estadeou então a sua única qualidade militar frisante: a tendência a enraizar-se nas posições conquistadas. Este 
atributo contrasta com qualidades pessoais opostas. Irrequieto e ruidosamente franco; encarando a profissão das 
armas pelo seu lado cavalheiresco e tumultuoso; quase fanfarrão, embora valente, no relatar façanhas de pasmar; 
incomparável, no idear surpreendedores recontros; encontrando sempre nas conjunturas mais críticas uma frase 
explosiva, que as sublinha com traço vigoroso de jovialidade heróica, num calão pitoresco e incisivo e vibrante; 
patenteando sempre, insofridas, todas as impaciências e todos os arrojos de um temperamento nervoso e forte; 
aquele general, numa campanha, no meio de cultura por excelência de tão notáveis requisitos, se transmuda, e, 
com espanto dos que o conhecem, só tem uma tática — a da imobilidade. 

 

Resiste; não delibera. 

 

Inflexivelmente imóvel diante do adversário, não o perturba com as sortidas bem combinadas e o arremesso das 
cargas; opõe-lhe a força emperradora da inércia. 

 

Não o combate; cansa-o. Não o vence; esgota-o. 

 

Guiando a expedição, concentrou-se inteiramente no objetivo da luta; absorveu-se desde o começo na sua fase 
derradeira, abstraindo de todas as circunstâncias intermediárias; e, realizando uma investida original, sem bases e 
sem linhas de operações, não preestabeleceu a hipótese de um insucesso, a necessidade eventual de um recuo. 

 

Tinha um plano único — ir a Canudos. Tudo mais era secundário. Levando 6 mil baionetas à margem do 
Vaza-Barris, ganharia a partida, de qualquer modo, desse por onde desse. Não recuaria. Alterou um verbo na 
frase clássica do romano e seguiu. 

 

Chegou; viu; e ficou. 

 

Se no dia 28 o erro serodiamente corrigido do abandono do comboio lhe vedava marchar à investida, no dia 30, 
segundo o depoimento dos seus melhores auxiliares, devia tê-la feito . Não a fez. Entretanto estavam, afinal, 
reunidas as duas colunas e o arraial desdobrava-se à distância de um tiro de Mannlicher. Completou, assim, com 
um erro outro, colocando-se em situação insustentável, de onde, se não ocorresse o curso caprichoso dos 
acontecimentos, talvez não mais saísse. 

 

Não desanimara, porém. Compartia o destino comum resignado , estóico, inflexível, imóvel ... 

 

"Não lhe afrouxara o garrão ! . ." frase predileta, que despedia violentamente, como um golpe de sabre, 
despedaçando o fio dos comentários mais desalentados, ou desalentadoras conjeturas. 

 

Mas presa nos liames de um assédio extravagante, cujas linhas se distendiam elásticas, ante todas as cargas, e se 
ligavam logo depois de serem rotas, em todos os pontos; exausta de fazer recuar o adversário, sem o esmagar 
nunca; sentindo engravescer-se a sua situação precária, a tropa não resistiria. Afrouxava. Surgiam já, 
traduzindo-se em alusões acerbas, surdos rancores contra imaginários responsáveis por aquelas desventuras. O 
deputado do quartel-mestre-general foi, então e depois, a vítima expiatória de todos os desmandos. Era o único 
culpado, comentava o desquerer geral. Não se ponderava que a acusação ilógica refluía toda sobre o 
comando-em-chefe, do qual a absolvição pressupunha uma culpa maior — o olvido da sua autonomia 
incondicional de chefe. 

 

De feito, aquele funcionário tinha, pela permanência no cargo, a sua confiança plena. E, empunhando 
febrilmente o lápis calculista com que floreteava a impaciência geral, permanecia, estéril, na Favela: somando, 
subtraindo, multiplicando e dividindo; pondo em equação a fome; discutindo estupendas soluções sobre 
cargueiros fantásticos; diferenciando a miséria transcendente; arquitetando fórmulas admiravelmente abstratas 
com sacos de farinha e malas de carne seca; idealizando comboios... 

 

Era todo o esforço. Não havia notícias da 1.ª Brigada. Os batalhões, diariamente mandados até as Baixas, 
voltavam sem rastrear nem um sinal da sua existência, pelas estradas vazias. Um deles, o 15.°, comandado pelo 
capitão Gomes Carneiro, no dia 10, ao tornar da diligência inútil, comboiara como suprema irrisão um boi, um 
único boi — magro, retransido de fome, oscilante sobre as pernas secas — uma arroba de carne para 6 mil 
famintos. . . 


 

Outro olhar sobre Canudos 

 

E sobre tudo aquilo uma monotonia acabrunhadora... A sucessão invariável das mesmas cenas do mesmo cenário 
pobre, despontando às mesmas horas com a mesma forma, dava aos lutadores exaustos a impressão indefinível 
de uma imobilidade no tempo. 

 

À tarde ou durante o dia, nos raros momentos em que se atreguavam os assaltos, alguns se distraíam 
contemplando o arraial intangível. Lá se iam, então, cautelosamente, desenfiando-se pelo viés das encostas, 
alongando as distâncias, para atingirem com resguardos um ponto abrigado qualquer de onde o distinguissem a 
salvo. Perturbavam-se-lhes, então, as vistas, no emaranhado dos casebres, esbatidos embaixo. E contavam: 1, 2, 
3, 4 mil, 5 mil casas ! Cinco mil casas ou mais ! Seis mil casas, talvez! Quinze ou 20 mil almas — encafurnadas 
naquela tapera babilônica... E invisíveis. De longe em longe, um vulto, rápido, cortava uma viela estreita, 
correndo, ou apontava, por um segundo, indistinto e fugitivo, à entrada da grande praça vazia, desaparecendo 
logo. Nada mais. Em torno o debuxo misterioso de uma paisagem bíblica: a infinita tristura das colinas desnudas, 
ermas, sem árvores. Um rio sem águas, tornejando-as, feito uma estrada poenta e longa, mais longe, avassalando 
os quadrantes, a corda ondulante das serras igualmente desertas, rebatidas, nitidamente, na imprimadura do 
horizonte claro, feito o quadro desmedido daquele cenário estranho. 

 

Era uma evocação. Como se a terra se ataviasse em dados trechos para idênticos dramas, tinha-se, ali, o que quer 
que era recordando um recanto da Iduméia, na paragem lendária que perlonga as ribas meridionais do Asfaltite, 
esterilizada para todo o sempre pelo malsinar fatídico dos profetas e pelo reverberar adusto dos plainos do 
Iemen... 

 

O arraial — "compacto" como as cidades do Evangelho — completava a ilusão. 

 

Ao cair da noite, de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados em ondulações sonoras, que 
vagarosamente se alargavam pela quietude dos ermos e se extinguiam em ecos indistintos, refluindo nas 
montanhas longínquas, o toque da Ave-Maria... 

 

Os canhões da Favela bramiam, despertos por aquelas vozes tranqüilas. Cruzavam-se sobre o campanário 
humilde as trajetórias das granadas. Estouravam-lhe por cima e em roda os schrapnels. Mas lento e lento, 
intervaladas de meio minuto, as vozes suavíssimas se espalhavam silentes, sobre a assonância do ataque. O 
sineiro impassível não claudicava um segundo no intervalo consagrado. Não perdia uma nota. 

 

Cumprida, porém, a missão religiosa, apenas extintos os ecos da última badalada, o mesmo sino dobrava 
estridulamente sacudindo as vibrações do alarma. Corria um listrão de flamas pelas cimalhas das igrejas. Caía 
feito um rastilho no arraial. Alastrava-se pela praça deflagrando para as faldas do morro; abrangia-as; e uma 
réplica violenta caía estrepitosamente sobre a tropa. Fazia calar o bombardeio. O silencio descia 
amortecedoramente sobre os dois campos. Os soldados escutavam, então, misteriosa e vaga, coada pelas paredes 
espessas do templo meio em ruínas, a cadência melancólica das rezas . . . 

 

Desânimo 

 

Aquele estoicismo singular impressionava-os, e dominava-os; e como tinham, mal esvaecidas na alma, as 
mesmas superstições e a mesma religiosidade ingênua, vacilavam por fim ante o adversário que se aliara à 
Providencia. 

 

Imaginavam-lhe recursos extraordinários. As próprias balas que usavam revelavam efeitos extravagantes. 
Crepitavam nos ares com estalidos secos e fortes, como se arrebentassem em estilhaços inúmeros. Criou-se, 
então, a lenda, depois insistentemente propalada, das balas explosivas dos jagunços. Tudo a sugeria. Aceita ainda 
a hipótese de previrem os estalos do desigual coeficiente de dilatação entre os metais constituintes do projétil, 
expandindo-se o núcleo de chumbo mais rapidamente do que a camisa de aço, a natureza excepcional dos 
ferimentos afigurava-se eloqüentíssima: a bala, que penetrava os corpos mal deixando visível o círculo do 
diminuto calibre, saía por um rombo largo de tecidos e ossos esmigalhados. Tais fatos arraigavam na soldadesca, 
inapta ao apercebimento da lei física que os explicava, a convicção de que o adversário, terrivelmente 
aparelhado, requintava no estadear a selvageria impiedosa. 

 

Deserções heróicas 

 


Principiaram as deserções. Deserções heróicas, incompreensíveis quase, em que o soldado se aventurava aos 
maiores riscos, sob a fiscalização incorruptível do inimigo. No dia 9, vinte praças do 33.° deixaram os 
companheiros, afundando no deserto. E, uma a uma, diariamente, outras as imitaram, preferindo o tiro de 
misericórdia do jagunço àquela agonia lenta. 

 

Havia permanente em todos os espíritos o desejo absorvente de deixar afinal aquela paragem sinistra da Favela. 

 

Os batalhões que abalavam em diligência para vários pontos despertavam inveja aos que ficavam. 
Invejavam-lhes os perigos, as emboscadas, os combates. Tinham ao menos a esperança das presas acaso 
conquistadas. Viam-se por algum tempo fora do quadro miserando que o acampamento patenteava. 

 

Como nos maus dias dos cercos lendários, rememorados em velhas crônicas, os gêneros mais vulgares adquiriam 
cotações fantásticas: uma raiz de umbu ou uma rapadura valiam como iguarias suntuárias. Um cigarro reles era 
um ideal de epicurista. 

 

Falava-se, às vezes, na retirada. O boato surdo, cochichado a medo, por algum desesperado que atirava, 
anônimo, aquela consulta vacilante aos companheiros penetrava sussurrando, insidioso, entre os batalhões, 
despertando ora apóstrofes e protestos violentos, ora um silêncio comprometedor e suspeito. Mas a retirada era 
inexeqüível. Uma brigada ligeira podia, impune ,varrer os arredores, ir tiroteando para qualquer ponto, e voltar. 
O exército, não. Se o tentasse, com o tardo movimento que lhe impunham a artilharia, as ambulâncias e o 
contrapeso de mil e tantos feridos — consumar-se-ia a catástrofe. 

 

Ficar, a despeito de tudo, era o recurso supremo e único. 

 

Se a 1.ª a Brigada, porém, retardasse por mais oito dias a vinda — nem este restaria. Os jagunços partiriam, 
afinal, num dos assaltos, as linhas de fogo dos soldados inteiramente exaustos . . . 

 

Um choque galvânico na expedição combalida 

 

Na tarde de 11 de julho, porém, um vaqueiro, escoltado por três praças de cavalaria, apareceu inesperadamente 
no acampamento. Trazia um ofício do coronel Medeiros notificando a sua vinda e requisitando forças 
necessárias à proteção do grande comboio que puxava. 

 

Foi um choque galvânico na expedição combalida. 

 

Não há descrevê-lo. De uma à outra ponta das alas, correu, empolgante, a nova auspiciosa e, transfigurados os 
rostos abatidos, corretas as posturas dobradas, movendo-se febrilmente em alacridade imensa, exposta em 
abraços, em gritos, em estrepitosas exclamações, entrecruzaram-se em todos os sentidos os lutadores. 
Desdobraram-se as bandeiras. Ressoaram os clarins, tocando a alvorada. Formavam as bandas de todos os 
corpos. Restrungiram hinos... 

 

O vaqueiro rude, vestido de couro, montando no "campeão suarento e resfolegante, empunhando ao modo de 
lança a "guiada" longa, olhava surpreendido para tudo aquilo. A sua corpulência de atleta contrastava com os 
corpos mirrados que turbilhonavam em roda. Lembrava um gladiador possante entre boximanes irrequietos. 

 

A torrente ruidosa das aclamações rolou até à sanga do hospital de sangue. Os doentes e os moribundos calaram 
os gemidos — transmudando-os em vivas... 

 

O nordeste soprando rijo ruflava as bandeiras ondulantes; e arremessava sobre o arraial, misturadas, baralhadas, 
as notas metálicas das bandas marciais e milhares de brados de triunfo... 

 

Descia a noite. De Canudos ascendia — vibrando longamente pelos descampados num ondular sonoro, que 
vagarosamente avassalava o silêncio dos ermos e se extinguia a pouco e pouco em ecos indistintos refluindo nas 
montanhas longínquas — o toque da Ave-Maria... 


Capítulo V 

 

O assalto: preparativos 

 

O comboio chegou ao alto da Favela a 13 de julho; e no dia subseqüente, convocados os comandantes de 
brigadas, na tenda do general Savaget, enfermo do ferimento recebido em Cocorobó, concertaram sobre o 
assalto. O dia era propício: uma data de festa nacional. Logo pela manhã uma salva de 21 tiros de bala a 
comemorara. Os matutos broncos foram varridos cedo — surpreendidos, saltando estonteadamente das redes e 
dos catres miseráveis — porque havia pouco mais de cem anos um grupo de sonhadores falara nos direitos do 
homem e se debatera pela utopia maravilhosa da fraternidade humana... 

 

O ataque contra o arraial era urgente. 

 

O comandante da 1.ª Brigada ao voltar comunicara que na pretensa base de operações nada existia. Encontrara-a 
desprovida de tudo, tendo-lhe sido necessário organizar com dificuldades o comboio que trouxera. Este em 
pouco se esgotaria e volver-se-ia de novo à crítica situação anterior. 

 

Deliberou-se. As opiniões, dissentindo em minúcias, firmaram-se acordes no pensamento da investida em 
grandes massas por um único flanco. Os comandantes da 3.ª, 4.ª, e 5.ª Brigadas opinaram pelo abandono 
preliminar da Favela por uma posição mais próxima de onde, depois, empenhassem a ação. Os demais, 
fortalecidos pelo voto favorável dos três generais, contravieram: permaneceriam na Favela o hospital de sangue, 
artilharia e duas brigadas, garantindo-os. 

 

Este alvitre, que afinal pouco divergia do primeiro, prevaleceu. Reincidia-se num erro. O inimigo ia ter, mais 
uma vez, diante da sua fugacidade a potência ronceira das brigadas. Havia, como se vê, persistente na maioria 
dos animes, o intento de se não executar o que a campanha, desde o começo, reclamava: a divisão dos corpos 
combatentes. O ataque por dois pontos, pelo caminho de Jeremoabo e pela extrema esquerda, derivando pelos 
contrafortes da fazenda Velha, enquanto a artilharia, sem deixar a sua posição, agisse, bombardeando pelo 
centro, surgia, entretanto, como único plano — imperioso e intuitivo — à mais ligeira observação do teatro da 
luta. Não se cogitou, porém, de observar o teatro da luta. O plano firmado era mais simples. As duas colunas 
combatentes, após uma marcha de flanco de quase dois quilômetros para a direita do acampamento, que se 
preestabeleceu realizada sem que a perturbasse o inimigo, obliquariam à esquerda, demandando o Vaza-Barris. 
Dali, volvendo ainda à esquerda, arremeteriam em cheio até à praça das igrejas. O movimento, contornante a 
princípio, ultimar-se-ia em trajetória retilínea; e se fosse impulsionado com sucesso favorável, os jagunços, 
mesmo no caso de inteiro desbarate, teriam, francos ao recuo, três ângulos do quadrante. Poderiam, a salvo, 
deslocar-se para as posições inacessíveis do Caipã, ou qualquer outra de onde renovassem a resistência. 

 

Esta era certa e previa-se a todo o transe. 

 

Diziam-no acontecimentos recentes. Duas semanas de canhoneio e o reforço de munições aos adversários não 
tinham desinfluído os sertanejos. Revigoraram-nos. No dia 15, como se ideassem atrevida paródia à recente 
vinda do comboio, foram vistos, em bandos, em que se incluíam mulheres e crianças, avançando pela direita do 
acampamento, tangendo para o arraial numerosas reses. O 25.° Batalhão, enviado a atacá-los, não os alcançara. 
Naquele mesmo dia, os expedicionários, fartos e alentados de novo pela esperança da vitória próxima, não 
tiveram permissão de andar à vontade na própria posição em que acampavam. A travessia de um para outro 
abarracamento era a morte. Tombaram, baleados, o sargento-ajudante do 9.° e várias praças. Foi assaltado o 
pasto, a dois passos da 2.ª coluna, e capturados alguns animais de montaria e tração, sem que os retomasse o 30.° 
de Infantaria, imediatamente destacado para a diligência. A 16 ostentaram o mesmo afoitar-se desafiador com o 
adversário abastecido. Bateram todas as linhas. A comissão de engenheiros, para fazer ligeiros reconhecimentos 
nas cercanias, fê-lo combatendo, levando a escolta formidável de dois batalhões, o 7.° e o 5.°. Esta atitude 
indicava-os dispostos a reagir com vigor; e como se não conheciam os recursos que contavam, o ataque planeado 
devia ater-se à condição essencial de não ser nele, de chofre, comprometida toda a força, o que ademais 
impropriava a zona mesma do combate. Vista do alto da Favela, esta parecia ser, de fato, a de mais fácil acesso. 
Apesar disto, o solo, pregueado de sangas e ondeando em outeiros, impossibilitava o desdobramento rápido das 
colunas; permitia prever-se o travamento forçado da investida em massa e sugeria por si mesmo, como corretivo 
único à sua conformação especial, a ordem largamente dispersa. Mas esta só seria factível se, excluído de todo o 
alvitre das cargas de pelotões maciços, precipitando-se contra os cerros a batalha tivesse a preliminar de uma 
demonstração preparatória ou reconhecimento enérgico feito por uma brigada única livremente desenvolvida e 
agindo fora da compreensão entibiadora de fileiras compactas e inúteis. Esta vanguarda combatente à medida 
que progredisse, varrendo as trincheiras abertas em todos os altos e em todas as encostas, seria gradativamente 


seguida pelas outras, que a reforçariam nos pontos mais convenientes, até se operar, afinal, naturalmente, na 
própria esteira do recuo do antagonista, a concentração de todas, dentro do arraial. Ia fazer-se o contrário. O 
comandante geral oscilava entre extremos. Saía da anquilose para o salto; da inércia absoluta para os 
movimentos impulsivos. Deixou a vacilação inibitória, que o manietava no alto da Favela, para a obsessão 
delirante das cargas. Nas disposições, dadas a 16, para o combate, são elas a nota preponderante. Postos em 
plano inferior todos os dispositivos que garantissem o desenlace do recontro, espelha-se ali, a preocupação 
absorvente dos choques violentos: 3 mil e tantas baionetas rolando, como uma caudal de ferro e chamas, pelo 
leito do Vaza-Barris em fora... 

 

"Dado o sinal da carga ninguém mais procura evitar a ação dos fogos do inimigo. Carrega-se sem vacilar com a 
maior impetuosidade. Depois de cada carga cada soldado procura a sua companhia, cada companhia o seu 
batalhão e assim por diante." 

 

Estas instruções iam de nível com as tendências gerais. As longas combinações concretas de um combate, adrede 
elaboradas consoante as condições excepcionais do meio e do adversário, não as satisfaziam. O rancor 
longamente acumulado por anteriores insucessos exigia revides fulminantes. Era preciso levar às recuadas os 
bandidos tontos e, de uma só vez, de pancada, socá-los dentro da cova de Canudos, a coices de armas. 

 

A ordem do dia 17 de julho marcando o ataque para o imediato, 18, foi recebida com delírio. Esteando-se nas 
façanhas anteriores, o comandante-em-chefe, numa dedução atrevida, voltava uma pagina do futuro e punha 
diante dos lutadores a miragem da vitória. 

 

"Valentes oficiais e soldados da forças expedicionárias no interior do Estado da Bahia ! 

 

Desde Cocorobó até aqui o inimigo não tem podido resistir à vossa bravura. Atestam-no os combates de 
Cocorobó, Trabubu, Macambira, Angico, dois outros no alto da Favela e dois assaltos que o inimigo trouxe à 
artilharia. 

 

Amanhã vamos batê-lo na sua cidadela de Canudos. A pátria tem os olhos fitos sobre vós, tudo espera da vossa 
bravura. O inimigo traiçoeiro, que não se apresenta de frente, que combate-nos sem ser visto, tem, contudo, 
sofrido perdas consideráveis. Ele está desmoralizado, e, pois ,se... 

 

Paremos um momento diante de uma condicional comprometedora. Ante ela a ordem do dia, lida com aplausos a 
17, devia ter sido trancada ao cair da noite de 18. 

 

"... se tiverdes constância, se ainda uma vez fordes os bravos de todos os tempos, Canudos estará em vosso poder 
amanhã; iremos descansar e a Pátria saberá agradecer os vossos sacrifícios." 

 

Canudos cairia no dia seguinte. Era fatal. O inimigo mesmo parecia ciente da resolução heróica: cessara os 
tiroteios irritantes. Acolhia-se embaixo, timorato e quedo, vencido de véspera. O acampamento não fora 
atormentado. À tarde as fanfarras dos corpos vibraram harmoniosamente até cair a noite. 

 

Plano do assalto 

 

Delineou-se o ataque. Ficaram na Favela cerca de 1.500 homens sob o mando geral do general Savaget, 
guardando a posição: a 2.ª e 7.ª Brigadas dos coronéis Inácio Henrique de Gouveia e Antonino Néri, a última 
recém-formada, assim como a de artilharia, que secundaria o ataque num bombardeio firme. 

 

A 1.ª a coluna dirigida pelo general Barbosa marcharia na frente para o combate encalçada logo pela ala de 
cavalaria e uma divisão de dois Krupps de 7½. A 2ª acompanhá-la-ia fechando a retaguarda. 

 

Entravam na ação 3.349 homens repartidos em cinco brigadas: a 1.ª, do coronel Joaquim Manuel de Medeiros, 
composta de dois batalhões apenas, o 14.° e o 30.°, respectivamente comandados pelo capitão João Antunes 
Leite e tenente-coronel Antônio Tupi Ferreira Caldas; a 3.ª, do tenente-coronel Emídio Dantas Barreto, reunia o 
5.°, 7.°, 9.° e 25.°, todos chefiados por capitães, Antônio Nunes de Sales, Alberto Gavião Pereira Pinto, Carlos 
Augusto de Sousa e José Xavier dos Anjos; a 4.ª, do coronel Carlos Maria da Silva Teles, formava-se com o 12.° 
e o 31.° sob o mando dos capitães José Luís Buchelle e José Lauriano da Costa; a 5.ª, do coronel Julião Augusto 
da Serra Martins, que substituíra o general Savaget na direção da 2.ª coluna, estava sob o comando do major 
Nonato Seixas e constituía-se com o 35.° e 40.° Batalhões do major Olegário Sampaio e capitão J. Vilar 
Coutinho; e finalmente a 6.ª, do coronel Donaciano de Araújo Pantoja, com o 26.° e 32.° comandados pelo 


capitão M. Costa e major Colatino Góis. O 5.° de Polícia baiana, chefiado pelo capitão do Exército Salvador 
Pires de Carvalho Aragão, acompanhava, autônomo, a 2.ª coluna. 

 

O tenente-coronel Siqueira de Meneses, com um contingente reduzido, enquanto o grosso da expedição atacasse 
devia operar ligeira diversão à direita, sobre os contrafortes da fazenda Velha. 

 

Definidos os lutadores, via-se que ali estavam alguns para os quais o sertão de Canudos era um campo estreito: 

 

Carlos Teles, uma altivez sem par sangrando sob o cilício da farda, lembrava o belo episódio do cerco de Bagé; 
Tupi Caldas — nervoso, irrequieto e barulhento, trazia invejável reputação de coragem da refrega mortífera de 
Inhanduí, contra os federalistas do sul; Olímpio da Silveira, o chefe da artilharia, com o seu facies de estátua — 
face bronzeada vincada de linhas imóveis — , realizava a criação rara de um lutador modesto, impassível diante 
da glória e diante do inimigo, seguindo retilineamente pela vida entre o tumulto das batalhas, como obediente a 
uma fatalidade incoercível. Nos menos graduados uma oficialidade moça, ávida de renome, anelando perigos, 
turbulenta, jovial, destemerosa: Salvador Pires, comandante do 5.° de Polícia, que ele mesmo formara com os 
tabaréus robustos escolhidos nos povoados do S. Francisco; Wanderley, destinado a tombar heroicamente no 
último passo de uma carga temerária; Vieira Pacheco, o gaúcho intrépido que chefiava o esquadrão de lanceiros; 
Frutuoso Mendes e Duque Estrada, que desarticulariam pedra por pedra os muros da igreja nova; Carlos de 
Alencar, cujo comando se extinguiria pela morte de todos os soldados da ala de cavalaria que dirigia; e outros... 

 

Toda essa gente aguardava com impaciência o combate. Porque o combate era a vitória decisiva. Segundo o 
velho hábito, os lutadores recomendaram aos que permaneciam na Favela que tivessem pronto o almoço, para 
quando tornassem da empresa fatigante... 

 

O recontro 

 

As colunas abalaram, no dia 18, ainda alta a madrugada. Contramarchando à direita do acampamento, seguiram 
olhando em cheio para o levante, demandando o caminho de Jeremoabo, descendo. No fim de algum tempo, 
volveram à esquerda, descendo sempre, em rumo certo à borda do Vaza-Barris, embaixo. A marcha, a passo 
ordinário, realizava-se tranqüilamente, sem a menor revelação do inimigo, como se fosse surpreendê-lo aquele 
movimento contornante. Apenas os dois Krupps, rangendo emperradamente na vereda mal gradada, a 
perturbavam, às vezes. Eram tropeços breves, porém, prestamente removidos. O tropear da investida rolava 
surdamente, ameaçador, contínuo... 

 

A terra despertava triste. As aves tinham abandonado espavoridas aqueles ares varridos, havia um mês, de balas. 
A manhã surgia rutilante e muda. Desvendava-se, a pouco e pouco, a região silenciosa e deserta: cômoros 
despidos ou chapadas breves; caatingas decíduas, "pintando", já em julho, em grandes nódoas pardo-escuras, a 
revelarem o alastramento vagaroso da seca. A planície ondeante, alargando-se no quadrante de NE até ao sopé da 
Canabrava, indefinida para o norte, batendo ao sul contra a Favela, empolava-se para o poente em maciços 
sucessivamente mais altos, subindo para as grimpas longínquas do Cambaio. O Vaza-Barris, cortado em gânglios 
esparsos, percorria-a em dobras divagantes. Numa destas, depois de correr direito para o ocidente, torce 
abruptamente ao sul e volve, transcorridos poucas centenas de metros, para leste, invertendo de todo o sentido da 
corrente e formando imperfeita península, tendo no extremo o arraial. Assim, bastava aos que o defendessem o 
estenderem-se ligando os dois galhos paralelos e próximos do rio, segundo a corda daquele círculo extensíssimo 
de circunvalação, para cortarem toda a frente do ataque. Porque a direção deste a interferia normalmente, como a 
flecha do enorme semicírculo: depois de transposta a baixada aquém de Trabubu, os assaltantes atravessariam a 
pés enxutos o Vaza-Barris e, volvendo mais uma vez, a última, à esquerda, carregariam de frente. 

 

Antes de completa esta conversão, porém, o inimigo lhes renteou o passo. Eram sete horas da manhã. 

 

Os exploradores receberam os primeiros tiros ao galgarem a barranca esquerda do rio. O terreno próximo 
empolava-se num cerro, onde se viam, revestindo-o até ao topo, lembrando muros de pedra seca derruídos, 
irregulares entrincheiramentos de pedras. O arraial, mil e quinhentos metros na frente, desaparecia numa 
depressão mais forte, lobrigando-se , apenas, o olhar rasante pela crista dos cerros, os vértices das duas torres da 
igreja. Duas cruzes ameaçadoras e altas, recortando-se, nítidas, na claridade nascente... 

 

A vanguarda atacada, uma companhia do 30.º, replicou sem parar, acelerando o passo, ao tempo que o grosso da 
1.ª Brigada e quatro batalhões da 3.ª chegavam, compactos, abeirando-se do leito do rio, transpondo-o. 

 

Toda a primeira coluna penetrava, reunida, a arena do combate. 


O coronel Carlos Teles em sua parte de combate — documento que não foi contestado — afirmou, depois, 
nuamente, que ao chegar notara não se acharem as forças nele engajadas com as formaturas que lhes são 
próprias. 

 

Linha de combate 

 

Os breves tropeços à translação dos dois Krupps tinham, em boa hora, remorado a retaguarda. De sorte que 
atenuando-se, em parte, o grave inconveniente de um acúmulo compressor de batalhões, o general Barbosa pôde 
tentar O esboço de uma linha de combate: a 1.ª Brigada distendendo-se em atiradores para a direita; a 3.ª, na 
mesma ordem, para a esquerda — enquanto a ala de cavalaria, avantajando-se a toda brida a estremar o flanco 
direito, devia obstar que o envolvessem. 

 

Crítica 

 

Mas este movimento geral da tropa, como era de prever, foi mal feito. Sobre ser uma manobra sob o olhar do 
adversário, impropriava-a o terreno. Faltava-lhe a base física essencial à tática. A linha ideada, feita por um 
rápido desdobramento de brigadas numa longura de dois quilômetros, ia partir-se em planos verticais, segundo as 
cotas máximas dos cerros e o fundo das baixadas; e desde que não podia traçar-se com celeridade tal que 
tornasse o mais possível passageira uma situação de desequilíbrio e fraqueza, forçadamente assumida por todas 
as unidades combatentes, no se desarticularem e darem o flanco ao inimigo até nova posição de combate — era 
impraticável. 

 

Impraticável e perigosíssima. Diziam-no todas as condições palpáveis, concretas, em torno, da áspera topografia 
do solo ao extraordinário vigor de pronto patenteado pelo adversário, que tomara, desde os primeiros minutos, 
toda a frente à investida, numa fuzilaria impenetrável. E revelariam-no os resultados imediatos da ação. Os 
soldados — feixes de baionetas arremessando-se contra os morros — embatiam-lhes as ilhargas; tornejavam-nas, 
vingavam-nas a custo, no vertiginoso desatar-se das linhas de atiradores. Mas tudo isto sem a firmeza e a 
velocidade que implicava a tática concebida. Além de não conseguirem executá-la deste modo, o que era 
essencial, alteraram-na logo em pormenores, insignificantes talvez, mas delatadores de um princípio de confusão 
nas fileiras. Em contraposição à ordem primitiva, a 3.ª Brigada começou a lutar pelo flanco direito do 30.°, que 
era da primeira. O 9.° Batalhão, na extrema esquerda, caíra no valo do Vaza-Barris por onde começou a avançar 
ferido de descargas irradiantes das duas bordas; enquanto o 25.°, o 5.° e a ala direita do 7.° mal centralizavam o 
conflito. 

 

Confusão 

 

Era impossível estirar-se a formatura dispersa debaixo de balas em semelhante local. As seções, as companhias, 
os batalhões, destacando-se para a direita, única banda apropriada aos alinhamentos, enfiavam num labirinto de 
sangas em torcicolos e a breve trecho sentiam-se perdidos, desorientados, iludidos, sem verem o resto dos 
companheiros, sem poderem distinguir sequer os toques discordes das cornetas. Recuando, às vezes, no 
estonteamento da marcha tortuosa, supondo que avançavam, esbarravam, não raro, dados poucos passos, 
inopinadamente, com outras seções, outras companhias e outros batalhões, a marche-marche em sentido 
contrário... 

 

Enredavam-se. O próprio general que os atirara em tais forcas caudinas, mais tarde, na ordem do dia relativa ao 
feito, não encontrando no léxico opulento da nossa língua um termo lídimo para caracterizar bem a desordem da 
refrega, aventurou um gauchismo bárbaro — as forças entrelisavam-se . . . 

 

De sorte que quando, passada meia hora, chegou a 2.ª coluna, era já sensível o número de baixas. Vinham mais 
duas brigadas, a 4.ª e a 5.ª, ficando apenas de reserva, à reçaga, uma, a 6.ª, sob as ordens imediatas do 
comando-em-chefe. Os recém-vindos deviam ainda alongar-se para a direita, segundo o plano único imposto 
pelas circunstâncias, o que, além de tomar toda a frente ao inimigo, obstando-lhe qualquer ação contornante, 
facultaria, depois, a investida final numa concentração contínua, que o próprio campo de combate indicava, 
definindo-se como setor amplíssimo de raios convergentes na praça das igrejas. Mas esta concepção tática, aliás 
rudimentar, não foi ainda efetuada. As brigadas auxilares, ao chegarem debaixo de uma fuzilaria estonteadora e 
deparando o tumulto, não podiam mais adaptar-se às linhas de um plano qualquer — articulando-se às que as 
tinham precedido, revigorando-as reforçando-lhes os pontos fracos, ou completando-lhes os movimentos; ou, 
ainda, prendendo-se-lhes às alas extremas, expandindo-lhas, ampliando-lhas de modo a estenderem, possante e 
vibrátil, defronte dos rudes antagonistas, a envergadura de ferro da batalha. 

 


 

"Não obstante, o dever único na ocasião era avançar e carregar..." 

 

Avançaram e carregaram. 

 

Eram oito horas da manhã. Formosa e quente manhã sertaneja que naquelas zonas irradia sempre um resplendor 
belíssimo de centelhas refluídas da terra desnuda e quartzosa... De sorte que se a tropa imprimisse naquele 
espadanar de brilhos o fulgor metálico de 3 mil baionetas, como se planeara, o cenário tornar-se-ia singularmente 
majestoso. 

 

Mas foi lúgubre. Dez batalhões despencaram, de mistura, pelos cerros abaixo. Atulharam as baixadas. Galgaram 
depois as ladeiras que as apertam. Coalharam o topo das colinas; e desceram-nas de novo, ruidosamente, em 
tropel — para novamente investirem com as que se sucedem indefinidamente por toda a banda — num ondear de 
vagas humanas, revoltas, desencadeadas, estrepitosas, arrebatando nas encostas, espraiando-se nas planuras 
breves, acachoando um tumulto nos declives, represando-se comprimidas nas quebradas... 

 

Os jagunços em roda fulminavam-nas, invisíveis, recuando talvez, talvez concentrando-se-lhes às ilhargas, talvez 
envolvendo-as. . . 

 

Nada podia conjeturar-se. Os soldados começaram, certo, desde logo a conquistar bravamente o terreno. 
Vingavam morros sucessivos. Pisavam de momento em momento à borda de trincheiras, e no fundo destas os 
cartuchos detonados e ardentes delatavam-lhes a fuga recente do inimigo. Mas não sabiam no fim de algum 
tempo a direção real do próprio ataque que realizavam. A réplica dos adversários, por sua vez, variando em todos 
os rumos, parecia adrede disposta a desnorteá-los. Apenas no meio da ação ela se patenteou — uniforme e mais 
bem definida — na extrema direita, onde era lícito esperá-la tão constante, sugerindo o pensamento de algum 
vigoroso ataque de flanco que, se fosse impulsionado com energia, lançaria inevitavelmente os sertanejos, 
triunfantes, dentro dos batalhões desmantelados. Viu-se, porém, que aqueles realizavam apenas uma 
demonstração ligeira, deixando escapar a oportunidade para acometimento sério. Revelou-o o esquadrão de 
lanceiros num reconhecimento temerário. Precipitando-se velozmente naquela direção, deu de chofre, no tombar 
de uma encosta, com cerca de oitenta jagunços. Estavam dentro de um curral, de onde atiravam de soslaio sobre 
a tropa. Dispersou-os a pontaços de lança e a patas de cavalos, numa carga violenta. Subiu depois a galope, 
perseguindo-os, por uma ladeira menos abrupta, até ao alto de um dilatado platô, em rechã distendida para 
nordeste. E o arraial, a menos de trezentos metros, apareceu-lhe inopinadamente, na frente... 

 

Neste comenos, por sua vez, ali chegavam atropeladamente alguns pelotões de infantaria. 

 

A situação era culminante. 

 

À fímbria das primeiras casas esparsas num recosto fronteiro a cerca de trezentos metros das igrejas, oferecia-se 
aos combatentes área mais desimpedida e plana. Estes, porém, ali chegavam em grupos e sem ordem, mal 
repartidos na larga divisão das brigadas: a 5.ª marchando pela direita, a 3.ª e a 4.ª pelo centro e a 6.ª, que entrara 
por último na refrega, pela esquerda, perlongando o rio. 

 

Era o momento agudo do combate. 

 

Naquela eminência, a tropa, sobretudo do centro para a direita, completamente exposta, estava dominada pelas 
igrejas e de nível com a parte alta do arraial, que se alteia para o norte. E deste último ponto até ao extremo da 
praça, a oeste —abrangendo todo o quadrante em longura mínima de dois quilômetros, caiu-lhe em cima, 
convergente, uma fuzilaria tremenda. As brigadas, entretanto, avançaram ainda. Mas incoerentemente, num 
dissipar improdutivo de valor e de balas, sem a retitude de um plano, sem uniformidade na marcha. No 
torvelinho das fileiras sobrevinham paralisações súbitas. Cada soldado tendo levado somente 150 cartuchos nas 
patronas gastara-os logo. De modo que se tornou necessária a parada de batalhões inteiros — em pleno conflito e 
na eminência completamente batida — para se abrir a machado os cunhetes de munições e distribuí-las. 

 

Além disto, completando os tiroteios nutridos que irrompiam do arraial, onde cada parede se rachava em seteiras, 
atrevidos guerrilheiros afrontavam-se, de perto, com os assaltantes, alvejando-os à queima-roupa, abrindo-lhes, 
em descargas esparsas, claros assustadores. Batiam-nos ainda pelo flanco direito. O rarefeito dos estampidos 
denunciava, naquela banda, raros franco-atiradores. Mas estes, embora diminutos, tolhiam, pelo rigor das 
pontarias, o passo a pelotões inteiros. 

 


Di-lo episódio expressivo. 

 

Tocaias dos jagunços 

 

 

Arrumadas a leste, derramaram-se aquelas em lombada extensa, expandida mais ou menos segundo a meridiana 
e tendo a vertente ocidental suavemente descaída até à praça das igrejas, adiante. A força chegou àquela situação 
dominante cobrindo-a de uma linha descontínua e torcida, que se alongava para a esquerda até ao Vaza-Barris. 
Em parte os soldados abrigaram-se então nos casebres conquistados. A maioria, porém, impelida por oficiais, 
que na conjuntura se revelaram dignos de mais gloriosos feitos, avançou ainda, fulminada, num círculo de 
descargas, até aos fundos da igreja velha. A 6.ª Brigada e o 5.° de Polícia, rompendo pelo álveo seco do rio, 
completaram esta acometida, que foi o derradeiro ímpeto da tropa. 

 

Dali à frente ela não deu mais um passo. Conquistara um subúrbio diminuto da cidade bárbara e sentia-se 
impotente para ultimar a ação. As baixas avultaram. A retaguarda, coalhada de feridos e mortos, dava a 
impressão emocionante de uma derrota. Por entre eles passaram, contudo, ainda, impelidos a pulso, os dois 
Krupps. Postos logo depois em batalha, sobranceiros às igrejas, iniciaram um canhoneio firme — enquanto no 
alto da Favela, coroado de fumo, estrugiam dentro de uma cerração de tormenta as baterias do coronel Olímpio 
da Silveira. Mas, batido pelas granadas que ali tombavam, mergulhantes, batido pelas fuzilarias, que lhe 
tomavam toda a orla do nascente, o arraial recrudesceu na réplica. As balas irradiando de lá, inúmeras, varavam 
os tabiques das casas, em que se acolhiam os assaltantes, e matavam-nos lá dentro. A igreja nova, à margem do 
rio, fulminava a 6.ª Brigada. O 5.° de Polícia, rudemente combatido, caiu por fim numa grota estreita e coleante 
que o livrou de um fuzilamento em massa. 

 

O sol culminou nesta situação gravíssima e dúbia. A batalha iniciada a dois quilômetros continuava mais renhida 
na orla do casario. 

 

Neste transe os chefes da 3.ª e 4.ª Brigadas, que se tinham avantajado até ao cemitério junto à igreja velha, 
reclamaram a presença do general Artur Oscar. Este apareceu depois de fazer a pé, mal encoberto pelas casinhas 
esparsas da vertente, uma travessia que foi um lance de bravura. Ao chegar encontrou, já gravemente feridos 
dentro do próprio pouso em que se haviam acolhido, o coronel Carlos Teles, o comandante do 5.° de linha e o 
capitão Antônio Sales. A conferência — rápida — realizou-se dentro do casebre exíguo. Em tomo estalava a 
desordem: vibrações de tiros, tropear de carreiras doidas, notas estrídulas de cornetas, vozes precípites de 
comando, brados de cólera, gritos de dor, imprecações e gemidos. O tumulto. 

 

Desorganizados os batalhões, cada um lutava pela vida. Nos grupos combatentes reunidos ao acaso, feitos de 
praças de todos os corpos, adensando-se por trás de frágeis paredes de taipa ou no cunhal das esquinas, 
batendo-se a todo transe, fizera-se uma seleção natural de valentes. Extintas todas as esperanças, o instinto 
animal da conservação, como sói sempre acontecer nesses epílogos sombrios dos combates, vestia a clâmide do 
heroísmo, desdobrando brutalmente a forma primitiva da coragem. Alheias ao destino dos outros companheiros, 
reduzindo a batalha à área estreita em que jogavam a vida, as frações combatentes atulhando os tijupares em 
cujas paredes, como os jagunços, rasgavam seteiras, negaceando nas esquinas, correndo desencontradamente 


pelos claros das vielas, com o adversário a dois passos, enleados quase em luta braço a braço, agiam, à toa, por 
conta própria. Famintos e agoniados de sede, ao penetrarem as pequenas vivendas, dentro das quais no primeiro 
minuto nada distinguiam, na penumbra dos cômodos estreitos e sem janelas, olvidavam o morador. 
Percorriam-nos, tateantes, em busca de uma moringa d"água ou um cabaz de farinha. E baqueavam, não raro, por 
um disparo à queima-roupa. Soldados possantes, que vinham resfolegando de uma luta de quatro horas, caíram, 
alguns mortos por mulheres frágeis. Algumas valiam homens. Velhas megeras de tez baça, faces murchas, 
olhares afuzilando faúlhas, cabelos corredios e soltos, arremetiam com os invasores num delírio de fúrias. E 
quando se dobravam, sob o pulso daqueles, juguladas e quase estranguladas pelas mãos potentes, arrastadas 
pelos cabelos, atiradas ao chão e calcadas pelo tacão dos coturnos — não fraqueavam, morriam num estertor de 
feras, cuspindo-lhes em cima um esconjuro doloroso e trágico . . . 

 

Nova vitória desastrosa 

 

No meio desta confusão desastrosa, o comandante-em-chefe resolveu que se guardasse a posição conquistada. O 
alvitre impunha-se por si, inflexivelmente. Mais uma vez no fim de uma arremetida violenta a expedição se via 
adstrita a estacar, encravando-se em situação insolúvel. Eram por igual impossíveis — o avançamento e o recuo. 

 

Imobilizou-se ao cair da tarde numa ourela estreita do arraial—uma quinta parte deste, limitando-o pelo levante 
— na larga coxilha expandida de norte a sul e descendo em declive para a praça. As casas que ali se erigiam, 
menos unidas que as demais, tinham data recente. Canudos, no seu crescimento surpreendedor, desbordara da 
depressão, em que se formara, para o viso das colinas envolventes. 

 

A tropa ocupara um desses subúrbios. A cidadela propriamente dita, com a sua feição original e bárbara, não fora 
a bem dizer atingida. Ali estava, perto, em frente —ameaçadoramente —, sem muros, mas inexpugnável, pondo 
diante da invasão milhares de portas, milhares de entradas abertas para a rede inextricável dos becos tortuosos. 

 

Mas não se podia ultrapassar o esforço temerário feito. A linha avançada dos corpos que mais se tinham 
adiantado firmou-se definitivamente. Numa grota profunda, que drenava os flancos da Favela, na extrema 
esquerda, entrincheirou-se o 5.° de Polícia, distendendo-se até à borda direita do Vaza-Barris onde se ligava ao 
26.° de Infantaria. Este, por sua vez, desdobrando-se, ia unir-se na margem oposta ao 5.° de linha, junto ao 
cemitério. Seguiam-se sucessivamente: o 25.°, nos fundos da igreja velha; o 7.°, paralelamente à face oriental da 
praça; e depois o 25.°, o 40.° e o 30.° entranhando-se num dédalo de casebres, para o norte. Inflectindo deste 
ponto à retaguarda, a linha, com as forças desenvolvidas do 12.°, 31.° e 38.°, encurvava-se, convexa, 
afastando-se do casario e guardando o flanco direito do acampamento, onde ficou o quartel-general, na vertente 
oposta, protegido pelos 14.°, 32.°, 33.° e 34.° Batalhões e pela ala de cavalaria. 

 

O resto do dia, e grande parte da noite, empregaram-no na construção dos entrincheiramentos, blindando-se de 
tábuas ou pedras as paredes das casas, ou escolhendo-se raros pontos menos enfiados pelos projetis. Estes 
trabalhos impunham os máximos resguardos. Os expedicionários entalavam-se numa ilharga do arraial e o 
inimigo vigiava-os, implacável. Afrouxara a fuzilaria, mas para recair na praxe costumeira das tocaias: em cada 
frestão de parede insinuava-se um cano de espingarda e um olhar indagador. Cada passo do soldado fora do 
ângulo de uma esquina era a morte. 

 

Começou-se a sentir o império de uma situação mais incômoda que a anterior, da Favela. Ali havia, ao menos, a 
esperança do assalto e da vitória; desprezava-se ainda o adversário, que só revidava de longe, entre ciladas. 
Agora, nem este engano restava. O jagunço ali estava — indomável — desafiando um choque braço a braço. 
Não o atemorizara a proximidade dos contendores, profissionais da guerra, que lhe enviavam as gentes das 
“terras grandes". Eles estavam-lhe, agora, ao lado, a dois passos, acotovelando-o, acolhidos sob os mesmos tetos 
de taipa e aumentando, de repente, em poucos minutos, de 3 mil almas, a população do lugarejo sagrado. Mas 
não lhe haviam modificado sequer o primitivo regímen. Ao empardecer do dia, o sino da igreja velha batia, 
calmamente, a Ave-Maria; e, logo depois, do seio amplíssimo da outra, ressudava o salmear merencório das 
rezas... 

 

Toda a agitação do dia fora como incidente vulgar e esperado. 

 

Baixas 

 

No entanto, a expedição atravessara violentíssima crise. Tivera cerca de mil homens, 947, entre mortos e feridos, 
e estes, com os caídos nos recontros anteriores, reduziam-na consideravelmente. Impressionavam-na, ademais, 
os resultados imediatos do acometimento. Três comandantes de brigadas, Carlos Teles, Serra Martins e Antonino 


Néri, que viera à tarde com a 7.ª, estavam fora de combate. Numa escala ascendente, avultavam baixas de 
oficiais menos graduados e praças. Alferes e tenentes haviam, com desassombro incrível, malbaratado a vida em 
toda a linha. De alguns citavam-se, depois, os arrojados lances: Cunha Lima, estudante da Escola Militar de 
Porto Alegre, que, ferido em pleno peito numa carga de lanceiros, concentrara os últimos alentos no último 
arremesso da lança caindo, em cheio, sobre o inimigo, feito um dardo; Wanderley, que, precipitando-se a galope 
pela encosta aspérrima da última colina, fora abatido ao mesmo tempo que o cavalo no topo da escarpa, rolando 
por ela abaixo em queda prodigiosa, de titã fulminado; e outros, baqueando todos, valentemente — entre vivas 
retumbantes à República —, haviam dado à refrega um traço singular de heroicidade antiga, revivendo o 
desprendimento doentio dos místicos lidadores da média idade. O paralelo é perfeito. Há nas sociedades 
retrocessos atávicos notáveis; e entre nós os dias revoltos da República tinham imprimido, sobretudo na 
mocidade militar, um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional, desvairando-a e 
arrebatando-a em idealizações de iluminados. A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era 
uma cruzada. Os modernos templários, se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz 
aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se abatiam à entrada 
de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do 
marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória — com o mesmo entusiasmo delirante, com a 
mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus 
misericordioso e milagroso. . . 

 

Ora, esse entusiasmo febril, à parte as precipitações desastrosas decorrentes, no dia 18 de julho foi a salvação... 

 

Uma tropa exclusivamente robustecida pela disciplina, que se desorganizasse daquela maneira, estaria perdida. 
Mas os soldados rudes, em cujo ânimo combalido penetravam desalentos e incertezas, imobilizaram-se sob o 
hipnotismo da coragem pessoal dos chefes, ou dominados pelo prestígio de oficiais que, gravemente feridos, 
alguns mal sustendo a espada, avançavam em cambaleios para as linhas de fogo — moribundos e desafiando a 
morte. 

 

Ficaram de algum modo sitiados entre eles e os jagunços. 

 

Nos flancos de Canudos 

 

A noite de 18 de julho, contra a expectativa geral, passou em relativa calma. Os sertanejos, por sua vez, 
claudicavam. No ânimo do chefe expedicionário pairara o temor de um assalto noturno para o qual não havia 
reação possível. As frágeis linhas de defesa, ainda quando não fossem rotas por qualquer dos seus pontos, 
podiam ser envolvidas pelos lados e, postas entre dois fogos e contidas na frente pelo arraial impenetrável, 
seriam facilmente destruídas. A situação, porém, resolvera-se pela inércia dos adversários. No dia subseqüente 
uma linha de bandeirolas vermelhas, feita de cobertores reúnos, demarcava um segmento de cerco 
diminutíssimo: um quinto da periferia enorme do arraial. Mal o fechava pelo levante. Nesta banda mesmo estava 
em claro a extrema direita; do mesmo modo que à esquerda, entre as vertentes da Favela, e os primeiros sulcos 
do arroio da Providência, onde jazia o corpo policial, se via largo espaço livre. Para se ultimar a circunferência 
fazia-se mister um traçado que, prolongando-se para a direita em cheio ao norte, inflectindo depois para oeste, 
ladeando o rio e acompanhando-o na sua curvatura para o sul, galgando as ondulações maiores do solo no 
primeiro socalco das serras do Calumbi e do Cambaio, volvesse finalmente a leste pelo esporão dos Pelados. Um 
circuito de seis quilômetros, aproximadamente. Ora, a expedição reduzida a pouco mais de 3 mil homens 
válidos, centenares dos quais se removiam à guarda da Favela, não poderia ajustar-se a tão ampla cercadura, 
mesmo que lha permitisse o adversário. A paralisação temporária das operações impunha-se inevitável, 
resumindo-se na defesa da posição ocupada, até que maiores reforços facultassem novos esforços. 

 

Posição crítica 

 

O general Artur Oscar avaliou, então, com segurança, o estado das coisas. Pediu um corpo auxiliar de 5 mil 
homens e curou de dispositivos para garantir a força que triunfara de maneira singular, a pique de uma derrota. 
Estava, depois de mais um triunfo, na conjuntura torturante de não poder arriscar nem um passo à frente, nem 
um passo atrás. Oficialmente, as ordens do dia decretavam o começo do sítio. Mas, de fato, como sempre 
sucedera desde 27 de junho, a expedição é que estava sitiada. Tolhia-a o arraial a oeste. Ao sul os altos da Favela 
fechavam-se-lhe atravancados de feridos e doentes. Para o norte e o nascente se desenrolava o deserto 
impenetrável. A área da sua ação aparentemente aumentara. Dois acampamentos distintos pareciam denotar mais 
larga movimentação, liberta da constrição de trincheiras envolventes. Esta ilusão, porém, extinguiu-se no próprio 
dia do assalto. Os cerros, varridos a cargas de baionetas poucas horas antes, figuravam-se de novo guarnecidos. 
As comunicações com a Favela tornaram-se logo dificílimas. Tombavam, novamente baleados, os feridos que 


para lá se arrastavam; e um médico, o dr. Tolentino, que na tarde do combate dali descera, caíra, gravemente 
ferido, na ribanceira do rio. A travessia no campo conquistado fez-se problema sério aos conquistadores. Por 
outro lado os que haviam invadido o breve trecho do arraial copiavam, linha a linha. a reclusão que antes 
observavam nos jagunços. Como estes, apinhavam-se nos casebres ardentes como fornos, ao reverberar dos 
meios-dias mormacentos e jaziam horas esquecidas, olhos enfiados pelas rachas das paredes, caindo 
escandalosamente na mesma guerrilha de tocaias. sondando com as vistas o casario e disparando as espingardas 
todas á um tempo — cem, duzentos, trezentos tiros ! — contra um vulto, um trapo qualquer, percebido de 
relance, indistinto e fugitivo, ao longe, no torvelinho dos becos. 

 

Distribuída a última ração — um litro de farinha para sete praças e um boi para um batalhão — , restos do 
comboio salvador, era-lhes impossível preparar convenientemente a refeição escassa. Um fio de fumo 
branqueando no teto de barro da choupana era um chamariz de balas ! À noite um fósforo aceso punha fogo a 
rastilhos de descargas. 

Os jagunços sabiam que podiam fulminar dentro dos casebres — frágeis anteparos da argila — os moradores 
intrusos. O coronel Antonino Néri fora ferido, justamente quando, depois de atravessar com a sua brigada a zona perigosa e aberta do combate, se acolhera a um deles. Casamataram-nos, então. Espessaram-lhes as paredes com muros interiores, de pedras, ou revestiram-nas de tábuas. E assim mais garantidos, atravessando grande parte do dia, de bruços, sobre os jiraus, olhares rasantes pelos esvãos do colmo, dedos enclavinhados nos fechos da espingarda — os vitoriosos cheios de sustos tocaiavam os vencidos... 

Sobre o quartel-general, centralizado pela barraca do comandante-em-chefe, na vertente oposta, os projetis 
passavam inofensivos, repelidos pelo ângulo morto da colina. E aquele teve durante todo o correr da noite, que 
lhe fechara a jornada trabalhosa, passando-lhe em sibilos ásperos sobre a tenda, os respingos dos tiroteios que se 
renhiam do outro lado com as linhas avançadas. Os comandantes destas, tenentes-coronéis Tupi Caldas e Dantas 
Barreto, destemerosos ambos, sentiam-se todavia na iminência de um desastre, compreendendo "que um passo à 
retaguarda em qualquer ponto da linha central lhes seria a perdição total". Porque esta preocupação de uma 
catástrofe próxima, iniludível, ninguém a ocultava. Deduziam-se irresistivelmente na seqüência de anteriores 
sucessos. Impunha-se. Durante muitos dias dominou todos os espíritos. 

 

"Um inimigo habituado à luta regular que soubesse tirar partido de nossas desvantagens táticas não teria 
certamente deixado passar esse momento em que a vingança e a desforra teriam a conseqüência da mais 
requintada selvageria." 

 

Mas o jagunço não era afeito à luta regular. Fora até demasia de frase caracterizá-lo inimigo, termo 
extemporâneo, esquisito eufemismo suplantando o "bandido famigerado"" da literatura marcial das ordens do dia. 
O sertanejo defendia o lar invadido, nada mais. Enquanto os que lho ameaçavam permaneciam distantes, 
rodeava-os de ciladas que lhes tolhessem o passo. Mas, quando eles, ao cabo, lhe bateram às portas e lhas 
arrombaram a coices de armas, aventou-se-lhe, como único expediente, a resistência a pé firme, afrontando-os 
face a face, adstrito à preocupação digna da defesa e ao nobre compromisso da desforra. Canudos só seria 
conquistado casa por casa. Toda a expedição iria despender três meses para a travessia de cem metros, que a 
separavam da apside da igreja nova. E no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas 
na história, os seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e 
andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de 6 mil homens! 

 

Aquela pertinácia formidável começou no dia 18 e não fraqueou mais. Terminara o ataque mas a batalha 
continuou, interminável, monótona, aterradora, com a mesma intercadência espelhada na Favela: difundida em 
tiros que sulcavam o espaço de minuto a minuto, ou tiroteios alastrando-se furiosamente por todas as linhas, em 
arrancos súbitos, repentinos combates de quartos de hora, prestes travados, prestes desfeitos, antes que 
terminassem as notas emocionantes dos alarmas. Esses assaltos subitâneos, intermeados de longas horas de 
repouso relativo, traduziam sempre uma inversão de papéis. Os assaltantes eram, por via de regra, os assaltados. 
O inimigo encantoado é quem lhes marcava o momento angustioso das refregas, e estas surgiam sempre de 
chofre. 

 

Noite velha, às vezes quebrando um armistício de minutos, que os soldados da vanguarda aproveitavam para 
descanso ilusório, cabeceando abraçados às carabinas, um foguetão ascendia rechiando asperamente, feito um 
rasgão no firmamento escuro. E à sua luz fugaz viam-se as cimalhas das igrejas debruadas de uma orla negra e 
fervilhante. O combate feria-se na treva, aos fulgores intermitentes das fuzilarias. 

 


Outras vezes, contra o que era de esperar, era ao romper do dia, em plena manhã esplendorosa e ardente, que os 
jagunços acometiam desassombradamente, às claras. 

 

Notas de um diário 

 

Um diário minucioso da luta naqueles primeiros dias, lhe patenteia o caráter anormalmente bárbaro. 
Esbocemo-lo em traços largos até ao dia 24 de julho, apenas para definir uma situação que daquela data em 
diante não se transmudou. 

 

Dia 19 — A fuzilaria inimiga principia às cinco horas da manhã. Prossegue durante o dia. Entra pela noite 
dentro. O comandante da 1.ª coluna, para revigorar a repulsa, determina a vinda de mais dois canhões Krupps, 
que estavam na retaguarda, a fim de serem assestados à noite. Às doze e meia foi ferido, em seu acampamento, 
dentro de um casebre onde descansava, numa rede, o comandante da 7.ª Brigada. Às duas horas da tarde, depois 
de apontar e disparar o canhão da direita para uma das torres da igreja nova, morre trespassado por uma bala o 
tenente Tomás Braga. À tarde descem com dificuldade da Favela algumas reses para alimento da tropa. A boiada 
dispersa-se, fustigada a tiros, ao atravessar o Vaza-Barris, sendo a custo reunida, perdendo-se algumas cabeças. 
Ao toque de recolher os jagunços investem contra as linhas, perdurando o ataque até às nove e meia e 
continuando, afrouxo, daí por diante. Resultado: um comandante superior ferido; um subalterno morto, dez ou 
doze praças fora de combate. 

 

Dia 20 — O acampamento é subitamente atacado quando as cornetas de todos os corpos tocam a alvorada. 
Tiroteios durante o dia todo. Consegue-se assestar apenas um dos canhões reconduzidos. Há o mesmo número de 
baixas da véspera: um soldado morto. 

 

Dia 21— Madrugada tranqüila. Poucos ataques durante o dia. Os canhões da Favela bombardeiam até à boca da 
noite. Dia relativamente calmo. Poucas baixas. 

 

Dia 22 — Sem aguardar a iniciativa do adversário, a artilharia abre o canhoneio às cinco horas da manhã —
provocando revide pronto e virulento de atiradores encobertos nos muros das igrejas. São penosamente 
conduzidos, do campo da ação para o acampamento da Favela, os últimos feridos. Segue em reconhecimento 
pelas cercanias o tenente-coronel Siqueira de Meneses. Ao voltar declara estar o inimigo muito forte, e que 
muito poucas casas de Canudos estão em nosso poder, atenta a comparação com o número das que formam o 
povoado. Somente à noite se torna possível distribuir parcas rações de gêneros aos soldados da linha de frente, o 
que foi impossível fazer durante o dia, pela vigilância dos antagonistas. Às nove horas da noite assalto violento 
pelos dois flancos. Resultado: 25 homens fora de combate. 

 

Dia 23 — Alvorada tranqüila. Repentinamente, uma hora depois, às seis da manhã, os jagunços, depois de um 
movimento contornante despercebido, caem impetuosamente sobre a retaguarda do campo de batalha. São 
repelidos pelo 34.° Batalhão e Corpo Policial, deixando quinze mortos, uma cabocla prisioneira e um surrão de 
farinha. À noite tiroteios cerrados. Os três canhões deram apenas nove disparos por falta de munições. 

 

Dia 24 — Começou o bombardeio ao levantar do sol. O povoado, contra o costume, suporta-o sem réplica. Os 
schrapnels da Favela caem lá dentro e estouram, como se batessem numa tapera deserta. Durante largo tempo 
trucida-o o canhoneio impunemente. Às oito horas, porém, ouvem-se alguns estampidos, raros, à direita; e logo 
depois são assaltados os canhões daquele flanco. Enreda-se o conflito braço a braço, carabinas esbocadas aos 
peitos, e generaliza-se num crescendo apavorante. Vibram de ponta a ponta dezenas de cornetas. Toda a tropa 
forma para a batalha. O ataque visava cortar a retaguarda da linha de frente. Um movimento temerário. 
Cortando-a cairiam sobre o quartel-general, e poriam os sitiantes entre dois fogos. Era um plano de Pajeú que, 
tendo deposto os demais cabecilhas, assumira a direção da luta. Esse assalto durou meia hora. Os jagunços 
repelidos, porém, volveram minutos depois, outra vez sobre a tropa, arremetendo com maior arrojo sobre a 
direita. A custo repelidos recuam até às primeiras casas não conquistadas de onde reatam o tiroteio, cerrado, 
contínuo. Tombam o comandante do 33.°, Antônio Nunes Sales, e muitos oficiais e praças. Ao meio-dia cessa a 
agitação. 

 

Súbito silêncio desce sobre os dois campos. À uma hora — novo assalto, mais impetuoso ainda. Formam-se 
todos os batalhões. Era como a oscilação de um aríete. A nova pancada percutiu, insistente, nas linhas do flanco 
direito. O impetuoso Pajeú baqueia mortalmente ferido. Tombam do nosso lado muitos combatentes entre os 
quais, morto, o tenente Figueira, de Taubaté; feridos o comandante do 33.º, capitão Joaquim Pereira Lobo e 
muitos oficiais. A fim de distrair o inimigo, o comandante-em-chefe determina que atirem os corpos do flanco 


esquerdo, ainda não investidos. A força toda descarrega as armas contra o arraial. Segue em acelerado uma 
metralhadora para reforçar a direita. 

 

Atroam no alto todas as baterias da Favela... 

 

Repele-se ao inimigo. À noite tirotear constante até a madrugada. 

 

No dia 25... Nesse dia, como nos outros, as mesmas cenas, pouco destoantes, imprimindo na campanha uma 
monotonia dolorosa. Os entrincheiramentos da linha de cerco faziam-se nesse intermitir de combates; e somente 
à noite podia ser distribuída a refeição insuficiente aos soldados famintos ou conseguiam estes, ajoujados de 
cantis e marmitas, arriscar a tentativa heróica de alguns passos até às cacimbas do Vaza-Barris, buscando a água 
que lhes mitigasse a sede longamente suportada. Iam-se assim os dias... 

 

Triunfos pelo telégrafo 

 

Estes fatos chegaram às capitais da República e dos Estados inteiramente baralhados. 

 

Do exposto pode bem inferir-se que era isto inevitável. 

 

Quando os próprios lidadores mal rastreavam, na discordância dos sucessos, um juízo qualquer sobre a própria 
situação, é natural que os que atentavam, de longe, para o drama imerso na profundura dos sertões, desandassem 
em conjeturas, sobre instáveis, falsas. Falou-se a princípio na vitória. A travessia do Cocorobó, anteriormente 
sabida, pressagiava que o Exército houvesse abatido, de um salto, os rebeldes. Notícias esparsas provindas do 
campo de ação, ou telegramas incisivos, marcavam além disto, à luta, um desenlace em três dias. 

 

Volvidos, porém, quinze, patenteou-se a inanidade de esforços dos que haviam entrado do capricho de fantasiar 
triunfos. Viu-se que os jagunços haviam mais uma vez vingado o círculo cortante das baionetas. De sorte que 
enquanto a expedição se exauria no ermo da Favela e ia tombar, exaurida por uma sangria profunda , num trecho 
de Canudos — a opinião nacional, pela imprensa, extravagava, balanceando as mais aventurosas hipóteses que 
ainda saltaram dos prelos. 

 

O espantalho da restauração monárquica negrejava, de novo, no horizonte político atroado de tormentas. A 
despeito das ordens do dia em que se cantava vitória, os sertanejos apareciam como os chouans depois de 
Fontenay. 

 

Olhava-se para a História através de urna ocular invertida: o bronco Pajéu emergia com o facies dominador de 
Chatelineau. João Abade era um Charrete de chapéu de couro. 

 

Depois do dia 18 a ansiedade geral cresceu. A notícia do acontecimento, como a dos anteriores, principiando 
num entoar de vitórias, descambava depois, a pouco e pouco, recortando-se de lancinantes dúvidas, até quase à 
convicção de uma derrota. Chegavam, todavia,. da zona das operações, telegramas paradoxais e deploravelmente 
extravagantes. 

 

Calcavam-se numa norma única: — Bandidos encurralados! Vítória certa! I Dentro de dois dias estará em 
nosso poder a cidadela de Canudos! Fanáticos visivelmente abatidos ! 

 

Mais verídicos, porém, começaram desde o dia 27 de julho a seguir para o litoral, demandando a capital da Bahia 
— os documentos vivos da catástrofe... 


Capítulo VI 

 

Pelas estradas. Os feridos 

 

A remoção dos doentes e feridos para Monte Santo era urgente. 

 

Assim, partiram logo as primeiras turmas protegidas por praças de infantaria até ao extremo sul da zona 
perigosa, Juá. 

Começou, então, a derivar lastimavelmente pelos caminhos o refluxo da campanha. Golfava-o o morro da 
Favela. Diariamente, em sucessivas levas, abalaram dali, em inúmeros bandos, todos os desfalecidos e todos os inúteis, em redes de caroá ou jiraus de paus roliços os enfermos mais graves, outros cavalgando penosamente cavalos imprestáveis e regues, ou apinhados em carroças ronceiras. A grande maioria, a pé. 

Saíam quase sem recursos, combalidos, exaustos de provações, afundando, resignados, na região ermada pela guerra. 


Era a entrada do estio. O sertão principiava a mostrar um facies melancólico, de deserto. Sugadas dos sóis as 
árvores dobravam-se murchas, despindo-se dia a dia das folhas e das flores; e, alastrando-se pelo solo, os 
restolhos pardo-escuros das gramíneas murchas refletiam já a ação latente do incêndio surdo das secas. A luz 
crua e viva dos dias claríssimos e cálidos descia, deslumbrante e implacável, dos céus sem nuvens, sem 
transições apreciáveis, sem auroras e sem crepúsculos, irrompendo, de chofre, nas manhãs doiradas, apagando-se 
repentinamente na noite, requeimando a terra. Deprimia-se o nível das cacimbas. Esgotavam-se os regatos 
efêmeros, de leitos lastrados de seixos, onde tênues fios de águas defluíam imperceptíveis como nos oueds 
africanos; e, na atmosfera adurente, no chão gretado e poento, pressentia-se a invasão periódica do regímen 
desértico sobre aquelas paragens infelizes. 

 

O clima extremava-se em variações enormes: os dias repontavam queimosos, as noites sobrevinham 
frigidíssimas. 

 

As marchas só podiam realizar-se às primeiras horas da manhã e ao descer das tardes. Mal culminava o sol, era 
forçoso interrompê-las: todo o seu ardor parecia varar, intacto, o ambiente puríssimo e, refluído pelo solo mal 
protegido por vegetação rarefeita, aumentar de intensidade. Ao mesmo tempo, dispersos, refletindo em todas as 
dobras do terreno, os seus raios rebrilhavam, ofuscantes, nos visos das serranias; e pelos ares irrespiráveis e 
quentes passavam como que fulgurações de queimadas extensas alastrando-se pelos tabuleiros. Assim, a partir 
das dez horas da manhã, estacionavam as caravanas nos lugares menos impróprios ao descanso, à beira dos 
cursos d"água ganglionados em poças esparsas, onde a umidade remanente alentava a folhagem das caraíbas e 
baraúnas altas; junto aos tanques ainda cheios, perto dos sítios em abandono; ou em falta destes, à fímbria das 
ipueiras rasas salpicando pequenas várzeas sombreadas pelas ramagens virentes dos icozeiros. 

 

Acampavam. 

 

Neste mesmo dia, ao entardecer, mal refeitas as forças, reatavam a rota, progredindo, sem ordem, na medida do 
vigor de cada um. Saindo unidas da Favela, as turmas a pouco e pouco se distendiam pelos caminhos, 
fragmentando-se em pequenos grupos; esparsas, afinal, em caminhantes solitários. 

 

Os mais fortes ou mais bem montados avantajavam-se rápidos cortando escoteiros para Monte Santo, alheios ao 
companheiros retardatários. Acompanhavam-nos logo, conduzidos em redes aos ombros de soldados possantes, 
os oficiais feridos. A grande maioria não os encalçava; seguia vagarosamente, dissolvendo-se pelos caminhos. 
Alguns, quando os demais abalavam dos pousos transitórios, se deixavam ficar, quietos, à sombra dos arbustos 
murchos, de todo sucumbidos de fadigas — enquanto outros, aguilhoados pela sede, mal extinta nas águas 
impuras das almácegas sertanejas e impelidos pela fome, torcendo o rumo, batiam afanosamente os desvios 
multívios das caatingas apelando para os recursos da flora singular transbordante de frutos e de espinhos — e 
desgarravam, desarraigando tubérculos de umbuzeiros, sugando os cladódios túmidos dos cardos espinescentes, 
catando os últimos frutos das árvores desfolhadas. 

 

Deslembravam-se do inimigo. A ferocidade do jagunço era balanceada pela selvatiqueza da terra. 

 

Ao fim de poucos dias a tortuosa vereda do Rosário encheu-se de foragidos. Ali estava a mesma trilha que um 
mês antes haviam percorrido, impávidos ante quaisquer recontros com o adversário esquivo, fascinados pelo 
irradiar de 4 mil baionetas, sacudidas no ritmo febricitante das cargas. Parecia-lhes agora mais áspera e 


impraticável — coleando em curvas sucessivas, tombando em ladeiras resvalantes, empinando-se em cerros, 
tornejando encostas, insinuando-se impacta, entre montanhas. 

 

E reviam-lhe, pasmos, os trechos memoráveis. 

 

Nas cercanias de Umburanas, o casebre destruído, onde os sertanejos, de tocaia, tinham aferrado de um choque o 
grande comboio da expedição Artur Oscar; além das Baixas, as margens do caminho debruando-se de ossadas 
brancas, adrede dispostas numa encenação cruel — recordavam o morticínio de março; numa inflexão antes do 
Angico, o ponto em que Salomão da Rocha alteara, por minutos, diante da onda rugidora que vinha em cima da 
coluna Moreira César, a barragem de aço de suas divisões de artilharia; no córrego seco, mais longe, a ribanceira 
a pique em que tombara do cavalo, pesadamente, morto, o coronel Tamarindo; nas proximidades do Aracati e 
Juetê, choupanas em ruínas, esteios e traves roídos dos incêndios, cercas arrombadas e invadidas de mato, velhas 
roças em abandono, estereografando, indelével, o rastro das expedições anteriores... 

 

Perto do riacho do Vigário, por um requinte de lúgubre ironia, os jagunços cobriram de floração fantástica a flora 
tolhiça e decídua: dos galhos tortos dos angicos pendiam restos de divisas vermelhas, trapos de dólmans azuis e 
brancos, molambos de calças carmesins ou negras, e pedaços de mantas rubras —como se a ramaria morta 
desabotoasse toda em flores sanguinolentas... 

 

Em torno, sem variantes no aspecto entristecedor, a mesma natureza bárbara. Morros enterroados, formas 
evanescentes de montanhas roídas pelos aguaceiros fortes e repentinos, tendo às ilhargas, à mostra, a romper, a 
ossatura íntima da terra repontando em apófises rígidas, ou desarticulando-se em blocos amontoados, em que há 
traços violentos de cataclismos; plainos desnudos e chatos feitos lhanos desmedidos; e, por toda a parte, mal 
reagindo à atrofia no fundo das baixadas úmidas, uma vegetação agonizante e raquítica, espalhada num 
baralhamento de ramos retorcidos — reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas... 

 

Choupanas paupérrimas, portas abertas para o caminho, surgiam em vários trechos, ainda não descolmadas, mas 
vazias, porque as deixara o vaqueiro que a guerra espavorira ou o fanático que indireitara para Canudos. 

 

Eram logo tumultuariamente invadidas, ao tempo que as deixavam outros hóspedes surpreendidos: raposas 
ariscas e medrosas, saltando das janelas e esvãos da cobertura — olhos em chamas e pelo arrepiado — e 
atufando-se, aos pinchos, nas macegas; ou centenares de morcegos, esvoaçando desequilibradamente dos 
cômoros escuros, tontos, rechiantes. 

 

A estância desolada animava-se por algumas horas. Armavam-se redes pelos quartos exíguos, na saleta sem 
soalho e fora, nos troncos das árvores do terreiro; amarravam-se os muares nas estacas cruzadas do curral 
deserto; estendiam-se pelas cercas frangalhos de capotes, cobertores e fardas velhas. Grupos erradios circuitavam 
a vivenda esquadrinhando, curiosos, a horta maltratada, de canteiros invadidos pelas palmatórias de flores 
rutilantes; e um ressoar quase festivo, de vozes, relembrava, um instante, a quadra feliz em que os matutos ali 
passavam a vida nas horas aligeiradas pela paz dos sertões. Os mais fortes enveredavam logo para a cacimba 
pouco distante onde, indiferentes aos retardatários e esquecidos dos que viriam depois e por muitas semanas ou 
meses ainda fariam a mesma escala obrigatória, se banhavam, lavavam os cavalos suados e poentos e abluíam as 
chagas no líquido que só se renova de ano em ano, pelas chuvas, passageiras. Volviam com os cantis e marmitas 
cheios avaramente sobraçados. 

 

Não raro, alguns bois — rebotalhos de manadas grandes tresmalhadas pelo alvoroto da guerra — ao lobrigarem, 
de longe, a azáfama que movimentava de novo a paragem a que se haviam aquerenciado, o rancho tranqüilo 
onde tinham sofrido a primeira ferra, para lá abalavam velozmente. Vinham urrando, numa alegria ruidosa e 
forte. Buscavam o vaqueiro amigo que os campeara outrora e iria, de novo ao som das cantigas conhecidas ou ao 
toar tristonho do aboiado, levá-lo às soltas prediletas, aos logradouros fartos e às aguadas frescas. 

 

Irrompiam, troteando, no terreiro... 

 

E tinham recepção cruel. A turba faminta circulava-os em tumulto numa assonância de gritos discordantes. 
Estrondavam as espingardas. Avivados todos os corpos combalidos, arremetiam em monteria doida com os 
animais surpresos e refluindo logo, estonteadamente, embolados, para a trama do matagal bravio. Depois de se 
afadigarem em correrias exaustivas, irritando nos espinhos as chagas recém-abertas e agravando a febre, 
matavam afinal um, dois, três bois no máximo, em tiroteios vivos, que lembravam combates. Carneavam. E 
quedavam-se, após esses incidentes providenciais, fartos, quase felizes pelo contraste da própria penúria, 
aguardando o amanhecer para reatarem o êxodo... 

Então, naquela quietude breve, salteava-os uma idéia empolgante — um assalto dos jagunços! Viam-se inermes, 
depauperados, andrajosos e repulsivos quase, lívidos de fome, varridos para o deserto como trambolhos inúteis 
— e tinham temores infantis. O adversário, que se afoitara com as brigadas aguerridas e levara os assomos cegos 
ao ponto de ferrar canhões a pulso, trucidá-los-ia em minutos. E a noite descia cheia de ameças... 

 

Valentes endurados no regímen bruto das batalhas tinham sobressaltos de pavor ante as coisas mais vulgares e 
velavam, cautos, a despeito das fadigas, armando os ouvidos aos rumores vagos e longínquos das chapadas. 

 

Torturavam-nos alucinações cruéis. A deiscência das vagens das catingueiras, abrindo-se com estalidos secos e 
fortes, soava-lhes feito percussão de gatilhos ou estalos de espoletas, dando a ilusão de súbitas descargas de 
alguma algara noturna repentina; e as grinaldas fosforescentes das cumanãs irradiavam, ao longe, esbatidas nas 
sombras, como restos de fogueiras, em torno às quais velassem, em silêncio, espectantes, tocaias inumerosas... 

 

A manhã libertava-os. Deixavam a paragem assombradora. Lá ficavam, porém, às vezes, rigidamente quietos, 
pelos cantos, os companheiros que a morte libertara. Não os enterravam. Escasseava o tempo. O chão duro, de 
grés, despedaçaria os alviões, opondo-lhes consistência de pedra. Alguns, depois dos primeiros passos, 
fraqueavam de vez. Deixavam-se ficar exaustos, pelas curvas do caminho. Ninguém lhes dava pela falta. 
Desapareciam, eternamente esquecidos, agonizando no absoluto abandono. Morriam. E dias, semanas e meses 
sucessivos, os viandantes, passando, viam-nos na mesma postura: estendidos à sombra mosqueda de brilhos das 
ramagens secas, o braço direito arqueando-se à fronte, como se a resguardasse do sol, com a aparência exata de 
combatentes fatigados, descansando. Não se decompunham. A atmosfera ressequida e ardente conservava-lhes 
os corpos. Murchavam apenas, refegando a pele, e permaneciam longo tempo à margem dos caminhos — 
múmias aterradoras revestidas de fardas andrajosas. . . 

 

Por fim, não impressionavam. Quem se aventura nos estios quentes à travessia dos sertões do Norte afeiçoa-se a 
quadros singulares. A terra, despindo-se de toda a umidade — numa intercadência de dias adustivos e noites 
quase frias — ao derivar para o ciclo das secas parece cair em vida latente, imobilizando apenas, sem o 
decompor, os seres que sobre elas vivem. Realiza, em alta escala, o fato fisiológico de uma existência virtual, 
imperceptível e surda — energias encadeadas, adormecidas apenas, prestes a rebentarem todas, de chofre, à volta 
das condições exteriores favoráveis, originando ressurreições improvisas e surpreendedoras. E como as árvores 
recrestadas e nuas que, à vinda das primeiras chuvas, se cobrem, exuberando seiva, de flores, sem esperar pelas 
folhas, transmudando em poucos dias aqueles desertos em prados — as aves que tombam mortas dos ares 
estagnados, a fauna resistente das caatingas que se aniquila, e o homem que sucumbe à insolação fulminante, 
parecem, jazendo largo tempo intactos, sem que os vermes lhes alterem os tecidos, esperar também pela volta 
das quadras benfazejas. Por ali ficam, patenteando, por vezes, singulares aparências de vida: as suçuaranas — 
que não puderam vingar, demandando outras paragens, o círculo incandescente das secas — contorcidas, garras 
fincadas no chão, como em saltos paralisados; e — à beira das cacimbas extintas — o pescoço alongado, 
procurando um líquido que não existe, os magros bois, mortos há três meses ou mais, caídos sobre as pernas 
ressequidas, agrupando-se em manadas imóveis... 

 

Os primeiros aguaceiros varrem, de pronto, esses espantalhos sinistros. A decomposição é, então, vertiginosa, 
como se os devorassem flamas vorazes. É a sucção formidável da terra, arrebatando-lhes, ávida, todos os 
princípios elementares, para a revivescência triunfal da flora. 

 

Os foragidos avançavam considerando, de relance, aqueles cenários lúgubres. Empolgara-os de todo o 
pensamento exclusivo do abandono, no menor tempo possível, do sertão maninho e bruto. O terror e a imagem 
da própria miséria venciam, por fim, a sobrecarga muscular das caminhadas feitas. Galvanizavam-nos; 
lançavam-nos desesperadamente pela estrada desmedida em fora... 

 

Seguiam sem que entre eles se rastreassem breves laivos sequer de organização militar. Tendo, na maior parte, 
por adaptação, copiado os hábitos do sertanejo, nem os distinguia o uniforme desbotado e em tiras. E calçando 
alpercatas duras; vestindo camisas de algodão; sem bonés ou barretinas, cobertos de chapéus de couro, 
figuravam famílias de retirantes demandando em atropelo o litoral, fustigados pela seca. 

 

Algumas mulheres, amantes de soldados, vivandeiras-bruxas, de rosto escaveirado e envelhecido, completavam 
a ilusão. 

 

Oficiais ilustres, o general Savaget, os coronéis Teles e Néri e outros, volvendo feridos ou enfermos, passavam 
pelo meio desses bandos envoltos numa indiferença doentia. Não recebiam continência. Eram companheiros 


menos infelizes, nada mais. Passavam, desapareciam céleres, adiante, levantando ondas de pó. E recebiam pelas 
costas olhares ameaçadores, em que afuzilavam mal sopitados desapontamentos dos que lhes invejavam os 
cavalos ligeiros. 

 

Os mais ditosos alcançavam por fim, depois de quatro dias de marcha, na trifurcação das estradas do Rosário, 
Monte Santo e Calumbi, o sítio de Juá, outra casinha de taipas no recosto de uma lomba, pela qual descai o 
terreno sombreado de juazeiros altos, tendo na frente os sem-fins das chapadas. Julgavam-se salvos. Mais um dia 
de jornada levava-os ao Caldeirão Grande, a melhor fazenda daqueles lugares, vivenda quase senhoril, ereta 
sobre um cerro largo, tendo ao sopé as águas de um riacho represadas em açude farto. Aí num raio de poucos 
quilômetros a natureza é outra. Transfigura-se, movimentando-se em serranias pequenas orladas de vegetação 
mais viva, e os caminhantes forravam-se, durante algumas horas, à obsessão acabrunhadora dos plainos estéreis 
e das serras devastadas. 

 

Estavam à entrada do que se chamava —" a base de operações" da campanha. 

 

Ao outro dia prosseguiam para Monte Santo. E, depois de duas horas de caminho, reanimava-os o aspecto da 
pequena vila, percebida à distancia de uma légua. Repontava ridente no ondear dos tabuleiros amplos — 
casinhas reunidas derramando-se por um socalco suavemente inclinado às plantas da montanha abrupta, em cujo 
vértice a capela branca, arremessada na altura, destacando-se nítida, a projetar-se no firmamento azul, parecia 
enviar-lhes, de longe, um aceno carinhoso e amigo. 

 

Ao alcançarem-na, porém, volviam as desesperanças. Era ainda o deserto. O vilarejo morto, vazio, desprovido de 
tudo, mal os abrigava por um dia. Havia-o deixado a população, "caindo na caatinga", consoante o dizer dos 
matutos, fugindo, amedrontada, por igual do jagunço e do soldado. Uma guarnição exígua tomara conta da praça 
humílima e lá atravessava, inútil os dias, numa mandria mais insuportável que as marchas e as batalhas. 
Fantasiara-se em casarão acaçapado e escuro um hospital militar. Mas este era o pavor e a condenação suprema 
de todos os feridos e doentes. De sorte que o vilarejo, com as suas vielas tortas, condecoradas de nomes sonoros 
— rua Moreira César ! rua Capitão Salomão ! — era uma agravante na região ingrata; era o deserto metido entre 
paredes e afogado na trama de alguns becos imundos, cheios de detritos e da farragem repugnante dos batalhões 
que ali tinham acampado, mais deplorável que o deserto franco purificado pelos sóis e varrido pelos ventos. 

 

Os caminhantes ao chegarem, fugindo à parceria incômoda dos morcegos nas casas em abandono, acampavam 
na única praça quadrangular e grande, disputando a sombra do velho tamarineiro, ao lado do barracão da feira. 
No outro dia, cedo, cada um por sua conta, largava para Queimadas, renovando a travessia. Eram mais dezesseis 
léguas extenuantes, mais seis ou oito dias de amarguras, sob o cautério dos mormaços crestadores, adstritos a 
escalas inevitáveis à borda das cacimbas, por Quirinquinquá — duas vivendas tristes, circuitadas de mandacarus 
silentes, eretas sobre larga bossa de granito exposto; pelo Cansanção, lugarejo minúsculo — uma dúzia de casas 
cingidas de poeiras —, pela Serra-Branca, lembrando uma rancharia de tropeiros, de aspecto festivo, ensombrada 
de ouricurizeiros apendoados; pelo Jacurici; por todas as lagoas de águas esverdinhadas e suspeitas... 

 

Depredações 

 

E aquele caminho, então povoado, ermou-se. Os bandos revoltos rompiam-no espalhando estragos, como se 
foram restos de uma caravana de bárbaros claudicantes. Doentes e feridos, em magotes ameaçadores, de onde 
transudavam alaridos, imprecações e frases arrepiadoras de angústias e revoltas irrefreáveis, abeiravam-se das 
choupanas, apelando para a hospitalidade incondicional dos tabaréus. Fizeram a princípio pedidos coléricos, 
mais irritantes que intimações. Depois o assalto franco. Repruía-lhes o ânimo, escandalizando-lhes a vida 
tormentosa, o quadro tranqüilo daqueles lares pobres, onde deriva, quieta, a existência dos matutos. E 
varejavam-nos —impulsivamente, numa irreprimível hipnose de destruição— fazendo saltar as portas a coices 
d"armas, enquanto a família sertaneja, apavorada, fugia para os recessos das macegas. 

 

Incêndios 

 

Depois — era preciso uma diversão qualquer estupidamente dramática que lhes distraísse um momento as 
agonias fundas ! —tomando de tições em fogo chegavam-nos aos colmos de sapé. Irrompiam as flamas, num 
deflagrar instantâneo. Passavam os haustos rijos do nordeste e esparziam as fagulhas pela caatinga seca. Em 
breve, céleres arrebatadas pelo vento, enoveladas em rolos de fumo cindidos de labaredas, rolando pelas 
quebradas e transpondo-as, circulando todas as encostas, avassalando o topo dos morros, repentinamente acesos 
num relampaguear de crateras súbitas, crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas 
léguas em roda. 


 

Os foragidos, já agora salvos, suportavam os últimos transes do êxodo penosíssimo requintando nas tropelias, 
ampliando o círculo de ruínas da guerra e iam-se de abalada para o litoral —ao mesmo tempo miserandos e 
maus, inspirando a piedade e o ódio — rudemente vitimados, brutalmente vitimando .Chegavam a Queimadas 
esparsos e exaustos, alguns quase moribundos. Atulhavam os trens da estrada de ferro e desciam para a Bahia. 

 

Primeiras notícias certas 

 

Aguardava-os uma curiosidade ansiosa. 

 

Iam chegar, afinal, as primeiras vítimas da luta que empolgara R atenção do país inteiro. A multidão 
desbordando da estação terminal da linha férrea, na Calçada, derramando-se pelas ruas próximas até ao forte de 
Jequitaia, contemplava diariamente a passagem do heroísmo infeliz. E nunca lhe imaginou aspectos tão 
dramáticos. 

 

Sacudiam-na frêmitos de emoções nunca sentidas. 

 

Os feridos chegavam em estado miserando. Prolongavam pelas ruas da cidade aquela onda repulsiva de trapos e 
carcaças, que vinham rolando pelas veredas sertanejas o refluxo repugnante da campanha. 

 

Era um desfilar cruel. Oficiais e soldados, uniformizados pela miséria, vinham indistintos, revestidos do mesmo 
fardamento inclassificável: calças em fiapos, mal os reguardando como tangas; camisas estraçoadas; farrapos de 
dólmãs sobre os ombros; farrapos de capotes, em tiras, escorridos pelos torsos desfibrados, dando ao conjunto 
um traço de miséria trágica. Coxeando, arrastando-se penosamente, em cambaleios, titubeantes e imprestáveis, 
traziam no escavado das faces e na atitude dobrada um traço comovente da campanha. Esta desvendava pela 
primeira vez sua feição real, naqueles corpos combalidos, varados de balas e de espinhos, retalhados de golpes. E 
chegavam às centenas todos os dias: a 6 de agosto, 216 praças e 26 oficiais; a 8, 150; a 11, 400; a 12, 260; a 14, 
270; a 18, 53; e assim por diante. 

 

A população da capital recebia-os comovida. Como sempre sucede, o sentimento coletivo ampliara as 
impressões individuais. O grande número de pessoas, identificadas pela mesma comoção, fez-se o expoente do 
sentir de cada um e, vibrando uníssonas todas as almas, presas do mesmo contágio, e sugestionadas pelas 
mesmas imagens, todas as individualidades se apagaram no anonimato nobilitador da multidão piedosa que bem 
poucas vezes apareceu tão digna na História. A vasta cidade fez-se um grande lar. Organizaram-se em toda a 
linha comissões patrióticas, para agenciar donativos, que espontaneamente surgiram numerosos, constantes. No 
Arsenal de Guerra, na Faculdade Médica, nos hospitais, nos próprios conventos, se improvisaram enfermarias. 
Em cada uma dessas os gloriosos mutilados foram postos sob o patrocínio de algum nome ilustre: Esmarck, 
Claude Bernard, Duplay, Pasteur, jamais tiveram tão bela consagração no futuro. Avantajando-se à ação do 
governo, o povo constituíra-se tutor natural dos enfermos, amparando-os incondicionalmente, abrindo-lhes os 
lares, rodeando-os, animando-os, auxiliando-lhes os passos trôpegos nas ruas. Nos dias facultados às visitas, 
invadia os hospitais, em massa, em silêncio — religiosamente. Abeiravam-se então os visitantes dos leitos como 
se neles jazessem velhos conhecidos; tratavam com os doentes menos graves sobre as provações sofridas e 
lances arriscados ocorridos; e, ao deixarem aquelas trágicas exposições da guerra feitas de traumatismos e 
moléstias horríveis, levavam, afinal, um juízo claro sobre a luta mais brutal dos nossos tempos. Mas, por um 
contraste inexplicável, sobre esta comiseração profunda e geral pairava, intenso, um entusiasmo vibrante. Os 
mártires tinham ovações de triunfadores. E estas despontavam ao acaso, sem combinações prévias, rápidas, 
espontâneas, incisivas, aparecendo e desaparecendo em quartos de hora, num desencadear intermitente de 
movimentos impulsivos. Os dias sucediam-se agitados numa larga movimentação de multidões ruidosas, 
turbilhonando nas ruas e nas praças, no meio de expansões discordes, numa alacridade singular rorejada de 
prantos, por meio da qual se fazia a comemoração sombria do heroísmo. Os feridos eram uma revelação 
dolorosíssima, certo, mas de algum modo alentadora. Naquelas sevícias retratava-se a energia de uma raça. 
Aqueles homens que chegavam dilacerados pelas garras do jagunço e pelos espinhos da terra eram o vigor de um 
povo posto à prova do ferro, à prova do fogo e à prova da fome. Abaladas pelo cataclismo da guerra, as camadas 
superficiais de uma nacionalidade cindiam-se, pondo à luz os seus elementos profundos naqueles titãs resignados 
e estóicos. Sobre tudo isto um pensamento diverso, não boquejado sequer mas por igual dominador, latente em 
todos os espíritos: a admiração pela ousadia dos sertanejos incultos, homens da mesma raça, de encontro aos 
quais se despedaçavam daquele modo batalhões inteiros . . . 

 

E um longo frêmito tonificador vibrava nas almas. Faziam-se romarias ao quartel da Palma, onde estava ferido o 
coronel Carlos Teles; à Jequitaia, onde convalescia o general Savaget; e quando este último pode arriscar alguns 


passos nas ruas, paralisou-se inteiramente toda a azáfama comercial da cidade baixa, em ovação espontânea e 
imensa, que, irradiando de repente e congregando a população em torno do heróico chefe da 2.ª coluna, 
transmudou um dia comum de trabalho em dia de festa nacional. 

 

Baixas 

 

Sobre esta agitação chegavam diuturnamente pormenores que a acirravam. Sabia-se, por fim, positivamente, com 
rigor aritmético, a extensão do desastre. Era surpreendente. 

 

De 25 de junho, em que trocara os primeiros tiros com o inimigo, até 10 de agosto, tivera a expedição 2.049 
baixas. 

 

Detalhavam-nas os mapas oficiais. 

 

No total entrava a 1.ª coluna com 1.171 homens e a 2.ª com 878. Discriminadamente eram estes os algarismos: 

 

"1ª coluna —Artilharia: 9 oficiais e 47 praças feridas; 2 oficiais e 12 praças mortas; ala de cavalaria: 4 oficiais e 
46 praças feridas; 30 oficiais e 16 praças mortas; engenheiros: 1 oficial e 8 praças feridas; 1 praça morta; corpos 
de polícia: 8 oficiais e 46 praças feridas; 8 oficiais e 24 praças mortas; 5.° Batalhão de Infantaria: 4 oficiais e 66 
praças feridas; 1 oficial e 25 praças mortas; 7.°: 8 oficiais e 95 praças feridas; 5 oficiais e 52 praças mortas; 9.°: 6 
oficiais e 59 praças feridas; 2 oficiais e 22 praças mortas; 14.°: 8 oficiais e 119 praças feridas; 5 oficiais e 42 
praças mortas; 15.°: 5 oficiais e 30 praças feridas; 10 praças mortas; 16.°: 5 oficiais e 24 praças feridas; 10 
praças mortas; 25.°: 9 oficiais e 134 praças feridas; 3 oficiais e 55 praças mortas; 27.°: 6 oficiais e 45 praças 
feridas; 24 praças mortas; 30.°: 10 oficiais e 120 praças feridas; 4 oficiais e 35 praças mortas. 

 

2.ª coluna — 1 general ferido; artilharia: 1 oficial morto; 12.° de Infantaria: 6 oficiais e 128 praças feridas; 1 
oficial e 50 praças mortas; 26.°: 6 oficiais e 36 praças feridas; 2 oficiais e 22 praças mortas; 31.°: 7 oficiais e 99 
praças feridas; 4 oficiais e 48 praças mortas; 32.°: 6 oficiais e 62 praças feridas; 4 oficiais e 31 praças mortas; 
32.°: 10 oficiais e 65 praças feridas; 1 oficial e 15 praças mortas; 34.°: 4 oficiais e 18 praças feridas; 7 praças 
mortas; 35.°: 4 oficiais e 91 praças feridas; 1 oficial e 22 praças mortas; 40.°: 9 oficiais e 75 praças feridas; 2 
oficiais e 30 praças mortas." 

 

E a hecatombe progredia com uma média diária de oito homens fora de combate. Por outro lado, os adversários 
pareciam dispor de extraordinários recursos. 

 

Versões e lendas 

 

Transfiguravam-nos, além disto, numa distensão exagerada, as imaginações superexcitadas. Recente mensagem 
do Senado Federal, onde batera também a onda da comoção geral, tendo requerido, esteada em veementes 
denúncias, esclarecimentos sobre o terem sido despachadas em Buenos Aires com destino aos portos de Santos e 
Bahia armas, que tudo delatava se destinarem aos "conselheiristas", tal incidente, em que incidiam todas as 
fantasias, assumiu, ampliado pela nevrose comum, visos de realidade. 

 

Completavam-no, justificando e do mesmo passo refletindo o modo de pensar das repúblicas americanas, todas 
as notícias transmitidas pelos seus órgãos mais sérios. O de mais peso talvez na América do Sul, depois de se 
referir aos curiosos sucessos da campanha, aditava-lhes pormenores de um simbolismo estranho e pavoroso. 
"Trata-se de duas missivas que, com intervalo de dois dias recebemos da " Seccion Buenos-Aires de la unión 
internacional de los amigos del imperio del Brasil" comunicando-nos, por ordem da seção executiva em Nova 
York, que a referida União tem ainda uma reserva de não menos 15 mil homens — só no Estado da Bahia — 
para reforçar em caso de necessidade o exército de fanáticos; além de 100 mil em vários Estados do Norte do 
Brasil e mais 67 mil em certos pontos dos Estados Unidos da América do Norte, prontos a sair em qualquer 
momento para as costas do ex-Império, todos muito bem armados e preparados para a guerra. Também temos, 
ajuntam as missivas, armas dos mais modernos sistemas, munições e dinheiro em abundância." 

 

De uma redação, caligrafia e ortografia corretas, estas enigmáticas comunicações trazem à sua frente a mesma 
inscrição que as subscreve, escrita com tinta que faz recordar a violácea cor dos mortos, destacando-se as 
maiúsculas em vermelho, na vermelha cor do sangue. 

 


Ante o quadro formidável de homens e armas que nos oferecem os misteriosos amigos do Império, de forma não 
menos misteriosa, não sabemos se pensar em uma daquelas terríveis associações que forjam nas trevas seus 
planos de destruição ou em alguns cavalheiros dados à mistificação do próximo. 

 

Entretanto, pelo que possa haver no fundo de tudo isto, é que fazemos constar e acusamos recebimento das 
repetidas missivas. 

 

Acreditava-se. A quarta expedição ilhara-se de todo, no território conflagrado, a pique de uma catástrofe. 
Diziam-no insuspeitos informes. Só do município de Itapicuru, garantia-se, haviam partido 3 mil fanáticos para 
Canudos, conduzidos por um padre que, aberrando dos princípios ortodoxos, lá se ia comungar das tolices 
abstrusas do cismático. Pela Barroca passavam centenares de quadrilheiros armados, seguindo o mesmo rumo. 
Citavam-se nomes de novos cabecilhas. Apelidos funambulescos, como o dos chouans: Pedro, o Invisível, José 
Gamo, Caco de Ouro, e outros. 

 

Agravando estas conjeturas vinham notícias verdadeiras. Os sertanejos dispartiam pelo sertão em algaras 
atrevidas: atacaram o termo de Mirandela, guiados por Antônio Fogueteiro; investiram, tomaram e saquearam a 
vila de Santana do Brejo; irradiavam para toda a banda. Alargavam o âmbito da campanha, revelando mesmo 
lineamentos firmes de estratégia segura. Além do arraial duas novas posições de primeira ordem e defensáveis 
estavam guarnecidas: as vertentes caóticas do Caipã e as cordas de cerros em torno da Várzea da Ema. 
Desbordando de Canudos, a insurreição espraiava-se desta maneira pelos lados de um triângulo enorme, em que 
podiam inscrever-se 50 mil baionetas. Alastrava-se. 

 

Os comboios que partiam de Monte Santo, ainda que reforçados, não por batalhões mas por brigadas, tinham 
viagem acidentada, tolhida de constantes assaltos. Atingido o Aracati, era indispensável que viessem de Canudos dois ou três batalhões a protegê-los. O sinistro trecho de estrada entre o rancho do Vigário e as Baixas, tornara-se o pavor dos mais provados valentes. Era o lugar clássico do estouro das boiadas e da dispersão dos cargueiros, 
espantados pelos tiroteios vivos e atropelando pelotões inteiros no recuar precípite da fuga. 

E nesses recontros sucessivos, adrede feitos à pertubação das marchas, começara-se a lobrigar, por fim, uma 
variante do jagunço, auxiliando-o, indiretamente, com outros intuitos. Distinguiam-se entre os claros das 
galhadas rarefeitas, passando, céleres, no vertiginoso pervagar das guerrilhas, brilhos de botões de fardas, loivos rubros de calças carmesins... 

O desertor faminto atacava os antigos companheiros. 

Era um lastimável sintoma, completando com um outro caráter a campanha, cuja feição dia a dia se agravava 
num episodear extremado dos sucessos mais triviais. 

Os soldados enfermos, em perene contato com o povo, que os conversava, tinham-se, ademais, constituído rudes 
cronistas dos acontecimentos e confirmavam-nos mercê da forma imaginosa por que a própria ingenuidade lhes 
ditava os casos, verídicos na essência, mas deformados de exageros, que narravam. Urdiam-se estranhos 
episódios. O jagunço começou a aparecer como um ente à parte, teratológico e monstruoso, meio homem e meio 
trasgo; violando as leis biológicas, no estadear resistências inconceptíveis; arrojando-se, nunca visto, intangível, 
sobre o adversário; deslizando, invisível, pela caatinga, como as cobras; resvalando ou tombando pelos 
despenhadeiros fundos, como espectro; mais leve que a espingarda que arrastava; e magro, seco, fantástico, 
diluindo-se em duende, pesando menos que uma criança, tendo a pele bronzeada colada sobre os ossos, áspera 
como a epiderme das múmias . . . 

 

A imaginação popular, daí por diante, delirava na ebriez dos casos estupendos, apontoados de fantasias. 

 

Alguns eram rápidos, espelhando incisivamente a energia inamoldável daqueles caçadores de exércitos. 

 

"Viva o Bom Jesus !" 

 

Numa das refregas subseqüentes ao assalto, ficara prisioneiro um curiboca ainda moço que a todas as perguntas 
respondia automaticamente, com indiferença altiva: 

 

"Sei não !" 

 

Perguntaram-lhe por fim como queria morrer. 


 

"De tiro !" 

 

"Pois há de ser a faca !" contraveio, terrivelmente, o soldado. 

 

Assim foi. E; quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, 
escamando, à passagem do último grito gargarejando na boca ensangüentada: 

 

"Viva o Bom Jesus !. . . 

 

Um lance épico 

 

Outros tinham delineamentos épicos: 

 

No dia 1.° de julho, o filho mais velho de Joaquim Macambira, rapaz de dezoito anos, abeirou-se do ardiloso 
cabecilha: 

 

"Pai ! quero escangalhar a matadeira!" 

 

O astuto guerrilheiro, espécie grosseira de Imanus, acobreado e bronco, encarou-o impassível : 

 

"Consulta o Conselheiro — e vai."" 

 

O valente abalou, seguido de onze companheiros dispostos. Transpuseram o Vaza-Barris, cortado em cacimbas. 
Investiram com a larga encosta ondulante da Favela. Embrenharam-se, num deslizar flexuoso de cobras, pelas 
caatingas ralas. 

 

Ia em meio o dia. O Sol irradiava a pino sobre a terra, jorrando sem fazer sombras, até ao fundo dos grotões mais 
fundos, os raios verticais e ardentes... 

 

Naquelas paragens o meio-dia e mais silencioso e lúgubre que a meia-noite. Transverberando nas rochas 
expostas, refletindo nas chapadas nuas, repelido pelo solo recrestado e duro, todo o calor emitido para a terra 
reflui, tresdobrado, para o espaço, nas colunas ascensionais dos ares irrespiráveis e candentes. A natureza 
queda-se, enervada em quietude absoluta. Não sopra a viração mais leve. Não bate uma asa nos ares, cuja 
transparência junto ao chão se perturba em ondulações rápidas e ferventes. Repousa, estivando, a fauna das 
caatingas. Pendem, murchos os ramos das árvores estonadas. 

 

O exército descansava no alto da montanha, abatido pela canícula. Deitados a esmo pelas encostas, bonés caídos 
sobre o rosto para os resguardar, dormitando ou pensando nos lares distantes, as praças aproveitavam alguns 
momentos de tréguas, refazendo forças para a afanosa lide. Em frente, derramado sobre colinas — minúsculas 
casinhas em desordem, sem ruas e sem praças, acervo incoerente de casebres — aparecia Canudos, deserto e 
mudo, como uma tapera antiga. 

 

Todo o exército repousava... 

 

Nisto despontam, cautos, emergindo à ourela do matagal rasteiro e trançado, de arbúsculos em esgalhos, na 
clareira, no alto, onde estaciona a artilharia, doze rostos inquietos, olhares felinos, rápidos, percorrendo todos os 
pontos. Doze rostos apenas de homens ainda jacentes, de rastro, nos tufos das bromélias. Surgem lentamente. 
Ninguém os vê; ninguém os pode ver. Dão-lhes as costas com indiferença soberana vinte batalhões tranqüilos. 
Adiante divisam a presa cobiçada. Como um animal fantástico, prestes a um bote repentino, o canhão Withworth, 
a "matadeira", empina-se no reparo sólido. Volta para Belo Monte a boca truculenta e rugidora que tantas 
granadas revessou já sobre as igrejas sacrossantas. Caem-lhe sobre o dorso luzidio e negro os raios do sol, 
ajaezando-a de lampejos. Os fanáticos contemplam-na algum tempo. Aprumam-se depois à borda da clareira. 
Arrojam-se sobre o monstro. Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no. Um traz uma alavanca rígida. Ergue-a num 
gesto ameaçador e rápido... 

 

E a pancada bate, estrídula e alta, retinindo... 

 


E um brado de alarma estala na mudez universal das coisas; multiplica-se nas quebradas; enche o espaço todo; e 
detona em ecos que atroando os vales ressaltam pelos morros numa vibração triunfal e estrugidora, sacudindo 
num repelão violento o acampamento inteiro... 

 

Formaram-se em acelerado as divisões. Num segundo os assaltantes se vêem num círculo de espingardas e 
sabres, sob uma irradiação de golpes e de tiros. Um apenas se salva — chamuscado, baleado, golpeado — 
correndo, saltando, rolando, 

impalpável entre os soldados tontos, varando redes de balas, transpondo cercas dilaceradoras de baionetas, 
caindo em cheio nas macegas, rompendo-as vertiginosamente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre 
abismos, pelos pendores abruptos da montanha... 

 

Estes e outros casos — exagerado romancear dos mais triviais sucessos — dando à campanha um tom 
impressionante e lendário, abalavam a opinião pública da velha capital e por fim a de todo o país … 


Capítulo VII 

 

Outros reforços 

 

Era urgente uma intervenção mais enérgica do governo. Impunham-na, no mesmo passo, as apreensões 
crescentes, as ultimas peripécias da luta e a própria insciência sobre o curso real das operações. As opiniões 
como sempre disparatavam, discordes. Para a maioria os rebeldes contavam com elementos sérios. Era evidente. 
Não se compreendia que batidos em todas as ordens do dia — heroicamente escritas - eles, tendo ainda franca a 
fuga para os sertões de S. Francisco, onde não havia descobri-los, esperassem, pertinazes, no arraial, que se lhes 
fechassem, pelo complemento do assédio, as derradeiras saídas. Deduziam-se, lógicos, corolários graves. À parte 
a hipótese do sobre-humano devotamento, fazendo-os sucumbir em massa sob os escombros dos templos 
consagrados, imaginavam-se-lhes traças guerreiras formidáveis embaralhando de todo a estratégia regular. O 
número, que se dizia diminuto, dos que permaneciam em Canudos arrostando tudo, era, certo, um engodo 
armado a arrastar para ali exclusivamente o exército e iludi-lo em combates estéreis, até que se congregassem, 
noutros lugares, fortes contingentes para o assalto final, por toda a banda, sobre os sitiantes, pondo-os entre dois 
fogos. 

 

Contravinham, porém, juízes mais animadores. O coronel Carlos Teles, em carta dirigida à imprensa, afirmou de 
maneira a clara o número reduzido de jagunços — duzentos homens válidos, talvez sem recursos nenhuns — , 
abastecidos e aparelhados apenas do que haviam tomado às anteriores expedições. O otimismo, de fato 
exageradíssimo, do valente, porém, afogou-se na incredulidade geral. Aniilavam-no todos os fatos e sobretudo 
aquelas irrupções diárias de feridos, abalando num crescendo a comoção nacional. 

 

A Brigada Girard 

 

Sobrevieram outros por igual desastrosos. Atendendo aos primeiros reclamos do general Artur Oscar, o governo 
tinha prontamente organizado uma brigada auxiliar que, ao revés das demais, não entrava na luta distinta por um 
número seco e inexpressivo. Tinha, segundo louvável praxe, sem curso entre nós, mercê da qual se amplia sobre 
os comandados a glória do comandante, um nome — Brigada Girard. 

 

Dirigia-a o general Miguel Maria Girard e formavam-na três corpos, saídos da guarnição da capital federal: o 
22.°, do coronel Bento Tomás Gonçalves, o 24.°, do tenente Rafael Tobias, e o 38.°, do coronel Filomeno José 
da Cunha. Eram 1.042 praças e 68 oficiais, perfeitamente armados e levando para a luta insaciável o repasto 
esplêndido de 850 mil cartuchos Mauser. 

 

Mas, por um conjunto de circunstâncias, que fora longo miudear, ao invés de auxiliar esta tropa tornou-se um 
agente debilitante. Abalou do Rio de Janeiro comandada pelo chefe que lhe dera o nome e foi com ele até 
Queimadas, onde se reuniu a 31 de julho. Partiu de Queimadas a 3 de agosto, dirigida por um coronel, até Monte 
Santo. Largou de Monte Santo para Canudos, a 10 de agosto, sob o comando de um major. Deixara na Bahia um 
coronel e alguns oficiais — doentes. Deixara em Queimadas um general, um tenente-coronel e mais alguns 
oficiais — doentes. Deixara em Monte Santo um coronel e mais alguns oficiais — doentes... 

 

Heroísmo estranho 

 

Decompunha-se pelas estradas. Partiam-lhe do seio pedidos de reforma mais alarmantes do que aniquilamentos 
de brigadas. Salteara-a um beribéri excepcional exigindo não já a perícia de provectos médicos senão o exame de 
psicólogos argutos. Porque afinal o medo teve ali os seus grandes heróis, revelando a coragem estupenda de 
dizer a um país inteiro que eram cobardes. 

 

Ao endireitar de Queimadas para o sertão aquela força encontrara as primeiras turmas de feridos e fora sulcada 
pelo assombro da guerra. Passaram-lhe pelo meio do acampamento, em Contendas, o general Savaget, o coronel 
Néri, o major Cunha Matos, o capitão Chachá Pereira e outros oficiais. Recebeu-os ainda entusiasticamente: 
oficiais e praças enfileirados às margens do caminho, saudando-os. Mas depois amorteceu-se-lhe o fervor. 
Apenas com três dias de viagem, começou de sofrer privações, vendo diminuídos os víveres que levava e 
repartia com as sucessivas turmas de feridos encontrados, chegando exausta e esmorecida a Monte Santo. 

 

Em viagem para Canudos 

 

Tomou para Canudos onde era ansiosamente esperada, a 10 de agosto, despida inteiramente do esplêndido 
aparato hierárquico com que nascera. Dirigia-a o fiscal do 24.°, Henrique de Magalhães, estando os corpos 


comandados pelo major Lídio Porto e capitães Afonso de Oliveira e Tito Escobar. A marcha foi difícil e morosa. 
Desde Queimadas lutava-se com dificuldades sérias de transporte. Os cargueiros, animais imprestáveis, velhos e 
cansados, muares refugados das carroças da Bahia e tropeiros improvisados — rengueavam, tropeçando pelos 
caminhos, imobilizando os batalhões, e remorando a avançada. 

 

Chegou desse modo a Aracati, onde lhe foi entregue um comboio que devia guarnecer até Canudos. 

 

Neste comenos dizimava-a a varíola. Destacavam-se das suas fileiras, diariamente, dois ou três enfermos, 
volvendo para o hospital, em Monte Santo. Outros, estropiados, naquela repentina transição das ruas calçadas da 
capital federal para aquelas ásperas veredas, distanciavam-se, perdidos à retaguarda, confundindo-se com os 
feridos, que vinham em direção oposta. 

 

De sorte que ao passar em Juetê, no dia 14 de agosto, lhe foi providencial o encontro com o 15.° Batalhão de 
Infantaria, já endurado na luta, e que viera de Canudos. Porque no dia seguinte, depois de decampar das Baixas, 
onde parara na véspera para aguardar a vinda de grande número de praças retardatárias, foi no rancho do Vigário 
violentamente atacada. Os jagunços aferraram-na de flanco, pela direita, do alto de um cerro dominante, e quase 
de frente, de uma trincheira marginal. Abrangeram-na toda uma descarga única. Tombaram mortos na guarda da 
frente um alferes do 24.° e, na extrema retaguarda, outro, do 38.°. Baquearam algumas praças nas fileiras 
intermédias. Alguns pelotões se embaralharam estonteadamente surpresos, bisonhos ainda ante os guerrilheiros 
ferozes. A maioria disparou desesperadamente as armas. Estrugiram cornetas, vozes trêmulas, altas, 
entrecortadas, desencontradas, de comando. Dispararam, espavoridos, os cargueiros. A boiada estourou, 
mergulhando na caatinga... 

 

O 15.° Batalhão tomando a vanguarda guiou os lutadores vacilantes. Não se repeliu o inimigo. A retaguarda ao 
passar pelo mesmo ponto foi, por sua vez, alvejada. 

 

Depois deste revés, porque o foi, bastando dizer-se que de 102 bois que comboiava restaram apenas onze, foi a 
brigada novamente investida no Angico. Deu uma carga de baionetas platônica em que não perdeu um soldado, 
entrando afinal em Canudos, onde os enrijados campeadores, que ali estavam sob a disciplina tirânica dos 
tiroteios diuturnos, a acolheram com a denominação de "Mimosa", nome, que, entretanto, mais tarde, os bravos 
oficiais fizeram que se apagasse, a exemplo do primeiro título. 


Capítulo VIII 

 

Novos reforços 

 

Este ataque chegou à Bahia com as proporções de batalha perdida, pondo mais um solavanco no desequilíbrio 
geral, mais uma dúzia de boatos no turbilhonar das conjeturas; e o governo começou a agir com a presteza 
requerida pela situação. Reconhecida a ineficácia dos reforços recém-enviados, cuidou de formar uma nova 
divisão, arrebanhando os últimos batalhões dispersos pelos Estados, capazes de mobilização rápida. E, para 
pulsear de perto a crise, resolveu enviar para a base de operações um de seus membros, o Secretário de Estado 
dos Negócios da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt. 

 

Este seguiu em agosto para a Bahia, ao tempo que de todos os ângulos do país abalavam novos lutadores. O 
movimento armado repentinamente se generalizava, assumindo a forma de um levantamento em massa. 

 

As tropas confluíam do extremo norte e do extremo sul, acrescidas dos corpos policiais de S. Paulo, Pará e 
Amazonas. Nessa convergência para o seio da antiga metrópole, o paulista, forma delida do bandeirante 
aventuroso; o rio-grandense, cavaleiro e bravo; e o curiboca nortista, resistente como poucos — índoles díspares, 
homens de opostos climas, contrastando nos usos e tendências étnicas, do mestiço escuro ao caboclo trigueiro e 
ao branco, ali se agremiavam sob o liame de uma aspiração uniforme. A antiga capital agasalhava-os no recinto 
de seus velhos baluartes, rodeando num mesmo afago carinhoso e ardente a imensa prole havia três séculos 
erradia. Depois de longamente dispersos os vários fatores da nossa raça volviam repentinamente ao ponto de 
onde tinham partido, tendendo para um entrelaçamento belíssimo. A Bahia ataviara-se para os receber . 
Transfigurou-a aquele fluxo da campanha — mártires que chegavam, combatentes que seguiam — e, partida a 
habitual apatia, revestiu a feição guerreira do passado. As inúteis fortalezas, que se lhe intercalam, decaídas à 
parceria burguesa das casas, no alinhamento das ruas, prontamente reparadas, cortadas as árvores que nasciam 
nas fendas das suas muralhas, ressurgiam à luz, recordando as quadras em que rugiam naquelas ameias as longas 
colubrinas de bronze. 

 

Nelas aquartelavam os contingentes recém-vindos: o 1.° Batalhão Policial de S. Paulo, com 458 praças e 21 
oficiais, comandado pelo tenente-coronel Joaquim Elesbão dos Reis; os 29.º, 39.°, 37.°, 28.º, e 4.°, dirigidos pelo 
coronel João César de Sampaio, tenentes-coronéis José da Cruz, Firmino Lopes Rego e Antônio Bernardo de 
Figueiredo e major Frederico Mara, com efetivos sucessivos de 240 praças e 27 oficiais, 250 praças e 40 oficiais, 
332 praças e 51 oficiais, 250 praças e 11 oficiais, além de 36 alferes adidos, e o 4.° com 219 praças e 11 alferes 
que eram toda a oficialidade, não tendo nem capitães nem tenentes. Por fim dois corpos: o Regimento Policial do 
Pará, somando 640 combatentes, comandados pelo coronel José Sotero de Meneses, e um da polícia do 
Amazonas, sob o comando do tenente Cândido José Mariano, com 328 soldados. 

 

Estes reforços, que montavam a 2.914 homens incluídos perto de trezentos oficiais, foram repartidos em duas 
brigadas, a de linha, ao mando do coronel Sampaio e os da polícia — excluída a de S. Paulo, que seguira isolada 
na frente, sob o do coronel Sotero — constituindo uma divisão que foi entregue ao general de Brigada Carlos 
Eugênio de Andrade Guimarães. 

 

Todo o mês de agosto gastou-se em mobilizá-los. Chegavam destacadamente à Bahia; municiavam-se e 
embarcavam para Queimadas e dali para Monte Santo, onde deviam concentrar-se nos primeiros dias de 
setembro. 

 

Os batalhões de linha, além de desfalcados, como o indicam os números acima, reduzidos quase a duas 
companhias, vinham desprovidos de tudo, sem os mais simples apetrechos bélicos — à parte as espingardas 
velhas e o fardamento ruço, que haviam servido na recente campanha federalista do Sul. 

 

O marechal Bittencourt 

 

O marechal Carlos Machado de Bittencourt, principal árbitro da situação, desenvolveu, então, atividade notável. 

 

Vinha de molde para todas as dificuldades do momento. 

 

Era um homem frio, eivado de um ceticismo tranqüilo e inofensivo. Na sua simplicidade perfeitamente plebéia 
se amorteciam todas as expansões generosas. Militar às direitas, seria capaz — e demonstrou-o mais tarde 
ultimando tragicamente a vida — de se abalançar aos maiores riscos. Mas friamente, equilibradamente, 
encarrilhado nas linhas inextensíveis do dever. Não era um bravo e não era um pusilânime. 


 

Ninguém podia compreendê-lo arrebatado num lance de heroísmo. Ninguém podia imaginá-lo subtraindo-se 
tortuosamente a uma conjuntura perigosa. Sem ser uma organização militar completa e inteiriça, afeiçoara-se 
todavia ao automatismo típico dessas máquinas de músculos e nervos feitas para agirem mecanicamente à 
pressão inflexível das leis. 

 

Mas isto menos por educação disciplinar e sólida que por temperamento, inerte, movendo-se passivo, 
comodamente endentado na entrosagem complexa das portarias e dos regulamentos. Fora disto era um nulo. 
Tinha o fetichismo das determinações escritas. Não as interpretava, não as criticava: cumpria-as. Boas ou 
péssimas, absurdas, extravagantes, anacrônicas, estúpidas ou úteis, fecundas, generosas e dignas, tornavam-no 
proteiforme, espelhando-as — bom ou detestável, extravagante ou generoso e digno. Estava escrito. Por isto, 
todas as vezes que os abalos políticos lhas baralhavam, se retraía cautelosamente ao olvido. 

 

O marechal Floriano Peixoto — profundo conhecedor dos homens do seu tempo — nos períodos críticos de seu 
governo, em que a índole pessoal de adeptos ou adversários influía, deixou-o sempre, sistematicamente, de parte. 
Não o chamou; não o afastou; não o prendeu. Era-lhe por igual desvalioso como adversário ou partidário. Sabia 
que o homem, cuja carreira se desatava numa linha reta, seca, inexpressiva e intorcível, não daria um passo a 
favor ou contra no travamento dos estados de sítio. 

 

A República fora-lhe acidente inesperado no fim da vida. 

 

Não a amou nunca. Sabem-no quantos com ele lidaram. Foi-lhe sempre novidade irritante, não porque mudasse 
os destinos de um povo senão porque alterava umas tantas ordenanças e uns tantos decretos, e umas tantas 
fórmulas, velhos preceitos que sabia de cor e salteado. 

 

Ao seguir para a Bahia desenfluíra todos os entusiasmos. Quem dele se abeirasse, buscando alentos de uma 
intuição feliz ou um traço varonil, sulcando a situação emocionante e grave, que até lá o arrastava, topava, 
surpreso, a esterilidade de uns conceitos triviais, longas frivolidades cruelmente enfadonhas sobre paradas de 
tropas, intermináveis minúcias sobre distribuição de gêneros e remontas de cavalhadas — como se este mundo 
todo fosse uma imensa Casa da Ordem, e a História uma variante da escrituração dos sargentos. 

 

Saltou naquela capital quando ia em sua plenitude o fervor patriótico de todas as classes; e de algum modo o 
amorteceu. Manifestações ruidosas, versos flamívomos, oradores explosivos passaram-lhe por diante, 
estrondaram-lhe em torno, deflagraram-lhe aos ouvidos, num estrepitar de palmas e aplausos. Ouviu-os 
indiferente e contrafeito. Não sabia respondê-las. Tinha a frase emperrada e pobre. Além disso, tudo quanto saía 
do passo ordinário da vida não o comovia, desorientava-o, contrariava-o. 

 

Recém-vindos da luta, requerendo uma transferência ou uma licença, nada adiantavam se, dispensando a 
formalidade de um atestado médico, lhe pusessem à vista apenas o rombo de um tiro de trabuco ou um gilvaz 
sangüíneo ou um rosto cadavérico de esmaleitado. Eram coisas banais, do ofício. 

 

Quadro lancinante 

 

Certa vez essa insensibilidade lastimável calou profundamente. Foi numa visita a um dos hospitais. 

 

O quadro do amplo salão era impressionador... 

 

Imaginem-se dois extensos renques de leitos alvadios, e sobre eles — em todas as atitudes, rígidos debaixo dos 
lençóis escorridos como mortalhas; de bruços, ou acaroados com os travesseiros, em mudos paroxismos de 
dores; sentados, ou acurvados, ou estorcendo-se em gemidos — quatrocentos baleados ! Cabeças envoltas em 
tiras sanguinolentas; braços partidos, em tipóias; pernas encanadas, em talas, rigidamente estendidas; pés 
disformes pela inchação, atravessados de espinhos; peitos broqueados à bala ou sarjados à faca; todos os 
traumatismos e todas as misérias... 

 

A comitiva que encalçava o ministro — autoridades estaduais e militares, jornalistas, homens de toda a condição 
— ali entrou silenciosamente, tolhida de assombros. 

 

Começou a lúgubre visita. O marechal aproximava-se de um ou outro leito, lendo maquinalmente a papeleta 
pendida à cabeceira; e seguia. 

 


Mas teve que estacar um momento. Surgira-lhe em frente, emergindo dos cobertores, a face abatida de um velho, 
um cabo de esquadra, veterano de 35 anos de fileira. Uma vida batida a coice de armas desde os pântanos do 
Paraguai às caatingas de Canudos... E no rosto macilento do infeliz resplandecia um belo riso jovial e forte. 
Reconhecera o ministro do qual fora ordenança nos bons tempos de moço, em que o acompanhara na batalha, 
nos acantonamentos, nas longas marchas fatigantes. E dizia-o, agitado, voz sacudida e rouca, numa alegria 
dolorosíssima, num delírio de frases rudes e sinceras — olhos refulgentes de alacridade e de febre, e forçando 
por erguer-se, abordoando o tronco esmirrado aos braços finos e trêmulos; entreaberta a camisa de algodão 
deixando ver, na clavícula, a nódoa de uma cicatriz antiga... 

 

Era empolgante a cena. Resfolegaram surdamente, opressos, todos os peitos. Empanaram-se todas as vistas, de 
lágrimas... e o marechal Bittencourt prosseguiu, tranqüilamente, continuando a leitura maquinal das papeletas. 

 

É que tudo aquilo — fortes emoções ou quadros lancinantes — estava fora do programa. Não o distraía. 

 

Era realmente o homem feito para aquela emergência. O governo não depararia quem melhor lhe transmitisse a 
ação, intacta, rompendo retilineamente no tumulto da crise. 

 

Nesse abnegar-se a si próprio, abdicando todas as regalias da própria posição, fez-se, na lídima significação do 
termo, o Quartel-Mestre-General de uma campanha em que era chefe supremo um seu inferior hierárquico. 

 

É que um bom senso sólido, blindado da frieza que o libertava de quaisquer perturbações, fizera que ele 
apanhasse, de um lance, as exigências reais da luta. Destas — compreendeu-o logo — a menos valiosa era, de 
certo, a acumulação de um maior número de combatentes no conflito. Estes, penetrando a região conflagrada, 
agravariam antes o estado dos companheiros, que pretendessem auxiliar, se lá fossem compartir as mesmas 
provações, reduzir-lhes os recursos escassos no concorrerem à mesma penúria. O que era preciso combater a 
todo o transe, e vencer, não era o jagunço, era o deserto. Fazia-se imprescindível dar à campanha o que ela ainda 
não tivera: uma linha e uma base de operações. Terminava-se por onde devia começar-se. E foi essa a empresa 
impulsionada com sucesso pelo ministro. Atraído durante toda a estadia na Bahia por sem número de questões de 
pormenores — equipamento dos batalhões que chegavam e acomodações para as turmas incessantes de feridos 
— o seu espírito superpunha-lhes sempre aquele objetivo capital, condição preponderante, e talvez única, do 
sério problema a resolver. Venceu-o, por fim, num destruir tenaz de numerosas dificuldades. 

 

Nos últimos dias de agosto organizara-se, afinal, definitivamente, um corpo regular de comboios, atravessando 
continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo, com breves intervalos de dias, o exército em operações a 
Monte Santo. 

 

Este resultado pressagiava o desenlace próximo da contenda. Porque desde o começo, revelam-no as expedições 
antecedentes, as causas do insucesso em grande parte repousavam no insulamento em que cegamente se 
encravaram os expedicionários perdendo-se na região estéril, isolando-se diante 

do inimigo em espetaculosas diligências policiais, onde não havia rastrear-se os mínimos preceitos da estratégia. 

 

O marechal Bittencourt fez, pelo menos, isto: transmudou um conflito enorme em campanha regular. A que até 
então se fizera traduzira-se num prodigalizar inútil da bravura, mas o heroísmo e abnegação mais rara não a 
impulsionaram. Cristalizara num assédio platônico e dúbio, recortado de fuzilarias inúteis, em que se jogava 
nobre e estupidamente a vida. E este prolongar-se-ia, indeterminado, até que o arraial sinistro absorvesse, um a 
um, os que o acometiam. Em tal caso a simples substituição dos que ali tombavam — oito a dez por dia — por 
outros, tornava-se um círculo vicioso crudelíssimo. Além disto, numerosos assaltantes eram uma agravante. 
Circulariam todo o povoado, trancar-lhe-iam todas as saídas, mas teriam, passados poucos dias, latentes em roda, 
as linhas do outro cerco intangível e formidável — o deserto recretado, das caatingas, pondo-os nas aperturas 
crescentes e inelutáveis da fome. 

 

Previu-o o marechal Bittencourt. 

 

Colaboradores prosaicos demais 

 

Um estrategista superior, atraído pela forma técnica e alta da questão, gizaria rasgos estupendos de tática e não a 
resolveria. Um lidador brilhante idearia novas arrancadas impetuosas, que esmagassem de vez a rebeldia, e 
extenuar-se-ia, inútil, a marche-marche pelas caatingas. O marechal Bittencourt, indiferente a tudo isto — 
impassível dentro da impaciência geral —, organizava comboios e comprava muares... 

 


De feito, aquela campanha cruenta e na verdade dramática só tinha uma solução, e esta singularmente 
humorística. 

 

Mil burros mansos valiam na emergência por 10 mil heróis. A luta com todo o seu cortejo de combates 
sangrentos descambava, deploravelmente prosaica, a um plano obscuro. 

 

Dispensava o heroísmo, desdenhava o gênio militar, excluía o arremesso das brigadas, e queria tropeiros e 
azêmolas. Esta maneira de ver implicava com o lirismo patriótico e doía, feito um epigrama malévolo da 
História, mas era a única. Era forçada a intrusão pouco lisonjeira de tais colaboradores em nossos destinos. O 
mais caluniado dos animais ia assentar, dominadoramente, as patas entaloadas em cima de uma crise, e 
esmagá-la. . . 

 

Ademais, somente eles podiam dar às operações a celeridade exigida pelas circunstâncias. É o caso que a guerra 
só podia delongar-se por mais dois meses, no máximo. Mais três meses seriam — e não havia remover a 
conclusão inabalável — a derrota, o abandono de quanto se havia feito, a paralisação obrigada. 

 

Ia entrar, em novembro, sobre aquela zona, o regímen torrencial e dele decorreriam conseqüências insanáveis. 

 

Nos leitos, até então secos, dos regatos, acachoariam rios de águas barrentas, e o Vaza-Barris, intumescido de 
repente, transmudar-se-ia em onda enorme e dilatada, rolando transbordante, intransponível, cortando todas as 
comunicações. 

 

Depois, quando as caudais se extinguissem, rápidas — porque o turbilhão das águas, derivando para o S. 
Francisco e para o mar, se esgota com a mesma celeridade com que se forma — despontariam entraves mais 
graves. Sob a adustão dos dias ardentíssimos, cada banhado, cada lagoa efêmera, cada caldeirão encovado nas 
pedras, cada poça de água — é um laboratório infernal, destilando a febre que irradia latente nos germens do 
impaludismo, profusamente disseminados nos ares, ascendendo em número infinito de cada ponto em que bata 
um raio de sol e descendo sobre as tropas, milhares de organismos em que as fadigas criavam receptividade 
mórbida funesta. 

 

Era preciso liquidar a pendência antes dessa quadra perigosa, dispondo as coisas para um sítio real e firme 
determinando a rendição imediata. E, vencido o inimigo que podia ser vencido, recuar incontinente ante o 
inimigo invencível e eterno — a terra desolada e estéril. Mas para tal era indispensável garantir-se a subsistência 
do exército que, com os recentes reforços, montaria cerca de 8 mil homens. 

 

Conseguiu-o o ministro da Guerra. 

 

De sorte que ao partir, em começo de setembro, para Queimadas — estavam dispostos todos os elementos para 
desenlace próximo: aguardavam-no, concentradas em Monte Santo, as brigadas da Divisão Auxiliar; seguiam, 
ainda que raros, os primeiros comboios regulares para Canudos. 

 

Em Canudos 

 

Iam ainda a tempo de reanimar a expedição que até àquela data atravessara, presa aos flancos do arraial, quarenta 
e tantos dias de agitação perigosa e inútil. Definimo-la já, em breve diário, que não alongamos para evitar a 
mesmice dolorosa de episódios sucedendo-se sem variantes apreciáveis. 

 

Os mesmos tiroteios improvisos, violentos, instantâneos, em horas incertas; os mesmos armistícios enganadores; 
a mesma apatia recortada de alarmas; a mesma calma estranha e esmagadora, intermitentemente rota de 
descargas... 

 

Combates diários, ora mortíferos rareando as fileiras e desfalcando-as de oficiais prestimosos, ora ruidosos e 
longos, mas à maneira dos recontros entre os mercenários na Idade Média, esgotando-se num dispêndio de 
milhares de balas, sem um ferido, sem um escoriado sequer, de lado a lado. Por fim a existência aleatória, a 
terços de rações, quando as havia, dividindo-se um boi por batalhão e um litro de farinha por esquadra; e, como 
nos maus dias da Favela, as empresas diárias, em que se escalavam corpos para arrebanharem gado. 

 

Os comboios eram raros e incertos. Chegavam escassos, extraviando-se parte das cargas pelos caminhos. Diante 
dos expedicionários se levantou de novo, como perigo único, a fome. 

 


Metidos nos casebres, ou nas tendas por detrás dos morros, ou colados às escarpas das trincheiras, pouco se 
temiam do jagunço. Os perigos consistiam, exclusivos, nas caçadas, que estes faziam, de incautos que se 
afastavam dos abrigos. As duas torres da igreja nova lá estavam sobranceiras na altura, como dois mutãs sinistros 
sobre o exército. E nada escapava à pontaria dos que as guarneciam e que não as abandonavam no maior fragor 
dos canhoneios. A travessia para a Favela continuava, por isto, perigosa, tornando-se necessário estacionar uma 
guarda à margem do rio, no ponto em que ia dar o caminho, a fim de impedir que para lá seguissem soldados 
imprudentes. Naquele ponto recebiam o batismo de fogo os reforços que chegavam: a Brigada Girard a 15 de 
agosto, reduzida a 892 praças e 56 oficiais; o Batalhão Paulista a 23, com 424 praças e 21 oficiais; o 37.° de 
Infantaria, que precedera a Divisão Auxiliar, com 205 praças e 16 oficiais, comandado pelo tenente-coronel 
Firmino Lopes Rego. Os rudes adversários deixavam-nos descer em paz as últimas abas da montanha, timbrando 
em Ihes fazer no último passo, embaixo, no álveo do rio, uma recepção retumbante e teatral, de tiros, cortada 
invariavelmente de estrídulos assovios terrivelmente irônicos. 

 

É que não os assustavam os novos antagonistas. Permaneciam na mesma atitude desafiadora, inamolgáveis. E 
pareciam disciplinar-se. Correspondiam-se, de um a outro extremo do povoado, ao través do casario, a disparos 
combinados de bacamartes. Arrojavam-se mais ordenados e seguros nos assaltos. Recebiam, por sua vez, 
comboios, entrando pelos caminhos da Várzea da Ema, sem que lhos capturasse a tropa assaltante para não 
desguarnecer as posições ocupadas ou, consideração mais séria, evitar ciladas perigosas. Porque pelas cercanias, 
derivando invisíveis pelas colinas do norte e dali para Canabrava e Cocorobó, circulando de longe os batalhões, 
rondavam rápidas colunas volantes de jagunços, das quais havia sinais iniludíveis. Não raro o soldado inexperto, 
ao avultar sobre um cerro, baqueava atravessado por uma bala, que partia de fora do arraial, das linhas 
intangíveis daquele outro assédio abarcando a tropa. Os animais de montaria e tração eram muitas vezes 
espavoridos a tiro, nas pastagens que se alongavam pelas duas margens do rio; e em certo dia de agosto 20 
muares da artilharia foram capturados, apesar de estarem sob a guarda de um batalhão aguerrido, o 5.° de Linha, 
sobre o qual se fez carga da importância da presa. 

 

Estes incidentes delatavam raro alento entre os rebeldes. 

 

Não Ihes davam, entretanto, tréguas os assaltantes. Os três Krupps que desde 19 de julho emparcavam sobre a 
encosta, tendo no sopé a vanguarda do 25.° sobranceando a praça, batiam-nos noite e dia ateando incêndios a 
custo debelados e arruinando inteiramente a igreja velha, de madeiramento já todo exposto a ressaltar no telhado 
abatido em parte e em cujo campanário não se compreendia que ainda subisse à tarde o impávido sineiro, 
tangendo as notas consagradas da Ave - Maria. 

 

O sino da igreja 

 

Como se não bastasse aquele bombardeio à queima-roupa, descera, a 23 de agosto, do alto da Favela, o 
Wíthworth. Naquele dia fora ferido o general Barbosa, quando inspecionava a bateria do centro, próxima ao 
quartel-general da 1.ª coluna. De sorte que a vinda do monstruoso canhão dava oportunidade a revide imediato. 
Este realizou-se logo ao amanhecer do dia subseqüente. E foi, de fato, formidando. A grande peça detonou: 
viu-se arrebentar, com estrondo, o enorme schrapnel entre as paredes da igreja, esfarelando-lhe o teto, 
derrubando os restos do campanário e fazendo saltar pelos ares, revoluteando, estridulamento badalando, como 
se ainda vibrasse um alarma, o velho sino que chamava ao descer das tardes os combatentes para as rezas... 

 

Fuzilaria 

 

Mas, tirante este incidente, fora perdida a jornada: quebrara-se uma peça do aparelho obturador do canhão 
fazendo-o emudecer para sempre. Caíram nas linhas de fogo oito soldados, e uma fuzilaria fechada, estupenda, 
incomparável, entrou pela noite dentro até ao amanhecer. Reatou-se durante o dia, após ligeiro armísticio, 
vitimando mais quatro soldados, que com seis do 26.°, que aproveitando o tumulto desertaram, elevaram a dez as 
perdas do dia. Continuou no dia 26, abatendo cinco praças; matando quatro, no dia 27; quatro, no dia 28; no dia 
29, quatro soldados e um oficial; e assim por diante na mesma escala inflexível, que exauria a tropa. 

 

As baixas, somando-se diariamente em parcelas pouco díspares, com os claros abertos em todas as fileiras pelos 
combates anteriores, tinham já, desde meados de agosto, imposto a reorganização das forças rarescentes. Na 
diminuição que tivera o número de brigadas, passando de sete a cinco, e no descair das graduações dos 
comandos, percebia-se, apesar dos reforços recém-vindos, o enfraquecimento da expedição . 

 

Dos vinte batalhões de infantaria que lá estavam — à parte o 5.° Regimento de Artilharia, o 5.° da Polícia 
Baiana, uma bateria de tiro rápido e um esquadrão de cavalaria —, quinze eram comandados por capitães e duas 


brigadas por tenentes-coronéis, não descendo o das companhias aos sargentos por ser maior que o destes o 
número de alferes. 

 

Breve, porém, a situação mudaria. Canudos teria em torno, em algarismos rigorosamente exatos, trinta batalhões, 
excluídos os corpos de outras armas. 

 

Avançava pelos caminhos a divisão salvadora. 


Nova fase da luta 

 

I. Queimadas. Uma ficção geográfica. Fora da pátria. Diante de uma criança. Na estrada de Monte Santo. Novas 
animadoras. Uma vaia entusiástica... Trincheira Sete de Setembro. Estrada de Calumbi. 

 

II. Marcha da divisão auxiliar. Medo glorioso. Aspecto do acampamento. Em busca de uma meia ração de glória. 
O charlatanismo da coragem. 

 

III. Embaixada ao céu. Complemento do assédio. 


Capítulo I 

 

Queimadas 

 

Queimadas, povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-se um acampamento ruidoso O 
casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular, fundamente arado pelos enxurros — um 
claro no matagal bravio que o rodeia — e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, 
entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco 
descambar para tapera em ruínas. 

 

Prendiam-se-lhe, ademais, recordações penosas. Ali tinham parado todas as forças anteriormente envolvidas na 
luta, no mesmo prolongamento do largo aberto para a caatinga cujos tons pardos e brancacentos, de folhas 
requeimadas, sugeriam a denominação da vila. Acervos repugnantes de farrapos e molambos; trapos multicores e 
imundos, de fardamentos velhos; botinas e coturnos acalcanhados; quepes e bonés; cantis estrondados; todos os 
rebotalhos de caserna, esparsos em área extensa, em que branqueavam restos de fogueiras, delatavam a 
passagem dos lutadores, que lá armaram as tendas, a partir da expedição Febrônio. Naquele chão batido dos 
rastros de 10 mil homens, haviam turbilhonado na vozeria dos bivaques — paixões, ansiedades, esperanças, 
desalentos indescritíveis. 

 

Páginas demoníacas 

 

Transposta acessível ondulação, via-se, recortando o cerrado dos arbustos, um sulco largo de roçada, retilíneo e 
longo, que um alvo extremava — a linha de tiro, onde se exercitara a divisão Artur Oscar. Perto, ao lado, a 
capela exígua e baixa, como um barracão murado. E nas suas paredes, cabriolando doidamente, a caligrafia 
manca e a literatura bronca do soldado. Todos os batalhões haviam colaborado nas mesmas páginas, 
escarificando-as a ponta de sabre ou tisnando-as a carvão, no gravarem as impressões do momento. Eram 
páginas demoníacas aqueles muros sacrossantos: períodos curtos, incisivos, arrepiadores; blasfêmias 
fulminantes; imprecações, e brados, e vivas calorosos, rajavam-nas em todo o sentido, profanando-as, 
mascarando-as, em caracteres negros espetados em pontos de admiração, compridos como lanças. 

 

Dali para baixo, no descair de insensível descida, uma vereda estreita e mal afamada — a estrada de Monte 
Santo, por onde tinham abalado, esperançosas, três expedições sucessivas, e de onde chegavam, agora, 
sucessivamente, bandos miserandos de foragidos. Vadeado o Jacurici, volvendo águas rasas e mansas, ela 
enfiava, inflexa, pelas chapadas fora, ladeada, em começo, por uma outra que demarcavam os postes da linha 
telegráfica recentemente estabelecida. 

 

Uma ficção geográfica 

 

A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso passa, porém, por ali, inútil, sem atenuar sequer o 
caráter genuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem; transpõe-se poucas centenas de metros entre casas 
deprimidas; e topa-se para logo, à fímbria da praça — o sertão... 

 

Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra. O vaqueiro encourado emerge da 
caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o "campeão" junto aos trilhos, em que passam, 
vertiginosamente, os patrícios do litoral, que o não conhecem. 

 

Fora da pátria 

 

Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta. Discordância absoluta e radical 
entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso 
desenvolvimento evolutivo e perturba a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros 
quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento 
exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a 
distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria. 

 

Além disto, a missão que ali os conduzia frisava, mais fundo, o antagonismo. O inimigo lá estava, para leste e 
para o norte, homiziado nos sem-fins das chapadas, e no extremo delas, ao longe, se desenrolava um drama 
formidável... 

 


Convinha-se em que era terrivelmente paradoxal uma pátria que os filhos procuravam armados até os dentes, em 
som de guerra, despedaçando as suas entranhas a disparos de Krupps, desconhecendo-a de todo, nunca a tendo 
visto, surpreendidos ante a própria forma da terra árida, e revolta, e brutal, esvurmando espinheiros, tumultuando 
em pedregais, esboroando em montanhas derruídas, escanceladas em grotões, ondeando em tabuleiros secos, 
estirando-se em planuras nuas, de estepes... 

 

O que ia fazer-se era o que haviam feito as tropas anteriores — uma invasão — em território estrangeiro. Tudo 
aquilo era uma ficção geográfica. A realidade, tangível, enquadrada por todos os sucessos, ressaltando à 
observação mais simples, era aquela. Os novos campeadores sentiam-na dominadoramente. E como aquele povo 
desconhecido de matutos lhes devolvia, dia a dia, mutilados e abatidos, os companheiros que meses antes tinham 
avançado robustos e altaneiros, não havia ânimo varonil que atentasse impassível para as bandas do sertão 
misterioso e agro... 

 

Em Canudos 

 

Felizmente tiveram ao chegar o contrachoque de notícias animadoras recém-vindas do campo de operações. 

 

Nenhum outro desastre ocorrera. Guardavam-se, mau grado tiroteios diários, as posições conquistadas. A 
Brigada Girard e o Batalhão Paulista tinham ido a tempo de preencher os claros da linha rarefeita do sítio. Com 
este reforço coincidiam os primeiros sintomas de desanimo entre os rebeldes: não batia mais com a sua 
serenidade gloriosa o sino da igreja velha, que caíra; não mais se ouviam ladainhas melancólicas entre os 
intervalos das fuzilarias; cessavam os ataques atrevidos às linhas; e à noite, sem o bruxulear de uma luz, o arraial 
mergulhava silenciosamente nas sombras. Reproduzia-se a atoarda de que o Conselheiro lá estava, agora, coacto, 
preso pelos próprios sequazes, revoltados pelo intento, que manifestara, de se entregar, dispondo-se ao martírio. 

 

E citavam-se pormenores incidindo todos no denunciar o afrouxamento rápido da conflagração. 

 

Prisioneiros 

 

Os novos combatentes imaginaram-na extinta antes de chegarem a Canudos. Tudo o indicava. Por fim os 
próprios prisioneiros que chegavam, e eram, no fim de tantos meses de guerra, os primeiros que apareciam. 
Notou-se apenas, sem que se explicasse a singularidade, que entre eles não surgia um único homem feito. Os 
vencidos, varonilmente ladeados de escoltas, eram fragílimos: meia dúzia de mulheres tendo ao colo crianças 
engelhadas como fetos, seguidas dos filhos maiores, de seis a dez anos. Passavam pelo arraial, entre compactas 
alas de curiosos em que se apertavam fardas de todas as armas e de todas as patentes. Um espetáculo triste. 

 

As infelizes, em andrajos, camisas entre cujas tiras esfiapadas se repastavam olhares insaciáveis, entraram pelo 
largo, mal conduzindo pelo braço os filhos pequeninos, arrastados. 

 

Eram como animais raros num divertimento de feira. 

 

Em volta cruzavam-se, em todos os tons, comentários de toda a sorte, num burburinho de vozes golpeadas de 
interjeições vivíssimas, de espanto. O agrupamento miserando foi por algum tempo um derivativo, uma variante 
feliz aligeirando as horas enfadonhas do acampamento. 

 

Mas acirrou a curiosidade geral, sem abalar os corações. 

 

Diante de uma criança 

 

Um dos pequenos — franzino e cambaleante — trazia à cabeça, ocultando-a inteiramente, porque descia até aos 
ombros, um velho quepe reúno, apanhado no caminho. O quepe largo e grande demais, oscilava grotescamente, a 
cada passo, sobre o busto esmirrado que ele encobria por um terço. E alguns espectadores tiveram a coragem 
singular de rir. A criança alçou o rosto, procurando vê-los. Os risos extinguiram-se: a boca era um chaga aberta 
de lado a lado por um tiro! 

 

As mulheres eram, na maioria, repugnantes. Fisionomias ríspidas, de viragos, de olhos zanagas e maus. 

 

Destacava-se, porém, uma. A miséria escavara-lhe a face, sem destruir a mocidade. Uma beleza olímpica 
ressurgia na moldura firme de um perfil judaico, perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos 


ossos apontando duramente no rosto emagrecido e pálido, aclarado de olhos grandes e negros, cheios de tristeza 
soberana e profunda. 

 

Esta satisfez a ânsia contando uma história simples. Uma tragédia em meia dúzia de palavras. Um drama a bem 
dizer trivial, então, com o epílogo invariável de uma bala ou de um estilhaço de granada. 

 

Postas na saleta térrea de casebre comprimido, junto ao largo, as infelizes, rodeadas pelos grupos insistentes, 
foram vítimas de perguntas intermináveis. 

 

Estas deslocaram-se por fim às crianças. Procurava-se a sinceridade na ingenuidade infantil. 

 

Outra criança 

 

Uma delas, porém, menor de nove anos, figurinha entroncada de atleta em embrião, face acobreada e olhos 
escuríssimos e vivos, surpreendeu-os pelo desgarre e ardileza precoce. Respondia entre baforadas fartas de fumo 
de um cigarro, que sugava com a bonomia satisfeita de velho viciado. E as informações caíam, a fio, quase todas 
falsas, denunciando astúcias de tratante consumado. Os inquiridores registravam-nas religiosamente. Falava uma 
criança. Num dado momento, porém, ao entrar um soldado sobraçando a Comblain, a criança interrompeu a 
algaravia. Observou, convicto, entre o espanto geral, que a "comblé" não prestava. Era uma arma à toa, 
"xixilada": fazia um "zoadão danado", mas não tinha força. Tomou-a: manejou-a com perícia de soldado pronto; 
e confessou, ao cabo, que preferia a manulixe, um clavinote de "talento". Deram-lhe, então, uma mannlicher. 
Desarticulou-lhe agilmente os fechos, como se fosse aquilo um brinco infantil predileto. 

 

Perguntaram-lhe se havia atirado com ela, em Canudos. 

 

Teve um sorriso de superioridade adorável: 

 

"E por que não ! Pois se havia tribuzana velha!. . . Havera de levar pancada, como boi acuado, e ficar quarando 
à toa, quando a cabrada fechava o samba desautorizando as praças ?!" 

 

Aquela criança era, certo, um aleijão estupendo. Mas um ensinamento. Repontava, bandido feito, à tona da luta, 
tendo sobre os ombros pequeninos um legado formidável de erros. Nove anos de vida em que se adensavam três 
séculos de barbaria. 

 

Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e 
bem pouco gloriosa de destruir um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra 
mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os 
caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso 
tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários. 

 

Mas, sob a pressão de dificuldades exigindo solução imediata e segura, não havia lugar para essas visões 
longínquas do futuro. O ministro da Guerra, depois de se demorar quatro dias em Queimadas removendo os 
últimos entraves à mobilização das forças, seguiu para Monte Santo. 

 

Na estrada de Monte Santo 

 

Acompanhado apenas dos estados-maiores, seu e do general Carlos Eugênio, ia atingir a base das operações, 
atravessando a região coalhada de feridos e aquilatando pelas fadigas que assaltaram a sua comitiva bem 
montada e abastecida, em caminhos livremente trafegados, as torturas que assaltariam os caminhantes que 
seguiam, a pé, pelas trilhas aspérrimas do sertão. Naquela travessia folgada, feita em três dias, antolhara-se-lhe 
em cada volta da vereda um traço lúgubre da guerra, cuja encenação a par e passo se acentuava, acompanhando a 
aspereza crescente da terra calcinada e estéril. O primeiro pouso em que parara, o Tanquinho, prefigurara os 
demais. Era o melhor e era inaturável: um sítio meio destruído, duas casas em abandono, imersas na galhada fina 
do alecrim-dos-tabuleiros, de onde irrompiam cereus esguios e melancólicos. O tanque que o batiza provém de 
um afloramento granítico originando reduzida mancha de solo impermeável sobre que jazem, estagnadas, as 
águas livres da sucção ávida do terreno de grés, envolvente. À sua borda, como à de todas as ipueiras marginais à 
estrada, sesteavam dezenas de feridos, e acampava a recovagem dos comboios. Mas isto sem a azáfama 
característica e ruidosa dos abarracamentos, soturnamente, silenciosamente; acúmulo entristecedor de homens 
macilentos, em grupos imóveis, paralisados na quietude de exaustão completa. 

 


À noite, sobretudo, acesas as fogueiras rebrilhantes na superfície d"água escura, eles formavam, uns acocorados 
junto ao fogo e tiritando de maleitas, arrastando-se outros vagarosos e claudicantes e projetando sobre a tela 
unida da lagoa as sombras disformes, conjunto trágico e emocionante. Oficiais que se abeiravam sequiosos da 
ourela do pântano davam de chofre com espectros mal aprumados tentando fazer-lhes a continência militar: e 
volviam entristecidos. Dali por diante os mesmos quadros: pelos caminhos os mesmos retirantes abatidos, e, à 
beira dos pântanos verde-negros, recamados de algas, os mesmos agrupamentos miserandos. 

 

Como contraste permanente, a nota superior da força e da robustez era dada, intermitentemente, pelos homens, 
mais tranqüilos e inofensivos, irrompendo, isolados, dentre as caravanas dos guerreiros sucumbidos. No volver 
das inflexões da vereda, topava-se, às vezes, um vaqueiro amigo, um aliado, que se empregara nos serviços de 
transporte. A cavalo, entrajado de couro, sombrero largo galhardamente revirado à testa trigueira e franca; à cinta 
o longo facão "jacaré"; à destra a lança arpoada do ferrão — quedava o matuto imóvel, à orla da passagem, 
desviando-se, deixando livre o curso à cavalgata, numa atitude respeitosa e altiva, de valente disciplinado, muito 
firme dentro da sua couraça vermelho-parda feito uma armadura de bronze, figurando um campeador robusto, 
coberto ainda da poeira das batalhas. 

 

A comitiva avançava e esquecia logo a imagem do sertanejo robusto — constantemente atraída pelos bandos 
incessantes de foragidos: soldados caminhando tardos, abordoando-se às espingardas; oficiais carregados em 
redes, chapéus caídos aos olhos, surdos ao tropel da cavalgata, que estrepitava a um lado, imóveis, rígidos como 
cadáveres; e aqui, ali, largas nódoas negras na caatinga, rastros escurentos dos incêndios, em que repontavam 
esteios e cumeeiras dos casebres combustos, tracejando por aqueles ermos, numa urdidura de ruínas, o cenário 
terrivelmente estúpido da guerra. 

 

Em Cansanção atreguaram-se estas impressões cruéis. Houve por duas horas um remanso consolador. O vilarejo 
era um clã. Pertence a uma família única. O seu chefe, genuíno patriarca, congregara filhos, netos e bisnetos em 
ovação ruidosa ao marechal, o "monarca", conforme bradava convicto, numa alacridade ingênua e sã, ao 
alevantar nos braços cansados de um labutar de oitenta anos o ministro surpreendido. 

 

Esta escala foi providencial. Cansanção era um parêntese feliz naquele desolamento. E o robusto velho que o 
governava, surgindo blindado de uma satisfação sadia ante homens que nunca vira, e apresentando-lhes um filho 
de cabelos brancos e netos quase grisalhos, era, por sua vez, uma revelação. Antítese do facínora precoce de 
Queimadas, revelava, animadora, esta robustez miraculosa, esta nobreza orgânica completada por uma alma sem 
refolhos, tão característica dos matutos, quando os não derrancam o fanatismo e o crime. 

 

Por isto o lugarejo minúsculo, uma dúzia de casas adensadas em rua de poucas braças, é o único que não 
desperta, nas narrativas da campanha, recordações dolorosas. Era a única zona tranqüila naquela balbúrdia. Um 
pequeno hospital, entregue à solicitude de dois franciscanos, ali acolhia os romeiros sem forças que iam para 
Queimadas. 

 

Deixando-o, os viajantes volviam logo às amarguras da trilha poenta, desesperadamente torcida em voltas 
infinitas, retalhando-se em desvios, orlada de choupanas estruídas e palmilhada de ponta a ponta pelas turmas 
sucessivas de foragidos. 

 

Palimpsestos ultrajantes 

 

E em toda a parte — a partir de Contendas — em cada parede branca de qualquer vivenda mais apresentável, 
aparecendo rara entre os casebres de taipa, se abria uma página de protestos infernais. Cada ferido, ao passar, 
nelas deixava, a riscos de carvão, um reflexo das agruras que o alanceavam, liberrimamente, acobertando-se no 
anonimato comum. A mão de ferro do exército ali se espalmara traçando em caracteres enormes o entrecho do 
drama; fotografando, exata, naquelas grandes placas, o facies tremendo da luta em inscrições lapidares, numa 
grafia bronca, onde se colhia em flagrante o sentir dos que o haviam gravado. 

 

Sem a preocupação da forma, sem fantasias enganadoras, aqueles cronistas rudes deixavam por ali, indelével, o 
esboço real do maior escândalo da nossa história — mas brutalmente, ferozmente, em pasquinadas incríveis — 
libelos brutos, em que se casavam pornografias revoltantes e desesperanças fundas, sem uma frase varonil e 
digna. A onda escura de rancores que rolava na estrada chofrava aqueles muros, entrava pelas casas dentro, 
afogava as paredes até ao teto... 

 

A comitiva, penetrando-as, repousava envolta num coro silencioso de impropérios e pragas. Versos 
cambeteantes, riçados de rimas duras, enfeixando torpezas incríveis na moldura de desenhos pavorosos; 


imprecações revoluteando pelos cantos numa coréia fantástica de letras tumultuárias, em que caíam, 
violentamente, pontos de admiração rígidos como estacadas de sabre; vivas ! morras! saltando por toda a banda 
em cima de nomes ilustres, infamando-os, esbarrando-se discordes; trocadilhos ferinos; convícios desfibradores; 
alusões atrevidas; zombarias lôbregas de caserna... 

 

E a empresa perdia repentinamente a feição heróica, sem brilho, sem altitude. Os narradores futuros tentariam 
em vão velá-la em descrições gloriosas. Teriam em cada página, indestrutíveis, aqueles palimpsestos ultrajantes. 

 

Em Monte Santo 

 

Os novos lutadores chegaram a Monte Santo sem o mesmo anelo de arrancar das espadas. Desenfluídos. 
Reanimavam-se, porém, ao entrarem na base de operações. 

 

Despindo-se em poucos dias da aparência comum aos arraiais sertanejos, engrunhidos e estacionários, onde há 
cem anos não se constrói uma casa, a vila ampliara-se, tendo às ilhargas, branqueando sobre as chapadas, num 
bairro novo e maior que ela — 2 mil barracas, num alinhamento de avenidas longas, destacando-se distintas 
sobre o chão limpo e descalhoado, em seis agrupamentos, sobre que ruflavam bandeiras ondulantes, e de onde 
irrompiam, de instante a instante, vibrações metálicas de clarins e o toar cadente dos tambores. 

 

Uma multidão de habitantes adventícios enchera-a, de súbito, acotovelando-se no âmbito da praça, derivando às 
encontroadas pelas vielas; e contemplando-os tinha-se um acervo heterogêneo em que se ombreavam todas as 
posições sociais. Oficiais de todas as graduações e armas; carreiros poentos das viagens longas; soldados 
arcando sob o equipamento; feridos e convalescentes trôpegos; mulheres maltrapilhas; fornecedores azafamados; 
grupos alegres de estudantes; e, num inquirir incessante, jornalistas sequiosos de notícias, davam-lhe um tom de 
praça concorrida em dia de parada. O marechal Bittencourt pô-la numa regulamentação rigorosa e demasiou-se 
no adotar medidas acordes com as exigências complexas da situação. O hospital militar tornou-se uma realidade, 
perfeitamente abastecido e dirigido por cirurgiões a que aliavam esforços desinteressados alguns alunos da 
Faculdade da Bahia. Formou-se em tudo aquilo uma disciplina correta. Por fim a questão primordial que até lá o 
atraíra — o serviço de transporte — se ultimou definitivamente. Diariamente quase, chegavam e volviam 
comboios parciais para Canudos. 

 

Os resultados deste esforço foram imediatos. Diziam-no as notícias supervenientes da sede das operações, 
acordes todas no indicarem maior alento entre os sitiantes, levando-os mesmo a movimentos táticos decisivos. 

 

É que aquele homem sem entusiasmos, que até na base das operações não despira o paletó de alpaca com que 
burguesmente recebia a continência das brigadas se tornara, mercê de rara dedicação e sem apisoar melindres 
dos que se afoitavam de perto com o inimigo, o diretor supremo da luta. A dezesseis léguas do centro desta, 
dirigia-a de fato, sem alardo, sem balancear alvitres estratégicos, atravessando os dias na convivência rude dos 
tropeiros em Monte Santo, entre os quais não raro surgia impaciente, de relógio em punho, e dava a voz de 
partida. 

 

Porque cada comboio que seguia valia batalhões. Era uma batalha vencida. Punha entre os combatentes alentos 
de vitórias; e pouco a pouco destruía a estagnação em que se paralisara o assédio. É o que se colhia das últimas 
notícias. 

 

Em Canudos 

 

De feito, o mês de setembro principiara auspicioso. 

 

Logo em começo, no dia 4, uma bala de carabina havia abatido no arraial um cabecilha de valor. Baqueara junto 
às igrejas; e o açodamento com que os habitantes se precipitaram sobre o cadáver, e o levaram, delatava-lhe o 
prestígio. 

 

A 6, sucesso de maior monta: caíram, uma após outra, as torres da igreja nova. O caso ocorrera depois de seis 
horas consecutivas de bombardeio. E fora inteiramente imprevisto. 

 

Determinara-o mesmo circunstância desagradável : um engano na remessa das munições tendo levado ao arraial, 
ao invés de granadas, balas rasas de Krupp pouco eficazes no canhoneio, resolvera-se gastá-las logo, revezando-
as, de vez, sobre as igrejas, até se acabarem. 

 


E o resultado fora surpreendente, rememorado em duas ordens do dia entusiásticas. O exército ficara, afinal, 
livre das seteiras altíssimas de onde o fulminavam os sitiados, porque as duas torres assoberbando toda a linha do 
assédio reduziam por toda a banda os ângulos mortos das trincheiras. 

 

Desde 18 de julho revezavam-se nos seus campanários atiradores peritos — olhos prescientes devassando tudo 
— a que não se subtraía o menor vulto desviado do anteparo das casas. 

 

Os comboios, ao chegarem, dali recebiam, em cheio, no último passo, ao transporem o rio, antes da sanga em 
passagem coberta que os levava ao acampamento, descargas violentas. 

 

As forças recém-vindas, a brigada auxiliar, o Batalhão Paulista e o 37.° de Infantaria, como vimos, do alto de 
suas arestas tinham recebido a primeira saudação ferocíssima do inimigo. 

 

Uma "vaia entusiástica" 

 

Haviam, afinal, caído. E ao vê-las baquear, uma após outra, imponentes, arrastando grandes panos de muro, 
desarticulando-se em grandes blocos em que vinham agarrados, tombando de borcos, atiradores atrevidos — e 
batendo pesadamente no chão do largo, entre nuvens de poeira da argamassa esboroada, o exército inteiro, 
calando a fuzilaria, atroou os ares em alaridos retumbantes. 

 

O comandante da 1.ª coluna caracterizou-o bem na ordem do dia correspondente ao feito: 

 

"...prorrompendo nessa ocasião a linha de segurança e forças em apoio no acampamento entusiástica e violenta 
vaia na jagunçada." 

 

A campanha era aquilo mesmo. Do início ao termo, uma corrimaça lúgubre. "Entusiástica vaia..." 

 

Como quer que seja terminara o encanto do inimigo. Q arraial enorme repentinamente diminuíra; e decaíra; e se 
acaçapara, parecendo ainda mais afundado na depressão em que se adensava, sem mais as duas balizas brancas 
que o indicavam aos pegureiros — muito altas e esbeltas, arremessadas no firmamento azul, branqueando nas 
noites estreladas , diluindo-se misteriosamente na altura, objetivando o misticismo ingênuo e pondo junto dos 
céus as rezas propiciatórias dos sertanejos rudes e crendeiros... 

 

Trincheira Sete de Setembro 

 

Fora, além disto, o acontecimento de mau agouro. No dia subseqüente sobreveio maior desastre. Desde muito 
entrincheirados na fazenda Velha, algumas dezenas de guerrilheiros zombavam dos canhões do coronel Olímpio 
— que se emparcavam no alto num rebordo da Favela. A dois passos da artilharia e dos contingentes que a 
reforçavam, tinham durante mais de dois meses tolhido a dilatação do cerco por aquela banda, a despeito da 
tormenta de disparos que lhes estrugia a cavaleiro. Numa situação dominante sobre o grosso das linhas ajustadas 
à orla do povoado, enfiavam-nas de ponta a ponta, contribuindo muito para as baixas diárias que as rareavam, e 
emparelhando-se com as torres no devassar os mais bem escolhidos parapeitos ou abrigos. Mas no dia 7, às dez 
horas da noite, foram, de improviso, suplantados. Animados pelos sucessos da véspera, aquele coronel, 
obediente ao que lhe determinara o comando da 1.ª coluna, abalou com uma força composta do 27.º, sob o 
comando do capitão Tito Escobar, um contingente da 4.ª bateria do 2.° Regimento, um outro do 5.º Regimento e 
uma boca de fogo. À frente e à retaguarda, seguiam ex-alunos das escolas militares. O coronel Olímpio dispôs o 
resto da sua pequena força em atiradores pelos dois flancos. Fê-la descer em silêncio os primeiros boléus das 
vertentes. Arrojou-a, por fim, num rolar de avalanche, pelo morro abaixo. Surpresos, derreando-se ao embute de 
trezentas baionetas repartidas em duas cargas laterais, tendo de permeio a metralha que os fulminava à 
queima-roupa, os jagunços mal resistiram, sendo de pronto desalojados das trincheiras de pedra, que ali tinham 
em torno à vivenda estruída da fazenda Velha. 

 

Durara cinco minutos a refrega. 

 

Os adversários rechaçados, esparsos, perseguidos até ao cerro dos Pelados pela vanguarda, tombaram dali no rio, 
transpondo-o e embrenhando-se em Canudos. 

 

A força teve apenas duas praças fora de combate. 

 


Expugnada a posição, largo degrau sobre a vertente do morro, entre o Alto do Mário anteriormente ocupado e o 
Vaza-Barris, aquele coronel armou a sua barraca no lugar onde expirara seis meses antes o chefe da 3.ª 
expedição. Empregou-se todo o resto da noite em construir, reunindo as próprias pedras das trincheiras do 
inimigo, forte reduto de cerca de um metro de alto, orlando toda a borda avançada do socalco. E no outro dia, 
cedo, a "Trincheira Sete de Setembro" sobranceava o arraial. A periferia do sítio aumentara de uns quinhentos 
metros para a esquerda, na direção do sul, trancando inteiramente os dois quadrantes de leste. 

 

Ora, naquele mesmo dia, à tarde, ela se dilataria ainda mais, inflectindo a partir do ponto conquistado para o 
poente, até extremar a estrada do Cambaio, perto da confluência do Mucuim, abarcando toda a face do oeste. 

 

Estrada do Calumbi 

 

Operara-se um movimento mais sério; talvez a ação realmente estratégica da campanha. Ideara-a, planeara-a e 
executara-a o tenente-coronel Siqueira de Meneses. Esclarecido por informações de alguns vaqueiros leais, 
aquele oficial viera a saber das vantagens de uma outra estrada, a do Calumbi, ainda desconhecida, que correndo 
entre as do Rosário e do Cambaio, e mais curta que ambas, facilitava travessia rápida para Monte Santo, onde ia 
ter em traçado quase retilíneo, seguindo firmemente a linha norte-sul. E propôs-se explorá-la afrontando-se com 
os maiores riscos. 

 

Realizou a empresa em três dias. Saiu no dia 4 de Canudos, à frente de quinhentos homens, que a tanto 
montavam, reunidos, os batalhões 22.º, 9.° e 34 .º, sob o imediato comando do major Lídio Porto. Varou pelo 
novo caminho descoberto, voltando, a 7, pelo do Cambaio, num movimento rápido, ousado, feliz, e de resultados 
extraordinários para o desenlace da guerra. 

 

De feito, a nova vereda franca à translação das tropas e comboios e fechadas aos jagunços, que a trilhavam de 
preferência nas suas excursões para o sul, encartava de mais de um dia a jornada para Monte Santo. Era entre 
todas a mais bem preparada para reagir à invasão. Partia de Juá, onde bifurcava com a do Rosário, derivando à 
esquerda desta no rumo certo do norte, perlongando por muitos quilômetros o ribeirão das Caraíbas, ou 
cortando-lhe os meandros intermináveis. Avançava, invariável no rumo, tocando em pequenos sítios, até a um 
outro riacho de existência efêmera, o Caxomongó. Daí para a frente era uma estrada estratégica incomparável. 

 

Alongando-se na direção de sudeste, a serrania de Calumbi flanqueia-a toda em largo trato, à direita, distante 
menos de trezentos metros. Um exército atravessando-a daria todo o flanco ao adversário que guarnecesse as 
encostas. E ao deixar esta situação gravíssima cairia em outra pior, porque o caminho, depois de galgar extensa 
lombada, se constringe, de repente, em angustura estreita. Nada denuncia o desfiladeiro breve e mascarado pelos 
esgalhos tortuosos dos pés de umburanas, que se alevantam perto. É uma muralha de mármore silicoso pouco 
acima do chão, à maneira de barbacã grosseira, aberta ao meio por uma diáclase, rachando-a em postigo estreito. 
Ali não havia trincheiras. Eram dispensáveis. As espingardas estendidas na crista daquele anteparo natural 
varreriam colunas sucessivas. E se estas vingassem transpô-lo, o que pressupunha rara felicidade contra 
antagonistas de tal modo abrigados e batendo-as a salvo, tombariam surpreendidas, logo aos primeiros passos, 
em terreno impraticável quase. 

 

Um fato geológico vulgar nos sertões do Norte substituía, em seguida, estes acidentes, no criar idênticos 
empecilhos. Assim, transposta a passagem, o solo descai para o sítio da Várzea, aparentando travessia fácil mas 
realmente dificílima para uma tropa nas agitações do combate. Larga camada calcária derrama-se por ali, 
aspérrima, patenteando notável fenômeno de decomposição atmosférica. Broqueada de infinitas cavidades 
tangenciando-se em bordas de quinas vivas e cortantes, sarjada de sulcos fundos, de longas arestas rígidas e 
finas, feito lâminas de facas; erriçada de ressaltos pontiagudos; duramente rugosa em todos os pontos; 
escavando-se salteadamente em caldeirões largos e brunidos, patenteia impressionadoramente o influxo secular 
dos reagentes enérgicos, que longamente a trabalham. Corroeram-na, e perfuraram-na, e minaram-na as chuvas 
ácidas das tempestades, depois das secas demoradas. Ela reflete, imóvel e corroída, a agitação revolta das 
tormentas. 

 

Pisando naqueles estrepes unidos e fortes, estraçoar-se-iam as mais resistentes botas e não haveria resguardos 
para topadas e tombos perigosíssimos. O combate seria inexeqüível em tal lugar, onde caminhantes tranqüilos só 
conseguiam avançar a um de fundo, por uma trilha intermédia levando à Várzea, embaixo — ampla bacia 
lastrada de fragmentos de sílex e cingida de caatingas espessas. De sorte que, em ali chegando, os invasores 
seriam inteiramente circulados de balas, E dado que conseguissem avançar, ainda teriam adiante, transcorrido 
um quilômetro, o aniquilamento inevitável. A estrada desaparece caindo dentro do rio Sargento, de leito sinuoso 
e fundo, e bordas nas quais rompem em grandes placas luzentes de cor azul-escura as camadas superpostas de 


um talcoxisto, riscadas de veios brancos de quartzo, alongando-se em certos pontos horizontalmente, quase de 
uma margem à outra, e dando a impressão de se passar por dentro de enorme encanamento em ruínas, 
conservando ainda, em vários trechos, restos da antiga abóbada desabada. Este fosso extenso que, como os 
demais das cercanias, não é um rio, mas um dreno transitoriamente cheio pelos enxurros que ele canaliza para o 
Vaza-Barris, substitui o caminho numa longura de meia légua. De uma e outra banda, apontando-lhe às margens, 
viam-se as trincheiras dos jagunços, pouco espaçadas, cruzando-lhe por cima os fogos, enfiando-o de esguelha 
ou batendo-o em cheio em todas as voltas. 

 

Os 3 mil homens da coluna Artur Oscar não lograriam atravessá-lo. A marcha pelo Rosário fora a salvação. As 
antecedentes expedições, seguindo sucessivamente pelo Uauá, pelo Cambaio, por Maçacará e pelo Rosário, 
variando sempre na rota escolhida, tinham feito crer aos sertanejos que a última, adotada a mesma norma, 
tomaria pelo caminho do Calumbi, que ainda se não trilhara. E se tal sucedesse nem um soldado chegaria a 
Canudos. Um desastre maior agravaria a campanha. Tinham-se contornado por acaso, na mais completa 
insciência daquelas disposições formidáveis, dificuldades sérias. 

 

O tenente-coronel Siqueira de Meneses, na sua rota admirável e feita com vantagem, porque os jagunços 
refluindo para o arraial haviam largado aquelas posições, foi guarnecendo os principais pontos da estrada até Juá. 
Daí enveredou para o Cambaio. Atravessou-lhe entrincheiramentos desguarnecidos, onde deixou, ocupando-os, 
uma ala do 22.º. Passou pela lagoa do Cipó, onde alvejavam ossadas, recordando os morticínios da expedição 
Febrônio. Surpreendeu, aí, alguns piquetes inimigos, apresando-lhes treze cargueiros. E foi surgir na confluência 
do Mucuim, tomando de surpresa duas trincheiras inimigas ali existentes. 

 

O sítio ampliara-se. Rasgara-se à mobilização das forças estrada rápida e segura. O seu trecho principal desde o 
rio Sargento ao sítio de Suçuarana, passando pela Várzea e Caxomongó, foi logo guarnecido pelos 33.°, 16.° e 
28.° Batalhões da 2.ª Brigada e uma ala do Batalhão Paulista. 

 

Canudos tinha agora circuitando-o, do extremo norte ao sul, na fazenda Velha, e daí para o ocidente, na ponta da 
estrada do Cambaio, um desmedido semicírculo de assédio. 

 

Restavam apenas aos jagunços, no quadrante de noroeste, as veredas do Uauá e Várzea da Ema. 

 

Prefigurava-se próximo o termo da campanha. 


Capítulo II 

 

Marcha da divisão auxiliar 

 

Os novos expedicionários, abalando de Monte Santo pela estrada recém-aberta, levavam um temor 
singularmente original: o medo cruelmente ansioso de não depararem mais um só jagunço a combater. Certo iam 
encontrar tudo liquidado; e sentiam-se escandalosamente traídos pelos acontecimentos. 

 

Partira em primeiro lugar, a 13 de setembro, a brigada dos corpos policiais do Norte, e tal precedência, oriunda 
exclusivamente de motivos de ordem administrativa, doera fundo no ânimo dos que compunham a brigada de 
linha, que marcharia alguns dias mais tarde, com o general Carlos Eugênio. 

 

Medo glorioso 

 

É que os rebeldes decaíam tanto todos os dias, tão cheios de reveses e repelidos dos melhores pontos de apoio, e 
tão enleados nas malhas constritoras do cerco, que cada hora passada era para o heroísmo retardatário 
crudelíssimo diminuir nas probabilidades de compartir as glorificações do triunfo. 

 

A brigada nortista fez, por isto, um avançar vertiginoso, tropeando pelos caminhos desde o primeiro alvor da 
antemanhã e estacando somente quando as soalheiras queimosas esgotavam a soldadesca. A de linha alcançou-a, 
copiando a mesma celeridade, marchando aforradamente, aguilhoada identicamente pelo anelo doido de se 
medir, ao menos num recontro fugitivo, com aqueles pobres adversários. 

 

E arrojando-se pelos caminhos, os campeadores — nutridos, garbosos e sãos — lá se iam de abalada 
demandando a cidadela de barro, havia três meses varrida pelos canhoneios, rota pelos assaltos, devorada pelos 
incêndios e defendida por uma guarnição única. 

 

Ao alcançarem o sítio da Suçuarana, seis léguas distante de Canudos, reanimavam-se. Chegavam até lá 
soturnamente reboando os estampidos da artilharia. Em Caxomongó, se o vento era de feição, distinguiam 
mesmo o crebro crepitar dos tiroteios . . . 

 

Caxomongó 

 

Entretanto nessa alacridade guerreira despontavam ainda inopinados sobressaltos. A luta sertanejo não perdera 
por completo o traço misterioso, que conservaria até ao fim. Avantajando-se no sertão, os sôfregos lutadores, à 
medida que se sentiam cada vez mais longe entre as chapadas ermas, passando pelos sítios tristonhos e 
destruídos — em pleno deserto — tinham entre as fileiras aguerridas irrefreáveis frêmitos de espanto. Fui 
testemunha de um deles. 

 

A brigada do coronel Sotero chegara no terceiro dia de marcha, a 15 de setembro, ao sítio de Caxomongó, à 
entrada da zona perigosa. A escala para quem vinha de Boa Esperança, numa várzea desimpedida rodeada de 
pinturescas serranias, ou da Suçuarana, à borda de uma ipueira farta, era estéril e lúgubre. O terreno, de grés 
vermelho e grosseiro, de estratos exageradamente inclinados de 45°, absorvendo logo, em virtude de tal 
disposição, as raras chuvas que ali tombam, engravecera a dureza da caatinga. 

 

O sítio, um pouco miserável, surge à borda do rio, e este, um valo de ribanceiras a prumo, altas de três metros, 
inteiramente entupido de pedras de todos os tamanhos, inteiramente seco, desaparece logo metendo-se entre 
colinas pouco altas e nuas. 

 

A tropa ali chegou em plena manhã. Os dois corpos do Pará, disciplinados como os melhores de linha, e o do 
Amazonas, com o uniforme característico que adotara desde a Bahia: cobertos, oficiais e soldados, de grandes 
chapéus de palha de carnaúba, desabados, dando-lhes aparência de numeroso bando de mateiros. 

 

Apesar da hora matinal, como encontrassem água bastante numa cacimba próxima, profundíssima e escura, 
lembrando a boca de uma mina, acamparam. Era a última escala. No outro dia atingiram o arraial. A paragem 
morta reanimou-se então, de súbito, cheia de tendas e barracas, armas em sarilhos, e a animação ruidosa de 968 
combatentes. Pelas margens do rio alteavam-se ingaranas altas, cruzando-lhe as ramagãs ainda enfolhadas sobre 
o leito. Armaram-se por ali fora, suspensas , à 

maneira de redouças oscilantes nos galhos flexíveis, dezenas de redes. 

 


E o dia derivou tranqüilamente. 

 

Nada havia a temer-se. 

 

Desceu a noite. Ouvia-se, muito longe, ao norte, soturno e com passado, rolando surdamente no silêncio, o 
bombardeio de Canudos... 

 

O inimigo ali constrito não tinha mais alentos para a venturosas algaras nos caminhos. A noite, como o dia , 
derivaria na mais completa placidez. Mas, dado que aparecessem, os jagunços viriam ao encontro de ainda não 
satisfeito anelo. 

 

Rebate falso 

 

E a tropa adormeceu cedo, em paz...para despertar toda, às dez horas da noite, num abalo único. 

 

Detonara, no flanco esquerdo, um tiro. Uma sentinela do cordão de segurança, que se estendera em torno dos 
abarracamentos, lobrigara ou julgara lobrigar vulto suspeito deslizando na sombra; e disparara a espingarda. Era, 
certo, o inimigo anelado. Vinha como viera sobre outros expedicionários, de improviso, num arranco atrevido e 
subitâneo, e célere. 

 

Então sobre os que ansiavam tanto a medir-se com ele passou, alucinadoramente, a visão misteriosa da 
campanha. Avaliaram-na de perto. Dominou para logo os batalhões a hipnose de um espanto indescritível; 
estridularam cornetas, gritos de alarmas, brados de comandos, inquirições ansiosas; despencaram das redes, 
caindo sobre o lastro do rio, oficiais surpresos, pulando-lhe às tontas as bordas, esbarrando-se; caindo; 
precipitando-se — espadas desembainhadas, revólveres erguidos — entre as fileiras que se alinhavam num longo 
crepitar de estalidos de baionetas armando-se. E desencadeou-se o tumulto. Pelotões e companhias formando-se 
ao acaso; quadrados precipitadamente feitos como esperando cargas de cavalaria; seções de armas cruzadas 
prontas a carregarem contra o vácuo; e entre as seções, e os pelotões, e as companhias, parte dos combatentes 
pervagando, correndo, em busca da formatura embaralhada... 

 

Transcorridos minutos, os lutadores, presos de uma emoção que jamais imaginaram sentir, aguardavam o assalto. 
A brigada aparecia como uma longa esteira, revolta e coruscante, na onda luminosa do luar tranqüilo e grande 
que abrangia a natureza adormecida e quieta. 

 

E fora um rebate falso... 

 

Em busca de meia ração de glória 

 

Ao amanhecer extinguiram-se os temores. Volviam à impaciência heróica. Prosseguiam rápidos. Rompiam, 
intrêmulos, por dentro do valo sinuoso do rio Sargento, que desbordava numa enchente repentina de fardas. 
Galgavam logo adiante o morro desnudo cujas vertentes opostas abruptamente caíam para o vale de Umburanas. 
E tinham, de surpresa, na frente e embaixo, distante dois quilômetros — Canudos... 

 

Era um desaforo. Lá estavam as duas igrejas derruídas fronteando-se na praça lendária: a nova sem torres, 
alteando as paredes mestras arrombadas, fendidas de alto a baixo, um muradal cheio de entulhos; a velha em 
ruínas e denegrida, sem fachada, erguendo um pedaço do campanário derruído, onde o fantástico sineiro tantas 
vezes apelidara os fiéis para a oração e para o combate. Em volta a casaria unida. Tinham chegado a tempo. Já 
agora não lhes faltaria a meia ração de glória disputada. Entravam ovantes pelo acampamento, num belo aprumo 
de candidatos à História, procurando o pleito sanguinolento e fácil. 

 

Aspecto do acampamento 

 

O acampamento mudara; perdera a aparência revolta dos primeiros dias. Era como um outro arraial despontando 
à ilharga de Canudos. Atravessando o leito vazio do Vaza-Barris, os recém-vindos enveredavam por uma sanga 
flexuosa; topavam, a meio caminho à direita, entranhado em larga reentrância, vasto alpendre coberto de couro 
— o hospital de sangue; e, a breve trecho, atingiam a tenda do comandante-geral. 

 

Nesse trajeto viam-se dentro de um novo povoado. 

 


Havia-se reconstruído o bairro conquistado. De uma e outra banda do caminho, eretas ao viés das encostas, 
arruadas ou acumuladas pelos vales diminutos, pintalgando, numerosas e esparsas, o tom pardo dos 
abarracamentos, sucediam-se pequenas casas de aspecto original e festivo — feitas todas de folhagens, tetos e 
paredes verdes de ramas de juazeiros, de forma singularmente imprópria aos habitadores. Mas eram as únicas 
ajustáveis ao meio. A canícula abrasante, transmudando as barracas em fornos adurentes, inspirara aquela 
arquitetura bucólica e primitiva. 

 

Nada que denunciasse, ao primeiro lance de vistas, a estada de um exército. Tinha-se a impressão de chegar em 
vilarejo suspeito dos sertões. E encontrando-se os primitivos povoadores — homens à paisana, mal compostos, 
arrastando espadas e sobraçando espingardas; na maior parte cobertos de chapéus de couro com presilhas; 
descalços ou calçando alpercatas; e, num ou noutro ponto, mulheres maltrapilhas cosendo tranqüilamente às 
portas ou passando arcadas sob achas de lenha, completava-se a ilusão. O estranho entrava a desconfiar que um 
engano na rota o havia desnorteado para o meio dos jagunços — até atingir a tenda do general, mais longe. 
Galgado o cerro em cujo sopé esta se erigia, chegava-se, no topo, à comissão de engenharia, em casebre que não 
fora destruído; e, metido o olhar pelos resquícios das paredes espessadas de rachões de pedra, via-se de perto, 
dali cem metros, a praça das igrejas. Estava-se sobre a encosta que tinha à base as paliçadas e palancas do trecho 
mais perigoso do sítio, centralizado pelo 25.º Batalhão — a "linha negra" — lado por onde entrara mais fundo 
nos flancos do arraial o assalto de 18 dejulho. Volvendo à esquerda, sob o anteparo da linha descontínua de 
choupanas por ali dispersas, passava-se, dados mais alguns passos, pelo quartel-general da 1.ª coluna. Descia-se 
a vertente sul seguindo por um releixo coleante, tendo à meia encosta, noutro casebre exíguo, o da segunda. 
Chegava-se à Repartição do Quartel-Mestre-General e acampamento do Batalhão Paulista, embaixo, numa 
planura arenosa, que o Vaza-Barris alaga nas enchentes. Continuando a rota, depois de atravessar o leito daquele 
sob o abrigo do espaldão de pedra, abarreirando-o de uma margem à outra e guarnecido pelo 26.°, alcançava-se a 
tranqueira extrema do cerco, prolongada pelo 5.° da Bahia distendido na acanaladura funda do rio da 
Providência. Dali duzentos metros, atentando para a esquerda, contemplava-se, alcandorada no alto, bojando na 
corcova da fazenda Velha, à maneira de um baluarte pênsil — a trincheira Sete de Setembro. 

 

Percorrendo desse modo a cercadura dos entrincheiramentos, os novos expedicionários tinham, nítida, a situação, 
traduzindo-se o exame feito num diluente do otimismo anterior. Aquele segmento do sítio era ainda escasso se o 
defrontavam com a amplitude do arraial. Este surpreendia-os. Afeitos às proporções exíguas das cidades 
sertanejas, tolhidas e minúsculas, assombrava-os aquela Babilônia de casebres, avassalando colinas. 

 

Canudos 

 

Canudos tinha naquela ocasião — foram uma a uma contadas depois — 5.200 vivendas; e como estas, cobertos 
de tetos de argila vermelha, mesmo nos pontos em que se erigiam isoladas, mal se destacavam, em relevo, no 
solo, acontecia que as vistas, acomodadas em princípio ao acervo de pardieiros compactos em torno da praça, se 
iludiam, avolumando-a desproporcionadamente. A perspectiva era empolgante. Agarrava-a o tom misterioso do 
lugar. Repugnava admitir-se que houvesse ali embaixo tantas vidas. A observação mais afincada, quando 
transitório armístico a permitia, não lograva distinguir um vulto único, a sombra fugitiva de um homem; e não se 
ouvia o rumor mais fugaz. Lembrava uma necrópole antiga ou então, confundidos todos aqueles tetos e paredes 
no mesmo esboroamento — uma cata enterroada e enorme, roída de erosões, abrindo-se em voçorocas e 
pregueando-se em algares. 

 

Que o observador, porém, não avultasse demais sobre o parapeito: as balas ressaltando a súbitas, de baixo, 
revelavam-lhe, de pronto, a população entocada. Bastava que um disparo qualquer, a qualquer hora, atroasse o 
alto do morro para que dali refluísse, inevitável, o revide imediato. Porque os jagunços, se não tinham mais a 
iniciativa dos ataques, replicavam com o vigor antigo. Exauriam-se sem perder o aprumo, timbrando no disfarçar 
quaisquer sintomas de enfraquecimento. Compreendia-se, no entanto, que este era completo. Objetivavam-no os 
próprios escombros em que se entaliscavam, ocultos. Além disso, lá não estava apenas uma guarnição de 
valentes incorrigíveis. Havia mulheres e crianças sobre que rolavam durante três meses massas de ferros e de 
chamas, e elas punham muitas vezes no fragor das refregas a nota comovedora do pranto. 

 

Dias antes um schrapnel arrojado da Favela, e que passara beirando as cimalhas da igreja nova, arrebentara 
dentro do casario anexo à latada das orações. E dali ascendera imediatamente uma réplica cruel perturbando os 
artilheiros do coronel Olímpio: um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, 
fazendo que o canhoneio cessasse à voz austera e comovida daquele comandante. . . 

 

Assim, duplamente bloqueados, entre milhares de soldados e milhares de mulheres — entre lamentações e 
bramidos, entre lágrimas e balas — os rebeldes se renderiam de um momento para outro. Era fatal. A segurança 


do pleito já dera mesmo ensanchas a grandes temeridades. Um sargento do 5.° de Artilharia por duas vezes se 
aventurou, à noite, a atravessar todo o largo, penetrando no templo em ruínas, atirando lá dentro duas bombas de 
dinamite, que não explodiram. Um alferes do 25.°, dias depois, copiando-lhe o arrojo, lançara fogo aos restos da 
igreja velha, que ardera toda. 

 

De sorte que os lutadores vindo noviciar na pendência desigual, cientes destas coisas, recaíam na preocupação 
primitiva: que o inimigo in extremis tivesse ainda fôlego para lhes facultar desdobrassem o destemor e a força. A 
musculatura de ferro das brigadas novas ansiava a medir-se com o espernear da insurreição. Os que ali estavam 
havia tantos meses tinham glórias demais. Fartos, impando de triunfos e agora, mercê dos comboios diários, com 
a subsistência garantida, julgavam inútil despender mais vidas para que se apressasse a rendição inevitável. 
Quedavam numa mornidão irritante. 

 

O acampamento, afora os intervalos, que se tornavam maiores, dos assaltos, tinha a placabilidade de uma 
pequena povoação bem policiada. Nada que recordasse a campanha feroz. Na sede da comissão de engenharia o 
general Artur Oscar, com a atração irresistível de um temperamento franco e jovial, centralizava longas 
palestras. Discorria-se sobre assuntos vários de todo opostos à guerra; casos felizes d"antanho, anedotas hilares, 
ou então alentadas discussões sobre política geral. Enquanto observadores tenazes, num invejável apego à 
ciência, registravam, hora por hora, pressões e temperaturas; inscreviam, invariável, um zero na nebulosidade do 
céu; e consultavam muito graves o higrômetro. Na farmácia militar, estudantes em férias forçadas riam 
ruidosamente e recitavam versos; e pelas paredes ralas de todas as choupanas ridentes, de folhagens pintalgadas 
de flores murchas de juazeiros, transudavam vezes e risos dos que lá dentro não tinham temores, que lhes 
agourentassem as horas ligeiras e tranqüilas. As balas que passavam, raras, repelidas pelas cristas dos cerros em 
trajetórias altas, eram inofensivas. Ninguém as percebia mais. Eram, indicava-o a precisão rítmica com que 
estalavam ou esfuziavam nos ares, lançadas por atiradores certos , que em Canudos parecia estarem apostados a 
lembrar os sitiantes que o sertanejo velava. Mas não impressionavam, embora algumas, em trajetórias baixas, 
batessem no pano das barracas, em vergastadas rijas; como não impressionavam mais os tiroteios fortes, que 
ainda surgiam, às vezes, inopinadamente, à noite. 

 

A vida normalizara-se naquela anormalidade. Despontavam peripécias extravagantes. Os soldados da linha 
negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velha, longas conversas com os jagunços. O 
interlocutor da nossa banda subia à berma da trincheira e, voltado para a praça, fazia ao acaso um reclamo 
qualquer, enunciando um nome vulgar, o primeiro que lhe acudia ao intento, com voz amiga e lhana, como se 
apelidasse algum velho camarada; e invariavelmente, do âmago da casaria ou, de mais perto, de dentro dos 
entulhos das igrejas, lhe respondiam logo, com a mesma tonalidade mansa, dolorosamente irônica. Entabulava-se 
o colóquio original através das sombras, num reciprocar de informações sobre tudo, do nome de batismo, ao 
lugar do nascimento, à família e às condições da vida. Não raro a palestra singular derivava a coisas 
escabrosamente jocosas e pelas linhas próximas, no escuro, ia rolando um cascalhar de risos abafados. O diálogo 
delongava-se até apontar a primeira divergência de opiniões. Salteavam-no, então, de lado a lado, meia dúzia de 
convícios ríspidos, num calão enérgico. E logo depois um ponto final — a bala... 

 

Os soldados do 5.° de Polícia, malgrado o ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o 
tempo em descantes mitigando saudades dos rincões do S. Francisco. Se a fuzilaria apertava, pulavam de 
arremesso aos planos de fogo; batiam-se como demônios, terrivelmente, freneticamente, disparando as carabinas; 
e tendo nas bocas, ressoantes, cadenciadas a estampidos, as rimas das trovas prediletas. Baqueavam, alguns, 
cantando; e aplacada a refrega volviam ao folguedo sertanejo, ao toar langoroso das tiranas, aos "rasgados" nos 
machetes, como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando. 

 

O charlatanismo da coragem 

 

Toda a gente se adaptara à situação. O espetáculo diário da morte dera-lhe a despreocupação da vida. Os antigos 
lutadores andavam por fim pelo acampamento inteiro, da extrema direita à extrema esquerda, sem as primitivas 
cautelas. Ao chegarem aos altos expostos mal estugavam o passo ante os projetis, que lhes caíam logo à roda, 
batendo, ríspidos, no chão. Riam-se dos recém-vindos inexpertos, que transpunham os pontos enfiados, 
retransidos de sustos, correndo encolhidos, quase de cócoras, num agachamento medonhamente cômico; ou que 
não refreavam sobressaltos ante a bala que esfuziava perto, riscando um assovio suavíssimo nos ares, como um 
psiu insidiosamente acariciador da morte; ou que não tolhiam interjeições vivas ante incidentes triviais — dois, 
três ou quatro moribundos, diariamente removidos dos pontos avançados. 

 

Alguns estadeavam o charlatanismo da coragem. Um esnobismo lúgubre. Fardados — vivos dos galões 
irradiantes ao sol, botões das fardas rebrilhando — quedavam numa aberta qualquer livremente devassada ou 


aprumavam-se, longe, no cabeço desabrigado de um cerro distante dois quilômetros do arraial, para avaliarem o 
rigor da mira dos jagunços em alcance máximo. Calejara-os a luta. Narravam aos novos companheiros, 
insistindo muito nos pormenores dramáticos, as provações sofridas. Os episódios sombrios da Favela com o seu 
cortejo temeroso de combates e agruras. Os longos dias de privações que vitimaram os próprios oficiais, um 
alferes, por exemplo, morrendo embuchado, ao desjejuar com punhados de farinha após três dias de fome. As 
lides afanosas das caçadas aos cabritos ariscos ou das colheitas de frutos avelados nos arbustos mortos. Todos os 
incidentes. Todas as minúcias. E concluíam que o que restava fazer era pouco — um magro respigar no 
rebotalho da seara guerreira inteiramente ceifada — porque o antagonista desairado e frágil estertorava 
agonizando. Aquilo era agora um passatempo ruidoso, e nada mais. 

 

A divisão auxiliar, porém, não podia ater-se a papel tão secundário: fazer trinta léguas de sertão, apenas para 
contemplar — espectadora inofensiva e armada dos pés à cabeça — o perdimento do arraial cedendo a pouco e 
pouco àquele estrangulamento vagaroso, sem a movimentação febril e convulsiva de uma batalha... 


Capítulo III 

 

Embaixada ao céu 

 

Mas o bloqueio, incompleto e com extenso claro ao norte, não reduzira o inimigo aos últimos recursos. Os 
caminhos para a Várzea da Ema e o Uauá estavam francos, subdividindo-se multívios pelas chapadas em fora, 
para a extensa faixa do S. Francisco, atravessando rincões de todo desconhecidos, até atingirem os 
insignificantes lugarejos marginais àquele rio, entre Chorrochó e Santo Antônio da Glória. Por ali chegavam 
pequenos fornecimentos e poderiam entrar, à vontade, novos reforços de lutadores. Porque se dirigiam 
precisamente nos rumos mais favoráveis, atravessando vasto trato de um território que é o núcleo onde se ligam 
e se confundem os fundos dos sertões de seis Estados, da Bahia ao Piauí. 

 

Desse modo formavam aos sertanejos a melhor saída, levando-os à matriz em que se haviam gerado todos os 
elementos da revolta. Em último caso eram um escape à salvação. A população, trilhando-os, mal seria 
perseguida nas primeiras léguas, na pior alternativa. Abrigá-la-ia — impérvio e indefinido — o deserto. 

 

Não o fez, porém, embora sentisse acrescida, em torno, a força dos adversários, coincidindo-lhe com o próprio 
deperecimento. Haviam desaparecido os principais guerrilheiros: Pajeú, nos últimos combates de julho; o sinistro 
João Abade, em agosto; o ardiloso Macambira, recentemente; José Venâncio e outros. Restavam como figuras 
principais Pedrão, terrível defensor de Cocorobó, e Joaquim Norberto, guindado ao comando pela carência de 
outros melhores. Por outro lado, escasseavam os mantimentos e acentuava-se cada vez mais o desequilíbrio entre 
o número de combatentes válidos, continuamente diminuído e o de mulheres, crianças, velhos, aleijados e 
enfermos, continuamente crescente. Esta maioria imprestável tolhia o movimento dos primeiros e reduzia os 
recursos. Podia fugir, escoar-se a pouco e pouco em bandos diminutos pelas veredas que restavam, deixando 
aqueles desafogados e forrando-se ao último sacrifício. Não o quis. De modo próprio todos os seres frágeis e 
abatidos, certos da própria desvalia, se devotavam a quase completo jejum, em prol dos que os defendiam. Não 
os deixaram. 

 

A vida no arraial tornou-se então atroz. Revelaram-na depois a miséria, o abatimento completo e a espantosa 
magreza de seiscentas prisioneiras. Dias de angústias indescritíveis foram suportados diante das derradeiras 
portas abertas para a liberdade e para a vida. E permaneceriam para todo o sempre inexplicáveis, se, mais tarde, 
os mesmos que os atravessaram não revelassem a origem daquele estoicismo admirável. É simples. 

 

Falecera a 22 de agosto Antônio Conselheiro. 

 

Ao ver tombarem as igrejas, arrombado o santuário, santos feitos estilhas, altares caídos, relíquias sacudidas no 
encaliçamento das paredes e — alucinadora visão ! —o Bom Jesus repentinamente a apear-se do altar- mor, 
baqueando sinistramente em terra, despedaçado por uma granada, o seu organismo combalido dobrou-se ferido 
de emoções violentas. Começou a morrer. Requintou na abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E 
imobilizou-se certo dia, de bruços, a fronte colada à terra, dentro do templo em ruínas. 

 

Ali o encontrou numa manhã Antônio Beatinho. 

 

Estava rígido e frio, tendo aconchegado do peito um crucifixo de prata. 

 

Ora, este acontecimento — capital na história da campanha — e de que parecia dever decorrer o seu termo 
imediato, contra o que era de esperar aviventou a insurreição. É que, gizada talvez pelo espírito astucioso de 
algum cabecilha, que prefigurara as conseqüências desastrosas do fato, ou, o que se pode também acreditar, 
nascida espontaneamente da hipnose coletiva, logo que a beataria impressionada notou a falta do apóstolo, 
embora este nos últimos tempos aparecesse raras vezes — se divulgou extraordinária notícia. 

 

Relataram-na depois, ingenuamente, os vencidos: 

 

Antônio Conselheiro seguira em viagem para o céu. Ao ver mortos os seus principais ajudantes e maior o 
número de soldados, resolvera dirigir-se diretamente à Providência. O fantástico embaixador estava àquela hora 
junto de Deus. Deixara tudo prevenido. Assim é que os soldados, ainda quando caíssem nas maiores aperturas, 
não podiam sair do lugar em que se achavam. Nem mesmo para se irem embora, como das outras vezes. 
Estavam chumbados às trincheiras. Fazia-se mister que ali permanecessem para a expiação suprema, no próprio 
local dos seus crimes. Porque o profeta volveria em breve, entre milhões de arcanjos, descendo — gládios 


flamívomos coruscando na altura — numa revoada olímpica, caindo sobre os sitiantes, fulminando-os e 
começando o Dia do Juízo. . . 

 

Desoprimiram-se todas as almas; dispuseram-se os crentes para os maiores tratos daquela penitência, que os 
salvava; e nenhum deles notou que logo depois, sob pretextos vários, alguns incrédulos, e entre eles Vila-Nova, 
abandonavam a povoação, tomando por ignoradas trilhas. 

 

Saíam ainda em tempo. Eram os últimos que escapavam, porque no dia 24 a situação mudou. 

 

Complemento do assédio 

 

Logo ao alvorecer, enquanto a esquerda da linha e os canhões da Favela iniciavam renhido ataque, atraindo 
para aquele lado a atenção do inimigo, o tenente-coronel Siqueira de Meneses, seguido pelos 24.°, 38.° e 32.° 
Batalhões de linha, comandados pelo major Henrique de Magalhães, capitão Afonso Pinto de Oliveira e tenente 
Joaquim Potengi; o do Amazonas; a ala direita do de S. Paulo, guiada pelo major José Pedro de Oliveira; e um 
contingente de cavalaria ao mando do alferes Pires de Almeida — abalara o segmento ainda desguarnecido do 
assédio, assaltando os pequenos contingentes que o guarneciam dentro das últimas vivendas, que se derramavam, 
esparsas, por aquela banda. 

 

Os jagunços não contavam que fossem até lá. Era o ponto de Canudos diametralmente oposto à fazenda Velha e 
mais distante da primitiva frente do assalto. 

 

Via-se ali um subúrbio novo, as "Casas Vermelhas", ereto depois do fracasso da 3.ª expedição, e nele 
edificações mais corretas, cobertas, algumas de telhas. Não estava guarnecido convenientemente. Faltavam-lhe 
as trincheiras-abrigos, que abrolhavam tão numerosas noutros pontos, e, circunstância na emergência desastrosa 
para os rebeldes, todas as vivendas pelo fato de serem as mais remotas se atestavam de mulheres e crianças. 

 

A força tendo à vanguarda o 24.°, marchando pelo leito do rio, caiu-lhes em cima e varejou-as em minutos. 
Como em geral acontecia, os guerrilheiros viram-se tolhidos na balbúrdia do mulherio medroso. Entretanto não 
cederam desde logo a posição. Recuaram, resistindo; e acompanhando-os os soldados foram embrenhando-se nas 
vielas. 

 

Tomando a ofensiva, reeditavam episódios inevitáveis. Enfiavam as espingardas pelos tabiques de taipa, 
disparando-as, a esmo, para dentro; arrombavam-nos depois a coronhadas; e sobre a acendalha de trapos e 
móveis miseráveis atiravam fósforos acesos. Os incêndios deflagravam, abrindo-lhes caminho. Adiante recuava 
o sertanejo, recuando pelos cômodos escusos. Aqui, ali, destacadamente, uma resistência estupenda de um ou 
outro, jogando alto a vida. Um deles, abraçado pela esposa e a filha, no momento em que a porta da choupana se 
escancarou, estrondada em lascas, atirou-as rudemente de si: assomou de um salto ao limiar e abateu, num revide 
terrível, o primeiro agressor que deparou, um alferes, Pedro Simões Pinto, do 24.º, Baqueou logo, circulado 
pelos soldados, a cutiladas. E ao expirar teve uma frase lúgubre: "Ao menos matei um . . . " 

 

Outro distraiu os soldados. Episódio truanesco e medonho: num recanto da saleta invadida, caído de banda, 
sem alento sequer para sentar-se, adelgaçado de magreza extrema, um curiboca velho, meio desnudo, revestido 
de esparadrapos, forcejava por disparar uma lazarina antiga. Sem forças para aperrá-la, levantava-a a custo. 
Deixava-a logo descair nos braços frouxos, desesperado, refegada a face ossuda, num esgar de cólera impotente. 
As praças rodearam-no um momento; e seguiram num coro estrepitoso de risadas. 

 

Mas este resistir a todo o transe, em que entravam os próprios moribundos, cortou-lhes, afinal, o passo. Em 
pouco tempo tiveram treze baixas. Além disto o adversário recuava, mas não fugia. Ficava na frente, a dois 
passos, na mesma vivenda, no cômodo próximo, separado por alguns centímetros de taipa. Estacaram. Para não 
perderem o avançamento feito abarreiraram, com os móveis e destroços das casas, toda a frente da posição. Era o 
processo usual e obrigatório. 

 

Defronte não havia terreno neutro. O jagunço ficava colado — indomável — na escarpa oposta do 
parapeito, vigilante, tenteando a pontaria. 

 

Cenário de tragédia 

 

Esta refrega, atroando ao norte, ecoava no acampamento, alarmando-o. Atestadas de curiosos, todas as 
casinhas adjacentes à comissão de engenharia formavam a platéia enorme para a contemplação do drama. 


Assestavam-se binóculos em todos os rasgões das paredes. Aplaudia-se. Pateava-se. Estrugiam bravos. A cena 
— real, concreta, iniludível —aparecia-lhes aos olhos como se fora uma ficção estupenda, naquele palco revolto, 
no resplendor sinistro de uma gambiarra de incêndios. Estes progrediam constrangidos, ao arrepio do sopro do 
nordeste, esgarçando-lhe a fumarada amarelenta, ou girando-a em rebojos largos em que fulguravam e se diluíam 
listrões fugazes de labaredas. Era o sombreado do quadro, abrangendo-o de extremo a extremo e velando-o de 
todo, às vezes, como o telão descido sobre um ato de tragédia. 

 

Nesses intervalos desaparecia o arraial. Desaparecia inteiramente a casaria. Diante dos espectadores 
estendia-se, lisa e pardacenta, a imprimidura, sem relevos, do fumo. Recortava-a, rubro e sem brilhos — uma 
chapa circular em brasa — um sol bruxuleante, de eclipse. Rompia-a, porém, de súbito, uma lufada rija. Pelo 
rasgão enorme, de alto a baixo aberto, divisava-se uma nesga do arraial — bandos estonteados de mulheres e 
crianças correndo para o sul, em tumulto, indistintos entre as folhagens secas das latadas. As baterias da Favela 
batiam-nos de frente. Os grupos miserandos, entre dois fogos, fustigados pela fuzilaria, repelidos pelo canhoneio, 
desapareciam, por fim, entaliscados nos escombros, ao fundo do santuário. Ou escondiam-nos outra vez, 
promanando da combustão lenta e inextingüível e rolando vagarosamente sobre os tetos, os novelos de fumo, 
compactos, em cúmulos, alongando-se pelo solo, empolando-se na altura, num tardo ondular de grandes vagas 
silenciosas, adensando-se e desfazendo-se à feição dos ventos; chofrando a frontaria truncada da igreja nova, 
deixando lobrigar-se num pedaço de muramento esboroado, e encobrindo-o logo; dissolvendo-se adiante sobre 
um trecho deserto do rio; espraiando-se mais longe, delidos, pelo topo dos outeiros... 

 

As vistas curiosas dos que pelo próprio afastamento não compartiam a peleja coavam-se naquele sendal de 
brumas. E quando estas se adunavam impenetráveis, em toda a cercadura de camarotes grosseiros do monstruoso 
anfiteatro explodiam irreprimíveis clamores de contrariedades e desapontamentos de espectadores frenéticos, 
agitando os binóculos inúteis, procurando adivinhar o enredo inopinadamente encoberto. 

 

Porque a ação se delongava. Delongava-se anormal, sem o intermitir das descargas intervaladas, o tiroteio 
cerrado e vivo, crepitando num estrepitar estrídulo de tabocas estourando nos taquarais em fogo. De sorte que 
por vezes pairava no ânimo dos que o escutavam, ansiosos, o pensamento de uma surtida feliz dos sertanejos, 
saindo pelas tranqueiras rotas ao norte. Os ecos dos estampidos, variando de rumos, torcidos em ricochete pelos 
flancos das colinas, subindo de intensidade no nevoeiro compacto, desviavam-se. Estalavam-lhes perto, à direita 
e à retaguarda, dando a ilusão de um ataque do inimigo escapo e precipitando-se, em tropel, num revide 
repentino. Trocavam-se ordens precípites. Formavam-se os corpos de reserva. Cruzavam-se inquirições 
comovidas... 

 

Ouvia-se, porém, longínquo, um ressoar de brados e vivas. Corria-se aos mirantes acasamatados. 
Retomavam-se os binóculos. Uma rajada corria, em sulco largo e límpido, pela cerração dentro, talhando-a de 
meio a meio, e desvendando de novo o cenário. 

 

Era um desafogo. Vozeavam aclamações e aplausos. Os jagunços recuavam. 

 

Por fim se viu, estirando-se até ao caminho do Cambaio, uma linha de bandeirolas vermelhas. 

 

Estava bloqueado Canudos. 

 

A nova chegou em pouco ao acampamento de onde largaram, à espora fita, correios para Monte Santo, 
levando-a, para que de lá o telégrafo a espalhasse no país inteiro. 

 

Circuitava agora toda a periferia do povoado uma linha interrompida de tranqueiras, nos intervalos das 
quais não havia escoar-se mais um único habitante: a leste, o centro do acampamento, à retaguarda da linha 
negra, centralizada pela 3.ª Brigada; ao norte, as posições recém-expugnadas, alongando-se guarnecidas 
sucessivamente pelo 31.°, ala esquerda do 24.º, 38.°, ala direita do Batalhão Paulista e o 32.°, de Infantaria, 
cortando as estradas do Uauá e a Várzea da Ema; em todo o quadrante de noroeste, guarnições espaçadas, 
ladeando o redente artilhado no extremo da vereda do Cambaio; a Favela e o baluarte dominante da Sete de 
Setembro, ao sul. 

 

Ainda que em fragmentos, traçara-se a curva fechada do assédio real, efetivo. 

 

A insurreição estava morta. 


Últimos dias 

 

I. O estrebuchar dos vencidos. Os prisioneiros. 

 

II. Depoimento de uma testemunha. 

 

III. Titãs contra moribundos. Em torno das cacimbas. Sobre os muradais da igreja nova. 

 

IV. Passeio dentro de Canudos. 

 

V. O assalto. Notas de um Diário. 

 

VI. O fim. Crânio do Conselheiro. 

 

VII. Duas linhas. 


Capítulo I 

 

O estrebuchar dos vencidos 

 

Sucedeu, então, um fato extraordinário de todo em todo imprevisto. 

 

O inimigo desairado revivesceu com vigor incrível. Os combatentes, que o enfrentavam desde o começo, 
desconheceram-no. Haviam-no visto, até aquele dia, astucioso, negaceando na maranha das tocaias, indomável 
na repulsa às mais valentes cargas, sem par na fugacidade com que se subtraía aos mais improvisos ataques. 
Começaram a vê-lo heróico. 

 

A constrição de milhares de baionetas circulantes estimulara-o, enrijara-o; e dera-lhe, de novo, a iniciativa 
nos combates. Estes principiaram desde 23, insistentes como nunca, sulcando todos os pontos, num rumo 
gigante, estonteador, batendo, trincheira por trincheira, toda a cercadura do sítio. 

 

Era como uma vaga revolta, desencadeando-se num tumulto de voragem. Repelida pelas tranqueiras 
avançadas de leste, refluía numa esteira fulgurante de descargas na direção do Cambaio; arrebentava nas 
encostas que ali descem, clivosas, para o rio: recebia, em cima e em cheio, a réplica das guarnições que as 
encimavam, e rolava, envesgando para o norte, acachoando dentro do álveo do Vaza-Barris, até se despedaçar de 
encontro às paliçadas que naquele sentido o represavam; volvia vertiginosamente ao sul; viam-na ondular, célere 
e agitante, por dentro do arraial, atravessando-o, e logo depois marulhar, recortada de tiros, na base dos 
primeiros esporões da Favela; saltava de novo para o leste, torcida, embaralhada, estrepitosa — e batia a 
esquerda do 5.° da Bahia: era repelida; caía adiante sobre a barreira do 26.º: era repelida; retraía-se daquele ponto 
para o centro da praça, inflectindo, serpeante, rápida, e quebrava-se, um minuto depois, sobre a linha negra; 
passava indistinta, mal vista ao clarão fugaz das fuzilarias, e corria mais uma vez para o norte, chofrando os 
mesmos pontos, repulsada sempre e atacando sempre, num remoinhar irreprimível c rítmico de ciclone... Parava. 
Súbita quietude substituía o torvelinho furioso. Absoluto silêncio descia sobre os dois campos. Os sitiantes 
deixavam a formatura do combate. 

 

Mas repousavam alguns minutos breves. 

 

Um estampido atroava na igreja nova, e viam-se-lhe sobre as cimalhas fendidas, engrimponados nas pedras 
vacilantes, vultos erradios, cruzando-se, mal firmes sobre escombros, correndo numa ronda doida . 
Tombavam-lhes logo em cima, revessadas de todos os trechos artilhados, lanternetas desabrolhando em balas. 
Não as suportavam. Desciam ,em despenhos e resvalos de símios, daqueles muradais Perdiam-se nos pardieiros 
próximos ao santuário. E ressurgiam, inopinadamente, junto de um ponto qualquer da linha Batiam-no, eram 
repelidos; atacavam as outras trincheiras anexas, eram repelidos; caíam sobre as que se sucediam, e prosseguiam 
no giro, arrebatados na rotação enorme dos assaltos. 

 

Os que na véspera desdenhavam o adversário entaipado naqueles casebres assombravam-se. Como nos 
maus dias passados, mais intensamente ainda, jugulou-os o espanto. 

 

Cessaram os desafios imprudentes. Determinou-se, de novo, que não soassem as cornetas. Só havia um toque 
possível — o de alarma — e este o inimigo eloqüentemente o dava. 

 

Despovoaram-se os cerros. Terminou o fanfarrear dos que por ali se estadeavam, desafiando tiros. Valentes de 
fama, premunidos de cautelas, fraldejavam-nos, às rebatinhas pelas passagens cobertas, curvando-se , e 
transpondo aos pinchos os pontos enfiados. Tornaram-se outra vez dificílimas as comunicações. Os comboios 
desde que apontavam ao sul na crista dos morros, pela estrada do Calumbi, começavam a ser alvejados; 
desciam-nos precípites e alguns comboieiros vinham cair feridos no último passo, à entrada do acampamento. 

 

A situação tornou-se, de repente, inaturável. 

 

Não se compreendia que os jagunços tivessem ainda, após tantos meses de luta, tanta munição de guerra. E não a 
poupavam. Em certas ocasiões, no mais agudo dos tiroteios, pairava sobre os abarracamentos um longo uivar de 
ventania forte. 

 

Projetis de toda a espécie, sibilos finos de Mannlicher e Mauser, zumbidos cheios e sonoros de Comblain, 
rechinos duros de trabucos, rijos como os de canhões-revólveres, transvoando a todos os pontos: sobre o âmbito 
das linhas ; sobre as tendas próximas aos quartéis-generais; sobre todos os morros até ao colo abrigado da 


Favela, onde sesteavam cargueiros e feridos; sobre todas as trilhas; sobre o álveo longo e tortuoso do rio e sobre 
as depressões mais escondidas; resvalando com estrondo pela tolda de couro da alpendrada do hospital de sangue 
e despertando os enfermos retransidos de espanto; despedaçando vidros na farmácia militar, anexa; varando, sem 
que se explicasse tal abatimento de trajetória, as choupanas de folhagens, a um palmo das redes, de onde 
pulavam, surpreendidos, combatentes exaustos; percutindo, como pedradas rijas. as paredes espessas dos 
casebres da comissão de engenharia e quartel-general da 1.ª coluna; zimbrando, em sibilos de vergastas, o pano 
das barracas; e fora das barracas, dos casebres, dos toldos, das tendas, estralando, ricochetando, ressaltando, 
desparzindo nos flancos das colinas, sobre as placas xistosas, quebrando-as e esfarelando-as em estilhas, numa 
profusão incomparável de metralha. .. 

 

A luta atingia febrilmente o desenlace da batalha decisiva que a remataria. Mas aquele paroxismo 
estupendo acobardava os vitoriosos. 

 

Os prisioneiros 

 

Chegaram no dia 24 os primeiros prisioneiros. 

 

Voltando triunfante, a tropa, que a princípio colhera em caminho meia dúzia de crianças, de quatro a oito anos, 
por ali dispersas e tolhidas de susto, ao esquadrinhar melhor os casebres conquistados encontrara algumas 
mulheres e alguns lutadores, feridos. 

 

Estes últimos eram poucos e vinham em estado deplorável: trôpegos, arrastados, exaustos. 

 

Um suspenso pelas axilas entre duas praças, meio desmaiado, tinha, diagonalmente, sobre o peito nu, a 
desenhar-se num recalque forte, a lâmina do sabre que o abatera. Outro, o velho curiboca desfalecido que não 
vingara disparar a carabina sobre os soldados, parecia um desenterrado claudicante. Ferido, havia meses, por 
estilhaços de granada, no ventre, ali tinha dois furos, de bordos vermelhos e cicatrizados, por onde extravasavam 
os intestinos. A voz morria-lhe na garganta, num regougo opresso. Não o interrogaram. Posto à sombra de uma 
barranca continuou na agonia, que o devorava, talvez havia três meses. 

 

Algumas mulheres fizeram revelações: Vila-Nova seguira, na véspera, para a Várzea da Ema. Sentia-se, já 
há tempos, fome no arraial, sendo quase todos os mantimentos destinados aos que combatiam; e, revelação mais 
grave, o Conselheiro não aparecia desde muito. 

 

Ainda mais, trancadas todas as saídas, começara para todos, lá dentro, o suplício crescente da sede. 

 

Não iam além as informações. Os que as faziam, inteiramente sucumbidos, mal respondiam às perguntas. 
Um único não refletia na postura abatida as provações que vitimavam os demais. Forte, de estatura meã e 
entroncada — espécimen sem falhas desses hércules das feiras sertanejas, de ossatura de ferro articulando em 
juntas nodosas e apontando em apófises rígidas — era, tudo o revelava, um lutador de primeira linha, talvez um 
dos guerrilheiros acrobatas que se dependuravam ágeis nos dentilhões abalados da igreja nova. Primitivamente 
branco, requeimara-se-lhe inteiramente o rosto, mosqueado de sardas. Pendia-lhe à cintura, oscilante, batendo 
abaixo do joelho, a bainha vazia de uma faca de arrasto. Fora preso em plena refrega. Conseguira derribar, num 
arremessão valente, três ou quatro praças; lograria escapar se não caísse, tonto, ferido de esconso por uma bala 
na órbita esquerda. Entrou, jugulado como uma fera, na tenda do comandante da 1.ª coluna. Ali o largaram. O 
resfolego precípite argüia o cansaço da luta. Alevantou a cabeça e o olhar singular que lhe saía dos olhos — um 
cheio de brilhos, outro cheio de sangue — assustava. Tartamudeou, desajeitadamente, algumas frases mal 
percebidas. Tirou o largo chapéu de couro e, ingenuamente, fez menção de sentar-se. 

 

Era a suprema petulância do bandido! 

 

Brutalmente repelido, rolou aos tombos pela outra porta, escorjado sob punhos possantes. 

 

Fora, passaram-lhe, sem que protestasse, uma corda de sedenho na garganta. E, levado aos repelões para o 
flanco direito do acampamento, o infeliz perdeu-se com os sinistros companheiros que o ladeavam no seio 
misterioso da caatinga 

 

A degola 

 


Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham 
invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma 
cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente 
exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O 
processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão. 

 

Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido... 

 

Tínhamos valentes que ansiavam por essas cobardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos 
chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas 
barbaridades. 


Capítulo II 

 

Depoimento do autor 

 

Desvendemo-las rudemente. 

 

Deponhamos . 

 

O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante. 

 

Começara sob o esporear da irritação dos primeiros reveses, terminava friamente feito praxe costumeira, 
minúscula, equiparada às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de agüentar o peso da 
espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro 
comandante se dava o trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender. 

 

Dispensava-a o soldado atreito à tarefa 

 

Esta era, como vimos, simples. Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta 
de chiquerador; impeli-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém se surpreendesse; e sem 
temer que se escapasse a presa, porque ao mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o 
laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até à primeira covanca profunda, o que era um 
requinte de formalismo; e, ali chegados esfaqueá-la. Nesse momento, conforme o humor dos carrascos, surgiam 
ligeiras variantes. Como se sabia, o supremo pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da 
morte senão pelas suas conseqüências, porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a alma. 

 

Exploravam esta superstição ingênua. Prometiam-lhes não raro a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros 
o faziam. Na maioria emudeciam, estóicos, inquebráveis — defrontando a perdição eterna. Exigiam-lhes vivas à 
República. Ou substituíam essa irrisão dolorosa pelo chasquear franco e insultuoso de alusões cruéis, num coro 
hilar e bruto de facécias pungentes. E degolavam-nos, ou cosiam-nos a pontaços. Pronto. Sobre a tragédia 
anônima, obscura, desenrolando-se no cenário pobre e tristonho das encostas eriçadas de cactos e pedras, 
cascalhavam rinchavelhadas lúgubres, e os matadores volviam para o acampamento. Nem lhes inquiriam pelos 
incidentes da empresa. O fato descambara lastimavelmente à vulgaridade completa. Os próprios jagunços, ao 
serem prisioneiros, conheciam a sorte que os aguardava. Sabia-se no arraial daquele processo sumariíssimo e 
isto, em grande parte, contribuía para a resistência doida que patentearam. Render-se-iam, certo, atenuando os 
estragos e o aspecto odioso da campanha, a outros adversários. Diante dos que lá estavam, porém, lutariam até à 
morte. 

 

E quando, afinal jugulados, eram conduzidos à presença dos chefes militares, iam conformados ao destino 
deplorável. Revestiam-se de serenidade estranha e uniforme, inexplicável entre lutadores de tão variados 
matizes, e tão discordes caracteres, mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor. 

 

Alguns se aprumavam com altaneria incrível, no degrau inferior e último da nossa raça. Notemos alguns 
exemplos. 

 

Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em fins de setembro, foi conduzido à presença do 
comandante da 1.ª coluna, general João da Silva Barbosa. Chegou arfando, exausto da marcha aos encontrões e 
do recontro em que fora colhido Era espigado e seco Delatava na organização desfibrada os rigores da fome e do 
combate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. A grenha, demasiadamente crescida, afogava-lhe 
a fronte estreita e fugitiva; e o rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, 
feito uma máscara amarrotada e imunda. Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça 
lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos, entreabertos pelos dentes oblíquos e saltados, os 
olhos pequeninos, luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os longos braços desnudos, oscilando — 
davam-lhe a aparência rebarbativa de um orango valetudinário. 

 

Não transpôs a couceira da tenda. 

 

Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo 

 

O general de brigada João da Silva Barbosa, da rede em que convalescia de ferimento recente, fez um gesto 
Um cabo de esquadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas façanhas, adivinhou-lhe o 


intento Achegou-se com o braço. Diminuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do condenado. 
Este, porém, auxiliou-o tranqüilamente; desceu o nó embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se. . . 

 

Perto, um tenente do estado-maior de primeira classe e um quintanista de medicina contemplavam aquela 
cena. 

 

E viram transmudar-se o infeliz, apenas dados os primeiros passos para o suplício. Daquele arcabouço 
denegrido e repugnante, mal soerguido nas longas pernas murchas, despontaram, repentinamente, linhas 
admiráveis — terrivelmente esculturais — de uma plástica estupenda. 

 

Um primor de estatuária modelado em lama. 

 

Retificara-se de súbito a envergadura abatida do negro aprumando-se, vertical e rígida, numa bela atitude 
singularmente altiva. A cabeça firmou-se-lhe sobre os ombros, que se retraíram dilatando o peito, alçada num 
gesto desafiador de sobranceria fidalga, e o olhar, num lampejo varonil, iluminou-lhe a fronte. Seguiu impassível 
e firme; mudo, a face imóvel a musculatura gasta duramente em relevo sobre os ossos, num desempenho 
impecável, feito uma estátua, uma velha estátua de titã, soterrada havia quatro séculos aflorando, denegrida e 
mutilada, naquela imensa ruinaria de Canudos. Era uma inversão de papéis. Uma antinomia vergonhosa. 

 

E estas coisas não impressionavam... 

 

Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças. Fazia mister, porém, 
que se não revelassem perigosas. Foi o caso de uma mamaluca quarentona, que apareceu certa vez, presa, na 
barraca do comandante-em-chefe. O general estava doente. Interrogou-a no seu leito de campanha — rodeado de 
grande número de oficiais. O inquérito resumia-se às perguntas do costume — acerca do número de 
combatentes, estado em que se achavam, recursos que possuíam, e outras, de ordinário respondidas por um "sei 
não!" decisivo ou um "e eu sei?" vacilante e ambíguo. A mulher, porém, desenvolta, enérgica e irritadiça, 
espraiou-se em considerações imprudentes. "Nada valiam tantas perguntas. Os que as faziam sabiam bem que 
estavam perdidos. Não eram sitiantes, eram presos. Não seriam capazes de voltar, como os das outras 
expedições; e em breve teriam desdita maior ficariam, todos, cegos e tateando à toa por aquelas colunas. . ." E 
tinha a gesticulação incorreta, desabrida e livre. 

 

Irritou. Era um virago perigoso. Não merecia o bem-querer dos triunfadores. Ao sair da barraca, um alferes 
e algumas praças seguraram-na. 

 

Aquela mulher, aquele demônio de anáguas, aquela bruxa agourentando a vitória próxima — foi degolada... 

 

Poupavam-se as tímidas, em geral consideradas trambolhos incômodos no acampamento, atravessando-o, 
como bruacas imprestáveis. 

 

Era o caso de uma velha que se aboletara com dois netos de cerca de dez anos junto à vertente em que 
acampava o piquete de cavalaria. Os pequenos, tolhiços, num definhamento absoluto, não andavam mais; tinham 
volvido a engatinhar. Choravam desapoderadamente, de fome. E a avó, desatinada, esmolando pelas tendas os 
restos das marmitas, e correndo logo a acalentá-los, aconchegando-lhes dos corpos os frangalhos das camisas; e 
deixando-os outra vez, agitante, infatigável no desvelo, andando aqui, ali, à cata de uma blusa velha, de uma 
bolacha caída do bolso dos soldados, ou de um pouco d"água; acurvada pelo sofrimento e pela idade, titubeando 
de um para outro lado, indo e vindo, cambeteante e sacudida sempre por uma tosse renitente, de tísica — 
constrangia os corações mais duros. Tinha o que quer que fosse de um castigo; passava e repassava como a 
sombra impertinente e recalcitrante de um remorso... 

 

A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era 
uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava ainda, a 
poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se 
degolar. A repressão tinha dois pólos — o incêndio e a faca. 

 

Justificavam-se: o coronel Carlos Teles poupara certa vez um sertanejo prisioneiro. A ferocidade dos 
sicários retraíra-se diante da alma generosa de um herói... 

 

Mas este pagara o deslize imperdoável de ser bom. O jagunço, que salvara, conseguira fugir e dera-lhe o 
tiro que o removera do teatro da luta. Acreditava-se nestas coisas. Inventavam-nas. Eram antecipados recursos 


absolutórios. Exageravam-se, calculadamente, outras: os martírios dos amigos trucidados, caídos nas tocaias 
traiçoeiras, ludibriados depois de cadáveres e postos como espantalhos à orla dos caminhos...A selvageria 
impiedosa amparava-se à piedade pelos companheiros mortos Vestia o luto chinês da púrpura e, lavada em 
lágrimas, lavava-se em sangue. 

 

Um grito de protesto 

 

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro. A História não iria até ali. 

 

Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas, na 
imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na selvatiqueza 
épica das grandes invasões. Nada tinha que ver naquele matadouro. 

 

O sertão é o homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do 
assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa. 

 

E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era público. Conhecia-o, em 
Monte Santo, o principal representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a indiferença culposa Desse 
modo a consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade 
tácita dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os rancores acumulados, e arrojou, armada até 
aos dentes, em cima da mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar. 

 

Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntesis; era um 
hiato. Era um vácuo. Não existia. Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava. 

 

Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo. 

 

Descidas as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, 
obscuramente, um drama sanguinolento da idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um e de 
outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e 
multiforme das raças — e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus. 

 

A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. 
Encontrou nas mãos, ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca 
relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado. Vibrou-a. Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo 
remoto do futuro. 

 

Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o 
assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa — esta página 
sem brilhos. . . 


Capítulo III 

 

Titãs contra moribundos 

 

O combate de 24 precipitara o desfecho. À compressão que se realizara ao norte, correspondeu, do mesmo 
modo vigoroso, outra, a 25, avançando do sul .O cerco constringia-se num apertão de tenaz. Entraram naquele 
dia em ação, descendo os pendores do Alto do Mário onde acampavam, num colo abrigado à retaguarda da Sete 
de Setembro, os dois batalhões do Pará e o 37.º de linha. E fizeram-no de moto próprio, alheios a qualquer ordem 
do comando geral. 

 

Tinham motivos graves para aquele ato. 

 

A derrocada de Canudos figurava-se-lhes iminente. 

 

Da altura em que se abarracavam, no ângulo morto do boléu da vertente, examinavam-no a todo o instante; 
e viam arrochar-se embaixo a cintura do sítio; e ampliar-se, continuamente maior, a moldura lutuosa dos 
incêndios; e o povoado cada vez mais reduzido à grande praça deserta sempre, larga clareira onde por igual 
temiam penetrar os lutadores dos dois campos. Adiante, perto, estimulando-os, atroava o redente artilhado; 
embaixo, longe, crepitavam os tiroteios incessantes... e eles ali quedavam, inúteis, desdenhados pelas mesmas 
balas perdidas, que lhes ziniam por cima, muito altas, inofensivas. 

 

De um momento para outro aquilo terminaria; e restar-lhes-ia a volta inglória — espadas virginalmente 
novas, bandeiras intactas sem o rendado precioso das batalhas. Porque o general-em-chefe não encobria o 
propósito de não precipitar os acontecimentos num dispêndio inútil de vidas, quando a rendição em poucos dias 
era inevitável. Este intento, expresso sem rodeios, sobre ser mais prático, era mais humano. Mas implicava o 
renome guerreiro por se fazer dos que não tinham ainda combatido . Desvairava-lhes a fama. Coagia-os ao 
constrangimento de receberem, grátis, as coroas antecipadamente bordadas nos Estados nativos pelas mães, pelas 
esposas ou pelas noivas e pelas irmãs saudosas. E não puderam conter-se. Desceram ruidosamente as vertentes. 

 

Travaram então um combate que foi uma surpresa, menos para os atacados que para o resto das linhas 
sitiantes. Desencadeara-se para os lados do Cambaio, secundado pela artilharia do coronel Olímpio da Silveira e, 
a breve trecho, cresceu com extraordinária intensidade. 

 

Ao que se propalou depois, aqueles heróis impacientes, dirigidos pelos coronéis Sotero de Meneses e 
Firmino Rego, levavam o objetivo de tomar o arraial. Carregariam até ao rio. Transpô-lo-iam batendo-se sem 
parar, numa arrancada. Romperiam pela praça vazia. Enfiariam, a marche-marche, numa dispersão de cargas de 
baionetas, por aqueles becos fora. Varrê-los-iam. Pulariam os entulhos fumegantes, apisoando os matutos 
atônitos. E iriam tombar — numa explosão de aplausos — sobre a tranqueira do norte, entre as guarnições 
surpreendidas e pasmas .. 

 

Era um golpe de audácia estupendo. Mas não conheciam os sertanejos. Estes tomaram-lhes vigorosamente o 
passo. Jarretaram-nos. Anularam-lhes, no fim de algum tempo, o intento. E vingaram-se sem o saberem. Porque 
havia, de feito, algo de dolorosamente insolente e irritante no afogo, na inquietação, na ânsia desapoderada, com 
que aqueles bravos militares — robustos, bem fardados, bem nutridos, bem armados, bem dispostos — 
procuravam morcegar a organização desfibrada de adversários que desviviam há três meses, famintos, baleados, 
queimados, dessangrados gota a gota, e as forças perdidas, e os ânimos frouxos, e as esperanças mortas, 
sucumbindo dia a dia num esgotamento absoluto. Dariam a última punctura de baioneta no peito do agonizante; 
o tiro de misericórdia no ouvido do fuzilado. E cobrariam, certo, pouca fama, com a façanha. 

 

Mas nem esta tiveram. 

 

Apertara-se mais o cerco, é certo, mas sem que o resultado atingido ressarcisse os sacrifícios feitos: cerca de 
oitenta homens fora de combate e entre eles, ferido o coronel Sotero, e morto o capitão Manuel Batista Cordeiro, 
do regimento do Pará. 

 

Constringe-se o assédio 

 

Em compensação, dizia-se, fora enorme a perda do inimigo — centenares de mortos, centenares de casas 
conquistadas. Com efeito, a parte do arraial em poder daqueles reduzia-se agora a menos de terço — à orla 
setentrional da praça e casebres junto à igreja. 


 

Onze batalhões (16 °, 22.º, 24.°, 27.°, 32.°, 33.°, 37.°, 38.º, de linha, o do Amazonas, a ala direita do de S. 
Paulo, e o 2.º do Pará), mais de 2500 homens, tinham-se apoderado, nos últimos dias, de cerca de 2 mil casas e 
comprimiam os sertanejos, atirando-os de encontro à vertente da fazenda Velha ao sul, e a leste contra igual 
número de baionetas dos 25°, 7.º, 9.°, 35°, 40.º, 30.°, 12.°, 26°, de linha e 5º de Polícia. 

 

Eram 5 mil soldados, em números redondos, excluídos os que permaneciam de guarda ao acampamento e 
guarnecendo a estrada de Monte Santo. 

 

A população combatida tinha, ao invés das linhas frouxas de um assédio largo, um círculo inteiriço de vinte 
batalhões, e amoitava-se em menos de quinhentos casebres, ao fundo da igreja, na última volta do rio. Os 
incêndios reduziam-lhe, além disto, hora por hora, o campo. E embora as casas, com o seu madeiramento 
escasso, pouco alimentassem as chamas, estas progrediam devagar, no abafamento das fumaradas pardacentas, 
lembrando a combustão imperfeita de centenares de fornos catalães — nos densos rolos de fumo afuliginando o 
firmamento, espraiando-se pelos tetos, tornando ainda mais tristonho o cenário desolado e monótono. A 
artilharia dos morros pouco atirava, exigindo as pontarias grandes resguardos porque o mínimo desvio ou 
variação das alças arrojaria as balas sobre os assaltantes. 

 

Apesar disto, continuava inteiramente vazia a praça. Ninguém se abalançara ainda a tomar as casas que a 
limitavam pelo norte, perpendicularmente à latada; e dentro destas e das que se seguiam compactas, junto à 
igreja, se acolheram os últimos jagunços. Os mais afoitos guarneciam ainda os muramentos desmantelados do 
templo. Comandavam-nos chefes sem grande nomeada. Esses heróis anônimos, porém, dispuseram a sua gente 
para a morte e, voando a todos os pontos, alentavam resistência incompreensível, tomando todas as medidas que 
delongassem indefinidamente o desfecho. 

 

Assim os lutadores, a partir de 26, se revezavam das trincheiras, de onde respondiam aos ataques, para outros 
misteres porventura mais pesados e sérios. 

 

Cavando o próprio túmulo 

 

Preparavam junto ao santuário o último reduto — uma escavação retangular e larga. Abriam o próprio túmulo. 
Batidos de todos os lados, iriam recuando, palmo a palmo, braço a braço, todos, para aquela cova onde se 
sepultariam, indomáveis. 

 

Escavavam, buscando a água que lhes faltava, cacimbas profundas. As mulheres, e as crianças, e os velhos, e os 
enfermos, colaboravam nestes trabalhos brutos. Mal reprofundavam, porém, além de dois metros os estratos 
duríssimos, de modo a atingirem as camadas sobre que repousavam tênues lençóis, filtrados pelos últimos 
estagnados do rio. Alcançavam-nos, às vezes; para vê-los, uma hora depois extintos, sugados na avidez de 
esponja da atmosfera exsicada. E começou logo a torturá-los a sede, avivada pelas comoções e pela canícula 
queimosa. O combate fez-se-lhes, então, um divertimento lúgubre, uma atenuante a maiores misérias. Atiravam a 
esmo, sem o antigo rigor da pontaria, para toda a banda, num dispêndio de munições capaz de esgotar o arsenal 
mais rico. Os que se encurralavam na igreja nova continuavam varejando os altos, enquanto os demais tolhiam 
de frente, a dois passos, os batalhões entranhados no casario. Aí se realizavam episódios brutais. A apertura do 
campo e o estreito das bitesgas impropriando o movimento às seções mais diminutas davam à luta o traço 
exclusivo de uma bravura feroz. Alguns oficiais, ao avançarem, desapertavam os talins e jogavam a um lado a 
espada. Batiam-se à faca. 

 

Mas a empresa tornara-se, ao cabo, dificílima. A constrição do sítio condensara nas casas os que as defendiam e 
estes, enchendo-as, opunham resistência crescente. Quando cediam num ou noutro ponto, os vencedores tinham, 
ainda, inopinadas surpresas. A traça dos sertanejos colhia-os mesmo naquele transe doloroso. 

 

Trincheira de cadáveres 

 

Foi o que sucedeu ao ser conquistado um casebre, depois de tenazmente defendido. Os soldados invadiram-no 
atumultuadamente. E depararam um monte de cadáveres; seis ou oito, caídos uns sobre outros, abarreirando a 
entrada. Não se impressionaram com o quadro. Enveredaram pelos cômodos escuros. Mas receberam em cheio, 
pelas costas, partindo daquela pilha de trapos sanguinolentos, um tiro. Voltando-se, pasmos, detonou-lhes outro, 
à queima-roupa, de frente. Sopitando o espanto, comprimidos na saleta estreita, viram então saltar e fugir o 
lutador fantástico, que adotara o estratagema profanador, batendo-se por trás de uma trincheira de mortos. . . 

 


Em torno das cacimbas 

 

O lento avançar do assedio estacou, então, novamente. Imobilizava-o pela última vez o vencido. Ademais a 
situação não requeria maiores esforços. A vitória viria por si mesma. Bastava que se conservassem as posições. 
Fechadas todas as saídas e francamente batidas as cacimbas marginais do rio, o perdimento do arraial era 
inevitável, em dois dias no máximo — mesmo admitida a presunção de poderem os assediados, por tanto tempo 
e naqueles dias ardentes, suportar a sede que os flagelava. 

 

Mas a resistência duraria uma semana ainda. Porque aquele círculo maciço de batalhões começou de ser partido, 
intermitentemente, pelos sertanejos, à noite. 

 

Na de 26 houvera quatro ataques violentos; na de 27, dezoito; nas dos dias subseqüentes, um único, porque já 
não intermitiram, prolongando-se, contínuos, das seis da tarde às cinco do amanhecer. 

 

Não visavam rasgar um caminho à fuga. Empenhando-se todos ao sul atendiam à conquista momentânea das 
cacimbas, ou gânglios rebalsados do Vaza-Barris. Enquanto o grosso dos companheiros se batia, atraindo para o 
âmago do arraial a maior parte dos sitiantes, alguns valentes sem armas, carregando as borrachas vazias, 
aventuravam-se até à borda do rio. Avançavam cautelosamente. Abeiravam-se das poças esparsas e raras, que 
salpintavam o leito; e enchendo as vasilhas de couro volviam, correndo, arcados sob as cargas preciosas. 

 

Ora, esta empresa, a princípio apenas difícil, foi-se tornando, a pouco e pouco, insuportável. 

 

Descoberto o motivo único daqueles ataques, os sitiantes das posições ribeirinhas convergiam os fogos sobre as 
cacimbas, facilmente percebidas — breves placas líquidas rebrilhando ao luar ou joeirando, na treva, o brilho das 
estrelas... 

 

De sorte que, atingindo-lhes as bordas, os sertanejos tinham, em torno e na frente, o chão varrido à bala. 

 

Avançavam e caíam, às vezes, sucessivamente, todos. 

 

Alguns antes que chegassem às ipueiras esgotadas, reduzidas a repugnantes lamacerios; outros quando, de 
bruços, sugavam o líquido salobro e impuro; e outros quando, no termo da tarefa, volviam arcando sob os bogós 
repletos. Substituíam-nos outros, rompendo desesperadamente contra os tiroteios, afrontando-se com a morte. 
Ou, o que em geral sucedia, deixavam que se atreguasse a repulsa enérgica e mortífera e se descuidassem os 
soldados vigilantes. Mas estes, conhecendo-lhes os ardis, sabiam que tornariam outra vez em breve. 
Aguardavam-nos, pontarias imóveis, ouvidos armados ao menor ruído, olhos frechando, fitos, as sombras, como 
caçadores numa espera. E divisavam-nos, de fato, transcorridos minutos, indistintos, vultos diluídos no escuro, 
na barranca fronteira; e viam-nos, descendo lento e lento por ela abaixo, de bruços, rentes com o chão, 
vagarosamente, num rastejar serpejante de grandes sáurios silenciosos; e viam-nos depois, embaixo, 
arrastando-se pelo esteiro areento do rio... 

 

Seguravam as pontarias. Deixavam-nos aproximar-se, e deixavam-nos atingir os estagnados que eram o 
chamariz único daquela ceva monstruosa. 

 

Então lampejava o fulgor das descargas subitâneas ! Fulminavam-nos. Percebiam-se, adiante quinze metros, 
gritos dilacerantes de cólera e de dor; dois ou três corpos escabujando à beira das cacimbas; correndo outros, 
espavoridos; outros, feridos, em cambaleios; e outros desafiando o fuzilamento, pulando, sem resguardos agora, 
das barrancas — e velozes, terríveis, desafiadores — passando sobre os companheiros moribundos, arremetendo 
com a barreira infernal que os devorava. 

 

Um único às vezes escapava, às carreiras. Transpunha a barranca de um salto, e perdia-se nos escombros do 
casario, levando aos companheiros alguns litros de água que custavam hecatombes. E era um líquido suspeito, 
contaminado de detritos orgânicos, de sabor detestável em que se pressentia o tóxico das ptomaínas e fosfatos 
dos cadáveres decompostos jazentes desde muito insepultos por toda aquela orla do Vaza -Barris. 

 

Estes episódios culminaram o heroísmo dos matutos. Comoviam, por fim, aos próprios adversários. 

 

Sobre os muradais da igreja nova 

 


Não raro, quando toda a linha de sítio, ao norte, estrugia os ares em descargas compactas, sem que se 
distinguissem os tiros singulares, num ressoar intenso lembrando o de represas repentinamente abertas, e o 
bombardeio as completava, tombando dos morros — os combatentes da linha central do acampamento, 
arriscando-se aos projetis perdidos, borrifados pela refrega, faziam-se espectadores de uma cena extraordinária. 

 

Em muitos despontou, ao cabo, irreprimível e sincero entusiasmo pelos valentes martirizados. Não o encobriam. 
O quadro que se lhes oferecia imortalizava os vencidos. Cada vez que os contemplavam, tinham, crescente, o 
assombro: 

 

A igreja sinistra bojava, em relevo, sobre o casario em ruínas; e, impávidos ante as balas que sobre ela 
convergiam, viam-se, no resplendor fugaz das fuzilarias, deslizando-lhe pelas paredes e entulhos, subindo-lhe 
pelas torres derrocadas ou caindo por elas abaixo, de borco, presos aos blocos disjungidos, como titãs 
fulminados, vistos de relance num coriscar de raios, aqueles rudes patrícios indomáveis... 


Capítulo IV 

 

Passeio dentro de Canudos 

 

Percebia-se-lhes, contudo, hora por hora, a exaustão. 

 

Durante o dia o povoado, silencioso, marasmava na estagnação do bloqueio. Nem um ataque, às vezes. A 28 de 
setembro não replicaram às duas salvas de 21 tiros, de bala, com que foi criminosamente saudada, pela manhã e 
à tarde, a data belíssima que resume um dos episódios mais viris da nossa história. Era o fim. 

 

Faziam-se já no acampamento preparativos para a volta; soavam livremente as cornetas; andava-se à vontade por 
toda a banda; entravam impunemente os comboios diários e correios, levando os últimos, para os lares distantes, 
as esperanças e as saudades dos triunfadores; grupos descuidados seguiam perlustrando pelas cercanias; 
improvisavam-se banquetes; e à tarde, formadas à frente dos quartéis de vários comandos, tocavam, nas retretas, 
as fanfarras dos corpos. 

 

Percorria-se, ao cabo, quase todo o arraial. 

 

A 28 o general-em-chefe e o comandante da 2.ª coluna realizaram, com os estados-maiores respectivos, este 
passeio atraentíssimo. 

 

Seguiram a princípio pelo alto das colinas à direita do acampamento e, depois de uma inflexão à esquerda 
descendo por dentro de sanga flexuosa, onde repontavam grandes placas de filades dando-lhe a feição de longa 
passagem coberta, avançaram até toparem as primeiras casas e, simultaneamente, esparsos, jazentes a esmo 
sobre montes de esteios, traves e ripas carbonizadas, os primeiros cadáveres insepultos do inimigo. 

 

Tinha-se neste momento a impressão de uma entrada em velha necrópole que surgisse, desvendando-se de 
repente, à flor da terra. As ruínas agravavam a desordem das pequenas vivendas, construídas ao acaso, 
defrontando-se em bitesgas de um metro de largo, empachadas pelos tetos de argila abatidos. De sorte que a 
marcha se fazia adstrita a desvios tortuosos e longos. E a cada passo, passando junto aos casebres que ainda 
permaneciam de pé, oscilantes e arrombados, livres ainda das chamas, despontava ante o visitante atônito um 
traço pungente da vida angustiosa que se atravessara ali dentro. 

 

Dizia-o, mais expressiva, a nudez dos cadáveres. Estavam em todas as posições, estendidos, de supino, face para 
os céus; desnudos os peitos, onde se viam os bentinhos prediletos; inflexos no último crispar da agonia; mal 
vistos, às vezes, caídos sob madeiramentos, ou de bruços sobre as trincheiras improvisadas, na atitude de 
combate em que os colhera a morte. 

 

Em todos, nos corpos emagrecidos e nas vestes em pedaços, liam-se as provações sofridas. Alguns ardiam, 
lentamente, sem chamas, revelados por tênues fios de fumaça, que se alteavam em diversos pontos. Outros, 
incinerados, se desenhavam, salteadamente, nítidos, esbatida a brancura das cinzas no chão poento e pardo, à 
maneira de toscas e grandes caricaturas feitas a giz... 

 

Seguia-se. A marcha gradativamente se tornava mais penosa, através de entulhos sucessivos de um esterquilínio pavoroso. A soldadesca varejando as casas pusera fora, às portas, entupindo os becos em monturos, toda a ciscalhagem de trastes em pedaços, de envolta com a farragem de molambos inclassificáveis: pequenos baús de cedro; bancos e jiraus grosseiros; redes em fiapos; berços de cipó e balaios de taquara; jacás sem fundo; roupas de algodão, de cor indefinível; vasilhames amassados, de ferro; caqueiradas de pratos, e xícaras, e garrafas; 
oratórios de todos os feitios; bruacas de couro cru; alpercatas imprestáveis; candeeiros amolgados, de azeite; 
canos estrondados, de trabucos; lascas de ferrões ou fueiros; caxerenguengues rombos... 

E nestes acervos, nada, o mais simples objeto que não delatasse uma existência miseranda e primitiva. 
Pululavam rosários de toda a espécie, dos mais simples, de contas policrômicas de vidro, aos mais caprichosos, 
feitos de ouricuris; e, igualmente inúmeras, rocas e fusos, usança avoenga tenazmente conservada, como tantas 
outras, pelas mulheres sertanejas. Sobre tudo aquilo, incontáveis, esparsos pelo solo, apisoados, rasgados — 
registros, cartas santas, benditos em quaderninhos costurados, doutrinas cristãs velhíssimas, imagens 
amarfanhadas de santos milagreiros, verônicas encardidas, crucifixos partidos; e figas, e cruzes, e bentinhos 
imundos... 

 


Em alguns lugares — um claro limpo, cuidadosamente varrido, um aceiro para que os incêndios não atingissem 
os entrincheiramentos. Varava-se mais facilmente por ali; penetrando fundo no casario e aproximando-se 
daqueles. 

 

Topava-se, então, adiante, uma sentinela que recomendava em voz baixa prosseguir com cautela: o jagunço 
estava perto, menos de três metros, da outra banda da paliçada... 

 

Os visitantes, generais, coronéis até ao último posto, na ansiedade de quem contorna uma emboscada, 
avançavam agachados, heroicamente cômicos, céleres, de cócaras, correndo. Transpunham a linha perigosa. 
Quebravam dois ou três becos. Chegavam a outra trincheira: soldados imóveis, espectantes, mudos ou 
conversando em cochichos. Reproduzia-se a mesma travessia com o coração e as pernas aos saltos, a mesma 
corrida ansiosa, até outra trincheira adiante: idênticos lutadores, cautos, silenciosos, estendidas ou enfiadas as 
carabinas pelos parapeitos, que os resguardavam. 

 

Transcorridos quinhentos metros, volvia-se à esquerda deixando à retaguarda as Casas Vermelhas e tinha-se uma 
surpresa — uma rua, uma verdadeira rua, a do Monte Alegre, a única que merecia tal nome, alinhada, larga de 
uns três metros e alongando-se de norte a sul, até à praça, cortando todo o arraial. Nela se erigiam as melhores 
vivendas, algumas casas de telhas e soalho, e entre estas a de Antônio Vila-Nova, onde dias antes se tinham 
encontrado restos de munições da coluna Moreira César. 

 

Descia-se por ela em suave declive, divisando-se no extremo, na praça, um lanço derruído da igreja. Mas a breve 
trecho estacava-se de encontro a outro entrincheiramento, onde se adensava maior número de combatentes. Era o 
último, naquele rumo. Dali por diante um passo mais era o espingardeamento certo. Toda a parte do arraial à 
direita e na frente estava ainda em poder dos habitantes. Os adversários acotovelavam-se. Ouvia-se, transudando 
das paredes de taipa, o surdo e indefinível arruído da população entocada: vozes precípites, cautas, segredando 
sob o abafamento dos colmos; arrastamentos de móveis; soar de passos; e uns como longínquos clamores e 
gemidos; e às vezes — notas cruelmente dramáticas ! — gritos, e choros, e risos, de crianças... 

 

Volvia-se dali para a esquerda, voltando ao ponto de partida, através das casas tomadas nas vésperas, e o passeio 
tornava-se amedrontador. Em todo este novo segmento da linha do sítio, definindo-lhe o avançamento máximo 
depois dos combates da última semana, não se tinham destruído os casebres. Derrubadas apenas as paredes 
interiores e as empenas, as coberturas de barro sucediam-se unidas ou pouco espaçadas, feito o teto de 
longuíssimo armazém abarracado. A barreira de esteios e vigas, canastras e trastes de toda a sorte, por detrás da 
qual se alinhavam os batalhões, progredia por ela dentro, torcida e longa, desaparecendo de todo numa distancia 
de trinta metros, perdida na penumbra. Adivinhavam-se os soldados, a um lado, guarnecendo-a. Pelos recantos 
escuros, à retaguarda, lobrigavam-se os corpos dos jagunços mortos nos últimos dias, que fora perigoso queimar 
entre acervos de farrapos e estilhas de madeira, esparsos por toda a parte. 

 

Impregnava o ambiente um bafio angulhento de caverna. 

 

Era preciso valor para atravessar aquela espécie de túnel, em cuja boca, ao longe, mal se divisava um reflexo 
pálido do dia. Porque, a dois passos, ladeando-o, paralelamente, se estendia o entrincheiramento invisível do 
inimigo, interpostas as paredes fronteiras, enfrestadas. De sorte que o mínimo descuido, o mais rápido olhar por 
cima daqueles parapeitos de ciscalhos, era duramente pago. É que de parte a parte estavam as mesmas astúcias, 
avivadas dos mesmos ódios. Naquele sombrio finalizar da luta os antagonistas temiam-se por igual. Evitavam 
por igual o recontro franco. Negaceavam, estadeando as mesmas ardilezas e a mesma proditória quietitude. 
Imóveis largo tempo, um em frente ao outro, abrigados na mesma sombra, parecendo refletir a adinamia do 
mesmo esgotamento — espiavam-se, solertes, traiçoeiros, tocaiando-se. E não podiam encontrar melhor cenário 
para ostentarem ambos, soldados e jagunços, a forma mais repugnante do heroísmo do que aquele esterquilínio 
de cadáveres e trapos, imersos na obscuridade de uma furna. 

 

Seguia-se por ali envolto de um silêncio lúgubre. Percebiam-se os soldados esfrangalhados, imundos, sem bonés, 
sem fardas, cobertos de chapéus de couro ou de palha, calçando alpercatas velhas, vestidos com o mesmo 
uniforme do adversário. E acreditava-se que, com alguma presença de espírito, o sertanejo pudesse insinuar-se 
pelos rombos do tapume extenso, e aparecer entre eles, e achegar-se com a espingarda ao parapeito, e ali se 
quedar forrando-se às torturas do cerco, sem que o conhecessem — o que ademais era facilitado pela mistura dos 
diversos batalhões. Nem o atraiçoaria palmar ignorância dos deveres ou exigências da vida militar, porque esta 
se extinguira, por completo. Não havia revistas, formaturas, nem toques, nem vozes de comando. Distribuídos os 
cartuchos, cada um se encostava ao espaldão de cacaréus pronto ao que desse e viesse. 

 


Distribuídas as rações diárias, fartas agora, cada um as preparava quando se lhe antojava ensejo. Aqui, ali, à 
retaguarda da linha ou dentro dos cubículos estreitos, sobre trempes de adobes ou pedras, chiavam as chaleiras 
aquentando água para o café; ferviam panelas; destacavam-se grandes quartos de boi, pendurados aos caibros, 
avermelhando no escuro, sobre braseiros, assando. Em torno, acocorados, carabinas sobraçadas, viam-se, em 
grupo, os combatentes que aproveitavam ligeira trégua para almoçar ou jantar. Dali corriam, não raro, em 
tumulto, jogando fora os canecos de jacuba ou nacos de churrasco precipitando-se para a estacada quando, de 
súbito, estalava um tiro adiante e zuniam logo as balas esfuziantes, varando os tetos, estilhaçando ripas e traves, 
esbotenando paredes, emborcando caldeirões — espalhando soldados como um pé de vento sobre palhas. No 
parapeito, adiante, replicavam de pronto os que já lá estavam, atirando a esmo contra o tabique que defrontavam 
e donde partira a agressão. Imitavam-nos os companheiros laterais. Logo depois vibrava um abalo nervoso, 
único, estendendo-se daquele ponto aos dois extremos, com uma trepidação vibrátil de descargas; e travava-se o 
combate, de improviso, furiosamente, desordenadamente, entre adversários que se não viam... 

 

Baqueavam algumas praças, mortas ou feridas. Conquistavam-se dois ou três casebres mais — empurrando-se 
logo por diante toda a cangalhada de móveis, encurvando-se a tranqueira num ângulo saliente em talhante 
avançado. Volviam, prestes, os lutadores que mais se tinham avantajado, às posições primitivas. E o silêncio 
descia de novo, reinando outra vez o mesmo silêncio formidável: soldados mudos e imóveis, acaroados com a 
borda da tapada sinistra, espectantes, na tocaia; ou, ao fundo, em roda dos brasidos, reatando as merendas 
ligeiras, que tinham, às vezes, uns trágicos convivas — os moradores assassinados, estirados pelos recantos... 

 

Deixava-se, por fim, este segmento sinistro do bloqueio, que trancava quase todo o quadrante do norte. 
Prosseguia-se, a céu aberto agora, em pleno dia, atravessando quintalejos pobres de cercas caídas e canteiros 
rasos, sem mais uma flor, e atravancados da mesma circalhagem indefinível, em montes. Sobre estes, corpos de 
sacrificados ainda: pernas surdindo inteiriçadas; braços repontando desnudos, num retesamento de angústia; 
mãos espalmadas e rígidas, mãos contorcidas em crispaduras de garras, apodrecendo, sinistras, em gestos 
tremendos de ameaça ou apelos excruciantes... 

 

Deparavam-se novos viventes: gozos magríssimos, famélicos lebréus, pelados, esvurmando lepra, farejando e 
respirando aqueles monturos, numa ânsia de chacais, devorando talvez os próprios donos. Fugiam rápidos. 
Alguns cães de fila, porém, grandes molossos ossudos e ferozes, afastavam-se devagar, em rosnaduras 
ameaçadoras, adivinhando no visitante o inimigo, o intruso irritante e mau. 

 

Ia-se descendo sempre, até à sanga escavada, embaixo, correndo, em direção perpendicular à que se levava, para 
o Vaza-Barris ao longe, para onde canalizavam, nas quadras chuvosas, as águas das vertentes interopostas. Ali 
terminava, batendo contra o topo da colina, onde estava a comissão de engenharia, a parte do arraial expugnada a 
18 de julho. Podia atingir-se diretamente o acampamento seguindo em frente, transpondo o valo, subindo e 
atravessando, à meia encosta, a bateria de Krupps emparcada ao fundo do quartel-general da 1.ª a coluna; ou, 
num desvio longo, volvendo à direita, acompanhando o valo, perlongando a linha primitiva do assédio, descendo 
para o sul. A travessia era sem riscos. As casas — num desordenado arruamento às bordas daquele sulco de 
erosão, acompanhando-lhe o declive, caindo-lhe pelos ressaltos, envesgando-lhe pelas curvas vivas — tinham, 
na maioria, sido desmanchadas, salvante poucas, as melhores, onde se improvisavam salas de ordem das 
brigadas, quartéis e ranchos da oficialidade. Uma delas era digna de nota. Fora uma tenda de ferreiro. 
Mostravam-no ainda alguns gastos marrões, tenazes partidas e derruída forja fixa, de adobes. E aquela ferraria 
pobre do sertão tinha uma bigorna luxuosa, do mais fino aço, que se fundira em Essen: um dos canhões tomados 
à expedição Moreira César. 

 

Continuando a marcha topava-se a "linha negra", nome que primitivos sucessos justificavam, mas agora 
inexplicável para quem vinha das sombrias trincheiras deixadas ao norte. 

 

Seguia-se acompanhando-a pelo fundo de um fosso, até se abrir a meio caminho, à direita, um claro amplo — a 
praça das igrejas, deserta, achanada, varrida, fazendo avultar maior, mais dominador, mais brutal, mais sinistro, 
com os seus paredões incombentes, fendidos de alto a baixo, com a sua fachada estupenda esboroando em 
monólitos, com as suas torres roídas, e o adro entupido de blocos encaliçados, e a nave, lá dentro, vazia, escura, 
misteriosa — o templo monstruoso dos jagunços. 

 

Dados mais alguns passos fronteava-se a igreja velha, inteiramente queimada, reduzida às quatro paredes 
exteriores. 

 

Tinham-se nesse momento, à esquerda, o mais miserando dos campos santos, centenares de cruzes — dois paus 
roliços amarrados com cipós — fincados sobre sepulturas rasas. 


 

Transpunha-se depois o Vaza-Barris; enfiava-se pelo sulco profundo do rio da Providência, percorrendo, em 
torcicolos, as fileiras dizimadas do 5.° de Polícia, reduzido ao terço do primitivo quadro — e chegava-se, no 
tombador da Favela, a uma clareira em declive. No alto o baluarte Sete de Setembro sobressaía em balcão, 
dominante. 

 

Percorria-se rapidamente aquele intervalo perigoso, alcançando-o. 

 

Contemplava-se o arraial embaixo. Modificara-se afinal, o aspecto sombreado de largas manchas escurentas, de 
incêndios; erriçado de madeiramentos varando pelos rombos dos tetos; tumultuando em montões de argila — 
num esmagamento completo, arruinado, queimado, devastado... 

 

Apenas estreita fímbria da face norte da praça e o núcleo de casebres junto à latada e à retaguarda da igreja se 
figuravam intactos. Mas eram em número diminuto, quatrocentos talvez, comprimidos em área reduzida. E os 
que neles se abrigavam certo não suportariam por uma hora um assalto de 6 mil homens. 

 

Valia a pena tentá-lo. 


Capítulo V 

 

O assalto 

 

Foi o que fez o comando-em-chefe contravindo ao propósito de aguardar a rendição sem dispêndio inútil de 
vidas, pelo enfraquecimento contínuo dos rebeldes. 

 

Reunidos a 30 de setembro os principais chefes militares, concertaram nos dispositivos do recontro para o dia 
imediato. E, de acordo com os lineamentos do plano adotado, naquele mesmo dia à noite mobilizaram-se as 
unidades do combate, ocupando, assim, de véspera, as posições para a investida . 

 

O assalto seria iniciado por duas brigadas, a 3.ª e 6.ª, dos coronéis Dantas Barreto e João César Sampaio, a 
primeira endurada por três meses de contínuos recontros e a última, recém-vinda, de combatentes que ansiavam 
a medir-se com os jagunços. Aquela deixou, então, a sua antiga posição na linha negra, sendo substituída por três 
batalhões, 9.°, 22.° e 34.°, e, contramarchando para a direita, seguiu rumo à fazenda Velha, de onde juntamente 
com a outra, formada dos 29.°, 39.° e 4.° Batalhões, se moveu até estacionar à retaguarda e flancos da igreja 
nova, objetivo central do acometimento. 

 

Completariam este movimento primordial outros, secundários e supletivos: no momento da carga, o 26.° de 
Linha, o 5.° da Bahia e ala direita do Batalhão de S. Paulo, tomariam rapidamente posições junto à barranca 
esquerda do Vaza-Barris, à ourela da praça, onde se conservariam até nova ordem. À sua retaguarda se 
estenderiam em apoio os dois corpos do Pará, prontos a substituírem-nos, ou a reforçarem-nos, segundo as 
eventualidades do combate. De sorte que este, iniciado à retaguarda e aos flancos da igreja, iria a pouco e pouco, 
deslocando-se para a linha de baionetas que se cosia à barranca lateral do rio, na face sul da praça. 

 

Era, como se vê, um arrochar vigoroso — em que colaborariam os demais corpos guarnecendo as posições 
recém-conquistadas e o acampamento. Interviriam na ação à medida das circunstâncias, ou quando tombassem 
diante das trincheiras e das barrancas as chusmas de inimigos repulsados. 

 

Sobre tudo isto — preliminar preparatória e indispensável —um bombardeio firme, em que entrariam todos os 
canhões do sítio, batendo por espaço de uma hora a estreita área a expugnar-se. Somente depois que eles 
emudecessem, arremeteriam as brigadas assaltantes, de baionetas caladas, sem fazerem fogo, salvo se o 
exigissem as circunstâncias. Em tal caso, porém, devia ser feito na direção única da meridiana, a fim de não 
serem atingidos os batalhões jazentes nas posições próximas ao conflito. A 3.ª Brigada, ao toque geral partido do 
comando-em-chefe, de "infantaria avançar!", seguiria a marche-marche, procurando o flanco esquerdo da igreja, 
junto ao qual se estenderia distante cento e cinqüenta metros; enquanto dois batalhões da 6.ª, o 29.° e o 39.°, 
investissem para a retaguarda daquela, e o 4.°, transpondo também o Vaza-Barris, a acometesse pelo flanco 
direito. Os demais combatentes seriam, a não ser que o imprevisto determinasse ulteriores combinações, simples 
espectadores da ação. 

 

O canhoneio 

 

E no amanhecer do 1.° de outubro começou o canhoneio. 

 

Convergia sobre o núcleo reduzido dos últimos casebres, partindo de longo semicírculo de dois quilômetros, das 
baterias próximas ao acampamento até ao redente extremo, da outra banda, onde findava a estrada do Cambaio. 
Durou 48 minutos apenas, mas foi esmagador. As pontarias estavam feitas de véspera. Não havia errar o alvo 
imóvel. 

 

Dava-se, além disto, a última lição à rebeldia impenitente. Era preciso que, francamente desbravado o chão para 
o assalto, não sobreviessem mais surpresas dolorosas e ele se executasse, de pronto, fulminante e implacável, 
com os entraves únicos de um passo de cargas sobre ruínas. Fizeram-se as ruínas. 

 

Via-se a transmutação do trecho torturado: tetos em desabamentos, prensando, certo, os que se lhes acolhiam por 
baixo, nos cômodos estreitos; tabiques esboroando, voando em estilhas e terrões; e aqui e ali, em começo 
dispersos e logo depois ligando rapidamente, sarjando de flamas a poeira dos escombros, novos incêndios, de 
súbito deflagrando. 


Houve um breve silêncio. Vibrou um clarim no alto da fazenda Velha. Principiou o assalto. 


Os batalhões, embolados pelos becos, fora da zona mortífera das traves e cumeeiras que zuniam, em estilhas, 
sulcando para toda a banda o espaço, aguardavam que se diluísse aquele bulcão de chamas e pó, para o 
derradeiro acontecimento. 


Mas não o executaram. Houve ao contrário um recuo repentino. Batidos de descargas que não se compreendia 
como e eram feitas daqueles braseiros e entulhos, os assaltantes acobertaram-se em todas as esquinas, 
esgueiraram-se pelas abas dos casebres e pularam, na maioria, para trás dos entrincheiramentos. 


Adiante atordoava-os assonância indescritível de gritos, lamentos, choros e imprecações, refletindo do mesmo 
passo o espanto, a dor, o exaspero e a cólera da multidão turturada que rugia e chorava. Via-se indistinto entre 
lumaréus um convulsivo pervagar de sombras: mulheres fugindo dos habitáculos em fogo, carregando ou 
arrastando crianças e entranhando-se, às carreiras, no mais fundo do casario; vultos desorientados, fugindo ao 
acaso para toda a banda; vultos escabujando por terra, vestes presas das chamas, ardendo; corpos esturrados, 
estorcidos, sob fumarentos... E, dominantes, sobre este cenário estupendo, esparsos, sem cuidarem de ocultar-se, 
saltando sobre os braseiros e aprumando-se sobre os colmos ainda erguidos, os últimos defensores do arraial. 
Ouviam-se as suas apóstrofes rudes, distinguiam-se vagamente os seus perfis revoluteando por dentro da 
fumarada; e por toda a parte, salteadamente, a dois passos das linhas de fogo, aparecendo improvisas fisionomias 
sinistras, laivadas de mascarras, bustos desnudos chamuscados, escoriados, embatendo-as, em assaltos 
temerários e doidos . . 



Continua a réplica 

 

Vinham matar os adversários sobre as próprias trincheiras. Estes esmoreciam. Verificaram a inanidade do 
bombardeio, das cargas repetidas e do recurso extremo da dinamite. Desanimavam. Perderam a unidade de ação 
e do comando. Os toques das cornetas contrabatiam-se, discordes, interferentes nos ares, sem que ninguém os 
entendesse. Não havia obedecê-los, variando as condições táticas a cada minuto e a cada passo. As seções de 
uma mesma companhia avançavam, recuavam ou imobilizavam-se; subdividiam-se em todas as esquinas; 
misturavam-se com as de outros corpos; embatiam com as casas ou contornavam-nas, ou dispersavam-se 
aliando-se a outros grupos e reeditando, dados alguns passos, as mesmas avançadas e os mesmos recuos, e a mesma dispersão. De sorte que, por fim, se agitavam em bandos desorientados, em que se amalgamavam praças de todos os batalhões. 

Baixas 

 

Aproveitando este tumulto, os jagunços fuzilaram-nos a salvo e sem piedade. A breve trecho os combatentes, 
que não tinham o anteparo dos espaldões, acumularam-se às abas das vivendas ainda intactas, ou alongaram-se, 
distanciados, pelos becos da parte conquistada — evitando a zona perigosa. Esta, porém, alastrava-se. 
Baqueavam combatentes para além das trincheiras; caíam inteiramente fora da órbita flamejante do combate e, 
como nos maus dias da primeira semana do assédio, a mínima imprevidência e o mais rápido afastamento 
daqueles abrigos frágeis eram uma temeridade. 

 

O capitão-secretário do comando da 2.ª coluna, Aguiar e Silva, quando lhe passava por perto um pelotão em 
marcha, retirou-se por um instante do cunhal que o acobertava e, para animar o ataque, tirou entusiasticamente o 
chapéu, levantando um viva à República. Mas não pronunciou as últimas sílabas. Varou-o uma bala, em pleno 
peito, derrubando-o. 

 

O comandante do 25.°, major Henrique Severino, teve idêntico destino. Era uma alma belíssima, de valente. Viu 
em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o incêndio. Tomou-a nos braços; 
aconchegou-a do peito — criando com um belo gesto carinhoso o único traço de heroísmo que houve naquela 
jornada feroz — e salvou-a. 


Mas expusera-se. Baqueou, malferido, falecendo poucas horas depois. 


E assim por diante. O combate transformara-se em tortura inaturável para os dois antagonistas. 


No hospital de sangue 


As nossas baixas avultavam. Os espectadores, atestando os mirantes acasamatados da coluna extrema do 
acampamento, avaliavam-nas pela lúgubre procissão de andores, padiolas e redes que lhes passava de permeio, 
subindo. Saía da sanga, embaixo; derivava vagarosa na ascensão contorneando em desvios as casas por ali 
espalhadas; galgava o alto e prosseguia, descendo para o hospital de sangue, onde, à uma hora da tarde, já 
haviam chegado cerca de trezentos feridos. 

 

Mas aquela alpendrada de couro, cobrindo a reentrância que se abrigava entre colinas, não os continha. Os 
feridos entulhavam-na; desbordavam para as abas das encostas envolventes, ao sol, sobre as pedras; e 
arrastavam-se, disputando a sombra das barrancas, até à farmácia anexa e pavilhão dos médicos, por onde se 
cruzavam, correndo, enfermeiros e médicos diminutos demais para os satisfazer a todos. Ao fundo do barracão, 
arrimados aos cotovelos, de bruços, os antigos doentes, e feridos dos dias anteriores, olhavam inquietos para os 
novos sócios de infortúnio. A um lado, sobre o chão duro, corpos rígidos francamente batidos pelo sol, jaziam os 
cadáveres de alguns oficiais, o tenente-coronel Tupi, o major Queirós, os alferes Raposo, Neville, Carvalho e 
outros. 

 

Soldados ofegantes e suarentos entravam e saíam intermitentemente, arcados sob padiolas. Despejavam-nas, 
volvendo, prestes, naquela azáfama fúnebre que ameaçava prolongar-se pelo dia todo. Porque até aquela hora a 
situação não melhorara. Persistia indecisa. Mantinha-se a réplica feroz dos adversários. Insistentes, imprimindo 
no tumulto a nota de uma monotonia cruel, reproduziam-se em todas as linhas os toques das cornetas, 
determinando as cargas; e estas realizavam-se, sucessivas, rápidas, impetuosas — pelotões, batalhões, brigadas, 
vagas de metal e flamas, fulgurando, rolando, arrebentando e detonando de encontro a represas intransponíveis. 

 


As bombas de dinamite (foram arrojadas noventa nesse dia) estouravam de momento em momento, mas com 
absoluto insucesso. Adicionaram-se-lhes outros expedientes: latas de querosene derramadas por toda a orla da 
casaria, avivando os incêndios. 

 

Este recurso bárbaro, porém, por sua vez, resultara inútil. 

 

Por fim, às duas horas da tarde, se paralisou inteiramente o assalto; cessaram de todo as cargas; e no ânimo dos 
sitiantes, em franca defensiva nas posições primitivas, doíam desapontamentos de derrota. Defluindo da baixada, 
a leste da praça, continuou largo tempo a romaria penosa dos feridos, em busca do hospital de sangue. Em 
padiolas, em redes, ou suspensos pelos braços entre os companheiros, ascendiam exaustos, titubeantes, 
arrimando-se e cosendo-se às casas. E sobre eles, sobre as colinas, varrendo-as, sobre os morros artilhados, 
varejando-os, sobre o acampamento todo, ao cair da tarde, ao anoitecer e durante a noite inteira, visando todos os 
pontos da periferia do assédio, sibilando em todos os tons pelos ares, da zona reduzidíssima onde se 
acantonavam os jagunços, irrompiam as balas... 

 

O combate fora cruento e estéril. Desfalcara-nos de quinhentos e sessenta e sete lutadores, sem resultado 
apreciável. 

 

Como sempre, a vibração forte da batalha amortecera a pouco e pouco, atenuando-se em tiroteios escassos; e 
toda a noite passou, velando-a, a tropa combalida na expectativa cruel de novos recontros, novos sacrifícios 
inúteis e novos esforços malogrados. 

 

Entretanto a situação dos sertanejos pioram. Tinham, com a perda da igreja nova, perdido as últimas cacimbas. 
Cercavam-nos braseiros enormes, progredindo-lhes em roda e avançando de três pontos — do norte, leste e oeste 
—obstringindo-os no último reduto. 

 

Mas à madrugada de 2 os triunfadores fatigados despertaram com uma descarga desafiadora e firme. 

 

Notas de um diário 

 

Nesse dia... 

 

Translademos, sem Ihes alterar uma linha, as últimas notas de um "Diário", escritas à medida que se 
desenrolavam os acontecimentos . 

 

"... Chegam à uma hora em grande número novos prisioneiros — sintoma claro de enfraquecimento entre os 
rebeldes. Eram esperados. Agitara-se pouco depois do meio-dia uma bandeira branca no cento dos últimos 
casebres e os ataques cessaram imediatamente do nosso lado. Rendiam-se, afinal. Entretanto não soaram os 
clarins. Um grande silencio avassalou as linhas e o acampamento. 

 

A bandeira, um trapo nervosamente agitado, desapareceu; e, logo depois, dois sertanejos, saindo de um 
atravancamento impenetrável, se apresentaram ao comandante de um dos batalhões. Foram para logo conduzidos 
à presença do comandante-em-chefe, na comissão de engenharia. 

 

Antônio, o Beatinho 

 

Um deles era Antônio, o Beatinho, acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido 
e magro, ereto o busto adelgaçado. Levantava, com altivez de resignado, a fronte. A barba rala e curta 
emoldurava-lhe o rosto pequeno animado de olhos inteligentes e límpidos. Vestia camisa de azulão e, a exemplo 
do chefe da grei, arrimava-se a um bordão a que se esteava, andando. Veio com outro companheiro, entre 
algumas praças, seguido de um séquito de curiosos. 


Ao chegar à presença do general, tirou tranqüilamente o gorro azul, de listras e bordas brancas, de linho; e 
quedou, correto, esperando a primeira palavra do triunfador. 


Não foi perdida uma sílaba única do diálogo prontamente travado. 

— Quem é você ? 


— Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente 
não tem mais opinião e não agüenta mais. 
 

E rodava lentamente o gorro nas mãos lançando sobre circunstantes um olhar sereno. 


— Bem. E o Conselheiro ?. . . 


— O nosso bom Conselheiro está no céu ... 


Morte de Conselheiro 


Explicou então que aquele, agravando-se antigo ferimento, que recebera de um estilhaço de granada atingindo-o 
quando em certa ocasião passava da igreja para o Santuário, morrera a 22 de setembro, de uma disenteria,, uma 
"caminheira" — expressão horrendamente cômica que pôs repentinamente um burburinho de risos irreprimidos 
naquele lance doloroso e grave. 


O Beato não os percebeu. Fingiu, talvez, não os perceber. Quedou imóvel, face impenetrável e tranqüila, de 
frecha sobre o general, olhar a um tempo humilde e firme. O diálogo prosseguiu: 



— E os homens não estão dispostos a se entregarem ? 
 

— Batalhei com uma porção deles para virem e não vieram porque há um bando lá que não querem. São de 
muita opinião. Mas não agüentam mais. Quase tudo mete a cabeça no chão de necessidade. Quase tudo está seco 
de sede... 

— E não podes trazê-los ? 

— Posso não. Eles estavam em tempo de me atirar quando saí... 

— Já viu quanta gente aí está, toda bem armada e bem disposta ? 

— Eu fiquei espantado ! 

A resposta foi sincera, ou admiravelmente calculada. O rosto do altareiro desmanchou-se numa expressão 
incisiva e rápida, de espanto. 

— Pois bem. A sua gente não pode resistir, nem fugir. Volte para lá e diga aos homens que se entreguem. Não 
morrerão. Garanto-lhes a vida. Serão entregues ao governo da República. E diga-lhes que o governo da 
República é bom para todos os brasileiros. Que se entreguem. Mas sem condições; não aceito a mais pequena 
condição... 

O Beatinho, porém, recusava-se, obstinado, à missão. Temia os próprios companheiros. Apresentava as melhores 
razões para não ir. 

Nessa ocasião interveio o outro prisioneiro, que até então permanecera mudo. 

Viu-se, pela primeira vez, um jagunço bem nutrido e destacando-se do tipo uniforme dos sertanejos. Chamava-se 
Bernabé José de Carvalho e era um chefe de segunda linha. 


Tinha o tipo flamengo, lembrando talvez, o que não é exagerada conjetura, a ascendência de holandeses que tão 
largos anos por aqueles territórios do Norte trataram com o indígena. 

 
Brilhavam-lhe, varonis, os olhos azuis e grandes; o cabelo alourado revestia-lhe, basto, a cabeça chata e 
enérgica. 


Apresentou logo como credencial o mostrar-se duma linhagem superior. Não era um matuto largado. Era casado 
com uma sobrinha do capitão Pedro Celeste, de Bom Conselho. . . 

 
Depois contraveio, num desgarre desabusado, insistindo com o Beatinho recalcitrante: 

 
— Vamos ! Homem ! Vamos embora. . . Eu falo uma fala com eles. . . deixe tudo comigo. Vamos ! 

E foram. 

Prisioneiros 

O efeito da comissão, porém, foi de todo em todo inesperado. O Beatinho voltou, passada uma hora, seguido de 
umas trezentas mulheres e crianças e meia dúzia de velhos imprestáveis. Parecia que os jagunços realizavam 
com maestria sem par o seu último ardil. Com efeito, viam-se libertos daquela multidão inútil, concorrente aos 
escassos recursos que acaso possuíam, e podiam, agora, mais folgadamente delongar o combate. 

O Beatinho dera — quem sabe ? — um golpe de mestre. Consumado diplomata, do mesmo passo poupara às 
chamas e às balas tantos entes miserandos e aliviara o resto dos companheiros daqueles trambolhos prejudiciais. 

A crítica dos acontecimentos indica que aquilo foi, talvez, uma cilada. 

Nem a exclui a circunstância de ter voltado o asceta ardiloso que a engenhara. Era uma condição favorável, 
adrede e astuciosamente aventurada como prova iniludível da boa fé com que agira. Mas, mesmo que assim não 
considerassem, alentava-o uma aspiração de todo admissível: fazer o último sacrifício em prol da crença comum: 
devotar-se, volvendo ao acampamento à sagração do martírio, que desejava, porventura, ardentemente, com o 
misticismo doentio de um iluminado. Não há interpretar de outra maneira o fato, esclarecido, ademais, pelo 
proceder do outro parlamentar que não voltara, permanecendo entre os lutadores, instruindo-os sem dúvida da 
disposição das forças sitiantes. 

A entrada dos prisioneiros foi comovedora. Vinha solene, na frente o Beatinho, teso o torso desfibrado, olhos 
presos no chão, o com o passo cadente e tardo exercitado desde muito nas lentas procissões que compartira. O 
longo cajado oscilava-lhe à mão direita, isocronamente, feito enorme batuta, compassando a marcha 
verdadeiramente fúnebre. A um de fundo, a fila extensa, tracejando ondulada curva pelo pendor da colina, seguia 
na direção do acampamento, passando ao lado do quartel da primeira coluna e acumulando-se, cem metros 
adiante, em repugnante congérie de corpos repulsivos em andrajos. 

Os combatentes contemplavam-nos entristecidos. Surpreendiam-se; comoviam-se. O arraial, in extremis, 
punha-lhes adiante, naquele armistício transitório, uma legião desarmada, mutilada, faminta e claudicante, num 
assalto mais duro que o das trincheiras em fogo. Custava-lhes admitir que toda aquela gente inútil e frágil saísse 
tão numerosa ainda dos casebres bombardeados durante três meses. Contemplando-lhes os rostos baços, os 
arcabouços esmirrados e sujos, cujos mulambos em tiras não encobriam lanhos, escaras e escalavros — a vitória 
tão longamente apetecida decaía de súbito. Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito, 
contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o 
apresamento daquela caqueirada humana — do mesmo passo angulhenta e sinistra, entre trágica e imunda, 
passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e molambos... 

Nem um rosto viril, nem um braço capaz de suspender uma arma, nem um peito resfolegante de campeador 
domado: mulheres, sem número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas 
na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarapitados às 
costas, filhos suspensos aos peitos murchos, filhos afastados pelos braços, passando; crianças, sem número de 
crianças; velhos, sem número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmídas e mortas, de cera, 
bustos dobrados, andar cambaleante. 

Pormenorizava-se. Um velho absolutamente alquebrado, soerguindo por alguns companheiros, perturbava o 
cortejo. Vinha contrafeito. Forçava por se livrar e volver atrás os passos. Voltava-se, braços trêmulos e agitados, 
para o arraial onde deixara certo os filhos robustos, na última refrega. E chorava. Era o único que chorava. Os 
demais prosseguiam impassíveis. Rígidos anciãos, aquele desfecho cruento, culminando-lhes a velhice, era um 
episódio somenos entre os transes da vida nos sertões. Alguns respeitosamente se desbarretavam ao passarem 
pelos grupos de curiosos. Destacou-se, por momentos, um. Octogenário, não se lhe dobrava o tronco. Marchava 
devagar e de quando em quando parava. Considerava por instantes a igreja e reatava a marcha; para estacar outra 
vez, dados alguns passos, voltar-se lançando novo olhar ao templo em ruínas e prosseguir, intermitentemente, à 
medida que se escoavam pelos seus dedos as contas de um rosário. Rezava. Era um crente. Aguardava talvez 
ainda o grande milagre prometido... 


Alguns enfermos graves vinham carregados. Caídos logo aos primeiros passos, passavam, suspensos pelas 
pernas e pelos braços, entre quatro praças. Não gemiam, não estortegavam; lá se iam imóveis e mudos, olhos 
muito abertos e muito fixos, feito mortos. Aos lados, desorientadamente, procurando os pais que ali estavam 
entre os bandos ou lá embaixo mortos, adolescentes franzinos, chorando, clamando, correndo. Os menores 
vinham às costas dos soldados agarrados às grenhas despenteadas há três meses daqueles valentes que havia 
meia hora ainda jogavam a vida nas trincheiras e ali estavam, agora, resolvendo desastradamente, canhestras 
amas-secas, o problema difícil de carregar uma criança. Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra — 
a velha mais hedionda talvez destes sertões — a única que alevantava a cabeça espalhando sobre os 
espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as 
espáduas de todo despidas, emaranhados, os cabelos brancos e cheios de terra — rompia, em andar sacudido, 
pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta 
talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de 
granada; de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já 
cicatrizada. . . A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma 
face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz. 

Aquela velha carregava a criação mais monstruosa da campanha. Lá se foi com o seu andar agitante, de atáxica, 
seguindo a extensa fila de infelizes... 

Esta parara adiante, a um lado das tendas do esquadrão de cavalaria, represando entre as quatro linhas de um 
quadrado. Via-se, então, pela primeira vez, em globo, a população de Canudos; e, à parte as variantes impressas 
pelo sofrer diversamente suportado, sobressaía um traço de uniformidade rara nas linhas fisionômicas mais 
características. Raro um branco ou negro puro. Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita 
de três raças. 

Predominava o pardo lídimo, misto de cafre, português e tapuia — faces bronzeadas, cabelos corredios e duros ou anelados, troncos deselegantes; e aqui, e ali, um perfil corretíssimo recordando o elemento superior da mestiçagem. Em roda, vitoriosos, díspares e desunidos, o branco, o negro, o cafuz e o mulato proteiformes com todas as gradações da cor... Um contraste: a raça forte e íntegra abatida dentro de um quadrado de mestiços indefinidos e pusilânimes. Quebrara-a de todo a luta. Humilhava-se. Do ajuntamento miserando partiam pedidos flébeis e lamurientos, de esmola... Devoravam-na a fome e a sede de muitos dias." 

O comandante geral concedera naquele mesmo dia aos últimos rebeldes um armistício de poucas horas. Mas este só teve o efeito contraproducente de retirar do trecho combatido aqueles prisioneiros inúteis. 

Ao cair da tarde estavam desafogados os jagunços. 



Capítulo VI 

O fim 

Não há relatar o que houve a 3 e a 4. 

A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. 
Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos 
combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria 
hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas. 

Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns 
soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. 
Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, 
uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio 
formidável. Chamou-se aquilo o "hospital de sangue" dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá 
estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das 
quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de 
moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, 
combatiam contra um exército. 

E lutavam com relativa vantagem ainda. 

Pelos menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, 
aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e sangrentos. Viam-se, salpintando o 
acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas e entre elas as divisas 
do sargento-ajudante do 39.°, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. 
Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperam pelos últimos casebres envolventes, 
caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os... 

 

Mas eram terríveis lances, obscuros para todo o sempre. Raro tornavam os que os faziam. 
Aprumavam-se sobre o fosso e sopeava-lhes o arrojo o horror de um quadro onde a realidade 
tangível de uma trincheira de mortos, argamassada de sangue e esvurmando pus, vencia todos os 
exageros da idealização mais ousada. E salteava-os a atonia do assombro... 


Canudos não se rendeu 

Fechemos este livro. 

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento 
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao 
entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro 
apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 
mil soldados. 

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta 
página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e 
sem brilhos. 

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a 
vertigem. . . 

Ademais, não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se 
amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos 
pequeninos... 

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não 
aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles 
aquele Antônio Beatinho, que se nos entregara, confiante — e a quem devemos preciosos 
esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa História ? 

Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, 
cuidadosamente contadas. 

O cadáver do Conselheiro 


Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio 
Conselheiro. 


Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. 
Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos 
piedosas haviam desparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de 
tábua, o corpo do "famigerado e bárbaro" agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito 
azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefato, e esquálido, olhos fundos 
cheios de terra — mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida. 

Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa — único prêmio, únicos despojos opimos 
de tal guerra ! — , faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou 
deformasse, reduzindo-se a uma massa angulhenta de tecidos decompostos. 

Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que 
o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista. 

 

Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita 
— e, como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, 
naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu 
ainda uma vez ante aqueles triunfadores... 

 
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a 
ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as 
linhas essenciais do crime e da loucura... 

Capítulo VII 

 
Duas linhas 

É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades... 

FIM