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PELO SERTÃO 
AFFONSO ARINOS


ASSOMBRAMENTO

                                                    I     
    À BEIRA do caminho das tropas, num taboleiro grande, onde cresciam a canela-de-ema e o  pau-santo, havia uma tapera. A velha casa  assobradada, com grande escadaria de pedra  levando ao alpendre, não parecia desamparada. O viandante a avistava de longe com a capela  ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o céu. Naquele escampado onde não ria ao sol o verde -escuro das matas, a cor embaçada da casa  suavisava mais ainda o verde esmaiado dos campos.     
    E quem não fosse vaqueano naquelessítios iria, sem duvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tão esquiva que nem   ao menos aparecia à janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonada à frente  dos lotes,
guiava os cargueiros pelo caminho afora.      
    Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios 
de aroeira e moirões cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante
 a abrigar-se nele. No chão havia ainda uma trempe de pedras com vestígios de fogo e, daqui e dacolá, 
no terreno acamado e liso, espojadouros de animais vagabundos.              
    Muitas vezes, os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para lá, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de  couro crú; entravam pelo rancho a dentro, apinhavam-se, giravam impacientes à espera da descarga, até que os tocadores a pé, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço,  falavam à mulada, obrigando-a a ganhar o caminho.    
    Porque seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, não  pousavam aí? Eles bem sabiam que, à noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitencia, cantassem com voz fanhosa a encomendação. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, não estava 
por essas abusões, e quis tirar a cisma da casa mal assombrada.     
    Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome «Fidalgo», — dizia ele que tinha corrido todo este mundão, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coração bater apressado, de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver até aonde chegavam os receios  do povo.      
    Dito e feito.      
    Passando por aí de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resolução inesperada, saltava das selas,  ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas, e os tocadores, acudindo de cá e de lá,  iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em  desmontar, quedava-se de pé, recostado a um moirão de braúna, chapéu na coroa da cabeça,  cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro.      
    Os tropeiros, em vaivém, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume,  não proferiam uma jura, uma exclamação ; só, às vezes, uma palmada forte na anca de algum  macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto.      
    As sobrecargas e os arrochos, os buçais, a penca de ferraduras, espalhados aos montes ;  o surrão da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigonia ; os embornais 
dependurados ; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro ; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, à beira do rancho, — denunciaram ao arrieiro que a descarga 
fora feita com a ordem do costume, mostrando também que à rapaziada não repugnava acompanhá-lo na aventura.      
    Então, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras ; mandou atalhar à sovela algumas cangalhas, assistiu à raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acolá, fora da beira do capão, onde costumam crescer as ervas venenosas.      
    Dos camaradas o Venâncio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo, os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pé na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e três. Davam de lingua às vezes, nos serões do pouso, um pedação de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doída de uma cantilena saudosa.          Venâncio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando aí, tramava alguma das dele.       
— O macho lunanco está meio sentido da viagem, sô Manuel.      
 — Nem por isso. Aquele é couro n"água. Não é com duas distâncias desta que ele afrouxa,     
  — Pois olhe: não dou muito para ele urrar na subida do morro.      
 — Este? não fale !       
— Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, então ele se entrega de todo.     
— Ora!     
 — Vossemecê bem sabe : por aqui não há boa pastaria ; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso não presta; a tropa amanhece desbarrigada, que é um Deus-nos-acuda.     
 — Deixe de poetagens, Venâncio ! Eu sei cá.      
— Vossemecê pode saber, eu não duvido:mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar arriar a carga pela estrada, é um vira-tem-mão, e, — Venâncio praqui, Venâncio pracolá.      
     Manuel deu um muxoxo. Em seguida,  levantou-se de um surrão onde estivera assentado durante a conversa e chegou à beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venâncio, disse :     
 — Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez.      
— Hum, hum, está aí! Eia, eia, eia!     
 — Não temos eia, nem peia ! Puxe para fora minha rede.      
— Já vou, patrão. Não precisa falar duas vezes.      
E daí a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes.     
— Que é que vossemecê determina agora?     
— Vá lá à tapera enquanto é dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui também se vai cuidando no jantar.      
    O caldeirão preso à rabicha grugulhava ao fogo; a carne-seca chiava no espeto e a camaradagem, rondando à beira do fogo lançava às vasilhas olhares àvidos e cheios de angústias, na ansiosa espectativa do jantar. Um, de passagem, atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio d"água fresca; qual corria a lavar  os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha.      
    Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros, dizendo-lhes :      
 — Arre ! tem tempo, gente ! Parece que vocês nunca viram feijão. Cuidem de seu que-fazer, se não querem saír daqui a poder de tição de fogo !     
 Os camaradas se afastaram, não querendo turrar com o cozinheiro em momento assim melindroso.     
     Pouco depois, chegava o Venâncio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves.      
    Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos em cima dos joelhos e comiam valentemente.     
— Então? perguntou Manuel Alves ao seu malungo.      
— Nada, nada, nada! Aquilo por lá, nem sinal de gente.     
 — Uuai! é esturdio !      
— E vossemecê pousa lá mesmo?      
— Querendo Deus, sozinho, coma franqueira  e a garrucha, que nunca me atraiçoaram.      
— Sua alma, sua palma, meu patrão. Mas...  é o diabo !      
— Ora! pelo buraco da fechadura não entra  gente, estando bem fechadas as portas. A resto,  se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoçá-la. Venâncio, defunto não  levanta da cova. Você há de saber amanhã.      
— Sua alma, sua palma eu já disse, meu patrão ; mas, olhe, eu já estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho  escapado de algumas. Agora, o que eu nunca  quis foi saber de negócio com sombração. Isso  de coisa do outro mundo, praqui mais pralli  — terminou o Venâncio, sublinhando a ultima  frase com um gesto de quem se benze.      
    Manuel Alves riu-se, e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chão   e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos...A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava  e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na   viola; e outro — namorado talvez — encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do céu de um vermelho enfumaçado e falando baixinho, coa voz tremente,  à sua amada distante...    

                    II     
               Enoitara-se o escampado, e com ele o rancho e a tapera. O rolo de cêra, há pouco aceso e pregado ao pé-direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham aí morrer as vozes do sapo-cachorro, que latia, lá, num brejo afastado, sobre o qual os vagalumes teciam uma trama de luz vacilante. De cá se ouvia o resfolegar da mulada, pastando espalhada pelo campo.E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorisava aquela grande extensão erma. 
    As estrelas, em divina faceirice, furtavam  o brilho às miradas dos tropeiros, que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o céu.   
    Um dos tocadores, rapagão do Ceará, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande pátria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor à independência, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum,  responderam em coro, cantando o estribilho. A princípio, timidamente, as vozes meio veladas  deixaram entreouvir os suspiros ; mas, animando-se, animando-se, a solidão foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa música espontânea e simples tão bárbara e tão livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira — irmã  gêmea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tétrico fragor das tor-  mentas. O idílio ou a luta, o romance ou a tragédia viveram no relevo extraordinário desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da  tropeirada. 
    E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo — consistório das almas penadas — outro, o Joaquim  Pampa, lá das bandas do sul, interrompendo a narração de suas proezas na campanha, quando corria à cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os últimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes  
     — Ché, povo ! Tá chegando a hora! 
    O último estribilho :    
               Deixa estar o jacaré:                            
               A lagoa há de secar!  
 
expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os corações duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fiéis:

                 Deixa estar o jacaré:                              
                 A lagoa há de secar !      

    O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto  a barra do céu ao cair da tarde, estava entre estes; e quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com  estas palavras, ditas em tom de fé profunda, como se evocasse mágoas longo tempo padecidas:                         

                   Rio Preto há de dar vau                         
                   Té pra cachorro passar !     

               — Tá chegando a hora !      
               — Hora de quê, Joaquim?     
               — De aparecerem as almas perdidas. Ih! vamos acender fogueiras em roda do rancho.  
    Nisto, apareceu o Venâncio, cortando-lhes  a conversa.     
 — Gente ! o patrão já está na tapera. Deus  permitta que nada lhe aconteça. Mas, vocês sabem : ninguém gosta deste pouso mal assombrado.      
— Escute, tio Venâncio. A rapaziada deve  também vigiar a tapera. Pois nós havemos de  deixar o patrão sozinho?
      — Que se há de fazer? Ele disse que quer ver com seus olhos, e havia de ir só, porque  assombração não aparece senão a uma pessoa só, que mostre coragem.      
— O povo conta que mais de um tropeiro  animoso quis ver a coisa de perto; mas, no dia seguinte, os companheiros tinham de trazer defunto para o rancho, porque dos que dormem lá não escapa nenhum. 
     — Qual, homem, isso também não! Quem conta um conto acrescenta um ponto; eu cá  não vou me fiando muito na boca do povo; por isso é que eu não gosto de pôr o sentido nessas coisas.  A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silencio  e a solidão da noite realçando as cenas  fantásticas das narrações de há pouco filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminência das aparições.      
    E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns com os outros, de armas aperradas alguns, e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto:      
— Cá por mim, o defunto que me tentar  morre duas vezes, isto tão certo como sem dúvida —e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono.  
    Súbito, ouviu-se um gemido agudo, fortíssimo, atroando os ares como o último grito de um animal ferido de morte. Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho.   
    Mas o Venâncio acudiu logo dizendo:     
— Até aí vou eu, gente ! Dessas almas eu não tenho medo. Já sou vaqueano velho e posso contar. São as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Vocês têm razão: faz medo.     
 E os paquidermes, ao darem com o fogo,  dispararam, galopando pelo capão a dentro. 

                                                 III      

    Manuel Alves ao caír da noite sentindo-se  refeito pelo jantar, endireitou para a tapéra,  caminhando vagarosamente.      
              Antes de saír, descarregou os dois canos da  garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e  muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a também, enfiada  no correão da cintura. Não lhe esqueceu o rolo  de cera, nem um maço de palhas. O arrieiro  partira calado. Não queria provocar a curiosidade dos tropeiros. Lá chegando, penetrou no  pátio pela grande porteira escancarada.  Era noite.     
     Tateando com o pé, reuniu um molho de  gravetos secos e, servindo-se das palhas e da  binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha, arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de  tábuas de peças em ruína, e com isso formou uma  grande fogueira. Assim alumiado o pátio, o  arrieiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrabarias meio apodrecidas, os paióis, as  senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro  com o fole esburacado e a bigorna ainda em pé.      
    — Quero ver se têm alguma coisa escondida  por aqui. Talvez alguma cama de bicho de  mato. E andava pesquisando, escarafunchando por  aquelas dependências de casa nobre, ora desbeiçadas, sítio preferido das lagartixas, dos ferozes  lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada:  tudo abandonado!          — Senhor! porque seria? inquiriu de si para  si o cuiabano; e parou à porta de uma senzala,  olhando para o meio do pátio, onde uma caveira alvadia de boi espáceo, fincada na ponta de uma  estaca, parecia  ameaçá-lo com a grande armação aberta.      
    Encaminhou para a escadaria que levava ao  alpendre e que se abria em duas escadas, de um  lado e de outro, como dois lados de um triângulo, fechando no alpendre seu vértice. No  meio da parede e erguida sobre a sapata, uma  cruz de madeira negra avultava ; aos pés desta,  cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do  gado da porta, noutro tempo. Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande  fechadura sem chave, uma tranca de ferro caída e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho.          Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada  e no canto da parede, embutido na alvenaria,  um grande oratório com portas de almofadas entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido à parede, e chegou o rosto perto do oratório, procurando examiná-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores.       
    — Que é lá isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a Virgem Maria...       O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro, e, cerrando a   porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa por um corredor comprido,  pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mão espalmada a luz vacilante  do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma  mesa escura e de rodapés torneados, cercada  de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra.      
    O teto de estuque, oblongo e escantilhado,  rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de céu por uma frincha do telhado. Por aí corria uma goteira no tempo das chuvas e,  embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar  quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os cômodos do fundo.  Enfiando por um corredor que parecia conduzir  à cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um  quarto, cujo soalho tinha no meio um montículo  de escombros. Olhou para o céu e viu, abafando a luz apenas adivinhado das estrelas, um bando  de nuvens escuras, rondando. Um outro quarto  havia junto deste, e o olhar do arrieiro deteve-se  acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo  erguido, sondando as prateleiras fixas na parede,  onde uma coisa branca luzia. Era um caco  velho de prato antigo. Manuel Alvez sorriu para  
uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja  cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na  porcelana alva.          Um zunido de vento impetuoso, constringido  na fresta de uma janela que olhava para fora,  fez o arrieiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casarão abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta ! o som  continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre  ao longe.      — É o vento, talvez, no sino da capela.      
    E penetrou num salão enorme, escuro. A luz  do rolo, tremendo, deixou no chão uma réstia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado aí. O  arrieiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede.      — Acaba aqui, murmurou.      
    Três grandes janelas no fundo estavam fechadas.  
     — Que haverá aqui atrás? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver. 
    Tentou abrir uma janela, que resistiu. O  vento, fora, disparava, às vezes,reboando como uma vara de queixadas em redomoinho no mato. Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a  choques repetidos. Resistindo elas, o arrieiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes  um empurrão violento. A janela, num grito  estardalhaçante, escancarou-se e uma rajada rompeu por ela a dentro latindo qual matilha enfurecida ; pela casa toda houve um tatalar de  portas, um ruído de reboco que cai das paredes  altas e se esfarinha no chão.      
    A chama do rolo apagou-se à lufada e o cuiabano ficou só, babatando na treva. 
    Lembrando-se da binga, sacou-a do bolso da  calça; colocou a pedra com  jeito e bateu-lhe o fuzil ; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Então  o cuiabano deu uns passos para traz, apalpando,  até tocar a parede do fundo. Encostou-se nela  e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas, procurando o entrevão das janelas. Aí,  acocorou-se e tentou de novo tirar fogo ; uma  faiscasinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves  soprou-a delicadamente, alentando-a com carinho ; a princípio, ela animou-se, quis alastrar-se mas de repente sumiu-se. O arriero apalpou o isqueiro, virou-o nas mãos e achou-o úmido:   tinha-o deixado no chão, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no pátio e percorria as dependências deste.  
    Meteu a binga no bolso e disse :       
— Espera, diaba, que tu hás de secar com o calor do corpo.  Nesse entrementes, a zoada do sino fez-se   ouvir de novo, dolorosa e longínqua. Então, o  cuiabano pôz-se de gatinhas, atravessou a faca  entre os dentes e marchou como um felino,  sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Súbito, um ruído estranho fê-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote.      
     No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecação. O arrierro  assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos  dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com  o punho cerrado nos feixos da arma, chamando  a pólvora aos ouvidos, e esperou. O ruído cessara ; só, a zoada do sino continuava, intermitentemente. 
    Nada aparecendo, Manuel tocou para diante,  sempe de gatinhas ; mas, desta vez, a garrucha,  aperrada na mão direita, batia no chão a intervalos rítmicos, como a úngula de um qua drúpede manco. Ao passar junto ao quarto de  teto esboroado, o cuiabano lobrigou o céu e orientou-se. Seguiu, então, pelo corredor afora,  apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou, ouvindo um farfalhar distante, um  sibilo como o da refrega no buritizal.    
     Pouco depois, um estrépito medonho abalou o casarão escuro e a ventania — alcatéia de  lobos rafados — investiu uivando e passou à disparada, estrondando uma janela. Saíndo  por aí, voltaram de novo os austros furentes,  perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente pelos salões vazios.    
    Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soído áspero de aço que  ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas  assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu,  psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania.     
     Manuel foi impelido para a frente à corrimaça  daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De músculos crispados num começo de reação selvagem contra a alucinação que o invadia, o arrierio alapardava-se, erriçando-se-Ihe os cabelos ; depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia.      
    E foi rompendo a escuridão à caça desse ente maldito, que fazia o velho casarão falar ou gemer   ameaça-lo ou repeli-lo, num conluio demoníaco   com o vento, os morcegos e a treva.     
      Começou a sentir que tinha caído num laço armado talvez pelo maligno.De vez em quando,   parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabellos e uns animálculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa.   No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escárnio pareciam acompanhá-lo de  um lado e de outro.      
     — Ah ! vocês não me hão de levar assim-assim, não! exclamava o arrieiro para o invisível. Pode ser que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro ! eu mostro !     
     E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante.      
    Súbito, uma luz indecisa, coada por alguma  janela próxima fê-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando-se, sacudindo-se. O vento  trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais  acentuados agora.     
    Manuel estacou com as fontes latejando, a  goela constrita e a respiração curta. A boca semi-aberta deixou caír a faca: o fôlego, a  modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta  seca, sarjando-a e o arrieiro roncou como um  barrão acuado pela cachorrada. Correu a mão  pelo solho e agarrou a faca ; meteu-a de novo  entre os dentes, que rangeram no ferro ; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro ;  uma pancada seca do cão no aço do ouvido mostrou-lhe que a sua arma fiel o traía. A  escorva caíra pelo chão e a garrucha negou fogo. O arrieirou arrojou contra o monstro a  arma traidora e gaguejou em meia risada de  louco:         -Mandingueiros do inferno ! Botaram mandinga na minha arma de fiança ! Tiveram medo  dos dentes de minha garrucha ! Mas vocês hão de conhecer homem, sombrações do demônio!  De um salto, arremeteu contra o inimigo ; a   faca, vibrada com impeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tábua do assoalho onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente.  
    A queda assanhou-lhe a fúria e o arriero erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar ; deu-lhe  um bote e estrincou nos dedos um como tecido  grosso. Durante alguns momentos, ficou no  lugar, hirto, suando, rugindo.       
    Pouco a pouco, foi correndo a mão cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que  seus dedos arrochavam: era um pano, de sua rede talvez, que o Venâncio armara na sala da  frente.  
    Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos mor-  cegos; ao mesmo tempo percebia que o chamavam lá dentro — Manuel, Manuel, Manuel —, em  frases tartamudeadas. O arrieiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras  que fugiam.          Foi dar na sala de jantar, onde, pelo rasgão do telhado pareciam descer umas formas longas,  esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rápidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos.          O arrieiro não pensava mais. A respiração se  lhe tornara estertorosa ; horríveis contrações  musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava:      
    — Traiçoeiras ! eu queria carne para rasgar com este ferro ! eu queria osso para esmigalhar  num murro !   As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensão rápida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos  cabelos arrepiados, ou dançando-lhe na frente.  Era como uma chusma de meninos endemoninhados a zombarem dele, puxando-o daqui,  beliscando-o dacolá, açulando-o como a um  cão de rua.      
    O arrieiro dava saltos de tigre, arremetendo  contra o inimigo nessa luta fantástica: rangia  os dentes e parava depois, ganindo como a onça  esfaimada a que se escapa a presa. Houve momento em que uma coréia demoníaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e  aqueles círculos infernais o iam estringindo;  as sombras giravam correndo, precipitando-se,  entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chão ou saracoteando desenfreadamente.          Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta  num ai sentido e profundo e o arrieiro deixou  cair pesadamente a mão esquerda espalmada  num portal, justamente quando um morcego  que fugia amedrontado lhe deu uma forte pancada no rosto. Então, Manuel pulou novamente  para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgão do telhado novas  sombras desciam e algumas, quedas, pareciam  dispostas a esperar o embate.  O arrieiro rugiu :      
     — Eu mato, eu mato, mato ! — e acometeu com fúria de alucinado aqueles entes malditos. De um salto foi cair no meio das formas impalpáveis e vacilantes ; um fragor medonho se fez ouvir  o assoalho podre cedeu e um barrote, roído de cupins, baqueou sobre  uma coisa que se desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou lá em baixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de  metal, um tilintar como o de moedas derramando-se pela fenda de uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arrieiro.      
    Manuel, lá no fundo, ferido, ensangüentado,  arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra  como um ururau golpeado de morte ; em todo  o corpo estendido com o ventre na terra perpassava-lhe ainda uma crispação de luta ; sua  boca proferiu ainda — " eu mato! mato ! ma..." — e um silencio trágico pesou sobre a  tapera                                       

                    IV      

    O dia estava nasce-não-nasce e já os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz, crepitava  a labareda em baixo do caldeirão, cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos  beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e  de terra orvalhada espalhava-se com a viração da madrugada.  Venâncio, dentro do rancho, juntava ao lado  de cada cangalha  o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa, fazendo cruzes na boca  aos bocejos freqüentes, por impedir que o  demônio lhe penetrasse no corpo, emparelhava  os fardos, guiando-se pela cor dos topes cozidos aqueles. Os tocadores, pelo campo afora, ecavam um para outro, avisando o encontro de  algum macho fujão. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa.     
     Pouco depois, ouviu-se o tropel dos animais  demandando o rancho. O sincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos, que  se levantavam das touceiras de arbustos, voando  apressados. As urús, nos capões, solfejavam à aurora que principiava de tingir o céu e manchar de púrpura e ouro o capinzal verde.      
    — Eh ! gente ! o orvalho está cortando. Eta! Que tempão tive briquitando co"aquele macho "pelintra". Diabo o leve ! Aquilo é próprio um gato: não faz bulha no mato e não procura  as trilhas, por não deixar o rasto.     
    E a  "andorinha ?" Isso é que é mulinha  desabotinada ! Sopra de longe que nem um  bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto, que eu soltei nela um matacão de pedra, de que ela havia de gostar pouco.      
    A rapaziada chegava à beira do rancho,  tangendo a tropa.  
     — Que é da giribita ? Um trago é bom para  cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o  guampo, Aleixo.      
    — Uma hora é frio, outra é calor, e vocês  vão virando, cambada do diabo ! — gritou o  Venâncio.          — Largue da vida dos outros e vá cuidar  da sua, tio Venâncio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo ; enquanto nós, nem bem o dia sonhava de nascer, já estavamos  atolados no capinzal molhado, vossemecê tava  aí na beira do fogo, feito um cachorro  velho.     
     — Tá bom, tá bom ! Não quero muita conversa comigo, não. Vão tratando de chegar  os burros às estacas e de suspender as cangalhas. O tempo é pouco, e o patrão chega de uma hora para outra. Fica muito bonito, se ele vem encontrar essa sinagoga aqui ! E por  falar nisso, é bom a gente ir lá. Deus é grande !  mas eu não pude fechar os olhos esta noite ! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha  à mente alguma coisa que pudesse suceder a sô   Manuel. Deus é grande !     
     Logo-logo, o Venâncio chamou pelo Joaquim  Pampa, pelo Aleixo e mais o José Paulista.      
     — Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nós vamos lá.  
    Nesse instante, um molecote chegou com o  café. A rapaziada cercou-o. O Venâncio e seus   companheiros, depois de terem emborcado os  cuités, partiram para a tapera.  
       Logo à saída, o velho tropeiro refletiu um pouco e disse alto :      
    — É bom ficar um aqui tomando conta do  serviço. Fica você, Aleixo.     
     Seguiram os três, calados, pelo campo afora,  na luz suave da antemanhã. Concentrados em  conjecturas sobre a sorte do arrieiro, cada qual  queria mostrar-se mais sereno, andando lépido  e de rosto tranquilo; cada qual, porém, escondia do outro a angustia do coração e a fealdade do prognóstico.      
    José Paulista entoou uma cantiga que acaba  neste estribilho :                          
    A barra do dia aí vem!                         
    A barra do sol também.                                       
        Ai!      
    E lá foram cantando todos três, por espantar as mágoas.      
    Ao entrarem no grande pátio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito na véspera. Sem mais detença, foram se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta fortemente especada por dentro, rinchou e não  cedeu.      
    Forcejaram os três e ela resistiu ainda. Então,José Paulista correu pela escada a baixo e  trouxe ao ombro um cambão, no qual os três  pegaram e, servindo-se dele como de um aríete,  marraram com a porta. As ombreiras e a  verga vibraram aos choques violentos, cujo fragor se foi avolumando pelo casarão a dentro  em roncos profundos.     
     Em alguns instantes, o espeque, escapulindo  do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça  que caía encheu de pequenos torrões esbranquiçados os chapéus dos tropeiros—e a porta  escancarou-se.      
    Na sala da frente deram com a rede toda  estraçalhada.      
    — Mau, mau, mau ! — exclamou o Venâncio, não podendo mais conter-se ; os outros  tropeiros, de olhos esbugalhados, não ousavam  proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados,  com certeza, ao contato das almas do outro mundo.  
     Correram a casa toda juntos, arquejando,  murmurando orações contra malefícios.     
     — Gente, onde estará  sô Manuel ? Vocês não me  dirão por amor de Deus ? exclamou o Venâncio.          Joaquim Pampa e José Paulista calavam-se,  perdidos em conjecturas sinistras.      
    Na sala de jantar, mudos, um em frente do  outro, pareciam ter um conciliábulo em que  somente se lhes comunicassem os espíritos ;  mas, de repente, creram ouvir pelo buraco do  assoalho um gemido estertoroso. Curvaram-se  todos ; Venâncio debruçou-se, sondando o porão  da casa. 
    A luz, mais diáfana, já alumiava o terreiro  de dentro e entrava pelo porão: o tropeiro viu  um vulto estendido.      
    — Nossa Senhora ! Corre, gente, que sô  Manuel está lá em baixo estirado !      
    Precipitaram-se todos para a frente da casa,  Venâncio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portão que dava para o terreiro de  dentro. Entraram por ele adentro e, embaixo das  janelas da sala de jantar, um espetàculo  estranho deparou-se-lhes :  
        O arrieiro, ensangüentado, jazia no chão estirado ; junto de seu corpo, de envolta com torrões desprendidos da abóbada de um forno  desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia.       
    — Meu patrão ! Sô Manuelzinho ! Que foi  isso ? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus ! que mandinga foi esta ? E a ourama que alumia diante de nossos olhos ? !      
    Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos.  Seus dedos encarangados estrincavam ainda  o cabo da faca, cuja lamina se enterrara no  chão ; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na  pele.      
    — Sô Manuelzinho ! Ai, meu Deus ! pra que  caçar histórias com coisas do outro mundo!  Isso é mesmo obra do capeta, porque anda  dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim !  Deus me livre !     
     — Qual, tio Venâncio, disse por fim o José  Paulista. Eu jà sei a coisa. Jà ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que está com a boca virada para o terreiro. Aí é que está a coisa.  Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque, o  certo é que almas dos antigos donos desta fazenda não podiam sossegar enquanto não  topassem um homem animoso para lhe darem  o dinheiro, com a condição de cumprir por  intenção delas alguma promessa, pagar alguma dívida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrão é homem mesmo ! Na hora de ver  a sombração, a gente precisa de atravessar a  faca ou um ferro na boca, p"r"amor de não  perder a fala. Não tem nada. Deus é grande!  
    E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em  tom solene. Mais de uma vez persignaram-se  e, fazendo cruzes no ar, mandavam o que quer que fosse — "para as ondas do mar" ou "para as  profundas, onde não canta galo, nem galinha".      
    Enquanto conversavam, iam procurando levantar do chão o corpo do arrieiro, que continuava a tremer; às vezes batiam-se-lhe os   queixos e um gemido entrecortado lhe rebentava da garganta.  
        — Ah ! patrão ! patrão ! Vossemecê, homem  tão duro, hoje tombado assim ! Valha-nos  Deus ! São Bom-Jesus do Cuiabá ! olha sô  Manuel, tão devoto seu! — gemia o Venâncio.      
    O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim  Pampa, procurava com muito jeito levantar do chão o corpo do arrieiro, sem magoá-lo. Conseguiram levantá-lo nos braços, trançados  em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do  rancho, Venâncio disse ao José Paulista :      
    — Eu não pego nessas moedas do capeta.   Si você não tem medo, ajunta isso e traz.       
    Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava afincada no meio dos escombros. O tropeiro  olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno, o buraco do assoalho por onde caíra o  Manuel.      
     — É alto deveras ! Que tombo! disse de si para si. Que ha de ser do patrão ? Quem viu  sombração fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual ! esse dinheiro há de ser de pouca serventia. Para mim eu não quero: Deus me livre; então é que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem é bom pensar.       
    O forno estava levantado junto de um pilar de pedra, sobre o qual uma viga de aroeira se erguia, suportando a madre. De cá se via a  fila dos barrotes estendendo-se para a direita  até ao fundo escuro.           José Paulista principiou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor  e, estendendo-o no chão, o foi enchendo também: dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do  forno, achou mais moedas e com estas encheu o chapéu. Depois partiu, seguindo os companheiros que já iam longe, conduzindo vagarosamente o arrieiro. 
    As névoas volateantes fugiam impelidas  pelas auras da manhã ; só, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressões do campo, ou adejavam nas cúpulas das árvores.  As sombras dos dois homens que carregavam  o ferido traçaram no chão uma figura estranha de monstro. José Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe.     
     Houve um instante em que um pé de vento  arrancou ao Venâncio o chapéu da cabeça. O  velho tropeiro voltou-se vivamente ; o grupo oscilou um pouco, concertando nos braços o  ferido ; depois, pareceu a José Paulista que o Venâncio lhe fazia um aceno ; "apanhasse-lhe  o chapéu".      
    Aí chegando, José Paulista arriou no chão o ouro, pôs na cabeça o chapéu de Venâncio e,  levantando de novo a carga, seguiu caminho  afora.     
     A" beira do rancho, a tropa bufava, escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando, à espera do milho que não vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho a dentro,  de focinho estendido cheirando os embornais.     
     Às vezes, ouvia-se um grito — toma diabo! e um animal espirrava para o campo à tacada de um tropeiro.      
    Quando lá do rancho se avistou o grupo onde ia o arrieiro, correram todos. O cozinheiro,  que vinha do olho-d"água com o odre às costas,  atirou com ele ao chão e disparou também.  Os animaes já amarrados, espantando-se, escoravam nos cabrestos. Bem depressa a tropeirada  cercou o grupo. Reuniram-se em mó, proferiram  exclamações, benziam-se, mas logo alguém lhes impôs silêncio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados.      
    O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava.     
     Foram chegando e José Paulista chegou por último. Os tropeiros olharam com estranheza  a carga que este conduzia; ninguém teve, porém, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogações mudas. Era o  sobrenatural, ou era obra dos demônios. Para  que saber mais ? Não estava naquele estado  o pobre do patrão?      
    O ferido foi colocado na rede, havia pouco armada. Um dos tropeiros chegou com uma  bacia de salmoura ; outro, correndo do campo  com um molho de arnica, pisava a planta por extraír-lhe o suco. Venâncio, com um pano embebido, banhava as feridas do arrieiro, cujo corpo vibrava, então, fortemente.          Os animais olhavam curiosamente para  dentro do rancho, afilando as orelhas.          Então, Venâncio, com a fisionomia decomposta, numa apojadura de lágrimas, exclamou  aos parceiros :     
     — Minha gente ! aqui, neste deserto, só  Deus Nosso Senhor !  É hora, meu povo! E  ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um — "Senhor Deus, ouvi  a minha oração e chegue a vós o meu clamor !"   — E trechos de salmos que aprendera em  menino, quando lhe ensinaram a ajudar a  missa, afloraram-lhe à boca.      
    Os outros tropeiros foram se ajoelhando todos  atrás do velho parceiro, que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguém compreedesse o que dizia. Entretanto, parecia haver  uma ascensão de almas, um apelo fremente   in excelsis, na fusão dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era talvez a própria voz do deserto malferido com as feridas de seu irmão e companheiro, o fogoso cuiabano.
              De feito, não pareciam mais homens que cantavam : era um só grito de angústia, um apelo de socorro, que subia do seio largo do  deserto às alturas infinitas — " Meu coração está ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidões !... Atendei propício à oração do desamparado e não  desprezeis a sua súplica..."  E assim, em frases soltas, ditas por palavras não compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas  de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as mãos batendo nos peitos fortes, não pareciam  dirigir uma oração humilde de pobresinhos ao  manso e compassivo Jesus, senão erguer um  hino de glorificação ao ágios Ischiros, ao  formidável Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth.     
     Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas"  dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulgurações trêmulas. Parecia o próprio Deus  formoso, o Deus forte das tribos e do deserto,  aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um pórtico de ouro, lá muito longe, àqueles que, prostrados  em terra, chamavam por Ele.          Os ventos matinais começaram a soprar  mais fortemente, remexendo o arvoredo do  capão, carregando feixes de folhas que se  espalhavam no alto. Uma ema, abrindo as asas,  galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio  de uma inundação de luz, entre o canto das  aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidão imensa.       
    Súbito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos   de delírio. A mão direita contrau-se, os dedos   crisparam-se como se apertassem o cabo de  uma arma pronta a ser brandida na luta...   e seus lábios murmuraram ainda, em ameaça   suprema — "Eu mato !... mato !... ma..."



                 A Cadeirinha 
                A Estevão Lobo


       Naquele fundo de sacristia, escondida ou  arredada como se fora uma imagem quebrada cuja ausência do altar o decoro do culto exige,  encontrei a cadeirinha azul, forrada de damasco cor de ouro velho. Na frente e no fundo, dois  pequenos painéis pintados em madeira com traços finos e expressivos. Representava cada  qual uma dama do antigo regime. A da frente, vestida de seda branca, contrastava a alvura  do vestido e o tênue colorido da pele com o negrume dos cabelos repuxados em trunfa alta  e o vivo carmim dos lábios ; tinha um ar desdenhoso e fatigado de fidalga elegante para, quem os requintes da etiqueta e galanteios dos  salões são já coisas velhas e comezinhas. A  outra, mais antiga ainda, trazia as melenas em cachos artísticos sobre as fontes e as pequeninas  orelhas ; um leque de marfim semi-aberto comprimia-lhe os lábios rebeldes que queriam expandir-se num riso franco ; os olhos grandes e  negros tinham mais paixão e mais alma. Esta  contemporânea de La Vallière, que o artista  anônimo perpetuou na madeira da cadeirinha,  não se parecia muito com aquela meiga vítima da régia concupiscência ; ao contrário,  um certo arregaçado das narinas, uma ponta de ironia que lhe voejava na comissura da boca breve e enérgica - tudo isso mostrava  estar ali naquele painel representada uma  mulher meridional, ardente e vivaz, pronta  ao amor apaixonado ou à luta odienta. aqueles mesmos bicos alvos de renda que, acompanhando a curva do decote, pareciam recortar o  moreno jambeado daquele colo de sultana,  os mesmos bicos de renda estavam a dizer,  sobre o doce palor amorenado do colo, que a  dama dos olhos ardentes tinha escondidas no canto dos lábios a doçura da ambrosia e a peçonha da serpente.
                 Sem querer acrescentar mais ao já dito sobre as damas, perguntava de mim para mim se o  pintor do século passado, ao traçar com tanta  correção e finura os dois retratos de mulher,  transmitindo-lhes em cada cabelo do pincel uma chama de vida, não estaria realmente  diante de dois espécimens raros de filhos de  Eva, de duas heroínas que por serem de comédia  ou de ópera nem por isso deixam de o ser da vida real ?     
     — Quem sabe si a Fontanges e a Montespan ?      
    — Qual ! impossível !      
    — Impossível, não ! porque a cadeirinha  podia perfeitamente ter sido pintada em França  e era até mais natural crê-lo ; porquanto a  finura das tintas e a correcção dos traços pareciam indicar um artista das grandes cortes da  época.     
     E assim, em tais conjecturas, puz-me a  examinar mais detidamente o velho e delicado veículo, relíquia do século passado, sobrevivendo não sei porque na sacristia da igreja de  um modesto arraial mineiro. Os varais, conformes à moda bizarra do tempo, terminavam em cabeças de dragões com as faces abertas e   sanguentas e os olhos com uma expressão de  ferocidade estúpida. O forro de cima formava um pequeno dossel de trono senhorial ; e o  ouro velho do damasco que alcatifava também os dois assentos fronteiriços não tem igual nas  casas de modas de agora.      
    Qual das matronas de Ouro-Preto, ou das  cidades que como esta alcançam mais de um século, não terá visto, ou pelo menos ouvido falar com insistência, quando meninas, nas cadeirinhas conduzidas por lacaios de libré, onde as moçoilas e as damas de outrora se  faziam delicadamente transportar?      
    Quem não fará reviver na imaginação uma das cenas galantes da cortesia antiga em que, através da portinhola cortada de caprichosos lavores de talha, passava um rostosinho enrubecido e dois olhos de veludo a pousarem de leve sobre o cavalheiro de espadim com quem a  misteriosa dama cruzava na passagem ?          Também, ó pobre cadeirinha, lá terias o teu  dia de caiporismo: havia de chegar a hora em  que, em vez dos saltos vermelhos de um sapatinho de cetim calçando um pezinho delicado,  teu fundo fosse calcado pela chancra esparramada de alguma cetácea obesa e tabaquista.  Como havia de gemer então a alcatifa de da-  masco cor de ouro velho revoltada contra semelhante profanação: — alguma mulata velha  e alentada, apreciadora da mecha ou do rolão,  a refocilar-se na cadeirinha, espalhando a toucinheira das nádegas num dos assentas fronteiriços !      
     Nem foram desses os teus piores dias, ó  saudosa cadeirinha! Já pelos anos de tua velhice, quando, como agora, sobrevivias ao  teu belo tempo passado, quando, perdidos teus antigos donos, alguém se lembrou de carregar-te para a sacristia da igreja, não te davam outro serviço que não o de transportares, como esquife, cadáveres de anjinhos pobres ao cemitério, ou semelhante às macas das ambulâncias  militares, o de conduzires ao hospital feridos ou enfermos desvalidos. 
              Que cruel vingança não toma aquela época longínqua por lhe teres sobrevivido! Coisa  inteiramente fora da moda, o contraste flagrante que formas com o mundo circumdante  é uma prova evidente de tua próxima eliminação, ó velha cadeirinha dos tempos mortos!       
    Mas, é assim a vida: as espécies, como os   indivíduos, vão desaparecendo ou se transformando em outras espécies e em outros indivíduos mais perfeitos, mais complicados, mais aptos para o meio atual, porém muito menos  grandiosos que os passados. Que figura faria o elefante de hoje, resto exótico da fauna   terciaria, ao lado do megatério ? A de um filhote deste. E no entanto, bem cedo, talvez nos nossos dias, desaparecerá o elefante, por  já estar em desarmonia com a fauna atual,  por constituir já aquele doloroso contraste de que falamos acima e que é o primeiro sintoma  da próxima eliminação do grande paquiderme.  Parece que o progresso marcha para a dispersão, a desagregação e o formigamento. Um grande organismo tomba e se decompõe e  vai formar uma inumerável quantidade de seres ávidos de vida. A morte, essa grande ilusão humana, é o início daquela dispersão, ou  antes a fonte de muitas vidas. E que grande consoladora!          Lembra-me ter visto, há tempos, um octogenário de passo tropego e cara rapada passeando em trajes domingueiros a pedir uma  carícia ao sol. Dirigi-lhe a palavra e detivemo-nos largo espaço a falar dos costumes, das coisas e dos homens do outro tempo. Nisso surpreendeu-nos um magote de garotos que escaramuçou o velho a vaias. O pobre do ancião já ia seguindo seu caminho quando o abordou a meninada ; não apressou o passo nem perdeu aquela serenidade de quem já tinha domado  as fúrias das paixões com o vencer os anos. Vi-o ainda voltar-se com o rosto engelhado numa risada tristíssima, a comprida japona abanando ao vento e dizer, em tom de convicção profunda : "Ai dos velhos, se não fosse a morte!" Parecia uma banalidade, mas não era senão o apelo supremo, a prece fervente que esse exilado fazia a Deus para que pusesse termo ao seu exílio, onde ele estava fora dos seus amigos, dos seus costumes, de tudo quanto lhe podia falar ao coração. O próprio aspecto  da terra não era o mesmo que no seu tempo, porque também os riachos mudam de leito, as grandes árvores tombam e o solo se rasga em fundos precipícios à ação pertinaz das chuvas.                  
    Porque, pois, a pobre cadeirihna, esse mimo de graça, esse traste casquilho, essa fiel companheira da vida de sociedade, da vida palaciana, da vida de corte com seus apuros e suas intrigas, suas vinganças pequeninas, seus amores, para que sobrevive e porque a não pôs em  pedaços um braço robusto empunhando um  machado bemfazejo? Ao menos evitaria esse  dolorosíssimo ridículo, essa exposição indecorosa de nudez de velha!      
    Já tiveste dias de glória, cadeirinha de outros  tempos ! Pois bem: desaparece agora, vai ao  fogo e pede que te reduza a cinzas ! É mil vezes  preferível a essa decadência em que te achas e até mesmo à hipótese mais lisonjeira de te perpetuarem num museu. Deves preferir a paz  do aniquilamento à glória de figurares numa coleção de objetos antigos, exposta à curiosidade dos papalvos e às lorpas considerações  dos burgueses, mofada e tristonha. Morre, desaparece, que talvez — porque não ? — a tua  dona mais gentil, aquela para quem tuas alcatifas tinham mais delicada carícia ao receber-lhe o corpinho mimoso, aquela que recendia  um perfume longínquo de roseira do Chiraz te conduza para alguma região ideal,  dourada e fugidia, inacessível aos homens...      
    Desaparece, aniquila-te, ou foge, cadeirinha ! Lá, naquela mansão bem-aventurada,  pegarão teus varais, não lacaios de libré, mas  alvos mancebos de vestes brilhantes e olhar  atrevido. Estes conduzirão através de nuvens a criatuta feiticeira que encantou o seu tempo e  que deixou impressa no tabuado de teu fundo,  ó cadeirinha de outras eras, como uma carícia  eterna, a lembrança do contato de um pé taful,  calçadinho de cetim.  


                                                                      Buriti Perdido


        Velha palmeira solitária, testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável  epônimo dos campos!      
    No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem às vezes as florinhas douradas do alecrim do  campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas, — velho guerreiro petrificado em meio da peleja !      
    Tu me apareces como o poema vivo de  uma raça quase extinta, como a canção dolorosa dos sofrimentos das tribos, como o hino glorioso de seus feitos, a narração comovida das pugnas contra os homens de  além !       
    Porque ficaste de pé, quando teus coevos já tombaram ?      
    Nem os rapsodistas antigos, nem a lenda cheia de poesia do cantor cego da Ilíada comovem mais do que tu, vegetal ancião, cantor mudo da vida primitiva dos sertões!       
    Atalaia grandioso dos campos e das matas  — junto de ti passe tranquilo o touro selvagem e as potrancas ligeiras, que não conhecem o jugo do homem. 
    São teus companheiros, de quando em quando;   os patos pretos que arribam ariscos das lagoas   longínquas em demanda de outras mais quietas e solitárias, e que dominas, velha palmeira com tua figura erecta, queda e majestosa como  a de um velho guerreiro petrificado.      
    As varas de queixadas bravios atravessam  o campo e, ao passarem junto de ti, talvez por causa do ladrido do vento em tuas palmas,  redemoinham e rangem os dentes, furiosamente, como o rufar de tambores de guerra.      
    O corcel lubuno, pastor da tropilha, à sombra  de tua fronde, sacode vaidosamente a cabeça  para arrojar fora da testa a crina basta do  topete, que lhe encobre a vista ; relincha depois, nitre com força apelidando a favorita da  manada, que morde o capim mimoso da margem  da lagoa.  
               Junto de ti, à noite, quando os outros animais dormem, passa o canguçú em montaria; quando volta, a carne da preia lhe ensangüenta  a face e seu andar é mais lento e ondulante.                  
      Talvez passassem junto de ti, há dois séculos, as primeiras bandeiras invasoras ; o guerreiro tupi, escravo dos de Piratininga, parou então extático diante da velha palmeira e relembrou os tempos de sua independência, quando as tribos nômadas vagavam livres por esta terra.                   
     Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evoé !                    
    Gerações e gerações passarão ainda, antes que seque esse tronco pardo e escamoso.                        A terra que te circunda e os campos adjacentes tomaram teu nome, ó epônimo, e o conservarão.                            Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma grande cidade se                 levante na campina extensa que te serve de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os hoplitas atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade enternecendo os duros senhores à narração das próprias desgraças nos versos sublimes de Eurípedes, tu impedirás,  poeta dos desertos, a própria destruição, com-  prando teu direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que tu sabes tão bem comumicar.      
    Então, talvez, uma alma amante das lendas primevas, uma alma que tenhas movido ao  amor e à poesia, não permitindo a tua destruição, fará com que figures em larga praça, como um monumento às gerações extintas,  uma página sempre aberta de um poema que não foi escrito, mas que referve na men
te de  cada um dos filhos desta terra.  

                A Esteireira
                A João Rodrigues Guião


    Conheci-a no sertão. Era uma mulata de estatura regular, cheia de corpo, cadeiras largas e braços grossos. Tremiam-lhe as nádegas a seu passo forte. Trazia sempre à cabeça um lenço de cor, atado junto  à nuca, deixando pender as duas pontas, que  substituiam as tranças. Ostentava invariavelmente o colo de nhambú, descoberto, aparecendo os seios duros, saltitantes, presos no bico pela renda da camisa alva.Cercava-lhe o pescoço  um colar grosseiro, pesado, de grandes contas de ouro maciço. Das orelhas pendiam-lhe brincos grandes, também de ouro, em forma de  meia lua. Tinha a pele macia e a camadura cheia do viço que transudavam seus lábios vermelhos, sempre úmidos. As linhas do rosto; corretas que eram, representavam no conjunto de seu corpo o cunho da raça caucasiana. Esse conjunto aliava à graça da européia a sensual indolência das filhas d"áfrica.  
      Era provocadora — a mulata ! 
    Chamavam-lhe Esteireira, por causa do pai,  empregado no ofício de fazer esteiras de taquara.      Lavadeira exímia, pela praia do Lontra,  sobre o brilhante cascalho, estendia ela sua roupa, de alvura tão nítida que, ao vê-la pela  manhã no coradouro, diríeis um sendal de geada caída durante a noite.     
     Encontramo-la, muita vez, de saia arregaçada, metida n"agua até aos joelhos, curvada  sobre uma grande pedra, na qual batia as peças de roupa, depois de mergulhá-las no córrego. 
    Ana Esteireira gostava de um rapaz conhecido por Filipinho, diminutivo por que  sempre foi tratado, por ser de baixa estatura.  Era um pardo de peito largo e saliente, sobre o  qual assentava um pescoço de anta. Sua cabeleira preta e encrespada sustentava um leve  chapéu de palha de buriti, e da ilharga esquerda  pendia-lhe um grosso e pesado facão, preso a  um cinturão de sola. Andava sempre em mangas de camisa e de   calças arregaçadas, à maneira de calções;  camisa e calças abotoadas por uns grosseiros  botões de chifre, fabricados mesmo na terra. Esse mestiço era objeto de perseguição e  busca da polícia local.      
    De gênio atrevido e despreocupado, arredio a toda espécie de trabalho, Filipinho estava  ao pintar para companheiro do Besouro, do Pedro Barqueiro, do Lucas e outros terríveis bandidos que infestaram as regiões banhadas pelos rios Urucuia, Sono e Preto.          Mais de uma vez, o cabo Marianão, à frente de um pugilo de bons soldados, dera, cara a cara, com Filipinho, arremetendo todos em  massa contra ele. Mas o endemoninhado mulato era mais destro no pulo do que o canguçú; riscava com o facão as fardas aos soldados, e dando um assobio agudo, desaparecia em  qualquer touça de arbustos nas imediações. Não era à toa que o mulherio o julgava como   tendo trato com o Sujo. 
    De uma vez, foi a causa da morte de um subdelegado. Corrêra na cidade que o Filipinho  andava fazendo suas tropelias mesmo intra  muros, e alguém foi às pressas avisar ao Manuel Lourenço, subdelegado que então era. Estava  este acabando de jantar, mas saltou presto da mesa para o lombo de um cavalo amarrado à porta. Sai em corrida disparada para o logar  onde o tigre se havia entocado; não o alcançou  porém, que uma apoplexia lhe arrancou a vida no cumprimento do dever.      
    Já Filipinho estava encantoado, depois de  ter por centenares de vezes querido romper o  círculo em que o fechara o cabo Mariano.      
    — Desta vez estás na unha, moleque, disse  o gigantesco soldado.      
    De facto, caíra ; mas, astucioso que era,  mudou de tática para a resistência, vendo que  do emprego da força só mal poderia advir-lhe.   Entregou os punhos às algemas, manso como um cordeiro, deixando-se levar à casa da autoridade policial para aí sofrer o inquérito.     
     Crime visível e grave não o cometera ele,  que alguém dissesse. Era turbulento, mas não  fizera morte, nem roubo. Temiam-no e atiravam à sua conta toda escalada em casa alheia  durante a noite, qualquer pancadaria na sombra  dos becos e vielas. Provas não havia ; entretanto, sabendo Filipinho do conceito de que gosava, vivia foragido.      
    Aí, nas próprias barbas da autoridade,   desenvolveu a Esteireira uma arenga em defesa do seu Bem, em que, com os seios descobertos, inflados de cançaço e ira (correra da praia ao saber do que se passava), fazia largos gestos com os lindos braços nus, bronzeados, úmidos  e bordados por uma renda de espuma.      
    Tinha desviado para si a atenção ; e os soldados, confiando na postura humilde de Flipinho, limpavam a testa,resfolegantes,   deixando-o solto na sala, pois já estava algemado.  
    Imperceptivelmente, ele se afastava até à porta e, voltando-se de repente, entra a correr pela rua acima.      
    Tomaram-lhe a dianteira.      
    No largo, podia ele desenvolver toda a sua  destreza ; e, embora algemado, deitou por terra  dois soldados que, destacados, topou no caminho.       
    Fugiu.
              Não prenderam a Esteireira, que daí a  pouco, em doce entrevista, conversava o mestiço nas cercanias da casa do pai dela, ao  longe, já tardezinha.      
    Juntos e esquecidos do que se passara — tão  grande era o amor que os ligava e curtos os momentos de que dispunham para as falas  temas e as mútuas confidências — quedaram-se  muito tempo.     Ao despedir-se do mulato, Ana, puxando-o  pelos dedos e fixando nos dele seus grandes  olhos negros, queimados de zelos, perguntou-lhe se não era exato ter ele dado umas bichas  de ouro à Candinha do Fundo e estar inclinado  a gostar dela.      
    Filipinho negou tudo, afirmando que o seu Bem era ela, Ana; que sempre gostou dela e afrontava os perigos que ela bem sabia para vir vêl-a à cidade. Se isso não era prova, que mais queria?       
    Ela acreditou, ou fez que acreditou, pois não tocou mais nisso.      
    Afagou a cabeleira basta do mulato e, fugindo ao abraço deste, disse-lhe, à certa distância, com o braço elevado e o indicador da mão direita apontando para o ar, como quem  quer dar uma ordem e ao mesmo tempo ameaçar pelo não cumprimento desta :      
    — Olhe! Depois d"amanhã. quero vê-lo no  Lajeiro de Cima. Esteja junto daquela lobeira  da margem do córrego, depois que eu tiver  apanhado a roupa do coradouro. Adeus.      
    E virou-lhe as costas, num movimento rápido, saindo a correr.      
    O mulato contemplou-a até desaparecer ; depois, descançando numa perna, tirou de traz  da orelha uma grossa palha, alisou-a com o  facão e, picando um pouco de fumo que tirou do bolso da calça, fez um cigarro. Accendeu-o na binga e, vagarosamente, foi descendo a  trilha estreita, que, como uma cobra-coral,   coleava um bosquezinho de goiabeiras, embaixo das quais os gravatás eriçavam as folhas compridas, duras, bordadas de espinhos.      
    O crepúsculo abrandava pouco e pouco a claridade do dia. Sua luz tíbia vinha banhando suavemente a terra ; e tão branda que — obra invisível de misterioso pintor — parecia haver um pincel oculto, passando delicadamente pelo espaço e carregando manso e manso as cores, como se a mão que o detinha quisera fazer, na tela de cristal desse claro dia sertanejo, um fundo azul-escuro.     
     Atravessado o pequeno bosque, Filipinho  saiu num vasto campo, e, descendo sempre,  foi ter à praia do córrego, já frouxamente alumiada pelas estrelas. Semelhava de longe, na  profusão do cascalho claro, onde se destacavam  os seios escuros, uma colossal rede de pesca  estendida ao sereno.     
     O córrego defluía múrmuro e harmonioso —  doce prática, quérulo idílio, ou, talvez, bem travada porfia de acordes, na côrte da Mãe-d"água.     
     Filipinho vadeou o Lontra e, subindo o  morro fronteiro, desapareceu.     
     No dia seguinte, à hora marcada, estava o  mulato em cima do barranco, ao pé da lobeira da margem do córrego, no lugar chamado Lajeiro de Cima.
               Anna apareceu nesse dia, como sempre, asseada, com a saia de uma limpeza sem par. Trazia nos olhos um brilho extranho ; seus  olhares pareciam ferir como os espinhos dos gravatás, sobre os quais ela estendia algumas vezes a roupa.     
     É que o ciúme lhe trabalhara a alma todo o tempo decorrido desde a véspera. Andava assuntando e chegou à conclusão de que o escolhido de seu peito a traíra com a Candinha do Fundo.       
    — Onde esteve ontem, perguntou ex abrupto, depois que me deixou?           
               — Você está caçoando, Ana ; pois onde é  que eu vou quando a deixo ? Não é para o meu   rancho, lá para os lados do Espírito Santo ?       
    — Mas você passou no Gorgulho e esteve em casa de Sinh"Ana, tanto que quis cinzar   a Valu, porque você bem sabia que ela vinha me contar quem lá esteve a brincar com a Candinha.       
    — Eia, eia, eia ! Já Ana começa ? Olhe!Quer saber de uma coisa? Diga a Valu que venha sustensar isso à minha vista ; ela há de saber "para que é que tatú cava". Se você pega com essas bobagens, eu me vou embora, e já.  
       Continuaram ainda a dialogar com certo azedume.      
    Ana era orgulhosa. Amava a Filipinho, julgando-o todo seu, dela só. Reconhecia-se uma mulata honesta, trabalhadeira e bonita; não era para qualquer uma regateira lhe tomar o noivo. Entretanto, eram infundados seus receios. 
    Quando saiu daquele lugar, começou a  banzar, procurando um meio de se ver livre da pretensa rival. E no cérebro encandecido da  mulata principiou a crepitar uma labareda de  ideias ferozes, filhas do seu sangue e da sua educação. A tenra e voluptuosa mulatinha cedera o passo à urucuiana selvagem — canguçú   farejando um novilho para os filhotes famintos.      
     Ao amanhecer do outro dia, toda blandiciosa; convidava a Candinha a dar um pulo à Contagem, para trazerem uns cajús que Ambrosina lhe prometera. A outra tomou que não haviam de ir sozinhas.      
     — Ali tão perto ? Que tem isso ? Vamos no mouro de papai ; é um cavallinho muito bom e dá garupa. Antes do sol alto lá estaremos.      
    Aceito o convite, partiram as duas, de boa harmonia, conversando descuidosas. 
    Depois de uns três quartos de hora de marcha, Ana, sem que a companheira o percebesse, saca de uma navalha e, vibrando-a com  mão rápida e firme, corta a carótida à infeliz companheira, que estava unida a si, abraçada  à sua cintura, na garupa do animal. Caíram ambas, e Ana,não querendo que na estrada houvesse grande marca de sangue, encostou os lábios ao lugar de onde irrompia aos cachões,  e, carnívora esfaimada, chupou, chupou por muito tempo, carregando, depois, o corpo da  desventurada para bem longe, onde um desses precipícios, cavados pelas enxurradas, recebeu-o no fundo de sua face.      
    Não foi mais à Contagem, nem voltou à cidade. Desse lugar mesmo saiu à procura de Filipinho, desvairada, fustigando o animal; bracejando como os selvagens noctívagos de que fala um romancista, quando pilhados pela luz do dia. O pêlo finíssimo, imperceptível quase, que lhe cobria os braços como poeira-  zinha de ouro fosco, eriçára-se todo, arrepiando-se como cerdas de caititu. Os olhos negros, desmedidamente abertos, parecendo olharem  através de um véu de sangue, tinham a expressão ao mesmo tempo pávida e feroz de marrã bravia perseguida pela matilha.          Assim galopou até ao Espírito-Santo, onde  o tugúrio de Filipinho se erguia quase à beira  do córrego, mesmo junto de um perau. As  àguas tinham aí uma coloração escura, carregada ainda pela sombra dos ingazeiros, cujos ramos se debruçavam para dentro do poço; mergulhando nele as vagens cheias da polpa doce e branca, que as curumatãs vinham beliscar.     
     Deparando-se-lhe o mulato, a pouca distância do seu tugúrio, sentado tranquilamente à sombra de uma árvore, a tecer chapéus com a seda do buriti, Ana gritou-lhe de longe que a seguisse, que fugisse com ela, pois nada mais a prendia àquela terra.           Estupefacto com o seu aparecimento naquelas paragens, Filipinho não lhe pôde compreender as palavras. Entretanto, ela; arquejante, com os lábios tintos de sangue e o olhar torvo, ejaculava:      
    — Monte ! Vamos para as Traíras, que os  soldados querem prendê-lo!      
    Muitos dias depois, na grande estrada real das Traíras, uma escolta de cavalaria de  polícia, armada de revólveres e espadas, encalçava os criminosos.     
     Ana e Filipinho eram tenazmente perseguidos.      
    O cadáver da Candinha fora descoberto, e a  fuga dos dois amantes, ligada a mil outros indícios, os havia indigitado como autores do  crime.     
     A solidão das selvas, a perspectiva do perigo a cada passo, as fadigas das jornadas e vigílias,  transfundiram numa aquelas duas almas. O  noivado desses dois rebentos opulentíssimos  da exuberância tropical se havia celebrado  como o do jaguar, no meio das matas, à voz melancólica dos jaós, à sombra densa de uma imburana.  
        A escolta, com o Mariano à frente, foi topar os fugitivos na estreita ponte sobre o Rio Traíras.          Filipinho, ao dar com os soldados, antes  de chegar à ponte, encostou-se ao tronco de  uma árvore e esperou o assalto, acuado como  tigre prestes a empolgar a presa. Os dois tinham vindo a pé.     
 Mariano deu-lhes voz de prisão.  Filipinho não respondeu.      
    O cabo e seus companheiros desmontaram, marchando em seguida sobre o mulato, em cujo  braço robusto refulgia a lâmina de um facão, sua única arma.      
    A poucos passos de Filipinho, fizeram alto  os soldados, e Mariano intimou-os a se renderem, aos dois foragidos. Filipinho deu um salto para a frente, ao mesmo tempo que se  ouviam estampidos de tiros. 
    Dois corpos tombaram pesadamente, e os  soldados recuaram, vendo o Mariano varado pelo facão de Filipinho, que cavalgava o valente soldado, estendido de costas. O mulato, debruçado sobre o corpo do soldado, mordia-o  esfaqueava-o, misturando com o dele o sangue da própria ferida.      
    Ana saltara, rangendo os dentes, qual canela ruiva. 
    Defrontando os outros soldados, ela dera  costas a Filipinho e Mariano, cujos corpos  se haviam como que misturado nas convulsões  da agonia.    
Ana estava desarmada; mas, com o busto  inclinado para diante e os dedos das mãos recurvados como garras, pronta se achava  para a defesa.      
    Novo estampido se ouviu.      
    A rapariga levou a mão ao seio e não pôde sopitar um grito terrível, um rugido antes, que  ecoou pela mata.     
     Recuou dois passos e tombou, ao través, sobre os corpos de Filipinho e Mariano.      
    Um bando de gralhas do cerrado, de plumagem azul-escura, passou alto; desferindo seu grito intercadente, longo, mais semelhante a uma gargalhada.      
    Ao longe, na orla do campo, perdizes piavam tristemente.                                                                               À beira da mata, num chavascal de cambaúbas, duas juritis, que os tiros haviam amedrontado, arrulhavam com ternura, aconchegando-se.  

                
    
                Manuel Lúcio


        Trabalhado de dores, com a ruga da fronte aprofundada pelo pensar fixo — refolho onde descobria o observador talvez a mágoa dorida;  a tensão do espírito em desfibrar um sentimento radicado — era ainda elegante como um  jovem xeque beduíno, no seu palor amorenado,  na morbidez do olhos pardo-escuros, na vibratilidade do corpo esbelto e no luto negro dos   cabelos.      
    Vagava pelos campos — campeiro ,que era   — em seu pangaré fogoso como um mustang do  México, açulando-lhe, só com o retinir das  esporas de ferro batido, o ardor na perseguição do touro selvagem até dentro dos algares que abeiram o rio. E assim cavalgado, com o chapéu de couro macio ourelado de marroquim e cheio de bordaduras na copa; o jaleco estreito e curto, deixando a descoberto o talim ama-   relento de onde pendia o terçado robusto ; as amplas-botas de couro de sucuri — era casquilho, deveras, o filho de José Paes, deste que, havia 30 anos, se metera com outros bandeirantes até aquelas regiões que o rio das Almas  banha.      
    Ainda não havia cessado a faina descobridora dos arrojados aventureiros, e o seio da  terra gemia fundo com o zum-zum desse formigueiro, que se alastrava no subsolo, à procura  das folhas preciosas do ouro.      
    Abriam-se pórticos gigânteos nas fraldas das  serranias, arcadas magestosas se rasgavam, e  uma luta épica travava-se aí entre estes herois  obscuros e a rigidez impenetrável das fragas —  temerosa, perseverante, cheia de heroísmo essa  peleja, onde os titãs eram homens como nós  outros, desaparecendo esquecidos, apenas lembrado o seu porfiar constante pelos despojos cheios de magnitude que se nos deparam nas  viagens pelo interior.     
     Já, então, uma aldeia se ia formando, iam se  estabelecendo os mais ricos e uma ou outra  fazenda — tal a de que vamos falar — erguia-se  ridente entre as campinas alfombradas —  branca, ouriçada de cruzes na capelinha rústica e nos currais, semelhando na perspectiva  azul alguma nau capitânia pojada no remanso  de uma baía.      
    Uns coqueiros de indaiá, uma gameleira arrochando com suas raízes-tentáculos os moirões, a frente da casa alpendrada, o oratório de cor nebulenta na sala de jantar um pouco  escura, bancos grosseiros de madeira com altos  recostos, — tudo austero, meio claustral, até o lenço de seda que, lançado à maneira de capuz de burel, emoldurava um rostosinho moçárabe, sadio e fresco como o dessas hebréias juvenis que trazem os pintores em suas télas sobre o grande êxodo do Egito.                                        

                                                                    * * *      

    O sr. guarda-mor das minas, Vasco Antonio Fernandes, sua esposa Emerenciana de Jesus Correia Fernandes e sua filha única, D. Bárbara   — a Barbinha —, segundo o hábito antigo, estavam reunidos no alpendre, de palito à boca os velhos, saboreando o pospasto de há pouco, à hora em que os vaqueiros, revezando-se de dia em dia, trazem ao curral as manadas de vacas e os lotes de éguas a serem inspecionados pelo dono.      
    Uma nuvem pulverulenta ergueu-se ao longe;  no carreiro que cintava a encosta como um talabarte polifêmico, e o bando resfolegante  de animais apareceu daí a pouco, pinoteando, relinchando, com os olhos esbraseados;  de tropel pela porteira a dentro.      
    Mais atrás, tangendo de longe a cavalhada  vinha o Manuel Lúcio, a cavalo, de laço à garupa e um bacamarte atravessado sobre o bico da sela.     
     — Que é do Camurça ?      
    — Ficou no logradouro.      
    — Meu cavalo não o vejo nunca, retrucou  a Barbinha ; nem sei se essa gente trata dele.     
     — Espirrou do lote quando eu juntava os outros, e eu só não podia ter mão em todos ao mesmo tempo, tomou o campeiro.      
    — É assim sempre.                                       

                     * * *     

     Tendo vindo no bando de Vasco Fernandes;  ao tempo da expansão dos filhos de Piratininga ligara-se-lhe para sempre José Paes, até que, morrendo acidentalmelte, deixou ainda criança  o filho aos cuidados do amigo.      
    Criado em meio desse labutar, tendo ainda nas veias o cálido sangue de sertanista, inteligente e ativo, porém taciturno, captara Manuel Lúcio Paes a inteira confiança do guarda-mor; administrava-lhe a fazenda com dedicação e fazia o serviço de campeiro, que, no  emtanto, é estimado pelos próprios fazendeiros e seus filhos, os quais não julgam indigno de  si o correr os campos, varar os boqueirões e  taboleiros, de laço à garupa, ferrão em punho.      
    Nos seus vinte e três anos, a alma se lhe desabotoara generosa e austera, aferrada aos  antigos princípios de honra cavalheiresca, de um melindre delicadíssimo.      
    Insultado, por dez que fosse, julgava-se obrigado a tomar desforra ali mesmo.     
     Professava um respeito religioso por tudo  quanto lhe vinha dos ascendentes — usos e  palavras, fatos e ações. Os amigos de seu pai  eram os seus próprios, e julgava-os um prolongamento da pessoa querida que já levara a morte.  
          Na defensão e cuidados da fazenda do guarda-mor, diria como D. João de Castro — "por uma  pedra da fortaleza d"El-Rei, arriscaria um  filho".      
    Altivo, orgulhoso, mas tímido nos modos, não sofria seu orgulho que alguém o achasse  rídiculo, a ele, Manuel: eis porque era taciturno, pouco amaneirado e cheio dessa original  timidez, onde por força havia desconfiança.      
    Às vezes, quando o embalava o ritmo  cadencioso da marcha, a cavalo nos longas excursões pelo campo, cantarolava a meia voz,  com os olhos perdidos no espaço, uma trovazinha do Sertão:
                 Morena, meu bem, morena,                
                 Morena de meu amor!                 
                 Porque assim você me engana
                A fingir-me esse rigor ?      

    E sofria — o Manuel Lúcio; torturava-se  por introversão, analisando sua vida de uns  anos para cá, desfibrando os sentimentos radicados, distendendo-os, como se quisesse com  o duro plectro de sua análise ferir as cordas dessa gusla suspirosa. Tirava, em suas excogitações, o aparelho da ferida para examiná-la  com o bisturi de um raciocínio feroz ; encadeando os fatos, revolvia-os, escalpelava-os,  e a ferida se agravava, e acentuava-se a dor moral, e a alma, constringida, porejava o soro  de um sofrer cruciante.          Criado aí, no meio dessa natureza selvática crescido ao sopro de um ar puríssimo, robustecido com os hábitos tonificantes do sertanejo,  livre como o enorme espaço despovoado por onde podia bater a pata de seu corcel, e que, à força de ser grande, lhe parecia indefinido, não podia deixar de ser independente, pois não encontrava tropeço à sua liberdade, senão no que lhe viera enraizado por herança, temperamento e educação — e isso era o respeito, a obediência a seu pai, a pessoa deste prolongada na daquele que amara e venerara em  vida.      
    Quando se lhe desabrochou a mocidade, tão cheia de louçania, era natural que lhe rebentasse no seio o amor, como no favo maduro do  jataí o delicado mel.  
         Prendera-o a filha do guarda-mor, com seu  rostosinho moçárabe, fresco e viçoso, seus olhos buliçosos como dois potrinhos bravos, o nariz um pouco recurvado e os lábios finos, seu tanto arqueados, trazendo a um canto estampada como que a expressão de um desprezo eterno.      
    A expressão de um desprezo eterno ! Por  ele, para ele ? Ignorava-o. Amal-o-ia ? Não  era crível. — " É um és-não-és soberba", dizia  ele. — " E eu, pensava, estou como quem  passa um fundo grotão sobre o tronco da  umbaúba que a ventania derribou ; ora pendo  praqui, ora prali, nutando no ar, procurando  o equilíbrio, e assim até vencer a perigosa pinguela, vingando a barranca oposta. Mas esta,  não a encontro, por desgraça!"      
    "Dizer-lhe tudo... e que pensaria ela ? Apodava-me de especulador. O pai tem-me confiança ; mas confessar-lhe... e o ridículo do dia seguinte, quando ela soubesse? Não sei ; nunca  me deu provas; não posso tentar sem passar por doido para uns, atrevido para a outra. E, no emtanto... Qual,  não era nada ; estou treslendo. Mas... "  
       E o orgulho, o amor, a altivez, a dedicação aos princípios, como quatro guerreiros esforçados, mediam-se, mediam-se, antes de travar-se a luta.                                        
                                                                   
       
                                                          * * *          Houve um levantamento de mineiros — índios  e negros, insuflados por alguns despeitados  contra o guarda-mor ; rixas que sempre houve,  e muitas, no coração do Brasil ; ferozes lutas de famintos que eram, mas da auri"sacra fames.      
    Avisado logo, aprestou-se Vasco Fernandes para a defesa, pois a gente vinha alvorotada.      
    Manuel Lúcio, com vinte companheiros, postou-se em uma cerca, no flanco esquerdo da  casa, junto dos paióis, cortelhos e celeiro, onde mais dano poderiam fazer os amotinados. A   casa estava em armas, o alpendre transformado em baluarte, e uma descarga de mosquetaria recebeu os assaltantes.           Depois de fogo parte a parte, um bando destes consegue meter-se no paiol pelos rombos que fizeram na parede a machado. 
    Manuel Lúcio estava na outra extremidade, sustentando o embate do grosso do grupo que para aí se destacara a ocupar-lhe a atenção.   Súbito,começaram as balas a varejar a casa da fazenda, arrebentando algumas janelas  laterais. Abrigados no paiol, que só da parte de fora era murado, sendo a frente interior formada de vigas de paus-a-pique unidas, pelas frinchas do madeirame assestaram as armas e  faziam um estrago terrível.          Tendo já arrebentado janelas com sucessivas descargas de clavinote, iam retirar-se  lançando fogo ao paiol para caírem, depois, sobre o grupo de Manuel Lúcio, quando surge  este do lado esquerdo dos sitiantes entrincheirados, rompe um lado do madeiramento com dois negros robustos e dá sobre os índios que  aí estavam, deitanto por terra três a golpes  de terçado e obrigando os outros a evacuarem  o paiol pela abertura que haviam praticado na  parede de fora.      
    No meio da luta, recebe um tiro, que o prostrou em terra mal ferido. A custo, levantou-se,  ordenou rápido a tapagem do rombo com couros e pedras e não pôde mais continuar no posto, sendo, então, conduzido a braços para o corpo da fazenda.      
    Entretanto, a pólvora de cá era em grande quantidade, e os assaltantes, desanimados com a tenaz resistência, abandonaram a empreza,  deixando cerca de trinta mortos no campo.                                         

                                                                     
   ***       
Três dias depois — incendia-lhe o corpo a  febre — caíra a fazenda no estado de quietação costumeira, e a justiça bárbara daqueles tempos e logares havia chamado a si os vilões  revéis.     
     Manuel Lúcio desvairava ; e às vezes, entre o leve sussurro das casas onde há doentes graves,  entre o ciciar das vozes segredando-se, o canto estrídulo de um galo a espaços e o ladrido de um cão ao viandante que se aproxima, o ferido cantarolava, em seu delírio, a trovazinha sertaneja :             
               Morena, meu bem, morena.             
    Morena do meu amor!              
    Porque assim você me engana             
    A fingir-me esse rigor?  
      Morreu.      
    E depois, muito depois, quando, pelo carreiro  que cintava a encosta ao longe, soava magoada  a voz de um vaqueiro que se recolhia, dizendo  — morena, meu bem, morena ! — os olhos de  Barbinha, buliçosos como dois potrinhos bravos  amorteciam-se, como se passara diante deles  a aza branca de uma saudade, ou o mesto crepúsculo de um remorso. 


                Paisagem Alpestre
                A Augusto de Lima
 
        Ninguém, ninguém que tenha alma sensível aos espectáculos da natureza ou à poesia das eras já mortas, poderá deixar de  recolher-se, de concentrar-se em fundas cogitações ou em caroáveis devaneios, ao vingar  a grande vertebra do Espinhaço e seguir por  ela afora, numa estrada que lembra aquela outra de quatrocentas léguas, feita no Peru  sob as Incas.      
    Lá no alto, a gente sente-se meio desprendida da terra e — não sei se por alguma lei  psicológica o espírito se alargue e o orgulho  augmente à proporção das eminências vencidas  — o certo é que um frenesi de subir, de arrancar  das nuvens o segredo de alguma coisa extranha  se apodera de nós ; a muitas vezes humilde e  fatigada montaria se transforma em hipogrifo e estamos já a correr o risco de uma  queda pelo despenhadeiro, quando os ventos  estouvados nos arrebatam o chapéu brutalmente, punindo-nos por os termos surpreendido lá onde eles encalçam uns aos outros, como alegres foliões, brincando em liberdade,  ou concertam à socapa as temerosas investidas.      
    Então, os olhos vêem ; e quem Xavier de  Maistre chama simplesmente Ela, desce à  mansão habitual e consente que os sentidos transmitam as impressões do exterior.
     A princípio, uma sensação de vácuo, uma  ideia de páramo nos confunde e atemorisa , depois, uma sinfonia extranha, ouvida vagamente, vinda de longes ignorados, nos acaricia  os nervos, arrepiando levemente a pele ; pouco  a pouco, as coisas exteriores vão tomando uma  forma, quase ideal ainda: o perfil de uma montanha longínqua mal se esboça, confundida  com a desfilada de um exército, de bandeiras  desfraldadas, com elefantes em marcha, cobertos de chairéis pendentes e bambolins de  ouro. A vegetação dos morros distantes parece as cerdas arrepeladas de algum monstro e as cascatas, serpentes enormes de dorso luzente, que vão descendo preguiçosamente a desalterar-se no rio que corre em baixo.  
        Mas um cavaleiro assoma num cotovelo da estrada; o gado que pasta ali por perto se assusta e foge ; os gaviões que voavam baixo libram-se aos ares ; uma centena de passarinhos, animados pelo número, os escarmentam a  bicadas, e o cavalo relincha ao avistar o  outro.                   
    A fantasia despede-se de nós; foge. na asa do gavião que frecha os ares à corrimaça dos passarinhos.                   
    — Como vai, amigo ?        
       — Bom, para o servir, patrão.        
               — Ainda que mal pergunte, não estaremos errados? É este o caminho do arraial?                  
    — Estrada batida, meu patrão ; não tem errada : é seguir toda a vida.                  
              — Adeus ! Obrigado.                   
     — Não seja por isso. Até à vista, se Deus quiser.                   
     Um toque nos chapéus e esporas nos cavalos; os cavaleiros se afastam para lados opostos. Um cigarro aceso e umas fumaças puxadas à cadência da marcha pela estrada.                     
    Logo depois, a cavalgadura começa a vacilar num terreno pedregoso, de pedras roliças.      
    A estrada corre à meia encosta e, de um lado e de outro, vê-se a natureza convulsionada; enormes penhas escuras, espalhadas a cavaleiro do caminho, parecem avançar ameaçadoras; algumas já miram no meio de horroroso  fracasso e outras caminham lentamente, para  ganhar impulso que as precipite no algar, ao  fundo. Pequenos troncos enfezados, retorcidos,  parecem em desespero aos aproches da luta  pavorosa. Nas suturas das rochas, pelas brechas dos lançantes, escorrem teimosos fios d"agua,  que vão delindo a rigidez dos blocos e filtrando-Ihes no imo a fúria com que arremetem uns contra os outros.      
    — Pobres troncos enfezados que debalde vos contorceis de angústia na previsão de vosso  próximo estraçalhamento! Em vão clamais  socorro na vossa compostura trágica e muda!  Ninguém vos arrancará daí. Quem mandou  o vento trazer o gérmen de que saístes ? Quem vos mandou agarrar-vos à vida tão tenazmente,  e espalhardes as raízes e as mergulhardes no subsolo e caçardes, com mil bocas famélicas,  no fundo dessa terra ingrata, um pouco de seiva para essa vida mesquinha ?                
     Os líquens e os fetos bravos riem-se das pobres árvores amedrontadas ; trepam pela escama dos penedos, agarram-se a eles como insetos daninhos e viçam e triunfam e desafiam a ira dos pétreos monstros, certos de que, ainda quando esmagados, crescerão de novo, de novo receberão o orvalho da noite.                     A estrada vai tombando aos poucos. Os seixos roliços augmentam e os filetes d"água, recuando, fugindo, contornando esta pedra, vingando ess"outra, depois de formarem poças, vão se ajuntando aos poucos para fazerem as nascentes dos grandes rios.                  
    — Quanta perseverança, quanto obstáculo vencido, que trabalho insano, incalculável, pequeninas gotas, para vos reunirdes aos poucos permeando as grossas camadas de terra, tecendo — animálculos invisíveis — uma trama delicada e bem composta, que se vai enredando cada vez mais compacta, até que o último torrão se dilua e possais cantar ao sol o hino glorioso de uma vitória tão bem pelejada! É de ver se então o murmúrio alegre com que os regatos se formam e as fontes claras retoiçam,  pompeando ao sol o seu dorso prateado!      
    Prodigiosa força de atração que chama de  cá e de lá aquelas duas células imperceptíveis  e as vai levando até ao oceano, onde mais,  tarde, quem sabe se o sol não as vai buscar, cheias de saudades dos montes e da luta!      
    Neste ponto a montaria, bufando, procura  um chafariz de compridas lajes de pedra afincado no barranco da estrada. Lê-se uma inscrição:

                                M D C C...                     
    Governando estas minas                            
    Dom...........
                        O fez                    
    Por munificência d"El-Rei                                                
              E bem                                      
                            Dos                          
    Povos da Capitania    

    ***                                                                  
    Eis-nos chegados ao fundo da bocaina.  
           Na encosta aclive, chamalotando o verde do  capinzal, casinholas de paredes barreadas soltam pelos suspiros do telhado tênues colunas  de fumo. As bananeiras abrem suas palmas,  onde melros negros afinam as gargantas para uma entusiástica ouverture. Uma mancha de  um verde mais tenro denuncia as terras cultivadas e as plantações. Vamo-nos acercando e  descobrimos lá, curvados sobre a terra fecunda,  uma fila de enxadeiros.      
    Cantam.      
    Que toada sentida ! Também sofrem esses  homens (robustos, sob cujas mãos a terra generosa se desentranha em frutos e para quem os melros modulam seus trinos?                 
    "Pomba do mato seu ninho      
    Dentro da moita escondeu;           
      — O gavião os filhotes                 
    Lá mesmo dentro comeu !            

    Meu coração sossegado             
    Dentro do peito batia ;             
    De lá mesmo foi tirado             
    E posto aos pés de Maria!
  
                De que serve, passarinho,              
    Ter asas e penas ter,              
    Se lá em cima nos ares                  
    Gavião vai te comer?              

    Meu coração quis voar              
    Ouis fugir qual passarinho...             
    Tu viraste gavião              
    E comeste o pobrezinho !"              

    — « Ai mulher! ai gavião !             
    Dai-me um outro coração!"      

    O ritmo choroso magoou-me o peito e eu  entrei a cismar...      
    Súbito, chilros, pipilos e pios estridentes dão-me accordo de mim: e eu vi nos ares, fugindo  arremangado ao passaredo em chusma, o gavião  traiçoeiro.      
    As avezinhas, aos centos, esvoaçavam sobre o  abutre,bem alto, no azul...          
    Vingavam-se, os pequeninos...  


                Desamparados
    

    Foi no chapadão extenso que chanfra as cumeadas da grande cordilheira das Vertentes ; naquele ponto dos limites entre Minas e Goiás  em que o dorso da serra parece morder as nuvens baixas e aprumar-se para abrir leito ao remansado Paranaíba.     
     Passava como peregrino por aquelas paragens ermas, tão cheias de soledade e de beleza,  cuja contemplação levanta o espirito à indagação dos grandes problemas cosmogônicos.      
    O vento cabriolava pelas campinas solitárias,  carregando panos de neblina, que se afunilavam, extendiam-se em amplos mantos de  arminho roçagantes, ou voejavam ao longe, na comissura do horizonte, quais brancos albornozes numa escapada de cavaleiros do deserto.      
    Pelas fraldas dos morros, cingindo-os, bordando os vales, em cujo fundo se espreguiçavam pauis sonolentos, o buritizal erguia  suas verdes frondes, tão lavadas pelas chuvas e tão brilhantes que se afiguravam majestoso  gorjal de pedras finas.      
    Aí, nesse quadro grandioso, em que tudo  era majestade e pujança na natureza, deparou-se-nos caminheiro singular, mofino e raquítico,mal coberto por um esburacado chapéu de  palha e uns farrapos de algodão encardido, que  estavam a calhar naquela pele cheia de lividez.      
    Era uma pobre criatura incompleta, insexual, nem menino, nem homem,cujo rosto  chupado tinha uma expressão de contrastadora  alegria, nos lábios descarnados que nem podiam se unir, nos olhos pequenos e admirativos que nos esguardavam como a coisas exóticas.      
    — Um bandeira! bandeira! — gritou o  mísero e, espigando-lhe a estatura exígua, levantou a cabeça, abrindo os braços em menção  de quem quer abraçar. De seu magro pescoço desceram sobre a pele do peito adusto e arrepanhado rosários e bentinhos.      
    — Tá lá o bandeira ! — acabou assim de  exprimir o que queria dar a conhecer ao viajor,  que eu era, pela mesma menção de abraço, e  apontou, depois, para a fralda do morro onde balouçavam as frondes do buritizal. Tinha visto  um grande tamanduá. Depois, deu uma gargalhada e continuou pela estrada afora, tarta- mudeando palavras, cortando-as com risadas  extravagantes, que mais pareciam vozes animais.          Acompanhei vagarosamente aquele ente mirado, tão contente na sua insciência, tão forte na sua nenhuma força, que mais se anulava  diante da natureza pujante e infinita que o circumdava.     
     Perdizes piavam tristemente pelo campo, chorando o tempo em que viveram nas matas,  onde abundam os frutos e cantam as fontes  cristalinas. Conta a lenda que daí as expeliram as jaós numa guerra cruel, cuja memória  umas e outras conservam no seu pio lamentoso ou no inolvidado desafio.      
    Mudo, no meio do escampado, e compadecendo aquela miséria humana, eu seguia com os olhos os movimentos daquele ente sem ventura, inquerindo por que motivo as feras o  haviam poupado em suas montarias ou os  coriscos no meio das tempestades.  
    Foi então que o idiota, dando pulos de contente, mostrou no meio de uma moita um  casal de pequenas perdizes quase implumes,  pipilando, batendo uma na outra os cotos das  asinhas.      
    O ninho estava desamparado à beira da estrada e também o tinham poupado as enxurradas, em torrentes, nesse tempo de grandes  chuvas, e as raposas em sua ronda da noite. 
    Também os mesquinhos e desamparados encontram caricioso aconchego no seio largo da natureza infinita.  

                A Velhinha
                José Braga
    
    Quando, já não me lembra ; mas foi em tempo  que vai longe.     
     Passeiava uma tarde por uma rua solitária de pequena cidade em ruínas. Ao defrontar uma  casinha de gelosias abertas, mergulhei o olhar  indiscreto nas paredes interiores, onde me pareceu divisar telas antigas — magníficas talvez  — esquecidas ali, ou, melhor, poupadas à  profanação de algum adelo pela providência  benfazeja de uma lembrança querida que elas representassem.      
    Nesta nossa terra, onde as tradições tão  depressa se apagam, tão cedo se esquecem as  velhas usanças, — o encontro, muito raro, de   algum objeto antigo tem sempre para mim  alguma coisa de delicado e comovente. Móveis ou telas, papéis ou vestuários — na sua   fisionomia esmaecida, no seu todo de dó —   eles me falam ao sentimento como uma música  longínqua e maviosa, onde se contam longas histórias de amor, ou se referem dramas pungentes de não sabidas lutas e misérias.      
    O espírito se compraz, então, no tecer uma  trama de romance ou de tragédia, em que cada  um dos velhos objetos vive na vida de mil personagens evocados ; uma longa estrada, sinuosa  e branca, se rasga para o país do sonho, e a  alma, seguindo-a, deixa embalar-se, como Leilá, ao som de guslas, ou à plangente harmonia  das baladas.      
    O certo é que, ao perscrutar as paredes  escuras de uma pobre salinha, pela janela  aberta sobre a rua, não só telas descoloridas,  como um antigo cravo, primoroso na fábrica, incrustado de bronze e ornado de finos lavores de talha na madeira negra — me prenderam  de todo a atenção.      
    — Restos de uma grandeza extinta! que  triste fadário vos impelliu ao casebre mesquinho de quem, por certo, vos não conhece a  história nem o valor ? Cravo centenário ! que  lânguida açafata ou melindrosa sinhá-moça  esflorou o marfim de teu teclado, desfiando o  ritmo grave de uma dança solarenga, ou a furto, a denguice feiticeira de um fado vilão ?      
    Isto pensando, aderguei a uma pequena porta ao lado, cuja aldraba a mão ergueu involuntariamente. Neste ponto, o sonho começado  interrompeu-se e eu, desconcertado, verifiquei  a indiscreção daquele passo. Nova reflexão  succedeu a esta: um pouco daquele fatalismo  a que o grande Loiola entregou a solução do  primeiro problema de sua vida de peccador já  redento e de seareiro de Deus no grande agro  do mundo.—Ora, se cá vieram ter meus passos, não  será sem alguma funda causa ignota. Entremos.       
    Bati algum tempo e, não acudindo alguém  de dentro, entrei sem mais cerimônia. Pus-me   a examinar um quadro a óleo com uma velha  moldura de madeira envernizada ; representava  Dom João V quando infante, na posição e na  idade. Era uma criança loura, de rosto vivo,  vestida de camisola de seda branca com uma   larga faixa azul ; tinha na mão esquerda, a   modo de menino Deus, um orbe, e, na direita,  um cetro de marfim. A um lado, sobre uma  grande almofada de veludo cor de granada,  fulgia o escudo d"armas dos Braganças.  
     Passei ao cravo e admirei a perfeição do puro  estilo Luís XV, artificioso, arrebicado, mesureiro, revelando no bem acabado da minúcia,  no trabalhado do pormenor, as mil regras de  etiqueta do tempo.          Na grande tábua inteiriça do fundo, sob o  teclado, avultava um belo corpo de baco, coroado de pampanos, trazendo nas costas, em  forma de manto régio, uma grande pele de  tigre. Aos cantos, anjinhos anafados, com cintos  de rosas caindo-lhes nos quadris roliços, abraçavam os fustes de colunazinhas e tocavam  com os polegares estendidos as folhas do acanto, como se esforçando por colhê-las.      
    Um leve ruído fez-me voltar o rosto e ver,  então, emoldurada pelas ombreiras da porta, ao fundo, uma estranha figura de mulher, vestida de algodão muito branco, com o torso pendido a uma dor intensa, sopitada a custo, e a  fisionomia cançada, emurchecida, repuxada de rugas, onde mal se adivinhavam os   olhos sem brilho, quase inexpressivos, a não  ser um quê muito fugaz de carinho, que neles boiava ainda como uma flor desprendida da haste e já quase fenecida, flutuando na superfície de um lago dormente.          Meio admirado, meio constrangido, por ter  penetrado, sem mais nem menos, naquela casa  desconhecida, dirigi-me para  a mulher e balbuciei:      
    — Perdôe-me a confiança. Tinha andado  muito pela cidade e estava com uma sede...  Bati ; não vendo gente, entrei assim mesmo.  Perdoe-me a confiança, não é ?      
    — Sente-se, nhonhô ; vou buscar a água —  disse-me ela com voz trêmula, e saiu, querendo fazer-se pressurosa, arrastando pelo chão  as chinelas de couro.     
     Ao voltar sobre os passos para entrar no  interior da casa, pareceu abafar um gemido...  E lá foi, apoiando-se às paredes do corredor,  sempre curvada, premida sempre por uma dor  que seus lábios não  diziam, mas seu aspecto nos  contava de modo a fazer pena.     
     Sentei-me num catre grosseiro, mesquinho,  cujo assento era um tecido de couro crú, destoando do cravo, tão elegante, tão aristocrático, que até evocava requintes de luxo e de  galanteria numa corte já morta.  
       A mulher demorou-se um pouco, polindo, talvez, o cristal de um velho copo há longo  tempo fora do uso.  Quando voltou, corri ao seu encontro, por   evitar-lhe alguns passos mais, e, enquanto   bebia, demorei a vista sobre aqueles restos  venerandos de uma — quem o sabe ? — talvez   extinta beleza.      
    — Agradou-lhe aquilo ? perguntou-me apontando para o cravo. Foi da casa de meu sinhô.     
     — Mas que é dos filhos ou dos netos de seu sinhô ? eles não quiseram ficar com isso ?     
     — Ele não deixou filhos — accrescentou a  velha com voz sumida.      
    — Ah ! não deixou filhos...      ela abanou a cabeça e ficou alguns momentos  de olhos abertos, vagos, vagos...      
    Eu, fingindo não perceber sua comoção,  levantei a cabeça: deparou-se-me, então, dependurado num tomo de madeira, um chapéu de  homem.     
    — Mas a senhora tem um filho, não é ? Seu  filho faz-lhe companhia, não é assim, minha  tia ? Está trabalhando fora, com certeza.          
      Do tamborete de couro onde se tinha sentado, a velha surpreendeu-me o olhar; levantou os olhos também, mas baixou-os logo,  escondendo o rosto nas mãos.  Esteve assim muito tempo... Depois, como   que continuando um período já começado,  disse:      
    — Coitado ! assim desamparado... ninguém  sabe !... Nem o consolo de um lugar bento...     
     — Como ! ?      
    Ela fez-me um gesto, e por ele compreendi  que seu filho era louco. Depois, quasi por monossílabos, me fez comprehender que o desventurado, sua única alegria, apesar de enfermo  da mais triste das enfermidades, — desaparecera de casa havia mais de dez anos, sem que  se soubesse até então de seu destino. Era crença de todos que fora arrastado pela corrente do rio ou tragado por algum boqueirão da serra.  — " E acabou-se tudo !" — accrescentou. " Nem  mais esperança, nem nada !" Depois, apanhou  a barra da saia e nela tentou afogar o pranto.     
     — Que página sentida escrevestes, ó intérpretes do coração humano, que doa mais do que  
 a só vista desse velho pergaminho mudo, engelhado no rosto da velhinha ! Essa dor infinda  e resignada, essa dor desamparada e humilde  naquele despojo humano é mais dolorosa do  que a do mito imortal de Prometeu.      
    Tomei insensivelmente uma das mãos da  velhinha e beijei-a como a de uma mãe venerada.    
      O cravo ancião e o quadro do rei infante,  representando as passadas grandezas, diziam  como, através dos séculos, vencendo-os, sobrepujando suas glórias, — alguma coisa inominável, mas sempiterna, pode encontrar-se oculta na prece de um mísero ou no coração de  uma velhinha.      
    Cheguei a saber então qual a causa ignota  que me guiara os passos inconscientes à pobre  casa de gelosias abertas.   
     E — não me envergonho de contá-lo — saí  daquela casa com os olhos marejados de lágrimas.  

***

    A FUGA 
 (fragmento de um conto histórico)
A Aurélio Pires


    Pelas estradas barrentas, ao meio dos rugidos do temporal desfeito, quando a ventania disparava pelos campos em arranco de boiada, e,  topando o capoão além, constringia-o na medonha luta, ouvia-se, ao esmorecer das vozes do trovão, um tilintar de correntes, cadenciado,  rítmico, acompanhando o estrupido de passos fortes.      
    O viandante tresmalhado, ou o vaqueiro que  se recolhia a desoras, ébrio, das delícias do  batuque, fugiria apavorado, julgando ver no som das correntes arrastadas a penitência de  alguma alma penada, — quem sabe se a do pobre Tristãozinho, espancado há tempos, brutalmente, ali mesmo, à beira do rio, quando de volta da casa de Paquinha, procurava desamarrar a canoa para a travessia?       
    O tilintar das correntes, cadenciado, rítimico, fugia, a pouco e pouco, pela estrada  afora, abafado a espaços pelo gluglu das enxurradas, que, sopitadas nos caldeirões do caminho,  estancavam, reunindo forças para se derramarem depois impetuosas, assoberbantes, pelos sulcos dos carros de bois até ao longe, ao grande  rio.      
    Dois condenados da Extração, escravos reiúnos, confiscados a seus donos pela Real Fazenda, aproveitando-se da tempestade, fugiam da rancharia, junto de uma gupiara à  beira do córrego, onde eram obrigados a trabalhar para El-Rei, como galés, no serviço da  mineração de diamantes.    
      Percebida a fuga, foi dado o alarma, pouco depois, ao som rouco de córneas buzinas, e a  força de dragões avançou confusamente, dando descargas para aqui, para acolá ; mas recuou  logo, pela improficuidade da perseguição nessa noite tormentosa.     
     Os dois fugitivos porfiavam por meter aos  sabujos grande espaço em meio.     
     — Não aguento mais, Isidoro!      
    — Aguarra-te a meu ombro e vamo-nos  embora. Olha que os fulares não tardam.          — Valha-me, Senhora da Abadia   
        — Não esmoreças, Bento. Estou te desconhecendo. Não pareces o mesmo cabra que  aquele dia tirou a cisma do macho ruão, no  terreiro da Cacimba.     
     — Dói-me tanto o peito, que me responde  cá nas costas. E que descarga danada ! Os  judeus me meteram uns dois balázios aqui no braço e na perna. Foi Deus que não os deixou  acertar em lugar mortal. Por cima de tudo, a  pontada, esse demônio de pontada perto da maminha, desta banda...     
     A marcha dos fugitivos enfraquecia. Já não  era o mesmo pisar forte, seguido do ranger dos   grilhões.     
     Abeiravam, então, o Jequitinhonha, cuja  presença era indicada pelo estuar das águas em  plena cheia. Ouviam já o som cavernoso do rio,  rolando formidavelmente, no meio dos ribombos causados pelas grandes árvores, arrancadas a custo pela fúria da corrente, precipitando-se no  abismo das aguas com gritos despedaçados dos ramos e raízes.      
     Dentro do capoão, denunciado aos tredos caminhantes por um grau mais intenso de sombra, tomaram fôlego, pavidos, baixando instintivamente a cabeça com a sensação da  grande massa negra, informe, que lhes pairava  em cima. No pandemônio de sons e movimentos que se adivinhavam no bojo da atra escuridade, presentiam lutas supremas de troncos contra os estirões da borrasca, inundações  de ninhos, dramas trágicos de animais silvestres mortos pela queda dos galhos e outros arrastados pelas enxurradas ; uivos entrecortados de onças abrigadas nas lapas alcançada  pelas águas, junto aos filhotes ainda aquecidos  pelo calor materno ; berros de sucuris despertando do sono costumeiro com as notas vibrantes e sonoras da tempestade.      
    Isidoro carregava já seu companheiro, arcando ao peso, roncando de esforço a cada  passo, incerto, titubeante, no meio da estrada.      
    O vaqueano sentiu perto o rio e, norteando-se  ao clarear dos relâmpagos, entrou à esquerda,  por uma trilha de anta, que conduzia a uma grande rocha a beira d"água, seu pesqueiro  habitual em outros tempos. 
    Acocorou-se aí com o pobre do companheiro, que nem falava mais. Suspirando longamente,  quedou-se, resignado, à espera da madrugada.     
     Serenou a tormenta.      
    E, já na meia claridade da antemanhã, uma  sensação súbita de frio principiou de invadir  os míseros. Era a grande massa d"água, farrusca, ameaçadora, que grimpava a pedra, traiçoeiramente, como um jacaré que se arrasta, sutil e feroz, na algidez repelente de sua pele  escamosa, querendo pilhar a presa durante o sono. Espessa camada de neblina cobria toda  a superfície do rio, montando, da flor das águas,  pelas barranceiras acima, aos ramos mais altos do mato frondejante. O tope do arvoredo rasgava no alto o denso véu cinzento, que se esfarrapava, prendendo nas pontas da galhada longas  flâmulas brancas, arfando serenamente às auras matutinas.      
    Os tons roxos do céu iam cedendo a uma coloração de ouro tenuíssima, que se acumulava ao longe, na barra do horizonte, onde o rio, num préstito triunfal de pequenas ondas marulhosas, parecia perder-se no espaço ilimitado.      
    Longas fitas de ouro e púrpura cairelavam o  céu na comissura do rio, sobrepondo-se paralelamente, até se afogarem no pélago de nimbos que refluía de onde se arqueava o firmamento.      
    — Eh lá ! companheiro ! Esperta e vamos  embora, batendo mato pela beira do rio. Olha  que enchente ! Vigia: se nós cochilamos mais um bocadinho, a água nos papava.      
    E, meio estarrecido da longa quietação e do  frio, Bento estremunhou, distendendo os braços  com gritos de dor das feridas.      
    — Assim, com esse inferno de corrente pesada, eu quase não me posso mexer — disse  Bento, batendo o queixo, apertando no corpo o timão de baeta já meio enxuto.     
     Isidoro lembrou-se, então, da lima finíssima  que lhe dera, há tempos, o Chico Júlio e de que  se não pudera servir na precipitação da fuga.  Começou a serrar vigorosamente o anel de aço que roxeava o tornozelo de seu pobre companheiro.Depois, prendendo num gancho de  ferro pendente do cinturão de sola toda a corrente, que lhe subiu do pé pela perna acima,  exclamou :     
     — Vamos ganhar a estrada ! E, suspendendo o companheiro por baixo dos braços ;  —  Corpo duro ! Nós já desnorteamos os fulares, que andaram bestando pelo mato. A  chuva apagou os rastros, mas eles podem andar farejando por aí ; eu deixo para limar minha  corrente na venda do Chico Júlio. 
      Iam começar a marcha, quando estacaram  de chofre, estremecendo, com o estrépito de um corpo que caía pesadamente na água.  Assuntaram algum tempo, mas ouviram logo outro ruído igual e, não longe, duas ou três capivaras que se precipitavam no rio, assustadas com a presença de tais frandudeiros nos  seus domínios.      
    Tranquilizados, partiram, numa farfalhada  de folhas molhadas e de taquaras que se quebravam, assustando as jaós, fazendo os nhambús ocultar as cabecinhas no meio das folhas,  levantando para o ar o uropígio coberto de  frouxéis.          Queriam atravessar o rio a nado, fora de porto freqüentado, onde pudessem ser vistos,  mas a fraqueza de Bento fê-los hesitar diante  da impetuosidade da corrente.     
     Encontrando, alfim, um espraiado, onde a  enchente, sem a constrição de barrancos, podia  pavonear suas forças, avassalando pacificamente, sem tropeço, os descampados, os fugitivos derribaram algumas piteiras, já meio secas, cujas hastes se erguiam, ainda retas e  altaneiras, das touças em redor, e, jungindo-as  fortemente com cipós em grossos travessões de  taquaruçu, improvisaram uma jangada.          Isidoro encontrou, arrancada pela ventania da véspera, uma folha de coqueiro, cujo talo  lhe serviu de remo.     
     — Encomenda a alma a Deus e vamos  embora. Tu não tens alguma oração contra enchente ? Esta jangada é muito leve e nos agüenta, mas não por muito tempo, porque a  pita encharcando afunda sob o peso. Segura  bem, rapaz !      
    Cavalgaram a jangada e fizeram-se ao largo,  demandando um portozinho na outra margem,  muito embaixo.  
         Bento acurvou o busto, asindo fortemente  a estiva.      
    Ao ganhar o fio da corrente, a jangada foi fortemente impelida para baixo e Isidoro começou a lutar a grandes remadas, para aproximar-se da margem oposta. Então, jangada  e tripulantes se confundiram, se unificaram, semelhando, no movimento que se lhes percebia,  o dorso mosqueado de um surubi, retouçando  ao sabor da correnteza.      
    Quase não se lhe notava a marcha, mas sentia- se que um esforço vivo e inteligente, terrível  e heroico, lutava contra a força esmagadora da  natureza onipotente.     
     Conseguiram vingar o portozinho, que era  antes um bebedouro de animais. Saíndo d"água, tiraram o chapéus de couro  e puseram as mãos, levantando os olhos aos  céus, em profundo reconhecimento pela salvação ; já não temiam os fulares, nem os tiros  de reiúnas.      
    A jangada que tinham abandonado lá foi,  boiando sempre, topar uma grande árvore  esgalhada, flutuando também. Outros ramos se lhe foram juntar e mais uns restos de macegas e garranchadas, que formaram um batei selvagem, todo franjado de espumas pardas, no qual  pousava às vezes un martim-pescador, soltando  gritos estridentes, numa alacridade de vitória e de fartura.      
    O sol iluminou, ainda baixo e frio, o campo de batalha da véspera ; beijou, reverente, numa  carícia de vassalo humilde, a face do rio, que  pompeava seu poderio, ostentando os despejos da liça com os bosques marginais e rolando sempre, no meio de um como ave ! triunfator!  da natureza.      
    Do outro lado, lobrigavam-se ainda, pequeninas, amesquinhadas, as figuras dos fugitivos.     
     Esses primeiros raios do sol no levante, esbatendo suas cabeças, aquecendo seus corpos meio entorpecidos e alquebrados de sofrimento  e de fadiga, pareciam ter uma carícia de amor e piedade para os miserandos, um resplendor de vitória para os lutadores.        


O CONTRATADOR  DOS DIAMANTES                    
EPISODIO DO SÉCULO XVIII (fragmento)            

    Corria aceso o festim. Pompeava Felisberto Caldeira, na larga generosidade de fidalgo venturoso e manirroto, a riqueza deslumbradora do contrato que havia celebrado com a  Real Fazenda para a extracção dos diamantes,  dentro do território da Demarcação, nas Minas-Gerais.
      A nobreza do Tijuco, nos salões da casa do  Contrato, galeava, fazendo refulgir, à intensa  luz de centenas de bugias em arandelas de custoso lavor, o brilho fascinante das sedas e da variegada pedraria.
      Pairava ainda no ar, à preguiçosa inspiração  dos convivas, o cheiro estimulante de condimentos e de iguarias, vindo das salas interiores, onde se poderia ouvir, ao tilintar dos copos entrebatendo-se, o gargalhar de dois ou três gastrônomos obstinados, que lambiscavam ainda a um canto da mesa, teimosos em dispu-   tarem sobre a superioridade deste ou daquele  prato, de mais este ou aquele vinho, quando já os outros convivas se haviam espalhado pelos salões, formando grupos aqui e acolá, bocejando alguns, falando animadamente outros, levípedes de faces rubras, aos estos de um xerez ancião, ou de um madeira longo tempo sopitado em garrafas poentas.
      Para os fundos da casa, estrupidando no chão duro das cozinhas, algazarreavam pretos em contínuo vai-vem, num leva-e-traz de pratos e bandeijas.
      Junto aos salões da frente, numa antecâmara, músicos afinavam instrumentos; e um conviva jovem, sacudindo a cabeça, meneiando  o corpo, marcava muito atento uma valsa figurada, ancioso pela hora apetecida em que podesse cingir o corpo airoso de Cotinha Caldeira e, sorvendo-lhe o perfume do cabelo de  cor alambreada, da boquinha breve e vermelha, doudejar pela sala, tendo frêmitos de goso ao sentir a pressão macia daqueles seios pequeninos sobre a casaca de veludo degolada.
     A pouco e pouco se enchiam os salões.
      Atraídos pela música, onde sobressaíam as notas graves de um fagote dulçoroso, cortadas pelo som vibrante de um címbalo triangular, acorriam damas e cavalheiros; e as modorrentas matronas, em quem a febre sibária punha um peso nas pálpebras, alongavam os pescoços e aguçavam os olhares curiosos.
      D. Branca de Almeida Lara, mulher de Felisberto Caldeira, animava os convidados, procurando organizar as contradanças.
      — Senhor Luís Camacho, auxilie-me neste mister. Vossa mercê que chegou do Reino, depois de viajar pela Europa, deve trazer novidades aos tijuquenses.
      — Sempre a seu serviço, D. Branca.
      A esbelta senhora percorreu a sala, parando acolá, dirigindo uma amabilidade a este, um  cumprimento àquela, sempre grave e majestosa na cauda roçagante de seu vestido verde-claro, de frente cor de rosa. Cingia-lhe o pescoço  alvo e redondo um rico afogador de pedraria, turvando a vista, que subia um pouco para se  abrigar na caraminhola de seda branca, rematando no cocar de plumas roseas e verdes, que prendia delicada trama de ouro.  
     Daí a pouco, apresentava o salão um aspecto de corte da época.
     Do teto alto, oitavado, com frescos de um   dos artistas que a fama dos diamantes atraiu ao Tijuco, pendiam dois grandes lustres de cristal, onde as velas de cor formavam irisações cambiantes. Aclaradas pela fulguração da  luz, destacavam-se no teto figuras mitológicas: a Aurora, toda púrpura, em áurea quadriga tirada por corcéis brancos pinoteando sobre nuvens; Venus, seminua, na concha que  arrastavam sobre as ondas golfinhos ligeiros; Orfeu puxando da flauta quérulas endechas, tal a expressão do rosto.
      Felisberto Caldeira entrou ao lado do intendente.
      A cabeça do contratador alçou-se e sua figura erecta amesquinhou o corpo alquebrado e doentio do Dr. Francisco Moreira de matos.  As cabeças empoadas de ambos e os folhos brancos, de artificiosas rendas, contrastando com a severidade das casacas de veludo verde-garrafa, punham em seus rostos inteiramente  barbeados uma brancura de cera.  
     O contratador, sustendo a marcha para percorrer com os olhos o salão, pousou de leve a sinistra sobre o punho emperlado do espadim.
      O intendente tirou do bolso do longo colete de cetim, com botões de ouro, uma boceta de rapé, cuja tampa tinha um brazão d"armas em  relevo ; colheu delicadamente, com a pontinha do indicador e do polegar, uma pitada e, acurvando o busto, sorveu-a ruidosamente.
      — Vossa mercê, senhor contratador, sabe dar um tal realce a seus festins que me lembra, mal comparando, o senhor rei D. João V, que Deus guarde.
     — São bondades de vossa senhoria, senhor  intendente. Pouco se pode fazer nestas alturas; mas, com a ajuda de Deus, vai-se remando. Que novas tem vossa senhoria da frota do Reino ? Ando receoso que pela ultima frota lhe  chegue sucessor. Penso que Sua Majestade não quer privar por mais tempo a Vila do Príncipe de seu ouvidor. E quando me lembro  de que, em todo o tempo decorrido da morte do intendente Moutoso, vossa senhoria tem sabido, embora interinamente, honrar essa alta  magistratura com tanta clemência, cordura e zelo pelo real serviço, temo pelo dia de amanhã; coisa boa não dura.
      — Não me colhe de surpresa a nova, qualquer que seja; prestes estarei: sempre — pola  ley, polo rey.          Cortou-lhes o diálogo, entrementes, a vozinha gárrula de Cotinha, exclamando:
     — Titio e o senhor intendende hão de dançar o minueto!
     — Tão achacado que sou, menina!- tossiu o Dr. Francisco Moreira. Seja tudo pelo amor de Deus !...
     -...e das moças, acrescentou Cotinha. -Ora, vamos lá, senhor intendente; V. S. teve seu tempo no reino, cá nos chegou a fama. E o titio que tire a sombra que lhe afeia o rosto disse, voltando-se para Felisberto.
      E correu, a graciosa rapariga, atravessando  a sala, onde os saltos vermelhos, entrevistos  no colher o vestido, mal tocavam.
      Pouco depois, mesurada e gentilmente, com o braço erguido em ligeiro ademane, dançava o minueto. Na trunfa alta, rebrilhava aos lustres, ao pleno acesos, um como toucado de pérolas com delicado artifício de ouro. O justilho de nobreza, desarrugado, cingia-lhe estreitamente a cinta, inflando-lhe o busto; em grossas pregas arqueadas caía-lhe dos quadris a sobre-saia de chamalote claro, dando um tom suavíssimo ao azul do vestido.
      O entusiasmo foi ganhando os salões. Daqui e dacolá fugia um bravo do peito de um cavalheiro ao grácil movimento de sua dama. Ringiam as sedas, tremulavam as cintilas das  gemas, retiniam bainhas de espadins na contradança; de evolava-se a poeira sutil e, com ela, um cheiro humano, que aguçava os sentidos. Apertavam-se pontinhas de dedos e, palavras de amor, entrecortadas, sussurrantes, murmuravam os namorados, que a marca da dança aproximava uns dos outros.
      Uma nuvem, porém, negrejava ao longe. O semblante de Felisberto contraía-se às vezes;  errou a contradança e jogou ao disparate nas respostas a seus interlocutores. Uma dama  chegou a corar porque o contratador pareceu fitar longo tempo sua gargantilha de ouro e as belas arrecadas pendentes das orelhas, sob os canudos sobrepostos do cabelo frisado nas fontes.
      A corte... el-rei... o general... E mais o insucesso de seu irmão Joaquim Caldeira na mineração do rio Claro! Pressentimentos... pressentimentos...
     E enquanto nessa noite de 1 de setembro de 1751, aniversario de D. Branca de Lara, a nobreza e o povo do Tijuco — cabeça do famoso  e grande distrito diamantino — aquela nos salões, este pelas ruas do suntuoso arraial,  celebravam a ventura do Caldeira opulento, do mineiro atrevido que trouxera a abastança   ao Tijuco, que levara o consolo a muita lágrima e cuja mão pesada caíra impiedosa sobre muitos malefícios — o contratador pensava na frota a chegar, nas ordens que trazia; e o ouro, os diamantes, os amigos, a família, a pátria turvavam-se, imergiam no negror de um sonho mau, à feral aparição desse morcego temeroso, que em longos surtos, de grandes asas espalmadas, se entrepunha a Caldeira e à luz de sua até então boa estrela. 
     Ouviu-se de repente um borborinho no salão. Senhoras e cavalheiros abriam espaço a um espetáculo delicioso, pouco visto na época. Os canapés arqueados, com figuras de anjinhos talhadas na madeira de recosto e garras de  dragão nos pés, estalaram ao peso das damas que se sentavam, roçando a seda dos vestidos no damasco amarelo do imóvel. As cadeiras de grande espaldar foram arrastadas para junto das paredes. Cotinha e Luís Camacho, o jovem conviva de que se falou no principio, giravam numa valsa, dança tão amada depois por Goethe, que Camacho aprendera em sua viagem à Alemanha. E quando já cançados,   rubros e vitoriosos, descaíam num canapé ao lado, vozes gritaram — muito bem ! — e  D. Pulquéria Dias, velha brejeirona, pegava  na ponta dos dedos de Cotinha, pedindo-lhe só, um bocadinho só, da sarabanda, que descançaria depois.
       — Ora ! Pede à Josefina, que sabe também !
       — Que é isso, Cotinha ? Que tem dançares um bocadinho, só para vermos ? Depois que daqui saiu Diego Suarez, que no-la ensinou, eu nunca mais a dancei, exclamou Josefina. - A sarabanda, mestre Vicente! gritou ela  ao mestre da música.
      E compassadamente, em lentos bamboleios, ao som de castanholas, Cotinha deslisou, levantando-se nas pontas dos pés e pousando de leve  sobre os saltos, no meio da faiscação das luzes, arfando o seio tenro, entreabrindo, no resfolegar, as pétalas sanguíneas da boca.
      Ao longe, numa sala de dentro, fervia um  fandango ao som de xiquexiques. Um novato tocava sestros e um rapazola moreno, da terra, requebrando o corpo, cantava à viola—o estribilho:— "mulata, seu bem sou eu!"
     Dentre a multidão que se acotovelava na frente da casa do Contrato, ponteando de negro a área iluminada, emergiu um vulto, que se encaminhou para a portaria, branquejando-lhe no trage mal distinto o boldrié dos dragões d"el-rei.
       —  Da parte de S. Ex. o general! bradou ele.  
     Dois ou três negros, de libré agaloada de  prata e sapatos amarelos com fivelas de crisólitas, acudiram ao brado e receberam o papel que devia ser entregue ao Dr. Ouvidor intendente.
      Resmungava o Dr. Francisco Moreira, fungando e gemendo do esforço que fizera em dançar o minueto de etiqueta, quando lhe trouxeram às mãos, discretamente, o oficio. RecoIheu-se logo ao escritório do contratador, a quem puxou pela aba da casaca, avisando do occorrido.
      Cotinha, desconfiando, correu das salas e,tendo lá deixado D. Branca, colou o ouvido  à fechadura da porta do gabinete, trancada por dentro.
      O contratador discutia irritado. A comunicação incluía uma lista enorme de denunciados, que deviam ser logo presos, alguns dos quais eram condenados ao extermíneo do territória da Demarcação como traficantes, outros ao confisco dos bens, por defraudadores da Real Fazenda, como contrabandistas de diamantes.
      Luís Camacho seria exterminado como traficante, por não ter tido prévia licença escrita de entrar no território e não ter ocupação certa. O marido de D. Puqueria Dias teria seus bens confiscados como contrabandista.
      — Isso não se há de dar! bradava Felisberto ao intendente amedrontado. Seria a vilta destes povos. Denúncias cobardes ! Espoliações iníquas ! Pois se eu, tendo direito de requerer o confisco dos contrabandistas em meu proveito, denunciando-os ao intendente, nada requeri a vossa senhoria ? ! Não ! Tenho os povos da Demarcação a meu lado. Provarei ao conde de Bobadella.
      — Entretanto, senhor contratador, terei de fazer prisões. Até aqui tenho ouvidos moucos às opressôes, aos bandos rigorosos e vexatórios.  A própria portaria de 15 de outubro do ano passado, não a fiz registrar. Com a chegada do conde governador, agora, nada mais se pode fazer; não mais protelações.
      E continuaram-o intendente acobardado; tímido, diante da próxima chegada do general,  na iminência das minuciosas devassas, das prisões, do tronco, do extermínio; o contratador, chamejando-lhe os olhos áscuas de ira, mostrava-se disposto a resistir às vexações dos povos.
      Fora, no salão mais próximo, D. Puquéria Dias, levada pelo arrastamento da festa, dava grandes risadas, ouvindo de uma dama bisbilhoteira anedotas e aventuras picarescas de  certa senhora, de quem já se falava à boca pequena.
     "Luiz Camacho, de pé no meio do salão, ostentava, em movimento vaidoso, sua musculosa perna esquerda em ligeira flexão; e a meia de seda pérola, as ricas fivelas, o broslado de ouro da gola de sua casaca davam um tom áulico às narrativas que fazia à roda atenta de moças curiosas das coisas do Reino, dos costumes e modas de ultramar.  
    Cotinha, junto à porta interior do gabinete, estremecia às palavras do contratador e do intendente; no seu corpo nervoso passava uma crispação de raiva. Chamou pelo tio, a princípio baixinho, depois num crescendo imperioso.
     O contratador abriu-lhe a porta, e o intendente, todo constrangido e formalizado, procurou disfarçar a estranheza que lhe causava a impertinência da moça em querer desvendar segredos de Estado.
 — Senhor intendente, minha sobrinha é um homem. Meu irmão é sócio, que a esta hora cura em Goiás dos negócios do Contrato, pode perfeitamente ter, por boca de sua filha mais velha, um voto ou um parecer nas nossas graves resoluções.
     A moça, meio pálida, de braço direito estendido, apoiava-se nas pontas dos dedos à secretária de cabiúna, com gavetas de segredos. Do intendente só aparecia, na cadeira escura de couro de Cordova, com uma águia bicípite talhada na comprida espalda, sua cabeleira branca, sombreando arrugada fronte des caída.
     — Então ? ficam todos calados, porque o senhor intendente me toma por menina, cabecinha de vento ? Ouvi tudo e nada me surpreende; estamos, os da família, habituados a lutar e a vencer.
     — A senhora sua sobrinha, senhor contratador, talvez das longas praticas com Luís Camacho, ande imbuída das ideias heréticas de um tal Voltaire, da crte de França. É menina nova, de imaginação ardente. Cuidado! A roca e o fuso são talvez remédio.
       — Engana-se, mui senhor meu. Ela assistiu, ainda criança, à luta que, com meus tres irmãos Conrado, Sebastião e Joaquim, sustentei em  Goiás contra a prepotência e o arbítrio dos exatores régios. E saiba mais vossa senhoria que quem herda não furta.
       As palavras do intendente, Cotinha saltou como jandaia ferida, prompta a usar das garras.
       — Meu tio ha de se opor à clamorosa injustiça do general, aconteça o que acontecer. Não queremos isso! Não queremos!
       E o contratador, com o olhar cheio de brandura e carinho para esse rebento de prometedora floração à familia Caldeira; com esse olhar cheio de meiguice, onde se divisava, entanto, a chama da energia viril, da vontade tenaz, disse à sobrinha brandamente:
      — Deixa estar. Nossos amigos nada sofrerão.  Um dia, talvez não esteja muito longe, os filhos da colônia oprimida hão de ter seus ministros e seus generais.
      Cotinha, inflamada com essa aspiração de independência, expressa a meio pelo contratador, arrancou da cabeça, num gesto atrevido, as pérolas da coifa, a gargantilha que afogava seu pescoço de mármore e,arrojando-as aos  pés do intendente, clamou:
      — Eis o que quer el-rei, eis o que querem a corte e o general: o ouro e o diamante destas terras, as riquezas destes povos. Tomem! Carreguem! A influência dos Caldeiras inspira receios à conservação da Colônia ; seus grandes cabedais despertam cobiça e inveja. Mas deixem-se estar os Srs. ministros d"el-rei ! Com os  Caldeiras hão de se avir !
      E, soluçando convulsamente, murmurava frases entrecortadas:
      — Espoliadores !... malvados !... Traficante, Luiz Camacho ! ? com certeza a filha de algum valido d"el-rei usou desse meio para vingar-se do desprezo que lhe votou Luís... temem que tome esposa na colônia... E de faces rubras, molhadas do pranto, amarrotando o vestido,  torcendo nas mãos pequenas a cambraia delica-  díssima do lenço, continuava chorando:
      — Papai me falou muita vez nas mulheres de Piratininga, não querendo receber seus maridos, seus filhos ou seus noivos, enquanto estivesse inulta a afronta que receberam dos emboabas. O general há de vêr! Sentarei à roca,  sim, senhor intendente, fiarei para me vestir até cobrarmos forças para expelir daqui esses  judeus, com o favor de Nossa Senhora!
      Nisto, o velho intendente, à explosão da dor nessa menina varonil, nesse espírito altivo, um pouco amolecido talvez com o amor que o, queria avassalar, deixou o gabinete do contratador, dizendo:
     — Não vão estranhar nossa ausência nos salões, sr. contratador.
      Felisberto acompanhou-o, cerrando a porta sobre Cotinha.
      Depois, chamou de parte o gerente das minas e disse-lhe que se fizesse prestes a seguir para as gupiaras;pusesse toda a gente que trabalhava pronta para o que desse e viesse.
      — Hão de se avir comigo! murmurou entre dentes. E voltando-se para o gerente, recomendou:
      — Boca calada e toda a preocupação, para não despertar suspeitas. Falaremos depois, que aqui não é lugar próprio.
      —  Quem sabe, disse de si para si, se teremos a reprodução do levante das Casas de Fundição? Os dragões d"el-rei não me amedrontam.
      Na sala, soava o fagote um trecho de impressionadora melodia. A sociedade do Tijuco folgava. Que lhe importava a chegada subitânea de um dragão, com um oíficio para o intendente?  Havia no Tijuco toda uma companhia desses soldados. Tratava-se, com certeza, de alguma nova façanha dos garimpeiros contra as tropas reais.
      Felisberto Caldeira atravessou a sala com um semblante sereno, no meio da turba de cavalheiros e de damas. Parece até que dirigiu um gracejo a um velho amigo da família, batendo-lhe com a mão no ombro.      Ao passar junto de uma escada, olhou para fora, distraído.
      No horizonte, um violeta esmaiado, com velilhos de nuvens brancacentas, fazia fundo ao resplendor de Vésper. As vozes dos pares, na contradança, casavam-se no ar em coro alegre e brando.
       O contratador cismava... longe, muito longe, como que do seio da estrela do Pastor, parecia palpitar uma asa branca, acenando-lhe com a libertação de sua terra.
       Seu rosto contraiu-se, avincou-se-lhe a   fronte, e a mão direita, pesada e energica, apertou, num movimento involuntário, o punho do espadim. Arqueou o braço, ergueu a cabeça   ameaçadora e lançou ura soberbo olhar de desafio a inimigos impalpáveis, que pareciam avançar na sombra.
       Nesse momento, um listrão vermelho, na  banda do levante, esgarçando o céu e afugentando um rebanho de nuvenzinhas brancas, pos-lhe na cabeça um relevo de batalhador de outras eras— cavaleiro esforçado e rostido do sol das pelejas. E sonhou, um instante, que, à frente de soldados, pugnava pela emancipação da colonia e  libertação da Pátria. 

JOAQUIM MIRONGA
(Tipo de Sertão)

    O sol estava querendo sumir, quando eu encostei a porteira. Pulei da sela e amarrei,  no moirão o ruço pedrês — bicho malcriado,  reparador, mas de espirito. No lombo desse pagão eu comia doze léguas, de uma assentada.  Olhei a frente da casa, pus a mira no alpendre  e não vi ninguém. — Uai, Joaquim, aí tem coisa ! — Entrei bem sutil, reparando d"uma  banda e outra.     
   " Patrão velho, na hora em que eu estava  arreando o pedrez, tinha chegado perto de  mim, dizendo : — Olha lá, Mironga, não me vás sair um perrengue !      
 — Perrengando, perrengando, meu branco, eu entrei lá dentro. Vossemecê ha de ver, com  o favor de Deus. »       — Olha o café, Joaquim, sem te cortar a  conversa — disse um caboclo meão, de chapéu   de couro e sujigola. E estendeu o cuité fumarento, onde parecia ainda borbulhar o liquido.  
   Na varanda da frente, a gente do retiro estava  reunida para ouvir o Joaquim. Era tempo de  vaquejada e todo o dia havia um caso novo,  uma chifrada de marruá, uma passagem bem  feita com algum garrote bravo. A varanda era  comprida, defendendo-a do mau tempo a grande  cimalha, apoiada em colunas de madeira  lavrada. Presas a estas, duas ou tres rêdes,  tecidas de seda de buriti, embalavam o sono  da camaradagem, que ruminava o jantar depois  de um dia fadigoso, em que o gado na verdade  dera que fazer.      
   Demais, esse gado de beira rio Preto não era caçoada. E nesse dia, no cerrado do Periquito,  os vaqueiros toparam uma rês alevantada, que  fez o diabo.   
   Mas o Joaquim não era homem de ficar quieto assim, de barriga para o ar, como  qualquer tiú ao sol. Era preciso animar a rapaziada na vespera de qualquer trabalho mais  dificil.      
   Para o dia seguinte, o patrão tinha marcado  uma campeação no cerrado do Garapa, onde havia um cambaubal de meter medo. E as rezes velhacas sovertiam-se lá dentro, que só  mesmo o capeta podia com elas.      
   Quando ia ficando lusco-fusco, o povo campeiro chegava para a banda de fora, atiçava  o fogo e pegava a contar casos, a passar em  revista os sucessos da vida de cada um.     
    Mironga, vaqueiro meio maduro, era respeitado por sua justa fama e pelo conceito de que   gosava junto do patrão.      
   — "Como ia dizendo, encostei a porteira ao   batente e entrei sutil.      
   "O pátio estava soturno. Nem viva alma.   Isso no tempo das guerras bravas da era de  quarenta e dois. Patrão velho andava amoitado. amoitado é um modo de dizer, porque  ele dormia, lá de vez em quando, num rancho   de palmito no meio do mato, mas zanzava de  uma banda para outra o dia inteiro, sem perder  de vista a casa do retiro onde estava a familia.   Eu não lhe deixava a costela : vivia rente com  ele para o que desse e viesse, porque. Deus  louvado, nunca me desprezou, e nós da familia  servimos até à morte a gente do patrão, isso desde meus velhos.              "Quando entraram lá na cidade as forças do defunto coronel Joaquim Pimentel para  aganarem os rebeldes, patrão velho teve aviso.  Ele era homem de opinião e não fugia assim  com dois arrancos. E demais disso, a patroa  estava chegadinha a ter menino, esse pedação  de moço que vocês vêem aqui hoje — Sô Neco.       
   Um dia, nós já tinhamos jantado na fazenda  e eu tinha descido para o quarto dos arreios,  quando, na estrada que vem da Barra da Égua,  olhando pelo caminho afora, eu enxerguei uns  cavaleiros chegando devagar, como quem não  conhecia bem o lugar e desconfiava de alguma  coisa. Subi arriba e mostrei os cavaleiros ao  patrão.      
   — Aquilo não é senão escolta e é para prender  vossemecê.      "
"Para que falei, meu Deus ! foi uma trabuzana levada em casa. A patroa tomou um susto muito grande e desandou a chorar ; as mucamas  trançavam pelos quartos, correndo.      
  "Com pouca duvida, acenderam o círio  bento junto da imagem do menino Jesus e a  patroa tirou reza, acompanhada das mucamas e dos negrinhos. Patrão velho não saiu do  alpendre. Gritou pelos companheiros e pela  negrada.      
   — Hoje é dia ! — disse eu cá comigo.      
"Tudo quanto era clavinote, trabucos e  bacamarte saiu para fora. Qual, gente ! nem  eu gosto de lembrar desse tempo !      
" Sô moço, sô Juca, filho mais velho do patrão  ainda não tinha, a bem dizer, nem buço de  barba. Era espigadinho e animado. Eu sei  quanto me custava ter mão nesse menino nos  dias de vaquejada. Não havia garrote que ele  não quisesse esperar na ponta da vara, nem  cavalo chucro de que ele não quisesse tirar a  nica. Ia já beirando pelos dezesseis anos, mas  não mostrava.     
 "Oh ! meu S. Sebastião, advogado dos aflitos! quando me acode à lembrança essa era amaldiçoada, sinto a modo de um travo na boca."      
   Resfolegou forte o Mironga e, tirando o  cigarro da fita do chapéu, bateu fogo, puxando   fumaça.      A camaradagem, mudando de posição e concertando-se nos logares, murmurava ;  
     — Esse Joaquim é da pele, é da pele do  diabo ! Eu já tem visto coisas !      
   "Vocês sabem, continuou o Joaquim, que a  frente da fazenda, além dos muros de pedra,  tinha o cercado feito com toradas de madeira  de lei. Aquela segurança toda era por não  deixar o gado romper, quando investisse, na  arrancada. Valeu-nos Deus que era assim. Estivemos engambelando a escolta um dia e metade  de uma noite, debaixo de fogo. A soldadesca  era toda de cavalaria, mas não era gente curraleira e, por isso, não conhecia nossas batidas.  Não foi custoso mitrar àqueles diabos. E esse rio  Preto — bem eu gosto dele! — foi a nossa salvação. Ele passa nos fundos da fazenda, fechando  uma manga de potros separados das éguas.      
"Anoitecemos e não amanhecemos na fazenda. Com o escuro, ganhamos uma trilha pela  manga abaixo — eu, patrão, patroa, menimos,  mucamas, toda a gente de dentro ; os campeiros e os negros ficaram entretendo a soldadesca, rebentando as pipocas toda a hora.     
 "Você lembra, Pio, daquela canoa em que  o patrãozinho caçou anta rio abaixo ?  
    —  "Ora ! pois então ! ?      
— "Foi nela mesmo que estivemos passando  o povo para a outra banda, eu no varejão e  Bazílio no remo. Quando chegamos do outro  lado, adeus escolta ! Não havia ponte, nem vau.  Se eles quisessem nos perseguir haviam de  atravessar o rio a nado, ou, quando não, rodear  as cabeceiras, porque as nossas canoas ficaram  muito bem escondidas do outro lado.      
"Ganhamos, sem maior novidade, a barranca fronteira e pousamos num retiro da outra   banda, a duas léguas do rio.
     — "Até eles passarem também, temos tempo — dizia comigo. 
     " Sô moço, sô Juca, desde a hora da saída, ficou meio estúrdio, sempre de cara fechada. Ele tinha teimado muito com o patrão velho, querendo ficar. Dizia que aqueles demônios de caramurus não haviam de tomar conta da   fazenda assim, com dois tiros e meio. Mas o patrão ficou brabo com ele e não lhe tirou mais   os olhos de cima até passarmos o rio. O patrão   sabia que o mocinho não era brinquedo e que,   se não lhe tivesse mão, era bem capaz de voltar para a fazenda a puxar briga com os caramurus da escolta.
      "Arranchamos no retiro e a família toda  acomodou-se, como Deus foi servido. O patrão  estava acostumado a lidar sempre e aproveitou  o tempo para cuidar da criação empastada  naquela redondeza.
 Nisto as coisas principiaram a apertar.
      " A gente que tinha ficado do outro lado do rio tomou conta da fazenda depois de uma resistência grande. Quem pôde fugir fugiu ;  o restante que não morreu na briga ficou agarrado pela escolta. Os ladrões do inferno já  tinham carneado muita rêz boa da fazenda e  acabado com a capadaria do chiqueiro. Essas  coisas chegaram ao conhecimento do patrão e o fizeram ficar irado. A patroa ia tendo mão  nele todo o dia porque ele virava mexia, daqui prali, e falava sempre em acabar com   aquilo de uma vez morrendo ou dando uma   lição àqueles excomungados. 
     Ha muita gente traiçoeira neste mundo como vocês sabem. Um desalmado desses que  Nosso Senhor já chamou a si — Deus te perdoe !  deu denúncia do retiro onde estava o patrão.  Com pouca dúvida nós soubemos que na Tapéra a umas quatro léguas do retiro, estava se  ajuntando um magote de caramurus para virem  prender o patrão. Esses diabos tinham uma  sede na gente do patrão, porque diziam que  ele fora o rebelde mais destemido destas beiradas.
      "Patrão ficou dasatinado de raiva. Quis por toda lei dar caça aos caramurus, mas a patroa ficou de tal modo que nós estavamos vendo a  hora em que ela caía para trás, morta. Por isso, o patrão não teve outro remédio senão ir tenteando, como Deus ajudava. Vendo que nós éramos cercados de uma hora para outra e   que uma desgraça ia acontecer, ele me chamou   a um canto e disse :
     " — Joaquim, eu fiz tenção de não cair nas  unhas daqueles diabos e não ir parar na cadeia.   Mas as coisas estão muito feias. Se não fosse a dona... Olha : disfarça de qualquer jeito e  entra na Tapera, assim como quem vai de passagem. Assunpta bem e apanha as tenções deles. Vê quantos são, se estão bem armados...  
 Tu não és tolo e sabes bem o que eu quero.  Precisamos saber o que eles pretendem, para  nós podermos desmanchar a esparrela...
      "—  Vossemecê me conhece, meu amo. Fique sossegado. Eu arranjo as coisas.
      " A conversa ficou aí.
      "Comigo não se precisa de muita explicação.
      " Corri ao quarto e tirei minha capanga,  minha companheira velha. Pus dentro dela pólvora, chumbo grosso e uma bucha de paulista. Num bolsinho de dentro, guardei um  pedaço de fumo e palhas.
 — Estou pronto  — ia dizer, quando dei com os olhos no Moisés,  meu clavinote, que dormia enferrujado no  canto. Pareceu me que o pau de fogo falava —  também quero ir, Joaquim.  — Eu lhe fiz a  vontade.      
    Areiei a arma bem areiadinha, limpei-lhe  os ouvidos, pus uma pedra nova em baixo do cão e carreguei-a. Ali por perto havia um jambeiro com frutas ; apanhei uma e, depois de  escorvar bem a arma, joguei o jambo para o  ar, lá em cima, meti a arma à cara e fiz fogo :  a fruta espatifou-se toda.  
     —  Está bom, sô Joaquim, disse comigo,  você está meio turuna na pontaria ! Isto é que  serve.    
  Amarrei o clavinote nos coldres da sela, apertei bem o pedrez, corri os olhos no peitoral  e na retranca, passei por cima da sela um pelego bom e apertei de novo o pedrês com a  sobrecincha.     
 De arma de fogo eu não gosto muito mas  minha vara de vaqueiro, minha vara de derribar, pior do que uma azagaia, essa eu não deixo ! Desembainhei o ferrão da ponta e dei  uma chuçada num portal. O ferro estava firme  e amolado.      
 Esse arranjo todo pouco durou.  Apalpei, por ultimo, meu rosário do pescoço e pulei no lombo do pedrês.      — Eta, mundo ! Chegou a hora!      
   Sô moço, sô Juca andava farejando esse  negocio e me atormentou muito para eu contar   a conversa que tive com o patrão. Rondou sempre por perto de nós, para ver se apanhava   qualquer coisa. O menino mordia os beiços,  arrancava os cabelos, esbravejava, fazia tudo para saber, porque ele queria ter uma embarruada com os caramurus. Eu nunca vi mocinho  assim.      
"Uma coisa me dizia que esse meninno ia fazer  alguma. — Hei de ir! hei de ir! — falava ele,  com os dentes cerrados, batendo com a mão  direita fechada na palma da mãa esquerda.    
  — Hei de ir!     
 — Vossemecê não vai, nhonhô, porque  meu amo não quer.      
 "Ele desconversou e sumiu.      
" Quando eu já estava longe, ouvi um tropel  de cavalo atrás de mim. Era sô moço que vinha  num cavalinho castanho careta, corredor que  nem um veado. O mocinho vinha debruçado  p"ra frente, de rédea bamba e o cavalo parecia  que roçava a barriga" no chão na corrida.      
  "No eu sair, sô moço já tinha o cavalo  prnoto, escondido. Ganhou o rasto e bambeou  as rédeas. Não foi preciso mais nada.     
  — Ora já se viu ! Virgem Nossa Senhora,  como é que está para ser ? 
      —  Não tem nada, Joaquim, vamos embora.  Eu te mostro que já sou duro.  
     "Cá deutro, o coração me pulou de alegria,  de ver a disposição do menino. Carreguei-o  nestes braços e era a minha menina dos olhos.   Ora ! lá se avenha ! o que há de ser tem muita  força, pensei eu já não tive culpa da vinda dele.   Se ele veio, é porque gosta devéras deste mulato  velho. 
     — Está bom, nhonhô, vossemecê agora me  há de ouvir. Quando chegarmos à Tapera, quem  entra primeiro sou eu. Vossemecê fica amoitado ali por perto. Se os homens me prenderem ou  me matarem, vossemecê percebe logo, porque  isso não demora. Então, vossemecê dá de rédeas  p"ra trás e toca a bom tocar até chegar à casa,  para avisar a meu amo.     
 — Hás de ver que eu já sou duro, Joaquim.   Vamos embora .      
 Com pouca duvida entramos em terra da tapera      
— Pode ter algum espia por aí,meu patrãozinho. Vamos cortar pelo cerrado afora e   ganhar a estrada que vem da Boa-Vista ; enganamos os diabos, porque eles ficam pensando   que somos viandantes saídos do Vão. 
   Assim fizemos.      
   Antes de confrontarmos com a fazenda da  Tapera, eu fiz sô moço entrar num capãozinho  de mato e ficar alii amoitado. De lá ele via  a casa e o curral da frente.     
 Entrei, como já contei, sem vêr ninguém.  Subi a escada e gritei : — Ó de casa ! — Uma  porta abriu-se e um caboclo de beiço rachado  apareceu, respondendo : — Ó de fóra ! Entra  e vem tomar congonha, que está no cuité. —      
 Entrei e vi na sala de fora passante de vinte  pessoas ; uns agachados, outros de pé, os  homens estavam resmungando baixo. Pelas  paredes havia muita arma dependurada nos  tornos. Os homens me reparam de baixo p"ra  cima, de cima p"ra baixo, me estudando.      
— Ainda que mal pergunte, quem é você  rapaz ? disse com mau modo um sujeitinho  bexigoso, com os cabelos já pintando. 
      — Eu sou Manoel João, para o servir. Assisto no Vão, perto do arraial de Morrinhos e  vou buscar um sal à cidade. Venho vindo escoteiro, mas o carro vem atrás e deve chegar  nestes dois dias.  
    — Você não sabe que estamos em guerra  e que aqui não passa gente sem minha licença ? 
      — Mas, meu patrão, manda quem pode.  Não estou fora disso. 
      — E se eu te segurar aqui ?
      —Pode que fique seguro ; mas hei de porfiar  por sair e — quem porfia mata caça.    
 Eu fiquei ativo, correndo os olhos nos  homens e chegando devagarinho para a porta.   Já tinha na mente o jogo que havia de fazer  com aqueles diabos.      
 O homem esteve, esteve, esteve... Depois,   encruzou as pernas em riba do banco onde  estava sentado e disse :      
 — Tu sabes alguma coisa desses chimangos por aí ? 
       —  Meu patrão, eu sou de longe ; estou   muito fora disso. Tenho ouvido rosnar uma  coisa e outra, mas não ponho sentido em falas  e ditos do povo. 
        Mal tinha acabado de dizer isso, quando   apareceu de repente na porta um fula magricela, por nome Anselmo. Esse desavergonhado   tinha trabalhado junto comigo uns dias numa arribada de gado, quando eu fui levar  uma boiada do patrão à Pratinha. O diabo me  encarou um bocado, depois disse :   
   — Aqui, Joaquim ? Você já largou o sargento-mor (era meu patrão) ? Que diabo de  coisa traz você cá ?
   Não foi preciso mais nada. Sô Chico Duarte,  capitão daqueles jagunços, gritou logo :      
— Então, maroto, tu querias me lograr,  eim ? Péga esse cabra aí, minha gente ! 
  A coisa ferveu logo.     
 Anselmo fez menção de me agarrar num  pulo.      
  Eu tinha deixado meu clavinote amarrado  nos coldres e a vara de ferrão encostada lá fora.  Voei logo à porta. Quando Anselmo me quis  abotoar, juntei-o pelos peitos e num empurrão  mandei-o à parede. Isso tudo foi assim — zás !  Pulei pela escada abaixo e ganhei a sela do pedrês. O matungo estremeceu de baixo dos  arreios e, bugando forte, largou na carreira.  Curvei-me sobre o pescoço do animal e gritei-  lhe ao ouvido — upa, meu pedrês ! salva teu  dono ! Bichinho fiel ! A porteira não era alta  -  e ele voou por cima dela, caíudo do outro  lado.      
   Nisto, as pipocas rebentaram da frente da  casa. A noite ia fechando, e os homens atirando  das janelas e do alpendre meu vulto que fugia,  erraram fogo. Eu virei a cara para traz e acenando-lhes com a mão, gritei:   — Até logo, meu  povo.     
 Aí, uma buzina tocou forte da banda da  casa, dando alerta. Os caramurus tinham gente  na tocaia, pela redondeza, vigiando ; acudiram   logo.      
 A lua, na barra do céu, alumiou um vulto  de cavaleiro que crescia para mim, na carreira.   E mais outro e outro.       
 Um cavaleiro, cruzando na minha frente,   gritou ;      
 — Para, ladrão, que eu te faço comer terra  já !       
 Eu torci o cavalo, colhi a vara de ferrão e  peguei o homem pela volta da pá. Ele deu um urro e escangotou. Seu cavalo, desgovernado,    correu pruma banda. Não vi se o homem  caiu, mas gostou pouco da chuçada. Cheguei as esporas no vasio do pedrês e joguei-o para  a frente, à disparada. — Que é de sô moço ?  que será dele ? onde estará agora ? — Topei  um redomoinho de cavaleiros diante de mim.  Chegando mais perto, vi que eram só dois que  pelejavam e ouvi a voz de sô moço sô Juca,  dizendo:
 — Cheguem, caramurús do inferno ! Meu cavalo passou rente do dele e eu piquei  com o ferrão a anca do castanho careta, que  estendeu por ali fora com sô moço, na horinha  mesma em que echoava um tiro de bacamarte.      
  No meio do tropel da corrida, me pareceu  ouvir perto de mim um gemidoszinho. Olhei  para os lados e vi sô moço emparelhado comigo. 
— Não é nada  — pensei. E corremos  e corremos obra de meia légua.     
  Mais adiante, num escampada — ninguém nos   perseguia mais — eu olhava só moço e reparava   que sô moço estava calado. Não estranhei   muito...       
A lua subia, e pela beira dos capões, os   peixes-fritos cantavam...      
  Mais adiante, na descida de um córrego eu voltei para só moço e disse em tom de brinquedo:
     — Esteve feia a coisa, eim ? Mas nós não  somos caçoada de ninguém. 
    — É — disse ele com vozinha sumida.
      No subir um tope, me pareceu que ele esbarrou o cavalo.      
—  Que é que vossemecê tem ?     
 — Nada .     
 — Então, toque o animal.     
E fomos indo...      
 D"aí a pouco, ele andava penso prum   lado, meio envergado, como quem estava curtindo uma dor muito grande.     
  Eu, achegando-me para ele, disse :      
—  Conta, meu sinhozinho, conta a seu   mulato velho o que vossemecê está sentindo.     
  Ele endireitou o corpo logo, respondendo :       
— Nada, Joaquim. Eu não te disse que era   duro ?
       Fomos embora.  Com pouco, alcançou-nos um pé de vento  bravo. As folhas e os gravetos do chão subiam  em revoada ; nossos cavalos, abicando as orelhas p"ra frente, levantaram as cabeças e  rincharam forte.      
Tínhamos de dobrar um serrote por uma  ladeira esperta ; no meio, um murundu fazia  a trilha acotovelar para dar passagem aos  cavaleiros. Quando o animal de sô moço torceu  de repente, para voltear o murundu, eu vi sô  moço cambalear. Dei um arranco e amparei-lhe o corpinho franzino, puxando-o fora dos  arreios e sentando-o no cabeção de minha sela.  O castanho, solto, correu na frente.      «Quando sô moco debruçou sobre mim, falou-me com uma voz que nunca mais me saiu dos  ouvidos e me corta até hoje o coração — Está  doendo, Joaquim !.., Eu me apeguei com  Senhora da Abadia do Muquem e bradei alto :      —  Santo do céu ! tem dó de nós !     
  Sô moço deu mais um gemidozinho, muito   fraco. Parecia um carneirinho novo, sem mãe,   que vai querendo morrer por falta de leite e   de calor...       
    Neste ponto, a voz do velho campeiro tornou-se profunda como a das enxurradas que   tombam, goela abaixo, nos socavões da serra.  
    Nenhum campeiro mais recostado.   
   Todos, de pé, apertavam-se ao redor do  Mironga, estendidos os pescoços, os semblantes  mal assombrados pintando-lhes os sentimentos  da alma      
    —Quando eu segurei sô moço por baixo dos  braços para tira-lo da sela, senti as mãos  molhadas. Apalpei e reconheci que não podia  ser suor. Tirei fogo e vi minha mão direita vermelha de sangue !...     
 Erecto no meio dos companheiros, o capataz  daqueles homens bravios tinha o semblante  demudado e a voz entrecortada pelos ofegos  do largo peito hirsuto.     
    O fogareiro acceso avermelhava aqueles rostos, que formavam circtilo ao redor do Mironga ; todos mudos, attentos, como os guerreiros das tribos bárbaras ouvindo ao chefe valente  as peripécias dolorosas da peleja recem-ferida.     
  —  Excomungados, malditos caramurus !  Ficaram satisfeitos os demônios e não buliram  mais com o patrão...       
    Fora,. na orla do campo, os guarás famintos  uivavam dolentemente, do meio da sombra.  
    O velho campeiro não falava mais.      
    As interrogações de tantos olhares, de tantas  bocas semi-abertas, Joaquim Mironga respondeu com estas ultimas palavras, apontando  para o céu recamado de estrelas :      
  — Lá, naquele campo azul, junto com os  anjos, pastorando o gado miúdo...  

PEDRO BARQUEIRO
(Tipo do Sertão)
A Coelho Netto
    
  "- Eu lhe conto — dizia-me o Flor, quase ao chegarmos à Cruz de Pedra. - Naquele tempo eu era franzinozinho, maneiro de corpo, ligeiro de braços e de pernas. Meu patrão era avalentoado, temido e tinha sempre em casa uns vinte  capangas, rapaziada de ponta de dedo. Eu tinha uma meia légua, trochada de aço, que era meu osso da correia." E, consertando o corpo no lombilho, soltou as rédeas à mula ruana, que era boa estradeira. Inclinou-se para um lado, debruçando-se sobre a coxa, e apertou na unha do polegar o fogo do cigarro, puxando uma baforada de fumo.
      "Estávamos, um dia, divertindo-nos com os ponteados do Adão, à viola. Eu estava recostado sobre os pelegos do lombilho, estendidos no chão. A rapaziada toda em roda. Pouco tínhamos que fazer e passava-se o tempo  assim.
      Eis se não quando entra o patrão, com aqueles modos decididos, e, voltando-se para um moço que o acompanhava, disse: "Para o Pedro Barqueiro bastam estes meninos!" apontando-me e ao Pascoal com o indicador. "Não preciso bulir nos meus peitos-largos. O Flor e o Pascoal dão-me conta do crioulo aqui,   amarrado a sedenho." 
      "Para que mentir, patrãozinho? o coração me pulou cá dentro, e eu disse comigo —  estou na unha! O Pascoal me olhou com o rabo dos olhos. Parece que o patrão nos queria experimentar. Éramos os mais novos dos camaradas, e nunca tínhamos servido senão no campo, juntando a tropa espalhada, pegando algum burro sumido. Eu tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade sem se saber quem era, nem donde vinha. Cheguei uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça, patrãozinho! Crioulo  retinto, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de braço que nem um pedaço de aroeira.        "Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingida no Barro Preto; atravessado à cinta um ferro comprido, afiado, alumiando sempre, maior que um facão e menorzinho do que uma espada.
      "Esse negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a encostar a mão num cabra, o cabra era defunto. Ninguém bulia com ele, mas ele não mexia com os outros. Vivia seu quieto, em seu canto. Um dia, pegaram a dizer  que ele era negro fugido, escravo de um homem lá das bandas do Carinhanha. Chegou aos ouvidos do patrão esse boato. Para que chegou, meu Deus! O patrão não gostava de ver negro nem mulato de proa. Queria que lhe tirassem o chapéu e lhe tomassem a benção.
      "Daí, ainda contavam muita valentia do  Barqueiro, nome que lhe puseram por ter vindo dos lados do Rio S. Francisco. Essas histórias esquentavam mais o patrão, que eu estava vendo de uma hora para outra extripado no meio da rua, porque era homem de chegar quando lhe fizessem alguma.
      "Tanto eu como Pascoal tínhamos medo de que o patrão topasse Pedro Barqueiro nas ruas da cidade.
      "Subiram de ponto esse nosso receio e a ira do patrão, quando se soube de uma passagem do Pedro, num batuque, em casa de Maria Nova, na rua da Abadia.
      "Chegara uma precatória da Pedra dos Angicos e o juiz mandou prender a Pedro, Deram cerco à casa onde ele estava na noite do batuque. Ah! meu patrãozinho! o crioulo mostrou aí que canela de onça não é assobio.  Não é dizer que estivesse muito armado, nem por isso: só tinha o tal ferro, alumiando sempre;  e com esse ferro deu pancas.
      "Quando cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou feito jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma parede. Maria Nova  estava perto e me disse que ele cochichou uma  oração, apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua peitaria  lustrosa.
      "Chegaram a entrar a casa três homens da escolta, e todos três ficaram estendidos. Pedro tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno, caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi sangrado.
      "Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no chão gemendo por muito tempo.
     "Daí para cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia de longe em longe, e à noite. Mas todo o mundo tinha medo dele e vivia adulando-o.
       "Um dia, como já lhe contei, apareceu lá em casa um moço pedindo auxílio a meu patrão para agarrar o negro. Era mesmo escravo, o  Barqueiro; mas há muitos annos vivia fugido. Já lhe disse que o patrão queria tirar o topete ao valentão, e, para isso, escolheu o pobre de mim e Pascoal. 
     "— Que dizes, Flor ? falou o patrão rindo-se.
     "— Uai, meu branco, vossemecê mandando, o negro vem mesmo, e no sedenho.
     "— Quero ver isso.
     "— Vamos embora, Paschoal!
      "Quando íamos a sair, o patrão bateu-me no ombro e, voltando-se para o moço, disse  muito firme: "Pode prevenir a escolta para vir buscar o Barqueiro aqui, de tarde. Hão de dar duzentos mil réis a estes meninos."
     "Desci ao quarto dos arreios , passei a mão na meia légua e no facão e apertei a correia à cinta.
     "Pascoal já estava na porta da rua, assobiando. Tinha por costume, nos momentos de aperto, assobiar sempre uma trova, que diz assim:

                  "Na mata de Josué
                   Ouvi o mutum gemê;
                   Ele geme assim;
                   Ai-rê-uê, hum! airê!"

     "Quando Pascoal me viu, soltou uma risada.
     "— Estás doido, rapaz! gritou-me.
     "— Por quê ?  
     "— Queres mesmo enfrentar com o Pedro  Barqueiro ?... Ele faz de nós paçoca. A coisa se há de fazer de outro modo.
     "Pascoal tinha tento e eu sempre tive fé nele. Era um cabritozinho mitrado. Saía-lhe cada idéia... Mandou-me guardar a meia légua e o facão. Depois, foi à venda, escolheu anzóis de pesca e veio para casa encastoá-los. Eu, nem bico! Ajudei a acabar o serviço, certo de que Pascoal tinha alguma na mente.
     "— Deixa a coisa comigo, ajuntava ele.
      "Isso ainda era cedo; o sol estava umas três braças de fora, no tempo dos dias grandes. Lá por casa madrugávamos sempre, para ir ao pasto e trazer os animais de trato.
     "— Vamos fazer uma pescaria", disse-me o Pascoal. Ali para os lados do Batista, perto de um baruzeiro grande, há um poço, onde as  curumatãs e os piaus são como formigas. O rancho
 do Pedro Barqueiro fica perto. Ele mora  só e eu conheço bem o lugar. Pela astúcia, havemos de prendê-lo. Quando eu gritar —   segura, Flor! — tu agarras o negro, mas, segura rente !  
    "E fomos. Nessa hora me veio bastante vontade de fugir ao perigo, de ir passear, porque tinha como certo suceder-nos alguma. "Que e lá, Flor!"
— disse de mim para mim: "Um  homem é para outro." E, depois, o Pascoal não me deixava nas embiras. Quando descemos  o Gorgulho e fomos virando para o lado do córrego, fiquei meio sorumbático. Nesse tempo, eu andava arrastando a asa à Emília, filha do José  Carapina. Era uma roxa bonita deveras e não  estava muito longe de me querer. Posso dizer  mesmo que na véspera olhou muito para mim, ao passar com a saia de chita sarapintada de  vermelho, umas chinelas novas de cordovão  amarelo! Ah ! que peitinho de jaó, patrãozinho! empinado, redondo, macio como um couro de  lontra. Com o devido respeito, patrãozinho, eu  estava na peia, enrabichado, e foi nesse mesmo dia que ela me deu esta cinta de lã, tecida por suas mãos, que guardo até hoje. " Ai! roxa da minha paixão — pensava eu — como hei de morrer assim, fazendo cruz na boca ?" O diabo da idéia me atarandou pelo caminho e cheguei a dar tremenda topada numa pedra, no meio da estrada. Curvei-me sobre a perna,  agarrei o pé com as mãos e estive assim dançando sem querer, um pedacinho de tempo.  Depois, levantei a cabeça. Pascoal sentara  num barranco e encarava para mim, rindo.  Levantei a cabeça e olhei para cima, assumtando. No céu galopavam umas nuvens escuras, a modo de um bando de queixadas  rodando pelo campo.
     "Um vento áspero passava, arrancando do jenipapeiro as frutas maduras, que esborrachavam no chão assim — pof! — espantando as juritis que andavam esgaravatando a terra e comendo grãozinhos. Duas seriemas guinchavam, esgoelavam. Depois, vi que estavam brigando — me lembra como se fosse hoje — e uma avançava para outra dando pulinhos, sacudindo as asas, com o cocuruto arripiado e os olhos em fogo. O coração pareceu dizer-me   outra vez: — "Olha, Flor, o que vais fazer."   Nesse entretanto, o Pascoal, que me encarava sempre do ponto onde estava sentado, gritou-me:
       — Esqueceste a cabeça nalgum lugar? Vamos embora, que vai tardando já.  
     "Fiquei descochado; caí em mim e fui  marchando disposto. Daí em diante, fui brincando com o Pascoal, que era muito divertido e tinha sempre um caso a contar.
     "Chegando embaixo, arregaçamos as calças e descemos o  córrego, cada um com seu anzol na vara, ao ombro.
     "Era preciso que ninguém desconfiasse do  nosso conluio para prendermos o Pedro Barqueiro.
     "Aí, quase que tínhamos esquecido o perigoso mandato, tão diferente andava a conversa com as caçoadas do Pascoal.
    "Para encurtar a história, patrãozinho, achamos Pedro Barqueiro no rancho que só tinha três divisões: a sala, o quarto dele e a cozinha.
    "Quando chegamos, Pedro estava no terreiro debulhando milho, que havia colhido em sua rocinha ali perto.      "— Vocês por aqui, meninos ? Olhem ! vão  ali àquele poço, para baixo da cachoeira. Tem lá uma laje grande e de cima dela vocês podem  fazer bichas com os piaus.  
    "— Louvado seja Cristo, meu tio" havia  dito o Pascoal, e nisto o imitei.
    "— Se quiserem comer uma carne assada ao espeto, tirem um naco; está na fumaça, por cima do fogão, uma boa manta. Olhem a faca aí na sala, se vocês não têm algum caxerenguengue.
     "Pascoal entrou e viu recostado a um canto da parede o ferro alumiando. Pegou nele, saiu pela porta da cozinha e escondeu-o numa restinga, ao fundo. Depois, me assobiou, eu acudi e fui procurar a lazarina de Pedro — boa arma, de um só cano, é verdade, mas comedeira.
      "— Há alguma jaó por aqui, tio Pedro ? perguntou Pascoal.
      "— Nem uma, nem duas, um lote delas. Se você quer experimentar minha arma, vá lá dentro e tire-a. Não errando a pontaria, você traz agora mesmo uma jaó.
     "— Quero matar um passarinho para fazer isca, meu tio.
     "— Pois vá, menino.
     "-E Pascoal descarregou a arma.
     "-Pedro tinha-se levantado e falava com Pascoal do vão da porta de entrada.
      "Era hora.
      "Pascoal me fez um sinalzinho, eu dei volta e entrei pela porta do fundo para agarrar  o Barqueiro pelas costas. A combinação era  essa. Enquanto Pascoal o foi entretendo, eu  fui chegando soturno, quando ele gritou — "segura!" — eu pulei como uma onça sobre o negro desprevenido.
      "Conheci o que era homem, patrãozinho ! Saltando-lhe nas costas, dei-lhe um abraço de  tamandua no pescoço. Mas o negro não pateteou, e, mergulhando comigo para dentro da sala, gritou:
      — Nem dez de vocês, meninos ! Ah ! se eu  soubesse...
     Patrãozinho, eu sei dizer que o negro me  sacudiu para cima como um touro bravo sacode  uma garrocha. Mas eu via que, se o largasse,  estava morto, e arrochei os braços.
      — Chega, Pascoal! gritei.
      — Eu quero manobrar de fora. Ânimo!   Segura bem que nós amarramos o negro.  
      Que tirada de tempo ! O negro, às vezes,  abaixava a cabeça, dando de popa, e minhas  pernas dançavam no ar, tocando quase o teto  do rancho. Lutamos, lutamos, até que Pascoal  pôde meter um tolete de pau entre as canelas do Pedro, de modo que ele cambaleou e caiu de bruços. Nós dois pulamos em riba dele. Eu, triumfante, gritava: Conheceu, crioulo ?  Negro é homem ?  Ele era teimoso, porque  dizia ainda: Nem dez de vocês, meninos !  Ah ! se eu soubesse...
 Pascoal trazia à bandoleira um embornal  para carregar peixe e veiu dentro dele escondida uma corda de sedenho, cumprida e forte.
     O Barqueiro estava no chão; e foi preciso ainda fazermos bonito para amarra-lo. Agora, puxe na frente, seu negro ! — gritou-lhe o Pascoal.
     Havíamos juntado os braços dele nas costas  e apertamos com vontade. Ficou completamente tolhido.             Eu ia segurando a ponta do sedenho e levava o negro na frente. Mesmo assim, houve uma hora em que ele me deu um tombo, arrancando de repente a correr. Por seguro, a corda estavá-me enrolada na mão a eu não a larguei.  Nesse instante, Paschoal tinha corrido atrás dele e lhe descarregado na nuca um tremendo murro, que o fez bambear um pouco e me deu tempo de endurecer o corpo e segurar firme a corda.
   O Barqueiro, depois que saiu do rancho, não piou.
   Chegamos à casa de tarde e o negro ia no sedenho.
  — Eu não disse, gritava o patrão muito contente, que só bastavam esses dois meninos para o Barqueiro ? Está aí o negro.
    E o povo corria para ver, e a frente da casa do patrão estava estivada de gente.
    Recebemos os duzentos mil réis.
    Tinha-me esquecido de contar-lhe que eu fizera uma promessa à Senhora da"Abadia, de levar-lhe ao altar uma vela, se voltasse são e salvo. Cumpri a promessa no dia seguinte e arranjei uma festinha para a noite. Queria um pé para estar com a Emilia.
    Comprei um trancelim de ouro para aquela roxa, de meus peccados e um chalé azul. Ela era esquiva. Fez muito momo nessa noite, e  não me quis dar nem uma boquinha, com o  devido respeito ao patrãozinho.
    Saí da casa de José Mendes, onde dei a  festa, quando os galos estavam amiudando.
    A estrela d"alva, no céu escuro, parecia  uma garça lavando-se na lagoa. O orvalho das vassouras me molhou as pernas e eu estremeci  um bocadinho. Entrei num beco que ia sair na rua de Trás, onde eu então morava.
    Ia meio avexado e peguei a banzar. Emilia !  Emilia do coração ! porque me amo  finas com  esse pouco caso ? E desandei a cantar, bem  chorada, esta cantiga:

                    Tá trepado no pau.
                    De cabeça pra baixo,
                    Com as asas caídas
                    Gavião de penacho!
                    Todo o mundo tem seu bem.
                    Só pobre de mim não tem!
                   Ai ! gavião de penacho !

      De repente, pulou um vulto diante de mim.Quem havia de ser, patrãozinho ? Era o Pedro  Barqueiro em carne e osso. Tinha, não sei como,  desamarrado as cordas e escapado da escolta,  em cujas mãos o patrão o havia entregado.
     O ladrão do negro tinha oração até contra sedenho!
     Sem me dar tempo de nada, o Barqueiro  me agarrou pela gola e me sujigou. Levantou-me no ar três vezes, de braço teso, e gritou-me:
     Pede perdão, cabrito, desvergonhado, do  que fizeste ontem, que te vou mandar para o inferno ! Pede perdão já !
     A gente precisa de ter um bocado de sangue  nas veias, patrãozinho, e um homem é um homem ! Eu não lhe disse pau nem pedra. Vi  que morria, criei animo e disse comigo que o  negro não me havia de por o pé no pescoço.
     Exigiu-me ele, ainda muitas vezes, que lhe  pedisse perdão, mas eu não respondi. Então,  ele foi me levando nos braços até uma pontezinha que atravessava uma perambeira medonha. A boca do buraco estava escura como  breu e parecia uma boca de sucuri querendo me engolir. Suspendeu-ine arriba do guarda-mão da ponte e balançou meu corpo no ar.  Nessa hora, subiu-me um frio pelos pés e um  como formigueiro me passeou pela regueira das costas até à nuca ; mas minha boca ficou fechada. Então, o Barqueiro, levantando-me  de novo, me pousou no chão, onde eu bati  firme.
     O dia estava querendo clarear. O negro  olhou para mim muito tempo, depois disse:
     — Vai-te embora, cabritinho, tu és o único  homem que tenho encontrado nesta vida !      
     — Eu olhei para ele, pasmado.
     Aquele pedaço de crioulo cresceu-me deante dos olhos, e vi — não sei se era o dia que vinha raiando — mas eu vi uma luz estúrdia na cabeça de Pedro.
     Desempenado, robusto, grande, de braço   estendido, me pareceu, mal comparando, o Arcanjo São Miguel sujigando o Maligno. Até claro ele ficou nessa hora!
     Tirei o chapéu e fui andando de costas, olhando sempre para ele.
     Veio-me uma coisa na garganta e penso que me ia faltando o ar.  
     Insensivelmente, estendi a mão. As lágrimas me saltaram dos olhos, e foi chorando que eu disse:
     -Louvado seja Cristo, tio Pedro!
    Quando caí em mira, ele tinha desaparecido.