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O Cabeleira 

de Franklin Távora 

CAPÍTULO I 
A história de Pernambuco oferece-nos exemplos de heroísmo e grandeza 
moral que podem figurar nos fastos dos maiores povos da antigüidade sem 
desdourá-los. Não são estes os únicos exemplos que despertam nossa atenção 
sempre que estudamos o passado desta ilustre província, berço tradicional da 
liberdade brasileira. Merecem-nos particular meditação, ao lado dos que aí se 
mostram dignos da gratidão da pátria pelos nobres feitos com que a magnificaram, 
alguns vultos infelizes, em quem hoje veneraríamos talvez modelos de altas e 
varonis virtudes, se certas circunstâncias de tempo e lugar, que decidem dos 
destinos das nações e até da humanidade, não pudessem desnaturar os homens, 
tornando-os açoites das gerações coevas e algozes de si mesmos. Entra neste 
número o protagonista da presente narrativa, o qual se celebrizou na carreira do 
crime, menos por maldade natural, do que pela crassa ignorância que em seu tempo 
agrilhoava os bons instintos e deixava soltas as paixões canibais. Autorizavam-nos a 
formar este juízo do Cabeleira a tradição oral, os versos dos trovadores e algumas 
linhas da história que trouxeram seu nome aos nossos dias envolto em uma grande 
lição. 

A sua audácia e atrocidades deve seu renome este herói legendário para o 
qual não achamos par nas crônicas provinciais. Durante muitos anos, ouvindo suas 
mães ou suas aias cantarem as trovas comemorativas da vida e morte desse como 
Cid, ou Robin Hood pernambucano, os meninos, tomados de pavor, adormeceram 
mais depressa do que se lhes contassem as proezas do lobisomem ou a história do 
negro do surrão muito em voga entre o povo naqueles tempos. 

Com a simplicidade irrepreensível que é o primeiro ornamento das 
concepções do espírito popular, habilitam-nos esses trovadores a ajuizarmos do 
famoso valentão pela seguinte letra: 

Fecha a porta, gente, 
Cabeleira aí vem, 
Matando mulheres, 
Meninos também. 

O Cabeleira chamava-se José Gomes, e era filho de um mameluco por nome 
Joaquim Gomes, sujeito de más entranhas, dado à prática dos mais hediondos 
crimes. 

De parceria com um pardo de nome Teodósio, que primou na astúcia e nos 
inventos para se apossar do que lhe não pertencia, percorriam José e Joaquim o 
vasto perímetro da província em todas as direções, deixando a sua passagem 
assinalada pelo roubo, pelo incêndio, pela carnificina. 

Um dia assentaram dar um assalto à própria vila do Recife. 

As populações do interior, em sua maioria destituídas de bens da fortuna, e 
então muito mais espalhadas do que atualmente, pouco tinham já com que cevar a 
voracidade dos três aventureiros a quem desde muito pagavam um triplo imposto 
consistente em víveres, dinheiro e sangue. O assalto foi resolvido em secreto 

conciliábulo dentro das matas de Pau d"Alho onde mais uma vez se haviam reunido 
para concertos idênticos. 

Na mesma hora aperceberam-se para a temerária tentativa, e, com o arrojo 
que lhes era natural, puseram-se a caminho contando de antemão com o feliz 
sucesso em que tinham posto a mira. 

A notícia da sua aproximação a maior parte dos moradores, deixando os 
povoados, então muito fracos por não terem ainda a densidão que só um século 
depois tornou alguns deles respeitáveis, emigrou para os matos, único abrigo com 
que lhos era permitido contar, embora se achassem a poucas léguas do Recife; tais 
houve que, não tendo tempo ou recursos para fugir aos cruéis visitantes, lhes deram 
hospedagem como meio de não incorrerem no seu desagrado. 

Ao declinar do dia seguinte eram eles na Estância. Sentaram-se no adro da 
capela de taipa que fora aí levantada por Henrique Dias, para recordar aos 
vindouros que nesse lugar tivera ele o seu posto militar pelas guerras da 
restauração. Esse posto era dentre todos o que ficava mais vizinho ao inimigo. 
Eloqüente testemunho de bravura do troço da gente preta a quem a pátria reservou 
distinta menção nas maiores páginas da história colonial. 

— É muito cedo para entrarmos na vila — disse o Cabeleira. — E não será 
até melhor que o Teodósio vá primeiro que nós para assentar ainda com dia no meio 
mais certo de realizar a empresa? 
— Tens razão, José Gomes, — acrescentou Joaquim; — o Teodósio, que é 
macaco velho, deve ir adiante a sondar as coisas. Para bater o pé ao inimigo e fazer 
frente a qualquer dunga, vocês sabem muito bem que eu sou cabra decidido; agora, 
para espertezas não contem comigo; isso é lá com o Teodósio que é mestre em 
saberetes; e ninguém lhe vai ao bojo. 
Os três malfeitores traziam consigo bacamartes, parnaíbas, facas e pistolas. 

Cabeleira podia ter vinte e dois anos. A natureza o havia dotado com 
vigorosas formas. Sua fronte era estreita, os olhos pretos e lânguidos, o nariz pouco 
desenvolvido, os lábios delgados como os de um menino. É de notar que a 
fisionomia deste mancebo, velho na prática do crime, tinha uma expressão de 
insinuante e jovial candidez. 

Joaquim, que contava o duplo da idade de seu filho, era baixo, corpulento e 
menos feito que o Teodósio, o qual, posto que mais entrado em anos, sabia dar, 
quando queria, à cara romba e de cor fula, uma aparência de bestial simplicidade em 
que só uma vista perspicaz, e acostumada a ler no rosto as idéias e os sentimentos 
íntimos, poderia descobrir a mais refinada hipocrisia. 

— Entendo que é bem lembrado o que dizes, Cabeleira — acrescentou o 
cabra levantando-se; —corro sem demora armar o laço para apanhar o passarinho; 
ainda que, a bem dizer, já cá tenho o meu plano que há de cair tão certinho como 
São João a vinte e quatro. 
— E onde depois nos encontraremos? — perguntou Joaquim, vendo que o 
Teodósio se achava já de marcha para a vila. 
— Não será o mais custoso. Esperarei por vocês debaixo da ingazeira da 
ponte. 
Teodósio, não estando mais para conversa, conchegou o chapéu de palha à 
cabeça para que o vento não lho arrebatasse, e desapareceu em rápido marche

marche, por detrás dos matos que naquele tempo enchiam ainda em sua maior parte 
a zona onde hoje se ostenta com suas graciosas habitações entre risonhos verdores 
a Passagem da Madalena. 

Antes que o sol descesse ao horizonte e as trevas envolvessem de todo a 
natureza, meteram-se o pai e o filho pelo caminho onde um quarto de hora atrás 
havia desaparecido o outro companheiro, alma do negócio e principal responsável 
pelos perigos a que todos eles iam expor talvez a própria vida. 

A solidão estava sombria e triste. 

Contavam-se então as casas por aquelas paragens. Em torno delas o deserto 
começava a aumentar antes de pôs-se o sol. Uma lei cruel, a lei da necessidade, 
obrigava os moradores a trancar-se cedo por bem da própria conservação. 

Os roubos e assassinatos reproduziam-se com incrível freqüência nos 
caminhos e até nas beiradas dos sítios. 

Sólidas habitações não tinham em muitos casos assegurado às famílias 
inelutável obstáculo ao assalto dos malfeitores. Triste época em que o despotismo 
tudo podia contra os cidadãos pacíficos e bons, nada contra a parte cancerosa da 
sociedade! 

A vila estava em festa. Foi no primeiro domingo de dezembro de 1773. Era 
governador Manuel da Cunha de Meneses, depois conde de Lumiar, jovem fidalgo a 
quem a igreja pernambucana deve distintos benefícios. 

Com a data do 1.° daquele mês tinha ele feito publicar um bando pelo qual 
ordenara aos moradores que pusessem luminárias em demonstração da alegria que 
causara à nação portuguesa a abolição dos jesuítas em todo o orbe cristão, pelo 
santo padre Clemente XIV. 

No lugar onde hoje existe a formosa ponte Sete de Setembro que liga o bairro 
do Recife ao de Santo Antônio, via-se nessa época uma ponte de madeira, a qual 
fora mandada construir em 1737 sobre os sólidos pilares de pedra e cal da primitiva 
ponte, obra de Maurício de Nassau, por Henrique Luís Vieira Freire de Andrade, um 
dos governadores que mais honrada e benemérita memória deixaram de si em 
Pernambuco. 

Era uma rica construção, nada menos do que uma rua suspensa sobre as 
águas do rio Capibaribe, que passa aí reunido ao Beberibe, depois de um curso de 
oitenta léguas por entre matas, por sobre pedras e ao pé de pitorescas vilas, 
povoações e arrabaldes. De um e outro lado, exceto na parte central, que fora 
guarnecida de bancos para recreio do público, viam-se pequenos armazéns de taipa 
de sebe em que se vendiam miudezas e ferragens, que logo depois de prontos 
acharam alugadores, começaram a render a quantia de oitocentos mil-réis anuais, a 
qual no começo do século corrente se havia elevado à de quatro contos de réis. 
Com a fundação das casinhas sobreditas teve por fim o governador de criar uma 
fonte de rendas destinada à conservação das pontes da província, quase todas 
nesse tempo em deplorável ruína. Destas obras com que dotou Pernambuco o gênio 
desse ilustre governador, não resta hoje o menor vestígio. Tudo desapareceu, tudo, 
até as arcadas holandesas que ainda alcancei. O monumento das idades é mais 
depressa destruído pelos homens do que pelo tempo, esse consumidor que, como 
ser voraz, não deixa de respeitar a obra da virtude. 

A boca da noite os dois aventureiros chegaram à parte do bairro da Boa Vista 
que é de nós conhecida por Ponte Velha. Raras casas mostravam-se então aí. 

A pouca distancia para o sul do lugar onde existira a antiga ponte, nesse 
tempo já substituída pela da Boa Vista mandada construir por Henrique Luís a quem 
já nos referimos, levantava-se na margem uma ingazeira idosa e ramalhuda. Abrindo 

sobre o rio a copa à semelhança de chapéu-de-sol, formava esta árvore uma vasta 
camarinha que servia de porto de abrigo aos canoeiros quando o vento era teso, e 
as marés puxavam com velocidade. Debaixo desse teto protetor as águas corriam 
sempre mansas e bonançosas, e, sem primeiro descer ao pé do gigantesco vegetal, 
era difícil descobrir, pela densidão da sua folhagem, qualquer objeto ou ente que à 
sombra desta se acolhesse, ainda que estivesse o sol dardejando os seus luminosos 
raios. Fora este o ponto de reunião indicado por Teodósio aos companheiros. 

Dar com as primeiras casas iluminadas foi para os dois valentões motivo de 
justo espanto e receio. Não sabendo do regozijo oficial, e tendo bem presentes na 
consciência os crimes que haviam cometido, logo lhes pareceu que seriam 
descobertos ao clarão das luzes, não se demorando o clamor público, se assim 
acontecesse, a denunciá-los às justiças de el-rei. 

Pelo voto de Cabeleira tinha-se verificado no mesmo instante a volta ao 
deserto. Mas Joaquim, cuja temeridade não conhecia limites, desprezando os 
conselhos do filho sobre o qual exercitava a tirania do déspota primeiro que a 
autoridade do pai, foi fazer alto ao pé da ingazeira sobredita, tendo atravessado para 
chegar a este ponto as ruas mais públicas do nascente bairro da Boa Vista. 

Profundo silencio reinava no vasto areal que guarnecia o rio por aquele lado. 
As águas mal se moviam. Desceram os dois à margem a ajuntar-se ao Teodósio 
conforme o convencionado, mas a sua expectativa foi iludida; não havia aí viva alma; 
unicamente se mostrou aos seus olhos um corpo negro, oscilando debaixo da 
folhagem, ao brando ondear das águas: era uma canoa que estava presa por uma 
corda ao tronco da ingazeira. 

Depois de alguns momentos de espera não sem inquietação para os recém-
chegados, um ruído que veio interromper o silencio reinante na margem obrigou-os a 
pôr-se em armas por precaução. A corda rapidamente encurtando atraiu sem auxílio 
visível a canoa à margem, e um corpulento canoeiro, nu da cintura para cima, 
arrastando uma vara pela mão, saltou à frente dos malfeitores. 

— Sou eu, Cabeleira, sou eu. 
— Teodósio ! Meteste-te em boas. 
— Eu estava escondido dentro da canoa para fazer um susto a vocês. 
— A bom diabo te encomendaste hoje que o meu bacamarte mentiu fogo 
duas vezes — disse Cabeleira. 
— Não falemos mais nisso — acudiu Teodósio; — celebraremos depois o 
caso. Para agora vamos ao que importa. 
— Que é que há ? 
— Não me estão vendo em figura de canoeiro ? Vamos a ela enquanto é 
tempo. 
Teodósio inclinou-se para passar aos dois um segredo que em pouco tempo 
foi por ambos compreendido, e que entrou no mesmo instante a ser posto em 
execução pelos três. O pai e o filho foram guardar as suas armas de fogo na canoa, 
e o cabra saltou novamente dentro dela e fez-se ao largo. Quem visse um instante 
depois o lenho resvalando na vasta superfície do rio à claridade dos astros da noite, 
juraria que nessa sombra fugitiva, nesse ponto que se perdeu por fim nos seios da 
escuridão, não ia mais que um canoeiro, sabedor das manhas das águas e senhor 
dos meios de as vencer. Ia entretanto aí uma maldade muito mais considerável e 
perigosa, porque era hipócrita e estava disfarçada, do que a malvadez de Joaquim 

sempre alerta, e a impavidez de José sempre franco até na estratégia e na 
emboscada. 

Estes dois últimos, tanto que o cabra se afastou da margem, atravessaram a 
ponte da Boa Vista e, ladeando o canal que cercava Santo Antônio pelo lado 
ocidental e ia encher ao sul as valas da fortaleza das Cinco Pontas, e ao norte as do 
forte Ernesto, hoje inteiramente desaparecido, passaram em frente do palácio do 
governador e por este forte, o qual ficava pouco adiante do convento de S. 
Francisco, e entraram na ponte do Recife que apresentava uma vista majestosa e 
deslumbrante. Colunas e arcos triunfais profusamente iluminados tinham sido ali 
erguidos a iguais distâncias. Ao som das músicas marciais, o povo percorria o aéreo 
passeio entre risos e folgares. 

Ainda bem não se haviam os malfeitores confundido com os passeantes, 
quando se ouviu um grito arrancado pelo pânico terror de um matuto que os 
conhecera. 

— O Cabeleira ! O Cabeleira ! Grandes desgraças vamos ter, minha gente ! 
— clamou o mal avisado roceiro. 
Estas palavras caíram como raios mortíferos no meio da multidão que se 
entregava, incuidosa e confiante, ao regozijo oficial. 

A confusão foi indescritível. As expansões da pública alegria sucederam as 
demonstrações do geral terror. Homens, mulheres, crianças atropelaram-se, 
correndo, fugindo, gritando, caindo como impelidos por infernal ciclone. A fama do 
Cabeleira tinha, não sem razão, criado na imaginação do povo um fantasma 
sanguinário que naquele momento se animou no espírito de todos e a todos 
ameaçou com inevitável extermínio. 

Ouvindo aquelas palavras e sendo assim surpreendidos por uma ocorrência 
com que não contavam, os dois malfeitores instintivamente bateram mãos das 
parnaíbas primeiro para se defenderem, por lhes parecer que corria a sua liberdade 
iminente perigo, que para investirem com massa ingente, a qual aliás fugia como 
rebanho apavorado pela presença das onças. Os seus gestos concorreram para 
aumentar o terror da multidão, a qual, mal interpretando-os, imaginou que ia ter 
começo a carnificina. 

— Sim, é o Cabeleira, gente fraca. Ele não vem só, vem seu pai também — 
gritou José Gomes, cujo rosto começou a anuviar-se. 

Joaquim; feroz por natureza, sanguinário por longo hábito, descarregou a 
parnaíba sobre a cabeça do primeiro que acertou de passar por junto dele. A 
cutilada foi certeira, e o sangue da vítima, espadanando contra a face do matador, 
deixou aí estampada uma máscara vermelha através da qual só se viam brilhar os 
olhos felinos daquele animal humano. 

José Gomes, por irresistível força do instinto que muitas vezes o traiu aos 
olhos do carniceiro pai, voltou-se de chofre e lhe disse: 

— Para que matar se eles fogem de nós 
Corram, minha gente Cabeleira aí vem; Ele não vem só, Vem seu pai 
também. 

— Matar sempre, Zé Gomes — retorquiu o mameluco com as narinas 
dilatadas pelo odor do sangue fresco e quente que do rosto lhe descia aos lábios e 
destes penetrava na boca cerval.—Não temos aqui um só amigo. Todos nos querem 
mal. É preciso fazer a obra bem feita. 
Este homem era o gênio da destruição e do crime. Por sua boca falavam as 
baixas paixões que à sombra da ignorância, da impunidade e das florestas haviam 
crescido sem freio e lhe tinham apagado os lampejos da consciência racional que 
todo homem traz do berço, ainda aqueles que vêm a ser depois truculentos e 
consumados sicários. 

Seu coração estava empedernido, seu senso moral obcecado. 

Nenhum sentimento brando e terno, nenhum pensamento elevado exercitava 
a sua salutar influência nas ações deste ente degenerado e infeliz. 

— Estás com medo, Zé Gomes, deste poviléu ? Parece-me ver-te fraquejar. 
Por minha bênção e maldição te ordeno que me ajudes a fazer o bonito enquanto é 
tempo. Não sejas mole, Zé Gomes; sê valentão como é teu pai . 
Tendo ouvido estas palavras, o Cabeleira, em cuja vontade exercitava 
Joaquim irresistível poder, fez-se fúria descomunal e, atirando-se no meio do 
concurso de gente, foi acutilando a quem encontrou com diabólico desabrimento. 
Como dois raios exterminadores, descreviam pai e filho no seio da massa revolta 
desordenadas e vertiginosas elipses. 

A geral consternação teria cessado em poucos instantes se o povo pudesse 
escapar pelas duas entradas da ponte. Achavam-se porém estas já tomadas por 
piquetes de infantaria às pressas organizados para embargarem a fuga aos 
matadores e reduzi-los à prisão. 

A medida que estes piquetes se foram movendo das extremidades para o 
centro, à população, obrigada a aproximar-se dos assassinos, preferiu a este perigo 
atirar-se ao rio, e a baldeação não se fez esperar. 

Em poucos momentos os perturbadores da ordem acharam-se debaixo das 
vistas da força pública. O lugar da cena estava quase inteiramente desocupado. As 
colunas militares operaram um movimento único, indescritível. Carregaram sem 
demora sobre os delinqüentes que, à vista da estreiteza do passo e do cerco, só nas 
águas puderam, como as suas vítimas, achar salvação. 

Um soldado, impelido talvez primeiro pelo ímpeto da paixão que pela 
consciência do dever, o qual em ocasiões iguais àquela raramente fala mais alto que 
os instintos animais, atirou-se de arma em punho após os assassinos com o fim de 
apreender um dos dois, ainda que custasse a própria vida. Não logrou o seu intento 
este valente defensor da sociedade e da lei. Quando sua mão tocava em um dos 
delinqüentes de cima de uma canoa que nesse momento desatracara da ponte, 
desfecharam-lhe com a vara tão forte golpe sobre a cabeça, que o, infeliz, perdendo 
os sentidos, foi arrebatado pela corrente. Igual cena se presenciou em 1821, 
figurando como vítima João Souto Maior que procurara salvar-se no rio depois de 
haver ferido com um tiro de bacamarte na ponte da Boa Vista o governador Luís do 
Rego Barreto. 

Assim se passou na vila do Recife a noite do primeiro domingo de dezembro 
de 1773, noite memorável, que principiou pela alegria e terminou pelo terror público. 

CAPÍTULO II 
Por entre as vítimas do terror que lutavam com as águas do Capibaribe nas 
sombras da noite deslizou indiferente a canoa onde ia o Teodósio, assassino do 
soldado que se atirara ao rio em busca dos delinqüente. 

Teodósio, como os leitores hão de lembrar-se, viera só mas não voltava agora 
desacompanhado. José, taciturno e quieto, e Joaquim, rosnando como besta fera 
que indiscreto caçador irrita em escuso bosque, testemunhavam ao pé do cabra, 
sentados na popa do fugitivo lenho, com os bacamartes nas mãos, o espetáculo de 
aflição e desespero; e, como se o fizessem de caso pensado para denotarem a 
pouca conta em que tinham uma sociedade que eles dois unicamente acabavam de 
entregar em alguns minutos à perturbação e à dor, pareciam afrontar com olhares 
insultuosos não somente os homens mas também aquele que ao fulgor das estrelas 
vê melhor do que os mortais à luz do dia, e que das alturas, onde paira, distribui por 
todos a sua indefectível justiça, tanto para premiar como para punir. Foi Deus o 
único que conheceu os três aventureiros, rompendo as águas, o único que em suas 
frontes manchadas do sangue e do opróbrio recente leu o passado que os 
condenava e o futuro que por eles esperava para justiçá-los com a excessiva 
severidade que havemos de ver. 

Os náufragos só trataram de salvar-se e fugir; qual se agarrasse aos 
mangues, então muito bastos e numerosos, que bordam o rio como ilhas de verdura, 
qual demandasse, a fim de escapar da inclemência da corrente, os bancos de areia 
formados pelo fluxo e refluxo das marés. Ninguém cuidou mais do Cabeleira senão 
para se distanciar com horror crescente da sua sombra cruel, do seu vulto fatal e 
ominoso. 

Achavam-se na ponte o pai e o filho, não para serem socorridos, como foram, 
pelo companheiro, mas para protegerem a sua fuga, caso fosse ele descoberto 
antes de haver concluído o roubo que assentaram de praticar em um dos armazéns. 
A denúncia do matuto transtornara esta combinação pela forma que o leitor 
conhece, não impedindo porém que no essencial viesse ela a verificar-se, porque, 
ouvindo o trovão do alarido e fazendo conta que o conflito fora provocado pelos 
amigos como meio de concentrar em um só ponto as gerais atenções a fim de deixá-
lo ao abrigo de qualquer surpresa, tratara Teodósio de aproveitar o tempo com a 
prontidão e perícia que lhe eram habituais em semelhante gênero de ocupação. 

Na extremidade de uma vara fora acinte atado um ferro adunco para facilitar o 
escalamento. Prendê-lo na varanda do armazém, subir pela longa haste até a 
estiva, passar desta à janela, e saltar dentro fora obra de um instante para o 
Teodósio. Em poucos minutos quinquilharias preciosas, armas de fogo, perfumarias, 
miudezas de toda sorte desceram por cordas em suas caixas ou pacotes para a 
canoa. As gavetas, primeiro que as vidraças, foram violadas e revistadas, e o 
dinheiro que continham passara a povoar o bolso do atrevido roubador. 

São tradicionais os roubos que deste modo se praticaram na ponte do Recife 
por aqueles tempos e durante muitos anos depois. Segundo contam os antigos, eles 
reproduziram-se no começo deste século com tanta freqüência, que os armazéns ao 
princípio com razão cobiçados pelos comerciantes perderam de valor, e ficariam de 
todo depreciados se a polícia, por uma rigorosa vigilância que lhe faz honra, não 
houvesse impedido a continuação destes atentados. 

Quando não houve mais objeto de preço que baldear; Teodósio desceu. Era 
tempo. Ainda bem não tinha terminado o seu aéreo trajeto, quando dois corpos 
surgiram dentre ruidoso espumeiro produzido por violenta queda e passaram-se à 

embarcação. Eram Joaquim e José Gomes que se haviam atirado ao rio para 
escaparem à prisão, como vimos. 

A escuridão que reinava no Capibaribe, as auras da noite e uns restos de 
enchente favoreciam a evasão dos navegantes. Mantendo-se a igual distancia das 
duas margens, o improvisado canoeiro, ao passo que se subtraía a qualquer 
inspeção do lado da terra, era arrebatado com os hóspedes pelas águas do canal 
que são profundas e correm ali com impetuosidade. 

Em pouco tempo, contornando o palácio do governador, e deixando à direita o 
forte Waerdenburch, construído em 16381 nas Salinas, hoje Santo Amaro, pelos 
holandeses que lhe deram esta denominação para honrarem o seu general Diederik 
can Waerdenburch, seguiu rumo ao sul, rompendo, por entre ilhas de mangues, a 
escuridão e as águas. 

Entre as casas de que por esse tempo se compunha a povoação dos 
Afogados contava-se a de um colono por nome Timóteo, sujeito pontista, como tal 
conhecido das vizinhanças, e por isso mesmo buscado sempre que se tratava de 
realizar qualquer transação ilícita ou simplesmente equívoca. 

Era uma casa de taipa como quase todas as outras do lugar, e achando-se a 
pouca distancia do forte tomado pelos holandeses sob o comando do coronel 
Lourenço van Rembach aos portugueses em 1633 e denominado por estes Forte da 
Piranga e por aqueles Príncipe Guilherme em honra do príncipe de Orange. Ficava à 
direita da entrada da povoação, por detrás das primeiras casas. Foi demolido em 
181S, pelo intendente da marinha Siqueira, que com o respectivo material aterrou a 
camboa que contornava pelo lado do rio a primeira casa, na qual morava. 

Timóteo estabelecera ali uma vendola ou bodega aonde ia ter o açúcar, a 
galinha, a colher de prata, a peça de roupa ou qualquer objeto que era furtado pelos 
negros dos engenhos da redondeza. No exercício desta criminosa indústria 
comprava-lhes muitas vezes por dez réis de mel coado objetos de valor que 
revendia depois pela hora da morte aos boiadeiros e almocreves que acertavam de 
entrar na venda. 

Timóteo tivera por companheira uma mameluca de nome Chica, mulher bem 
apessoada, ainda moça, metida a valentona, finalmente uma dessas mulheres que 
tomam satisfações a Deus e ao mundo por dá cá aquela palha. Diziam as más 
línguas que nos primeiros tempos de sua vida com o colono ela lhe fora por 
diferentes vezes ao pelo; e que, compreendendo ele que não podia fazer cinco 
montes, e renunciando à pretensão, que a princípio nutrira, trazer sopeada a 
caseira, deixara esta também, por justa compensação de repetir o caridoso ensino 
com que o edificara logo depois de sua lua-de-mel. 

Uma manhã um rapazito descorado parou à porta da bodega, saltou do 
cavalo abaixo e mandou medir contrametade de aguardente. 

— Olá, menino José. Muito cedo navega você hoje — disse Timóteo ao 
recém chegado. 
— Parti de Santo Antão na madrugada velha — tornou-lhe o hóspede. 
Enquanto o taverneiro aviava o matinal freguês, o cavalo que jejuava desde a 
véspera pôs-se a devorar a grama do pátio, e, sem consciência dos riscos em que 
se ia meter, foi cair muito naturalmente dentro da pequena roça da mameluca e 
começou a destruí-la mostrando tenção de dar conta dela. 

Mas ainda bem o primeiro jerimum não se havia derretido entre os poderosos 
molares do faminto animal, quando a dona da plantação desfechou neste tamanho 

golpe com uma das estacas da cerca, que o pobrezito, dando às popas pelo meio do 
pátio, foi atirando os sacos aqui, os caçuás  acolá, a cangalha além, e desembestou 
por fim, pela margem afora, em violenta fuga. 

Não satisfeita com semelhante desforra, Chica em um pulo ganhou a venda, e 
investiu com o inofensivo matutinho. 

— Amarelo de Goiana! — gritou-lhe ela ao pé do ouvido. — Não sei onde 
estou que não te ponho mole com este pau para te ensinar a amarrares melhor a tua 
besta esganada de fome. 
O rapaz, volvendo a vista ao volume humano que lhe acabava de falar e cujos 
olhos pareciam querer saltar das órbitas, respondeu-lhe sem se alterar nem mover: 

— Besta ! Besta é ela. 
E, senhor de si qual se estivesse gracejando com um amigo, levou o copo aos 
lábios com o maior sangue-frio que ainda se pôde mostrar na taverna, onde as 
paixões se acendem com a prontidão do raio. 

Irritada por esta represália que a seus olhos pareceu condensar todo o 
desprezo do mundo, a mameluca não teve dúvida, não, e levantou a acha para o 
rapazito. 

Tinha este deposto o copo sobre o imundo balcão quando pressentiu a 
arremetida; pôde por isso fugir em tempo com o corpo à violenta pancada. A estaca 
bateu a meio no balcão" e metade dela voou pelos ares em estilhaços que foram 
quebrar as panelas de barro e as poentas botijas com que se achavam adornadas 
as sujas prateleiras da pocilga. 

Ouviu-se então um estalo, e logo o baque de um pesado corpo. José havia 
desandado com tanta força uma bofetada na mameluca, que a fizera cair 
redondamente no chão. 

Quis Timóteo acudir à companheira na apertada conjuntura que se lhe 
desenhou aos olhos com as negras cores de um desastre, ou vergonha para o lar e 
bodega onde nunca sofrera afronta igual ou que com esta se parecesse. Mas 
quando apercebia o animo para dar o arriscado passo, descobriu na mão de José 
uma faca de Pasmado que o reteve a respeitosa distância. 

Julgando-se Jos , à vista do agravo que recebera, com direito a público e 
estrondoso despique, arrastou por uma perna a mameluca, ainda tonta, para o 
terreiro, e aí, com uma raiz de gameleira com que os meninos tinham brincado na 
véspera, começou a pôr em prática a mais edificativa sova de que nos dão notícia as 
tradições matutas. 

A mameluca tentou por diferentes vezes livrar se das mãos do rapazito, 
espernegando como possessa. As mãos de José porém pareciam, pela dureza e 
pelo peso, manoplas fundidas de propósito para esmagar um gigante. Demais, José 
havia posto um pé no pescoço da Chica, e com ele comprimia lhe o gasnete, tirava 
lhe a respiração, afogava a sem piedade. 

A estrada estava deserta. Os moradores da povoação, de ordinário 
madrugadores, por infelicidade da caseira de Timóteo dormiram demais nesse dia 
do que tinham por costume. Além disso, as casas mais próximas da venda ficavam 
ainda a distancia, sendo todas, como então eram, muito espalhadas. Esta 
circunstância, tirando toda esperança de pronto socorro, animou José a prolongar o 
exercício para o qual podia dizer se estava preparado por diuturno hábito. 

Depois de alguns minutos, sentiu Timóteo subirem lhe enfim às faces os 
restos do equívoco brio e gritou, sempre de longe: 

— Você quer matar me a Chica, José ? 
— Deixe ensinar esta cabra, seu Timóteo. Ela nunca viu homem, e por isso 
anda aqui feita galinho de terreiro, ou peru de roda, metendo medo a todos estes 
papa siris dos Afogados. 
Assim dizendo, José montava se literalmente na mameluca, e dava lhe com 
os restos da raiz da gameleira já sem serventia. A faca, que minutos antes reluzira 
em uma das mãos estava agora atravessada na boca do matuto, em quem o ignóbil 
vendeiro parecia ver, não uma figura humana, mas uma visão infernal que o 
ameaçava, a ele também, não com igual pisa, mas com a morte, que para ele era mil 
vezes pior. 

De repente José colheu o ímpeto, pôs se de pé, e inquiriu de si para si: 

— E o meu cavalo ? 
Correu incontinente à margem e soltou um longo assobio que atroou o solidão 
mal desperta; a margem estava erma, e só o silêncio respondeu ao seu 
chamamento. Tornou ao pátio onde alguns vizinhos, finalmente atraídos pelos gritos, 
ao princípio furiosos, depois rouquenhos, e por último cansados e quase 
imperceptíveis da moribunda mulher banhada em sangue, tratavam de restitui-lá à 
casa. 

— E o que te vale, cabra do diabo! — disse José, olhando para o volume 
inanimado que mãos tardiamente piedosas arrastavam ao casebre. — O que te vale 
é ter eu que ir em busca do meu cavalo. Se não fosse ele, nunca mais comias 
farinha. 
Dias depois voltou José, montado no seu cavalo, trazendo uma espingarda 
nova na mão, uma faca de arrasto pendente da cintura, os caçuás  cheios de peças 
de pano e outros objetos que se vendiam nas lojas da vila. 

— Boa tarde, seu Timóteo — disse ele, pondo se em terra de um pulo e 
entrando sem cerimônia na tasca. — Dá me noticias de Chica ? 
— Você ainda vem falar nisso ? — redargüiu o vendeiro com semblante 
hipócrita, mas na realidade sobressaltado. 
— Por que não? Queria acabar de dar lhe a lição que principiei na quarta 
feira. Mas desta feita a coisa havia de ser de outra moda. Queria ver se lhe entrava 
nas banhas da barriga este facão, como entra nesta melancia. 
— Pois não sabe que a Chica morreu da sua tirania ? 
— Ah! fez esta bestidade? Pois então, para .celebrarmos o caso, bote 
aguardente e bebamos. 
Timóteo encheu sem demora o copo que apresentou a José. 

— Beba primeiro — disse este. 
— Não, eu não bebo — respondeu o taverneiro. 

— Não bebe ? Há de beber. E não se demore que tenho pressa. Atrás de 
mim vem alguém em minha procura, e eu não estou disposto a fazer mais carniça 
por hoje. 
— Que imprudência a sua, menino! Não bebo, não quero beber, está 
acabado. Veja se me obriga. 
A este rasgo de cobarde arrogância que seria digna do riso se não 
despertasse compaixão, José retrucou, fitando os olhos do colono: 

— Seu Timóteo, você vai errado. Olhe que eu não posso demorar 
me nem sou de graças. Beba a aguardente por quem é. 
O taverneiro, sem replicar, pôs o copo na boca, e, depois de haver sorvido 
alguns goles que lhe souberam a quássia ou jurubeba, restituiu 

o ao rapazito, que o esvaziou quase de um trago. 
Então, sem cuidar de pagar a despesa, José saltou sobre a cangalha, pôs o 
cavalo a todo o galope e desapareceu no caminho como desaparece um raio na 
atmosfera. 

Com pouco uma escolta subiu a ponte e foi fazer alto na vendola de Timóteo. 
Vinha na batida de José, que havia cometido um roubo considerável na praça, 
tendo, para escapar se, assassinado um caixeiro e deixado às portas da morte com 
um sem número de golpes, dois soldados que diligenciaram prendê-lo. 

Pertencem estas ao número das primeiras proezas do Cabeleira. Não contava 
ele então dezesseis anos completos. Perpetrava entretanto, destes crimes, e com 
esta firmeza que daria renome aos mais hábeis e audaciosos assassinos. 

Não obstante o modo por que o tratara desta o vez o jovem Cabeleira, nunca 
Timóteo ficara mal ou se arrufara sequer com ele. Quem não descobre a razão de tal 
segredo ? O colono respeitava e temia o matuto. Por detrás, dizia, àqueles de cuja 
fraqueza estava certo, que o José era uma oncinha que se estava criando e que era 
preciso, enquanto não passava de tempo, tirar do pasto; na presença do rapaz, que 
já lhe tinha mostrado por duas vezes de quanto era capaz, só tinha ele atenções e 
baixezas que bem denotavam os quilates do seu espírito. 

José cresceu, reformou, pôs se de todo homem. Perdeu a cor terrena e pálida 
com o que vimos da primeira vez na taverna, e tornou se robusto de corpo e bonito 
de feições. Cabelos compridos e anelados, que lhe caíam nos ombros, substituíram 
a penugem que mal lhe abrigava a cabeça nos primeiros anos. 

Timóteo fora testemunha de todas estas transformações. O rapaz tinha 
escolhido para seu ponto de operações contra a vila a taverna dos Afogados. Esta 
taverna passara a ser um como entreposto onde ele depositava o que roubava com 

o pai e, mais tarde, com o Teodósio que viera associar lhes nos perigos e nos 
proveitos. O taverneiro achara se assim em condições de acompanhar dia por dia as 
diferentes fases, os variadíssimos sucessos de uma das existências mais admiráveis 
que se conhecem na carreira do crime. 
Por sua vez José vira o florescer e o declinar do taverneiro. Quando o livrara 
da companhia da Chica achava se Timteo nos seus quarenta e oito anos. Agora 
orçava pelos cinqüenta e cinco. Tornara lhe o cabelo branco; distendera lhe o 
abdome, caíram lhe um pouco as faces, sumiram lhe os olhos debaixo das espessas 
sobrancelhas, que pareciam espinhos de cardeiro. 

Sem que um entrasse nos segredos do outro, os dois diziam se amigos, e até 
certo ponto apoiavam se reciprocamente, havendo muitos respeitos entre ambos, 
perfeito acordo de intenções e inteira comunidade de interesses. 

As barras vinham quebrando quando a canoa dirigida por Teodósio encostou 
na beira do Capibaribe, junto à ponte dos Afogados. Dentro em pouco a pingue 
messe da noite. colhida às custas de sustos, sangue e morte, passou para os 
esconderijos da taverna. Beberam em comum os quatro; celebraram todos a 
magistral façanha. Timóteo aplaudiu a coragem do pai e do filho, e a finura e as 
mágicas do Teodósio. 

De repente este levou a mão à testa e correu como desesperado à margem. 
Os companheiros meteram mãos às armas e prepararam 
se para o que desse e viesse. 

Timóteo, chegando à porta e estendendo os olhos pelo aterro dos Afogados 
afora, nada descobriu na extensa solidão que pudesse justificar a inquietação do seu 
digno conviva. 

Só o Teodósio, de pé sobre uma das mais altas ribanceiras, olhava para um e 
outro lado do rio, e dava mostras de querer arrancar os cabelos no auge do 
desespero. José dispôs se a arrostar com o que pudesse acontecer e foi ter com o 
consternado amigo. 

— Que diabo tens tu, Teodósio? 
— O dinheiro, Cabeleira, o dinheiro! 
E o pardo, com o semblante desfigurado por uma dor profunda, apontou o rio 
que suavemente discorria por entre o deserto, mobilizando as águas azuladas em 
que se refletia o belo céu pernambucano que disputa a primazia ao céu de Itália. 

— O dinheiro que tirei das gavetas do armazém lá se foi no camarote da 
canoa!—disse o Teodósio, fulo de pesar que se não descreve. 
— E que fim levou ela? — interrogou José. 
— Fugiu, desapareceu ! Lá se foi tudo pela água abaixo. 
Não acabava quando, ei-la que aponta movida por dois meninos que, tendo 
ido encher os potes no rio, se haviam apoderado dela para brincarem como 
costumavam sempre que davam com alguma canoa sem dono. Pobres crianças ! 

Tanto que os viu, Teodósio empalideceu. Cabeleira porém correu a encontrá-
los aceso em ira, gritando e ralhando como louco. Amedrontados saltaram na 
margem os pobrezinhos e fugiram, ao passo que a canoa, ficando solta, desaparecia 
novamente impelida pela enchente da maré. 

Fazendo conta José que os meninos se haviam assenhoreado do dinheiro, 
continuou a correr no encalço deles sem ter outra idéia que apanhá-los para 
arrancar lhes das mãos o que considerava propriedade sua. Mas como sua cólera 
aumentou com a fugitiva resistência dos pequenos, atirou ele sobre o primeiro que 
lhe ficou ao alcance o facão com tanta certeza, que o pobrezinho, cravado pelas 
costas, caiu banhado em seu próprio sangue. 

Não parou aí então a fereza inaudita. José, achando limpas as mãos da 
vítima, lançou-se com encarniçada fúria atrás do camarada, o qual, tendo já ganho 
grande distancia, e sentindo que era perseguido tenazmente, se lembrou de trepar 
no primeiro coqueiro que descobriu com os olhos pávidos, crendo escapar por este 

modo ao terrível assassino. Reconheceu, porém, que se havia enganado, quando 
deu com as vistas em José que do chão diligenciava feri-lo com o facão. 

— Acuda, mamãe, que o homem me quer matar — gritou o menino das 
alturas aonde havia subido. 
— Ah, tu pões a boca no mundo, caiporinha ? — observou José. — Pois vou 
tirar te a fala em um instante. 
Um tiro cobarde, cruel, assassino, atroou os ares. Sangue copioso e quente 
gotejou como granizo sobre a areia e no mesmo instante o corpo do inocentinho, 
crivado de bala e chumbo, caindo aos pés de Cabeleira, veio dar lhe novo 
testemunho de sua perícia na arte de atirar contra seu semelhante. 

Quem estivesse com os olhos em Teodósio no momento em que Cabeleira 
correra atrás dos meninos, teria visto atirar dentro em uma moita de muçambés e 
manjeriobas, que ficava perto da ribanceira, um pesado pacote que tirara do bolso. 
Neste pacote achava se o dinheiro roubado ao lojista pelo astucioso ladrão que 
agora o furtava novamente aos próprios companheiros de rapinas, depois de haver 
concorrido, por sua trapaça, para a morte das inocentes criaturas. 

Quando se soube que Cabeleira estava na terra e tinha sido o autor do 
latrocínio, a povoação horrorizada tratou unicamente de escapar a sua ferocidade. 

Grande parte dos moradores fugiu para os matos e praias circunvizinhas. 
Outros, dos mais corajosos, fortificaram se nas próprias habitações, contando que 
seriam assaltados pelos matadores. 

Felizmente estes demoraram se no lugar unicamente o tempo que lhes foi 
preciso para porém em boa espécie os objetos roubados segundo usavam depois de 
suas depredações. 

CAPÍTULO III 
Como nunca um mal vem desacompanhado, segundo mui bem diziam nossos 
maiores com aquela autoridade que, entre outros graves ofícios, não se lhes pode 
recusar na ciência da vida, ao grande contágio das bexigas, que todo o ano de 1775 
e uma parte do seguinte levou assolando a província de Pernambuco, sucedeu uma 
seca abrasadora, mal não menos penoso senão mais funesto que o primeiro em 
seus resultados. 

Se por ocasião do referido contágio subiu o número das vítimas a tanto, que 
os cemitérios e as igrejas já não tinham espaço para lhes oferecer sepulturas, que 
diremos nós para darmos a conhecer, não unicamente os efeitos da peste, comum a 
todos os climas e a todas as regiões, mas juntamente com estes efeitos os da seca, 
flagelo especial de algumas de nossas províncias do Norte ? 

Excetuada a febre amarela por ocasião de sua primeira invasão, a qual se 
verificou em Pernambuco em 168G, não consta que alguma outra calamidade de 
poste haja sido mais fatal àqueles povos do que a sobredita calamidade. Do mesmo 
modo a seca, chamada em Ceará "seca grande", que arrasou Pernambuco desde 
1791 até 1793, com ser mais intensa e duradoura do que a de 1776, ficou-lhe 
aquém nos estragos produzidos nesta última província onde esta seca foi precedida 
do terrível contágio que levou milhares de almas como já dissemos. Dois flagelos, 
um imediatamente depois do outro, para não dizermos dois flagelos reunidos, dos 
quais o primeiro disputava ao segundo a primazia no abater e o destruir, traziam pois 

a província em contínuo pranto e luto, pranto nunca chorado e luto nunca visto em 
tamanho extensão, ao tempo em que se passaram os acontecimentos que diremos 
neste capítulo. 

Governava então Pernambuco José César de Meneses que não se demorou 
a expedir para diferentes pontos recursos médicos e alimentícios, a fim de combater 
a epidemia, e acudir à pobreza no seio da qual, ao mesmo tempo que a fome, 
conseqüência natural da seca, ia ela buscar, como sempre sucede, o maior número 
de suas vítimas. 

Não se fez esperar com seu quinhão de auxílio o poder espiritual, então 
amigo desinteressado e leal do poder civil, não só em Pernambuco, mas também em 
todas as capitanias do Brasil. E por que não havia de suceder assim, se sob as 
abóbadas do Vaticano ainda volteava, representado na pureza e sabedoria de sua 
doutrina, o grandioso espírito de Ganganelli; se aos jesuítas, expatriados, repelidos 
do seio de todos os Estados civilizados, faltava a organização que havia antes 
imposto ao mundo esta companhia como a mais poderosa das até a esse tempo 
conhecidas, e que veio depois restituir-lhes, não a totalidade, mas uma grande parte 
do perdido predomínio; se no palácio da Soledade se sentava d. Tomás da 
Encarnação Costa e Lima que tornou distinto o decênio de seu ministério por sua 
circunspeção, por sua brandura, por suas virtudes, as quais nos corações dos 
diocesanos lhe erigiram altares mais naturais e mais sólidos que os dos próprios 
templos ? 

Um bispo, que compreende sua missão, é uma das maiores fortunas dos 
povos que pastoreio; porque um tal bispo, para proceder assim, tem necessidade de 
saber e de exercitar a caridade; porque um tal bispo não admite em seu coração a 
mais mínima sombra de ódio, e só possibilita a entrada nele à humildade, à 
modéstia, aos mais delicados afetos paternais; porque de todos estes predicados só 
se podem originar grandes e edificantes benefícios para os crentes, e 
particularmente para os pobres. 

D. Tomás dirigiu-se a este ideal, único em que devem ter os olhos aqueles 
que se acobertam com as vestiduras episcopais antes para representarem, como 
lhes cumpre, o ofício da piedade e do amor celestial, que a magistratura das 
mundanas ambições. Ah, esta magistratura é muito mais difícil de contrastar e muito 
mais cruel quando mói em nome de Deus as consciências, do que quando, galoada 
ao sabor de ficções caducas, encorrenta a liberdade em nome da ordem e da razão 
pública, as quais são um dia as primeiras que proclamam estarem inocentes. Deus 
porém, com ser tão poderoso e grande, não pode falar, e é por isso que muitas e 
reprovadas paixões se dizem ecos de sua voz. 
Acredito que D. Tomás foi bom, piedoso e justo por efeito de sua própria 
natureza; há porém quem diga que deve ele seu adiantamento no caminho da 
perfeição católica, de que nos deixou formosíssima estampa, ao estudo dos 
exemplos que lhe legaram seus predecessores e ao empenho com que buscou 
imitá-los. 

O que fica fora de toda dúvida é que D. Tomás achou a cadeira episcopal de 
Olinda verdadeiramente ilustrada por conspícuas e beneméritas virtudes que não 
foram até hoje igualadas. Assim, D. Francisco de Lima morreu tão pobre que 
unicamente se lhe encontraram de seu quarenta réis em dinheiro. Ele havia 
despendido todas as rendas da mitra na sustentação das trinta missões de índios 
que reunira e visitara no seio de inóspitos sertões, sendo-lhe preciso, para 
cumprimento deste apostólico dever, transpor mais de duzentas léguas na avançada 
idade de setenta anos. D. José Fialho não deixou nunca de exercitar as funções 

pastorais com honra sua e proveito público. Por ocasião de uma epidemia que 
grassou na província, este respeitável antístite freqüentou o púlpito, visitou os 
enfermos, acudiu aos necessitados, e deu ordem nas boticas para que, por conta 
dele, se aviassem remédios para os doentes que os médicos e cirurgiões 
declarassem serem pobres. Exercitou a caridade com tanto fervor que sua família 
veio a experimentar em casa falta do necessário. D. Luís de Santa Teresa deu 
começo ao palácio da Soledade, e concorreu para a fundação dos recolhimentos de 
Olinda, Iguaraçu, Afogados e Paraíba, gastando nas respectivas obras o produto de 
suas rendas: missionou desde Porto Calvo até ao Rio Grande do Norte. Finalmente 

D. Francisco Xavier Aranha concluiu o sobredito palácio, realizou diferentes 
melhoramentos na igreja da Sé e em várias outras igrejas, visitou grande parte da 
diocese, e foi muito zeloso nos deveres de seu sagrado ministério. Depois de D. 
Tomás dignificaram ainda aquela cadeira D. Diogo de Jesus Jardim, o esmoler, D. 
Azevedo Coutinho, o sábio, D. Marques Perdigão, o piedoso, o pacificador dos 
cabanos. 
Estamos pois em 1776. E no momento em que o fogo da peste mais abrasara 
a província. 

D. Tomás mandou distribuir esmolas pelos pobres de Olinda e do Recife e 
despachou, como havia feito o governador, socorros em dinheiro e víveres às 
povoações mais afligidas do mal. Para completo desempenho de seu dever pastoral, 
ordenou que se fizessem preces em todas as matrizes e em todos os conventos, e 
convidou o povo a procissões de penitência. As procissões eram então atos 
majestosos e dignos. Uma delas produziu tão viva e salutar impressão no espírito do 
povo daquele tempo, que o historiador se julgou na obrigação de transmitir sua 
memória à posteridade. 
Eram sete horas da noite quando esta procissão, que saiu da igreja de S. 
Pedro, se encaminhou à da Madre de Deus, designada para um rigoroso miserê. O 
bispo acompanhou-a em pessoa, descalço, e confundido com o povo. Todos, 
vestidos de branco, disciplinavam-se com sincera contrição. 

Tendo chegado à igreja, D. Tomás subiu ao púlpito, donde sua palavra 
começou a cair com a singela eloqüência que a verdadeira piedade suscita e a que 

o amor paternal autoriza. O devoto bispo havia-se inspirado naquela passagem que 
um dos primeiros luminares das letras portuguesas, frei Luís de Sousa, nos deixou 
em sua imortal História de S. Domingos, e que se refere ao sermão pregado com 
idêntico fim pelo visitador frei João Furtado, em Évora. 
Antes que o povo começasse a dispersar-se, três penitentes, envoltos nos 
competentes lençóis e armados com as respectivas disciplinas, tomaram pela rua 
Direita abaixo trocando à puridade entre si palavras que davam a entender 
acharem-se eles penetrados antes de contentamento que de contrição, sentimento 
que a ocasião autorizava com mais justiça a supor em sujeitos tais. Eram Joaquim, 
José e Teodósio como o leitor já deve ter compreendido. 

Quando D. Tomás se recolheu a seu palácio achou-se roubado. José, 
Joaquim e Teodósio, que no momento em que ele saíra a cumprir o piedoso mister, 
se haviam introduzido à sorrelfa, com a facilidade que proporciona o disfarce, em 
uma das muitas salas ou em um dos muitos corredores desse edifício, tinham tirado, 
na ausência do venerando proprietário, não os castiçais de prata como fizera João 
Valjean em casa do bispo Miriel, mas diferentes quantias que D. Tomás destinara 
para novos auxílios à pobreza do alto sertão mais afligida da fome do que nenhuma 
outra da diocese. Estas quantias achavam-se repartidas e já devidamente 

acondicionadas em pacotes distintos, que só esperavam oportunidade para 
seguirem seu destino. 

O digno prelado leu a triste verdade na confusão em que, ao entrar em seu 
gabinete, achou os ofícios e instruções que, com as esmolas da sua profunda 
piedade agora desaparecidas, dirigia aos párocos dessas longínquas e desvalidas 
freguesias. 

No dia seguinte, muito cedinho, um cavaleiro esbarrou na vendola de Timóteo 
e, saltando em terra e batendo com alguma precipitação na porta, perguntou para 
dentro: 

— Ainda está dormindo, seu Timóteo ? 
— Quem é você? — interrogou o vendeiro em resposta à pergunta que 
deixamos repetida. 
— Abra a porta sem demora, que tenho que lhe dizer. 
O recém-chegado era um crioulo alto, magro, de boa cara e de jeitos e 
meneios que revelavam extrema benevolência. 

— Olhe, seu Timóteo; ouça-me cá. Eu sei que em sua casa está o Cabeleira 
com o pai e o Teodósio; e por isso corri a avisá-los. Uma tropa vem já do Recife para 
prendê-los. Diga a eles que se metam na capoeira enquanto é tempo. 
— E como soube você disso ? 
— Sabendo. No começo do Aterro passei eu por ela. O governador ficou 
muito escandalizado com o que eles fizeram ontem à noite no palácio do bispo, e diz 
que há de pô-los na corda mais dias menos dias. Tudo isso me contaram na venda 
de seu José do pátio da Ribeira. 
— Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso. 
— Não tem que me agradecer. Eu quis fazer este serviço ao próprio Zé 
Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é muito descortês e 
desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto Zé Gomes; menino, e querendo-lhe 
por isso algum bem, achei que era minha obrigação fazer o que em meu caso faria 
meu irmão para livrar do risco o antigo conhecido. Diga-lhe isto mesmo. E até a 
primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancoretas no 
engenho da Madalena; além disso a soldadesca já deve vir bem perto no faro das 
cascavéis que estão no ninho. 
Quando Timóteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não encontrou 
os três malfeitores (os quais na realidade tinham passado a noite na taverna), senão 

o Teodósio que, sabendo de tudo melhor do que os outros dois, os quais haviam 
unicamente ouvido através das portas algumas das palavras do negro, correu sem 
demora a meter-se em uma espécie de esconderijo que arranjara em Tigipió e cuja 
existência era só dele conhecida. 
Na época em que se passou esta história, fazia o Capibaribe, adiante do 
Forte da Piranga, um cotovelo, que foi depois aterrado, e é hoje quintal de uma 
casa. O ângulo internava-se na direção do sul por entre uns lajedos alcantilados que 
se sumiam dentro de um capão de mato. 

Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade e das 
sombras com que a dotara a natureza, a qual desde os Afogados até o Peres 
apresenta uma face monótona e triste—uma imensa planície, coberta de capim-luca. 

Por entre as lajes via-se uma vereda de gado que ia ter no engenho da 
Madalena ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtada 
quase um quarto de légua do caminho para quem tinha de ir da margem direita ao 
dito engenho. 

O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em que este 
fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno acidentava-se um pouco, 
e elevava-se até as lajes negras pelo meio das quais o gado tinha aberto sua 
passagem, melhor e mais naturalmente do que o faria o homem. 

No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sítio, alguns 
ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dois sujeitos literalmente 
armados surgiram diante de seu olhos. 

Vendo-se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste o crioulo pôde 
unicamente dizer estas palavras: 

— Acabo de Ihes fazer um bem, e é deste modo que vosmecês me dão o 
pago ? 
— Desce do cavalo, negro. Este cavalo foi teu até este momento; de agora 
em diante ele nos pertence, e é preciso que no-lo entregues quanto antes. 
— Meu cavalo ! — exclamou o crioulo com entranhada dor. — Meu cavalo é 
meu único haver, meus senhores. Se vosmecês mo tomarem, com que darei eu de 
comer a minha mulher e a meus filhos, que não têm outro arrimo senão eu ? 
— Que morram de fome como estão morrendo da seca os outros por aí além. 
Demais, não te custará ganhar com que comprares outro cavalo para continuares 
em teu ofício. Deste é que deves perder o feitio. Precisamos dele já para fugirmos 
com tempo à tropa que aí vem. 
— Perdão, meus brancos — disse Gabriel com a voz mais doce e terna que 
pôde. — Eu peço a vosmecês que me deixem ir embora. Em que os ofendi ? Não os 
tenho respeitado sempre ? Vosmecês não me conhecem ? Sou um pobre preto que 
nunca fez mal a ninguém, e que segue seu caminho caladinho sem se importar com 
a vida dos outros filhos de Deus. 
Os dois matadores não estavam, ao menos naquele momento, para estas 
banalidades, e, cônscios de que urgia remover o óbice, saltaram sobre o crioulo e, 
apeando-o com violência, tomaram-lhe o animal, o qual se deixou passivamente 
conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira onde Joaquim julgou prudente 
recolhê-lo sem demora. 

Gabriel, que de pé e imóvel viu, com lágrimas nos olhos, desaparecer o seu 
único bem, reflexionou com pesar: 

— Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é que hei de ir para a 
minha de pé, sem o meu cavalo, hein ? 
— Ainda estás aí falando, negro ? Quererás tomar-nos satisfações ? — 
replicou o Cabeleira voltando-se de chofre e fixando sobre o Gabriel a vista que 
chamejava como a de um chacal. 

— Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e 
deixam-me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e outra atrás. 
A estas vozes o Cabeleira não pôde mais conter-se, e de um só pulo fez-se 
sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não se achava no mesmo lugar, mas sobre 

uma das lajes que davam para o rio, tendo em uma das mãos uma faca nua, que 
refulgia aos raios do sol. 

— Se quer brincar na ponta da faca, meu branco, a coisa é outra, e vosmecê 
encontra homem —disse de cima. 
Ainda bem não tinha preferido estas expressões, quando a seus olhos 
brilhava também a faca de seu feroz contendor. 

Travou-se então entre eles um combate de gigantes que durou alguns 
minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lúgubre realce o deserto com sua 
profunda solidão. 

Os dois contendores eram habilíssimos em jogar a faca. Nunca se 
encontraram competidores mais dignos um do outro. 

As lâminas inimigas cruzavam-se a modo de impelidas por eletricidades 
iguais. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade característica dos 
matutos do Norte, máxime dos matutos de Pernambuco. 

Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da laje que, 
começando no estreito angulo, ia morrer no Capibaribe por um declive quase 
abrupto. Haviam-se avizinhado tanto do rio, que o ruído das águas já não deixava 
ouvir o incessante bater dos ferros assassinos. Estes ferros eram como duas 
serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem devorar. 

De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual 
ficou assim entre dois inimigos capitais. 

— Ainda está vivo este negro, Zé Gomes ? — perguntou o mameluco ao filho. 
— É agora a sua derradeira — respondeu este. 
— Com dois é impossível a um só se divertir — tornou o negro, em cuja testa 
.à alvura do suor contrastava com o negror da pele luzidia. 
José Gomes estava excitado ao último ponto e rolavam-lhe também pelo 
rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões abreviar o 
duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão, apertou com o crioulo com 
toda a violência de que era capaz e que, como sempre, levou de vencida todas as 
resistências adversas. Gabriel, ou porque conhecesse que na realidade estava 
exposto a eminente perigo, ou por que julgasse ser chegado o momento de pôr por 
obra a sua traça, deixou-se escorregar quando menos esperava o inimigo, pela face 
oposta da laje, e foi cair dentro das águas que passavam ali rápidas e espumosas. 

Cabeleira correu, fora de si, após o fugitivo a fim de ver se o apanhava para 
mitigar no sangue dele a sede que o combate lhe acendera; mas antes que 
houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação de um tiro lhe 
anunciou que o temerário que lhe resistia acabava de pagar com a vida esta 
ousadia. 

Um momento depois o cadáver de Gabriel, entalado entre duas pedras que 
sobressaíam às águas no meio do canal, tingia-se com o seu sangue, e Joaquim o 
mostrava com o cano do bacamarte, ainda fumegante, ao filho, que nunca pode, 
como seu pai, matar curimãs a tiro nas águas turvas das enchentes. 

CAPÍTULO IV 
Segundo as tradições mais correntes e autorizadas o Cabeleira trouxe do seio 
materno um natural brando e um coração benévolo. A depravação, que tão funesta 
lhe foi depois, operou-se dia por dia, durante os primeiros anos, sob a ação ora lenta 
ora violenta do poder paterno, o qual em lugar de desenvolver e fortalecer os seus 
belos pendores, desencaminhou o menino como veremos, e o reduziu a uma 
máquina de cometer crimes. 

Como é possível porém que se houvesse abastardado por tal forma a obra 
que saiu sem defeito das mãos da natureza ? Como se compreende que uma 
organização sã se tivesse corrompido ao ponto de exceder, no desprezo da espécie 
humana, a fera cerval que se alimenta de sangue e carnes fumegantes, não por uma 
aberração, mas por uma lei da sua mesma animalidade ? 

É que a mais forte das constituições, ou índoles, está sujeita a alterar-se 
sempre que as forças estranhas, que atuam sobre a existência, vêm a achar-se em 
luta com suas inclinações. Por mais enérgicas que tais inclinações sejam, não 
poderão resistir a estas três ordens de móveis das ações humanas — o temor, o 
conselho e o exemplo — , que formam a base da educação, segunda natureza, 
porventura mais poderosa do que a primeira. 

No caminho da vida veio encontrar o Cabeleira a seu lado Joana, exemplo 
vivo e edificante pela ternura, pela bondade, pelo espírito de religião que a 
caracterizava. Em contraposição porém a este salutar elemento de edificação, do 
outro lado da criança achava-se Joaquim, não só naturalmente mau, mas também 
obcecado desde a mais tenra idade na prática das torpezas e dos crimes. 

Boa mãe era Joana, mas era fraca. Que podia a sua doçura contrastado pela 
ameaça, pelo rigor, pela brutal crueldade daquele que estava destinado a ser o 
primeiro algoz do próprio ente a quem dera a existência ? 

A mulher é tanto mais forte, e a sua influência direta e decisiva na formação 
dos costumes, quanto mais puro é somente uma providência — sobretudo, ambiente 
do meio social onde ela respira, e esclarecidos são os entes com quem coexiste. 
Colocada em um tal centro, a mulher não é somente uma providencia — sobretudo, 
uma divindade. As suas forças elevam-se à altura das potências de primeira ordem, 
e ordinariamente são potências triunfantes, onde quer que seja o mundo moral, não 
um caos, mas uma criação grandiosa e harmônica, em conformidade às leis da 
estética cristã e às altas conquistas da civilização que possuímos. As suas 
qualidades delicadas, fontes de grandezas ímpares, tornam-se porém nulas ou são 
vencidas sempre que entram em luta com a ignorância, com o vício, com o crime. 

Infelizmente para o Cabeleira, grande animo que poderia ter vindo a ser uma 
das glórias da pátria se a sua bravura e a sua firmeza houvessem servido antes a 
causas nobres que a reprovados interesses e cruéis necessidades, sua mãe dócil, 
posto que ignorante, de bonitas ações, posto que nascida de gente humilde, não só 
não pode exercitar no infeliz lar a ação benéfica que à esposa e mãe reservou a 
natureza, mas até foi, como seu filho, uma vítima, não menos do que ele digna de 
compaixão, um joguete dos caprichos e instintos brutais daquele a quem ela havia 
ligado o seu destino, não para que fosse o seu tirano mas para que a ajudasse a 
carregar a cruz da pobreza. 

Pela sua organização, pelos seus predicados naturais, o Cabeleira não estava 
destinado a ser o que foi, nós o repetimos. Os maus conselhos e os péssimos 
exemplos que lhe foram dados pelo desnaturado pai converteram seu coração, 
acessível em começo ao bem e ao amor, em um músculo bastardo que só pulsava 

por fim a paixões condenadas. Desgraçadamente estas paixões que nele 
escandalizaram a sociedade coeva não desceram com seu corpo à sepultura. Elas 
estão aí exercitando em nossos dias o seu terrível império à sombra da ignorância 
que ainda nos assoberba, e que em todas as terras e em todas as idades tem sido 
considerada com razão a origem das principais desgraças que afligem e destrõem 
as famílias e os Estados. 

Joana, a mãe boa e fraca, viveu em luta incessante com Joaquim, o pai sem 
alma nem coração. José foi sempre o motivo, a causa desse combate sem tréguas, 
José, o filho sem sorte que estava fadado a legar à posteridade um eloqüente 
exemplo para provar que sem educação e sem moralidade é impossível a família; e 
que a sociedade tem o dever, primeiro que o direito, de obrigar o pai a proporcionar 
à prole, ou de proporcioná-lo ela quando ele o não possa, o ensino que forma os 
costumes domésticos nos quais os costumes públicos se firmam e pelos quais se 
modelam. 

Aos sete anos de idade o pequeno já sabia matar passarinhos com seu 
bodoque, presente que lhe fizera o pai com expressa recomendação de amestrar-se 
em seu uso para que viesse a ser mais tarde um escopeteiro consumado. 

— Ó José, ouve bem o que te vou dizer. Quando o sanhaçu ou bem-te-vi não 
cair morto da bala do bodoque, mas só com uma perna ou uma asa quebrada, não 
lhe apertes o pescoço para que não esteja penando. Faze um espetinho de cabuatã, 
e crava-o na titela do passarinho. Tu não sabes que os passarinhos são diabinhos 
que nos perseguem, furando as laranjas e destruindo as bananas do quintal ? 
— Tenho pena, papai, e não farei isso aos pobrezinhos — respondeu o 
menino. 
— Tens pena, tu, José ? Pois sabe que é preciso que percas esta pena e que 
te vás acostumando a ser homem. Se hoje cravas o espeto na titela do bem-te-vi, 
amanhã terás necessidade de cravar a faca no peito de um homem; e se no 
momento da execução tiveres a mesma pena, ai de ti ! que a mão te fraqueará, e o 
homem te matará. 
Uma manhã José entrou saltando de contente, e trazendo um preá que o fojo 
tinha apanhado. 

— Ó papai, como é que hei de matar este preá ? 
Joana chamou o menino para junto de si, tomou-lhe a presa que ele trazia, e 
pôs-se a mirá-la com ternura. 

— Olha, meu filho, olha bem para ele. Não achas vivos e bonitos os olhos do 
preazinho ? Que lindo pescoço ! Que mãos bem-feitas ! Que dizes, José ? 
— É, mamãe. Acho tudo bonitinho. 
— E se o achas bonitinho, para que o queres matar, meu filho ? 
— Para aprender a matar gente quando eu for grande. 
— Matar gente! José, José ! Quem te ensinou esta barbaridade ? Virgem da 
Conceição ! 
— Foi papai, mamãe. 
— Não, eu não consentirei, nem o céu permitirá que levantes em tempo 
algum a tua mão para ofender a alguém. Que desgraça, Mãe Santíssima! Como é 
que Joaquim ensina semelhantes coisas ao filho ? 

— Dê-me o meu preá, mamãe. Quero espetá-lo vivo como fiz ontem com o 
papa-capim. 
— Ainda me vens falar nisso ? — exclamou Joana consternada. 
E levada de uma inspiração ou de um repente irresistível, chegou à porta que 
dava para o pequeno cercado onde o capinzal crescia, e aí soltou o inocente 
prisioneiro. 

José chorou, gritou, esperneou, rolou pelo chão com raiva. Irritada por este 
procedimento, para o qual ela foi buscar explicação antes na inconveniente direção 
que a José ia dando Joaquim que no impulso de reprovadas paixões de que julgava 
isento o filho naturalmente dócil e terno, puxou-lhe de leve pelas orelhas, 
dizendo-lhe que se outra vez judiasse com os passarinhos lhe daria uma surra que 
ele havia de agradecer. 

Quando Joaquim voltou à casa, o menino correu a relatar-lhe o que tinha 
acontecido. O mau marido, o péssimo pai ralhou com Joana em quem por um triz 
não bateu; e para completar a lição e o exemplo pernicioso, prometeu a José que o 
primeiro preá que c fojo pegasse havia de ser sujeito a um gênero de morte que ele 
ainda não conhecia. 

O menino mal pode dormir aquela noite. Nunca desejou tanto que a armadilha 
lhe desse caça. A curiosidade de conhecer a nova forma de matar os animais, 
prometida ao primeiro que tivesse a sorte de se deixar apanhar, o teve por muito 
tempo na maior excitação e vigília. 

Pela manhã correu José ao fojo, onde encontrou, em lugar de preá, um 
coelho. 

Era uma lindeza o animal. Gordo, coberto de macio pelo em que se divisavam 
ligeiras malhas tão alvas como o algodão que pendia dos capulhos estalados acima 
de sua masmorra, o filho do campo despertava, pela beleza das formas, e pela 
harmonia dos contornos, todos os sentimentos benévolos de que é capaz o humano 
coração. Os olhos reluziam como dois coquinhos polidos. O coração batia-lhe 
precipite qual se quisesse sair-lhe pela boca. E essa criatura tão cândida e 
inofensiva ia morrer! Oh, meu Deus, por que extravagante e bárbara interpretação 
das leis naturais há de o homem julgar-se com direito à vida de semelhantes entes 
que mais merecem a sua proteção do que desafiam a sua cobardia ? 

Quando José, irresistivelmente cativo da formosura da inocente criaturinha, 
estava ainda admirando os seus encantos, um movimento violento arrancou-lhe das 
mãos. 

— Meu coelho ! — gritou o menino sentido de lhe terem arrebatado a graciosa 
presa. 
— Ah, supunhas que havias de por-me terra nos olhos, José ? Não, este lindo 
animal não morrerá. 
— Sim, sim, mamãe; eu não o levarei a papai para o matar como ele disse; 
não quero que o meu coelho morra. Ele é tão bonitinho, que faz gosto. Quero criá-lo 
para mim, para mim só, já ouviu, mamãe ? Meu coelhinho tão bonitinho! 
José estava fortemente comovido, e Joana, fixando nele olhos 
perscrutadores, leu em seu rosto a pureza e a sinceridade da sua comoção, indício 
irrecusável, senão prova convincente, da excelência das inclinações do filho. Todas 
as hesitações que traziam seu espírito em contínua inquietação dissiparam-se diante 

do enternecimento do menino de cuja brandura e natural bondade já não lhe foi lícito 
duvidar. 

— Dê-me o meu bichinho, mamãe — Ó pediu José quase chorando. 
— Ele é teu, José, e ninguém, ainda que seja teu pai, te privará dele. Mas, 
antes que o tenhas contigo, quero saber por curiosidade o que vais fazer do 
coelhinho. 
— Ora ! Vou levá-lo para casa. Levo logo daqui capim bem verde para ele 
comer, e faço lá uma caminha no canto do meu quarto para ele dormir junto de mim. 
— E se teu pai o quiser matar ? 
— Pedirei a papai que o não mate, não. Olhe, mamãe: o melhor é eu ir 
esconder o coelhinho no mato sempre que meu pai estiver para chegar. Deus me 
livre de ver meu coelho morrer. 
— Deus te livre, atrevido ! — Ó gritou ao pé da mulher e do filho o mau 
marido, o pai desnaturado, carrasco da família antes de sê-lo da sociedade e de si 
próprio. 
E arrebatando com rudeza bruta das mãos de Joana o pobre animal, fez 
gesto de lhe quebrar a cabeça contra uma pedra que lhe ficava fronteira. 

— Que queres fazer, Joaquim ? — Ó interrogou Joana, não obstante achar-se 
aterrada pela presença do marido. 
— Ainda mo perguntas, mãe cobarde que só sabes dar a teu filho lições de 
mofineza ? Eu não quero meu filho para chorão. 
— Mas eu também não o quero para assassino. 
— Hei de ensiná-lo a ser valente. Há de aprender comigo jogar a faca, a não 
desmaiar diante de sangue como desmaias tu, mulher sem espírito que não tens 
animo para matar um bacorinho. Não sabes que o assassino é respeitado e temido ? 
Queres que não haja quem faça caso de teu filho ? 
— Mas eu não quero que meu coelhinho morra, papai. 
— Que estás tu a dizer, mal-ensinado ? 
O menino quis chorar, com o que se mostrou escandalizado por extremo o 
tirano da família, que, para o fazer chorar com gosto, segundo disse, lhe deu três ou 
quatro cipoadas fortes, depois das quais José mal se pôde ter em pé. Joana, não 
podendo ver o filho apanhar sem razão, partiu para Joaquim, a fim de lhe tirar das 
mãos o pequeno, mas Joaquim repeliu-a com tanta força, que a fez cair por terra; e 
voltando-se imediatamente para José, perguntou-lhe com gesto e voz de aterrar: 

— Então, mata-se ou não se mata o coelho, José ? 
— Mata-se, papai — respondeu o pequeno com as faces banhadas de 
lágrimas ainda. 
— Não quero que chores. Quem é homem não chora; quem é homem faz 
chorar. 
E dando o andar para a casa, com o filho pela mão: 

— Vais ver agora de que modo morre o coelho — disse com expressão que 
se não pode descrever. 

— Meus Deus, meu Deus ! Que desgraça esta, que desgraça a minha! — 
exclamou Joana quando os viu desaparecer na volta do caminho. 

Os corações maternais tem inspirações angélicas e grandes. Joana, que não 
se havia levantado ainda, pôs-se de joelhos no meio da natureza verde e esplêndida 
que a tinha recebido em sua queda, e, elevando os olhos úmidos e tristes ao céu 
profundo e belo que se estendia a perder de vista acima de sua cabeça, enviou a 
Deus esta súplica cheia de amor e filosofia: 

— Senhor, Senhor, protegei meu filho. Inspirai-lhe sentimentos brandos por 
quem sois, meu Deus. Que ele seja bom, e que vos conheça e tema. 
Não pode ir adiante a desventurada mãe cuja voz fora embargada por 
lágrimas violentas que lhe saltaram dos olhos contra o seu querer. Mas de repente, 
como se tornasse em si de um sonho penoso e achasse de novo todas as suas 
idéias um instante obliteradas pela intensa dor, Joana fez em pedaços a tábua, e 
entupiu com pedras e maravalhas  o buraco que com aquela armava ciladas aos 
inofensivos filhos do deserto. Tendo destruído a armadilha, tomou o caminho de 
casa na qual se lhe deparou um espetáculo em que ela nunca imaginara e que por 
um triz não abateu de todo o seu cansado espírito. Uma forca havia sido levantada 
com ramos verdes no terreiro em sua ausência, e dela pendia por uma embira o 
coelho, minutos atrás cheio de vida, agora morto, o pescoço distendido, os belos 
olhos empanados. José não só não chorava mas até se mostrava indiferente ao 
espetáculo repugnante, como se já não fosse o mesmo que poucos instantes antes 
havia manifestado os mais generosos sentimentos a favor da vítima. O reverso deste 
recente passado representava-se agora aos olhos de Joana: o pequeno prorrompia 
em aplausos a cada balanço que dava o corpo inanimado do animal que Joaquim, 
por entre chutas grosseiras e de mau gosto, impelia de quando em quando com a 
mão ensangüentada e torpe. 

Joana não pôde conter, diante da cena final daquela tragédia infame, a sua 
justa e bela indignação. 

— Homem cruel, onde aprendestes esta lição indigna que acabas de ensinar 
a teu filho ? 
A esta angélica exprobração Joaquim respondeu com uma gargalhada de 
desprezo que retumbou por toda a vizinhança. 

— Quem matou o coelho, José ? — perguntou Joana ao menino, para o qual 
tinha a autoridade que não podia exercitar sobre o principal responsável do estranho 
delito. 
— Fui eu, mamãe. Papai mandou que eu matasse, e por isso matei o coelho. 
Joana volveu novamente os olhos entristecidos a Joaquim, o qual não se 
demorou a retorquir com a imprudência que o caracterizava: 

— Fui eu mesmo que o mandei. Que tens com isso ? Quererás tomar-me 
contas, Joana ? 
— Eu não, Deus sim; Deus há de tomar-tas um dia, homem sem coração. 

— Deus ! Quem é Deus, toleirona ? Quem já o viu? Quem já ouviu a sua voz? 
Estás caducando, mulher. 
Sem ter para o seu tirano outra resposta que o silencio, Joana resignou-se a 
dar-lha, e foi cair sobre um tamborete, com o rosto inundado novamente de lágrimas. 

Tempos depois entrou José em casa gritando e chorando. Foi o caso, que, 
tendo ele querido tomar de um menino do vizinho uma xícara de arroz doce, o 
menino, que tinha mais idade, mais corpo e mais forca do que ele, não só não se 
deixou esbulhar de sua propriedade, mas até bateu em José com vontade, sem 
contudo se sair ileso, porque José lhe pôs a cara em sangue com as unhas, e lhe 
arrancou da coxa um pedaço de carne com os dentes. 

Sabendo do acontecido, Joaquim fez de uma folha de facão velho um 
punhalzinho e, chamando o filho, entregou-lhe a nova arma, mediante este discurso: 

— Sabes para que fim te dou este ferro José ? É para não sofreres desaforo 
de ninguém, seja menino ou menina, homem ou mulher, velho ou moço, branco ou 
preto o que te ofender. Se alguma vez entrares em casa, como entraste hoje, 
apanhado, chorando, ouve bem o que te estou dizendo, dou-te uma surra de tirar 
pele e cabelo, e corto-te uma orelha para ficares assinalado. Toma o ferro. 
José tinha então seus nove para dez anos, e ouviu a advertência do pai com 
toda atenção, prometendo cumprir fielmente as suas ordens. 

Joana, que tudo presenciara, e de certo tempo atrás adotara o alvitre de não 
contrariar abertamente o marido para o não incitar a maiores excessos, aguardou a 
sua ausência, e quando foi tempo pregou a José as lições de moral que seguem: 

— Meu filho, Deus, nosso pai, que está no céu, não pode receber bem os 
feios atos a que teu pai, que está na terra, te aconselhou há pouco. Para os mais 
velhos não tenhas nunca expressões descorteses e muito menos ações ofensivas; 
ainda que seja um negro, deves ter, embora não sejas de sua qualidade, respeito 
pela idade dele. Seja a tua única vingança, quando alguém te ofender, pacifica 
retirada; não há vingança maior, nem mais digna: procedendo deste modo, terás, 
meu filho, agradado a Deus e dado aos homens mais bonito exemplo do que se 
houveres preferido, em resposta, palavras injuriosas ou insultuosas contra o teu 
ofensor. As armas só servem para excitar à prática de crimes; os homens bons não 
trazem consigo armas. Dá-me o punhal, de que teu pai te fez presente e recebe em 
troca este rosário que te dou para tua consolação nas tribulações. Reza por estas 
contas, e encomenda-te todas as manhãs e todas as noites a Deus. Assim 
praticando, virá a ser estimado de todos e darás prazer a tua mãe que morreria de 
dor e vergonha se te visse apartado do caminho do bem. 
De que serviram porém estes bons conselhos, se Joaquim, vendo mais tarde 

o rosário no pescoço do filho, fez em pedaços a enfiadura, espalhou as contas pelo 
chão, e chamou a mulher feiticeira ? 
Não ficou aí a manifestação do seu desagrado. Voltando-se para Joana: 

— Se continuares a fazer asneiras como esta — disse ele — , acabas 
queimada, bruxa; e eu não respondo pelo que venha a praticar para impedir que 
continues a contrariar as minhas determinações. Quem avisa amigo é. 

O pároco, a cujo conhecimento chegou, por portas travessas, o escândalo, 
mandou chamar Joaquim à sua presença, e lhe disse que se ele repetisse a cena do 
rosário, ou obrasse ato idêntico, seria ele Joaquim quem deveria de morrer 
queimado por crime de heresia. 
Joaquim tornou à casa tão furioso, que puxou pela faca para matar Joana, a quem 
atribuiu o mexerico; esta, porém. não correu nem pediu que a socorressem; 
limitou-se a chorar em silêncio a sua desgraça e a apelar para Deus a quem não 
cessava de encomendar o filho em suas orações. 

Depois de haver esgotado o vocabulário dos epítetos infamantes contra sua 
mulher, e dos convícios imundos contra o vigário, determinou Joaquim de deixar a 
casa para se ir meter com José no oco do mundo, palavras suas. 

Que noite passou Joana ! 

Não houve rogativa, não houve lágrimas que abrandassem o coração do 
mameluco. Desgraçada mãe, que pediste e choraste em vão, em vão como sempre ! 

— Vai só, Joaquim, já que me queres deixar; deixa porém comigo meu filho; 
peço-te esta graça por tudo quanto há sagrado na terra e no céu — disse ao marido 
a infeliz mulher com angelical doçura, momentos antes da partida fatal. 
— Nessa não cai ! eu — replicou Joaquim. — Se José ficasse em tua 
companhia, quando eu voltasse um dia por aqui, achava-o servindo ao vigário, ou, 
pelo menos, feito sacristão. 
José entretanto, como querendo escusar-se às saudades da despedida, 
encaminhou-se para o quintal donde se pôs a olhar para os araçazeiros e goiabeiras 
em que ele foi encontrar novo motivo de pesar com que não contava. Eis que uma 
menina de longos cabelos castanhos, que estava brincando em um dos quintais 
contíguos, foi tirá-lo da sua contemplação. 

— Que está você fazendo, José ? 
— Ora ! Não sabes que vou sair de casa, Luisinha ? 
— Não sabia, não. 
— Pois vou, e não sei quando voltarei. Estou triste. Tenho pena de deixar 
mamãe. 
— E de mim não tem também pena ? — perguntou ela com suave 
ingenuidade. 
— Tenho também, sim; eu estava lembrando-me de você agora mesmo. Olhe, 
Luisinha: se eu algum dia voltar você me quer para seu marido ? 
— Eu lhe quero muito bem, José. Mas não gosto quando você judia com os 
passarinhos e dá pancadas nos meninos. 
— Pois eu lhe digo uma coisa: se algum dia eu chegar aqui de volta, tenha 
logo por certo que não faço mais mal a ninguém. Se pareço mau, Luisinha, não é 
por mim. 
Deste inocente colóquio os veio tirar a voz de Joaquim que chamava por José 
para partirem. Pouco depois o pai e o filho deram as costas à povoação. Joana ficou 
de cama. 

Data desse dia a vida que levaram até o momento de caírem no poder da 
justiça. Não foi ela nada menos do que uma longa série de atentados que 
dificilmente se acreditam. O número destes atentados e as circunstâncias que os 
revestiram, não há quem os saiba com individuação e clareza. Muitos deles foram de 

todo esquecidos, na longa travessa de mais de um século que se conta de sua 
perpetração; e dos que assim se não perderam chegou aos nossos dias uma notícia 
vaga, incompleta e por vezes tão escura, ou tão confusa, que temos lutado com 
grandes dificuldades para, por ela, recompor esta história. 

É que as tradições do crime são menos duradouras que as da virtude. 

Há nisto uma lei salutar da Providência. 

CAPÍTULOV 
Luisinha era uma menina branca, órfã, de índole benigna e de muito bonitos 
modos. Compadecida da pouca sorte da pequena, uma viúva recolheu-a em sua 
casa à conta de filha, e começou logo a ter para ela maternal solicitude. Luisinha era 
digna deste amparo, não só pelos predicados sobreditos, senão também pelos seus 
encantos naturais que a todos cativavam com justa razão. 

Florida, a viúva, deu à menina a educação que então se usava e que, com 
poucas modificações, e alguns acrescentamentos, ainda hoje se usa no campo. 
Assim, não se demorou muito que Luisinha soube fiar, coser costurar chãs, fazer 
bicos e rendas, respeitar os mais velhos e encomendar-se a Deus. Como era dotada 
de excelente coração, dentro em pouco era estimada por todos do lugar, e até pelos 
comboieiros e boiadeiros que se arranchavam no povoado para deixar passar a 
força do sol do meio-dia, ou aí pernoitarem quando não podiam, ainda com ar de 
dia, romper a mata onde se açoitavam negros fugidos e malfeitores. 

A mata tinha mais de légua de comprido, e ninguém lhe sabia os 
esconderijos. 

Quando se divulgou que Joaquim havia deixado a mulher, todos, a uma voz, 
logo prognosticaram que ele ia estabelecer dentro da mata virgem o seu novo 
domicilio. A vista da sua má índole de todos conhecida, houve quem assegurasse 
que ele estava de mãos dadas com os facinorosos de Pernambuco, da Paraíba e do 
Rio Grande do Norte, que ali se homiziavam. Muitos destes eram conhecidos por 
seus nomes e pessoas, e uma vez por outra faziam sortidas sobre os povoados, 
saqueavam as vendas, perpetravam mil desatinos, e escapavam sempre à ação da 
justiça, ineficaz naquele tempo, como ainda o é hoje a nossa polícia nos povoados 
longínquos, para não dizermos nas próprias capitais segundo sabemos. 

A voz do povo não era senão o eco da verdade. 

Não se meteu muito tempo que crimes de nova espécie, revestidos de 
circunstâncias que revelaram a maior perversidade de parte dos delinqüente, vieram 
a atestar que os negros arraiais estabelecidos no centro da espessura haviam feito 
novas aquisições que primavam, nas ciladas, no manejo das armas, na firmeza das 
execuções. 

A princípio não se soube a quem atribuir o sangue novo levado às veias dos 
grupos dos criminosos aí asilados, os quais bem que numerosos, nunca 
manifestaram a audácia, a ferocidade inaudita que surpreendiam e aterravam agora 
as populações. Para maior confusão destas, tinha sido visto mais de uma vez o 
Joaquim, ora de companhia com o filho, ora cada um sozinho, montado no seu 
cavalo, vendendo legumes, macaxeras, farinha, açúcar pelas povoações, e fazendo 
compras no Recife; o que deixava, pelo menos, supor que eles se davam ao 
trabalho da lavoura, e passavam a vida honestamente à custa do suor de seu rosto. 
Mas em menos de dois anos não se pôde mais pôr em dúvida que fossem 

consenhores dos vastos e virgens domínios, onde figuravam talvez como os 
primeiros e mais respeitados de todos os outros conquistadores, seus iguais. 

Algumas vítimas que tinham conseguido, por felicidade ou acaso, escapar 
com vida das garras dos feros algozes, deixando-lhes unicamente dinheiro, fazendas 
ou gêneros, declaravam que o mais audaz e o mais terrível dentre eles era um 
jovem de cabelos tão crescidos que lhe batiam nos ombros, assemelhando-se aos 
de uma dama. Outros diziam que tinham visto por muitas vezes o Joaquim na mata 
dos salteadores, e que na pessoa do jovem dos cabelos compridos ou do Cabeleira, 
segundo começaram logo de chamá-lo, haviam reconhecido seu filho José Gomes. 

Notou-se também uma espécie de moderação, ou de suspensão de 
hostilidades, ou ao menos de cessação de crueldade nestas, de parte dos 
salteadores em certas quadras do ano, durante as quais não figuravam nos 
acometimentos nem o Cabeleira nem seu pai. Daí se inferiu, com todo o 
fundamento, que os dois matadores não limitavam as suas correrias àquelas 
redondezas, mas, que pelo contrário, deixando os seus esconderijos, visitavam 
novos termos, percorriam outros lugares, como os selvagens mudam de região 
quando, na que preferiram para a sua transitória residência, não encontram mais 
com que alimentar a sua indolência e bárbara voracidade. 

Esta conjuntura foi dentro de pouco tempo confirmada pelos clamores que se 
levantaram nas freguesias e termos vizinhos, e nos lugares remotos aonde o 
Cabeleira e seu pai foram levar o assombro e o terror de que já tinham enchido a 
província natal. As pacíficas ribeiras do rio Paraíba e do rio Grande do Norte, os 
engenhos, povoações e vilas das duas províncias, que trazem os nomes destes dois 
grandes rios, começaram a pagar, como as ribeiras do Capibaribe, e as 
propriedades rurais e os pontos populosos de Pernambuco, o terrível imposto a que 
por mais de uma vez nos temos referido no correr desta narrativa. Os bandos dos 
salteadores escolheram para centros das suas operações as matas próximas dos 
rios, as catingas pegadas aos caminhos donde podiam facilmente espreitar e 
acometer a seu salvo os inofensivos viajantes que, com o fruto do trabalho honesto 
e da indústria esforçada, deixaram muitas vezes nessas medonhas solidões o seu 
sangue, a sua própria vida. 

Cresceram a par a idade de Luisinha e o nome odioso do Cabeleira, nome 
que, principiando como um boato ou uma dúvida, se foi de dia em dia condensando 
e se constituiu afinal uma fama que ecoou, com os uivos das feras carniceiras do sul 
ao norte, do sertão ao litoral, engrossando sempre com as novas façanhas, como 
um fraco regato acrescenta o volume das águas e se faz rio caudal com os subsídios 
que cada dia recebe em sua longa e demorada passagem pelo deserto. 

Do fundo da obscuridade, que envolvia a sua existência, a menina 
acompanhou com os olhos inundados de lágrimas as fases sucessivas que 
atravessou esse nome destinado a ter uma página enlutada na história da pátria. E 
que bem dentro no seu coração estava a imagem do companheiro de infância a 
quem ela nunca pôde esquecer, ainda quando esta imagem lhe aparecia, como 
tantas vezes aconteceu, envolta em uma nuvem de sangue, e acompanhada de 
uníssonas maldições. 

A notícia de um novo atentado cometido pelo moço que por uma lei natural da 
imaginação sempre se lhe representava com as feições do menino de outrora, 
Luisinha sentia no coração uma dor semelhante à que produz a dentada de uma 
serpente. 

No terço, que se rezava de noite em casa de Florinda; na missão que o 
coadjutor celebrava de madrugada: em qualquer ocasião própria para elevar o 

pensamento às regiões onde flui a eterna fonte das consolações em cujas águas se 
retemperam das dores da vida os espíritos resignados e crentes, a pobre moça tinha 
sempre uma oração para que Deus abrandasse a natureza de José e o tornasse, 
pela contrição e pela emenda, digno do perdão da sociedade. Ela não podia crer 
que, tendo sido esta tantas vezes indulgente para outros criminosos, fosse 
inexorável para o mancebo que por algum tempo andara apartado do caminho do 
dever. Pobre, ingênua e crédula criança ! 

Mal sabia que, para grande lição da sociedade do futuro, estava escrito que o 
cometa que assim abrasava a terra percorreria a vastíssima órbita que a Providência 
lhe traçara, e se afundaria nos espaços, não entre refulgentes auroras, mas dentro 
de profundas e medonhas escuridões. 

Uma tarde Luisinha foi buscar água no rio Tapacurá, que banha a cidade da 
Vitória, então povoação de Santo Antão, à qual pertencia Glória de Goitá donde era 
natural o Cabeleira. Santo Antão distingue-se na história pernambucana pela 
circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no qual se verificou em 3 
de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portuguesa contra o domínio 
holandês, e exercitou direta e decisiva influência no futuro político, comercial, 
industrial e religioso do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas 
de fogo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração 
deste acontecimento, uma lei provincial de B de maio de 1843 erigiu a antiga 
povoação em cidade a que chamou da Vitoria como acima se vê. 

O Tapacurá, que de inverno tem enchentes formidáveis, estava então cortado 
pelo rigor da seca de que tratamos no capítulo anterior. No seu largo leito viam-se 
unicamente, a espaços como de ordinário, pequenos poços onde os habitantes mal 
achavam água para o consumo diário. 

Luisinha, não querendo levar para a casa água chafurdada, passou pelos 
primeiros poços, já muito remexidos, e foi encher a sua vasilha em um que distava 
pouco menos de quarto de légua da povoação. 

O poço ficava à beira de um capão de mato. De um lado o terreno elevava-se 
gradualmente, e acidentava-se mais adiante, formando ziguezagues quase 
inacessíveis e esconderijos escuros, a que a espessura das árvores dava um 
aspecto medonho. Do lado oposto a margem plana, igual e descampada, formava 
com a banda fronteira um admirável contraste. 

Quando Luisinha, da areia do rio onde se sentara a descansar, se dispunha a 
levantar-se para tornar à casa, deu com os olhos em um homem que da borda do 
mato a observava em silêncio com tal interesse que parecia querer atraí-la a si com 
a vista. 

Sem demora correu ela ao pote, mas já foi tarde. Formando um pulo do outro 
lado do rio onde estava, o desconhecido veio cair no mesmo instante entre ela e a 
vasilha, sem perder, no rápido vôo, uma só das armas com que se achava 
apercebido. 

— Em vão, meu bem, pretendes fugir-me. Antes que o diabo esfregasse um 
olho, eis-me aqui ao pé de ti, disposto a não te deixar ir embora senão por minha 
livre vontade. 
O sítio era inteiramente deserto, e as trevas da noite não tardavam a envolver 
de todo a natureza. 

Luisinha, lançando os olhos pela margem afora, não viu viva alma. Teve 
então tamanho medo, que involuntariamente caiu sentada aos pés do terrível 

desconhecido. Lembrou-se de gritar por socorro, mas logo viu que seria inútil esta 
tentativa, visto que as suas vozes se perderiam no vasto ermo onde unicamente 
ecoava o coaxar dos sapos e das rãs, o silvo das cobras, o canto agoureiro dos 
bacuraus. 

— Meu Deus ! — exclamou ela. — Não haverá um cristão que me valha nesta 
aflição ? 
— Ninguém, ninguém te valerá, bonita rapariga — respondeu o 
desconhecido, levantando-a por um braço e como querendo arrastá-la na direção da 
língua de terreno por onde se podia ir, a pé enxuto, à margem fronteira. 
— Mas, meu senhor — tornou Luisinha achando em si mesma coragem de 
que nunca se julgara capaz — , por tudo quanto é sagrado lhe peço que me deixe ir 
embora. É quase de noite, e, se me demorar mais tempo aqui, arrisco-me a 
encontrar algum malfeitor que me ofenda no caminho. 
— Queres maior malfeitor do que eu ? 
— Vosmecê não é um malfeitor. Vosmecê veio caçar por estas bandas, e, 
como me encontrou neste ermo, está-me metendo medo para divertir-se à minha 
custa. E creio até que havia de defender-me se alguém quisesse fazer-me mal. 
— Certamente. Nenhum gavião seria capaz de tirar-me das unhas a minha 
formosa juruti. Ora, vem comigo; não tenhas medo. Atravessamos por este limpo, 
ganhamos a capoeira, subimos pela aba da serra e... 
— Deus me livre ! — exclamou Luisinha assaltada por novos terrores. 
— Olhe: se você não quiser vir por bem, vem por mal — disse o 
desconhecido. 
— Por mal ? E onde está Deus ? — interrogou Luisinha, elevando todo o seu 
espírito aos pés daquele que está em toda parte para acudir aos atribulados que o 
invocam com sincera confiança. —Nem por mal nem por bem. Eu não vou com 
vosmecê ainda que me custe a própria vida. Eu sei que Deus me está ouvindo de 
dentro deste mato, de cima deste céu. Ele há de lembrar-se de mim. 
Diante da firmeza na realidade admirável, com que a frágil moça respondeu à 
sua ameaça, o malfeitor sobresteve involuntariamente. Tornando logo em si, porém, 
continuou com certo disfarce de mau anúncio: 

— Ora, menina, deixe-se de asneiras e vamos para diante enquanto o caso 
não fica mais sério. Se você é bonita, eu também não sou feio; assim, podemos ter 
filhos galantes como os têm os passarinhos no seio da solidão. 
—Meu Deus, meu Deus, compadecei-vos de mim enquanto é tempo! — 
exclamou ela quase vencida de terror. 

Então, à luz crepuscular que enchia a planície como uma neblina, lobrigou 
Luisinha um vulto que se dirigia para o lugar onde ela se achava com o malfeitor. 
Não foi preciso mais para que recrudescesse o seu valor que a ia desamparando. 

— Cuidas que não vejo quem ali vem ? — perguntou o desconhecido, 
apontando o volto que, como vinha pelo rasto da moça, com pouco mais estaria com 
eles. — Eu podia agora mesmo meter-me contigo pelo mato adentro. Se tentasses 
gritar, tapava-te a boca, e ninguém saberia o teu fim. Mas quero ficar, para em vez 
de uma, levar em minha companhia duas mulheres para o mato, onde há grande 
necessidade desta fazenda. 

— Estou aqui, minha mãe, estou aqui — gritou Luísa quase ébria de prazer 
pela sua salvação, que teve por indubitável desde que na mulher recém-aparecida 
reconheceu Florinda. 
O malfeitor, porém, seguro de seu poder, nem se moveu, nem se alterou 
sequer; e para dar testemunho irrecusável de que não fazia caso do inesperado 
adjutório, chasqueou de Florinda, por se apresentar armada com um cacete e um 
facão. 

Querendo Luisinha correr ao encontro da viúva que, tendo ouvido as palavras 
da rapariga, fora em seu socorro com gestos e meneios de louca, o desconhecido, 
cujos olhos cobriram de repente com uma expressão indescritível a pobre vítima, 
não lhe consentiu arredar o pé de junto de si. 

— Não irás — disse rudemente, assentando a mão sobre o braço da moça 
com tanta força e violência, que a ela se afigurou que ele lhe tinha dado um golpe 
com o coice da arma. 
Florinda passava por ser a mulher mais forte de toda aquela ribeira. 

Ela derrubava grossas árvores a machado, abria roçados por empreitada, 
cortava na mata virgem lenha que vendia na povoação, e até tarrafava nas lagoas 
como um hábil pescador. Não se distinguia só nos serviços do campo, mas também 
em fazer excelentes tapiocas e ótimo arroz-doce, que eram as delícias dos matutos 
e sertanejos nas feiras. 

Era curiboca, reforçada, não feia e de boa estatura. Acreditava na existência 
do diabo, no inferno e nas penas eternas como ainda hoje acredita a gente do 
campo e uma grande parte dos habitantes das cidades; mas em compensação tinha 
uma fé viva e fervorosa em Deus, e era de costumes irrepreensíveis, fé e costumes 
que desgraçadamente faltam a muitos dos que têm hoje aquela primeira crença. 

Tendo ficado viúva, sem filhos, na flor dos anos, não se quis casar segunda 
vez, e nunca ninguém achou motivo de por em dúvida a sua honestidade. A 
Luisinha, a quem pouco depois de ter casado, tomou sob sua proteção, como já 
referimos, consagrava ela todos os seus afetos, e nela fazia consistir o seu orgulho, 

o seu prazer e a sua felicidade. 
Não sendo de meias medidas quando se julgava ofendida, Florinda botou-se 
com todo o ímpeto, que trazia, ao desconhecido, o qual, sem soltar Luisinha, que se 
torcia ao aperto da mão de ferro que a segurava, rebateu o golpe do facão de 
Florinda com o cano do bacamarte. Com o choque o facão partiu-se, e a folha inteira 
foi cair dentro do poço, ficando na mão da curiboca o cabo imprestável da infame 
arma. 

Florinda era prudente. Tanto que se viu desarmada, sobresteve, dominou a 
sua justa indignação, e, com voz masculina que lhe dera a natureza, assim falou ao 
malfeitor: 

— Que quer vosmecê fazer com minha filha ? 
— Quero levá-la comigo para meu divertimento. Se tens força para impedires 
o meu intento, é agora a ocasião. 
Ouvindo estas acerbas expressões, Florinda, que com a vista medira de cima 
a baixo o seu adversário, meteu-lhe o cacete com todo o animo que lhe dava sua 
vida sem mancha, e a justa defesa da filha, seu único tesouro, de todos acatado e 

querido. No mesmo instante o ar sibilou, e ouviu-se o som de uma pancada contra 
um corpo sonoro. Um grito, antes urro medonho, ecoou pela vasta solidão, e uma 
massa, que se parecia, na forma e no peso, com um tronco de angico anoso, 
tombou sobre a areia. O desconhecido acabava de obrar uma ação vil. Com a 
coronha do bacamarte tirara os sentidos àquela digna mulher, que o encarara sem 
medo. 

Vendo sua mãe cair desfalecida, Luisinha quis correr em seu amparo, mas 
não lho permitiu a mão do malfeitor que a puxou para trás com força hercúlea. 

— Ah ! não conheceste o Cabeleira, cascavel ? — acrescentou ele com os 
olhos fitos em Florinda. — Vêm meter-se na boca da onça, e depois dizem que a 
onça é cruel. 
Aos ouvidos de Luisinha aquele nome passou como uma chama elétrica, que 
lhe deu forças para volver à vida. 

— Cabeleira ! — repetiu ela. 
Só então viu os longos cabelos que caíam em ondas por debaixo das abas do 
chapéu de palha sobre os ombros do assassino. 

— De que te admiras ? Não sabes que o Cabeleira está em toda parte onde 
não o esperam ? Vem comigo. 
E sem mais contemplação, o matador arrastou a menina contra a vontade, a 
resistência, os sobre-humanos esforços que esta lhe opunha, por junto do corpo de 
Florinda, e seguiu em busca da margem fronteira, onde a noite era já fechada, e o 
aspecto do sítio pavoroso. 

— Agora te conheço, José malvado — disse a moça. — Mata-me também, já 
me mataste minha mãe que nunca te ofendeu. 
— Ah, conheceste afinal o Cabeleira ? 
— Tanto me conheceste tu, desgraçado! 
— Que queres dizer com estas palavras ? — perguntou o bandido. 
— Olha-me bem. Até de Luísa te esqueceste ! Assassino, eu te perdôo a 
morte: mata-me. 
Tinham chegado à beira do capão de mato. O Cabeleira estacou. O que 
acabava de ouvir tê-lo-ia prostrado mais depressa do que um golpe igual ao que 
descarregara, havia pouco, sobre uma das fontes de Florinda, se no mesmo instante 
não lhe houvesse chegado aos ouvidos um assobio agudo, sinal de extrema aflição 
no couto próximo. 

— Ah ! era você ? Perdoe-me, Luisinha. Eu não a esqueci. Perdoe-me. Eu 
não sabia que era você — disse então, com brandura, soltando a moça sem mais 
demora. 
— Só Deus te poderá perdoar, assassino de minha mãe, — respondeu, 
abafada em lágrimas e soluços, aquela que se considerava órfã e desvalida pela 
segunda vez. 

— Perdoe-me, Luisinha. Nem eu a posso levar comigo, nem posso 
demorar-me por mais tempo. O meu rancho está em perigo, e os camaradas 
chamam-me em socorro deles. Mas espere por mim um pouco debaixo deste 
juazeiro, que eu quero que você me ouça. Eu volto já. 
E, sem perder mais um momento, desapareceu dos olhos de Luísa como uma 
vã sombra. 

CAPÍTULO VI 
Não se pode escrever o abalo que experimentou Cabeleira ao reconhecer 
Luísa, menina até aquele momento em sua imaginação, moça de então por diante 
aos seus olhos deslumbrados do esplendor daquela beleza correta, natural, irritada 
e crente. 

Pela primeira vez depois de tantos anos, o músculo endurecido que ele trazia 
no peito dobrou 
se a uma impressão profunda, a uma força irresistível e fatal, como a cera se dobra 
ao calor do lume. 

A medida que se internava na espessura ia caindo em si, e mais difícil de 
transpor se lhe ia tornando a via dolorosa por onde nesse momento arrastava os pôs 
menos pesados que sua cabeça cheia de encontrados pensamentos. 

Pouco a pouco o passado se lhe foi desenhando na tela, ao princípio escura, 
depois diáfana e resplandecente da imaginação vivamente excitada pela violenta 
comoção. Por último todas as cenas infantis, tão afastadas, que poderiam considerar 
se seno de todo desvanecidas, ao menos vagas, confusas e de impossível 
resurreição, reapareceram aos seus olhos com o vigor de outrora senão mais vivas e 
animadas que dantes. 

Luísa, representou lhe sorrindo e brincando nas campinas, por junto dos 
açudes, à sombra dos juazeiros. Era a mesma menina meiga e amável, com quem 
ele folgara à beira dos poços e valados, e para quem tantas vezes apanhara 
camarões nas enxurradas. 

O bandido lembrou se de que uma quadra tinha havido em sua vida, na qual 
ele só cuidava em armar arapucas por entre os beirões do roçado para pegar juritis, 
em abrir fojos debaixo das moitas, ou armar quixós e mundéus na capoeira com o 
fim de apanhar preás para a menina. 

A conhecida cena do coelho pendurado da forca de ramos, obra de Joaquim, 
se lhe estampou novamente, por natural associação de idéias, na tela do 
pensamento, e veio acrescentar lhe o vexame que lhe oprimia o coração. 

Viu depois Luísa encostada na cerca do quintal, ao pé de uma goiabeira, os 
cabelos soltos, os pezinhos descalços. 

Esta última visão recordava lhe a cena da despedida que o leitor conhece. 
José estava tão vivamente excitado, que lhe pareceu ouvir as vozes, as queixas, as 
rogativas, os prantos de Joana, e as recusas, os remoques, as asperezas, o 
desprezo que para ela tivera Joaquim na manhã fatal, em que o pequeno fora 
arrancado dos braços de sua mãe quase alucinada pela dor da separação. Pareceu 
lhe ouvir as palavras de Luísa: "Quero lhe muito bem, mas não gosto quando você 
judia com os passarinhos, e tenho medo de sua faca". Pareceu lhe escutar 
distintamente o som das suas próprias expressões: "Quando eu chegar de volta, não 
maltratarei mais os animais". 

E a menina a quem tanto amara, a quem nunca esquecera, e cuja imagem 
indecisa e vaporosa os olhos do seu pensamento tinham por mais de uma vez 
surpreendido junto de si testemunhando a perpetração de algum crime, essa menina 
crescera, pusera se moça, chegara à idade em que todos tem no critério natural um 
corpo de leis e na consciência um juiz para julgar as suas e as alheias ações. 

— Que juízo ficaria fazendo de mim Luisinha ? — perguntou de si para si o 
Cabeleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéias. — Ah ! que pode ela 
pensar de mim senão que sou um assassino ? 
Luísa tinha o, de feito, nomeado por esta palavra, havia poucos instantes, 
entre as lágrimas que lhe arrancara o desespero. Era pois certo, e o bandido bem o 
compreendia, que o abismo que já na meninice de ambos os separava, longe de se 
ter arrasado, se tornara mais fundo com o correr dos anos. Agora ele não judiava só 
com os animais como em outro tempo; ele saqueava povoações e matava gente; e 
desta verdade era irrecusável prova o que acabara de praticar com Florinda. 

Se até aquele momento Luisinha lhe votara afeição ou se condoera de sua 
pouca sorte, era natural supor que estes sentimentos se tivessem modificado, se 
não de todo extinguido, depois do último acontecimento. A afeição deveria ter 
sucedido o desprezo, à pena o ódio. 

Não eram outras as idéias que tumultuavam na cabeça de Cabeleira. Estas 
idéias produziram no seu animo tão profunda impressão que ele sentiu lágrimas nos 
olhos, ele, o grande assassino que sempre se mostrara insensível ao longo pranto 
que por toda parte fazia correr. 

Sem se poder governar, achou se de repente voltado para o rio. Seus pés, 
primeiro que sua vontade, o queriam guiar de novo ao lugar onde tinha achado os 
motivos para tamanha transformação. Eis que novo assobio, precedido da 
detonação de alguns tiros, rompeu os ares e veio diverti-lo destas preocupações. O 
esconderijo, não havia de duvidar, precisava de seu socorro. Então uma nuvem de 
sangue envolveu a vista do infeliz mancebo. O passado caiu lhe novamente em 
pedaços aos pés. O espírito de vingança fustigou o com veemência no coração, 
teatro de encontradas e profundas paixões. Cabeleira volveu a ser outra vez fera, e 
rápido deslizou se como uma cobra por entre as árvores e por debaixo da folhagem. 

Com a mata que dava asilo aos malfeitores confinavam as terras onde 
Liberato, irmão de Gabriel, tinha uma engenhoca. 

A princípio Liberato viveu muito satisfeito em suas terras. Tendo se, porém, 
anos depois formado o couto ali junto, foi se ele desgostando a ponto que só por não 
ter outro remédio continuou a morar nelas. 

As terras eram muito férteis, e a sua situação não podia ser melhor do que 
era; mas, pela péssima vizinhança, estavam, como nenhumas, expostas em todos 
os sentidos a serem usufruídas, como eram constantemente, pelos malfeitores, o 
que as havia inteiramente depreciado. 

Na realidade quem menos se gozava das suas plantações era Liberato, dono 
delas. A macaxera mais enxuta, a melancia mais madura, o melhor milho verde, o 
feijão de melhor qualidade eram para a boca ou antes, ao dizer popular, para o papo 
dos pesados vizinhos. A galinha gorda anoitecia no poleiro mas não amanhecia no 
terreiro, não porque a raposa a tivesse pegado, mas porque os raposos a tinham 
tirado para a sua panela, que estava quase sempre fervendo dentro da mata virgem. 

A vaca leiteira, o quartau carnudo desaparecia do pasto quando menos 
pensava o crioulo, que os ia recomprar em segunda mão, se, como quase sempre 

acontecia, os animais furtados eram da sua particular estimação; não escapavam da 
rapacidade dos malfeitores as próprias bestas do serviço da engenhoca. Dentro dos 
canaviais apareciam vastas camarinhas, obra de ladrões; as canas passavam para a 
mata aos feixes. Enfim era uma calamidade aquela gente, era uma desgraça para o 
Liberato, mais do que para nenhum outro, aquela vizinhança. 

Liberato propôs a venda das terras a mais de um morador do lugar, mas 
todos se escusaram a comprá-las. De que valiam elas em realidade, com serem tão 
boas, estando sujeitas, como estavam, àquela omnímoda servidão ? Não tendo para 
onde ir, nem outro algum recurso, resignou se Liberato à sua sorte, e botou para 
Deus, juiz supremo, que dá provimento a todos os recursos interpostos com justo 
fundamento. Era de índole pacífica, tinha mulher e filhos, não queria rixas com 
ninguém, e muito menos as queria com matadores de profissão. 

Quando lhe aconselhavam em família, a mulher, ou os filhos, para que 
reagisse contra os ladrões, ele respondia sempre com estas palavras, ou com outras 
equivalentes: 

— Deus me livre. Se os brancos e o rei não podem com eles, eu, que sou 
negro, é que hei de poder ? Vamos passando assim mesmo conforme Deus nos 
ajudar. Pode se dizer que vivo trabalhando para eles. Paciência! Um dia isto há de 
ter fim, ou com a vida, ou com a morte. Será quando Deus quiser. 
Liberato não procedia deste modo por fraqueza, mas por boníssimo 
discernimento. Ele era até valente por origem. Vinha a ser neto ou bisneto de 
Henrique Dias, com cuja fama se gloriava. Do ilustre guerreiro lhe vinham por 
sucessão as terras que possuía nas proximidades do Monte das Tabocas, onde o 
negro herói conquistara brilho inescurecível para seu nome que ficou sendo uma das 
primeiras glórias da pátria. Mas bem estava vendo que não podia avantajar se a 
quadrilhas de ladrões e assassinos afeitos à prática de toda sorte de depredações. 

Havia já muitos anos que ele vivia sem ter neste assunto outras idéias. Pouco 
a pouco se habituara a repartir o seu pelos ladrões. Esta partilha ele a considerava 
tão forçada, tão fatal, que, sempre que abria um novo roçado, ou encoivarava terras 
para algum novo partido de canas, dizia, entre gracejo e resignação: 

— E preciso fazer mais acrescentando para que os meus vizinhos levem tudo, 
e eu não venha a ficar sem ter com que remir as minhas necessidades. 
Estava Liberato um dia consertando uns covos para os meter em um poço 
onde os camarões saltavam em cardumes, quando, banhada em pranto, carpindo a 
sua desgraça lhe entrou pela porta a mulher de Gabriel. 

— Mataram meu marido, Liberato. Estou viúva, e você já não tem seu irmão. 
— Quem lhe contou isso, Aninha ? — perguntou o negro quase esmagado da 
dor que lhe trouxe a repentina e fúnebre nova. — Não é possível. Há de ser mentira. 
Quem havia de matar Gabriel, que nunca se importou com os outros ? 
— Desgraçadamente não é mentira, não. Eu soube de tudo. Foi o Cabeleira 
quem o matou. E o malvado aí vem com o pai, roubando e esfaqueando a quem 
encontram. Previna se, Liberato, que eles já devem estar na mata. Ai de mim ! Que 
desgraça, meu Deus ! Que será de mim sem Gabriel que era tão bom marido ?! 

— E onde estou eu, Aninha ? Não chore. Eu ainda não creio neste conto. Mas 
se suceder a desgraça que você diz, nem por isso deverá desesperar, que os 
homens ainda não se acabaram na terra. 
Seguiu se um longo pranto na casa do crioulo. Ao carpir de Aninha vieram 
juntar se as lamentações de Rosalina, mulher de Liberato e irmão da viúva. 

Liberato passou três noites sem pregar os olhos, pensando consigo só. A dor 
acerba a que ele, sem dar amostras, talvez por prudência, mal tinha podido resistir 
com sobre humano esforço, veio despertar os longos ressentimentos e antigos 
desgostos que jaziam como arrefecidos no fundo do seu coração. Aqueles que 
cotidianamente o despojavam dos produtos do seu trabalho e da economia tinham 
lhe roubado uma vida preciosa. Quem lhe podia assegurar que eles não viessem 
mais tarde a tomar lhe a mulher, a tirar lhe a filha, a arrancar lhe a própria vida se ele 
se opusesse à sua vontade criminosa ? 

Liberato refletiu maduramente sobre este grande assunto, e a cabo de três 
dias tomou a resolução que lhe pareceu melhor. Não se contava na distancia de 
três, ou quatro, ou dez, vinte léguas da povoação um só proprietário, lavrador, 
foreiro, almocreve ou morador que não tivesse queixas dos malfeitores, 
especialmente do Cabeleira que a todos excedia na petulância e fereza. Aqueles a 
quem faltavam motivos de ofensa pessoal tinham razão de sobra para quererem a 
dissolução do couto nas ofensas feitas pelos facinorosos aos parentes e amigos. Só 
uma população cansada de lutas sanguinolentas, e um governo que cuidava menos 
de proteger eficazmente a propriedade e a vida na colônia do que de adquirir 
grossas rendas para a metrópole, e riquezas para si próprio, poderiam sofrer bandos 
de sicários que, assim fortificados ao pé das famílias, roubavam impunemente bens, 
honra e vida. 

Liberato entendeu se com três ou quatro dos vizinhos mais próximos, e 
depois de lhes haver dado parte do golpe de que fora vítima na pessoa de seu 
irmão, propôs lhe coligarem todas suas forças para tentarem a expulsão dos 
malfeitores. Não obstante haver por essa ocasião recordado os danos irreparáveis 
que a cada um desses vizinhos tinham eles ocasionado, não houve um só que 
estivesse pela proposta do negro, tal era o terror de que todos se achavam 
penetrados. 

Nenhum queria arriscar se a pagar com a vida semelhante ousadia 
aconselhada aliás pelo instinto da própria conservação. 

Liberato voltou a casa triste e desanimado, mas não dissuadido de tentar o 
assalto, único meio que se lhe oferecia de vingar se dos assassinos de Gabriel, e 
libertar se do violento imposto que sobre sua fraca fortuna, já muito depauperada, os 
malvados faziam pesar sem tréguas nem piedade. 

Concertou seu plano consigo mesmo debaixo de rigoroso sigilo. Na tarde 
seguinte, com o pretexto de tirar uma abelha e encovar tatus, encaminhou 
se para a mata, acompanhado de seus dois filhos Ricardo e Sebastião, e de seu 
genro Vicente, todos apercebidos com espingardas, facões e chuços. 

Conhecia algumas das veredas que levavam ao covil. Acostumados a verem 
nele uma vítima paciente de que mais tinham que tirar do que temer, não cuidaram 
os malfeitores em ocultar lhe essas veredas. Liberato e os seus embocaram por uma 
delas sem hesitações nem temores, perfeitamente senhores de si e conhecedores 
do terreno onde pisavam. 

Antes de chegarem ao rancho foram pressentidos. A vereda, antes picada 
aberta a machado, era estreita, e passava por um embastido de árvores colossais, 
que formavam natural estacada, impossível de romper. 

Liberato sabia o perigo a que se expunha com este passo. Estava, porém, 
disposto a dar aos malvados uma lição de mestre, ainda que lhe custasse a própria 
vida, desmoralizando, quando outro sucesso não pudesse obter, o fatal valhacouto. 

Ainda bem não tinham chegado ao ponto em que a picada se bifurcava, 
quando ouviram um assobio que repercutiu com estranho som na profunda selva. 

— Ah ! — disse Liberato aos seus — perdemos a diligência. Estão prevenidos 
e esperam por nós. 
Ele não se enganava. Um dos moradores a quem convidara para o assalto, 
pondo se em secreta inteligência com um dos criminosos, delatara por medo a 
intenção de Liberato. Dupla cobardia, tanto mais digna de ser execrada quanto foi 
parte para que viessem a dar se lamentáveis cenas! 

Posto que logo conhecesse que não havia salvação possível para nenhum 
deles, Liberato, não querendo dar o braço a torcer, prosseguiu com firmeza em sua 
marcha como se nada houvesse. 

Pouco adiante, a vereda estava completamente tomada por grossos troncos 
ligados às árvores paralelas por fortíssimos cipós. 

— Estamos encurralados — disse ele com serenidade. — Melhor um pouco; 
havemos de bater nos a faca e a chuço. 
Voltemos, já que não podemos aqui avançar. Cada qual trate de matar para 
não morrer. 

— Não podemos abrir caminho através destes paus ? — perguntou 
Sebastião. 
— De que modo ? E impossível — respondeu Liberato. 
— Só se nós trepássemos, e fôssemos saltando de galho em galho até 
deixarmos atrás de nós a estacada — lembrou Ricardo. 
— Eles nos deixariam fazer isto ? — observou Vicente. 
Mal tinham acabado estas palavras quando uma descarga da trincheira, 
deitando por terra o genro de Liberato, veio anunciar lhes que para eles tudo estava 
acabado. 

Afastarem se da trincheira para ficarem ao abrigo de seus traiçoeiros tiros foi 
a primeira coisa em que todos entenderam. 

— Cobardes ! — exclamou Liberato com raiva concentrada. — Têm gente 
como farinha, e encurralam quatro homens que eles não se animam a bater em 
campo aberto. Onde está a valentia destes ladrões que são satisfeitos com o que me 
furtam, mataram meu irmão para lhe roubarem seu único bem ? 
Depois de se haverem alongado alguns passos mais da trincheira onde reinou 
logo profundo silêncio, perceberam que os inimigos vinham a seu encontro para lhes 
embargar a saída. Achavam se deste modo os assaltantes entre a espada e a 
parede. 

Era medonha a escuridão dentro da mata. 

— Facas em punho, e avancemos — gritou, não obstante, Liberato aos filhos, 
certíssimo de que poucos instantes de vida restavam a todos eles. 
Para dar o exemplo precipitou se, como um raio, contra a mó de malfeitores 
que dificilmente lobrigou a pouca distancia diante de si. Sebastião e Ricardo 
praticaram o mesmo, e dentro em pouco as armas inimigas cruzaram se com fúria 
tal de parte a parte, que delas saltavam chispas, e o som dos seus embates ia 
perder se ao longe no seio da vasta selva. 

Depois de alguns minutos que decorreram em incessante lutar, terceiro 
assobio sibilou por entre a folhagem. A este sinal caiu de cima de uma das árvores 
mais próximas a luz sinistra de dois fachos cujo clarão encheu o estreito passo. 

Metia horror o teatro da luta. Dos assaltantes só restava o Liberato que se 
batia, como um bravo que era, com o próprio Cabeleira; dos salteadores muitos 
faziam companhia com seus cadáveres aos de Ricardo, de Sebastião e de Vicente. 

— Eu logo vi que tinha pela frente o ingrato Cabeleira — disse Liberato, que 
só a seu grande animo devia estar ainda de pé. — Já que mataste meu irmão, 
miserável, podes também tirar me a vida agora; mas fica sabendo que não lograrias 
o teu intento se não fosse o adjutório de teus cobardes companheiros. 
A palavra ingrato José sentiu surgir lhe espontâneo remorso na consciência, e 
instintivamente recolheu o ímpeto com que ia dar em Liberato o golpe de honra. 

— Não fui eu que matei Gabriel — disse sem se sentir, sem o querer o 
malfeitor. 
— Fui eu, fui eu — trovejou Joaquim com fúria aterradora. — E que tem isso ? 
Pois ainda estás dando satisfações a este negro, Zé Gomes ? 
Ouviu se então o estalo de galhos e cipós que se romperam com violência 
inesperada para deixarem passar um corpo ágil, que foi cair de um salto à frente de 
Liberato. Esse corpo, ou antes essa onça petulante, irritada e cruel, não era senão o 
pai de Cabeleira. 

— Rende te, negro — gritou Joaquim ao infeliz, descarregando lhe sobre a 
cabeça, já em diferentes partes mutilada o facão que trazia na mão esquerda, 
enquanto com a faca presa na direita, aparava o golpe que vibrava como último 
arranco a sua vítima. 
Liberato, de feito, não pôde mais resistir. Tinha o corpo crivado de facadas. 
Cambaleou e caiu. 

Joaquim, atirando se ao desgraçado, embebeu lhe no peito, sem hesitar, 
antes com a firmeza de cínico sicário, a folha de sua faca, que lhe atravessou o 
coração. 

— Por este guarida fico eu — disse. — Não há de vir mais perturbar o nosso 
sossego. 

Os cadáveres dos assaltantes foram examinados entre risos, insultos e 
galhofas ímpias, à luz dos fachos sinistros. Completou se por este modo a tragédia. 

CAPÍTULO VII 
A vitória, não obstante o lugar e o número que deram superioridade aos 
fortificados, custou lhes consideráveis danos. Com outra investida da mesma força 
que a primeira, ou ainda menor, o couto arriscava se a ser dissolvido. Os malfeitores 
não eram muito numerosos e qualquer perda, por pequena que fosse, os expunha a 
desastres certos e quiçá fatais. Além disso, achavam se divididos por diferentes 
pontos donde protegiam as correrias empreendidas pelos mais destemidos. A 
organização protetiva era tal, que o mameluco e o filho, dentre todos os mais 
temerários e valorosos, percorriam, não já somente a província donde eram naturais, 
mas Paraíba e Rio Grande do Norte em todas as direções sem maior perigo, porque 
quando as justiças os perseguiam, eles achavam sempre perto de si um refúgio 
amigo onde se acolhiam, e se aí eram buscados, como muitas vezes aconteceu, 
resistiam, ajudados por seus iguais, com tanta energia e denodo que sempre a 
vitória ficava de seu lado. 

Desta vez porém não lhes fora muito favorável o lance. 

O Cabeleira, cuja bravura estava acima de todo o encarecimento, e seu pai, 
que a nenhum cedia o lugar na crueldade, tinham ficado cobertos de golpes, alguns 
deles mortais. Maracajá, cabra de más entranhas e por isso de créditos colossais 
entre eles, ficara com uma mão horrivelmente destruída, e o ombro esquerdo 
mutilado. Ventania, outro matador de fama, apresentava no rosto e peito feridas 
extensas e profundas. Jurema, Jacarandá, Gavião e dois negros fugidos tinham 
morrido nas pontas das facas dos assaltantes. 

A vista de tudo isso, tanto que considerou restabelecida a ordem na lôbrega 
estância, Joaquim reuniu o restante das suas forças, e lhes falou nestes termos: 

— A luta foi feia, camaradas, e devemos dar um exemplo de estrondo para 
que ela não venha a repetir se tão cedo. É: certo que dos cabras que se atreveram a 
vir bater nos, não voltou um só que fosse contar a sua derrota, mas o abalo que 
padecemos foi grande, e, se a justiça vier por aí nestes dias, correremos grande 
perigo, só não se nos ausentarmos. Entendo que devemos obrar um feito que a 
todos dê que falar, que aterre a população e o capitão mor, que faça crer que nunca 
estivemos tão fortes nem mais dispostos a sustentar o nosso posto. 
— Estou pronto para ir pôr fogo agora mesmo na povoação — disse Manuel 
Corisco, calceta evadido da cadeia do Recife por ocasião do segundo arrombamento 
praticado nos últimos tempos da administração do governador Henrique Luís. 
Este sentenciado tinha tomado parte, aos dezesseis anos, no levante dos 
soldados que se verificou quando governava Pernambuco d. Manuel Rolim de 
Moura. Do dito levante existe ainda a viva lembrança na província, pelo grande 
saque a que procederam, não só na vila do Recife, mas também na rica e populosa 
cidade de Olinda, a pérola de Coelho. Os sessenta e seis anos, que contava, ainda 
lhe permitiam forças e animo para atentar contra os bens e a vida com tanto maior 
firmeza quanto era fragueiro no crime por uma prática de longos anos. 

— Em vez do incêndio, o saque — acudiu Miguel Mulatinho. 

— Para tanto não temos forças, mas se o querem, encontram me pronto, 
como sempre—observou Manuel Corisco. 
— A minha opinião é que apanhemos os cavalos e gados que ainda existem 
por estas beiradas. Eles devem render na feira dinheiro fresco para irmos resistindo 
à seca. Feito isto, levantemos o acampamento por algum tempo — tornou Miguel. 
— Que é que resta por aqui ? — perguntou Corisco. — Na fazenda de 
Liberato poucas reses se contam. Antes de morrer, o ladrão do negro já estava 
limpo; só tinha em casa os cachorros, os gatos, a mulher e a filha. 
— Boa idéia, boa idéia — gritou o Joaquim, cujos olhos nadavam em 
ferocidade. — Terão vocês coragem para darem conta da empresa ? 
— Diga lá, Joaquim. Você não está com patativas  choronas, você está com 
carcarás que têm boa vista, boas asas e melhores unhas — acudiu Miguel 
Mulatinho, librando se nos pés para imitar o pássaro que quer voar. 
— Vamos lá ver o que propõe você — acrescentou Manuel Corisco. 
— Proponho o roubo das melhores raparigas da povoação. Isto, sim, há de 
dar a todos a medida da nossa audácia, e por todos será considerado uma prova de 
que estamos fortes como nunca estivemos. 
— Sim senhor, muito bem lembrado — disse o Mulatinho — , melhor não 
podia ser, mas a coisa é séria, Joaquim. 
— Ora ! Tens medo ? 
— Medo ! O medo comi eu com as papas que minha mãe me deu quando era 
pequenino —retrucou o malfeitor como por demais. 
— Dito e feito, Joaquim. Quando será isso ? Hoje ? Amanhã ? — perguntou 
José Trovão, negro hediondo, cuja cara apresentava profundas cicatrizes e cujos 
olhos, vermelhos como tomates, padeciam de estrabismo divergente. 
— Hoje não. Amanhã, ou depois, conforme entender melhor Zé Gomes — 
respondeu Joaquim. 

E logo acrescentou: 

— Mas onde se meteu Zé Gomes que não o vejo aqui ? 
O lugar onde se achavam reunidos os bandidos era um dos pontos mais 
centrais da mata. 

Tinham eles assentado o seu arraial ao pé de um olho d"água que não 
secava, ainda no rigor do verão. Este arraial compunha se de meia dúzia de rancho1 
abertos por todos os lados e unicamente cobertos de palhas de pindoba. Dos 
caibros pendiam surrões, véstias e chapéus de couro. Algumas redes estavam 
armadas dentro das palhoças. A noite alumiavam se ordinariamente com fogueiras; 
tinham porém sempre em quantidade fachos de que se serviam nas suas idas e 
voltas por dentro da mata, quando fazia escuro. Tudo anunciava que o ponto era 
sempre provisório, e podia ser deixado de um momento para outro sem prejuízo nem 
saudades. 

O Cabeleira estava longe deles naquele instante. 

Apenas viu passada a borrasca, reapareceu lhe a imagem de Luísa em quem 
ele via dois tipos cada qual mais sedutor — em um a menina de oito anos com o 
rosto banhado da expressão de meninice, que é agradável até aos olhos dos que 
têm o coração mais endurecido do mundo; no outro a moça ingênua, corajosa, 
banhada em pranto, de rojo a seus pés, pedindo lhe misericórdia, insultando o, 

amaldiçoando o, bela, tanto mais bela quanto mais aumentavam sua dor e sua 
indignação, ambas tão profundas como era o afeto que ela votava ao bandido. 

Este não tinha tido até aquele momento predileção amorosa para alguma 
outra mulher. 

Sua vida nômada, arriscada, cheia de sobressaltos, ensopada de sangue só 
lhe tinha permitido querer bem à imagem da menina que ainda na véspera se 
debuxava em seu espírito com um vago e pálido reflexo do passado. 
Inesperadamente, porém, este reflexo se ilumina com todos os brilhos do mais 
primoroso íris. A reminiscência desmaiada, quase desaparecida, tomou corpo, 
forma, cor, contornos suaves, olhos matadores, cabelos escuros, voz harmoniosa, 
enérgico sentimento, e com soluços o comove, e com exprobrações o faz conhecer 
e sentir a dor, nunca talvez experimentada, de um remorso cruel. Seu coração, que 
se havia convertido em foco de paixões sanguinárias, era agora ninho de doce e 
indefinível sentimento. 

O bandido estava experimentando, não a lascívia bruta que proporciona 
rápidos prazeres, dele conhecidos como a aguardente que bebia nos dias quentes e 
nas noites frias, mas uma fatalidade benévola, branda e terna que o impelia para a 
moça, primeiro pelo espírito, e só depois pela beleza da forma que o atraía; e essa 
fatalidade era tão poderosa que ele não achava forças em si para lhe resistir apesar 
do seu querer. 

Chegando à beira do rio para onde se dirigira correndo em busca da visão 
que aí deixara, achou em seu lugar a solidão infinita, a solidão só. 

Era em maio. Frouxo estava o luar. Elevava se das margens, com os ruídos 
do deserto, fresca e grata emanação que teve para o seu peito abrasado o efeito do 
bálsamo fragrante. 

Pareceu lhe que debaixo da folhagem do juazeiro onde, segundo o seu 
pedido, esperava encontrar a moça, um corpo indeciso e vago se agitava 
brandamente. 

— Luisinha ? Luisinha? — chamou ele. 
Ilusão ! Estava ali o vácuo mais cruel do que um raio que o houvesse 
fulminado. A sombra da árvore movida pela brisa noturna representava a forma 
graciosa que o bandido acreditou ser Luísa 

— Foi se embora ! — disse o Cabeleira esmagado. 
Então com olhar de gavião abrangeu a vasta planície que se estendia diante 
de si. Ninguém ! Nem sequer um vulto que por um instante ao menos lhe desse o 
prazer de uma nova esperança, falaz embora como a que se despedaçara a seus 
pés naquele momento. Só o deserto lhe apareceu, menos vago, mais real com 
taciturna imensidade, só o deserto lhe respondeu com a mudez do descampado, das 
selvas profundas, e das águas mortas. 

Assim desmascarada em plena natureza, a realidade o fez voltar a si. Sentiu 
as dores dos golpes recebidos, pouco havia, dentro da mata. Lembrou se de banhar 
as feridas como costumava depois de idênticos desastres. Mas a água fresca que 
tantas vezes lhe havia servido de bálsamo refrigerante, produziu lhe agora diferente 
efeito. A vista do bandido foi pouco a pouco escurecendo, a cabeça pesou lhe mais 
do que o corpo, e ele caiu sem sentidos à beira do poço. 

Deste modo passou horas. Quando tornou em si de seu delíquio, a aurora 
vinha rompendo as nuvens do horizonte, com sua luz extensa e vasta que se 
confunde no infinito. A viração matutina transmitiu-lhe aos ouvidos uns sons 
cadenciados que vinham de longe. Era o eco das loas cantadas pelas meninas e 
raparigas da povoação que vinham encher os potes nos poços como de costume. 

Levantou se ainda aturdido. Seus olhares foram logo cair sobre o lugar onde 
na tarde anterior ele havia deitado Florinda em terra com o coice do bacamarte. Não 
se achava, porém, ali o cadáver da curiboca. O bandido deu então o andar para a 
estância, com o pensamento concentrado em Luísa que, tendo se visto livre de suas 
mãos, correra em socorro de Florinda. 

— Minha mãe ? minha mãe ? — chamara ela, abraçando o corpo da vítima, e 
chorando como criança. 
No seu prantear e no seu carpir, Luísa tivera todavia espírito para lembrar se 
das últimas palavras do Cabeleira. "Com pouco ele estará aqui outra vez", pensou 
ela. "Deus me livre de que ele venha ainda encontrar me neste ermo. Que seria de 
mim se tal acontecesse ? Mas posso eu deixar aqui o corpo de minha mãe só e 
desamparado ?! Não, não; não o deixarei ainda que me matem. Ficarei até que 
amanheça. Há de aparecer alguém que me ajude a levá-lo para casa". 

E aflita, consternada, Luísa olhara ao longo da margem a ver se descobria 
quem a socorresse. Por mais de uma vez uns vultos escuros moveram se sobre a 
areia, à beira dos poços. Ele sentira então voltar lhe o animo, falara, perguntara 
quem estava ali, pedira que a fossem amparar em tamanha aflição, mas ninguém a 
ouvira, ninguém acudira ao seu chamamento. Tudo fora ilusão. Esses vultos foram 
as sombras das árvores movidas pelo vento, as quais enganaram depois o bandido 
como vimos. 

A noite, porém, corria com rapidez. A lua que descia a ocultar se por detrás 
da floresta, dentro em breve deixaria em trevas toda a natureza. O silêncio tornava 
se mais profundo, tornava se absoluto. O sítio, de si ermo, estava agora lúgubre por 
se haver convertido em mansão de morte e luto. 

Luísa lembrara se de ir chamar alguém, visto que ninguém lhe aparecia para 
a tirar daquele aflitivo transe. Mas a casa que ficava mais próxima era de Liberato, a 
qual distava, entretanto, pouco menos de meio quarto de légua do lugar. Além disso, 
ela não queria deixar o corpo de Florinda desacompanhado ainda que fosse por 
momentos quanto mais por horas. 

De uma vez correra ao longo da margem a ver se o céu lhe tinha enviado 
algum protetor. Mas logo voltara, lembrando se de que o cadáver podia, de um 
instante para o outro ser ofendido por algum animal. 

— Não, não, minha mãe ! — exclamou ela. — Não te deixarei, haja o que 
houver. 
Então ela vira que o cadáver erguera os braços para conchegá-la, ao que 
parecia, ao seu seio. A moça fizera conta que estava sonhando e delirando, e que o 
movimento de Florinda fora como uma ilusão dos olhos dela. 

— Abraça me, minha mãe, abraça me. Leva me contigo que eu, sem ti, sou o 
ente mais desgraçado do mundo. 

Mas, sentindo a pressão física e irrecusável dos braços que tinha por mortos, 
recuou para a pálida claridade do escasso luar, certificar se da verdade. 

— Não fujas, Luísa. Vem. Não estou morta. Ajuda me, que me levantarei. 
Não podia ser mentira dos seus ouvidos. Era a voz de Florinda, aquela voz 
branda e benévola que ela estava acostumada a escutar desde a infância como o 
eco de materna] providência. 

— Minha mãe ! Vive ainda, minha querida mãezinha? — perguntara Luísa, 
chorando e sorrindo alternativamente, beijando, como louca, sem ordem nem 
moderação, aquele cadáver que se tornara vivente, aquela vida que ressuscitara no 
seio da natureza onde lhe parecera que se havia afundado para nunca mais voltar 
como se afundam as borboletas que as tempestades arrojam aos charcos e marnéis. 
— Vê se podes levantar me, Luisinha. 
— Sim, saiamos já daqui antes que tornem os malfeitores. Eles não tardam 
por aí, creio eu. Vamos já, minha mãe. Está 
me parecendo que dali, daquele mato traiçoeiro, um homem nos acomete, ou um tiro 
nos vem ferir. 
Cambaleante e trôpega, Florinda dera o andar arrimando se no ombro da 
filha. 

— Que tens, Luizinha, que olhas horrorizada para aquela banda ? Fez te 
algum dano o assassino ? 
— Não, nada me fez. Mas eu tenho medo destes lugares. Nunca mais virei 
buscar água aqui. 
— Conta me tudo, Luisinha. Como te livraste do malfeitor? Quem era ele? 
Não o conheceste? Seria o Cabeleira ? 
— Não sei, minha mãe. Estava já tão escuro quando ele apareceu… Sei 
porém, que ele se compadeceu de mim. 
— Estás dizendo a verdade, Luisinha ? 
— Sim, minha mãe, ele não me ofendeu. Dando mostras de estar 
arrependido, fugiu logo depois, e não voltou mais. 
— Malvado ! ? disse Florinda. — Que pancada me deu ele! Põe a mão em 
minha fonte. Vê como fiquei. Virgem Santíssima ! Não sei como não me saltaram os 
miolos. Mas… ampara me bem, que uma nova perturbação me vem tirar os 
sentidos. Ampara me, senão caio. Não posso andar mais. 
— Temos de feito andado muito, minha mãe, e deve estar cansada. 
Luísa, novamente aflita, volvendo os olhos em torno de si, viu, a poucas 
braças, uma sombra imóvel que brilhou aos seus olhos como um astro de proteção e 
conforto. 

Estavam salvas. Era a casa de Liberato. 

CAPÍTULO VIII 
A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em 
linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras 

pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas podia considerar se uma 
verdadeira casa de campo por sua bonita aparência, pela vista que tinha para todos 
os lados, pelo alpendre circular e pelo meio peitoril de madeira que não contribuía 
pouco para a sua rústica elegância. 

A pequena distancia tinham sido edificadas três casas menores e menos 
vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, nas outras duas os 
filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via se outra casinha que na forma 
arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão, aí vivia com 
sua mulher e filhos, na paz do Senhor. 

Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio de 
Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados e vazantes, e, 
no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras, desfilava aguardente, e 
desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo o ano. 

Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos, aquele 
genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais bonitos 
exemplos, que se conhecem, de união, auxílio mútuo, recíproco respeito e comum 
felicidade. 

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à 
mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia recomendado aos 
companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por costume caçar 
pacas e tatus uma vez por outra, quando fazia luar e o tempo estava enxuto, não 
houve quem duvidasse da palavra dos caçadores. Quando, porém, se soube do 
acontecido por boca de Luísa, e pelo vestígio da atrocidade que Florinda trazia na 
face, a qual bem estava dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto 
vieram tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os 
habitantes da engenhoca. 

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até o 
amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar. 

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza. 
Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno das 
águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia com os seus esplêndidos matizes, 
essa luz vivificadora restituiu ao deserto o movimento e a vida que as trevas tinham 
ocultado debaixo de seu espesso véu. 

Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não em Luísa, que 
via próximo o termo da vida de sua mãe privada novamente do uso da fala por lhe 
haver voltado a congestão. 

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo sem 
que os caçadores houvesse volvido a seus lares. Então a consternação tornou 
se geral e verdadeiramente cruel. 

As famílias reuniram se todas na casa grande para se protegerem em caso de 
perigo que logo tiveram por iminente. 

Três dias se passaram nessa aflição que se não pode descrever mas que 
facilmente se imagina. 

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem ? 
O capitão mor achava se no Recife, e o povoado, que um século antes constava de 
uma capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia de casas, pouco mais era do 
que isto na época em que se passou esta história; precisava também de proteção. 

De sua agonia a veio tirar um caboclo velho, que morava no caminho do 
povoado, em terras da engenhoca, e que era o estafeta do lugar. Vivia só em uma 

palhoça à beira da estrada. Chamava se Matias mas era mais conhecido pela 
alcunha de Veado, a qual se originara de ser ele muito ágil e andador. 

Matias, achando se sem fumo para o cachimbo, dirigiu se à casa grande no 
pressuposto de encontrar aí o Liberato que uma vez por outra lhe dava do melhor 
que tinha alguns pedaços para seu gasto. Só então soube do que havia, e logo se 
ofereceu para ir dar com o crioulo a quem devia muitas obrigações e respeito. 
Havendo Rosalinda aceitado o oferecimento, Matias voltou à choupana a buscar 
uma espingarda velha, e um minuto depois estava no rasto dos caçadores. 

Antes de transpor os limites da fazenda, viu ele para as bandas do Monte das 
Tabocas um bando de urubus esvoaçando como costumam quando sentem carniça. 
Seria alguma rês morta o objeto da inspeção dessas aves? Talvez fosse. A seca 
estava fazendo no gado vítimas aos centos. 

O Veado porém, naturalmente suspeitoso, acreditou logo que estava ali o 
cadáver de Liberato ou de alguns dos seus. 

Para ir ter à grota sobre a qual se libravam os urubus, não era preciso entrar a 
mata, mas unicamente contorná-la pelo lado oposto ao rio. O terreno apresentava 
desse lado um vasto tabuleiro, e depois ia gradualmente alteando até à grota, que 
se interpunha entre o tabuleiro e a mata, formando um fosso natural que protegia o 
couto. Só quem tivesse grande coragem, e fosse perfeito conhecedor dos acidentes 
do solo, se animaria a arriscar o pé no profundo despenhadeiro. 

Matias em pouco tempo atravessou toda a planície e chegou à borda do 
abismo. Cheiro de carnes putrefatas feriu lhe logo o olfato agudíssimo que sentia, à 
distancia, o quati, o veado, a anta, e até a cobra. 

De cima nada pôde ver, porque do fundo do vale e das encostas da montanha 
se levantava uma vegetação secular cuja folhagem basta e enredada parecia 
destinada a conservar perpetuamente oculta às vistas do homem a escusa região. O 
cheiro da carne corruta porém foi um indício, um raio de luz para o índio que, 
havendo tomado a peito descobrir a verdade, estava no propósito de não hesitar, 
para o conseguir, diante da perda da própria vida. 

A seus pés mostrava se um sulco deixado no terreno pelas águas que, 
descendo ao longo do estreito espinhaço, aqui se escoavam para o tabuleiro, ali 
para, dentro do precipício. Por ele se encaminhou Matias, arrimando se na 
espingarda, e com ela rompendo a custo os cipós que formavam diante de sua 
passagem uma rede quase inexplicável. 

Passou se uma hora. O sol chegou ao poente. Veio o lusco fusco, e com ele 
aumentaram as tristezas, os medos e as agonias das mulheres recolhidas na casa 
grande. 

Rosalina, tendo posto todos os cães da banda de fora, e fechado todas as 
portas da casa, abriu o seu tosco oratório, e convidou as outras ao terço tradicional, 
agora mais do que nunca necessário para fortalecer os espíritos abatidos. 

Florinda estava expirando. Ao lado dela achava se Luísa, desfeita em 
lágrimas, e Aninha que ajudava a enferma a morrer. A porta do aposento 
inteiramente aberta deixava ver as outras mulheres de joelhos na sala, aos pés do 
oratório, cantando as rezas que constituem o terço, essa parte do culto externo que, 
depois de longamente usada em quase todo o Norte, desapareceu das capitais, e já 
não tem no próprio interior das províncias a prática geral a que em grande parte se 
deve referir o adoçamento dos costumes dessas povoações antes de haverem sido 
dotadas com as escolas e com os institutos de educação que atualmente as 
disputam à ignorância com mais vigor e proveito. 

De súbito o ladrar dos cães veio interromper o concerto das vozes femininas 
que enchiam o âmbito da sala, e iam repercutir no vasto pátio. O ladrar aumentou, e 
com ele tornou se mais distinto, mais próximo, ao princípio um estrupido de passos, 
depois um ruído de vozes surdas do lado de fora da habitação. 

Nesta a alegria e a aflição, a primeira quando se lhes afigurou que os 
caçadores chegavam, a segunda quando, em lugar destes, pensavam serem os 
malfeitores que as vinham assaltar, disputaram um instante em violenta porfia os 
espíritos das pobres mulheres naturalmente expostas, pelas suas circunstâncias 
especiais, a estas cruéis alternativas. 

Depressa porém se dissiparam todas as dúvidas. Com fúria indômita, os cães 
deram mostras de querer despedaçar os visitantes. Semelhante indício foi uma 
prova evidente de que, não de casa, mas estranhos eram estes. 

De repente ouviu se uma voz que, ecoando no terreiro, veio ressoar dentro de 
casa: 

— Aqui estou. Sou eu. 
Era a voz de Matias. 

Rosalina, ébria de violenta alegria, correu à porta para a abrir, mas logo 
sobresteve a este novo falar do caboclo: 

— Não digo, não digo isto, ainda que me matem. 
— Dize que abre a porta, senão te varo com esta faca, Veado do demo — 
disse Joaquim a meia voz. 
— Não digo — repetiu o caboclo. 
E alteando a voz, trêmula e como abafada, gritou com toda a força que pôde: 

— Não abram, não abram. Eu trouxe os malvados enganados até aqui para 
poder avisá-la, sinhá Rosalina. Liberato, Ricardo, Sebastião e Vicente são com 
Deus. Fujam, se podem, que eu sei que morro. 
— Ah ! miserável, que nos iludiste — vociferou Joaquim. 
E com a faca atravessou incontinente o coração de Matias que, sem soltar um 
ai, caiu envolto em um turbilhão de sangue. 

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha pena, molhada em 
tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve cenas de estranho canibalismo 
como as que nesta história se lêem. Aperta me naturalmente o coração sempre que 
me vejo obrigado a relatá-las. Entre os motivos da minha repugnância e da minha 
tristeza sobressai o seguinte: Eu vejo nestes horrores e desgraças a prova, 
infelizmente irrecusável, de que o ente por excelência, a criatura fadada, como 
nenhuma outra, para altíssimos fins, pode cair na abjeção mais profunda, se o 
afastam dos seus sumos destinos circunstâncias de tempo e lugar que, nada, ou 
muito pouco valendo por si mesmas, são de grande peso para a perturbação do 
equilíbrio moral do rei da criação, tal é a fragilidade da realeza, ou antes das 
realezas humanas. Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas pela minha 
fantasia. São fatos acontecidos há pouco mais de um século. Se só alguns deles 
foram recolhidos pela história, quase todos pertencem à tradição que nô-los legou, 
antes como límpido espelho, que como tenebrosa notícia do passado. Não estou 

imaginando, estou, sim, recordando; e recordar é instruir, e quase sempre moralizar. 
Com estas razões considero me justificado aos teus olhos, leitor benévolo. 

Gritos, queixumes, imprecações e prantos que nenhuma pena humana pode 
descrever seguiram se, de dentro da casa, às últimas palavras do Veado. 

Teresa, mulher de Vicente, abraçou se com Rosalina, menos madrasta do 
que mãe, e começou a carpir com ela a desgraça comum, dando mostras de ter 
enlouquecido. Não se demoraram a imitá-las nas demonstrações de dor e desespero 
Josefa, mulher de Ricardo, e Cândida, mulher de Sebastião. 

Da sua angústia, para a qual será difícil encontrar paralelo na história das 
desgraças humanas, vieram tirá-las uma fortíssima pancada contra a porta, e estas 
formais palavras de Joaquim: 

— Se não abrem por bem, hão de abrir por mal. 
— Quando for tempo de tocar fogo na capuaba, é só dizer, Joaquim — 
acrescentou Manuel Corisco. 

— Querem queimar a casa, Rosalinda — disse Candida — Estamos perdidas, 
minha gente. Meu Deus, meu Deus, socorrei nos. 
Rosalina poderia ter vinte anos. Suas formas eram arredondadas, os cabelos 
crespos e negros, os olhos admiravelmente fendidos, a boca impossível de 
descrever se, porque exprimia graça, volúpia soberba e desdém ao mesmo tempo. 
Era o tipo da mulata ardente, caprichosa, cheia de vivacidade e energia, tipo que 
está destinado a desaparecer dentre nós com o correr dos anos, mas que há de ser 
sempre objeto de tradições muito especiais no seio da sociedade brasileira, pelo 
muito que tem figurado no campo, na cidade e no lar. 

— Sim, querem tocar fogo na casa para nos obrigarem a sair. Mas não 
sairemos — disse Rosalina com firmeza. 
E acrescentou sem demora: 

— Sair para onde ? Os nossos maridos desapareceram para sempre dentre 
os nossos braços. Não temos mais quem olhe por nós neste mundo de amarguras e 
misérias. Somos cinco desgraçadas a quem a vida já não pode oferecer prazer nem 
sossego, mas só desgostos e lágrimas. Não, Candida, não sairemos daqui. 
— Mas que faremos, Rosalina ? 
— Que faremos ! Pois você ainda pergunta ? 
— Sim, porque os malvados estão aí, e é tempo de tomarmos a nossa 
resolução. 
— Está tomada — respondeu Rosalina. — Morreremos, e não nos 
entregaremos aos malvados. 
— Meu Deus ! meu Deus ! — exclamou Teresa. 
— Não, não, Rosalina — acrescentou Josefa. — Vamos ver se nos salvamos. 
— Se nos salvamos !... — disse a mulata com ironia e desdém. — Não ouves 
os malfeitores bateram na porta ? 
— Mas então... — balbuciou Teresa. 
— Morreremos todas, Teresa, morreremos todas, mas com honra, ao pé 
deste oratório — gritou Rosalina com tal energia e decisão que nenhuma das outras 
se animou a proferir uma palavra sequer contra a sua sentença de morte. 

Para dar o exemplo, a mulata caiu de joelhos diante do santuário, tendo no 
rosto a serenidade que faz belos o venerandos os mártires, os verdadeiros mártires. 

Teresa foi a primeira que imitou sua madrasta, e as outras não se demoraram 
a acompanhar Teresa. Quem poderia resistir à heróica decisão de Rosalina 
inspirada no sentimento da honra, e na oração ? 

— Abrem, ou não abrem ? — perguntou nesse ínterim de fora Joaquim 
impaciente. 
A resposta que a esta pergunta deram as mulheres foi o continuarem o terço 
alguns minutos antes interrompido, resposta que há de perdurar nas tradições 
populares, como um traço característico da firmeza e do valor das gentes do Norte 
naqueles tempos de grandeza de animo que raro aparece hoje. 

— Ah ! estão rezando. Fogo, Manuel Corisco. fogo, Mulatinho, fogo, Trovão ! 
De repente um clarão afogueado inundou o terreiro, e indicou que a ordem do 
capitão do bando ia ser prontamente executada. 

— Depressa, depressa — gritou Joaquim. 
— Enquanto o diabo esfrega um olho, o mocambo fica torrado, e as 
caiporinhas são nossas —respondeu José Trovão, chegando a chama do seu facho 
a um montão de cangalhas , tripeças, gamelas e outros objetos encontrados no 
alpendre, e que ele havia apinhado de propósito, para servirem de combustíveis, ao 
pé das quatro janelas da casa. 
Esta operação reproduziu se na porta fronteira, nas portas e janelas laterais, 
no peitoril de madeira e nas toscas colunas que sustentavam de espaço a espaço o 
telheiro do alpendre. 

Quando o espírito racional ultrapassa os limites que o separam dos instintos 
da fera; quando o homem deixa atrás de si, na sua marcha descendente, o animal 
cerval que bebe o sangue por natural fatalidade a que não pode resistir, não raro 
figura de protagonista de dramas que, como este, enlutam a história e envergonham 
a humanidade. 

A porta principal tinha sido respeitada. Diante dela estendeu se e, elo chão, 
formando se em semicírculo, o bando dos salteadores, os quais ao espetáculo das 
chamas que do peitoril passando às paredes e destas à coberta, envolveram em 
poucos momentos a casa e formaram uma só chama, uma fogueira, única, 
gigantesca e medonha, só tinham infames graçolas e indecentes insultos para as 
vítimas. Sujos, maltrapilhos, nas mãos as facas nuas e os bacamartes sinistros, 
semelhavam, ao clarão da fogueira imensa, uma legião de demônios que só as 
crepitantes labaredas separavam dos anjos. 

— Quando se resolverem a não morrer assadas na coivara, como lagartixas, 
abram a porta e saiam sem susto que não havemos de brigar — disse Joaquim. 
O estalido da madeira, do barro, das telhas abafou em poucos momentos as 
vozes das mulheres. 

— Que fazem, que não saem logo ? — perguntou o Mulatinho depois de 
alguns minutos de espera infrutífera. 
— Venham para fora, raparigas — acrescentou o Trovão. 
Ainda bem não tinha preferido estas palavras, quando a frente da casa vinha 
abaixo, atirando torrões abrasados contra as feras que, afrontando o pudor com 
expressões obscenas, assistiam, ébrios de ferocidade, à medonha representação. 

— Parece me que as caiporinhas se escaparam — disse Joaquim. 
A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos portais 
descansavam uns restos de caibros incendiados. 

Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram 
na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas ainda não haviam 
chegado. 

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia 
longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear do 
incêndio, veio ressoar no pátio. 

— Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo ! 
Então viu se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por cima da caliça 
e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio com Florinda nas costas, semelhando 
uma visão ígnea, fantástica e sobrenatural. 

Os malvados, sem se podarem governar, voltaram um passo atrás, não tanto 
pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente por verem no lugar ocupado, 
havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua brutal concupiscência se aguçava, 
pequenos troncos carbonizados em torno da mesa sobre a qual ardia 
nesse momento última imagem. 

— Diabo ! — bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de 
compaixão do que as vítimas. 
— Todas mortas ! — acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que 
acusava a malograda e lasciva esperança. 
— Só nos resta uma — disse o Trovão, correndo em busca de Luísa, que 
havia caído quase sem sentidos no terreiro junto ao cadáver de Matias. 
— Cá está ela. — São duas, são duas. 
— Esta é minha — exclamou o Trovão, acercando se de Florinda para 
assenhorear se dela. 
— Trovão do diabo ! — exclamou o Mulatinho com indescritível expressão. — 
Não vês que é uma defunta. 

Florinda estava na realidade morta. 

— Resta me a outra. 
— A outra ? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços ? 
— Há de ser minha, custe o que custar — redargüiu o negro. 
— A outra é minha — disse um terceiro a cuja voz estremeceram 
irresistivelmente os dois bandidos. 

Era o Cabeleira. 

A casa de Liberato estava situada dentro do cercado que, beirando o rio em 
linha reta, de norte a sul, ia morrer na mata virgem, limite natural das terras 
pertencentes à engenhoca. Era fraca de construção, mas podia considerar se uma 
verdadeira casa de campo por sua bonita aparência, pela vista que tinha para todos 
os lados, pelo alpendre circular e pelo meio peitoril de madeira que não contribuía 
pouco para a sua rústica elegância. 

A pequena distancia tinham sido edificadas três casas menores e menos 
vistosas do que a primeira. Em uma destas morava o genro, nas outras duas os 
filhos do crioulo. Nos fundos do cercado via se outra casinha que na forma 
arremedava a casa grande. Pertencia a Gabriel que, à sombra do irmão, aí vivia com 
sua mulher e filhos, na paz do Senhor. 

Sem ter escravos nem dispor de grandes meios pecuniários, com o auxílio de 
Gabriel, Sebastião, Ricardo e Vicente, plantava canas, fazia roçados e vazantes, e, 
no tempo próprio, fabricava açúcar e rapaduras, desfilava aguardente, e 
desmanchava mandioca que lhe dava farinha para todo o ano. 

Viviam em perfeito acordo aquele pai, aquele irmão, aqueles filhos, aquele 
genro, cada um com sua mulher e seus filhos, e todos dando os mais bonitos 
exemplos, que se conhecem, de união, auxílio mútuo, recíproco respeito e comum 
felicidade. 

Na engenhoca ficaram todos ignorando o verdadeiro motivo da jornada à 
mata. Liberato, para maior segurança dos seus desígnios, havia recomendado aos 
companheiros o mais rigoroso segredo. E como tinham eles por costume caçar 
pacas e tatus uma vez por outra, quando fazia luar e o tempo estava enxuto, não 
houve quem duvidasse da palavra dos caçadores. Quando, porém, se soube do 
acontecido por boca de Luísa, e pelo vestígio da atrocidade que Florinda trazia na 
face, a qual bem estava dizendo donde havia procedido, a inquietação e o susto 
vieram tomar o lugar ao sono e ao repouso a que se achavam entregues os 
habitantes da engenhoca. 

Raiou finalmente o dia longamente suspirado pelos que da meia noite até o 
amanhecer não haviam tido olhos para dormir, mas para chorar. 

O sol espargiu a luz suave sobre o sertão, e com ela despertou a natureza. 
Inspirando as aves, colorindo os campos, e permitindo ver no espelho sereno das 
águas do Tapacurá o belo céu que nele se refletia com os seus esplêndidos matizes, 
essa luz vivificadora restituiu ao deserto o movimento e a vida que as trevas tinham 
ocultado debaixo de seu espesso véu. 

Com a tornada do dia, ressurgiu em todos a confiança, só não em Luísa, que 
via próximo o termo da vida de sua mãe privada novamente do uso da fala por lhe 
haver voltado a congestão. 

Chegou a hora do almoço, a do jantar, e finalmente escureceu de novo sem 
que os caçadores houvesse volvido a seus lares. Então a consternação tornou se 
geral e verdadeiramente cruel. 

As famílias reuniram se todas na casa grande para se protegerem em caso de 
perigo que logo tiveram por iminente. 

Três dias se passaram nessa aflição que se não pode descrever mas que 
facilmente se imagina. 

Rosalina pensou de uma vez em ir pedir socorro no povoado, mas a quem ? 
O capitão mor achava se no Recife, e o povoado, que um século antes constava de 
uma capela dedicada a Santo Antão, e de meia dúzia de casas, pouco mais era do 
que isto na época em que se passou esta história; preciepresentação. 

— Parece me que as caiporinhas se escaparam — disse Joaquim. 
A esta voz todos os malfeitores correram à porta principal sobre cujos portais 
descansavam uns restos de caibros incendiados. 

Descarregando então os coices dos bacamartes sobre a porta, fizeram 
na em pedaços, e invadiram o estreito espaço aonde as chamas ainda não haviam 
chegado. 

Ao mesmo tempo um grito, a que melhor se chamara o eco de uma angústia 
longamente recalcada e de súbito desprendida, dominando o estrondear do 
incêndio, veio ressoar no pátio. 

— Minha mãe, minha mãe não morrerá no fogo ! 
Então viu se uma cena horrivelmente bela. Luísa, saltando por cima da caliça 
e dos enxaiméis abrasados, ganhava o pátio com Florinda nas costas, semelhando 
uma visão ígnea, fantástica e sobrenatural. 

Os malvados, sem se podarem governar, voltaram um passo atrás, não tanto 
pela estranha e fugitiva aparição, como principalmente por verem no lugar ocupado, 
havia pouco, por aquelas contra cujo pudor a sua brutal concupiscência se aguçava, 
pequenos troncos carbonizados em torno da mesa sobre a qual ardia nesse 
momento última imagem. 

— Diabo ! — bradaram com raiva concentrada os algozes, mais dignos de 
compaixão do que as vítimas. 
— Todas mortas ! — acrescentou o Mulatinho com uns longes de pesar que 
acusava a malograda e lasciva esperança. 
— Só nos resta uma — disse o Trovão, correndo em busca de Luísa, que 
havia caído quase sem sentidos no terreiro junto ao cadáver de Matias. 
— Cá está ela. 
— São duas, são duas. 
— Esta é minha — exclamou o Trovão, acercando se de Florinda para 
assenhorear se dela. 
— Trovão do diabo ! — exclamou o Mulatinho com indescritível expressão. — 
Não vês que é uma defunta. 

Florinda estava na realidade morta. 

— Resta me a outra. 
— A outra ? Não vês que o Joaquim já a tem em seus braços ? 
— Há de ser minha, custe o que custar — redargüiu o negro. 
— A outra é minha — disse um terceiro a cuja voz estremeceram 
irresistivelmente os dois bandidos. 
Era o Cabeleira. 

CAPÍTULO I X 
Profunda revolução se havia operado durante uma noite no íntimo do 
bandido. 

Quando ele chegou ao couto, estava já resolvido o assalto à família de 
Liberato, a qual por se achar mais próxima do que qualquer outra, estava no caso de 
merecer as honras da prioridade na provação. 

Cabeleira não deu mostras de que aprovava, ou reprovava semelhante 
resolução. 

Seu animo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e 
investidas, mostrava se agora frio diante do assentado acometimento. Viração 
suavíssima passara por cima do férvido charco das suas paixões, e deixara, se não 
purificadas, decerto quietas as águas que aí se enovelavam turvas e lodosas. Essas 
águas nunca jamais viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de 
verão, por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes que 
se geram e alimentam em pútridos pântanos; podiam tornar se mansas, como as 
dos lagos, azuis como as dos golfos. 
A princípio os companheiros do bandido atribuíram o seu silêncio, a sua tristeza e a 
sua abstração aos ferimentos recebidos na luta. 

Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento 
querido que, não só a ele, mas também a todos os do couto proporcionava, nas 
mãos do inspirado tocador" momentos de prazer e consolação. 

Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma vereda que ia ter à borda da 
grota aonde chegava levemente a aragem do tabuleiro, donde se descortinava o 
vasto sertão opresso e abrasado. 

Aos sons da viola puseram se uns a cantar, outros a dançar, como brincam 
saltando as crianças nas campinas. 

De repente Manuel Corisco fez sinal para que se calassem. 

— Estou vendo ali embaixo um homem que vem na direção da grata — disse 
ele aos camaradas. 
— Você não se engana, Manuel. Ele vem tomando chegada tão gacheiro e 
amedrontado, que não pode ser amigo nosso. 
Os salteadores tinham razão, porque o desconhecido era Matias. 

Um deles quis imediatamente estendê-lo por terra com um tiro do seu 
bacamarte. Assentaram porém ocultar se a fim de verem primeiramente o que 
pretendia. 

Quando Matias desapareceu por um lado, segundo já dissemos, os 
malfeitores sumiram se pelo lado oposto, pé ante pé, na embocadura do profundo 
abismo. 

Tinha o Cabeleira avançado já alguns passos após os companheiros, quando 
uma idéia súbita, atuando sobre sua vontade por modo irresistível, o fez sobressaltar 
se. Ele se lembrara de que se os companheiros conseguissem apoderar se do 
desconhecido, não o deixariam com vida. Mas o bandido sentia se naquele 
momento tão pouco disposto a contribuir para a morte de um homem que não pode 
acabar consigo que voltasse à beira da grota. 

— Se eu quisesse, esse desconhecido não morreria — disse de si para si. — 
Mas não. Se não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, também não o irei salvar. 

O lodo tinha já desaparecido da superfície do charco imundo que ele trazia no 
coração; restava, porém, ainda no fundo, como se vê a vasa corruta e pestilencial. 

Para que Matias declarasse o fim que o levava àquele ponto, preciso foi 
primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nele sem piedade. 
Suplício atroz e cobarde que o índio sofreu com estóica resignação característica de 
sua raça. 

— Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno ? — perguntara 
Joaquim. 
— Vim em procura daqueles que ali estão para os urubus comerem — 
respondera o velho. 

— Até que enfim deste com a língua nos dentes. 
— Quiseste primeiramente provar o cipó de rego. 
— Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso ? 
— Quem me mandou ! Tive pena daquelas mulheres que choravam por seus 
maridos, e larguei me a ver se os encontrava. 
— Tiveste pena das mulheres, hein ? Maganão! Havemos de lá ir hoje de 
noite para também termos pena como tu tiveste. 
— Elas não serão tolas que apareçam a qualquer que lá chegue — retorquiu 
Matias com segunda tenção. 
— Mas a ti abriram elas a porta, velho mandingueiro. 
— Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu sou 
incapaz de as ofender. 
— Então, se lá formos, não nos deixarão entrar ? — perguntou Joaquim. 
Matias, depois de um momento de reflexão, respondeu: 

— Só se forem comigo. 
— Pois está dito. Iremos contigo — disse o Mulatinho. 
— Mas tu irás amarrado, bem amarrado, jia de lagoa — acrescentou José 
Trovão. 
— Como quiserem, contanto que não me matem no caminho. 
— Se nos facilitares a entrada, podes ter por certo que não haverá quem se 
atreva a tocar te em um cabelo sequer. 
— Bem sabes que não precisamos do auxílio de pessoa alguma para 
tomarmos conta de uma casa onde só há mulheres choronas — observou Joaquim. 
— Mas sempre é melhor entrar sem fazer barulho para não dar que falar à 
vizinhança. 
Era quase noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão, quando 
se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado 
entre eles, quatro seguiram com Matias pelo lado por onde havia descido, enquanto 
os outros, subindo pelo lado oposto, se dirigiram ao esconderijo a fim de se 
proverem dos instrumentos necessários para o assalto. Os primeiros esperariam 
pelos últimos na boca da mata para, reunidos, seguirem a seu destino. 

No momento em que os malfeitores tomaram a direção da engenhoca, um 
cavaleiro, que entrara na mata por secretos atalhos, fora dar com o Cabeleira em 
seu retiro. Era o Teodósio. 

— Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento. 

Foram estas as suas primeiras palavras. 

— Donde vens tu ? Que diabo tens, Teodósio ? 
— Vem aí soldados que nem terra. 
— Quem te contou semelhante coisa ? 
— Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite da 
procissão. 
— Ora !… Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca torci a 
cara a homem nenhum, e não morro de careta, como sagüi. 
— Eu também não tenho medo deles — disse o cabra. — Mas é bom a gente 
estar prevenido para não cair no mundéu como bicho do mato. 
O Teodósio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer. Fino, 
matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição o crime que 
haviam eles cometido na vila. 

Ora, Teodósio ! — redargüiu José com mostras de fazer pouco do que lhe 
dizia o camarada. — Eu, por ser bicho do mato, é que não hei de cair no mundéu. 
Olha tu: enquanto houver mata virgem por esse mundão de meu Deus, podem eles 
mandar contra mim os soldados que quiserem, que não me apanham, ainda que 
sejam tantos como formigas. Não me hão de ver nem a fumaça. 

— Não digo menos disso — respondeu Teodósio. 
— Eu sou cabra mesmo danado — prosseguiu Cabeleira. — Quem se 
engana comigo é porque quer. Meto a unha no chão, e entro nooco do mundo para 
nunca mais ninguém me por o olho em cima. As matas de Serinhaém, Água Preta, 
Goitá, Goiana, Paraíba, Rio Grande aí estão bem fresquinhas para esconderem em 
seu seio a onça pintada. É: bom que não me assanhem. Se o governador duvidar do 
meu sério, sou capaz de me largar daqui, pi, pi, até à vila, e lá mesmo vou mostrar 
lhe com quantos paus se faz jangada. 
— Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão 
não tarda a roncar. 
— Eu nunca deixei de trazer a faca e o bacamarte prontinhos para o serviço. 
Quem quiser, venha ver. 
— Está bom. Até já — disse o Teodósio, despedindo se para sair. 
— Aonde vais ? — perguntou lhe o Cabeleira. 
— Tenho cá uma idéia. Vou passar pela porta do capitão mor. 
— O capitão mor está na vila ? — disse José. 
— Não, senhor, está aí. Veio antes de mim, que não me escapou. Vou passar 
me pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho que aí se ache de 
serviço a fim dever se pesco notícia que nos oriente. 
— Não é mau o que queres fazer. Mas, olha bem, não caias em alguma 
ratoeira. 
— Macaco velho não mete mão em cumbuca — respondeu Teodósio, 
preparando se para montar novamente. 
— Faço te companhia até o cercado da engenhoca do defunto Liberato — 
acudiu o Cabeleira. 
E saltou sobre a garupa do cavalo que Teodósio pôs a passo pela vereda 
secreta que ia dar na via pública. 

— Uê ! — exclamou Teodósio, voltando se para o companheiro a fim de 
melhor saber dele a verdade. — Pois morreu o Liberato, tão amigo nosso, que nunca 
nos faltou com jerimum, canas e criação ? 
— Ele era camarada, é verdade. Mas meteu lhe na cabeça que havia de tirar 
nos o couro, e há três dias veio bulir conosco. 
— Que estás dizendo ? 
— Não só ele, mas também os filhos e o bom do genro. 
— Foi a sua derradeira deles, hein ? 
— É verdade. O Zé Rufino, que o negro fora convidar para o ajudar na 
tragédia que tinha ideado contra nós, correu logo a dar nos parte de tudo ainda em 
tempo. Quando os cabras apareceram, encontraram gente. Fizemos o bonito em 
poucas horas. Estão todos dentro do grotão. 
— E que vais tu ver à engenhoca ? 
— Vou reunir me com os outros que lá estão fazendo uma das suas. Mas 
onde arranjaste tu este quartau passeiro e passarinheiro que se vai derretendo na 
estrada depois da grande caminhada que traz da vila ? 
— Falta aí engenho onde se vá buscar um animalzinho fora de horas para a 
gente fazer sua viagem? 
— Pois então vai logo pondo de olho alguns outros para fazermos a nossa 
mudança se a tropa vier perseguiu nos. 
— Amanhã pela manhã teremos um lote, e poderemos meter terra em meio 
antes que o tropão bata por cá. 
Tinham deixado a vereda e achando se já na estrada que, fazendo pouco 
adiante um ângulo, seguia em linha mais ou menos reta até o povoado. 

Ao passarem por baixo de uma pitombeira que no ângulo apontado agitava no 
ar a sua copa gigantesca, súbito ruído espantou o cavalo que por um triz não tirou o 
cabresto da mão do Teodósio. Com o violento arranco, partiu se a cilha da cangalha
e os dois cavaleiros vieram à terra. 

— Diabo ! — exclamou o Teodósio contrariado e perturbado. — Foi alguma 
coruja que abalou da pitombeira. 
Não se havia partido só a cilha, mas também a armação da cangalha

— Sabes que mais, Teodósio ? Acho melhor que não vás ao povoado. 
— Por que não ? 
— A cilha partida, a cangalha arrebentada, tudo me parece aviso para que 
não faças a viagem — disse o Cabeleira. 
— Estou já em outro acordo. Deixo te o cavalo e vou a pé. Este cavalo é que 
me está encaiporando. 
Enquanto o Teodósio seguia pela beira do rio, o Cabeleira, que havia tomado 
a direção da engenhoca, dava a volta do caminho, e descobria a casa envolta em 
chamas cujo clarão sinistro iluminava a estendida solidão. Em breves instantes 
achava se entre os companheiros, e cortava, como vimos" a porfia do Trovão e do 
Mulatinho sobre a posse de Luísa. 

— Luisinha ! — exclamou o bandido. — Tu me pertences. 

— Que dizes, Zé Gomes ? — interrogou Joaquim sem poder bem 
compreender o que ouvirá ao filho, que lhe pareceu alucinado. 
— Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ela, pertencer nos na 
mocidade. Chegou a ocasião. 
— Atreves te a falar me em juramento ! Não sabes o que estás dizendo. Esta 
mulher é minha, e quem for homem que se meta a vir tomar ma. 
Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabeleira puxava da 
faca dando mostras de querer ferir com ela o seu interlocutor. 

— Zé Gomes, olha bem o que dizes ! — redargüiu Joaquim. — Teu pai ? 
— Não tenho pai; só tenho mãe que me ensinou o caminho do bem; pai 
nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquele que só me ensinou a roubar e a matar. 
— Zé Gomes, olha bem o que dizes! — redargüiu Joaquim, medindo o filho 
com olhar ameaçador e terrível. 
— Já lhe disse — retorquiu o mancebo sobreexcitado pela oposição do velho, 
ao qual se atirou com fúria brutal para lhe arrancar das mãos os pulsos de Luísa. 
afogada em prantos e soluços. 
Joaquim resistiu. Outros malfeitores reuniram se em torno daquelas duas 
hienas que ameaçavam despedaçar se mutuamente. Mas não houve um só dentre 
tantos que tentasse compor os discordes. 

Cabeleira brandiu enfim a faca contra o velho. 

Neste momento voz chorosa e soluçada ressoou na solidão. Foi a voz de 
Luísa. 

— Cabeleira — disse ela —, terás animo para ferir teu pai ?! 
O braço do bandido descaiu incontinente como se aquela voz lhe tivesse 
cortado os músculos atléticos. 

— Meu pai! — exclamou o desgraçado. — Um pai não toma a mulher de seu 
filho. Mas já que o queres, fica te com ela — acrescentou voltando se para Joaquim. 
— Cabeleira vai desaparecer para sempre, e sem o seu auxílio hão de cair nas 
mãos da justiça todos os que me cercam. A tropa aí vem. 
— A tropa ! — gritaram os malfeitores sobressaltados, olhando uns para os 
outros, e todos para a solidão que, ao declinar do incêndio, retomava seu aspecto 
equívoco e medonho. 
Tendo assim falado, Cabeleira deu o andar na direção da estrada. Seu 
espírito estava abatido, seu coração despedaçado pelo golpe cruel que lhe havia 
vibrado a desgraça. 

Então Luísa, vendo assim perdido o último raio de esperança, que ainda a 
guiava no meio das trevas do seu infortúnio, exclamou: 

— Meu Deus, meu Deus, que será de mim ? 
Joaquim entretanto tinha se atravessado diante do Cabeleira. Todo assassino 
é cobarde. 

— Por que nos queres deixar ? — perguntou ele ao filho. — No momento em 
que mais precisamos de ti, é que tu nos desamparas ? Não sejas mau, Zé Gomes. 
Eu te perdôo a desobediência, e te restituo a mulher. Fujamos todos. 
Cabeleira atirou se a Luísa, e tomou a nos braços com frenesi de alucinado. 

Volvendo um instante depois os olhos ao redor, não viu um só sequer dos 
companheiros. Penetrados de pânico terror, todos tinham corrido, sem exceção de 
Joaquim, a ocultar se na mata. 

— Vamos, Luisinha — disse o bandido à moça, com ternura. — Ninguém a 
ofenderá, ninguém. 
— E minha mãe ?! — soluçou Luísa caindo, que a eternidade se ia meter 
entre ela e Florinda, e que sobre a terra estava tudo acabado para ela. 
O bandido conchegou a ao peito e abafou lhe as últimas palavras com um 
beijo. 

CAPÍTULO X 
Que valeu a Luísa ter-se libertado das mãos de Joaquim, se o Cabeleira a 
prendia em seus braços possantes e atléticos ? 

— Solte-me, solte-me — disse a moça ao bandido. 
— Quer ficar aqui ? Não a deixarei só. 
— Não se importe comigo. Siga seu pai, que eu irei para minha casa. Não 
preciso da companhia de ninguém. 
Com esforços sobre humanos Luísa tentou libertar-se das suas prisões. 
Foram inúteis esses esforços. 

— Se não me soltar, há de ver-me cair morta a seus pés. 
Ela tinha podido apoderar-se do facão do malfeitor, e o voltava contra si 
mesma. 

O Cabeleira parou, e soltou-a. 

— Que pretende você fazer, Luisinha? Não tem pai, não tem mãe, não tem 
quem por si olhe. Para onde quer ir ? 
— Quero matar-me aos pés de minha mãe. 
— Isso nunca. 
Sem esforço nem luta ele a desarmou em um momento. 
Depois perguntou, com a voz mais branda do mundo: 

— Matar-se por que, Luisinha ? Não se lembra que me prometeu ser minha 
mulher quando um dia nos encontrássemos ? 
— Eu fiz esta promessa com uma condição, que você não cumpriu. 
— Pois bem. Estou pronto a cumpri-la agora — tornou ele com ternura. 

— Quer enganar-me, José ? Para que eu acreditasse em suas palavras fora 
preciso não o ter visto levantar há pouco a faca para seu pai. 
— É verdade; assim foi. Eu estava fora de mim — respondeu com ar 
pesaroso que indicava remorso, vergonha e arrependimento do feio ato que tinha 
praticado. Mas que importa isso ? —continuou ele. — O tanto matar já me aborrece, 
e eu quero mudar de vida. 
— Não creio, não posso crer no que você diz — observou Luísa. 
— Nem se eu jurar ? 
— Eu sei !… 
— Que razão tem para duvidar tanto de mim, Luisinha ? Estou vendo que 
você nunca me quis bem. 
— Eu é que posso dizer isso de você. 
— Se eu não lhe quisesse bem, não a tinha deixado livre como está. Se eu só 
a quisesse lograr como fazem com as outras, quem me poderia impedir de realizar a 
minha vontade ? Ninguém. 
— Podia, e pode ainda matar-me, mas fazer isso, nunca, nunca. Só depois de 
me haver tirado a vida. 
— Como se engana ! Assim o quisesse eu; mas não quero. Eu sei que você 
me quer bem, e por isso não me vexo nem apresso. 
Com os braços trêmulos o Cabeleira apertou Luísa novamente contra o peito 
onde lhe ardia o coração em chamas de entranhado amor. 

— Deixe-me, José. Aquela que você ofendeu, aquela que você arrancou 
dentre os meus braços, dali o está vendo e amaldiçoando. 
— Perdoe-me, não me odeie, Luisinha, por sua bondade, e pelo muito que 
nos queremos nos primeiros anos. Se eu a privei de sua mãe, estou pronto a 
protegê-la de agora por diante. Pelo corpo de sua mãe, juro que farei isso, Luisinha. 
— Jurará também que não há de tirar mais a vida de ninguém, ainda que seja 
de um passarinho ? 
O bandido refletiu um momento. 

— E se me quiserem matar ? — perguntou depois. 
— Fugirá — respondeu Luísa. 
— E se não puder fugir? 
— Eu quero que você jure, Cabeleira, que em caso nenhum derramará mais 
sangue sobre a terra, ouviu ? Se não for assim, tudo estará acabado entre nós. 
— Pois bem, Luisinha. Eu juro. O malvado será de hoje em diante homem de 
bem. 
Luísa fitou-o como um anjo deve fitar um demônio que promete ser anjo. O 
Cabeleira, porém, não lhe deu tempo para grande contemplação, porque de chofre a 
tomou pela terceira vez nos braços febris, e desapareceu com ela no meio da 
escuridão. 

Saltar ao cavalo, vencer o vasto pátio, galgar a cerca, e, em vez de ir em 
demanda da mata, voltar ao rio e descer pela margem esquerda na direção do norte, 
foi obra de um instante para o destemido sicário. Luísa deixou-se conduzir em 
silêncio ao meio do fatal desconhecido. 

Ainda bem não tinham vencido uma milha na veloz corrida, quando o 
Cabeleira descobria uma cinta escura que se desenhava e movia, como nuvem de 
tormenta, no confuso horizonte. Seu primeiro cuidado, ao ver aquela visão 
aterradora, foi afastar-se da margem, e meter-se em um alagadiço que ficava a 
alguma distancia do rio. Com a grande seca o brejo estava em pó, e a poderosa 
vegetação aquática reduzida a raras touças que mal encobriam uma pessoa 
sentada. 

— Esperemos aqui, Luisinha, que passe a tropa que vai para o povoado. 
Luísa conheceu que estavam em perigo, e não fez a menor oposição. 
Atravessando o cavalo diante de si, acomodaram-se ambos de pé, do melhor modo 
que puderam, Luísa a rezar como costumava nos momentos arriscados, Cabeleira 
observando em profundo silêncio, através da escuridão da noite, a mata que 
aparecia, como gigantesca e estendida mole, do lado oposto da planície deserta e 
medonha. 

O mancebo não se enganara. Era de feito uma tropa que vinha em busca dos 
salteadores. 

Os pelotões encaminharam-se para as embocaduras das veredas. Não havia 
mais que duvidar. O segredo da encoberta estava no poder da justiça. 

— Estão perdidos — disse o Cabeleira comovido. — Se foram tomadas as 
saídas que ficam do lado do poente, nenhum se salvará. 
Como impelido por força irresistível, o Cabeleira deu o andar para o mato. 

— Que vai você fazer? — perguntou-lhe a moça com inquietação, 
atravessando-se na frente dele. 
— Não se assuste, Luisinha. Vou defendê-los. 
— Diga antes que vai morrer. 
— Não, o que eu vou fazer é matar gente sem piedade — acudiu o bandido. 
— Matar gente ! — repetiu Luísa. — Que valeu então o juramento que fez há 
pouco ? 
— Ah ! — disse ele, caindo em si. — É verdade, Luisinha. Mas que quer que 
eu faça ? Pois não hei de ir ajudar os meus a saírem da tribulação em que se 
acham? 
— Eles são muitos e valentes — respondeu Luísa; — podem bem dispensar o 
seu adjutório. Demais, você não pertence mais a eles, mas a mim, a mim só; ouviu, 
José ? 
— Sim, eu sou seu, Luisinha; eu pertenço a você pelo coração, pelo amor. 
Ouvindo estas palavras, ela inclinou ao chão seus olhos mais belos que as 
estrelas que brilhavam no céu. 

— Mas, você fez bem em lembrar o juramento que há pouco fiz — prosseguiu 
o Cabeleira. —Eu não podia ver meus companheiros em perigo sem correr para 
junto deles a defendê-los. Se não fosse você, Luisinha, eu já não estava aqui. Mas 
agora me lembro: saiamos sem demora, que talvez seja ainda tempo de os salvar 
por outro meio. 

Em menos de um instante acharam-se montados no cavalo que o bandido 
pôs a galope em direitura ao rio. 

Para onde vamos nós ? — perguntou Luísa, agarrando-se, sobressaltada, ao 
destemido matador. 

— Aonde me leva você, José ? 
— Não fale, Luisinha, não fale, que pelas suas palavras podem vir sobre nós. 
Nesse momento a detonação de alguns tiros e as vozes de um clarim, 
pregoeiro de não sei que operação militar, indicaram que a força tinha dado com os 
bandidos, e que qualquer aviso para que fugissem seria inútil. 

— É tarde — disse o Cabeleira. — Já não é possível a salvação. Mas hão de 
Ter-me ao pé de si na sua derradeira — exclamou, saltando do cavalo abaixo e 
dando mostras de querer correr ao lugar do perigo. 
— Cabeleira ! — exclamou Luísa penetrada de terror. — Você terá animo de 
desamparar-me neste deserto ? Não, não há de fazer isso comigo. Veja que eu sou 
hoje só no mundo. 
O bandido parou incontinente. Estas palavras foram grilhões que o prenderam 
aos pôs da adolescente. 

— Tem razão, Luisinha. 
— Fujamos sem perda de tempo — acrescentou ela. 
Nesse momento uma das escoltas saía da mata. 

Grande vitória tinha sido ganha pelas armas reais contra os destruidores da 
propriedade, honra e vida de inofensivas povoações. 

Inúmeras partidas militares já tinham sido expedidas contra os malfeitores 
sem resultado. 

Pouco depois do canibalismo perpetrado no primeiro domingo de dezembro 
de 1773 na ponte do Recife, o governador Manuel da Cunha de Meneses fizera 
seguir contra eles uma força considerável. 

Esta força chegou a Afogados alguns minutos depois da retirada dos autores 
da desordem; e daí não passou, por não ter sido possível, apesar das mais 
minuciosas indagações, saber o rumo que haviam tomado os criminosos. 

O Timóteo, cuja taverna foi varejada, declarou unicamente que eles tinham de 
feito estanciado aí, mas que se haviam retirado sem lhe dizerem para onde. Não 
houve promessas nem ameaças bastantes a obter dele declaração mais formal e 
menos lacônica do que esta. 

Tempos depois novas partidas foram mandadas a ver se conseguia o fim 
desejado. 

Tanto a que seguiu ao norte, como a que seguiu ao sul, bateram matos, 
atravessaram rios cheios, empregaram enfim os maiores esforços inutilmente. Em 
mais de um lugar, ou de um pouso encontraram vestígios da recente passagem dos 
bandidos, ou da sua ação destruidora e fatal, mas nunca lhes foi possível dar com 
os três personagem, tipos legendários que todos conheciam pelos seus tristes feitos, 
que todos tinham visto, a quem quase todos tinham pago pesado tributo, mas que 
iludiam a vigilância e zombavam dos esforços de todos, sem exceção do poder 
público. Nuvem miraculosa envolvia-os, ocultava-os, aos olhos da justiça e da lei, 

que tem em toda parte vistas penetrantes e perscrutadoras a que ninguém se 
encobre por muito tempo. Nos seus tenebrosos antros saboreavam o corrosivo 
prazer que proporciona o roubo e a impunidade. Esta animava-os à prática de novos 
crimes, e expunha ao público descrédito à administração menos digna de temer-se, 
ao parecer deles, do que o particular que muitas vezes resistia, defendendo a sua 
propriedade, e na defesa e resistência os feria, embora tivesse de cair aos golpes 
descarregados por eles com tal firmeza, que nunca deixou de ser fatal. 

Cunha de Meneses, convicto da ineficácia dos seus esforços contra os quais 
se levantava, além da audácia e cinismo dos malfeitores, um tríplice embaraço que 
mais do que estes contrastava aqueles esforços — a falta de população, de tropas e 
de estradas — , embaraço que era favorecido indiretamente pela indiferença dos 
mais fortes, e diretamente pelo temor da maior parte dos moradores, renunciou ao 
empenho, que por muito tempo alimentou de reivindicar os foros da administração 
assim afrontados diária e ostensivamente pelos sobreditos malfeitores. 

Com esta mudança de resolução coincidiu a sua promoção ao lugar de 
governador da Bahia. Em 31 de agosto de 1774 entregava ele a José César de 
Meneses, a quem já nos referimos, as rédeas do governo de Pernambuco, então, 
como ainda hoje, difíceis de sopesar. 

José César teve de voltar a sua atenção para a guerra com a Espanha; e 
quatro meses depois de haver tomado conta do governo, fez partir para a Colônia do 
Sacramento, então novamente no poder dos espanhóis, bem como os fortes 
brasileiros de S. Miguel, Santa Teresa e S. Pedro do Rio Grande do Sul, um 
regimento de infantaria. 

Em 1776 tinham seguido do Recife para aquela colônia cerca de 1100 
pernambucanos. 

A guerra seguiu-se a peste, e à peste a fome como vimos. 

Quando se achava assim a braços com este tríplice flagelo, teve ciência de 
que diferentes ambulâncias que, em parte às custas do régio erário, e em parte às 
custas dos negociantes mais ricos da vila haviam sido expedidas por ordem sua 
para os pontos onde o mal se manifestava com maior intensidade, tinham caído nas 
mãos dos salteadores. 

O governador mal pôde dominar a sua cólera, e na prática íntima com os que 
tinham muito lugar diante dele, declarou que daquele momento em diante o principal 
empenho do governo ficava sendo dar cabo dos criminosos que devastavam a 
província. 

Desgraçadamente faleciam-lhe gente e dinheiro para pôr por obra este 
louvável empenho. 

A terrível epidemia tinha desolado povoações inteiras. 

A fome continuava a gerar os males que em toda parte são seus 
companheiros naturais e inevitáveis. 

A seca devastava ainda o interior da província como chama que irrompe do 
seio da terra, e tudo abrasa e destrói. 

Mas José César era ativo, enérgico, esforçado e de grandes espíritos. 
Confiava no poder da autoridade, e tinha por certo que havia de restaurar a 
tranqüilidade e a segurança privadas, e restabelecer o domínio das leis. 

Enfim, depois de haver pensado com madureza sobre o grave assunto, deu 
ordem a seu secretário para que impedisse em seu nome aos capitães mores de 
Iguaraçu, Itamaracá, Várzea, S. Lourenço, Santo Antão, Tracunhaém, Nossa 
Senhora da Luz, Jaboatão, Muriboca, Cabo, Ipojuca e Serinhaém a circular seguinte: 

"Ordena o Sr. Governador e capitão general que, para um negócio que 
entende altamente com a paz pública, se ache vm. no dia oito do corrente mês, 
pelas nove horas da manhã, neste palácio, onde se há de celebrar junta a fim de 
tratar-se do mesmo negócio. 

Vm. fará igual aviso aos coronéis das ordenanças que houver em seu distrito". 

No dia designado acharam-se presentes onze capitães mores e outros tantos 
coronéis. 

Depois do almoço, durante o qual lhes disse, explicou e particularizou todo o 
seu pensamento, convidou-os o governador a chegarem até aos paços do senado 
da câmara de Olinda. 

Uma galeota, que estava às ordens em uma das rampas do palácio, os 
recebeu e os conduziu à capital ilustre. 

A sessão da junta foi secreta. 

Todos presumiram que a fome e a peste eram os motivos principais da 
reunião, mas dificilmente conciliaram esses motivos, que estavam no público 
domínio, com o sigilo que se guardou durante a sessão, e continuou a ser mantido 
depois do seu encerramento. 

Seguiram-se, como é fácil imaginar, diferentes versões e fizeram-se longos e 
variados comentários. 

Falou-se de guerra no exterior, de geral recrutamento, e de novos impostos. 

Veio logo a pelo lembrar igual ajuntamento que se verificou em 1727, sob o 
governo de Duarte Sodré Pereira, e o imposto decretado nessa ocasião pelo dito 
ajuntamento, imposto calculado em 1 milhão e 50 mil cruzados, que se tornou efetivo 
em vinte anos, e foi destinado a ocorrer aos gastos com o casamento dos príncipes 
de Portugal. 

Cuidou-se em opor à forçada contribuição, caso viesse a verificar-se, a 
resistência que naquele tempo apresentaram os povos da ribeira de S. Francisco. 
Mas passaram-se dias e semanas sem que ato algum público, oficial, ou simples 
revelação particular viesse confirmar as suspeitas. A deliberação continuou trancada 
debaixo dos selos do mais rigoroso segredo. 

Uma manhã um batalhão de infantaria, devidamente municiado, moveu-se, e 
pôs-se em ordem de marcha na direção do sul. 

Este batalhão fez alto em Afogados. 

— Temos guerra — gritaram os meticulosos pelos ângulos da vila. 
Alguns parasitas, plantas conhecidas e existentes em todas as regiões, mas 
muito mais abundantes nas regiões oficiais, ou governativas, correram ao palácio a 
verem se podiam, pelos meios que sabe a astúcia pérfida e servil, inferir das 
palavras de José César, ditas na intimidade, o destino a que se dirigia a coluna 
militar, inesperadamente posta em armas e a caminho. O semblante do governador, 
porém, semelhava uma superfície plana; não apresentava uma só roga que pudesse 
trair oculto desgosto, ou indicar grave apreensão. Se da fronte passavam a estudar 
as palavras de José César, não descobriam no sentido destas menos discrição e 
reserva do que tinham encontrado na expressão daquela. Os lábios do governador 
guardavam com a severidade da disciplina militar e das práticas do governo 
naqueles tempos silêncio absoluto a respeito do acontecimento que preocupava os 
grandes e o popular. 

A curiosidade pública mostrou-se dentro em pouco ainda mais excitada com 
certas notícias trazidas do interior pelos boiadeiros, almocreves e estafetas. Em 

todos os distritos, por ordem dos respectivos capitães mores, de acordo com os 
coronéis de ordenanças, se tinham levantado milícias locais que evidentemente se 
aprestavam para um fim de grande importância, a julgar pelas aparências. 

Das sedes de alguns desses distritos já os destacamentos haviam marchado 
para certos e determinados pontos que os informantes não sabiam dizer. 

Enfim, tendo reunido todos estes elementos de duvidar e de decidir, e os 
tendo pesado na balança da crítica, arte ou ciência comum a todas as sociedades 
ainda as que se acham no estado mais rudimentar, julgou-se o publico autorizado a 
afirmar que se tratava de efetuar uma diligência de alta monta, para a qual tinham de 
concorrer simultaneamente as diferentes forças locais, de combinação com algum 
destacamento da capital. 

CAPÍTULO XI 
Antes de se haver movido da capital o destacamento que foi estacionar em 
Afogados, grande confusão dominara nos espíritos dos habitantes desta localidade. 

Foi o caso que pelas oito horas da noite, pouco mais ou menos, dois vultos se 
tinham ido colocar defronte da taberna do Timóteo. 

A alguns fregueses e freqüentadores do taberneiro causou reparo o 
misterioso par que ninguém se animou a ir reconhecer, não obstante a todos parecer 
ele equívoco e digno de recear-se. 

Não se podia confiar no tempo, principalmente nos lugares afastados da vila. 

Roubos e assassinatos repetiam-se a cada canto. Na própria capital os 
habitantes não tinham por seguras nem sua propriedade nem sua vida. Por isso, 
qualquer sujeito duvidoso suscitava, com razão, desconfianças e medos nos homens 
pacíficos que por interesse próprio se apartavam sem demora dos pontos onde tais 
sujeitos apareciam ou podiam aparecer. 

Quem menos se inquietou com os desconhecidos foi o Timóteo que, 
acostumado a tratar, de instante a instante por assim dizermos, com essa espécie 
de gente, se considerava fora de todo risco ainda quando este se desenhasse, como 
em certas ocasiões, com as mais vivas e medonhas cores. A seu parecer, de 
indivíduos tais só tinha ele que esperar favor e proteção, visto que, sendo sua 
taberna ponto obrigado das relações da capital com o centro, quer fosse de dia quer 
de noite, assim de inverno como de verão, tinham eles, como ele próprio, grande 
interesse, se não maior do que ele tinha, em conservar, defender, amparar esse 
poderoso ponto de apoio para os seus dolos, violências e infames ciladas de que era 
vítima o matuto simplório, o sertanejo de boa fé, o mascate, enfim quem quer que 
passava por aquela infernal estância. 

Apontavam-se no lugar outras tabernas, das quais algumas tinham à sua 
frente patrões mais hábeis do que o Timóteo; a do velho, porém, mestre no mister 
como nenhum outro, tinha fama extensa, quase geral na província. Era uma taberna 
tradicional por ter servido muitas vezes de teatro a cenas de sangue e morte. 

Pelas festas de arraial, o jogo, a crápula aí se praticavam com prejuízo 
considerável da ordem pública, da fortuna particular, do sossego e honra das 
famílias. 

Estas circunstâncias, este passado davam-lhe certo prestígio que atraía para 

o imundo balcão, ou para a lôbrega camarinha da tasca o vicioso por hábito, o filho 
da viúva, a rapariga infeliz, os quais iam encontrar debaixo das quatro telhas do 
casebre largo campo onde dar expansão a suas paixões reprovadas. 

Quando algum freqüentador, exaltado pela cachaça, ameaçava esfaquear o 
vendeiro por alguma das suas, respondia ele, abrindo a camisa, e mostrando o largo 
peito coberto de espessos e avermelhados pelos: 

— Pode fazer do peito do velho Timóteo bainha da sua faca. Já bebeu a 
minha aguardente, não será para admirar que queira agora dar meu sangue a seu 
cachorro magro. Mas de uma coisa tenha você certeza; ainda que me mate, ainda 
que me esfole, não passa o gadanho no meu zimbo. Poderá comer mais sardinhas, 
chupar do meu vinho, mas de dinheiro nem ceitil há de cair na sua unha. 
Timóteo dizia a verdade. Ele tinha todo o seu haver amoedado em lugar só 
dele conhecido. 

Ficara só no mundo depois da morte da Chica, e entesourava sem destino o 
que ilicitamente adquiria. Seus únicos companheiros de casa eram um cão e dois 
gatos. Estes últimos comiam com ele à mesa, quase no mesmo prato, e, para bem 
dizermos, dormiam na mesma cama. 

Por isso, quando viu os misteriosos vultos parados defronte da taberna; 
quando os viu mais tarde dirigir-se para esta no momento em que ele ia fechar as 
portas por se haver de uma vez retirado a freguesia do dia, disse Timóteo com a 
maior fleuma: 

— Podem entrar sem susto, que o Timóteo é amigo. 
Os desconhecidos ganharam de um pulo a tasca, e trataram de fechar as 
portas. 

— Fazem bem — disse-lhes o vendeiro, sem se dar por achado. — O tempo 
não está para graças. Mas se vosmecês estão aqui de emboscada a algum tonante, 
será bom deixarem aberta esta janelinha da porta. 
— Não estamos de emboscada a ninguém, porque quem queríamos já está 
seguro — disse um deles, trancando com a taramela a janelinha indicada. 
— Ah ! Já sei. Querem cear comigo. Não ponho dúvida. 
Os desconhecidos entreolharam-se como se consultassem. 

— Não façam cerimônia, camaradas. Naquela mesinha, que ali vêem, muito 
fidalgo tem feito a sua refeição. Tirem os capotes, se querem estar à vontade; e 
esperem um momento que não há demora. 
Sem esperar resposta, o velho tomou o interior do casebre, e voltou logo, 
trazendo pães, postas de peixe frito, e uma cuia com farinha. 

— Então ? Que fazem ? Vão sentando-se, e toca a comer. 
Não esperem por mim, que sou de casa e não tenho etiquetas. 

E entrou novamente, manifestando, pela prontidão com que tratava de pôr a 
ceia, a melhor vontade de ser agradável aos estranhos hóspedes. 

Não eram estes no todo simpáticos, mas também não eram mal encarados. 

O que representava ser mais moço era seco de corpo, tinha boa estatura, cor 
fula, olhos cintilantes e redondos, cabelo chegado ao casco. O nariz um pouco 

rombo estava em desarmonia com as outras partes da cara onde se lia uma 
expressão de audácia, que respondia bem à agilidade do corpo. 

O outro era feio de feições, baixote e roliço. A cor, o ângulo facial, o cabelo 
carapinha estavam claramente denunciando a sua proveniência africana. 

Por baixo dos capotes, já velhos, cingia-lhe os rins um cinto de couro donde a 
cada um pendia uma espada de ponta direita. Eram as espadas as únicas armas 
que traziam à vista. Sentaram-se à mesa sem tirar os chapéus de palha com que 
estavam cobertos. 

— Vinho ou cachaça ? — perguntou o velho, apontando, de volta, na porta, 
com uma penca de bananas que lhe vinham caindo das mãos de maduras. 
— Vinho — disse o mais moço. 
— Traga da cana para mim — acrescentou o outro. 
— Muito bem — respondeu Timóteo. — Olhem: o pão é da padaria do Zé 
Braga, o peixe é do viveiro do Muniz, a farinha é de Muribeca, e as bananas são do 
meu quintal. A cachaça é do engenho Mendonça, e o vinho é puro de Lisboa. 
No fim da ceia, que as reiteradas libações prolongaram, e que correu 
animada, por mais de um dito, um gracejo, uma sentença licenciosa, o Timóteo 
dirigiu estas palavras aos hóspedes: 

— Não está má esta. Dei-lhes da minha ceia sem saber quem são vosmecês. 
Agora, os seus semblantes, se não me falta a memória, não me são de todo 
estranhos. 
— Assim deve ser — disse o cabra. — Mais de uma vez tenho comprado aqui 
o meu vintém de aguardente. 
— Isto é outro cantar; já vejo que somos conhecidos velhos. 
— Tão conhecidos somos, seu Timóteo — replicou o cabra — , que tomo a 
liberdade de o convidar para um passeio agora mesmo por esta estrada afora. 
— Nossa Senhora da Paz livre-me tal — disse Timóteo empalidecendo. — 
Sair a esta hora, por este tempo, deixar a minha casa à revelia, Santo Deus! Nem 
pensem nisto, meus bons amigos. 

— Não tem que recear, meu caro. Cada um de nós traz, como vê, uma 
espada à cinta, e a sabe manejar. 
— Bem estou vendo — disse Timóteo. — Mas sempre lhes quero dizer: o 
crioulo Gabriel sabia muito bem jogar a espada, e melhor a faca, mas o Cabeleira o 
lambeu. 
— Ah ! o Cabeleira? — disse o negro. 
— Sim, senhor; ele aparece por aqui às vezes; eu o tenho visto fazer proezas 
de espantar. 
— Seu Timóteo — disse o cabra, levantando-se — , fez bem em falar no 
Cabeleira. Eu quero perguntar ao senhor uma coisa… 
Antes que terminasse a sua oração fez-lhe um sinal o negro, e ele disfarçou 
por este modo: 

— Mas é já tarde, e nós não podemos demorar mais. Vem ou não vem ? 
— Para onde, senhor ? — perguntou o vendeiro, levantando-se aterrado por 
haver finalmente compreendido que tinha diante dos olhos dois inimigos. 
— Saberá depois. O essencial é que nos acompanhe. 

— Não posso fazer tal coisa. 
Timóteo recuou instintivamente quando ouviu as últimas palavras do 
desconhecido. Este porém, em um instante o tinha segurado pelos pulsos enquanto 

o negro lhe passava uma corda nos braços. 
— Como é que me fazem isto ? — perguntou Timóteo — Querem matar-me ? 
— Não, senhor — disse o cabra. — Você há de chegar vivo, bem vivo a seu 
destino, ainda que o Cabeleira se meta a tirá-lo das nossas unhas, o que eu duvido. 
— E a minha venda ? 
— A sua venda fica aí; nós não a levamos. 
— Mas... roubam-me tudo, tudo. 
— Não tem você roubado a tanta gente ? 
— Ora ! Feche bem as portas, e avie-se que é tempo. Se não quer ir pelos 
pés, irá amarrado como um porco. 
Timóteo aceitou, contra vontade, já se vê, e por não ter outro remédio a 
situação que lhe afigurou irrevogável. 

—Vista o seu gibão, que você vai ser apresentado a gente nobre. 

— Ah ! — disse o vendeiro, respirando, mas não sem grande espanto, que 
mal disfarçou. 
Pouco depois os três convivas seguiam, a marcha batida, pela estrada de 
Santo Antão. Tendo deixado a taberna, cujas chaves o Timóteo levava consigo por 
permissão dos desconhecidos, haviam estes pouco adiante entrado com ele no 
mato para tomarem dois cavalos que ali tinham deixado ocultos. Em um deles 
montou o negro, e no outro montaram o cabra e o vendeiro, este passado de medo, 
que o acaso não era para menos, aquele guardando-o na garupa, e tendo uma faca 
nua na mão. Tomaram novamente a estrada, e logo desapareceram como sombras 
fantásticas, no fundo da escuridão. 

Conforme a deliberação tomada no senado da câmara pelo governador, 
capitães mores e coronéis de ordenanças, a busca dos malfeitores tinha de ser dada 
ao mesmo tempo nas matas dos respectivos distritos. 

— Estes bandidos — dissera o governador — fazem-nos maior dano do que a 
fome, a peste e a guerra. Matam a sangue frio, para roubarem a fazenda àquele que 
pacificamente a ganhou com o suor do seu rosto. Penetram nas casas, nas lojas, 
nos engenhos, nos próprios templos, e, tirando daí o fruto da economia e o trabalho 
honesto e esforçado da propriedade alheia, vão consumi-lo nas suas orgias e delírio. 
A sua passagem o pobre não fica privado somente das suas migalhas; fica também 
privado da sua honra, da honra das suas filhas; se não atrevem a fazer hoje o 
mesmo aos ricos e nobres, amanhã o farão, animados por um longo passado para o 
qual não posso volver os olhos senão com tristeza, porque ele diz que aos meus 
predecessores faltou animo para esmagar a hidra do crime, ou que foram eles 
indiferentes aos males privados e publicados que resultaram da sua impunidade 
dela. Não quero que o meu nome passe à história de envolta com essa impunidade; 
há de passar com o lustre da autoridade que se faz respeitada por cumprir com zelo 
e coragem os seus deveres, entre os quais se conta o de castigar os delinqüentes. 
Fio que os senhores capitães mores e coronéis hão de auxiliar a administração, que, 

nestes intuitos, não atende senão à glória de sua majestade, que Deus guarde, e a 
paz e felicidade dos povos. A falta de tropas será suprida pela criação de milícias 
provisórias, e locais para o fim único de acabar com os coutos dos facinorosos; e a 
de dinheiro sê pelo erário régio, que segundo me autorizou sua majestade por carta 
firmada por sua real mão, adiantará por empréstimo a quantia necessária para a 
mantença dessas tropas até que de todo se tenham aniquilado os coutos. O erário 
será ressarcido das quantias que houver adiantado, por meio de um imposto que se 
lançará para o dito fim sobre os povos dos distritos rurais, ou dos que ficam distantes 
desta vila duas léguas, atendendo-se a que a estes o benefício da extinção dos 
coutos ocasiona particular proveito. 

Nenhum dos convocados teve que opor ao pensamento e vontade do 
governador, conhecido como uma autoridade arbitrária. Todos, ao contrário, votaram 
por estas idéias, certos de que se atendia por tais meios a uma necessidade pública 
da maior magnitude. "José César governou arbitrariamente, é verdade, diz um 
historiador, mas as suas arbitrariedades raras vezes deixaram de ter um fundo de 
justiça. Na punição dos delinqüentes foi infastigável". 

Chegado a seu distrito, cada capitão mor tratou de levantar a milícia volante, 
a qual foi formada dos indivíduos solteiros, maiores de vinte e menores de quarenta 
anos, com exclusão somente daqueles que por si dessem outrem. 

Não foram poucas as dificuldades que tiveram de vencer para que se 
formassem os contingentes, destinados a pacificar o interior. 

Não sabendo o verdadeiro fim que se propunha a autoridade com a fundação 
desses contingentes, suspeitaram os povos uma grande leva para fora da terra para 
combater o estrangeiro. Mas os capitães mores conseguiram desvanecer as 
suspeitas por meio de afirmações sob palavra de honra. Naqueles tempos a palavra 
do homem eqüivalia a jurídica obrigação ou a solene tratado, e a honra era digna e 
eficazmente representada por um cabelo da barba. Hoje, as próprias palavras dos 
reis tornam atrás, as convenções diplomáticas não passam de ciladas internacionais, 
a honra tem-se refugiado nos retiros com medo da publicidade, que a expõe a geral 
pouco caso. 

Temos subido muito nas ciências, indústrias e artes, sem exceção da arte de 
governar; mas, em ponto de honra, em virtudes cívicas, em moral doméstica, a 
nossa decadência, impossível de recusar, atesta que temos levado a obra da 
reformação além dos limites pertinentes, e prova a necessidade de transplantarmos 
das ruínas do passado, onde vicejam esquecidas, algumas plantas modestas, cujas 
flores purificam o ar com seus perfumes, e cujos frutos formam sangue novo e são. 

O capitão mor de Santo Antão, querendo avantajar-se aos outros, antecipou-
se nos meios de por a mão nos malfeitores. 

Sabia ele das assíduas relações do Cabeleira com o velho taberneiro, a 
princípio por mera suspeita, e posteriormente por informações que tomou de 
agregados e ordenanças seus, alguns dos quais, de passagem para o Recife, 
entravam na taberna, bebiam nela o seu grogue, e algumas vezes até ali 
pernoitaram. No dia fatal, em que o famigerado bandido tirava a vida aos dois 
meninos, passara por Afogados o capitão mor momentos depois do dobrado delito. 

O comércio ilícito do taberneiro, a sua má fama, as suas estreitas ligações 
com sujeitos mal vistos de todos, principalmente com o Cabeleira, deram-lhe a 
convicção de que qualquer diligência, que tivesse por fim a prisão dos delinqüentes 
não poderia surtir efeito se não fosse precedida da prisão do taberneiro. Duas 
praças de sua confiança foram por ele encarregadas de levarem o velho a sua 

presença sem que se soubesse para onde nem como ele fora. Alexandre, o negro, e 
Valentim, o cabra que vimos ceando com Timóteo e que por sobremesa o 
prenderam foram as tais praças; e a vista do modo como se houveram, cabalmente 
justificaram a confiança do capitão mor. 

Ia amanhecendo quando os três cavaleiros se apearam na porta deste. 

As casas do povoado estavam ainda fechadas, e ninguém os viu entrar; o 
capitão mor que levara a noite em claro, à espera dos seus comissários, foi abrir-
lhes a porta em pessoa. 

Timóteo, posto em confissão, negou tudo ao princípio, saindo-se, com várias 
evasivas, das redes que lhe lançava o capitão-mor, perito em interrogar. 

Quando porém a sua vida ameaçada; quando formalmente se lhe declarou 
que a sua morte seria inevitável se não auxiliasse com lealdade a ação da justiça na 
busca dos criminosos; quando o Alexandre de espada desembainhada, e o Valentim 
de faca na mão, receberam do capitão mor ordem para infligir-lhe a pena última 
dentro da capoeira próxima; quando se viu arrastado por eles ao teatro onde se lhe 
destinara o trágico fim que horroriza todo homem — a morte natural, o instinto da 
própria conservação retomou ao cálculo e às manhas do vendeiro os seus direitos. 
Confuso e abatido, Timóteo aceitou o odioso papel que lhe foi distribuído naquela 
grave representação em que importantes interesses e muitas vidas iam correr 
iminente risco. 

Timóteo conhecia todos aqueles lugares onde tinha andado na sua mocidade 
em dias de feira de gado. 

A seca que estava devastando a província tinha-lhe proporcionado ocasiões 
de conhecê-los melhor. A escassa farinha, os poucos legumes e outros comestíveis 
que apareciam nas feiras gerais eram logo comprados por atravessadores que os 
iam revender com usura no Recife. Nos primeiros tempos Timóteo resignou-se a ver 
passar os produtos no poder dos atravessadores; mas faltando-lhe esses produtos, 
não só para os expor na sua taverna, senão também para o próprio uso, tomara o 
acordo de ir pessoalmente um sábado por outro a Santo Antão prover-se do 
necessário para a semana. Quando o Cabeleira estava na mata, Timóteo ia ter com 
ele e lhe comprava por quase nada o que muitas vezes tinha custado a vida do 
pobre roceiro, que deixava mulher viúva e uma infinidade de filhos na orfandade. 

Destarte estava ele senhor dos caminhos e carreiras que iam ter à encoberta 
onde entrava com familiaridade, e donde saía como amigo. 

Ele sabia que o Cabeleira se achava na terra por haver estado de passagem 
na sua taverna, conforme vimos. De tudo informado, o capitão-mor aguardou 
ansioso a noite seguinte, para dar começo à batida da mata. Com o fim de iludir 
porém a vigilância dos assassinos e escusar as suas suspeitas, mandou notificar as 
praças do contingente para que se achassem em um ponto das matas do seu 
engenho, ao qual cada um devia dirigir-se desacompanhado a fim de não dar na 
vista de quem quer que fosse. 

Tanto que anoiteceu, o capitão mor deu ordem para que Valentim, Alexandre 
e dez matutos experimentados se trepassem em árvores próximas das quais 
pudessem observar o rumo que os malfeitores tomassem depois do escurecer. 
Estas sentinelas perdidas deviam dar aviso à tropa que estava no engenho, para 
que ela, guiada por Timóteo, corresse a tomar as entradas, e pudesse prender os 
malfeitores em sua volta ao couto. Foi o que sucedeu. Quando Valentim viu os 
ladrões tomarem, à boca da noite, pelo caminho da engenhoca, desceu-se da 
pitombeira onde se trepara, montou no cavalo que tinha preso de prevenção dentro 

de uma moita, e correu ao engenho. A tropa moveu-se incontinente, sob o imediato 
comando do capitão mor. 

Dividida a metade dela em tantos piquetes quantas eram as picadas secretas, 
tomou todas estas, e achou-se em condições de interceptar a passagem daqueles 
para o ponto central. A outra metade, colocada a um lado da mata a distancia 
conveniente, pôde acudir aqueles pontos logo que o Valentim que depois do aviso 
havia voltado ao seu posto, foi informá-los da volta dos malfeitores. Assim, acharam-
se estes, quando voltaram da engenhoca, entre duas colunas inimigas, às quais 
forçado foi entregarem-se, quase todos com a morte. Ao Joaquim se poupou a vida, 
a fim de se cumprir a determinação do governador, não só a respeito dele, mas 
também do Cabeleira e do Teodósio para fins de alta justiça. 

Quando o Cabeleira se afastou com Luísa da beira do rio para o alagadiço, o 
Valentim estava dando o seu segundo aviso, e eles puderam, por isso, escapar à 
sua inspeção. 

Tinha ele, porém, ouvido antes, de cima da pitombeira, o diálogo do Cabeleira 
com o Teodósio, e sido causa do ruído que espantara o cavalo deste último. Tinha 
visto aquele encaminhar-se à engenhoca, o que o fizera acreditar que entre os 
malfeitores, que tinham de tornar, e efetivamente tornaram à mata, se achava o 
famigerado bandido, alma do couto, terror dos povos. Não lhe parecendo, por isso, 
necessário vigiar o terrível salteador, que ele considerava seguro com os outros na 
armadilha que lhes havia armado, consagrou-se todo a evitar que lhe escapasse o 
Teodósio. E como queria ter grande parte na glória que resultasse da extinção dos 
célebres assassinos, voltou sobre seus passos à estrada, e encaminhou-se ao 
povoado. 

Valentim era bravo como uma onça, e tinha deste animal a agilidade e a 
destreza no mais alto grau. Confiava, não só nestes dotes naturais, mas também na 
sua espada de ponta direita que muitas vitórias já lhe havia proporcionado. Ele 
jogava com insigne habilidade esta arma. 

Pouco adiante ouviu vozes. Apressou os passos, e encontrou-se face a face 
com o Teodósio, que, nada sabendo do que havia, demandava o couto. 

Com ímpeto de fera botou-se a ele, não para vencê-lo mas para matá-lo. 

— O seu gracejo é pesado, camarada — disse o Teodósio, recuando ante a 
brutal investida. 
— Valentim não graceja. Rende-te, cabra Teodósio; ou então reza o ato de 
contrição, que esta é a tua derradeira. 
— Se eu trouxesse a minha espada, não lhe enjeitada o bote. E se quer saber 
para quanto presta o cabra Teodósio, embainhe o seu ferro, e vamos decidir da 
sorte pela faca. 
— Não estou para tuas parolas, cabra safado. Se não te entregas já nas 
mãos do Valentim, que nunca escolheu armas para provar que é homem, tiro-te o 
couro antes do amanhecer. 
Teodósio, vendo aquela decisão ante a qual poucos ânimos, talvez 
unicamente o do Cabeleira, deixariam de curvar-se; e conquanto nos recursos do 
seu gênio astucioso que nunca o havia desamparado ainda nos maiores apertos, 
respondeu com voz melíflua: 

— Não me mate, meu amo; o Teodósio rende-se. 

No momento em que assim falava, o Valentim descarregou-lhe tamanha 
pranchada na cara, que ele caiu redondamente no chão. 

Quando voltou a si, tinha nos pulsos enrodilhada uma corda de couro cru, em 
cuja ponta segurava o cabra. 

— Levanta-te, que quero olhar para a tua cara — disse-lhe Valentim 
fustigando o prisioneiro com a ponta da espada. — Onde está a tua fama, cabra 
Teodósio ? 
Este não respondeu. 

Súbita tristeza invadira-lhe o espírito ordinariamente expansivo como o de 
uma criança. 

Tinha ouvido tiros na mata, e conhecido que a situação era mortal. 

CAPÍTULO XII 
Ao amanhecer a região litoral da província desde Alagoas até Paraíba estava 
separada do sertão por cordão sanitário formado pelas milícias volantes dos 
diferentes distritos rurais. 

Todas as matas compreendidas na zona que fica entre a costa e o sertão 
foram batidas ao mesmo tempo. 

Os piquetes que penetram nas de Serinhaém, Água Preta, Muribeca, 
Merueira, S. Lourenço, Catucá, Iguaraçu, Goiana, Pau d"Alho, Limoeiro, 
recolheram-se mais tarde às respectivas sedes, depois de terem realizado 
importantes capturas. 

Assassinos de profissão e de fama, que, protegidos pelas trevas da noite e 
pelas sombras das selvas virgens, tinham horrorizado durante muitos anos as 
povoações pacíficas, apareceram à luz do dia, trazendo nos pulsos cordas e 
algemas que bem denotavam que a justiça dos homens, reflexo ainda que pálido da 
justiça de Deus, cedo ou tarde restaura os seus foros e faz-se respeitar como uma 
fatalidade reparadora. 

O capitão-mor de Santo Antão, justamente vangloriado por ver no seio de sua 
força o Joaquim e o Teodósio, cuja fama ofuscava a de todos os criminosos, com 
exceção somente do Cabeleira, seguiu imediatamente, à frente dela, para o Recife a 
apresentar-se ao governador. 

No caminho de Afogados reuniu-se ela com a força que, tendo aguardado 
nesse lugar aquele dia, designado para a geral batida das matas, se movera pela 
manhã em direitura às que lhe ficavam nos limites ocidentais. As duas forças 
chegaram ao Recife formando uma só expedição que foi recebida pelos habitantes 
com inequívocas demonstrações de consideração e reconhecimento pelo relevante 
serviço que haviam feito. 

Tantos eram os crimes cometidos pelo Cabeleira, e estes crimes haviam sido 
revestidos, na sua maior parte, de circunstâncias tão odiosas, que, quando se 
divulgou que o afamado bandido tinha escapado às malhas da rede da justiça, 
mostras de justo pesar vieram substituir-se nos semblantes de todos à expressão do 
regozijo recente que havia manifestado a população. 

Com raras exceções, não se contava família, desde o Recife até o alto sertão, 
a quem a pela, a faca ou o bacamarte do terrível matador não houvesse roubado 
uma existência querida. 

Por isso, era ele o alvo em que todos haviam posto a mira, e perdê-lo 
montava perder a diligência, ao parecer da maioria. 

Alguns, não sem razão, mostravam-se receosos de que, quando menos se 
esperasse, ele viesse forçar a cadeia do Recife onde tinham sido postos a ferro os 
novos presos, e restituindo-lhes a liberdade de que tão mau uso haviam feito, se 
pusesse com eles novamente em campo para matar com maior ferocidade que 
dantes, roubar sem tréguas, incendiar povoações, reduzir tudo a sangue, ossos e 
cinzas. 

O governador entretanto mal podia conter a. sua satisfação diante do 
resultado das providências que ele próprio havia indicado para a extinção dos 
bandos dos criminosos que infestavam a província. 
Ele conhecia melhor do que o povo e os figurões da vila e da capital, as dificuldades, 
algumas delas invencíveis, que se atravessam naturalmente diante de expedições 
semelhantes. Ele sabia que perseguir através do deserto, para reduzi-los à prisão, 
homens que vivem como as feras, e com elas, no seio de escusas brenhas, de 
regiões inóspitas e desconhecidas, é empresa para grandes ânimos, raros em todos 
os tempos e em todas as terras, máxime naquelas terras em que, como em todo o 
Brasil então, o importante serviço da polícia está por ser organizado, à míngua de 
pessoal apto para isso, de recursos pecuniários, de vias de comunicação interior, de 
prisões e de outros muitos elementos indispensáveis a este grande mister. 

A cadeia, que por poucas alterações passou há poucos anos a fim de servir, 
como serve, para casa do júri e do tribunal da relação, tinha sido dada por pronta 
pelo coronel de engenheiros Costa Monteiro, à câmara nos fins de 1732, e 
preenchia todas as condições de segurança pela sua solidez. Não obstante, ordenou 

o governador que a sua guarda fosse confiada a forças duplas que tornassem 
impossível qualquer tentativa de invasão ou de arrombamento. As vizinhanças 
ofereciam o aspecto de uma praça de armas, principalmente dos lados do norte e 
leste onde a vigilância nunca seria demasiada, por oferecer o rio destes lados fácil e 
natural acesso ao edifício. 
As pessoas de sua intimidade que lhe manifestavam descontentamento por 
não ter sido preso o Cabeleira, respondia o governador: 

— Há de chegar a sua vez. Confio muito em Cristóvão de Holanda Cavalcanti 
que ainda não deixou de corresponder aos intuitos do governo sempre que se trata 
do proveito da colônia. 
Cristóvão de Holanda Cavalcanti, que trazia, como se vê, o nome que seu pai, 
sargento das ordenanças, ilustrara por ocasião da memorável Guerra dos Mascates, 
era o capitão-mor de Itamaracá, e achava-se a esse tempo em Goiana. 

Goiana pertencia então à jurisdição de Itamaracá, que deixara de ser em 
1763 capitania independente, por havê-la comprado d. João V a José de Góis, para 
incorporá-la na capitania de Pernambuco, vendida à coroa em 1716 pelo conde de 
Vimioso, d. Francisco de Portugal, único genro de Duarte de Albuquerque Coelho, 
4.° donatário de Pernambuco. 

Era uma modesta povoação em 1636, quando os esforços de Antônio Filipe 
Camarão que a defendeu com o valor que o caracterizava, não foram bastantes a 
tolher que ela caísse no poder dos holandeses, povo cheio de grandeza, e digno da 
admiração e do reconhecimento dos pernambucanos. Tendo-se mudado em 1685 
para esta povoação a câmara da capitania de Itamaracá, passou ela por este fato à 
categoria de vila. Em 1742 deu-lhe d. João V um ouvidor que foi substituído em 1808 

por um juiz de fora. A sua crescente prosperidade foi parte para que pela lei 
provincial de 5 de maio de 1840 fosse elevada à cidade. 

De presente é Goiana a cidade pernambucana de mais nota, depois do 
Recife, a capital, e de Olinda que figurou, com brilho e bizarria inexcedíveis nos 
tempos coloniais. 

Está em condições, não só de competir com as primeiras cidades interiores 
do norte e do sul do Império, e de se avantajar às capitais de algumas províncias 
que, por motivos de alta conveniência deixamos de apontar aqui, mas até de rivalizar 
com algumas cidades européias de que não pouco se fala nas narrações de 
viagens. 

E se não, vejamos. 

Tem um paço municipal muito decente na rua Direita, e uma matriz e mais 
oito templos que podem pertencer sem desaire a uma capital. 

Tem uma praça de comércio, a qual se estende desde a rua chamada Portas 
de Roma (denominação do tempo dos jesuítas) até ao Beco do Pavão, para não 
dizermos até à rua do Meio, ou à rua do Rio. 

Tem um teatro onde já tive ocasião de ver representar-se o "D. César de 
Bazar", os "Dois Renegados", a "Corda Sensível" e o "Judas em Sábado de Aleluia". 

Tem cafés e bilhares, brinca o Carnaval pelo inverno, toma sorvetes pelo 
verão, dá alguns saraus pelo Natal; enfim, para estar inteiramente na moda, trata de 
iluminar-se a gás, de fundar uma biblioteca popular, e tem já fundada uma loja 
maçônica, denominada Fraternidade e Progresso, a qual tem prosperado 
notavelmente depois das últimas excomunhões que o público sabe. 

É uma cidade onde se pode viver com poucos meios, porque os habitantes 
são hospitaleiros, os senhores de engenho fazem pingues presentes, os 
negociantes vendem fiado e não executam os devedores. 

É plana, limpa, elegante e espalhada. Dela não poderia dizer Ampère o que 
disse de Goteborg, cidade da Suécia que tanto o encantou de tarde com suas casas 
altas e regulares, quando o desiludiu pela manhã sendo vista da torre da catedral, 
por não ser mais do que uma rua. 

Goiana, não só tem muitas ruas, mas também muitos becos, verdade seja 
que alguns deles sem saída. Merecem particular apontamento as suas casas 
brancas que lhe dão certos ares de novidade, ou de noivado, ares que infundem 
indefinível alegria no espírito do hóspede. Se este é lido, entrando em Goiana, logo 
sabe que não entrou por engano em Saint Jean de Luz, ilustre cidade onde se 
celebrou por procuração o casamento de Luís XIV com Maria Teresa de Espanha, e 
que, ao dizer de um escritor, apresenta uma fisionomia sanguinária e bárbara, em 
conseqüência do extravagante uso de pintarem de vermelho antigo os batentes, as 
portas, as gelosias das suas habitações. 

Há um provérbio espanhol que diz: 

Quien no ha visto Sevilla 
No ha visto maravilha. 

Teófilo Gautier pensa que mais justo fora que este provérbio se aplicasse a 
Toledo, ou a Granada, do que a Sevilha, onde nada encontrou particularmente 
maravilhoso, exceto a catedral. 

O poeta sergipano, doutor Pedro de Calasans, que cedo foi arrebatado pelo 
infortúnio e pela fatalidade às musas do norte, dizia outrora, parodiando o provérbio 
espanhol: 

Quem não ama Olinda, 
Não a viu ainda. 

Assim será, assim é. Olinda semelha náiade gentil que adormeceu sobre 
arrelvado morro os pés banhados pelo Atlântico, a cabeça à sombra das mangueiras 
odoríferas. 

Goiana, porém, tem também provérbio seu, e o seu provérbio é de tal 
significação, que, na singeleza em que se expressa, e de que o povo tem o segredo, 
insinua irresistíveis feitiços a favor dela. 

Vê tu, meu amigo, como são expressivas estas reticências duvidosas, 
ambíguas, deliciosamente traidoras:

 Goiana………………. 
Que a todos engana. 

Eu não conheço nenhum tão expressivo na ordem dos rifões populares. 

O vocábulo — enganar — não tem nos nossos dicionários o sentido que a 
inteligência rica e lúcida do povo goianista lhe refere; tem somente a acepção 
ingrata que todos lhe sabemos. 

Mas logo ao primeiro exame se vê que semelhante acepção está muito 
distante da que a imaginação deste grande povo liga ao sobredito verbo, quando 
emprega para exaltar o seu torrão natal. 

A palavra — enganar, que faz parte do rifão, significa — seduzir, cativar, 
prender, mas seduzir com mil agrados irresistíveis; cativar com benignidade tão doce 
e fagueira, que é impossível deixar de ficar dela escravo; prender com tantas 
demonstrações afetuosas, com tamanha benquerença, que em vez de buscar fugir, 
cada vez se sente o prisioneiro mais desejoso de estar nessa suavíssima prisão, de 
não se desligar jamais dos seus deliciosos grilhões. 

Cristóvão de Holanda dirigira em pessoa, como haviam feito todos os outros 
capitães-mores, o seu contingente na batida das matas do seu distrito. 

Não tendo porém encontrado o Cabeleira, mas somente ladrões de cavalos e 
negros fugidos, recolheu-se à vila em paz com" a sua consciência, é verdade, mas 
descontente de não ver coroados dos brilhantes sucessos, que esperava, os seus 
esforços. 

Não lhe custou pouco renunciar ao empenho de pôr nas cordas, como dizia 
ele, o maior facinoroso que pisava em Pernambuco. 

Era presunção geral que a ele caberia, mais dia menos dia, a glória de 
prender o Cabeleira que dava mostras de consagrar particular estimação às matas 
de Goitá, lugar em que nascera e que, posto pertencia neste tempo a Santo Antão, 
ficava mais próximo do engenho Petribu que era propriedade daquele capitão-mor; e 
pertencia então a Goiana. 

Mas o boato falso que correu a respeito da prisão do bandido pelo 
capitão-mor de Santo Antão, desvaneceu toda a esperança que Cristóvão de 
Holanda alimentava a semelhante respeito. 

E que era feito do Cabeleira ? 

Por onde andava ele quando seu nome corria por milhares de bocas um 
milhão de vezes no dia; quando sua imagem enchia o pensamento de um povo que 

o considerava um flagelo não menos fatal do que a peste e a fome que o reduziam à 
dor extrema? 

Dizia-se que o Cabeleira, vendo-se perseguido tão estendidamente, tinha 
rompido, sem deixar traços da sua passagem como costumava, o cordão sanitário, e 
se havia internado nos sertões de Cimbres, ou de Pajeú, donde era impossível 
desentranhá-lo por serem então, como são ainda hoje, quase de todo 
desconhecidos esses medonhos sertões. 

Dizia-se que, tomando para o norte, atravessara o Capibaribe e ganhara a 
ribeira do Pilar do Taipu, na Paraíba, a qual muitas vezes percorrera, tendo-a 
deixado coberta de cadáveres e ruínas. 

Correram estes boatos e outros mais que com estes se pareciam. 

O certo porém é que ninguém sabia do Cabeleira, ente incompreensível que 
surgia de súbito da terra sem ser esperado, e pela mesma forma desaparecia, como 
se metesse por ela adentro, por partes do demo, segundo alguns acreditavam, ou 
por ter em toda a parte parciais, ou protetores, segundo pensavam outros que se 
diziam melhor informados do que os primeiros. 

CAPÍTULO XIII 
O Cabeleira entretanto atravessava matos, riachos e tabuleiros por novos 
caminhos que, infatigável e ousado, ia abrindo, em direitura ao lugar do seu 
nascimento. 

Sentia-se atraído para esse lugar por uma saudade infinda, por uma 
confiança enganosa e fatal. 

Parecia-lhe que ninguém, nem a justiça dos homens nem a de Deus, na qual 
desde os mais verdes anos o tinham ensinado a não acreditar, teriam poder para 
arrancá-lo desses sombrios e protetores esconderijos, dessas grutas insondáveis, 
perpetuamente abertas às onças e a ele, perpetuamente fechadas ao restante dos 
animais e dos homens que não se animavam a transpor-lhes o escuro limiar com 
receio de ficarem sepultados para sempre em tão medonhos sarcófagos. 

Tendo-se afastado do pé da mata onde haviam sido vencidos e capturados 
em seus redutos os outros malfeitores, descreveu uma oblíqua de cerca de uma 
légua no rumo do ocidente e desceu depois a uma distancia donde pudesse ter 
debaixo das vistas o Tapacurá, que lhe servia de guia através do sertão. 

Estava em pleno deserto. Do lado direito protegiam-no estendidos tabocais e 
profundas gargantas de serra inacessíveis, sem habitação, sem viva alma; do outro 
lado do rio um espinhal basto, alguns serrotes escalvados, catingas sem fim, brejos 
combustos do calor do sol completavam o largo amparo que lhe abria em seu seio a 
natureza. 

Com a seca abrasadora essa região, que nunca fora amena, ainda na forca 
do verde, estava inóspita, árida, cruel. 

Via-se a espaços um pé de xiquexique perdido nos alvos tabuleiros, ou entre 
serros alcantilados, e junto do rio uma ingazeira com a folhagem coberta de 
samambaia, um juazeiro solitário e sem fruto. 

Seria meio dia. 

Bem que o Cabeleira pelo longo hábito de jornadear por dentro dos matos, e 
pelo cuidado que tinha de escusar importunos encontros, só à sombra das árvores 
fazia a travessa do deserto; contudo entraram ele e Luísa a experimentar o cansaço 
que o excessivo calor gera máxime durante uma viagem de muitas horas. 

Luísa mal se podia ter sobre o cavalo, que nem ao menos oferecia o cômodo 
de uma regular montaria. A marcha do pobre animal tanto mais penosa tornava para 

os fugitivos quanto as forças lhe iam faltando em conseqüência do longo jejum, e da 
puxada viagem. 

Desde muito tempo afeito a viver no deserto, tinha o Cabeleira adquirido uma 
virtude — sóbria, obra de longas privações, e fonte de admirável heroísmo; não 
assim Luísa, pobre menina, criada com grande afeto, e maternal solicitude. 

Não tivera ela uma existência de gozos e grandezas, mas nunca lhe faltaram 
os cômodos que assegura a vida regrada da família, que, embora pobre, encontra 
no trabalho e na economia recursos folgados para todas as necessidades até alguns 
confortos. A sombra de um jatobá o Cabeleira parou, e, lançando o olhar por toda a 
natureza, que os abraçava como a imensidade abraça um ponto: 

— Estamos fora de perigo — disse para Luísa. 
Esta chorava em silêncio. Em seu rosto abatido, mas sempre belo 
transparecia a mágoa profunda que lhe minava o coração, onde se refletia a viva 
lembrança das cenas da noite anterior. 

— De que chora, Luisinha ? — perguntou-lhe o bandido com doçura. 
Só com a mudez e as lágrimas lhe respondeu a moça, em cujo espírito se 
haviam concentrado todas as sombras da tristeza, sombras espessas em que o sol a 
pino não pode lançar um raio de luz sequer. 

— Está cansada, não é, meu amor? — perguntou o Cabeleira. — Estou para 
morrer. Sinto uma pena imensa no coração, e dores insuportáveis na cabeça. 
— Não me queira mal, Luisinha, por eu ter sido a causa de todo este 
destroço. 
— Não lhe quero mal; quero-lhe bem, muito bem, Cabeleira. Mas não posso 
esquecer-me de minha mãe, nem poderei resistir à minha desgraça, que eu 
considero muito maior do que a sua. 
— Descansemos um pouco à sombra deste jatobá. Terei tempo de procurar 
algumas frutas para você comer. 
— Não tenho fome, só tenho sede. 
— Vamos então arranchar-nos debaixo daquela ingazeira, que fica a poucos 
passos do rio. 
Tendo-se apeado ao pé da árvore indicada, o Cabeleira peou o cavalo em 
uma baixa que formava a margem, da qual não havia desaparecido de todo a grama 
nascida com o último inverno; e sem demora desceu ao poço contíguo para apanhar 
água em uma casca de sapucaia que descobriu por acaso entre umas folhas secas. 

Notou que quanto mais se estendia a depressão do terreno para o lado do rio, 
mais aumentava a verdura que a revestia. Conheceu por fim que havia dado em 
uma vazante. 

Semelhante achado pareceu-lhe coisa extraordinária naquelas alturas ínvias e 
desertas. Mas não se tinha enganado; a região que se lhe oferecia à vista não era 
de todo desabitada; ali brilhavam vestígios da mão do homem; ali havia o cunho de 
um esforço de que ele nunca fora capaz, o cunho do trabalho. 

Era pequena a plantação, mas tida, ao que parecia, em alta conta por quem 
quer lhe consagrava os seus cuidados e vigilância. 

Estava verde, limpa, matizada de frutos. Com os ramos do jerimunzeiro se 
confundiam as folhas lanceoladas do batateiral. Ao lado da melancia lourejava o 
melão, de que recendia suave cheiro; e dentre o entretecido de verdura formado 
pelo conjunto dos ramos rasteiros em que se achavam presos estes deliciosos 
presentes da terra, levantavam-se ao céu, de covas eqüidistantes, os pés de milho 
com seus pendões inclinados e suas corpulentas espigas, em torno das quais se 
esparziam os fulvos cabelos que costumavam adornar estes abençoados frutos. 

É indescritível o prazer que sentiu o bandido ao deparar com aquele tesouro. 

Tinha a seu alcance com que matar a fome, cujos efeitos começava a sentir, 
tinha um presente que oferecer à sua companheira, extenuada de fadiga. 

Separar do pé com a faca, duas melancias, e quebrar algumas espigas foram 
operações que o Cabeleira praticou em menos de um minuto. O estalar do milho 
despertou um rapazito, que, achando-se ali para enxotar as maracanãs que 
destrõem os milharais, adormecera ao calor do meio dia na extremidade da vazante 
debaixo de uma latada formada pelos ramos de um pé de maracujá que, com a 
frescura do solo, se mostrava verdejante e florido. 

— Ladrão ! Ladrão ! — gritou o rapazito com valor e força superiores aos que 
o seu corpo e estatura prometiam. 
E armado com um pau, investiu contra o Cabeleira, que a inesperada 
aparição deixara um instante perplexo com parte do furto em uma mão, e a faca nua 
na outra. 

O rapaz ganhou em poucos passos a distância que o separava do bandido, e 
descarregou sobre a cabeça deste, sem dizer tir-te nem guar-te, o pau que trazia 
alçado. O Cabeleira em represália atirou-lhe um golpe com o intuito de cortá-lo de 
meio a meio, intuito que foi burlado por Luísa que-lhe havia pegado do braço a 
tempo de evitar a desgraça iminente. 

— Cabeleira ! Queria fazer uma morte ainda ? Meu Deus, abrandai-lhe o 
coração. 
— Luisinha, eu não sei bem o que queria fazer — disse o moço caindo em si. 
— Mas este dorminhoco deu-me com o seu graveto como se eu fosse algum pinto. 
— Quero-lhe muito bem, meu amor — acrescentou a moça com a profunda 
ternura que, quando verdadeiramente quer e sente o que quer, a mulher sabe ter no 
olhar, no gesto, na voz. — Mas quando o vejo como agora de arma em punho, 
ameaçando com certeiros quais são os seus, a vida de alguém, sinto tão grande dor, 
que você não pode compreender o meu padecimento. 
Cabeleira inclinou os olhos ao chão, meteu a faca na bainha e deu a andar 
com os frutos debaixo do braço. 

— Para que traz você estes frutos consigo ? — perguntou-lhe Luísa. — Eles 
não nos pertencem, e não podemos apossarmos, contra a vontade de seu dono, 
daquilo que não é nosso. 
— Que vamos comer ? — perguntou muito naturalmente o mancebo. 
— Comeremos o que nos der o mato. Deus está em toda parte, e não se 
esquece dos que invocam a sua proteção. 

Cabeleira submisso e humildemente depôs as frutas no chão sem mais 
reparo. Quanto ao rapazito, guarda da vazante, havia desaparecido desde que 
ouvira pronunciar o nome, que de sul a norte significava, para grandes e pequenos, 
roubo e atrocidade. 

Nova surpresa os esperava na margem, onde o bandido foi dar com dois 
indivíduos que de pé o olhavam do alto de uma pedra, tendo um deles pelo cabresto 

o árdego alazão, já livre da peia com que o atirara ao campo o Cabeleira. 
Defronte da árvore, a cuja sombra os fugitivos haviam descansado, formava o 
terreno uma grande ribanceira. 
Os desconhecidos estavam aí com a frente voltada para a vazante, o lado 
direito para o continente, e o esquerdo para o rio, que nessa altura era largo e 
profundo. 

— Parece que você veio enganado, camarada — disse o Cabeleira, saltando 
em um minuto aos pés daquele que tinha pela mão o cavalo. — Este animal não lhe 
pertence. 
— Este animal é meu no céu e na terra. Há dois dias o furtaram do meu 
roçado no Angico Torto. Pus-me na batida do ladrão, e finalmente vim dar com o 
meu cavalo. Ele é meu, tão certo como estou aqui. Tem o meu ferro na anca direita, 
e você o pode ver, se ainda não se quis dar a esse trabalho. 
— Pois o que eu lhe digo, camarada, é que fosse ele de quem fosse, por mais 
homem que seja, ninguém será capaz de tirá-lo do meu poder. 
— Isto agora é que havemos de ver — disse o desconhecido, batendo mão 
da faca que trazia no cós da ceroula e fazendo-se prestes para lutar pela 
reivindicação da sua propriedade. 
— Monta no teu cavalo, Marcolino — gritou o outro desconhecido ao 
companheiro; — monta no teu cavalo e vai-te embora, que eu só sou demais para 
lamber este cabra. 
Ainda bem não tinha acabado, quando cortava os ares um corpo semelhante 
a tronco de árvore que o furacão arrebata às florestas e arroja a distancias 
incomensuráveis. O fanfarrão fora jogado com todos seus bélicos aprestos dentro do 
poço pelas mãos possantes do famoso matador. 

— Cabeleira ! — gritou Luísa, correndo ao lugar onde em menos de um 
instante se passara a inesperada cena. 
Marcolino, que a esse tempo se achava montado no alazão, tendo ouvido 
este fatal apelido, deu de pernas ao cavalo e fugiu evidentemente aterrado como se 
a seus pés houvesse visto cair um raio. 

O Cabeleira, entretanto, tinha corrido ao pé da ingazeira onde havia deixado o 
bacamarte quando se apeara. Mas não logrou levá-lo ao rosto para dispará-lo como 
pretendia, contra o fugitivo, porque Luísa, unindo-se com ele, e buscando arrancar-
lhe a arma das mãos, lhe disse com voz magoada, entre exprobração e pranto: 

— Por que não me tira a vida de uma só vez, Cabeleira ? 
Diria que Luísa estava possuída de um espírito angélico. 

— De ontem para cá — prosseguiu ela — tem jurado milhares de vezes não 
derramar mais sangue sobre a terra, e milhares de vezes tem quebrado seus 
juramentos ! Sempre que falta à sua palavra, atravessa sem o suspeitar o meu 
coração com sua faca. Não demore mais o meu penar, mate-me de uma vez. 
Perdôo-lhe a morte, por Deus lhe juro, por Deus que nos está ouvindo no meio desta 
solidão. 
Luísa tinha-se insensivelmente ajoelhado aos pés do bandido, e lhe abraçava 
as pernas com mostras de irrepreensível afeto. Dos olhos rolavam-lhe lágrimas 
como contas de rosário espedaçado. 

Estático, e confuso, não achou José palavras para responder à exprobração e 
rogativas que aquele coração generoso ditava inspirado pela piedade de uma alma 
grande e terna. 

— Não me fale assim, Luisinha — respondeu enfim o bandido, levantando-a e 
abraçando-a.—Quando eu a vejo chorar, sinto-me enfraquecer; quando você me 
pede alguma coisa, sou incapaz de negar-lhe, ou de resistir à sua vontade. 
— Mas de que serve o que me diz, se não se esquece da sua vida tão triste e 
infeliz ? Cabeleira, por que não se há de tornar brando e terno como Luísa ? Olhe. A 
morte está mais perto de mim do que... 
— A morte ! — exclamou o bandido. 
— Sim; dentro em pouco eu o deixarei, mas enquanto não nos separarmos, 
poupe-me estas cenas que me transpassam o coração. Quando eu desaparecer de 
seus olhos, não se considere só no mundo. No lugar que meu corpo deixar vazio ao 
pé de si, há de ver sempre a alma benévola da pobre Luísa; ela o acompanhará por 
toda parte para inspirar-lhe os bons pensamentos e aconselhar-lhe a prática das 
boas ações. Por que não me dá consolação de reconhecer em você desde já um 
espírito arrependido dos passados erros ? 
— Ah! Luisinha! Você me abranda com suas palavras, em sua presença eu 
me considero uma criança. 
— É Deus que me ajuda a quebrar seus ímpetos, a moderar sua cólera. Ele 
há de ouvir todos meus rogos, há de inspirar-lhe horror ao sangue e aos 
instrumentos que o derramam. 
Cabeleira, como se tivesse recebido nestas palavras aviso celeste, replicou: 

— Não levantarei mais minha mão contra ninguém, Luisinha. Quer uma prova 
desta resolução ? Veja. É a maior que lhe posso dar. 
Tirou o fuzil e a pedra do bacamarte, os quais meteu na algibeira da véstia. 

E por um desses sublimes impulsos que só visitam o homem uma vez na 
vida, arremessou a arma dentro do rio. Este ato foi seguido de outro que o 
completou e confirmou. Batendo com a faca sobre uma pedra que ficava na 
ribanceira, fez saltar dentro da água metade da folha de aço que tinha cortado o fio 
de muitas vidas preciosas, e feito correr muito sangue inocente sobre a terra. 

O bandido obrou estas duas ações com tanta fé e grandeza d"alma, que Luísa 
correu a ele dominada de peregrina comoção, e o apertou em seus braços. 

Só o deserto foi testemunha desta grande cena, porque eles estavam, como 
havia poucos, sós. 

O menino que guardava a vazante havia desaparecido logo que ouvira 
pronunciar o nome do Cabeleira. 

Os dois desconhecidos, um salvo das águas, outro salvo do tiro iminente, 
tinham corrido a refugiar-se no seio da espessura. 

— E agora, Luisinha, terá ainda alguma coisa que dizer de mim ? — 
perguntou José com ingenuidade infantil. 

— Os meus rogos foram ouvidos por aquele que dali nos vê e ouve como pai 
misericordioso. O medo que eu tenho agora é que as tropas o peguem e o roubem 
de meus braços ! Oh ! fujamos já deste lugar. Quem sabe se aqueles homens não 
correram a denunciá-lo ! Misericórdia, meu Deus ! Que fazemos ainda aqui ? 
Puseram-se no mesmo instante a caminho na direção do ocidente. 

CAPÍTULO XIV 
O sol chegou ao horizonte, e as sombras começaram a vasta solidão. 
O Cabeleira parou ao pé de um serrote, e escutou. 
Um ruído estranho vencia a distancia e vinha ecoar aos ouvidos dos fugitivos. 

— Estamos perto — disse ele. — Não houves este barulho? São as águas do 
Tapacurá que caem no Capibaribe. De madrugada atravessaremos este rio, e se 
bem andarmos poderemos estar depois de amanhã a esta hora em Goitá, terra do 
Cabeleira. 
— Ai ! disse a moça. — Não posso mais. 
Tinha as faces em brasa, e os olhos, injetados, acusavam a febre ardente que 
a consumia desde a noite anterior. 

— Não esmoreças, meu bem — disse o mancebo. — Havemos de ser felizes. 
— Onde ? Neste mundo ? — perguntou ela com incredulidade. — Na terra 
não há felicidade, Cabeleira; na terra só há dores e prantos, saudades e remorsos. 
— Pois eu te mostrarei que se pode ser feliz no deserto, no fundo das 
brenhas. Não matarei mais a ninguém, meu amor. Bem dentro da mata virgem, em 
um lugar que só eu conheço, há um olho d"água, que nunca deixou de correr. Junto 
deste olho d"água há uma chã, no fim da chã um bosque, e por detrás do bosque 
uma montanha imensa que rompe as nuvens. O olho d"água nos matará a sede todo 
o ano, na chã levantarei uma casinha de palha para nós; no meio do bosque abrirei 
um roçado que nos há de dar farinha, macaxera, feijão e milho com abundância; e 
quando a seca for muito forte, como esta, subiremos a serra, e aí passaremos dias 
melhores. 
— Se assim fosse… Se assim pudesse ser… — balbuciou Luísa. 
— Por que não ? 
— Por que ? Porque a desgraça aí está para desmentir o seu sonho, 
Cabeleira. 
— Olha, Luisinha. Os homens me deixarão logo que eu não os ofender mais. 
Não sei ainda trabalhar, mais hei de saber. Tu me ensinarás, e eu aprenderei. 

O Cabeleira disse estas palavras com a ingenuidade e doçura de uma 
criança. Luísa não se pôde conter; correu a ele, e pela segunda vez o apertou em 
seus braços e cobriu com as suas lágrimas. Ele abraçou-a e beijou-a com a efusão 
do primeiro amor, que, depois de longamente adormecido, desperta de súbito com 
as energias que cresceram durante o sono, e se fizeram forças invencíveis. 

— Ali adiante — disse o Cabeleira apontando para um embastido de árvores 
que aparecia ao pé de um serrote — poderemos passar a noite, a nossa primeira 
noite de noivado. 
Luísa estremeceu, e suspirou. Se não se tivesse arrimado ao braço do 
bandido, teria caído. 

— Triste noivado, Cabeleira, triste noivado, que se cobre de prantos e luto. 
— Não te amofines assim. O Cabeleira não é mais o assassino, Luisinha. O 
ladrão, o matador já não está aqui ao pé de ti. Quem aqui está é um homem que 
quer ser um homem de bem. 
Deram o andar para o lugar indicado. 

A este tempo o sol tinha desaparecido, e o horizonte estava já envolto nas 
sombras precursoras da noite. Nem leve brisa movia as folhas dos matos mudos e 
quedos. 

Os perfis das árvores solitárias desenhavam-se, no fundo do pavoroso ermo, 
como perfis de fantasmas. 

Os fugitivos entraram no embastido, e depois de alguns passos deram em 
uma clareira, espécie de asilo reservado pela natureza aos peregrinos que vagam 
sem rumo e sem guia. 

Uma fogueira foi logo improvisada para terem luz durante a noite e evitar que 
se aproximassem as onças cujos uivos medonhos começaram a repercutir nas 
quebradas e gargantas das serras. 

Procurava o mancebo galhos secos para entreter o fogo quando, ao pé de 
uma árvore que se levantava a um lado da clareira, deu com uma tosca cruz de pau 
cravada na terra. 

Era quase noite, e, no meio das sombras crepusculares, confundiu ele ao 
princípio o emblema da redenção com um tronco de árvore cortada por algum 
viajante transviado, ou despedaçada pela tormenta. 

Quando reconheceu o sagrado emblema, o Cabeleira, suspenso pela 
surpresa, sentiu-se abalado ao mesmo tempo por uma comoção desconhecida. No 
lugar ocupado pela cruz tinha ele assassinado um ano antes um marchante de 
gados para lhe roubar o dinheiro que trazia da feira em Santo Antão. 

O bandido voltou o passo atrás horrorizado e correu em busca da moça, 
gritando, como um menino: 

— Luisinha ! Luisinha !… 
A moça aflita sem saber por que, lançou-se ao seu encontro e o recebeu em 
seus braços. 

— Ninguém te há de tirar daqui — disse ela, suspeitando que o queriam 
prender. — Não, não, tu me pertences. Deus ajudou-me a parar-te no caminho do 
bem. Ninguém tem mais o direito de te perseguir. 
— Eu o vi lá outra vez, Luisinha. Ele olhou-me silencioso e triste. 
— Ele quem ? — perguntou ela. 
— O marchante; o velho a quem assassinei para roubar. Lá está ele com os 
cabelos brancos ensopados em sangue. 
— Meu Deus ! Meu Deus ! — exclamou a moça. — Cometeste ainda um 
assassinato, Cabeleira ? Meu Deus, quanto sou infeliz ! 
— Não, não foi agora; faz um ano; foi ali, junto do jatobá. Olha; não vês 
aquela cruz de pau enterrada no chão ? Foi aí que matei o sertanejo. 
É impossível descrever a comoção de ambos. O sítio, a hora, tudo concorria 
para dar à impressão uma intensidade que ia ao fundo do coração, à medula dos 
ossos. 

— Estou-me lembrando de tudo — prosseguiu o bandido. — Eu estava 
sentado, com o clavinote atravessado nas pernas debaixo daquele pé de pau. Ouvi 
as pisadas de um cavalo, e o estratar garranchos e cipós que se quebravam. Meti-
me um pouco mais para dentro, a fim de ver, sem ser visto, quem é que vinha. Eu 
estava com fome, e não tinha dinheiro nenhum. "Se fosse um homem que trouxesse 
dinheiro", pensei eu, "estava muito bem !" Neste momento o cavaleiro passou por 
diante de mim. Trazia chapéu novo, um gibão de pano fino azul, botas lustrosas e 
esporas de prata; montava um cavalo ruço pombo, gordo e passeiro. Conheci logo 
que era um marchante. Levei o bacamarte ao rosto, e quando o cavaleiro quebrou 
ali à direita para tomar o vau do rio, fiz-lhe fogo na cabeça. Corri com a minha faca 
na mão ao lugar onde ele havia caído. Estava morto; a bala tinha-lhe entrado ao pé 
da orelha direita e saído acima do olho esquerdo. Ambos os olhos estavam da 
banda de fora, o cabelo e a barba nadavam em sangue. Tirei-lhe um maço de 
patacões que trazia em um dos bolsos do gibão, o punhal aparelhado de prata, os 
botões de ouro, o relógio e as esporas; e meti-me no mato virgem. 
Luisinha mal pôde ouvir esta história que foi rapidamente contada, com vivas 
e medonhas cores. 

— Misericórdia, Senhor ! — exclamou ela. 
— Ele lá está, Luisinha, de pé, com o chicote na mão, olhando para mim com 
os seus olhos mortos, à flor da cara. 
A moça meditou um momento. 

— Vamos — disse por fim, encaminhando-se para a sepultura; — vem 
comigo. 
— Oh! não; aquela visão me aterra. Nunca tive tanto medo, eu que vi imensos 
cadáveres banhados em sangue aos meus pés. 
— O medo passará em um instante, Cabeleira. 
— De que modo, Luisinha ? 
— Vamos. Vem rezar comigo em cima da cova ao pé da cruz. 
— A rezar ? 

— Assim que tiveres rezado um Padre Nosso e uma Ave-Maria em tenção do 
morto, sua alma desaparecerá de tua vista. Vamos, Cabeleira. 
O bandido deixou-se ir a modo de arrastado pela moça que parecia, com seu 
vestido azul e seu lenço branco, passado em torno do pescoço, o anjo da prece na 
solidão. 

Ajoelharam-se ao pé da cruz, Cabeleira com a face quase oculta por seus 
longos cabelos negros, Luísa com a cabeça erguida, e os olhos postos na frouxa 
claridade do sol que se desvanecia na abóbada celeste. Defronte deles a cruz 
ressequida, solitária e muda testemunhava aquela cena com a solene indiferença 
dos símbolos sagrados que é muito mais expressiva e eloqüente para os seus 
crentes do que as vozes da mor parte dos sacerdotes da respectiva religião. 

— Reza, Cabeleira — disse a moça ao matador assombrado. 
— Ai, Luisinha! Não sei rezar! — disse ele com voz tão sentida e magoada 
que indicou a pena profunda que lhe cortava o coração. 
Ele estava na realidade comovido até as entranhas. Superexcitado pela falta 
de alimentação, pelo cansaço da jornada, pelo calor do dia, pelas recordações que o 
afligiam de envolta com o remorso incipiente, via a cada canto a terrível visão 
reproduzida na clareira, na selva, nos ares, finalmente em toda parte aonde volvesse 
os pávidos olhos. 

— Eu te ensinarei — redargüiu Luisinha. — Dize comigo. 
A moça principiou então em voz alta o Padre Nosso. 

A voz do bandido, ao princípio titubeante e temerosa, foi-se pouco e pouco 
animando, e elevando. 

Quando houverem de passar à Ave Maria, o Cabeleira tinha já os olhos 
pregados na cruz, e a fé, que começava a germinar em seu espírito, elevava-o 
insensivelmente a regiões desconhecidas, onde, sem que ele pudesse explicar 
como, lhe davam a respirar confortos que só podiam ser celestiais. 

Da Ave Maria passaram à Santa 

Maria e desta à Salve Rainha. 

Em cada uma das palavras destas orações achava o bandido uma beleza 
nova e insinuante que lhe despertava delicioso sentir. 

Seu espírito, que durante vinte anos só conhecera idéias de sangue e morte; 
seus ouvidos, afeitos a escutarem palavras licenciosas, insultos, arrogâncias, 
queixumes e maldições, recebiam agora doces expressões que anunciavam uma 
consoladora existência superior. 

Do pavor, que trouxera aos pés da cruz, passara a uma fortaleza de animo 
quase invencível. 

Antes de se levantar volveu os olhos em torno de si e não viu mais a visão 
que o amendrontara, havia pouco. 

— Oh! Luisinha, como é poderosa a oração ! — disse ele. — Minha mãe, que 
tantas vezes pôs as suas contas nas minhas mãos, bem sabia que a oração tem 
mais força do que os homens e vence todas as armas ! É por isso que me ensinava 
a rezar, a mim que só aprendi a tirar a fazenda e a vida dos meus semelhantes. 

Datou desse feliz momento o arrependimento do Cabeleira. 

Depois de oferecidas estas orações, lavantaram-se os fugitivos, e foram 
depor cada um seu beijo aos pés da cruz do ermo. 

No bandido já não havia o assassino, havia um espírito contrito, um coração 
cheio do temor de Deus. Uma mulher fraca, tendo ao seu serviço unicamente a 
benevolência natural, a perseverança, as lágrimas e um passado quase 
desvanecido, havia operado uma conversão com a qual poderia legitimamente 
orgulhar-se um verdadeiro apóstolo do cristianismo. 

Com sua luz suave enchia o deserto o astro das recordações e da saudade. 
O céu estava azul e estrelado. As brisas da noite começavam a mover as folhas do 
bosque, onde os silvos das cobras, os pios das aves erradias, os uivos dos animais 
carniceiros formavam lúgubre e medonha orquestra. 

Luisinha caiu em uma espécie de sonolência e pouco depois sentiu 
perturbação mental, e veio-lhe delírio, durante o qual deixou escapar palavras 
desconexas. A febre que a devorava tinha aumentado com a excessiva fadiga, e 
com a intensidade das impressões do dia. Cabeleira estendeu por cima dela a sua 
véstia de couro, e, profundamente comovido, foi sentar-se ao pé da fogueira para 
não a deixar extinguir-se, e para impedir que se aproximassem as onças que não 
cessavam de ulular em derredor deles, ameaçando devorá-los. A vida no deserto 
está exposta a perigos, que mal compreende o que não nasceu no meio deles; só os 
compensa a liberdade que se depara em qualquer dos gozos que aí se logram. 

Pela madrugada adormeceu ao peso da fadiga e ao silêncio que foram 
fazendo em torno de si as feras. Quando acordou era quase dia. Os passarinhos 
cantavam com o entusiasmo que desperta em todos os corações o raiar de um dia 
de verão no seio da natureza. 

Seu primeiro cuidado foi saudar aquela a quem devia a ressurreição de sua 
alma, outrora em trevas aflitivas, agora inundada do suave clarão da piedade cristã. 

— Luisinha, acorda — disse ele. — A manhã está fresca. Os passarinhos 
cantam. A viração tem os cheiros do deserto. 
Aproximou-se de Luísa tomou-a nos braços, conchegou-a ao seio, e depôs-
lhe nos lábios um beijo de amor. Os lábios da gentil menina estavam frios, seu corpo 
gelado. Luísa não pertencia mais a esta vida. 

Reconhecendo a cruel realidade, o bandido deu um grito de dor que atroou a 
imensa solidão como urro de touro selvagem. 

— Morta ! Morta ! Luisinha ! 
O cadáver da moça escapou-lhe dos braços, mas logo o bandido caiu de 
joelhos aos pés desse corpo inanimado, com o qual tinham falecido todas as suas 
esperanças de felicidade. 

— Luisinha, responde me — disse ele. — De que morreste, meu amor ? 
Levantou-se, deu alguns passos a esmo, e tornou ao leito de ramos que tinha 
servido de leito de morte à virgem dos seus pensamentos. 

Pegou-lhe das mãos, que beijou uma, duas, inúmeras vezes, examinou-as, 
examinou o rosto da infeliz, e só encontrou aí os vestígios do transito final. Tudo 

estava acabado para ela. Foi esta a verdade cruel que ele viu traspassado de uma 
pena que se não descreve, e que só ele sentiu nesta vida. 

Sentou-se no chão, e suspendeu o cadáver para o atravessar sobre os 
joelhos. Um galho da árvore, que com sua folhagem havia obrigado a moça durante 
a noite, afastou-lhe o lencinho branco que lhe envolvia o pescoço, e indiscretamente 
descobriu aos olhos do consternado amante seus seios virgens. 

Ao vê-los, soltou este nova exclamação de dor. A chama que Luísa para 
salvar Florinda do incêndio, transpusera a noite anterior, havia deixado uma só 
chaga no lugar onde a natureza tinha-a dotado com um cofre de graças e perfeições 
peregrinas. 

— Queimada ! Oh ! Luisinha, que sofrimento não foi o teu ! Que dores não 
suportaste em silêncio, desgraçada criança ! E como fico eu sem ti, meu amor ? Ai 
de mim, Luisinha ! Ai de mim ! 
O ânimo varonil, que sempre se mostrara inteiro e imoto, agora agitado por 
comoções tão violentas, dobrou-se enfim e deu larga prova de fragilidade humana. 
Dos olhos do bandido irrompeu uma torrente de lágrimas. Soluços, como animal 
bravio, escaparam de seu peito e ecoaram pela imensidade ainda em grande parte 
adormecida. Havia quinze anos que esses olhos não choravam diante dos mais 
tristes e lastimosos espetáculos. 

— Que noivado o meu ! É o noivado do assassino ! Oh ! meu Deus ! 
De repente do lado do rio soou um clarim. 

A dor sucedeu o susto, e depois o terror no animo do desgraçado mancebo. 
Só, sem armas, arrependido de toda sua vida de crimes, que restava ao Cabeleira 
naquele doloroso transe ? 

O clarim soou mais perto, e com as vozes deste instrumento chegou aos 
ouvidos do mancebo um retintim de espadas e facões que indicava, junto com as 
sobreditas vozes, a existência de um corpo militar por aquelas bandas. Andava de 
feito por ali um dos piquetes do regimento de Cristóvão de Holanda, o qual, depois 
de ter batido algumas matas suspeitas, se recolhia à vila, donde havia partido na 
noite imediata. 

Cabeleira depôs o cadáver de Luísa sobre os ramos, e afastou-se para dentro 
do mato não sem novo sobressalto, à vista do risco em que se achava. 

Depois de ter desaparecido, voltou novamente e suspendeu em seus braços 

o corpo com o intuito de conduzi-lo consigo para dentro da espessura. Mas quando 
ia a entrar aí com o triste resto do seu tesouro, um homem apareceu na extremidade 
da clareira. Era o Marcolino que, havendo-se encontrado com o piquete ao cair da 
tarde anterior relatara o que havia acontecido junto da vazante, e se oferecera para 
o guiar no rumo do fugitivo. 
Este, vendo que a sua vida estava em perigo, e que a perda de um momento 
podia ser-lhe fatal, resignou-se a deixar o precioso despojo, e internou-se de uma 
vez no mato. 

Com pouco uma companhia de soldados penetrou no pouso onde Marcolino 
já havia dado com o corpo de Luísa 

— Cheguem, cheguem depressa. Dormiu aqui o assassino. Ali está a fogueira 
ardendo ainda, e aqui a sua própria companheira, que ele deixou morta. Ah ! 
malvado ! 
Os milicianos rodearam o cadáver de Luísa sobre cujo rosto não seria difícil 
descobrir ainda vestígios das lágrimas do desgraçado mancebo. 

— Perverso! Perverso! — exclamaram alguns deles indignados do que viam, 
mas não sabiam. 
— Não satisfeito de ter matado mulheres e meninos no fogo, veio tirar aqui a 
vida a sangue frio àquela que o quis acompanhar. 
— Não percamos tempo — observou Marcolino. — Ele deve estar perto 
daqui. Vamos, minha gente, vamos descobrir o assassino enquanto ele não nos 
escapa. 
É verdade. Alto frente. Toca a corneta. Tiririca. 

— Não toques, que se o Cabeleira nos ouvisse, ninguém mais lhe punha o 
olho em cima, quanto mais a mão. 
— Se não fosse esta corneta, já tínhamos pegado o cabra — observou 
Marcolino. 
— Qual cabra nem meio cabra. Aquele que tem de pegar o Cabeleira está 
ainda por nascer. 
E entraram na espessura. 

CAPÍTULO XV 
O Cabeleira desapareceu no mato como desaparece o peixe no seio da 
corrente caudal. 

Os milicianos, bem que homens igualmente rústicos, e conhecedores das 
florestas, não tinham todavia o longo uso da espessura, uso que, ainda neste 
particular, tornava superior a eles o valoroso malfeitor. 

Espalharam-se em diferentes direções, a esmo, sem plano, e por isso sem 
probabilidade de bom resultado. 

O piquete não era numeroso, e vinha quase debandado quando encontrou o 
Marcolino que denunciou o ponto onde havia deixado o fugitivo. 

Poucos deram crédito às palavras do matuto, e só por desencargo da 
consciência alguns se prestaram a dar a busca que ele propôs, e que, a seu 
parecer, não podia deixar de surtir o desejado efeito. 

Gastaram quase o dia inteiro na diligência. 

Por fim, dissuadidos de descobrirem o assassino, cada um tomou o caminho 
mais curto para sua casa, dando alguns ao diabo o Marcolino por tê-los feito andar 
para dentro e para fora do mato inutilmente, e acreditar em esperanças que não se 
realizam. 

— E veio você fazer-nos perder mais um dia, compadre Marcolino — disse 
um dos milicianos, aborrecido e fatigado do infrutífero lidar. — Nem você chegou a 



ver o Cabeleira. Viu algum rangedor de cachos compridos, e já pensou que era o 
mameluco. 

— Eu não digo uma coisa por outra. Vi-o com estes olhos que a terra fria há 
de comer. Falei com ele como estou falando com você agora. Lá o ele ter voado 
como passarinho, ou Ter-se metido pela terra adentro como tatu ou jararaca, é caso 
à parte. 
— Você viu periquito e cuidou que era arara ou canindé — replicou o 
miliciano. 
— Compadre, você está fazendo pouco em mim. Ora, deixe-se disso, que eu 
não sou de lérias, como você bem sabe. É tão certo que vi o Cabeleira, que até lhe 
tomei o cavalo que ele me havia furtado, o meu alazão. 
— Pois, então, pode montar no seu alazão e voltar à casa. De lembranças à 
comadre Maria e lance a bênção a meu afilhado Gazuza. Se encontrar outra vez o 
Cabeleira, de-lhe um abraço por mim, um beliscão e uma boquinha. 
— Eu, se tivesse ainda o meu alazão, juro-lhe que havia de desencavar o 
Cabeleira, ou com a vida ou com a morte. 
— E que fim levou o seu quartau
— Espaduou de muito andar. Parece que desde a hora em que o maldito 
demo o tirou do meu quintal não soube mais o que era comer nem beber, e andou 
num cortado. 
— Se você quer servir-se do meu cavalo castanho, ele nos está ali ouvindo. 
Desta vez estou falando sério. 
— Onde está ele ? 
— No sítio do Felisberto, aonde o mandei com um costal de mandioca. 
— Pois aceito, meu compadre, a sua proposta. Hei de mostrar-lhe que o que 
digo, digo. Se eu não descobrir neste matão, ou por estas beiradas de rio o 
Cabeleira, hei de saber notícias dele seja onde for. Também de uma coisa tenha 
você certeza: quando ouvir sua mulher dizer: "Aí vem o compadre Marcolino no 
cavalo castanho", fique logo sabendo que, se eu não deixei o Cabeleira na embira, o 
deixei no buraco. 
Os dois matutos achavam-se na margem esquerda do Capibaribe. 

Na margem oposta levantava-se, entre umas laranjeiras e uns oitizeiros, uma 
casa de bom parecer. Era a casa de Felisberto. 

Eles atravessaram a vau o rio, e foram ter à graciosa habitação, que no meio 
daquele deserto atestava a existência de uma civilização rudimentar no lugar onde 
havia caído, sem tentativa de proveito para a sociedade que o sucedera, o 
gentilismo guarani digno de melhor sorte. 

Do alto onde fora construída a habitação via-se o rio que corria na distancia 
de umas dezenas de braças, e desaparecia por entre umas lajes brancas no rumo 
de leste; do lado do ocidente mostravam-se as lavouras de Felisberto desde as 
proximidades da casa até onde a vista alcançava. 

Felisberto aplicava-se quase exclusivamente à cultura da roça. No perímetro 
de vinte léguas em derredor era o lavrador que desmanchava mais mandioca no 
fabrico da farinha, que era de tão boa qualidade que competia no mercado do Recife 
com a farinha de Moribeca, já então afamada. Havia anos em que ele mandava para 

o Recife cerca de duzentos alqueires. 
Um negro, uma negra, duas negrotas e três molecotes filhos dos dois 
primeiros faziam prodígios de valor na cultura das terras. Amanheciam no cabo da 
enxada e só se recolhiam quando faltava uma braça para o sol se esconder no 




horizonte. Estes escravos viviam porém felizes tanto quanto é possível viver feliz na 
escravidão. Não lhes faltava que comer e que vestir. Dormiam bem, e nos domingos 
trabalhavam nos seus roçados. Em algum dia grande faziam seu batuque, ao qual 
concorriam os negros das vizinhanças. 

Quando o Felisberto se casou com a filha de Lourenço Ribeiro, mestre de 
açúcar do engenho Curcuranas, teve a feliz idéia de ir estabelecer-se naquele sítio 
que comprara com algumas economias que lhe legara um tio que vivera de 
arrematar dízimos de gado. Essas economias deram-lhe também para comprar duas 
moradinhas de casas e o negro André. Com a negra Maria, que a mulher lhe 
trouxera em dote, casou Felisberto o seu negro, na esperança de que em poucos 
anos a família escrava estaria aumentada, e por conseguinte aumentada também a 
fortuna do casal. Essa esperança foi brilhantemente confirmada. 

Felisberto não estava em casa à chegada dos dois matutos. Havia ido à vila a 
negócio e ninguém sabia quando ele estaria de volta. 

Eles tiraram para a casa de farinha, que ficava a um lado da casa de morada, 
e apresentava nesse momento um aspecto que não era o usual. 

Estava-se fazendo farinha para ser a toda pressa mandada ao Recife, onde a 
grande falta que havia deste gênero assegurava pingue lucro ao vendedor. 

Frutos do trabalho honesto e esforçado, o qual é sempre favorecido pela 
Providencia, não tinham sido de todo destruídos pela grande seca os roçados do 
Felisberto. Ele já enumerava muitos prejuízos, mas olhando em torno de si via ainda 
muito com que contar na tremenda crise que reduzira o geral da população da 
província a extrema penúria. 

Era quase noite, e ainda chegavam animais com caçuás  cheios de mandiocas 
que eram despejados nas tulhas já formadas destas raízes. 

Mulheres sentadas pelo chão ou em cepos, ao pé dessas tulhas, tiravam as 
mandiocas uma a uma, e as iam raspando a quicé, e, atirando depois dentro de 
cestos que eram conduzidos para junto das rodas a fim de serem elas passadas 
pelos ralos que circulam estas. 

A casa de farinha não era mais do que um vasto alpendre aberto por todos os 
lados e coberto de palhas de pindoba. 

No centro via-se o forno onde tinha de ser cozida a massa já apertada pela 
prensa e livre da manipueira. Parte dela porém, tanto que saía do pé das rodas, era 
lavada em gamelas e alguidares onde deixava o resíduo ou goma para os beijus e 
tapiocas. 

A prensa estava armada a um dos lados do alpendre; no outro viam-se as 
duas rodas que não cessavam de girar. Quando cansavam os matutos ou escravos 
que as moviam eram logo substituídos por gente fresca. 

Os dois matutos ali bem conhecidos, foram saudados pelas pessoas que 
estavam trabalhando, e, como é costume em tais ocasiões ainda hoje, trataram eles 
de concorrer gratuitamente com o auxílio dos seus braços descansados, o que a 
muitos não deixou de ser agradável. 

— Venha para cá, seu Marcolino. Pegue no veio da roda, e desmanche-me 
esta mandioca que está custosa de acabar — disse um. 
— E eu ponho de boa vontade em sua mão, Marciano, este rodo. Não precisa 
mexer muito a massa: o forno não está muito quente e não há risco de queimar-se a 
farinha — disse outro. 



— Prepara os beijus Mariquinhas — disse o Marciano a uma rapariguinha 
morena e cacheada que, com as mangas arregaçadas, lavava em um alguidar uma 
porção de massa. 
Mariquinhas sorriu e continuou no seu trabalho que lhe absorvia toda a 
atenção. 

Pouco depois chegaram dois cunhados de Felisberto, que tinham feito parte 
do regimento volante da freguesia. 

— Então que fizeram ? — perguntaram muitos a uma voz logo que os viram 
entrar. 
— Nada. Vocês pensam que pegar o Cabeleira é o mesmo que raspar 
mandioca, ou comer farinha mole ? 
— Não o viram nem com os olhos, seu Quinquim ? 
— Qual, senhor ! Cabeleira de minha vida ! 
— Encontramos muita onça, e muita cascavel, mas do Cabeleira nem novas 
nem mandado. Há quem diga que ele a esta hora já está nos sertões dos Cairiris. 
— Qual Cairiris, senhor ! Amanhã hei de dar com esse dunga — disse o 
Marcolino. 
— O compadre Marcolino jura que o viu hoje junto das cachoeiras do rio — 
acrescentou o Marciano. 
— Mas não nos mostrou o cabra durante todo o dia — respondeu Agostinho. 
— Está bem, senhores, não falemos mais nisso. Os senhores estão 
desfazendo agora no meu dizer, talvez amanhã a coisa já seja outra. Eu sou um pé-
rapado, é certo, mas muito verdadeiro. 
— Ninguém duvida de sua palavra, Marcolino. 
Um negro que estava metendo lenha no forno virou-se então para o matuto, 
e, de improviso, lhe dirigiu este verso: 

Vosmecê, seu Marcolino, 

Vai atrás do Cabeleira ? 

Se quiser pegar o cabra, 

Monte na basta louceira. 

Ainda bem não tinha terminado o seu repente, quando um caboclo que, a um 
canto do alpendre estava lavando em um cocho uma porção de mandioca, se saiu 
com esta resposta: 

Monte na besta fouveira, 
Ou no cavalo cardão, 
Não há de pegar o cabra 
No meio desse mundão. 


Reinou então silêncio no alpendre para só se ouvirem os dois repentistas. 
Estava travado um desses desafios que são tão comuns nos sertões do Norte, e, 
muitas vezes, pela facilidade das rimas e originalidade dos conceitos, chegaram a 
oferecer versos que podem figurar entre os mais primorosos monumentos da 
literatura natal. O negro replicou: 

Se você gosta do bicho 
Porque rouba, e mata gente, 
Veja que alguém não lhe tire 
As orelhas pra presente. 


O caboclo respondeu: 

Mete, negro, a tua lenha 

No teu forno, caladinho; 

Mas não te metas com o homem; 

Podes ficar sem focinho. 

O negro: 

Eu que sou negro nas cores 
Mas não negro nas ações, 
Se fosse atrás do malvado, 
Cortava-lhe os esporões. 


O caboclo: 

Para o negro que se mete 
Onde não lhe dão entrada 
Não tem faca o Cabeleira, 
Tem uma peia ensebada. 

O negro: 

Eu respeito a meus senhores 
E senhoras que aqui estão; 
Mas porém não levo em conta 
Quem não teve criação. 


O caboclo: 

Caboclo do pé da serra, 
Criado à beira do rio, 
Eu sempre tratei com gente, 
Porque sustento o meu brio. 


O desafio, tão bem encaminhado, foi interrompido pela chegada de um 
cavaleiro. Era o Felisberto que voltava da vila. 

A lida na casa de farinha continuou não obstante até alta noite, entre risos e 
cantigas. 

O luar inundava o vasto pátio do sítio, e ia pratear as margens e águas do 
Capibaribe. 

Viração intermitente agitava as folhas das macaibeiras e dendezeiros que se 
levantavam pela extrema das terras de Felisberto. 

Cortava os ares o suave murmúrio das águas casado com o canto monótono 
dos curiangos, que pulavam pelos caminhos. 




Pela madrugada, o Marcolino montou no cavalo castanho, atravessou o rio, e 
meteu se no vasto deserto, ainda adormecido. Como quase todos os homens 
rústicos, era caprichoso, e entendia que se não cumprisse a sua palavra 
solenemente empenhada, ficaria sendo o ludíbrio de todos os que o conheciam. 
Preferia, a este extremo, morrer de fome e sede no mato, ou comido das onças, 
coisa em que, para dizermos, pouco cuidava. Todas suas idéias estavam voltadas 
para um centro único: descobrir o Cabeleira. Era este o seu ponto de honra. 

Sabendo que o Cabeleira ordinariamente, quando se ausentava das matas de 
Santo Antão, aparecia nas de Pau d"Alho, tomou a direção desta povoação. 

Pau d"Alho fazia então parte da freguesia de Iguaraçu, da qual foi 
desmembrada em 1799 para ser elevada a freguesia por proposta do visitador 
Joaquim Saldanha Marinho, nome que traz hoje com invejável brilho um dos maiores 
espíritos que conta o Brasil moderno. Passou a vila por alvará de 27 de julho de 
1811, e a comarca pela lei provincial de 5 de maio de 1840. 

Marcolino subiu pela margem do Capibaribe, e antes do meio 
dia entrou na povoação que fica em terreno plano à beira deste rio. Nada lhe 
constou a respeito do Cabeleira. 

Demorou-se o tempo estritamente necessário ao descanso do cavalo, e 
quando o sol quebrou pôs-se novamente a caminho para Goitá, que fica quatro 
léguas distante de Pau d"Alho, e nesse tempo era um lugarejo de nenhuma 
importância, pertencente a Santo Antão. 

Há loucuras transitórias que por tal modo revolucionam o espírito do homem, 
que o tornam capaz assim de grandes baixezas, como de virtudes ímpares. Feliz 
aquele que, sob a influencia de loucuras semelhantes, põe os seus esforços e 
sacrifícios ao serviço da humanidade ou de uma causa nobre. 

Marcolino estava possuído de uma dessas loucuras. 

Sem o pensar nem querer, tinha fatalmente arriscado a sua palavra, o seu 
brio, a sua honra. Estava apaixonado pelo lance, e era inevitavelmente arrastado a 
seu destino. 

Deixando mulher e filhos, em duelo com a necessidade, vinha, como um 
cruzado, um peregrino, um apóstolo do bem, ou um visionário em busca de um ente 
que fazia tremer povoações inteiras, que preocupava o governo, que aparecia como 
fantasma, e desaparecia como uma sombra. 

Este ente tinha à sua disposição o mato para o receber, os ecos para o 
avisarem da aproximação dos que o buscavam, os rios para encherem depois de 
sua passagem, as grutas para o esconderem, a natureza enfim para o disputar 
tenazmente aos homens, ao poder público, às leis, à justiça, ao próprio Deus 
segundo parecia. 

A tardinha Marcolino estava no lugarejo. Debalde perguntou, debalde 
indagou. Não houve quem lhe desse novas do famoso bandido. 

Aí pernoitou, mas não dormiu. 

Muito cedo meteu-se nas matas. 

A cabo de dois dias, consumidos sem resultado, entrou a cair em si. A razão 
tinha-se libertado da alucinação que a prendera em suas redes de aço. A sua doce 
luz reapareceram os caminhos que as trevas da paixão tinham encoberto ao olhos 
da vítima do sonho fatal. 

Marcolino caíra em si no meio do deserto, ouvindo o rugir das feras, lutando 
com a fome. 

Desanimado, envergonhado da sua fraqueza, resolveu voltar ao seio da 
família. 




Então a imagem dos filhos e da mulher lhe apareceu na mente. Ele teve 
saudades da casa e quis partir à mesma hora; mas conhecendo os perigos a que se 
expunha se o fizesse, aguardou sôfrego a madrugada. Quando os horizontes 
começaram a desmaiar, e o brilho das estrelas a embranquecer, Marcolino pôs-se a 
caminho. 

Estava inteiramente outro. 

A vergonha cobria-lhe o rosto, o medo dominava-lhe o espírito, na 
consciência doía-lhe o remorso de haver, sem o menor interesse pessoal, 
desamparado mulher e filhos nas garras da miséria. 

O dono da casa onde ele havia pernoitado dois dias antes, ao qual devia, 
além desta, outras muitas obrigações, dera-lhe uma carta para ser entregue por ele 
ao senhor do Engenho Novo que de presente faz parte da freguesia de Pau d"Alho, e 
pertencia naquele tempo a Goiana. 

Quando Marcolino chegou a Pau d"Alho, o cavalo estava cansado da viagem, 
e do mau passar durante ela. Para levar a carta a seu destino, teve o matuto de 
caminhar a pé. Ele viu nisso uma nova tribulação com que a sorte o punia da sua 
loucura. 

Ao anoitecer, de um alto por onde passava o caminho antes de sair da mata 
que cercava o engenho pelo lado do sul, viu ele um homem correr gacheiro e 
cauteloso pelo aceiro afora, e entrar adiante no canavial. 

Marcolino por um triz não caiu fulminado de espanto, sobressalto e satisfação 
ao mesmo tempo. 

Tinha reconhecido nesse homem o Cabeleira. 

CAPÍTULO XVI 
A fome obrigara o bandido a deixar o mato, como obriga as aves a 
emigrarem, e as feras cervais a deixarem seus covis. 

Havia cinco dias que ele partira de Santo Antão, e três que não comia senão 
os escassos frutos que lhe dava a macaibeira, o ananaseiro bravio, o jatobá do 
deserto. 

Uma tarde em que a fome e a fadiga o tinham prostrado, viu dentre umas 
touceiras de taquara onde se recolhera para cobrar animo, um cavaleiro que, 
havendo atravessado o rio, de força tinha de passar a poucos passos dele, em um 
cotovelo formado pela picada. 

O cavaleiro era um velho e parecia-se mais com uma múmia do que com um 
ente vivo. 

Tinha a pele grudada nos ossos, e seu corpo apresentava ângulos e retas de 
dureza escultural. 

O cavalo não tinha melhor parecer do que seu senhor. Era uma armação 
óssea informe, pesada, cadavérica e triste. 

Trazia o velho tão caída a cabeça para diante, que quase chegava com o 
queixo recurvado ao cabeçote da cangalha. O cavalo, parecendo ceder à mesma lei 
que o cavaleiro, por vezes varria com os beiços coriáceos o pó do caminho. Essa lei 
era a lei da fome. 

"Este velho", pensou o Cabeleira, "traz pelo menos farinha nos caçuás . Vou 
tomar-lhe para mim, e se ele não quiser entregar-me a sua carga, corto-lhe a 
garganta." 




Empunhou o pedaço da faca, única arma que lhe restava do terrível cangaço 
de outrora, e quando o velho confrontou com ele, saltou-lhe ao cabresto do cavalo. 
Este parou de muito boa vontade, enquanto seu dono, sem se mostrar aterrado nem 
sobressaltado, disse ao bandido: 

— Guarde-o Deus, meu senhor — saudação que até bem pouco tempo se 
ouvia no sertão. 
Quando estava para fazer a terrível intimação, sentiu o Cabeleira faltar-lhe 
força para suster o cabresto, tremeram-lhe as pernas, vacilaram-lhe os pés. Seus 
olhos tinham dado com a imagem de Luísa, de joelhos na beira do caminho com as 
mãos postas, os olhos suplicantes, tristes e chorosos, voltados para ele. Pareceu-lhe 
até ouvir as seguintes palavras: 

— Não o mates, Cabeleira. 
Esta ilusão era efeito da sobreexcitação nervosa, produzida em todo o seu 
organismo pela falta de alimentos, pela dor moral que lhe causara o transito da 
moça, ou talvez pela profunda revolução que antes de ter ela falecido havia obrado 
nos seus instintos, idéias, e hábitos, o sentimento destinado a redimi-lo do erro, e do 
crime — o amor. 

Foi tão profundo e violento o abalo que experimentou ao ver aquela doce 
efígie (a qual ele julgava ter desaparecido para sempre de seus olhos ), que 
irresistivelmente lhe escaparam dos lábios estas palavras: 

— Não o matarei, meu amor; não o matarei. 
Mas não foram somente as palavras que lhe escaparam violentamente dos 
lábios; dos olhos lhe saltaram também lágrimas espontâneas, que ele não pôde 
reprimir. 

E como para dar plena satisfação àquela doce imagem que se atravessava 
diante dele no momento em que um crime estava a ser cometido por sua mão, 
Cabeleira atirou dentro de uma grota que ficava do outro lado da picada o resto da 
arma de que estivera pendente a vida do pobre velho. 

Este, acordando novamente do profundo abatimento que pesava sobre todos 
os seus membros, dirigiu outra vez a palavra ao bandido: 

— Camarada, estou pronto para servi-lo. 
— Há três dias que não boto na minha boca um punhado de farinha — disse 
José. — Traz você aí alguma coisa que me queira dar para comer ? 
— É seguramente meio-dia, meu senhor —m disse o velho erguendo a custo 
os olhos ao sol para se certificar da hora. — Amanhã pela manhã faz quatro dias 
que este corpo velho, que o senhor está vendo, não sabe o que é comer. Dou a 
Deus por testemunha da minha verdade. 
— E que é que traz dentro destes caçuás ? — perguntou-lhe o Cabeleira. 
— Pode ver o que trago. Nada. Tinha uma filha solteira, outra viúva e três 
netinhos. Veio a peste e levou-me as duas filhas em menos de oito dias. Não tendo 
recurso nenhum para acudir às minhas necessidades, saí a pedir. Fui à casa de meu 
compadre, que mora na Ladeira Grande; o compadre tinha morrido das bexigas, e a 
mulher estava para entregar a alma a Deus; o gadinho que possuía desaparecera 



com a seca; alguma criação que ficara no terreiro tinha sido comida pelos magotes 
de gente, que vêm aí em retirada, caindo aqui, morrendo acolá de fome, só de fome. 
Achei no pátio da propriedade este cavalo velho, que me vai arrastando até a casa. 
Sabe Deus se lá chegarei, ou se não ficarei no caminho, sem ter visto meus pobres 
netos ainda uma vez antes de morrer. 

— Está bom, meu velho; vá seguindo seu caminho. Você é mais necessitado 
do que eu. 
— Não da graça de Deus, senhor — disse o velho. 
O Cabeleira entrou de novo no tabocal. 
O abalo que a visão lhe causara, o espetáculo de miséria que lhe descrevera 


o velho, miséria muito maior do que a sua, deram-lhe forças para prosseguir na 
peregrinação. 
No dia seguinte entrava ele nas matas de Goitá, seu mundo virgem, em cujo 
seio, talvez pela razão de lhe consagrar entranhável afeto, se considerava o mais 
seguro e feliz dos mortais. 

Deitou-se e dormiu. 

Quando acordou sentiu que consigo havia acordado, mais devoradora e cruel, 
a fome que o tinha prostrado por terra na véspera. 

Depois de ter levado quase todo o dia em vão à caça de algum fruto silvestre, 
deu com a vista, no meio de uma aberta que fazia a mata, sobre os estendidos 
canaviais do Engenho Novo. 

Da lomba, onde havia parado, desceu rapidamente à orla da floresta. 

Era quase noite. 

Alongou os olhos pelas imensas quebradas onde a cana acamava, e só viu 
um mundo de verdura que lhe acenava com doces presentes. 

Ah! ele podia passar meses dentro desse mundo, sem que o vissem, e sem 
risco de ser devorado por animais ferozes. Era uma região amiga a que se lhe abria 
diante dos olhos. 

A planta que estava destinada a ser mais tarde a base principal da fortuna e 
riqueza de um vasto império; essa planta abençoada que dali punha à sua 
disposição nutritivo e precioso suco oferecia-lhe também proteção à sombra da sua 
basta folhagem. Podia ele, pobre foragido, refazer as forças no seio dessa solidão 
generosa que lhe daria a sorver licor suavíssimo, como o que mana de um seio 
maternal. 

Cabeleira, rápido como um jaguar, pôs a cabeça de fora do mato, olhou, 
observou, e, nada vendo, atravessou o aceiro e penetrou no canavial. 

Achando-se já dentro, voltou-se e observou de novo. Não viu viva alma. Do 
outro lado do aceiro estava a floresta virgem, donde ele havia saído. As sombras do 
lusco-fusco cobriam as montanhas, as quebradas, os vales, todo o retiro enfim. Em 
torno dele, e além das folhagens, além das planuras até onde pode chegar com a 
vista e com as ouças, só viu a solidão profunda, só ouviu o silêncio absoluto da 
natureza. 

Ia adiantada a noite quando ele terminou sua refeição. 

A lua discorria suavemente, entre castelos de nuvens, na vasta campina 
celeste, e a viração ciciava brandamente no canavial onde deixava as fragrâncias 
que, como abelha da noite, trazia do pau-d"arco da mata próxima em suas asas 
sutis. 

Cabeleira pôs nos ombros as últimas das canas que quebrara e tomou a 
aberta por onde havia entrado. Mas foi logo obrigado a voltar sobre seus passos 




para não ser visto por dois negros do engenho que estavam defronte da abertura da 
camarinha. 

O canavial não tinha somente esta saída. Mas qualquer delas para onde 
encaminhou seus passos se lhe mostrou tornada por escravos do engenho. 

O Cabeleira achava-se tão longe de pensar que o guardavam, que acreditou, 
para explicar o que seus olhos descobriram, que os negros faziam quinguingu ao 
luar como de costume. 

Deitou-se, e o sono que dormiu foi profundo e reparador. Se tivessem 
penetrado no lugar onde ele adormecera tê-lo-iam prendido sem dificuldade, como 
se fora uma criança. 

Raiou enfim o dia com seu cortejo de luz e movimento. 

O sol despertou o bandido com um raio que lhe enviou por entre a folhagem. 
Não para sair, mas unicamente para observar, o Cabeleira aproximou-se, sem fazer 
ruído, da primeira abertura que se lhe oferecera. O que então viu deu-lhe idéia da 
triste realidade que ele estava longe de suspeitar, mas que o abraçava como um 
círculo de ferro. Não estavam guardadas as saídas por negros como durante a noite, 
mas por sentinelas militares. Cedo seus olhos reconheceram que uma linha 
compacta de soldados cercava todo o canavial, donde não poderia sair um rato 
contra a vontade deles. 

Oh ! como apareceu carregada aos olhos do infeliz mancebo aquela doce 
natureza, onde acreditara que poderia estar ao abrigo da perseguição dos homens, 
e da fatalidade da sorte ! 

"Estou perdido para sempre", pensou ele. "Cercado por todos os lados, sem 
companheiros que me auxiliem na evasão, sem uma arma com que possa abrir 
passagem entre os que me cercam, não poderei salvar-me." 

Seu espírito caiu em profunda meditação. 

O canavial estava literalmente sitiado. No mesmo instante em que soube, por 
boca de Marcolino, que o Cabeleira tinha passado do mato ao canavial, o senhor do 
Engenho Novo reunira a fábrica passante de trezentos negros e os mandara pôr se 
de guarda ao bandido. 

Sem perda de tempo expedira o próprio Marcolino com uma carta 
participando o fato ao capitão-mor que se achava já então no seu engenho Petribu, 
e pedindo-lhe prontas providências. 

Uma companhia completa de milicianos achava-se ainda de ordens ao 
capitão-mor que tinha em mente dar novo varejo nos matos, por ocasião de sua 
volta a Goiana. Essa companhia partira incontinente, tendo à sua frente Cristóvão de 
Holanda, para o lugar onde se tinha de verificar a importante diligência. Ordens 
terminantes foram expedidas durante a noite aos coronéis de ordenanças que se 
achavam mais próximos, a fim de que antes do amanhecer se achassem com fortes 
partidas no lugar indicado. 

Um inimigo poderoso que houvesse batido às portas da freguesia não teria 
motivado o movimento de tropas que se verificara nas doze horas daquela noite com 
prontidão que faz honra à disciplina militar daqueles tempos. 

Pela manhã as paragens contíguas ao ponto assediado figuravam um 
pequeno campo de batalha. Cerca de duzentos praças achavam-se ali reunidas, por 
que o assédio fosse sustentado com todo o rigor militar. 

Ao cair da tarde um oficial ofereceu-se para penetrar no canavial com doze 
homens de sua escolha, assegurando que o bandido não viria a contar vitória. 




Cristóvão de Holanda, tendo ouvido os seus coronéis sobre a proposta do 
destemido oficial, considerou-a inconveniente por dar ocasião à luta pessoal, da qual 
poderia resultar a morte do bandido. 

Não havendo, para conseguir-se a rendição deste, outro meio que o assédio, 
foi este resolvido por unanimidade. 

O Cabeleira tentou mais de uma vez iludir a vigilância das guardas durante a 
noite, mas em vão. Antes de escurecer essas guardas eram reforçadas, e a 
vigilância dobrava na proporção das facilidades que naturalmente a noite oferece 
para a evasão. 

Passaram-se dois dias sem resultado. Ninguém, durante esse espaço de 
tempo, havia visto o prisioneiro. Começou-se a desconfiar de sua existência dentro 
do canavial. 

Marcolino foi interrogado pela segunda vez, e declarou que tinha visto o 
bandido entrar ali, só e sem armas. 
Esta última declaração veio aumentar a desconfiança geral. Não se pôde, com 
razão, explicar que o famoso assassino se houvesse despojado, para penetrar ali, 
de suas armas no momento em que mais se expunha à ação da justiça. 

Marcolino, à vista destas considerações, às quais nada teve que opor, 
começou a descrer de si mesmo e a acreditar que seus olhos o tinham enganado. O 
desanimo, a tristeza, a vergonha, que já o haviam deixado, volveram a abatê-lo 
novamente. 

Cristóvão de Holanda excogitava já um meio de sair com honra da situação 
em que se via, quando lhe lembrou mandar arrasar o canavial. 

Toda a fábrica foi chamada incontinente ao lugar onde as foices afiadas 
tinham de abater em poucas horas a ridente floresta que durante quase três dias 
servira de pitoresca muralha ao Cabeleira. 

Ele ouviu do centro da espessura onde estava, com o sangue-frio que é 
natural aos homens afeitos aos perigos, o rumor, ao princípio afastado, depois mais 
próximo, da queda dessas toucaria abençoadas a que devia o franco asilo que 
nunca encontrara entre os seus semelhantes. 

O círculo foi-se estreitando gradualmente em torno do prisioneiro, com a 
rapidez de um incêndio que ao mesmo tempo avança da circunferência ao centro. 

A proporção que as camadas iam caindo aos golpes dos possantes 
segadores, eram logo retiradas a fim de que se tivesse sempre desobstruída a 
passagem, e fácil fosse o acesso ao ponto objetivo. 

As linhas militares, que mantinham o assédio, acompanhando o 
decrescimento do espaço que desaparecia aos olhos dos circunstantes, tornavam-se 
gradualmente compactas, fortes, impossíveis de romper. 

A princípio acreditou-se, não obstante o que dissera o Marcolino, que o 
Cabeleira não estava desacompanhado. 

A cada momento esperava-se ouvir a detonação de uma descarga de dentro 
contra a força que cercava o ponto. Quem não se considerou exposto ao punhal, à 
bala, à morte julgando ter através de frágeis plantas, um inimigo, se não uma 
companhia de inimigos amestrados na prática de todos os crimes ? 

Chegou enfim o momento dos negros descarregarem suas cortantes foices 
sobre o último renque de toucas — aquele que separava do campo arrasado a vasta 
camarinha em que se acoutara o bandido. 

Desapareceu de todo o verde tufo aos olhos dos circunstantes; as duas 
superfícies — a exterior e a interior — uniram-se como por encanto; o Cabeleira 




surgiu dentre as folhas com que pouco antes brincava a brisa, agora confundidas 
com as palhas secas, imagem, como aquelas, do seu perdido poder. 

Serena e resignada tristeza cobria-lhe o rosto queimado pelo sol que naquele 
momento lhe beijava a face onde haviam deixado indícios das suas garras a dor 
moral e a fome. Caía-lhe sobre os ombros a basta onda de cabelos, cacheados ao 
longe, e mais negros do que a barba escassa e nova que atestava a sua pouca 
idade. Seu trajo era simples: véstia de couro surrado, camisa e calça que deixavam 
ver, através dos rasgões, o corpo de cor branca. O Cabeleira estava descalço, e 
tinha a cabeça coberta por um chapéu de palha de pindoba. 

Quando se achou de súbito em, presença da multidão, levou instintamente a 
mão ao chapéu, e descobriu-se. 

Os mais animosos que haviam corrido a pôr-lhe as mãos para segurá-lo, 
tomando o gesto respeitoso que bem denotava o bom natural do bandido, por uma 
ameaça, ou meneio de agressão, recuaram amedrontados. 

Cristóvão de Holanda Cavalcanti, sustentando os foros de uma estirpe que já 
se havia ilustrado em 1710, e que no Brasil independente -estava destinada a figurar 
com o brilho que sabemos, aproximou-se do bandido e com o ar e jeito grave que 
lhe davam a nobreza e a autoridade que revestia: 

— É você o Cabeleira ? — perguntou ele ao mancebo. 
— Saberá V. Sª que sou eu José Gomes — respondeu ele sem hesitar nem 
subterfugir. 
Uma centena de vozes confirmou esta resposta franca, completa, e própria do 
seu grande ânimo. 

— José Gomes — disse-lhe Cristóvão pondo a mão direita no ombro do 
mancebo — , você pelos enormes crimes que tem cometido, está preso em nome da 
lei, e vai responder perante a junta de justiça. 
Então, em conformidade da ordem dada por ele, um toque de corneta, que 
atroou a solidão, anunciou que o criminoso tinha caído nas mãos dos agentes da 
força pública. 

— Gonçalo Pais — disse Cristóvão voltando-se para o seu ajudante — , 
mande soltar o matuto, que denunciou o criminoso. Se este não fosse encontrado 
dentro do cerco, o denunciante pagaria com três tratos de polé a humilhação a que 
me houvesse exposto perante o governador. Como se verificou a sua declaração, 
será recompensado pelo régio erário, e recomendado à munificência del-rei nosso 
senhor. 
Meia hora depois, Marcolino, montado em fogoso cavalo baio, desapareceu 
com ar e jeito de quem alcançou grande vitória, no caminho de Santo Antão, a levar 
a notícia de uma prisão que salvara a sua honra, e com que ele se considerava 
coberto de glória. 




CAPÍTULO XVII 
Grande concurso de povo tomava uma tarde uma das embocaduras da rua do 
Amparo da ilustre vila de Goiana. 

Depois de algum tempo chegaram de longe, do lado do Barro Vermelho, ao 
ponto da reunião os sons de um clarim, que logo cessaram para deixarem ouvir os 
rufos de um tambor. 

A este sinal, sofregamente esperado, alvoroçou-se a multidão. As mulheres 
compuseram seus lenços no pescoço, os lençóis na cabeça, os cabeções de rendas, 
então muito em uso. As mães conchegaram bem a si os filhos menores, que tinham 
pela mão; os pais foram ocupar seu posto, que não mais desampararam, ao pé das 
consortes e filhas, que se mostravam temerosas do que poderia vir a acontecer, 
porque, em muitos dos circunstantes, à curiosidade se substituiu logo o terror 
pânico, difícil de vencer, e sempre contagioso e pegadiço. 

A rua do Amparo contava então uma só casa de sobrado. 

Via-se na varanda deste d. Leonor, mulher do capitão-mor. Seus belos olhos 
estavam voltados para o extremo da rua onde era tudo confusão e burburinho. Entre 
os anéis dos seus negros cabelos brilhavam ricas flores de ouro e coral, 
semelhantes a malmequeres e pitangas. Um vestido de seda azul, com ramos de 
rosas brancas que lhe subiam da fímbria à cintura, deixava adivinhar as formas 
admiravelmente corretas da nobre senhora, cuja gentileza impunha a todos preito 
com que se não daria mal uma princesa. A seu lado, mostravam-se outras senhoras 
pertencentes às primeiras famílias da vila. 

De repente ouviu-se de novo o clarim, a quem coube a distinção de anunciar 
a entrada da tropa com o grande prisioneiro. 

A soldadesca rompeu por entre a multidão, e encaminhou-se à casa do 
capitão-mor. 

Este vinha à frente do batalhão, e montava sua cavalgadura de estimação 
ricamente ajaezada. Ao lado do capitão-mor mostravam-se alguns coronéis de 
ordenanças. 

O prisioneiro aparecia no centro da tropa. Sua fisionomia estava triste; mas 
não tinha a carregada expressão da perversidade, nem o vil abatimento da covardia. 
Seu passo, posto que forcado, era firme, qual devera ser o de um homem de 
poderosa organização, aos 24 para 25 anos de idade. 

Faltava porém a esse homem a prontidão nos movimentos físicos a que por 
inúmeras vezes devera sua salvação. Uma corda de couro cru prendia-lhe em 
diferentes anéis os braços, poucos dias antes prestes a levar a destruição e a morte 
a afastadas regiões. 

Poucos foram os que não tiveram os olhos arrasados de lágrimas quando 
viram escravo de uma cadeia ignóbil o infeliz moço, que, ainda ontem, tinha a 
imensidão a seu dispor, e era livre como as feras no deserto. A presença do infeliz 
despertara a piedade de quase todos os espectadores. 

Naquele tempo a cadeia de Goiana não tinha a solidez da que se vê 
presentemente na rua Direita. Era uma casa de um só pavimento a que faltavam 
quase todas as condições de segurança e higiene que as penitenciárias modernas 
reúnem. 

Viam-se em suas janelas não grades, mas varões de madeira. Muitos 
criminosos conseguiram evadir-se quebrando alguns desses varões. Nem é de 
admirar que tais fossem as condições da cadeia pública daquela vila em 1776, se 
ainda hoje, com exceção das capitais e de algumas cidades interiores de mais nota, 




se apontam localidades importantes e até sedes de comarcas que não têm melhores 
prisões que as do tempo colonial. 

Não só pela manifesta incapacidade da prisão pública, mas também por não 
confiar de ninguém a guarda de um réu dos quilates do Cabeleira resolveu Cristóvão 
de Holanda tê-lo em sua própria casa durante o tempo que fosse necessário para os 
preparativos da jornada ao Recife. 

As primeiras autoridades de Goiana reuniram-se à noite em casado 
capitão-mor, que a tuba da fama começou a apregoar como o salvador da província. 

Enquanto essas autoridades praticavam da questão do dia — a prisão do 
malfeitor, este, no pavimento inferior, de que uma parte lhe fora dada por menagem, 
entregava-se a fundas cogitações. 

Um soldado, que dele se compadecera, o tinha persuadido a ir passar alguns 
momentos no quintal, a fim de se divertir de suas idéias tristes. O Cabeleira 
sentara-se a um canto, à sombra de uma cajazeira. 

Em qualquer parte para onde volveu os olhos só lhe apareceram guardas que 
não perdiam um só dos seus movimentos. Ergueu os olhos acima dos altos muros 
que o cercavam, e deu com a vista nas belas estrelas que tinham sido suas 
companheiras no deserto. Aqueles astros saudosos, guias leais e constantes do filho 
da liberdade, não alumiavam agora nesse filho senão o escravo da justiça que 
qualquer criança poderia impunemente insultar. 

Lembrou-se de Luísa, cujo cadáver não lhe havia permitido dar à sepultura o 
instinto da própria conservação; o medo irresistível da morte o impelira para o seio 
da floresta antes que ele houvesse cumprido este piedoso dever. 

— Ah ! Luisinha ! — pensou ele. — Se eu tinha de cair alguns dias depois no 
poder da justiça, por que fugi então sem ter primeiro posto teu corpo ao abrigo dos 
urubus, ou dos cães de caça ? Ah ! meu amor, perdoa minha crueldade, perdoa 
minha ingratidão. 
As lágrimas saltaram-lhe dos olhos em impetuosa torrente. 

— De que choras, Cabeleira ? — perguntou-lhe o soldado que dele se 
mostrara compassivo. —Estás com medo da morte ? 
— Não, não tenho medo de morrer — disse ele. — Estou chorando de me 
haver lembrado da única mulher, a quem, depois de minha mãe, quis bem nesta 
vida. 
— Qual mulher? Será a que deixaste morta junto das cabeceiras do rio ? 
— Essa mesma. Você a viu ? 
— Sim, eu a vi. Mas que bem poderias querer a ela, se foste tu próprio, 
Cabeleira, que a mataste ? 
— Não, eu não a matei; ela morreu, ela mesma, quando se considerava feliz 
comigo, e quando eu via nela meu maior prazer, minha maior dita. Ah, Luisinha, tu 
bem sabes que eu te queria muito bem, muito ! Que pena tenho eu quando 
considero que te perdi para sempre, que te deixei no deserto, que os carcarás 
furaram teus olhos, que os urubus despedaçaram tuas carnes, e que os anus, pretos 
como meu coração, esvoaçaram por cima de teus ossos ! 
Os soluços embargaram a voz do desgraçado. 




— Se é por isso, não chores, Cabeleira. O corpo de Luisinha não ficou às 
aves nem aos animais do mato. 
— Não ficou ? 
— Eu o enterrei com minhas próprias mãos. 
— Você ? 
— Eu e mais outro companheiro. 
O bandido correu ao soldado para o apertar em seus braços em sinal de 
reconhecimento. Mas a corda que o prendia pelos lagartos tolheu que ele lhe desse 
esta demonstração. 

— Não tem que me agradecer — disse o miliciano. — Eu vi Luisinha menina. 
Você não me conhece, mas eu também o vi pequeno; e se sua prisão estivesse em 
minhas mãos, nunca ela se teria feito. 
O soldado afastou-se do Cabeleira para que este não lhe visse as lágrimas 
que de quatro em quatro estavam banhando suas faces. 

— Não se afaste, camarada — disse o prisioneiro. — Tenho certeza de que 
você não me quer mal, e por isso quero pedir-lhe um favor. Não sei como poderei 
passar esta noite com a tristeza que tenho. Poderá você arranjar-me uma viola ? 
Pouco depois ignotos sons, que estão acima do maior elogio, levaram 
melancolia e saudade ao coração de todo aquele de quem se fizeram ouvir. 

Fora já servida a última refeição, e os hóspedes se haviam retirado a suas 
casas. Era tudo mudez na rua e vizinhanças. Os sons melífluos que já haviam 
imposto silencio aos soldados chegaram ao terrado da casa de Cristóvão como uma 
torrente de celestiais melodias, que lembraram a harpa de Davi, ou a lira de Anfião. 
Estas melodias comoveram o capitão-mor e sua jovem senhora, que iam ficar dentro 
em algumas horas separados de novo. 

— Como são tristes os sons desta viola ! — disse ele. — São as últimas 
despedidas de quem está a entrar no reino da verdade. 
— Mais me entristecem estas palavras suas, Cristóvão — disse dona Leonor. 
— Se nós o pudéssemos salvar... 
— Que diz, Leonor? Ele é um grande assassino. Sua mão tem derramado rios 
de sangue inocente. Os monstros não tem entranhas mais cruas do que as dele. 
— Pobre moço! Para atestar que seu coração não é tão mau, nem sequer lhe 
vale a expressão de bondade que tem no rosto ! Escute, Cristóvão. Conversávamos 
aqui há pouco eu e dona Catarina; Gonçalo Pais estava ao nosso lado. Senão 
quando vieram trazer-nos delícias e despertar em nós saudades comoventes os 
sons que o prisioneiro extrai com rara delicadeza de seu inspirado instrumento. 
Dona Catarina manifestou então grandes desejos de o conhecer. 
— E que fizeram ? 
— Descemos ao quintal acompanhadas de Gonçalo. Assim que nos viu, ele 
levantou-se, e nos saudou respeitosamente. "Continue a tocar, Cabeleira", disse-lhe 
eu. "Ah, senhora, mal posso pegar na viola. Além disso eu não sei tocar coisa capaz, 
senhora minha. Mas estes sons grosseiros podem melhorar se vossa senhoria, por 
sua bondade, mandar que me afrouxem um pouco estes laços. A corda penetrou-me 



na raiz das carnes, e tira-me toda a ação." Fiz sinal a Gonçalo para que satisfizesse 

o pedido do prisioneiro, mas Gonçalo hesitou. 
— Fez bem — disse o capitão-mor. 
— "Pode fazer sem susto o que minha senhora manda, sr. tenente. Cabeleira 
não fugirá porque está cansado de viver", disse o prisioneiro. Faltam-me expressões 
para lhe dizer, Cristóvão, o que ouvimos então. Notas de órgão inspirado não dizem 
os mistérios, as melancolias que se debulharam da viola do desgraçado. Vendo-o 
tão moço, tão artista e tão infeliz, todos nos sentimos comovidos da sua sorte; e ele, 
o prisioneiro, chorava e soluçava como uma criança. 
— Basta, Leonor — disse Cristóvão abalado com a narração que acabava de 
ouvir. 
Dona Leonor, surpreendendo este sentimento do marido, propôs-se tirar dele 

o maior proveito para o infeliz. Atirou-se a Cristóvão de Holanda, e o cobriu de 
afagos e carinhos. 
Fez mil rogativas para que se amerceasse da sorte do Cabeleira. A seu 
entender, alguns anos de prisão bastariam para que ele se corrigisse e emendasse. 

— Mas quem diz que não será esta a pena que se lhe vai impor ? — 
perguntou o capitão-mor. 

— Não o disse já o senhor, Cristóvão? Sou eu que lhe peço que de escapula 
ao infeliz. 
— Escapula, Leonor, escápula ! — exclamou Cristavão. E minha honra, e 
meu dever? 
— Eles não ficarão manchados com um ato de humanidade. Todos dizem que 
a maus conselhos e funestas instigações deve o Cabeleira o ter cometido tantos 
crimes. Pois bem; aquele que o aconselhou e instigou à prática desses crimes, o 
verdadeiro criminoso, lá está para responder pelo que fez, e mandou o filho fazer. 
Sua condenação servirá de exemplo à sociedade e ao próprio filho dele; mas a 
condenação deste será uma grande injustiça, e o céu não permitirá jamais que para 
ela concorra Cristóvão Cavalcanti que sempre trouxe limpo o brasão que lhe 
legaram seus avós. 
O capitão-mor levantou-se com a palidez na face. A poderosa dialética da 
consorte o havia feito sentir mais alterações na alma do que seus próprios carinhos 
no coração. A verdade sobre o Cabeleira era justamente aquela que sua mulher 
havia resumido em meia dúzia de palavras vivas e violentas. 

Depois de ter dado alguns passos pelo terrado Cristóvão caminhou para dona 
Leonor, que o não tinha perdido de vista. 

— Tudo o que disse é verdade, Leonor; mas sou eu acaso juiz ? Não sou 
mais do que o executor de uma ordem do governador. Acredito que prendi um 
criminoso, para o qual, se a mim competisse julgá-lo, teria eu uma condenação mais 
branda. Mas o direito de o mandar ir embora não o tenho eu. Se usasse de 
semelhante faculdade, Cristóvão de Holanda teria lançado sobre seu nome honrado 
uma mancha indelével. 
Tendo dito estas palavras, Cristóvão de Holanda recolheu-se imediatamente a 
seu gabinete em companhia de Gonçalo Pais. 




tatuando a lua apareceu no céu triste e pálida como os anjos dos sepulcros, a 
tropa recebeu ordem para partir no mesmo instante. O capitão-mor precipitava a 
jornada que havia dilatado para o dia seguinte. 

Pouco depois a tropa moveu-se. Dona Leonor, anjo de amor e de 
benevolência, deixava cair nesse momento, em silencio, algumas lágrimas, límpidas 
como sua alma. 

A respeitável senhora tinha saudades do esposo que novamente se 
ausentava, e pena do infeliz, que a morte atraía a si na forma de um patíbulo, e em 
nome da lei. 

CAPÍTULO XVIII 
Chegou enfim o momento da extrema provação. 

Ainda não tinha decorrido um mês, quando se ouviram os duros sons das 
crebras marteladas, que anunciavam à população do Recife o próximo e fatal fim 
dos delinqüente. Levantava-se a forca no largo das Cinco Pontas. 

Pela segunda vez este instrumento de suplício sobressaltou os ânimos e 
encheu de dor os corações na vila heróica. 

Por grandes que sejam as ofensas que a sociedade tenha recebido de um 
dos seus membros, a razão pública sente-se abatida diante da sua punição por meio 
da morte natural. 

A memória dos primeiros suplícios estava quase de todo apagado do espírito 
do povo. Realizaram-se eles durante a administração do governador Henrique Luís. 
Haviam decorrido da sua realização 38 anos, tempo mais que bastante para que se 
oblitere da tela do pensamento a imagem de semelhantes representações. 

Os pernambucanos lembravam-se porém ainda em 1776 do muito que 
custara a esse governador sentenciar à morte alguns criminosos. 

Uma provisão régia de data de 20 de outubro de 1735 tinha criado em 
Pernambuco a junta de justiça criminal, a mesma que 1776 julgou o Cabeleira, seu 
pai e os demais réus que sabemos. 

Havia-se reunido em conformidade da citada provisão na casa da câmara 
aquela junta, composta do governador, dos ouvidores de Pernambuco e Paraíba, do 
juiz de fora de Olinda, e de um dos ouvidores que tinham servido na primeira das 
sobreditas províncias. Apesar das razões mais de humanidade, do que de Estado, 
expostas por Henrique Luís, a maioria condenara os criminosos a serem justiçados 
no patíbulo. Henrique Luís, o modelo dos governadores portugueses, passara pelo 
desgosto de lavrar a sentença de morte que feriu primeiro a ele que aos 
condenados. 

No julgamento do Cabeleira e dos demais presos a inviolabilidade da pessoa 
humana fora melhor compreendida e respeitada pela junta, da qual só um membro 
opinara pela pena capital. 

Assim, no espaço de 38 anos o nível da consciência moral subira em três dos 
membros dessa terrível comissão; mas por desgraça baixara no mais importante 
deles. José César, desprezando o voto dessa maioria, digna de figurar nos tribunais 
modernos, sentenciara à pena última os infelizes com o apoio de um voto contra 
três, excedendo assim as atribuições do governador a quem a citada provisão 
conferia unicamente, no caso de empate entre os quatro membros, o direito de 
desempatar. Por onde se vê que entre estes dois governadores, ambos bem 
intencionados, embora as suas intenções fossem contrárias entre si e em seus 

efeitos, não mediavam somente 58 anos, mas também a barreira que separa das 
trevas a luz, do poder arbitrário, que destrói, o sentimento liberal, que edifica. 

Henrique Luís, posto que mais afastado do que seu colega, representava o 
direito novo de que o mesmo Portugal do século 18 trasladou em seu código, que o 
honra, uma parcela no século 19 com aplauso de todas as nações cultas. Esta 
parcela é a que afirma e consagra a inviolabilidade da pessoa humana. 

Se alguém houvesse dito então a José César que sua pátria em menos de um 
século riscaria de sua legislação a pena que ele impunha com tamanho arbítrio a 
três desgraçados a quem faltava a instrução mais elementar, teria ouvido o poderoso 
agente da realeza metropolitana classificar como uma utopia dos sonhadores do 
século 18 esta brilhante conquista das nossas luzes. Os tempos vingam-se, e se a 
humanidade algumas vezes, como as aves, rasteja e se enloda nos charcos da 
terra, purifica-se como elas, nas chuvas celestes, e eleva-se a regiões sereníssimas 
donde vê a grandeza do Onipotente nos milhões de mundos que povoam a 
imensidade; a sua sabedoria na harmonia que os prende; a sua bondade no 
sem-número de leis, assim físicas, como morais, que protegem os corpos e 
dignificam os espíritos. 

Na hora em que se construía o cadafalso, uma mulher que representava 
cinqüenta, mas na realidade não tinha senão 36 anos de idade, pedia por tudo 
quanto há sagrado, a uma das sentinelas do palácio permissão para falar ao 
governador. 

Joana havia chegado de Santo Antão no dia anterior, e de noite soubera que 

o filho e o marido tinham sido condenados à morte. Não lhe permitiram ver os entes 
que pertenciam mais a ela, representante do coração por dobrado direito, do que à 
justiça que nesse momento exprimia uma vontade poderosa e apaixonada. 
Pela manhã Joana correra ao palácio para cair aos pés de José César, e 
rogar-lhe que lhe deixasse ver o filho. A sentinela, em resposta, perguntara-lhe 
simplesmente: 

— Quem é você para falar ao sr. governador ? 
— Sou a mãe do Cabeleira. Será possível que meu filho morra sem que eu o 
tenha visto antes ? 
— Ponha-se no largo das Cinco Pontas, que o verá subir à forca à volta de 
uma hora da tarde. 
— Meu filho ! — gritara ela em soluço. — Pois hei de ver meu filho morrer na 
forca ! 
Joana caíra com a face sobre a laje do pavimento, carpindo como louca a sua 
desventura. 

Tendo ouvido os ais, lamentos, exclamações e gritos daquela consternada 
mãe, mandara José César inquirir a causa do alarido. Quando lhe disseram a 
desoladora verdade, ordenara que incontinente a mãe infeliz fosse posta em 
custódia até que se cumprisse a execução. 

Joana mal pudera ouvir a intimação deste cruel mandado. 

— Não, não ! — gritara, atirando-se para fora do palácio em estado de puro 
desespero. 
Alguns soldados correram a pegá-la, mas em vão, porque, empregando 
esforços sobre a natureza, pudera Joana escapar, não sem deixar primeiro 

despedaçados nas mãos de um o lençol em que estava envolta, nas de outro parte 
dos seus cabelos que haviam de todo embranquecido. Aquela pobre mulher fora 
condenada pela adversidade a padecer angustiados momentos, para os quais não 
acharemos semelhantes no catálogo das tragédias humanas. 

Ela fora pôr-se junto da masmorra, donde Cabeleira, Joaquim e Teodósio, 
que aí se achavam em grande recado, logo que houvessem recebido os confortos 
da religião, tinham de partir para o lugar do suplício. 

A esse tempo já as circunvizinhanças desse lugar se achavam ocupadas por 
grandes massas de povo. 

Quando no relógio da cadeia soou a hora fatal,; viu-se desfilar entre fortes 
colunas militares e a multidão os condenados. O silêncio e a tristeza que aumentam 
a solenidade destes espetáculos indescritíveis, eram de momento a momento 
perturbados pelos lamentos de Joana. 

— Meu filho vai morrer enforcado ! Ah ! meu Deus, vós bem sabeis que ele 
não teve culpa —dizia ela com a voz entrecortada de soluços. 
José César, cercado dos seus privados e lisonjeiros viu da varanda do 
palácio, outrora povoado pelo vulto homérico de Maurício de Nassau, tipo de mais 
fidalgo liberalismo que ainda transpôs aqueles umbrais, com uma espécie de 
recolhimento qual se estivesse presenciado uma procissão desfilar o fúnebre 
préstito, que em seu trajeto percorreu as ruas do Crespo, Queimado, Livramento, 
Direita, Pátio do Terço, e finalmente parou no largo das Cinco Pontas ao pé do 
terrível artefato. Era uma hora da tarde. 

O juiz nomeado pelo governador para assistir à execução em conformidade 
do disposto na provisão régia, ordenou que o escrivão repetisse a leitura da 
sentença. Os delinqüente. ouviram pela vigésima vez, com sincera contrição, esse 
padrão do absolutismo colonial. 

Finda a leitura, viu-se o Cabeleira aparecer, quase de súbito, no estrado da 
forca, ao lado do carrasco. 

Ele não havia vacilado na rápida ascensão nem dava mostras de abatido. 

Seu rosto estava pálido, mas sereno. A cabeça tinha despojada do belo 
distintivo a que o mancebo devia a alcunha com que seu nome chegou à 
posteridade. 

Com um olhar longo e rápido abrangeu a multidão que se apinhava em 
derredor do patíbulo, e proferi, sem titubear, com voz ligeiramente alterada, estas 
palavras que a tradição recebeu como herança, para transmitir às gerações 
vindouras: 

— Morro arrependido dos meus erros. Quando caí no poder da justiça, meu 
braço era já incapaz de matar, porque eu já tinha entrado no caminho do bem... 
— Meu filho ! meu filho ! — gritou nesse momento Joana do meio do povo por 
entre o qual buscava embalde abrir caminho para chegar ao pé do cadafalso. A esta 
exclamação, o Cabeleira voltou-se confuso e comovido. Um longo suspiro 
escapou-lhe do peito opresso da súbita aflição. Seus lábios trêmulos deixaram 
passar estas precisas e pontuais palavras: 
— Adeus mamãezinha do meu coração ! 
No mesmo instante, aos olhos da multidão profundamente abalada, a cena 
transformou-se como por oculto maquinismo. O infeliz mancebo, que, mal acabara 

de falar tinha sido rudemente impelido do estrado para o vácuo, pendia da corda 
assassina, tendo sobre os ombros o carrasco que apertava com as mãos cobardes o 
laço sufocante. Cena bárbara que enche de horror a humanidade, e cobre de 
vergonha e luto, como tantas outras, a história do período colonial ! 

No meio da multidão esta cena de morte reproduziu-se no mesmo instante, 
unicamente modificada na forma. Entre os braços de umas mulheres do povo, 
pobres mães decerto, Joana acabara de exalar o último suspiro. O coração tinha-se 
instantaneamente estalado de dor. 
Poucos momentos depois ao cadáver do Cabeleira reuniram-se os de Joaquim e 
Teodósio, seus companheiros na vida e na morte, na história da província e nas 
reminiscências do povo, -de presente quase de todo apagadas pela mão do tempo. 

A notícia de tão triste exemplo atravessou as remotas paragens onde 
repercutia a fama do grande matador, e passou ainda além nas asas ligeiras dos 
versos já citados, aos quais se devem reunir estes dois últimos, trovistas 
pernambucanos: 

Quem tiver seus filhos 
Saiba-os ensinar; 
Veja Cabeleira 
Que vai a enforcar. 

Adeus, ó cidade, 
Adeus, Santo Antão, 
Adeus, mamãezinha 
Do meu coração. 

A execução do Cabeleira e seus co-réus não atalhou as desordens e delitos, 
a que se refere a provisão; não trouxe terror nem emenda aos malfeitores. 

Os crimes atrozes, então muito freqüentes, se têm diminuído, ainda não 
cessaram de todo. As folhas públicas registram todos os dias por infelicidade nossa 
muitos deles, perpetrados no Norte, no Sul e na própria corte do Império. 

De que serviu pois a provisão régia ? Em que consistiu o proveito da 
execução dos três infelizes no regime colonial; e dos que os precederam, ou se lhes 
seguiram neste e no regime do Império ? 

Ah ! meu amigo, a pena de morte, que as idades e as luzes têm demonstrado 
não ser mais que um crime jurídico, de feito não corrige nem moraliza. O que ela faz 
é enegrecer os códigos que em suas páginas a estampam, por mais liberais e sábios 
que sejam como é o nosso; é abater o poder que a aplica; é escandalizar, 
consternar e envilecer as populações em cujo seio se efetua. 

A justiça executou o Cabeleira por crimes que tiveram sua principal origem na 
ignorância e na pobreza. 

Mas o responsável de males semelhantes não será primeiro que todos a 
sociedade que não cumpre o dever de difundir a instrução, fonte da moral, e de 
organizar o trabalho, fonte da riqueza? 

Se a sociedade não tem em caso nenhum o direito de aplicar a pena de morte 
a ninguém, muito menos tem o de aplicá-la aos réus ignorantes e pobres, isto é, 
aqueles que cometem o delito sem pleno conhecimento do mal, e obrigados muitas 
vezes da necessidade. O Cabeleira pode acaso comparar-se em culpabilidade a 
Lapomerais, médico ilustrado, ou a esse negociante alemão ou americano, Tomás 

ou Thompson, que, com intuito de enriquecer do dia para a noite, ocasionou com a 
perda do paquete Moselle a morte de oitenta, e os ferimentos de cem passageiros ? 

Condena-se à forca o escravo que mata o senhor, sem se atender a que, 
rebaixado pela condição servil, paciente do açoite diário, coberto de andrajos, quase 
sempre faminto, sobrecarregado com trabalhos excessivos, semelhante criatura é 
mais própria para o cego instrumento do desespero, do que competente para o 
exercício da razão. Ainda em 28 de abril do corrente ano, em uma cidade da 
província das Alagoas um destes infelizes padeceu o suplício capital. Por honra da 
civilização, um dos primeiros órgãos da imprensa do Norte, o Diário de Pernambuco 
lavrou contra essa cobardia jurídica o seguinte protesto: «Registramos este 
acontecimento com a mágoa que sói causar àqueles que amam a pátria e a 
humanidade a continuação entre nós da bárbara pena de morte, que, infamando, 
nem ao menos corrige". 

Arrastam os delinqüente. à barra dos tribunais ou ao pé dos juizes para serem 
interrogados sobre as circunstâncias dos crimes que cometeram. Não devia ser 
assim. O interrogatório principal devia ter por objeto os precedentes do culpado, o 
grau da sua instrução literária, a sua educação, os seus teres. 

A pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve a sociedade atribuir o 
maior número dos crimes que pune e dos erros e faltas que não se julga com o 
direito de punir. A pobreza nunca foi nem será jamais um elemento de elevação; ela 
foi e será sempre um elemento de degradação social. 

A riqueza, meu amigo, é um dos primeiros bens da vida. 

Quando ela resulta de um trabalho honesto, e servido por uma ambição nobre 
e ponderada, não podem dela redundar males. Ao reverso, de uma riqueza assim 
adquirida, provém quase sempre benefícios não só para aquele que a possui, mas 
também para a sociedade. 

Quanto mais medito sobre este assunto, mais me parece que o evangelho 
que ensina a pobreza voluntária, considerada pela moderna ciência um absurdo 
econômico, e um impossível social, é antes um código de moral prática sujeito à 
revisão da sabedoria dos tempos, do que o corpo de leis de uma religião imutável. A 
prova de que não estou em erro, eu a vou achar no exemplo que nos dão os atuais 
ministros do evangelho, os quais, muito diferentes dos pescadores da Galiléia e da 
Samaria que, descalços e humildes, o ensinaram gratuitamente a todas as gentes, 
empregam hoje todos os meios de tornar-se ricos e poderosos, e não desestimam a 
opulência, começando pelos que ocupam os primeiros lugares na hierarquia 
eclesiástica. 

Não sirvam estas verdades de consternação aos pobres. 

Sirvam-lhe de estímulo para que trabalhem, cultivem a terra, as indústrias, as 
artes, e possam, por seu próprio esforço, vir a ser independentes é felizes. 

FIM