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 SARGENTO GETÚLIO 
João Ubaldo Ribeiro 


     Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso à Barra dos Coqueiros. É uma história de aretê. A  gota  serena é  assim, não  é  fixe. Deixar,  se transforma-se  em  gancho  e  se  degenera  em  outras  mazelas,  de  sorte  que  é  se  precatar  contra mulheres  de viagem. Primeiro preceito.  De  Paulo  Afonso  até  lá, um  esticão,  inda  mais  de  noite  nessas  condições.  Estrada  de  carroça,  peste.  Temos  Canindé  de  São  Francisco  e  Monte  Alegre  de  Sergipe  e  Nossa  Senhora  da  Glória  e  Nossa  Senhora  das  Dores  e  Siriri  e  Capela  e  outros  mundãos,  sei  quantos.   Própria   e   Maruim,  já viu, poeiras e   caminhãos  algodoados,   a  secura   fria.   
    E  sertão do brabo: favelas e  cansançãos, tudo  ardiloso, quipás por baixo, um  inferno. Plantas  e mulheres  reimosas,  possibilitando  chagas,  bichos  de  muita  aleiva,  potós,  lacraias,  piolhos  de  cobra,  veja.  Matei  uns  três  infelizes  assim, pelo  cima  de uns  quipás,  sendo  que um  chegou  devagar no  chão, receando os  espinhos  sem dúvidas. Assunte  se  quem  vai  morrer   se  incomoda  com  conforto. Fosse   dado  a  sangria,  terminava  o  vivente  no  ferro,  porém  faz  um  barulho  esquisito e não é asseado por causo de todo aquele esguincho que  sai.  E  dessa  forma  acertei  um  disparo  no  cachaço,  procurando  atitude para não esperdiçar munição. Inda xinguei por me obrigar  a caçar pelessas catingas, arremetido naquela soaeira, estropeando  as  reiúnas  novas  naquelas  catanduvas  embaracentas.  Só  se  vê  cabeça de frade, macambira, catingueira e urubu. Nem ouviu mais  o xingamento, amunhecou e esfriou. Trabalheira ordinária. Ia me  fazer chegar aonde? Itapicuru? Vitória da Conquista?  Sei lá. Não  tem  limites para  a  frouxidão que  faz o homem  dar nas  canelas  e botar a alma no mundo, correndo do destino.    A hora de cada um é  a  hora  de  cada  um.  O  bexiguento  lá  estrebuchado,  agora  ancho  nos  espinhos,  como  se  o  chão  fosse  forrado  de  barriguda.  Que  diferença faz? Quem já  viu o derradeiro tiro sabe como é. Aquela  sacudida  no  corpo,  uma  estremidela  de  uma  vez  só.  Depois  os  urubus,  que  a  tarefa  aí já  não  é  mais  de  punição,  é  de  limpeza.  Urubu é o asseio dos matos, enxerga no minuto que alguém deixa  de  andar  naqueles  agrestes  e  fica  rodeando  como  um  esprito.  Arrodeia assim, estralando o bico e ufeúfe nas asas, aqueles pulos  penados,  almospenados. Vai  e revai  e vai  e vem.  De  luto.  Deve  ter  um  bafo  notável.  Sabe-se  que  o  urubu  novo  nasce  branco  e  depois empretece e se ver um homem vomita de nojo, dá enguios.  Nós  temos  nojo  deles,  eles tem  nojo  de nós.  Naqueles  agrestes,  quando   todos      caldeirãos    se   acham    secos    e   as  arribaçães  escavocam a lama no  caminho do rio,  dá um  silêncio importante.  Só  o  mato  que  bate  castanhola,  assim  vez  por  outra.  Como  gaiteiras,  só  que nesta  feita no  terreno  sem mangues. Não  existe  bom que não tenha medo dos urubus, porque a fome traz ousadia  no bicho e ele achega-se perto, pulando pelo chão, de asa aberta e  bicão  exalando.  É  o  dono  do  mundo.  
    A  língua  deles  se  vê  e  se  ouve o barulho dos pés, naquele passo arredondado que ele dá. E  pode  esperar  que  o  homem  vai  ser  comido  numas  beliscadas  puxantes, aos arranques: o bicho estica para trás, arrasta pelo chão  e engole com a cabeça para cima, tudo muito calado e despachado.  O  segundo cabrunquento se finou quase que do mesmo jeito,  só  mais conformado, fazendo rezas. Dizem que já  estava mordido de  barbeiro  mesmo,  morria  assim  ou  assado  qualquer  dia,  mas  parecia cevado e sustante. Enfim, quem come jaca  e bebe qualquer  espécie  de  cachaça  estupora,  mas  nas  horas  antes  parece  ótimo,  até chegar  o  estupora-mento. Dizem, nunca  vi.  Porque  na  minha  frente  nunca  permiti  um  cristão  misturar  indevidos,  beber  água  depois de chupar cana, comer coco tendo tosse. A morte morrida  enfeia e dá sentimentos porque é devagar, não é pacífico.  
    Sempre  digo, nas  festas de rua, quando o povo  se junta  feito besta de um lado  para  o  outro:  olhe  as  galinhas  de  Deus.  Porque  é  igual  às  galinhas do  quintal. Quando menas  ela espera, ali galinhando no  copiar, ali ciscando bendodela com aquela cara de galinha, o dono  pega  uma,  raspa  o  pescoço  bem  raspado  e  sangra  num  prato  fundo,  com  um  vinagrinho  por  baixo.  Quando  menas  a  gente  espera,  Deus  pega  um  e  torce  o  pescoço  e  não  tem  chororô.  Mesma  coisa.  Meu  São  Lázeo,  meu  São  Ciprião,  não  adianta  nada,  que  o  santo não  tem  prevalência  no  destino. A  criatura  se  desmancha-se   em   elementes.   Udenista,   pessedista,   qualquer.  Amaro já  viu  muito  cabra na  agonia, não  viu,  Amaro?  Não  tem  jeito,  quando  está dirigindo não  gosta  de prosa.  Não  ser  quando  dá  bigu  às  raparigas.  Não  semos  raparigas,  pelo  menos  eu  não  sou  rapariga,  desculpe.  Ôi  Amaro,  uh-uh  Amaro,  ô  seu  peste,  quando  um  homem  fala  tu  responde.  Um  dia  desses  com  essa  macriação  algum macho  lhe tira-lhe  o  fato fora, que tu  só vai ter  tempo  de  espiar  as  tripas,  rezar  meia  salverrainha, um  quarto  de  atodecontição e escolher o melhor lugar no barro para se ajeitar, e  ligeiro ligeiro, que possa  ser que antes de chegar já  tenha ido. Ôi  Amaro, inda mais que tu é frouxo por demasiado. Vosmecê sabe,  esse  apustemado  é  de  Muribeca.  Povo  de  Muribeca  não  presta,  tudo tabaréu, lá não tem nada, não sabe vosmecê. Amaro, ou você  fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu. Estrada de carroça, tudo  desmazelado. Já botei muito cabra para correr assim na escuridão  peluma  estrada  dessa.  Casos  menores,  remédios  outros.  Temos  dois tonéus na delegacia de Frei Paulo, para ser enchidos com lata  de gás furada. O bicho entra na chave e pega a encher os tonéus,  só  que tem  de  correr,  do  contrário  a  lata  desvazia  antes, pois  os  buracos  são  muitos  e  coculados.  Bóia,  sarôios  e  macasadas,  quando há,  dormidas ou não,  de acordo. Azeda no bucho  e pode  dar  malinagem  na  barriga.  Domingo,  feijão  como  vem,  folha  de  couve ou outra naquela água acastanhada, não petece mesmo, não  é  comigo não.  Casos  mais  graves requer  a  expulsão  do  alguém.  Meia  libra  de bacalhau  cru  quando  haja,  quando  não  haja  possa  ser jabá  mesmo,  gorda  ou  não,  sem  escaldo.  
   Segue um  copo  de  óleo de rício, esse gordo que chega as bolhas  a se abrir em cima,  recindendo mamona. Bem, criaturo: se fizer efeito no  Município,  estamos  acertados,  vai  dessa  pras  profundas.  Quem  diz?  Arriba  até  mesmo   de  cavalo,  achando  cavalo,  ou   senão  numa  boa  carreirinha,  e  vai  se  aliviar  longe  das  divisas.  De  Barracão  a  Simão  Dias,  sei  lá.  Bosta  derretida  onde  marquei  terreno,  isso  não. Nunca. Dessas fiz diversas, que era para não fazer mal pior.  Infeliz tem mulher e filho, geme como um bacorinho, o que é que  se vai  fazer? Necessidade  é necessidade,  passe  bem  eu  e  o  meu  alazão,  a  mulher  parindo  ou  não.  Cabo  eleitoral  dessa  laia  não  merece respeito. Mesmo agora que eu perdi  a autoridade, sempre  fica o prestígio. Em Aracaju tenho as costas quentes e não é assim  que  Getúlio  vai  se  ver  de  uma  hora  para  outra.  Principalmente  depois de entregar vosmecê.  
    Tem ambientes em Aracaju,  gente a  seu  favor.  Coisas. Não gosto desse  serviço, não gosto de  levar  preso. Avexame. Depois que levar vosmecê lá, assento os quartos  num  lugar e largo essa vida  de cigano.  Só se doutor Zé Antunes  pedir  muito.  Mesmo  assim.  Me  aposento-me.  Essa  água  está  quente na garrafa, mas está  boa.  Nunca  beba  água  onde  não  pode  ver  o  purrão.  Segundo preceito.  Lampião  andava  com uma  colher  de prata  no  embornal. Todo de comer enfiava colher. Se a colher empretecia,  tinha  veneno,  isso  porque  o  veneno  descurece  a prata,  não  sabe  vosmecê.  Morte  certa  para  o  dono  da  casa.  Se  não  empretecia,  dava até presentes, sortia bodegas, fazia felicidades. Muitas vezes  ficava  arreliado  por  qualquer  coisinha.  Trancou  os  quibas  de  vários  na  gaveta, jogou  a  chave  fora  e tocou  fogo  na  casa. Não  sem antes botar  uma  faca ao pé  do  desgraçado. No  meu pensar,  antes  morrer  queimado  do  que  perder  os  quibas.  
    A  voz  vai  afinando,  a  barba  vai  caindo,  se  torna-se  pederástio,  falso  ao  corpo.  Mas  a  maior  parte  preferia  cortar  os  ovos  do  que  virar  coivara.  Hoje  em  dia  não  se  faz  mais  essas  coisas.  Vosmecê  aturava uma dessas? Outra vez, Lampião amarrou a mulher de um  juiz,  não  sei  se  em  Divina  Pastôra  ou  Rosário  do  Catete  ou  Capela,  amarrou  essa  mulher  desse juiz  num  pé  de pau  e botou  nuazinha  em  pêlo.  Mas já  se  viu  uma  mulher  velha  dessa  com  tanto  cabelo nas  partes?  Ora já  se viu  que indecência? Nem  das  piores raparigas, que é isso assim? E assuntou em cima dos oclos  assim e assado e acabou arrancando todos os pentêios do xibiu da  mulher na frente de todos, tudo ali reunido por obrigação, porque  Lampião só fazia tudo na frente de todo mundo. Ruindade era ali,  matava   sem   idéias.  Resultado,   cabeça   cortada  na   Bahia,   de  exposição  como  chifre  de  boi  brabo.  Antes  porém  brincou  de  manja com a milícia de todos Estados e deixou a marca no mundo  desde  o tempo  de Dão  Pedro.  Dizem, nunca  vi.  Bicho ruim  não  morre  fácil.  
    Ô  Amaro,  porventura  onde  estamos?  Me  avise-me  quando  chegar  em  Curituba  Velha,  arreceio  tocaias.  Pior  da  quentura,  os  bichinhos  de  asa vão  entrando pela janela  e vão  se  grudando  no  suor  da  cara.  Espécie  de  animal  pestilento.  Em  Buquim, aquela mosquitaria, que era ver. Buquim é Brasil? Porto  da  Folha   é  Brasil,   com   aqueles  alemãos   falando  arrastado?  Aracaju  não  é  Brasil.  Socorro  não  é  Brasil,  é?  A  Bahia  não  é  Brasil.  Baiano  fala  cantando. Necessário  tomar  banho  uma  hora  dessas.  Quentura  do  crânico  rodête.  E  esses  bichos  batendo  na  cara dum cristão. Me aposento-me. Uma casa em Japaratuba, que  é lugar fresco e assossegado, junto  do rio Japaratuba, que o único  defeito é nascer lá naquelas brenhas de Muribeca, hem Amaro? E  fico encostado, comendo caranguejo. Assino a orelha dum par de  cabras de leite e fico lá encostado, jogando  gamão. Doce de leite,  hum? Chu. Vida mansa, não  sabe vosmecê. E eu de vinte mortes  nas costas. Mais de vinte. Olhando para mim, não se diz. Mas  se  eu não  sou um homem despachado ainda estava lá no  sertão sem  nome, mastigando  semente de mucunã, magro  como um  filho do  cão, dois trastes como possuídos, uma ruma de filhos, um tico de  comida   por     semana   e   um     cavalo   mofino   para   buscar       as  tresmalhadas  de  qualquer  dono.  Espiando  o  dia  de São José,  aquelas  secas  espóticas,  nuncão.  Aquela  chuva  que  antes  de  chegar  em  baixo  já  está  subindo  de  novo,  de  tão  queimosa  a  excomungada  da  terra,  lembra  labaredas.  Japaratuba  é  menos  agreste.  Compro  um  binoclo,  na  tenção  de  olhar  as  paragens.  Gosto  de  binoclos.  Mais  de  vinte  nas  costas,  veja  vosmecê,  é  como mulher, não  se consegue lembrar todas. A  primeira  é mais  difícil,  mas  depois  a  gente  aprende  a  não  olhar  a  cara  para  não  empatar  a  obra.  De  perto  demais  não  é  bom.  Se  agarram-se  na  gente, puxam  a  túnica  para  baixo.  Verdade  que pouco  estou  de.  farda, mas  quando estou me aborreço que suje minha  farda. Não  gosto de estar com uniforme descompleto. Estradinha da moléstia.  
   Não  sei, talvez possa  ser melhor comprar uma plantação boa, um  sítio  quieto.  Mandioca.  Interessante,  é  venenosa  mas  nunca  vi  ninguém  morrer  de  mandioca,  agora  todo  mundo  sabe  que  é  venenosa.  Matar  de  veneno  é  porcaria.  Conheci  um  cabo  que  bebeu tatu e se vomitou todo. Morreu feio, lançando arroxeado na  cama. O  terceiro  que morreu  na  catinga não  me  lembro  o nome.  Um  com  a  cara  de peru  assoberbado, um  vermelho.  Teve morte  demorada.  Bicho  valente,  reagiu   de   facão,  de  maneiras   que  tivemos  de encher logo o couro dele. Assim  mesmo,  a bochecha  de  Alípio  tomou  um  corte  medonho  e  ficou  escancarada  como  duas folhas soltas. Ferida feia. Preciso comprar brilhantina assim  que chegar numa cidade de gente. Quando vou à paisana, o quepe  não  está  para  assentar  as  grenhas.  Alípio  queria  falar  mas  não  podia, só assoprava com descontrole de vento. Donde se vê que a  sede  da  fala  também  é  parte  na  bochecha.  Pouco  sangue,  só  o  bastante  para  lambuzar mais  ou  menos  o pescoço.     Aquilo  como  duas  bandeiras,  uma  desencontrando  da  outra.  Compro  uma  brilhantina  cheirosa  e  mando  aparar  as  costeletas.  Alípio  ainda  acertou as tripas do udenista com a baioneta três ou quatro vezes.  Maioria  dos  udenistas  custam  de  morrer,  se prende  no  ar  como  camaleão.  Não   ser  as  mulheres,   que  morre   como  qualquer,  udenista,   pessedista,   queremista,   intregalista   ou       comunista.  Também  não  sei  muito  de  mulher.  A  gota  serena,  a  bexiga  da  peste.  Dá  de  gancho.  Tem quem  tome  a  Saúde  da  Mulher,  para purgar a reima. Sei não. Arde. Até  noite essa poeira vai entrando  e  suja  a  camisa  de  amarelo. Amaro  só  anda ripado  pela  estrada,  mas  com  esse  caminho  de  carroça  não  se  pode  fazer  mais.  Vosmecê  garanto  que  não  tem  pressa.  Compro  Quina  Petróleo  Oriental,  como  o  Chefe usa  e  sai todo  busuntado,  passeando  na  Rua  João  Pessoa,  de roupa branca  e um  lenço no bolso  e dando  aquelas  paradas  para  conversar  e  explicar  a  situação  e  depois  sentando para tomar cerveja e comer queijo com um molho preto  em cima. Para mim o Chefe campa as mulheres da miuçalha toda,  quando quer. É entrar naquela sala e sair galada. Para mim é isso.  Quina  Petróleo  Oriental.  Arre.  Diabo  de  mosca.  Mosca  não  se  afoga.  Menino,  eu  pegava  as  moscas  e  botava  numa  garrafa  dágua,  sacudia  bem  e  quando  abria  lá  vem  mosca  voando  que  nem está aí nem vai chegando. Resiste bem. O que me reta é que a  gente  enxota  e  ela vem  no  mesminho  lugar  que  estava  quando  a  gente  enxotou  antes.  Agora,  pode  se  pegar  uma  se  botar  a  mão  palmo  e  meio  para  o  lado  e  passar  a  mão  mais  ou  menos  para  cima, que é para pegar o vôo dela. Depois, jogando  com força na  parede,  ela  achata.  Mas  aqui  não  posso  fazer,  não  dá  posição.  Quina Petróleo  Oriental, já  usou?  Se eu  alisasse o  cabelo, possa  ser  que  melhorasse,  mas  para  alisar  tinha  que  ir  num  salão  em  Aracaju. Isso não, ia acabar fazendo uns buracos nuns camarados  por  lá,  quando  me  olhasse  resvalado.  Aracaju  é  mais  difícil  do  que no  interior, cidade grande tem testemunha por  demasiado. A  política não é bom em Aracaju. Política de macho é aqui. Diacho,  até potó  dá  aqui dentro, já  viu  vosmecê? Um  saqüé desses verte  água em sua cara e encalomba tudo, nunca mais sara. Amaro, nós  dormimos  no  primeiro  lugar  aí,  não  agüento  mais  essa  viagem.  Diacho,   até  potó   dá  aqui  dentro.  Menino,  pegava  praga   de  mucuim  na  grama.  Necessário  untar  o  corpo  de  pó  de  enxofre  com  água  e  ficar  quentando  até  a  praga  amainar.  Fede  como  a  desgrama  e  eu  ficava  todo  coscorento  e  amarelo.  Bicho  ruim,  mucuim.  Cuidado  quando  deitar  na  cama,  sempre  se  aprevina.  Terceiro  preceito.  Por  dormir  desarmado  morreu  muito  macho  
bom. Preciso comprar um rádio. Dá chique. O homem que matei  na   cama,   matei     a   raça   toda.   A ssassinato   misterioso       em  Itabaianinha. Massacre de família. Essas alturas, todo mundo leso  e  eu  dormindo  em  Arauá.  Não  gosto  de jornal  como  vosmecê,  acho    difícil,   muitas   palavras.   Menas   verdades.   Udenistas,  comunistas.  Comunistas  udenistas.  Partido  Social  Democrátio.  Quando  fomos  apanhar  o  camarado  dentro  da  casa  da  mulher  dama,  ele  estava  lá  todo  entupigaitado,  de  roupa  de  diagonal  e  gravata lustrosa e dando muita risada  e parecia que era uma  festa  que  ele  estava.  Tárcio  arreganhou  a  porta  e  deu  aquele  grito  da  pega.  Conheceu  o  finado  Tárcio?  Amaro  conheceu,  ô  Amaro.  Conheceu?  An.  Hum.  Deu  aquele  berro  que  ele  dava.  Todo  mundo eu pego e capo, gente! Vá desafastando, vá desafastando,  vá  desafastando  e passando  pela  revisão  da  porta.  Se viu-se  foi  rapariga  naqueles  pinotes  miudinhos  se  enfiando  pelas  portas,  debaixo  da  cama, todas  partes  da  casa.  Espetaram uma  no  muro  do  quintal,  quando  quis  pular.  Esqueci  de  avisar  que  o  quintal  estava  cercado,  tinha  homem  até  no  oitão,  e  tudo  péssimo.  No  meio  daquele baba todo,  o homem  querendo fazer discurso.  Que  significa  isso?  Que  significa  isso?  Que  significa  isso,  sargento?  Senhor desculpe, senhor vai com a gente, mestre. A dona da casa  falando  carioca,  parecia  até  coisa  que  prestasse.  Tárcio  segurou  ela pelo quengo e jogou  lá dentro. Pensa que calou a boca? Ficou  lá saturando a paciência, de maneiras que Tárcio foi e arregalou o  olho cego em cima dela e soltou um bafo nela: não arrelia, mulher  dama! Já se viu mulher dama ter querer, onde já  se viu. Quando o  diabo   não   vem,   manda   o       secretário.   Essa   carioca     sibite,  acostumada  a  ver  todo  bichinho  ximando  o  rabo  dela.  Sai,  sai.  Vasta,  puta!  Não  é  que  vastou  e  mordeu  a brida  e  Tárcio  ainda  arregalou  cego  outra vez  pelas  grimpas  dela  e  a putarreles  ficou  desencalmada. Aquele  olho  branquicento  de  Tárcio  matou  muita  gente  do  coração,  quando  ele  se  aporrinhava  aparecia  também  umas aveias vermelhas, era assombrado. O Chefe disse: me traga  esse  homem  vivo,   seu  Getúlio.  Quero   o  bicho  vivão   aqui,  
pulando.  O  homem  era valente,  quis  combate, mas  a  subaqueira  dele  anganchou  a  arma,  de  sorte  que  foi  o  fim  dele.  Uma  para- belada  no  focinho,  passarinhou  aqui  e  ali  e  parou.  Foi  manso,  manso,   de   beiço   quebrado.   Tárcio   queria   logo   passar   uma  máquina zero no cabelo dele, mas não pôde ser. Era só questão de  dar umas porretadas de ensinamento, não era como quando fomos  quebrar o jornal  comunista. Essa quebra ninguém mandou, mas o  jornal  aporrinhava  o  Chefe,  de  sorte  que um  dia  foi  queimado  e  faltou  água  para  os  bombeiros.  Não  sobrou  nada  e  tinha  um  comunista  chorando  na  porta.  Cabra  frouxíssimo.  Sem  dúvidas  baiano. Magro,  sem sustança, devia de chorar assim de fraqueza.  Todos casos, queimou está queimado, não  sobrou nem tição para  acender meu  liberti. Foi  o  fim dos udenistas  comunistas, ô gente  mofina só é comunista, embora estime a perturbação. Na hora que  arrocha,  se  vão-se  todos  para  cachaprego.  Levei  diversos.  Luiz  Carlos  Preste,  Luiz  Carlos  Preste.  Faziam  mítingue  na  praça  Pinheiro Machado gritando isso e uma vez pertubaram toda a rua  da  Frente,  não  deixaram ninguém  passar.  Não  teve  gueguê  nem  gagá.  Seu  Getúlio,  me  compreenda  uma  coisa,  me  desça  o  pau  nessa   corja.   Eles   lá   muito   monarcas   no      distúrbio   e   nós  destaboquemos pela praça  Fausto  Cardoso  e casquemos a lenha.  Cambada  de  cachorro, não  acha vosmecê.  Não  teve  essa  cabeça  boa,  na  hora   do  derrame  de  cavalaria,  que  ficasse  livre  da  bordoada.  O jornal,  depois o Chefe botou no  outro jornal  que os  intregalistas era que tinha queimado. Prender os intregalistas, seu  Getúlio,  que  é  para  eles  aprender  a  não  queimar  o  jornal  dos  outros.  Me  traga  essa  gente  toda,  pelo  amor  de  Deus.  Fomos  buscar  e  daqui  a pouco  estava  assim  de  intregalista na  frente  da  gente. Bonita coisa queimar o jornal, bonita coisa queimar o jornal  dos    comunistas.   Entrou       tudo   na    Chefatura,   reclamando,  reclamando, ah porque não foi eu que queimei o jornal,  ah porque  isso  não  pode,  ah porque  não  sei  o  quê,  ah porque  o pai  dele  é  importante  e  vai  soltar  ele  e  essas  coisas.  Marchou  tudo  para  dentro, abriram inquérito. Por  mim,  estava tudo  lá até hoje.  Essa  gente  não  presta.  Chegaram  na  casa  do  Chefe  e  avisaram,  quer  dizer, um  caguête avisou que vamos pegar  o homem  em casa, se  não  tiver pegamos  a mulher  do  homem,  se não  tiver pegamos  o  filho. Veio força armada da Bahia, botaram cachorro, escondemos  o  menino  e  se  dispomos  por  baixo  dos  oitizeiros  da praça,  pela  riba  do  palanque,  em  cima  da  piçarra.  Estava  uma  guerra.  No  alpendre,   botemos      eu   e   Tárcio,   segurando   duas   máquinas  engraxadas, das tinindo, novas, novas. Era entrar, era ser varado,  sem  uma  nem  duas.  E  a  gente  estava  pronto  para  passar  uma  piaçaba  de  bala  naquela  praça,  ô  festival,  hem  Amaro?  Aquilo  quando estava silêncio, chega se ouvia quase as armas respirar  e  um  ar pesado,  virgem.  Amaro  viu,  ih,  estava lá  se borrando  nas  calças,  carregando  um  cano  curto.  Ô  Amaro,  revólver  atira  sem  homem? Quem nasce em Muribeca é muribequense, hem Amaro?  Ah-ah.  Muribequino  ou  muribequeiro?  Esse  Amaro,  ôi  Amaro.  Chofer bom está aí, a mão firme. É quem dirige o estudebêque do  Chefe nas  horas  de maior precisão.  ele e Batista, mas  de Batista  não  gosto,  vosmecê  conhece?  Pois  a  gente  estava  ali  com  os  cotovelos  no  balaústre,  assuntando  se  vinha  a  invasão,  só  que  com a cabeça para dentro, que era fatível mandarem um balaço lá  da  rua  do  Cedro  e  ninguém  semos  passarinho  para  o  outro  vir  atirar  assim  sem  mais.  Tárcio  saía  de  vez  em  quando,  com  a  cabeça para cima por causo do olho cego e ia pegar um salame na  bodega  de Zé Corda, às vezes bolacha de goma, que ele gostava,  uma  garrafinha de jade,  coisa assim. Eu não. Plantado ali. Mas  a  udenê — veio vosmecê? assim veio ela. Sabia que o pecidê estava  pronto para  qualquer política que viesse  e podia vir como viesse.  Isso  em  Aracaju,  porque  se  fosse  no  interior  a  gente  fazia  com  eles o que eles fizeram em Ribeirópolis, aliás sei que vosmecê tem  parte  nisso,  quando  eles  até  fogo  em  bezerro  vivo  tocaram  e  espalharam  sal  na  terra  e  inda  por  cima  arrancaram  as  portas  e  janelas  das  casas  das  famílias  e  botaram  um  homem  em  cada  buraco,  espiando  para  dentro.  Isso  eles  não  se  alembram  de  contar. Mas  ali não  apareceram para  o  cerco  do  mais  danado  da  
política, naquele aceso, ia ser uma mortandade. Tinha boas mãos e  dispostas,   uma   roda   de   chumbo.   Mas   não            apareceram.  Aparecesse,   chovia   ferro.   Cristiano   Machado,   o   homem   é  Cristiano Machado.  Brasileiro.  Presidente  é presidente.  Udenista  é udenista.  Talvez possa  ser  melhor,  em vez  de  Quina  Petróleo,  Brilhantina Glostora, porque  gosto mais do cheiro. Se lembra do  preto  Ramálio,  Amaro?  Esse  vou  dizer  a  vosmecê,  esse  era  ladrão, esse não valia nada, teve sorte merecida. Amarraram atrás  dum carro e arrastaram pelai. Os restos jogaram  no apicum. Preto  ruim, baiano. Preto  e baiano não  dá certo. Pois usava  Glostora o  infeliz, veja  como era desassuntado. Vou  aparar essas costeletas.  Homem  era  Froriano.  Dizem,  nunca  vi.  Quantos  anos  tem  não  sei.  Todo  Peixoto  é  macho.  Isso  os  antigos  sabem.  É  Leite,  é  Sobral, é Prata, é importante, tem isso também. Vieira é que é um  nome ruim.  Mas já  se viu  que quentura tirana  do  estupor balaio,  vosmecê não sente? Bom é de manhã na serra, quando a cerração  ainda  não  se  levantou  e  no  que  se  fala  sai  aquela  fumacinha  da  boca.  ô  mestre,  ou  então,  hem  Amaro,  ou  então  ver  a  cana  florindo  em  Riachuelo,  dando  umas  parenças  com  o  mar  lá  em  Aracaju.  É  aquela  atalaia  de  cana  que  só  vendo,  tudo  tudo  envergada  pela  viração.  Isso  de  cima  dum  morrinho,  porque  de  baixo,  pela  estrada  ou  pelo  caminho,  parece  umas  vassouras  desinvertidas, umas  vassourinhas,  e  fica  aquilo  louro,  louro.  De  manhã é o melhor, o mato ainda está quieto, sem as bichadas e as  caças rebuliçando. Tenho uma  irmã que ficou no barricão,  e hoje  vive  na  janela  com  as  outras  vitalinas  lá  em  Vila  Nova,  que  gostava de ver  cana na  floração. Foi  ela que me  ensinou, porque  antes  eu não  via, passava  desprecatado. Assim  agora  eu  gosto  e  quando  é tempo  e  eu tenho  tempo,  espio muitíssimo.  Bom  café,  cigarro e muito  sossego, já  sem vontade  de  quedar na  rede,  mas  gostando muito  das  coisas. Dá para pensar  na vida  como  se não  tivesse nada para dar apuquentação. Mas é só, porque com pouco  o sol esquenta e com a quentura o mato fica todo vivo de bichos e  coca  e  desconforta  a  vida.  Peste,  não  existe  lugar  para  morar.  
Usina  de  açúcar é bom,  ninguém tira um  cabra de lá. Não  gosto  disso,  não  sabe  vosmecê.  Ninguém  entra  numa  usina  para  tirar  um  cabra. Não  gosto  disso,  é contra a lei. Devia  ser contra a lei.  Por que o homem tem o direito de passar a vida corrido, atocaiado  numa  usina?  É previlege.  Mas  agora pensando  na  vida,  me  vem  na idéia o pão de Inhambupe. O pão de Inhambupe é especial. Já  comeu? Amaro já.  Não já?  Hum. Chu. Que pão. Inhambupe é na  Bahia, mas não é na Bahia. Quando chegar numa cidade, também  engraxo  as  botas.  Quando  cheguei  em  Aracaju,  antes  de  botar  farda,   fui   engraxate.  Era  meninote,   sem  preocupação   muita.  Brigando só para malinar, briguinha besta. De baleadeira também  se mata,  bem  pensando.  Dizem,  nunca  vi.  Só  fogopagou. Possa  ser que eu precise ir no médico, estou sentindo umas pontadas na  caixa.  Não  sei  como  é  que  tem  um  sujeito  que  passa  a  vida  apalpando as partes dos outros. Profissão é profissão. Não  gosto  de  médico.  Nunca  atirei  num  médico.  Ou  já   atirei?  Não  me  lembro. Sinimbu dizem que era médico em Pernambuco. Agora é  finado,  pronto,  não  é  médico  nem  em  Pernambuco  nem  em  Petrolina. Nem  no  Maranhão,  nem  lugar  nenhum,  nem  no fiofó   de juda.  Bicho  seboso. Deram um banho  de capuco de milho no  cadave,  esfregando  bastante,  se  bem  que  nunca  avermelhasse,  porque  cadave não  avermelha, só fica lá parado  ali, endurecendo.  Ninguém  não  repara  defunto  sujo,  veste  a  roupa  de  votar,  enfia  dentro,  acabou.  Coveiro,  profissão  miserável.  Todo  paraibano  é  coveiro.  Paraíba  é  Brasil.  Arrenego  dessa  peste  dessa  poeira,  capaz de  deixar  a gente  endefluxado. Uma  desgraça,  assoando  o  nariz só sai barro, como se fosse. O caso é tomar um conhaque de  alcatrão.  Veja  vosmecê,  trazer  vosmecê  de  Paulo  Afonso,  puro  Estado da Bahia, até aqui esses confins, uma viagem pequena até  agora, se não fosse essa bendita bosta dessa estrada de carroça, já  estou  todo  sujo  e  escorrendo  lodo  pelas  drobas  do  pescoço.  Imagine  o  finado  Cavalcanti,  que  trouxeram  de  Paulo  Afonso  numa  assistência  que  era  mais  marinete  do  que  assistência,  com  vinte  e  seis  rebites  no  corpo,  em  diversas  posiçãos,  e  o  bicho  
ainda  chegou  vivo  em  Aracaju,  golfando  sangue  e  tiveram  que  tirar  sangue  de  uma  porção  de  gente  e  botar  nele.  Vinte  e  seis  buracos na  carcaça e o bicho rebatendo  a morte  com toda  a raça,  feito  galo  de  briga.  Vosmecê  não  acredito  que  tenha  visto  um  homem  resistindo  da  morte,  porque  o  que  me  dizem  é  que  vosmecê manda, não  faz. Está  direito, na  sua posição.  Mas  veja,  quando   o   homem   resiste   da   morte   não   tem   visagem   mais  assombrada.  Quando  o  adjutório  chega  na  hora  e  alcança  o  homem  em  vida,  se  vê-se  o  peito  subir  e  descer  e  as  bufas  da  agonia e aquela ânsia e aquela briga  e a cabeça se revirando  e as  mãos  se  encrespando.  Quem  nunca  viu  não  sabe  o  que  é.  Tem  quem  diga  que  a morte  é  calma. Tem quem  diga  que  dá  até paz,  como num descanso. Só se fôr depois, porque na hora o sofrente  arregala as vistas e se segura no que achar, como quem se segura  na vida. E se revira e range os dentes e levanta a cabeça e puxa o  ar  e  busca  conversa  e  espia  os  lados  e  fica  retado  porque  todo  mundo  não  está  indo  com  ele  e  arroxeia  os  beiços  e  faz  que  se  senta  e  se  esfrega  em tudo  e  se baba  e  se bate  dos  lados  e  olha  duro para as pessoas  e dá gofadas e fica com pena dele mesmo e  estica as pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e  faz barulhos e se bufa e se borra e grita e pensa naquilo que nunca  fez  e pede  a Deus  nas  alturas  e  chuta  o vento  e  estica  a roupa  e  incha  o peito  e no  fim  faz uma  força  e revira  os  olhos  de modo  medonho  e  dá  um  arranque  para  cima  e  vai  embora  no  seu  caminho, que o dia de nós todos vem. A hora de cada um é a hora  de cada um.  Mas ninguém  gosta de ir, isso  é conversa de padre.  Qualquer perigo na terra, alguém já  viu e pode contar como é. Lá  quem  viu  não  pode  contar,  é  um  despreparo.  Quem  quer  ser  passado nas  armas? Vosmecê quer ver que já  viu um derrame de  cavalaria,  quando  o  sabre  é  permitido,  para  bater  com  a  lâmina  nos  quartos  da  raça.  Num  cavalo  árdico,  passarinheiro,  com  as  patas  no  vento.  Rinchando  bruto.  E  lá  vai  pata,  que  ninguém  é  meu    irmão   preu     alisar.   Em   Buquim,   fizemos   uma   tocaia  amuntados  uma  vez.  Pega-se  por  primeira  o  derradeiro,  como  caça.  O  primeiro  fica  para  a  segunda  descarga.  Eu,  como  não  gosto  de  arma  despalhafatosa,  levei  o  meu  chimi-te, mas  Tônico  levou a metralhadora anã e passou  e não  foi bom,  que os miolos  se  desminliguiram-se  e  saiu  pedaço  de  queixada  e  foi  lasca  de  homem por  tudo  que  era lado, igual a quando mataram um  certo  alguém  aí  em  Itabaiana  Grande.  As  ordens  que  vieram  era:  não  encosta no  corpo.  Mas  mal  corpo  havia,  aquilo  é uma  espirrada  que  desparrama  sangue por  todo  canta  e não  deixa nada  inteiro.  Tônico  gostava,  era  mais  pistoleiro  do  que  político.  Eu  sou  político, não mato à-toa. Tônico atira dando risada, é feio, porisso  tem  umas  cens juras  de  morte  em  cima  dele.  Chamado  mão  de  onça  porque  não  treme  a  mão  na  gaguinha,  só  franze  a  testa  e  morde o beiço e segura de com força. Aponta assim para a frente  e guenta firme com toda a sacudida, mesmo a bicha puxando para  a  canhota  como  de  costumeiro,  papocando  uma  bomba  de  um  cruzado  atrás  da  outra.  Em  Salgado, nessa  feita,  a perícia  foi  da  capital, parecia uma procissão,  e todo  mundo  falando meio nuns  cochichos   e   encapotado,   estava   fazendo  uma   friagem  muito  grande e estava cheio de gente na rua, naquelas horas mesmo. Eu  ainda  estava  lá,  metido  na  japona  preta  e  quando  os  homens  chegaram pulei na frente: pronto, meu chefe. O médico me disse:  sargento,  arranje  um  homem  para  catar  o  cadave.  ele  nem  sabia  que  era  dois  cadaves,  não  era  um  cadave  só.  An-bem,  não  se  conhecia  direito,  tudo  embolado  naquela  porqueira  toda,  uma  sopa.  Mandei  dois  homens  ajuntar  tudo,  mas  não  ficou  um  serviço perfeito, tinha dado formiga nuns pedaços e os miudinhos  elas  carregaram  e  o  resto  era  assim  das  bichas.  O  doutor  disse:  sargento, como não tomou conta dos corpos e deixou as formigas  levar os pedaços  e está assim essa vergonheira que depõe contra;  e  porque  tal  porque  vira,  não  está  direito,  aviu;  e  porque  assim  depõe  contra,  aviu;  e  eu  respostei,  de  perfil:  mas,  excelença,  ou  bem  olhava as formigas ou bem  dava uns  tiros nuns tatus, tatu é  doido por  cadave. E tinha um par  de pebas  solto por  ali, naquela  carreirinha  de  tatu.  Pior  era  se  os  tatus  comesse.  Tinha  acertado  mesmo um tatu, que estava lá estirado, muito mais inteiro do que  os dois cabras, que o tatu foi eu que acertou, não foi Tônico Mão  de  Onça. Esse  tinha  fincado o pé  na piçarra  faz tempo.  O  Chefe  veio, o enterro foi concorrido, comemos o tatu de ensopado. Seu  Getúlio,  o  senhor  não  vai  me  deixar  ninguém  mais  vivo  em  Sergipe, assim não  podemos.  Udenista  safado,  eu  disse,  e  cuspi  no chão a mascada que estava na boca. O Chefe deu uma gaitada  daquelas surdas, espiando o chão, com a biqueira  cavo-queando.  Dei  a  ele um  passo  preto  que  eu mesmo  ceguei, nessa  data,  que  até hoje  ele tinha,  se não  desse para  um  amigo  que visita  ele  de  vez  em quando,  e que  eu não  gosto.  Tem a  cara de  sariguê. É  o  tipo  da testemunha, não vale nada.  Moléstia  de estrada, e eu que  pensei  que já  tinha  passado  o  tempo  que  eu  levava  caminhão  e  mais  caminhão  de  eleitor  por   essas  bandas  para  votar,  veja  vosmecê. Uma vez quiseram me tomar um caminhão de eleitor na  bala e foi um tiroteio besta. Perdemos dois votos no baba, porém  eles  perderam  mais,  em  gente  já  paga  e  contada.  Povo  brabo.  Sergipe é um sertão só, mesmo que não seja.       Vosmecê  me  desculpe,  mas  desafaste  dessa  porta.  De  fato,  essa é a metralhada, de maneiras que não abre de jeito  e qualidade.  Mas   via   das   dúvidas   não   encoste,   que   vosmecê   eu   tenho  responsabilidade.  Vosmecê  me  desculpe  eu  ficar  prosando  o  tempo  todo.  É  para  não  dormir.  Não  sei  nem  o  que  eu  estou  falando,  ou  o  que  eu  estou  pensando.  Quando  estou  pensando,  estou  falando,  quando  estou  falando,  estou  pensando,  não  sei  direito. Vosmecê não precisa responder,  apesar de que  é falta de  educação.  É  como  assim:  se  eu  dormir,  vosmecê  faz  por  tirar  a  minha  arma,  me  acertar,  dar  um  tiro  no  toutiço  de  Amaro  e  se  enfiar  pelos  matos  até  achar  guarida.  Enquanto  isso,  eu  aqui  prosando,  como  se  vosmecê  fosse  meu  compadre  e  a  gente  tivesse na beira do batistério. An-bem, não posso  dizer que fosse  do   seu   gosto   conversar   comigo,   pois       se   vosmecê,     se   eu  cochilasse, me sacava a garruchinha de fé e me socava um balaço  nas fontes. Agora, eu também, se acordasse antes, com o puxavão  da  arma,  com  a  mesma  arma  lhe  brocava  o  crane  e  não  me  incomodo se vosmecê me diz que tem ginásio. Se alembre: se em  vez  de  lhe  buscar  em  Paulo  Afonso  com  todos  cuidados  e  lhe  trazer  nessa  viagem  tirana  da  peste,  peste,  peste,  peste!  merda,  Amaro,  segure  esse  porra  desse  hudso  que  este  pai  dégua  se  desmantela-se! se em vez de lhe trazer eu lhe passasse o aço e lhe  carregasse  a  cabeça  dentro  dum  bocapio  o  que  ia  ter  era  muita  sastifação  em  todo  Estado  de  Sergipe,  seu  bosta,  digo  mesmo,  bosta,  bosta,  seu  cabeça  de  bosta,  coração  de  tolôco,  filho  dum  cabrunco!  olhe  o  desgramado,  espie  aí,  Amaro!  fugir  pra  Paulo  Afonso, ora fugir pra Paulo Afonso, fugir pra Paula Afonso feito  uma   vaca,   bexiguento!   fugir   pra   Paulo   Afonso,   pra   Paulo  Afonso,  ia  nos  infernos,  viu,  cão  da  pustema apustemado,  lhe  faço uma desgraça, pirobo senvergonho, pirobão sacano, xibungo  bexiguento  chuparino  do  cão  da  gota  do  estupor balaio,  mija  na  vareta,  tem  ginásio,  tem  ginásio!  nunca  vi  ginásio  fazer  caráter,  não responda porque  é melhor, lhe meto a cabeça num bocapio  e  deixo o resto com os guarás, cachorro bexiguento, está pensando  o  quê, agora responda,  capão do rabo  entortado, peste!  capão da  peste,  tiro  um   cunhão  seu  fora  nesse  minuto,  para   lhe  ver  amotinado e roncolho em Ribeirópolis daqui a pouco, nego fujão,  fidumaégua, fidumavaca, fidumajega, viado corredor, peste, peste,  peste, peste! lhe como a alma, está pensando! lhe tiro o figo, está  pensando,  ora  fugir  para  Paulo  Afonso,  amisiado  com  mulher  dama, adeus mestre, ora taí, Amaro, homem creia! Não  se enxira,  Amaro, quando a cabeça esquenta o melhor é deixar refrescar. Tu  tem curso de ginásio, Amaro? Que eu sei, você andava lavando a  escada do Ateneu. Se lavar escada do Ateneu dá ciência, você vai  bem.  Pergunte  a  esse  comunista  daqui,  esse  maricão  estrumado,  esse  capadócio  desse  udenista,  esse  peste  ruim!  pergunte,  mas  não vá pensando que ele responde, que ele não responde.  Só fala  com  doutor,  mas   está  aí  de  beiço  tremendo   como  rabo   de  largatixa, com medo  que  eu  dê um  fim nele  agora. Dou  mesmo,  peste! Ah-bom.  Chô! Uh!  Cabra ruim,  se encolha, se encuruguje  aí mesmo, que seu lugar é aí. Desencoste da porta, cara de cacêta!  Sai!  Dou  umas  porradas  nesse  peste,  Amaro?  Garanto  que,  na  hora  de  apertar  o  gatilho  para  matar  uma  família  toda,  nem  pensou. Valente que fazia gosto, todo desfricotado, todo muito de  macho,  todi-nho  um  cabra  de  Lampião,  ah  cafetino  desterrado,  pistoleiro  de"  meia  pataca.  Agora  me  diga.  Se  mijar  nas  calças,  corto  o  ver-galho  fora  e  pico  cimento  em  cima,  estou  avisando.  Sua sorte é que vão querer julgamento,  tem jornalista  a seu favor,  está um sistema. Por mim era trancha, cabeça no bocapio, entrega  em-brulhadinha, com papelotes. Agora, pegando menos de trinta,  vai  você,  promotor,  juiz,  adevogado,  não  tem  esse.  E  pegando  mais de trinta, quando sair morre também. Sua vida faz uma volta,  entra  e  sai  no  mesmo  fim.  Amaro,  a  gente  dorme  em  qualquer  lugar que tenha uma casa perto. Me ajude a atar esse peste num pé  de pau. Suas necessidades faça amarrado mesmo.       II       Eu moro no mundo. Moro  andando. Ai,  aaaaaaaaai, aai, aai,  ai,  ai,  aaaaaaaaai, aaaai,  ai, um  boi  de barro,  ai um  boi  de barro,  um boi de barro, ai um boi de barro, ai de eu, um boi de barro, ai  um  boi  de  barro.  Moro  andando,  assim.  Um  aboio,  disse-me.  Disse-me  disse-me. Ai, um boi  de barro. Viu  aqueles boizinhos,  todas as cores, principalmente de barro mesmo? Me encontro-me  sujo de barro  assim e como do barro  como de comer, por  causo  do gosto pardo. De menino, na feira, lhe conto. Quando chegava,  ainda  não  era  bem  dia  claro.  Duas,  três  janelas,  quatro janelas  possa  ser,  já   se  pendurava  carne  seca  em  mantas  grandes  e  esturricadas,   pretas     ou   alvas   na   gordura.   Lembranças        de  comilanças, e o cheiro. Às  vezes, um  enterro cedo. Precisava  ser  cedo,  porque  logo  se  trabalhava.  Defunto  não  come,  talvez  seja  melhor. Mas não  era menos  enterro por  ser de madrugada,  antes  
era  mais,  porque  em  outras  horas  tem  sempre  gente  na  rua  que  não  está  prestando  atenção  ao  enterro.  E  de  madrugada  não,  porque,  quando tem um  enterro de madrugada,  só tem mesmo  o  enterro, com aquele caixão deslizando e o povo atrás e se ouvindo  as pisadas no chão e as pernas das calças se esfregando umas nas  outras. Também moringas nas janelas,  suando. Gostava de passar  a   mão   pela   barriga   das   moringas,   bater        em    arupembas  penduradas,   olhar   as  pedras.   Umas   partiam.   Quando  podia,  abaixava na sombra e ficava fazendo pó das que partiam. Era bom  pó, podia se misturar. Às vezes se fazia desafios, quem tinha mais  pó,  quem  tinha  mais  qualidades,  quem  tinha  mais  fino.  O  dia  inteiro  assim,  menino  é besta.  Meu  pó  é mais,  seu pó  é menos,  tenho   azul,   não   tenho   azul.   Tinha   pedras     furtas-côres.   Se  guardava  os  pós  numas  caixas. Mas  sempre  se perdia,  ninguém  guarda  pó  muito  tempo,  nem  menino,  ainda  mais  que  não  tinha  serventia  que  não  a  côr  e  existia  pouco  tempo  para  as  coisas.  Pouco  tempo  às  vezes,  muito  tempo  às  vezes.  Às  vezes  mesmo  muito tempo, como quando fazia que chovia mas não  chovia por  cima das lonas da feira. Ficava uma  escuridão e os bois  de barro  paravam  nas  pilhas.  Porque  quem  olhava  no  sol  os  bois  se  mexiam naquelas  fileiras compridas até longe, tão compridas que  se juntava.  E os montes, equilibrados um pela riba, um pela riba,  um  pela  riba,  assim.  De  maneiras  que  no  sol  tudo  rebuliçava  e  tremia como coriscos e era um movimento, que a gente sabia que  não   tinha,  mas   que  tinha,   e  os  meninos   ficavam  espiando,  pensando nas boiadas e querendo laçar o boi. Na  chuva, nada, só  poças.  Mas no  antes da chuva, parava. Parava tudo mais. Ficava  ali  sentado no  torête  de mourão,  assuntando. Mas  parava,  a não  ser os pensamentos. A  fala parava.  Se as vistas ia duma ponta da  rua para a outra, só podia ir devagar porque até a cabeça era como  dentro dágua, um ar grosso, aquilo mole e quieto. Os bois, nada,  tudo  pasmado.  Digo:  o  tempo  apeava  e  tinha  tempo  para  tudo  porque  a  vida  não  andava.  Mas  também  não  tinha  tempo  para  nada,  porque  nada  se  podia  fazer,  nessas  horas.  E  a  cidade  de  
qualquer  forma  parece  que  vai  morrer,  como  os  cachorros  de  pedra  empinados nos pilastres das casas grandes, com as grades.  Nunca  vi  tanta  grade  como  em  Laranjeira,  posso  dizer.  Quer  dizer,  vi,  mas  em  Laranjeira  as  grades  são  mais.  Não  sei  dizer.  São  mais  e  tem  uma  chatura  pelo  chão,  que  se  vai  marchando  assim  pela  rua,  um  pé  atrás  do  outro,  a  idéia  no  chão,  firme,  escolhendo  as  pisadas  e,  depois  de  muito  tempo,  se  levanta  as  vistas:   está   lá,   a   mesma   gradilhona,   tantas   grades,   maioria  marrom,  de pontas,  outras  de bolas,  só  as  grades  e umas  moças  velhas   com   os   cotovelos   aparafusados  nas  janelas,   olhando  mortas,  todas  murchas,  nem  falam. Vez  em  quando,  uma  vira  a  cabeça para o lado e fica o tempo todo, com aquela cabeça virada,  com  preguiça  de  desvirar  e  fica  lá,  como  uma  planta.  Elas  nem  tem mais o que falar. Se ouve nada, nada, se espia as grades. Em  Laranjeira, o mundo é gradeado. É uma vida gradeada e reta e, de  repente, quando menos se pensa, acaba a rua e fica nada, ou então  começa a mesma coisa, como numa roda, as mesmas grades e uns  paredãos  de  casa  comidos.  E  as  raparigas,  eu  nem  entendia,  acordando com os cabelos esgrenhados e botando as cabeças fora  das  casas,  com  os  bugalhos  vermelhos.  Vida  de  rapariga,  hoje  entendo. As  putas, putas, putenças,  que da minha padecença  são  vacas  do  meu  Brasil.  Cada  dia  vai  morrendo  um  pouco  mais  a  Laranjeira. Um dia morre toda e fica como um caju seco, no meio  das  grades  e  quem  passar  diz:  olhe  ali  um  caju  seco,  e  vai  passando. No  sertão não tem grade, também não tem muita coisa  mais. Tem mais terra, qualquer um pode ver. Acho  que tem mais  bode. Às vezes estou assim aquietado, só com o juízo ruminando,  e  me  lembro  como  se  fosse  agora  de  uma  coisa  que  aconteceu  antes. Estou falando assim, ou fazendo qualquer coisa, pegando o  fumo com a mão esquerda, metendo a mão no bolso, perguntando  que   horas   são,   espiando   a   cara   dum   vivente,   estou   assim  bendomeu,  quando  penso  que  aquilo já  aconteceu.  Quer  dizer,  não  aquilo  mesmo,  mas  uma  coisa  como  aquilo,  quase"  aquilo  mesmo e eu como que já  sei o que vem depois, mas logo esqueço  
e volto. É somente numa horinha, mas vem como uma gastura na  barriga.  Eu já  fiz  isso  igualzinho,  eu já  fiz  isso  a  mesma  coisa.  Bem  aqui. Assunto  isso  porque  não  sei por  que,  arrumado  aqui  me  vem  essa  coisa na  cabeça, essa  coisa  de Laranjeira.  Se fosse  só  o  sertão,  entendia  mais.  Perdido  nesses  agrestes,  dá  mesmo  para ficar como em casa. Mas Laranjeira não, aquelas grades. Não  sei por que. Só se é que vai chover e o peso do tempo me dá essa  idéia.  Se chover, não  tiro  o  cabra  dali, não  gosto  dele. Pode  dar  defluxo, pode  dar  o  que  quiser  dar, não  acho  que viva  muito  de  qualquer  jeito.    É   um   cabra   ruim.   Primeiro:   deu   veneno   a  Ocridolino, no hospital, matando na hora, quando ele já  estava na  beira  de  sair.  Segundo: mandou  atirar  em  Anfrísio,  na  porta  de  casa,  quando  ele  estava  sentado  numa  cadeira  de  vime  e  de  pijama. Terceiro: secou Ribeirópolis, afrontou os Paraíbas. Botou  sal no chão, jogou  tudo no mato, deu fim na bezerrada. Inda hoje  não    esqueci,   quando       cheguei,   com      a  sereia   da   viatura  desembestada.  Encostava  o joelho  no  botão  e  soltava  como  que  um  miado  grosso  e  comprido,  e  aí  a  gente  ia  levantando  poeira  com  aquele miado  na  frente.  Estava  um  banquete  do  pecidê,  era  mortes   previstas,   todos        en subacados,      en siralhados,   um  armamento. Encostemos pelos becos,  eu e Tárcio na  sombra, era  até bom, porque  encanava o vento e ficava fresco bem  ali onde a  gente   fomos     ficando.   O   resto     formando     o   expositivo    de  segurança, nas  beiras  da varanda  da  casa  onde tinha  o banquete,  uma  força  de  homem  perverso   como  nunca  que  havia   sido  ajuntada,  daquela vez  só  ficava vento  depois  do  combate, posso  garantir, e um vento fedorento, digo mais. Eu desci um pouco do  carro,  estava  um  cheiro  de  macho  ruim,  as  paredes  parecia  que  estava tudo vivas de olhos. Tárcio disse, levantando o quepe: vai  que não volta, ou então volta furado, disse ele com aquela cara de  que  estava falando de  futebol ou  então dizendo que ia fazer uma  merendinha,  assim  como  quem  não  quer  nada.  Se  eu  sentisse  saudade  de  homem,  sentia  saudade  dele.  Me  apertou  a  mão,  quando morreu, mas não era nesse dia em Ribeirópolis, foi depois  
em Riachão do Dantas, morreu de fato à mostra. Mas eu desci até  fazendo  pose,  tinha  bandeirolas  e  gambiarras,  umas  bandeirolas  esculhambadas,  tipo   Ribeirópolis   mesmo,   tudo   de   papel   de  embrulho  côr-de-tijolo  velho  e  umas  amarelas.  No  meio  da  rua  estava  calor porque  não  tinha um  pé  de  árvore para  remédio  e  o  sol doía nas vistas, porque rebatia na poeira branca do chão. Pois  desci  fazendo  pose,  enfiando  o  catapiolho  na  aba  do  quepe,  as  reiúnas  vuquevuque,  com  aquele  silêncio  só  se  ouvia  mesmo  o  rangido  pela  riba  daquela  poeira  fina.  Fui  tomar  uma  coisa  em  frente, logo me  arrependendo-me, porque  a bendita  da poeira me  enchia  até  as  verilhas,  podia  sentir,  e  as  botas  se  melando,  e  eu  que  vinha  todo  lorde.  Estava  uma  pasmaceira  das  completas,  parece  que  aquele  povinho  ordinário  tinha  ficado  com  medo  da  decisão, parece  até  que não  estava  acostumado  com política.  Me  deu uma vontade de falar alto, sozinho mesmo, e esse prefeito da  pustema não calça essa rua não,  siô, e que meleca de cidade mais  esbodegada  essa,  siô,  olha  que  desgrama,  siô,  e  umas  coisas  nessa   veia.  Mas   em  missão  não   se  pode   fazer  arruaça,  de  maneiras  que  fui levantando um pé  e outro do melhor jeito,  para  sujar menas as botas, um pé e outro, um pé e outro, com a cara de  Tárcio na idéia, dando que estava dormindo na viatura, mas mais  acordado  do  que  um   calangro,  aquilo  não  prestava  mesmo,  fechava  os  olhos  com  a  munheca  no  instrumento,  que  não  era  besta,  quem  quiser  que  se  ousasse. Uma  poeira  branca  como  eu  nunca  vi,  e  fina,  dava umas  parenças  com  talco  roial  briar,  bem  fina.  Fui  chegando  e  subi  num  passeio  de  uns  três  palmos  de  altura  que  tinha  lá  e bati  as  botas  na  calçada para  tirar  a poeira,  hum,  peste  que  não  sai.  O  do  balcão  me  espiou  do  jeito  que  tivesse medo que eu desse um tiro nele, mas  eu nem  falei nada  e  só fechei a mão e espichei o mindinho e o furabolo e disse: uma.  Botou duas em uma, tinha cara de rato. Aí fiquei ali, assuntando o  jogo  de  sinuca, pensando  assim que bastava  começar os  festejos  lá  do  outro  lado  da  rua  que  podia  não  sobrar  nenhum  ali,  mas  também,  quando  abriram  as  casas  dos  Paraíbas  e  fizeram  a  miséria toda, ninguém  se mexeu. Nenhuma  porta  nem janela,  até  as  necessidades  era  na   frente  de  todos.  Pois   fiquei  ali,  até  assobiei, sabendo que estavam com mais medo de mim do que do  inferno  e  fui  ficando um  tempão, horas  olhando  as unhas,  horas  cocando os quibas, horas sacudindo a porta de trás para a frente e  da frente para trás, só por presença. Quando eu resolvia, encarava  um, mas ele logo me desencarava. De formas que passei um lenço  no  balcão  e  encostei meu  cotovelo  e  fiquei  ali mais.  O  banquete  devia estar lá, no ótimo do ótimo, e resolvi voltar pela desgraça da  rua  outra  vez.  Acredito  que,  se  eu  tivesse  mandado,  todos  me  carregavam,  para  eu  não  pisar  no  chão,  bastando  eu  dizer  não  gostei desse  chão aqui e se eu pisar nele vou me  aborrecer. Mas  não falei nada e voltei, para deitar na sombra de dentro da viatura  e ouvir as conversas de Tárcio. Tárcio tirava verso quando queria,  ou  então  decorava.  Eu  mesmo  decoro  pouco,  que  não  sou  de  muito  aprendizado,  mas  se  eu  fosse  eu  decorava  mais,  porque  aprecio,  todo  mundo  aprecia,  e  quando  não  se  trata  de  negócio,  mas se trata de amizade, quando é de tarde ou de madrugada e se  pode  conversar  sem  pensar  no  que  vem,  um  verso  que  se  tira,  uma  calma  que  se  dá  e  uns  jogos  de  cabeça,  sentindo  a  hora,  sentindo aquela hora mesmo       Prezado amigo Getúlio        Permita eu lhe contar        Um caso que se passou        Na vila de Própria        Teve tanta mortandade        Que até o cão teve lá.       As mulheres virou homem        E os homens virou mulher        E até os bichos do mato        Quando viram deu no pé        Pra o compadre acreditar  

      Vai ser preciso ter fé.       O rio se abriu no meio       E o mato se escancarou       Igual como São Noé       Quando o mundo se acabou       E tudo isso por causo       De um homem que lá chegou.       Esse homem era por nome        De um tal de Honorato       Nascido de mãe pagona        E de pai cabra safado        Criado em leite de onça        E muito mal educado.       Quando dormia era ruim        E acordado pior        Matava quatro por dia        E ainda dizia — é só        E um dia só pra interar        Deu um fim até na avó.      No dia que ele chegou       Naquele grande arraial        Ficou tudo sem governo       Nem força policial        O prefeito se borrou        E o tenente passou mal.       Ele sabia todas e ficava recitando devagar, sacudindo o dedo  de cima para baixo,  fazendo compasso.  Se não  fosse homem,  eu  sentia  saudade.  Às  vezes  dava  risada  e  batia  com  as  mãos  nas  
pernas,  arribando o corpo na  cadeira. Mas não  era muito que ria,  porque quase sempre estava com a testa franzida e olhando longe,  com  aquele  olho  só.  Podia  ter  morrido  em  Ribeirópolisr  só  que  nada aconteceu naquele dia, visto a frouxidão udenista não deixar  começar os festejos. Mas, na hora de fazer o malfeito, fizeram, e o  que  não  tem  remédio  remediado  está.  Não  existe  quem  bote  a  honra  no  lugar  da  saída.  Saiu,  saiu, pronto.  De  formas  que  não  posso  tolerar  esse  daqui.  Vale  nada.  Vendo  a  cara,  não  se  diz.  Nunca  se  diz,  vendo  a  cara,  estou  cansado  de  saber  isso.  De  menino, sei que é assim, porque os enganos são muitos. Agora, aí  amarrado num pé  de imbu. Não  solto nem  que  chova,  e gostava  que chovesse, ir lá espiar, dizer umas  coisas,, dar uns  benefícios  no  peste.  Tomando  uma  chuvinha,  está  se  vendo  que  é  um  homem  distinto,  com  seu  cabelo  napoleão,  um  homem  muito  asseado     com    suas    costeletas   trevessadas      e   tomando   um  banhozinho  essas horas.  Estamos tomando uma  chuvinha, hum?  Apois.   Eu  podia   dizer:  não   adianta  seus  corligionários,  não  adianta nada,  quede  os  corligionários.  Chame um  aí para  se ver,  caminhe.  Hum.  Política  é  negócio  de  homem,  podia  dizer,  se  amunhecasse  como  tenho  para  mim  que  amunhecasse.  Posso  dizer  que,  se  amofinasse  e  arreliasse  como  mulher  parida,  se  estrebuchasse, podia  fazer  o  que  fizesse,  eu  até  gostava.  Me  dá  uma  raiva  por  dentro,  acho  que  careço  ter  raiva.  Demais,  não  incomoda mais um ou mais outro, mais um ou mais outro eu vejo  pelai toda hora. A coisa que mais tem é morte, e o mais certo que  tem.  Desque  nasce  começa  a morrer.  Tárcio  dizia:  eu  só  faço  os  buracos, quem mata é Deus. Mesma coisa, até ele mesmo, Tárcio,  chegando com as duas mãos enroladas na maçaneta da sela, cheio  de buracos, nunca esqueço. Se morreu ele, morre qualquer. Então.  A  morte  se  apressa-se. É um  alívio. Este  válio  de  lágrimas,  esta  merda.  Defunto  é  que  nem  praga  de  abobra,  nesta  terra.  É  um  chão.  Ih.  É  um  chão.  Chô,  nem  digo.  Eu  mesmo  estou  aí  como  uma  vara  em  pé,  posso  qualquer  hora  desemborcar.  Cheguei,  
como vai todo mundo, muito boa tarde, já  vou indo, licença aqui.  Quem  se  incomoda.  Tudo  só.  Eu  mesmo  já  pensei  de  outras  maneiras.  Ela  estava  de barriga  na  ocasião.  Eu  alisava  a barriga,  quando tinha tempo, quando vinha um sossego, quando quentava,  quando deitava, quando estava neblina, quando aquietava. Parecia  um cachorro, ficava ali, os olhos gazos miúdos me assuntando. O  barrigão me trazia sastifação, já  se adivinhava bem ali e o embigo  bem  que já  saía um pouco para  fora e se podia  sentir passando  a  mão.  Pois   ficava  alisando  de  um   lado  para   o  outro,  numa  banzeira, pensando no bicho lá dentro. Quando matei, nem pensei  mais  em matar.  Matei  sem raiva.  Pensei  que não,  antes  da hora,  pensei  que  ia  com  muita  raiva,  mas  não  fui.  Cheguei,  olhei,  ela  deitada  assim  e  ainda perguntou:  que  é  que  tem?  Ela  sabia, não  sabia só disso, tinha certeza que não adiantava fugir, porque eu ia  atrás. A  dor de corno, uma dor funda na caixa, uma coisa tirando  a força de dentro. Nem  sei. Uma mulher não é como um homem.  O homem vai lá e se despeja. A  mulher recebe o caldo de outro.  Que  fica  lá  dentro,  se  mistura  com  ela.  Então  não  é  a  mesma  mulher.  E também tem  que  se  abrir. E  quando  se  abre  assim,  se  escanchela  e  mostra  tudo,  qual  é  o  segredo  que  tem?  A  mulher  que viu dois é diferente da mulher que só um viu, porque tem de  abrir as pernas, mostrar até lá dentro. Não é a mesma mulher. Isso  pensei em dizer a ela, cheguei a abrir a boca. No natural, não falo  com quem atiro, é um despropósito. Já se viu, por exemplo, matar  um  porco  e  dizer  a  ele  que  ele  vai  morrer  porisso  e  por  aquilo  outro. Nada, é a faca. Quem se mata não se conversa. Mas ela eu  quis dizer, porque, na hora que primeiro bati os pés nos tijolos da  sala aberta, vinha  com dor.  Chegando,, passou  a dor, não  acertei  com a fala. Uns  olhos gazos tão parados  e o cabelo escorrido de  banda  e  a  cabeça também  de  lado, me  olhando.  Que  é  que  tem?  Ela sabia. Quando viu meu braço atrás das costas, tirou as vistas.  Quis falar de novo.  Eu podia  dizer, mas tive medo  de conversar.  Se quer fazer uma coisa, não converse. Se não quer, converse. Eu  tinha de fazer. Não gostava de pensar que ia atravessar a rua com  
o povo me olhando: lá vai o dos galhos. Isso eu podia dizer a ela.  Mas não disse nada e, na hora que enfiei o ferro, fechei os olhos.  Nem  gemeu.  Caiu  lá,  com  a  mão  na  barriga.  Fui  embora  logo,  nunca  mais  botei  os  pés  lá,  moro  no  mundo.  Melhor  morar  andando,  agora.  Luzinete,  ela  me  diz:  me  emprenhe.  Não  deixo  mulher  enxertada nesse  mundo,  não  tenho  como. Matado  aquele  filho, morreu  o resto  que podia  vir.  Ora,  cipó do mato,  arrenego  de  diabo  de  penca  comigo,  arreia.  Fico  assim  no  mundo.  A  mulher do homem é ele mesmo, tirante as de quando em vez, uma  coisa  ou  outra,  somente  para  aliviar,  uma  descarga  havendo  precisão. Minha mulher sou eu e meu filho sou eu e eu sou eu. É  assim.  E  no  outro  dia podiam  me  ver  dançando uma jornada  de  chegança,  nós   que  semos  marinheiros  dentro  dessa  anau  de  guerra porisso  que puxemos  ferro  olelê  largamos  a  grande  vela.  Em  Riachuelo.  Pelo  mundo.  Diga  se  não  é  Sergipe  o  meio  do  mundo?  Se não é aqui as grandes belezas e os verdes matos, que  chão. Se aqui não temos tudo e preferimos ficar aqui? Diga se não  é. Posso ser o reis do Congo. Tocando porca. Fazendo o sete pelo  quatro. O diabo. Vezes que me sinto solto, almirante de mourama,  reis dos mouros, reis dos mouros. Lá vou eu. Possa ser o inferno.  Sinto  uma  ruma  de  coisas.  Estai  um  garajau  se  sacudindo  na  mula,  um  garajau   cheio  de boi.  Aquelas  grades,  não  volto.  Mas  um  garajau,  os  caçuás,  um  garajau  cheio  de  barro,  um  garajau  cheio de boi,  ai mãe,  a laranjeira murcha,  os pés  de  árvore, tudo  morto, sacudindo pela rodagem velha de Laranjeira, pelo meio das  casas  gradeadas,  um  garajau  cheio  de  barro,  um  caçuá  cheio  de  boi,  um  garajau  cheio  de  boi.  Tudo  parado,  só  vai  subindo  e  descendo  aquela  boiada  de  barro  no  movimento  dos  quartos  da  mula.  Os  olhinhos pintados,  que não  mexe.  Os  chifres,  que não  fura. As  pernas,  que não  anda. Mas,  quando bate  o  sol na  feira,  que rebrilha, aí se mexe, é uma boiada que estremece. Ai, ai, ai, ai,  aaaaaaaaaaai um boi  de barro, um boi  de barro,  aaaaaai, ai, ai, ai,  mãe,  um  boi  de barro  na  neblina,  um  boi  de barro  na  feira, nos  quartos da mula. Um burro  com duas  anco-retas nas  ancas, cada  
passo uma pendência da esquerda, uma pendência da direita, duas  ancoretas para  a  secura de nós,  e  a  laranjeira como  está murcha,  mãe, ai, aaaaaaai, ai um boi de barro, um boi de barro, um garajau  cheio de barro,  cheio de boi  de barro, na  feira. Lá em casa, duas  caveiras  de  boi,  muitas  caveiras  de  boi,  as  ossadas  alvas  e  meu  gibão de buracos, meu peitoral sem enfeite, sentado na beira de lá,  as vistas duras nas cascas de ôvo enfiadas nas pontas das árvores  e das varas.  Ai,  um boi  de barro,  um boi  de muito barro  que  eu  comia, todas  as cores, um  dia eu morro  e a laranjeira murcha,  ai,  mãe, um  boi  de barro.  Meto um  dedo no  ouvido bem  de  leve,  e  devagar-zinho  vou  sacudindo,  vou  sacudindo,  e  solto  um  aboio  alto pelos ares. Mas ninguém escuta, não tem boiada, o meu aboio  é  ôco.  Nunca  fui  vaqueiro.  Mas  mesmo  assim  solto  um  aboio  bem  alto  e  o  dedo  quase  arranca  a  orelha  e  olho  o  chão  e  fico  triste.       III 
   Porque  achei  que  estava  com  um  bicho  no  dedão  do  pé,  demandei sinal com a vista  e não  enxerguei nada, mas  fiquei um  tempo  só  pensando  em  nomes  de  lugares  atoa, pelaqui  pelessas  redondezas  mesmo,  Planta  de  Milho,  Pedra  Preta,  Miramar,  Cocomanha, uma ruma  deles, mor parte  quase que não havendo,  somente  com  suas  duas  ou  três  casas  de  sopapo,  outras  só  de  vara,  e  um  povo  desengordado,  andando  se  arrastando  e  com  a  cara no chão, e porque acabei me achando meio besta, só mirando  o  dedão  do  pé  daqui  de  longe,  enfiei  a  mão  no  meio  dele  e  do  barro  do  chão  e  fiquei  cocando manso,  beliscando  a  carne. Meu  pé  está todo  fumbambento, também quase que só vê bota há não  sei   quantos   dias,   nem   me        alembro,   e   essas      aveias   todas  aparecendo,  e  as  meias,  quando  saíram,  saíram  derretidas  nas  pontas como farofa dágua. Repare ou não, tenho de esticar os pés  para riba rumo ao oitão e deixar tudo tomando vento, abrindo bem  os  dedos  para  arejar  bastante  e  livrar  o  budum,  que  está  uma  
novidade.  Mas  não  tem  onde  encostar  as  costas  nessa  varanda  grande, de maneiras que é botar os pés de novo na terra e tornar a  espiar  eles,  agora  mais  de  perto,  com  muita  atenção.  E  estava  nisso  assim, quando  senti o bicho, uma  coceira funda que nunca  passa.  Dei  mais uma  beliscada  e  agarrei bem  no  onde  ele estava  enfincado.  Não  que  eu  tenha  disposição  de  tirar  bicho  de  pé  agora, porque preferia mais não  fazer nada, possa  ser enrolar um  cigarro bem sem pressa,  ajeitando e desenrolando outra vez, até a  forma  ficar toda  redonda  no  meio  e  chata nas  pontas,  e  seguir  a  fumaça,  que  é  muito  fácil  e  bom,  nesse  ar  parado,  ou  ficar  pasmando  aquele  boi  laranjo  que  lá  se  encontra-se,  detido  e  balançando  o  rabo,  está  um  ótimo  boi.  Mas  ninguém  sente  um  bicho de pé sem se ver na obrigação de tirar. ele fica ali como se a  gente  fosse  pasto,  cevando  na  gente.  Sempre  tem  alguma  coisa  para  obrigar um  cristão a sair dos  seus precatos. E tive de tirar o  papel  das  agulhas  de  debaixo  da  cartucheira  e  abrir  sem  deixar  desparramar  as  linhas  e  escolher  uma  agulha  olhando  contra  a  claridade  e  lamber  a  ponta  muitas  vezes,  para  tirar  a  reima.  Depois, cruzar a perna encostando o peador no joelho,  para pegar  boa posição,  segurar o dedão e retirar  o bicho  com a ponta.  Tem  que se romper a pele, mas não se pode romper o bicho, que senão  nasce  vários,  é  uma  tabuada.  A  desgraça  do  couro  do  dedão já  parece  casca  de  tangerina,  todo  fofo.  Esfrega  o  dedo  e  vai  soltando  as  lascas,  tudo  podre.  Uma  catinga notável,  vou  ter  de  esfregar limão e cinza nessas partes, é o jeito.       Esse  diabo dessa peste  dessa menina  fica me  assuntando de  lá. Ainda  ontem, pensei  que  estava ximando meu beiju  e dei um  beiju a ela, embora ali tivesse beiju de dar de pau, não sei por que  ela  ia  querer  logo  o  meu.  Quer  beiju?  Não  queria.  Acho  uma  menina grande demais para estar andando de califom pela casa. Já  está  cheia  de  corpo.  Amaro  viu  ontem  e  disse:  Deus  lhe  crie,  benza Nossa  Senhora. E  ficou  de  olho pregado  no  assento  dela,  pensando  besteira.  Eu  disse:  Amaro,  ói.  Que  nada,  oxente.  Que  nada  oxente,  que  nada  oxente?  Que  nada  oxente  tu  vê  depois,  
quando  o homem reparar  que tu  está com intenção na  filha dele.  An-bem,  não  lhe  digo.  Mas  ficou  com  uma  tiririca  na  mão,  fazendo  rolête  com  o  cometa  de  aço,  depois  botando  em  fila  e  chutando com o dedo. Como quem não é com ele. Bom, não  sei.  Outras  feitas,  vem  ela  de  timão,  com  os  peitos  se  vendo  por  baixo. Não sei. Isso não gosto, dá sempre distúrbio. An-bem, não  é  comigo,  filha  sem mãe,  sem  irmão,  o  pai  metido  no  meio  das  vacas. Tinha um irmão mabaço. Dizem, nunca vi. Morreu de mal  de  sete  dias.  O  embigo  estuporou,  botaram  estrume  em  cima,  mastruço  pilado,  nada  foi.  Endureceu  todo,  não  tinha  esse  que  vergasse,  e  enterraram  em  pé.  Meio  acocorado,  meio  em  pé.  Dizem,  nunca  vi.  Por  mim.  Por  mim,  eu vou  embora  assim  que  chegar Elevaldo e disser: pode ir. Vou logo. Isso aqui me dá uma  agonia,   ainda  mais   com  Amaro   cortando  tiririca,   mordendo  tiririca,  lascando  o  dedo  na  tiririca,  uma  agonia.  E  olhando  o  novelo  da menina. Não  sei. Já  é mulher, deve ter uns  treze anos,  possa  ser catorze, o oveiro já  está rebaixado no ponto  de mulher.  Pois a tal fica aí, de olho duro em mim.       — Tirando bicho de pé, Seu Getúlio?       Não  gosto de me chamarem de Seu. Ora, pustema, o raio da  divisa para  que serve? Estou tirando bicho  do pé, não  sei mais  o  que  eu podia  estar  fazendo com uma  agulha na  mão  e  o pé  para  cima, só se quisesse costurar os pés. Não gosto do jeito  dela, tem  uns  olhos muito mexidos  e a cara de sonsidão e as mãos  sempre  ajuntadas  na  parte  de  baixo  da  barriga.  Arre.  Não  gosto.  Pior  é  que  ele  também  fica  espiando  e  dá  risada.  Tresantontem,  vi  ele  dando risada para  ela e ela dando risada para  ele. Quando dei na  senvergonheira, ficaram um gelo. Quando eu cheguei, avisei logo:  tranca  esse  cabra  no  quarto  menor,  bota  um  pinico  lá  dentro,  manda Osonira Velha levar comida e amarra ele na ripa. Primeiro  dia, deixaram. Segundo dia, já  ficaram com pena, ele parece muito  fino,  com  seu  ginásio  e  tudo.  É  uma  fi-nura.  E  Osonira  Velha,  aquela  vaca  velha  surda,  fica  falando,  coitado  que  está  com  as  mãos  cortadas da  corda,  coitado que não  agüenta nem  se mexer,  
coitado  que  nem  reclama,  coitado  que  está  com  fome.  Por  mim  degolava  a  língua  dessa  égua  velha,  peste,  não  vejo  serventia  nessa. Apoquenta, isso faz. Pois então ficou Amaro falando e Seu  Nestor  falando, para mim quanto mais velho mais frouxo. Dizem  que  tem  passado,  esse  Nestor,  já  fez  acontecimentos.  De  mim,  fico espiando quando ele sai todo encourado, e eu arrumado aqui.  Vaqueja, passa  com as vacas  o  dia todo  que Deus  dá. Parece  de  boa  carne,  com  a  cara  seca  e  esturricada  e  os  olhos  apertados.  Quando volta,  antes do banho,  senta ali e cata as unhas uma por  uma   com   uma   ponta   de   solinge,   bem   devagar,   bem   com  catilogência. Vezes  ouve rádio,  nem  sempre. É,  mas  quase pede  para  soltar  o  homem,  da mesma  forma  que  Osonira  Velha. Não  sei por  que. Para mim  esse peste  é bicho,  está virando bicho. Aí  tiraram  o  homem  do  quarto,  mas  a  amarra não  dispenso.  Deixo  que  nem  uma  mão  de  milho,  mesmo  que  no  meio  da  sala  e,  se  quer andar, anda de laço no pescoço. Eu disse a Seu Nestor: isso  não  é boa  coisa, esse  alguém. Disse:  isso não  é peça  que preste.  Isso não é gente. Para mim é lobisomem. Eu disse a Seu Nestor:  isso  vira  lobisomem,  homem,  isso  quase  acaba  Ribeirópolis,  homem. Não  deu  certo. É bicho  mesmo,  esse peste  é um  bicho.  Sangrava logo  e  cumpria  a missão. Não,  tem  que  levar,  é nunca  de   outro   jeito  agora.   Agora   fica   no   meio       da   sala,   faz  cumprimentos.       — Boa tarde para todos.       É  uma  finura.  Como  se  nunca  tivesse  dado  uma  ordem  de  morte,  como  se nunca tivesse  anulado uma urna,  como  se nunca  tivesse  um  pecado  nas  costas,  que  tal?  Por  essa  razão  que  o  bandido  sou  eu aqui, eu que nunca  dei tiro por  trás  de ninguém,  nunca. Pois  sou o bandido  aqui. Arreceio que, se demorar muito  tempo, termina ele saindo e eu ficando, como cachorro ruim, um  capuco  amarrado  no  pescoço,  uma  corda  no  pé.  Já  se  viu.  Tem  um manguá  ali, um manguá  de  sete oitavos, desses mesmo.  Que  faço que não tiro da parede  e passo  o rebenque nele, em Osonira  Velha  e  quem  mais  aparecer  e pronto  e  resolvo?  Por  que  deixo  
tudo  assim?  Por  que  não  faço  nada?  Isso  é  engraçado,  a  gente  deixa  os  negócios  acontecer,  é  uma  graça.  Agora  o  que  se  construi é ele contra mim  e até Amaro  dá  sua parte  e depois fica  com  suas  tiriricas ,  mirando  o  rabo  da  menina  com  cara  de  cachorro que quebrou o prato. An-bem. É assim. Não tolero isso,  fico uma chaleira fervendo, não agüento.       Bom, Elevaldo vem uma hora dessas, não é possível que não  volte.  Pegou  a gente no  caminho  e  quase  que  leva uma  na  testa,  dado que apareceu de repente e eu estava mesmo que estava azul  para  dar umas providências no mundo  e não gostei daquele jeito,  mexendo nos matos sem avisar. Sabe, Seu Elevaldo, que vosmecê  deu  sorte  de  eu  não  estar  com  o  ferro  na  mão  na  hora  que  vosmecê  despontou por  trás  dos  matos,  porque  se  estivesse não  trastejava,  era  tunque,  tunque,  tunque,  tudo  num  lugar  só?  No  meio  da  testa  num  buraco  só,  e  pelai  mesmo  vosmecê  ia?  Me  olhou  assim. Não  gostou.  Deixe  de besteira,  Getúlio. Pois  hum,  deixe ele.       —  Acontece  que  tem  de  deixar  o  homem  uns  tempos  na  fazenda de Nestor Franco.       De vez em quando, no melhor do gosto das coisas, quando a  gente já  se  prepara  para  executar  tudo,  dar  continência  e  voltar,  vem uma coisa dessas.       — Vai dizer por que.       —  Os jornais  estão fazendo um barulho  danado, vai  chegar  força federal em Aracaju. O Chefe disse na rádio que não prendeu  ninguém.       — ele mesmo não prendeu, quem prendeu foi eu.       Isso  o peste  está de junto,  ainda amarrado no pé  de imbu, e  dá uma gaitada. Certa feita, uma tia que eu tive viu  o diabo junto  de uma jaqueira  a cuja ia cortar e a lâmina do machado  soltou na  hora  e ela disse que diabo de machado  ordinário e não  foi assim  que  o bicho  apareceu, um  bicho  imundo, um  bicho preto,  o pior  bicho que já  se viu, com um rabo e um fedor, e disse a ela, com a  cara mais descarada, uma cara como só o diabo pode fazer: 
      — Me chamou?       Isso ele falando cantando numa voz de frauta. Diz que o bafo  do  bicho  era  tanto  e  a  goela  se  via  lá  dentro  que  era  um  nojo  completo. Bosta pura.  Só se benzendo, pense na cara, com aquela  fala de diabo:       — Me chamou?       E  aí se queixou que ela tinha  chamado o machado  ordinário  com  o  nome  dele  e  disse  que  não  tinha  nada  que  ver  com  o  machado  largar,  que  ele  nem  estava  atentando  ali  naquela  hora,  mas  que estava só de passagem porque  ia atentar naquele dia era  em Itaporanga e que isso não  se faz de chamar assim sem mais o  que  um  machado  ordinário  de  diabo.  Ela  disse  que  não  tinha  chamado de diabo. Eu disse foi quiabo, não foi diabo. Foi quiabo  nada,  mentirosa,  disse  o bicho,  e  aí deu  dois tapas  estralados na  cara  dela,  diz  "que  foi  dois  tapas  desses  de  rolar  no  chão,  com  aquela mão preta, imunda, de diabo mesmo. E ficou levantando a  saia dela e dizendo as piores  coisas  com a cara mais  debochada,  como somente o diabo mesmo pode fazer. Ela disse que ele disse  a ela:       — Me chamou? O meu nome é Erundino.       Era um diabo diferente, que nem era lúcifer nem era bel-zebu  nem  era  satanás  nem  era  bute,  mas  era  esse  tal  de  Erundino.  E  ficou  naquela  dança,  o  meu  nome  é  Erundino,  o  meu  nome  é  Erundino.  Bicho  imundo,  bicho  preto,  só  vendo,  um  diabo.  Foi  sorte que ela se lembrou-se de uma reza, meu São Ciprião, as três  cruzes  de  Davi,  os  três  sinos  de  Salomão,  as  três  lágrimas  de  Madalena, as três chagas de Cristo e foi rezando, foi rezando, até  que teve posição para pisar no rabo  da assombração, um rabo  de  ponta como uma frecha de índio e então deu-se que ele papocou e  sumiu, contudo deixando uma catinga que ficou naquelas brenhas  mais de vinte anos, não havia quem pudesse passar sem estontear.  Pois, quando eu vi o alguém dar aquela gaitada preso no imbu, foi  o  que  me  veio  na  cabeça  foi  o  diabo  que  minha  tia  encontrou.  Estava ali, sorrindo com os dentes brancos, e ainda falou: 
      —  Seu Getúlio, vamos  esquecer isso.  Olhe, eu me retiro  de  volta para Paulo Afonso e fico na Bahia e vosmecê vai para onde  quiser e tudo esfria e fica na santa paz.       Sim. Para mim  é bicho, posso  crer. Elevaldo trouxe  ordens,  não tem como desobedecer. Mas antes comuniquei ao alguém:       —  Vosmecê  faz  favor,  não  fala.  Aliás,  posso  dar  com  a  coronha  do  fuzil  nos  dentes  de  vosmecê  e  até  gostava  que  vosmecê xingasse minha mãe agora, para  eu ter uma desculpa de  pegar esse rifle daqui e dar duas na sua cara, não sabe?       Possa  ser  que Elevaldo não  tem  culpa nesse  assunto, possa  ser  que  o melhor  é  aquietar, mas  a  cara  dele me  deixa  com  essa  vontade de ficar na violência, não sei o que é que ele tem na cara.  Se vosmecê tivesse um panarice no nariz, eu gostava de dar uma  porrada  bem  atrevessada, bastante  de  com  força,  sabe  disso,  até  curava,  porrada  de  fuzil  é  especial  para  panarice.  Perguntei  a  Elevaldo  se  não  era  melhor  terminar  o  serviço  logo  ali  na  hora  mesmo,  até  disse  bem  alto  como  era  a  execução.  Queria  que  o  coisa  ouvisse  tudo,  ainda  mais  porque  fazia  jeito  de  que  não  estava  aí  nem  ia  chegando  e  tinha  uma  confiança.  Eu  disse:  a  gente podemos  enforcar,  que  isso  não  vale  nada.  Elevaldo  ficou  olhando  ele  como  quem  assunta  se  era  bom  ou  não.  Aquilo  também  não  é  bisca,  esse  Elevaldo.  E  Amaro  saiu  do  hudso  esfregando a cara, passando  cuspe  em jejum  no pitombo  que  ele  tem na testa  e perguntou  se não  ia ser que a gente não  ia dar um  fim no bicho naquela hora.  Porque  se vai  dê logo,  disse Amaro,  que é para não ficar nessa  aporrinhação de manhã cedo. Elevaldo  disse  nada,  deu  uns  tuncos.  Essa  altura,  o  espécie  parou  de  amostrar os dentes sentado na raiz do imbuzeiro. Ah, parou de rir,  cabrunquento?  Viu  a  vida?  Hum.  Melhor  pensando,  enforcar  é  trabalho  por  demasiado,  porque  a  corda  que  tem  aí  na  mala  da  viatura  é  fina  e  é  bem  capaz  de,  em  vez  de  enforcar,  arrancar  a  cabeça  fora  e  aí  ficava um  serviço porco.  Lhe  digo  melhor,  Seu  Elevaldo, vosmecê  que entende dessas  coisas de medicina, não  é  melhor dar sal grosso até os rins estuporar? Porque se não vinher  com  muita   água   é   o   que   dá,   embora   seja   devagar   e  haja  choramingação.  Vosmecê  acredita  que  ele  vai  choromingar?  É  bem,  que  até  ele  fica bem  conservado  na  salmoura.  Elevaldo  só  olhando, nos tuncos. Fazer o seguinte: mela o homem de mel nas  partes  e manda um bezerrinho novo para lamber. Vai acabando o  mel, vai botando  mais. Assim  morre bonito,  dando risada.  Olhe,  enterre  vivo  de  cabeça  para  baixo.  Aliás,  as  duas  coisas.  Sal,  porque    foi   isso   que   ele   botou   na   terra   dos   Paraíba,   em  Ribeirópolis. Bezerro, porque foi isso que ele matou, um por um.  Foi  ou  não  foi, peste?  Se  foi. Na  hora,  estava todo  mangangão,  não  estava? Agora, veja o que eu faço. Mas  Elevaldo parece  que  ficou  com  pena  e  disse  que  levemos  o  homem  para  a  casa  de  Nestor, que já  estava avisado e que voltava para dizer a hora que a  gente levava o  cabra de volta.  Talvez pelo rio,  evitando estradas,  ia se ver. Botamos o homem em marcha até a casa, atrás do hudso  e Amaro estava muito alegre, porque  olhava para trás quando em  vez  e  dizia:  marcha  soldado,  marcha  soldado.  Na  primeira  vez,  disse  marcha  soldado cabeça  de papelão,  depois  disse  cabeça  de  macarrão,  depois  cabeça  de  mamão,  depois  cabeça  de  camarão,  depois  cabeça de  capão,  depois  cabeça de manjelão,  e  assim  foi,  até  que  se  chegou  na  casa  e  se  instalamos  e  eu  estou  aqui  com  essa  me  olhando  e  querendo  saber  se  eu  estou  tirando  bicho  do  pé.  Um  fastio  aqui.  No  começo,  mascava  um  queijo  de  cabra  ardido,  por  falta  do  que  fazer,  hoje  só  como  de  fado,  passo  as  horas  estendido  na  varanda,  nem  sei  quantos  dias  tem,  Amaro  corta  tiririca  e  desmonta  o  motor  do  hudso  e  assovia  a  mesma  música, às vezes canta. Não entendo direito, porque Amaro enrola  a língua, não sei o que é: até o sol (isso,entendo: até o sol). Até o  sol ipiaça invadiu a vidraça e o retrato dela icoiou. Deixe examinar  isso. Até o sol ipiaça invadiu a vidraça e o retrato dela icoiou, que  merda é essa não sei. Perguntei a ele. Até o sol ipiaça, que vem a  ser?  Não  sei,  disse  ele,  aprendi  assim.  E  o  retrato  dela  icoiou.  Acho  que  as  músicas  devia  de  ser  feitas  para  entendimentos,  assim não. Amaro  sabe diversas, mas tem costume de pegar uma  
e não tirar da boca, e aí fica o dia todo naquilo só.       Bonequinha linda        dos cabelos louros        olhos tentadôrios        lascos de lubila.       Perguntei  o  que  vem  a  ser  lascos  de  lubila,  também  não  soube,  parece  mesmo  que  não  gosta  que  eu  pergunte.  Acho  despropósito cantar uma  coisa que não  se  entende e disse  isso  a  ele,  mas  ele  não  quer  saber,  lascos  de  lubila,  lascos  de  lubila,  nunca ouvi isso.  Só ele mesmo. No normal, não me incomodava,  mas  quando  só  se  tem  mugido  de  vaca  para  escutar  e  cheiro  de  curral  para  cheirar  e  não  se  sabe  quando  vai  se  sair  dessa  pasmaceira,  não  se  agüenta  uma  coisa  dessas.  Amaro  gosta  de  palavras.  Fica repetindo uma porção  sozinho, feito maluco,  acho  que só para sentir o gosto. Antes deu tirar o bicho do pé, quando  nem  tinha  começado  a  desfivelar  as  botas,  chegou  e  disse,  com  um rolête de tiririca no meio dos dentes:       — Se a gente levar o homem agora para Aracaju, vai ser uma  poteose de tiros.       Mas,  mas  veja,  mas  olhe. Mas,  mas  homem.  Disse  assim  e  até tive vontade  de  dar risada, porque  Amaro usa  um  dente  sim,  um  dente  não,  vai  acabar  perdendo  tudo.  A  boca  é  engraçada,  como dentes  cavados numa  casca de melencia.  Que vai  se  fazer.  Não  resta nada para  fazer, não  ser mesmo um  cavaco assim com  os dentes de melencia, mas, quando o tempo é grande como aqui  e  se  espicha pela  tarde  como  que não  vai  acabar,  até  a  conversa  parece  coisa  do  inferno,  traz  impaciência.  Amaro  ou  fala  de  mulher  ou  fala  de  Charuto  do  Cotinguiba.  Fala  no  pontapé  de  Charuto. É um  chute,  fica dizendo. Cada chute. Furou  a rede  do  time da Passagem,  deixou a marca  ali. Furou  a rede  de diversos,  fez  e  aconteceu.  Ora,  Amaro,  an-bem, não  gosto  do  Cotinguiba,  em  primeiro  lugar,  não  gosto  de  Socorro,  que  é  uma  terrinha  
mirrada,  cheia  de  pivetes  fugidos  da  Cidade  de  Menores,  em  segundo  lugar  não  gosto  de  time  azul,  em  terço  lugar  não  acho  que  Charuto,  com  aquelas  pernas  de  jaburu  e  aquele  nariz  de  ponta  possa  ser  bom  chutador,  em  quarto  lugar  cale  essa  boca  arreliada da gota, aviu, time é o Olímpico, aviu. Bom. Nunca nem  vi  direito  a  camisa  do  Olímpico,  só  me  alembro  daquelas  rodas  enroscadas umas dentro das outras nos peitos dos jogadores,  mas  não  posso  que  não  ficar  falando,  que  mais  se  pode  fazer.  Nos  princípios,  vem  raiva  de  Amaro,  os  buracos  nos  dentes  e  a  fala  mole  de muribequense, mas  depois  o tempo  é tão  grande  e nada  mais  se ouve  senão as vacas  de curral e a quentura abafa tanto  e  nada  mais  se  ouve,  que  fiquemos  ali,  só  falando  por  falar,  por  meio  dumas  grandes paradas  na  conversa,  enquanto  espiemos  o  ar.  Deitado  numa  tarimba  velha,  de  noite,  também  sem  dormir,  tem uma  conversa mansa.  Que mais?  E Amaro  só  Charuto isso,  Charuto aquilo, porque Charuto, porque isso e mais aquilo. Certo,  certo. Umas horas  aparece umas jias  no  chão e a gente espiemos  as jias  como  se  a  gente  nunca  tivesse  enxergado  uma jia  nesse  mundo  de  meu  Deus  e  se  aproveita para  conversar  de jias,  sem  muita  direção. Assim:  Amaro  diz: já  viu  como uma jia  é branca,  repare que bicho branco. Aí eu levanto a cabeça da tarimba, tapo o  olho  por  causo  do  clarume  do  fifó  nas  vistas  e  espio  a  jia.  Demoro  um  tanto  assuntando  a  jia,   que  fica  lá  desprecatada,  esperando  algum  vagalume,  sem  dúvidas.  Aí  eu  digo  a  Amaro:  tem razão,  é um  bicho  branco  danado,  de  cabeça assim ninguém  dizia que era branco desse jeito. Aí ele sacode a cabeça e diz: é um  bichinho tão branco que parece pintado, hem? Aí eu levanto outra  vez,  espio a jia  e digo: parece  até pintado,  de tão branco  essa jia,  hem Amaro? De fato, Amaro diz, branco assim só pintado. Aí ele  olha mais  a jia  e  eu  olho também,  de  cada vez  um  dizendo uma  coisa um  cadinho  diferente.  É  branca.  Na  luz  se vê  as  tripas.  O  vagalume  acende  dentro  da  barriga,  quando  ela  engole.  Depois,  vai  logo  faltando iluminação nele  e  ele vai  apagando, até apagar.  Amaro  diz  que jia  é  parente  de  sapo.  Todo  mundo  sabe  disso,  
Amaro.  Me  diga-me,  esse  hudso  não  vai  ficar  encrencado  no  meio  da rodagem?  Que  encrencado, meu  santo, que  encrencado?  Esse  hudso  é  americano, hem  Amaro?  Vi  dois  americanos uma  vez, uns vermelhos. Tem preto lá, hem? Não  existe. A Bahia não  fica  na  América.  A  América  fica  para  lá  da  África,  é  bastante  longe. E fiquemos nisso um tempão, até que eu quero treinar uns  tiros na jia  e Amaro diz que vai fazer buracos demasiado no chão  e  vai  causar  um  espôrro  descabido.  Por  essa  razão,  fincamos  o  olho na jia  e ela quieta ali calada jiando  e não  damos tiros nela  e  acabamos  tendo  de  dormir  naquela  soaeira  besta.  Amaro  achou  um  livro  marrom  e  ficou  tencionando  ler.  Tinha  uma  frase:  o  discurso  sem verbo. Mas não gostou do discurso e logo rodou  a  rosca do fifó com o dedão e foi dormir. Deve sonhar com uma jia  dentro do hudso.       Pois   então  com  esse  bicho  na  ponta   da  agulha,  posso  queimar  com  fósforo. Nem  trasteja, não  dá tempo.  Dá,  sim uma  torcidinha  de  banda,  nham-nham,  uma  esticadinha  e  fica  logo  preto.  Deixou  um  bom  buraco,  isso  posso  garantir,  e  aí  carece  atufar de terra para não sinfetar. Às vezes fico retado, quando me  vejo  fazendo  certas  coisas,  um  homem  como  eu  aqui  sentado,  coculando  terra  num  buraco  do  dedão,  sabendo  que  não  vai  ter  mais nada que fazer depois. Podia ir para lá com Seu Nestor, mas  não  me  dou  com vacas.  Não  gosto  de boi  de perto,  é um  bicho  burro  e  anda  de  cara baixa.  Do  mais,  não  posso  deixar  ele aqui,  com essa de frete com ele, porque pode  soltar, isso tenho certeza.  Se  solta ele, eu levo  ela, isso pode  botar  a mão no  fogo,  que  eu  levo.       Mesmo  porque  não  vi  nada  antes  de  rebentar  a  pamonha.  Estou aqui bendomeu, cocando meu dedo furado, quando vejo os  gritos na  sala e é gritos de Osonira Velha, minha Nossa  Senhora  do Perpeto Socorro, meu Bom Jesus de Pirapora, não sei que tem  mais lá, e que vejo assim naquele arrupio todo, e que quando vejo  assim uma  porção  de  destampatórios  da parte  de  Osonira  Velha  que destapo pelo batente da porta arriba e que seguro o cano logo  
no  sentido  da  fuga  do  homem  e  que  vou  virando  no  batente já  com o  aço enrístio para  frente que vejo  é a menina  segurando as  partes  com  a  mão  e  toda  encolhida  com  cara  de  atocaiada  e  o  alguém todo descomposto, exibido na frente. Logo que vi, parei.       —  Estou lhe dizendo, Seu Nestor,  tivesse uma  faca na mão,  tinha cortado logo. Estava um destempero.       Pois até que não foi, porque eu até que tinha a faca da bota e  era uma  boa  faca, por  falar. Mas  não  vi  senso nisso.  O  homem  ainda  estava  amarrado, mas  tinha  achado um jeito  de  se  abrir na  frente e agora o que ia fazer era que ia se aliviar com a outra. E só  não  fez  sua tenção  e teve  de  ficar com o  de  encarcar balançando  no   vento  porque   a  bainha   escapuliu,  na  hora   que  apareceu  Osonira  Velha.  Com  isso  ninguém  contava,  porque  a  peste  da  velha essas horas já  devia ter batido sua légua e meia para casa, só  que nesse dia atentou que tinha que ficar e pegou a safadeza.       —  Olhe,  Seu Nestor,  o fato é que a menina não queria e ele  ia pegando apusso.       O  fato  é  que  ela  bem  que  queria,  deve  ser  ela  mesmo  que  abriu  o  homem,  porque  as  mãos  não  podia  mexer  bem  naquele  estado de amarração. Mas ela vastou e ficou berrando de solúcios:  ela  não  quis,  pai  dela,  ela  foi  dar  água  e  ele  agarrou  ela,  ela  é  donzela, ela estava quieta no canto dela.       — É fato, Seu Nestor. A menina estava no canto dela, quieta.  O peste é ruim, para mim é bicho.       Sim.  Boto  um  dinheiro  como  ela  encostou  lá  por  primeiro.  An-bem,  chu.  Quem  freta  e  desliza  é  barcaça.  Estou  aí,  estou  assistindo e não posso  garantir que não gostei de ver  Seu Nestor  sacudir     a   cabeça   de   um     lado   para   o    outro,   assuntar      a  descompostura do homem. E ele todo  sem nem  saber como era a  cara que fazia, nem  se olhava para  cima ou  se olhava para baixo,  se mordia os beiços, se falava, se nada, nada.       — Tire a mão da frente, cabrunquento. Não queria amostrar?  Pois pode mostrar.       Essas  alturas,  murchado,  não  está  vendo  logo.  Eu  que  não  
queria  ser  ele.  Mas  Seu Nestor  só  falou  duas  coisas  alto  e  deu  com a mão na menina e eu e Amaro  fomos ajudar a segurar para  dar umas porradas nela. Merecia. Mulher que viu homem nessas  condições  é  rapariga.  Ou  vai  ser.  Punitivos  é bom.  Porisso  que  seguremos  um  pouco,  ao  que  o  pai  dava  o  castigante  com  o  mesmo  manguá  que  eu  olhei  e  aparava  na  mão  crua,  com  a  canhota,  quer  dizer  que  era  em  cima  e  em  baixo.  Mas  não  teve  precisão  de  segurar  mais,  porque  aquele  manguá  era  dos  de  amansar  burro,  de  maneiras  que  ela  amunhecou  e  ficou  ali  no  dela. Boa taça e manejava bem, sem curva muito grande, só quase  que de munheca, mas batia bem. Osonira Velha foi botar vinagre  e  sal  em  cima.  Carecia.  Homem  nenhum  uma  filha  assim  não  apreceia, mesmo pensando  que não  foi ela. Diabo de mulher tem  querer  não,  mesmo,  pronto.  Demais,  vinagre  e  sal  cura  ligeiro,  fica só uns vergãos, manhã esquece, pode crer. Agora é não falar  mais nada e agradecer ter pai bom, que não jogou  logo no mundo,  para  seguir  a  carreira  de  mulher  dama.  Eu  mesmo  sabia  que  só  podia  sair nisso ou noutra coisa disso, aquele frete. Aquele timão  em cima da pele. Afinal, homem nu  com mulher nua um vai  cair  na pua, está dito.       Agora que aquietou, Seu Nestor chamou nós dois para sentar  na  varanda  e  sentamos  na  varanda,  eu  enrolando  um  cigarro  e  Amaro  cavando  o  chão  com  a  ponta  da  bota  num  traço  bem  comprido  e  Seu Nestor  segurando uma  faca. Eu  disse: por  mim  podia sangrar logo, mas vai ter de sangrar em Aracaju. Isso é boi  de matadouro é animal cheio de idéias. Não pode morrer no mato.  Assim  mesmo,  não  sei  se nem  em Aracaju,  ele é  despachado. É  todo importante, está um  sistema, os jornais,  tudo. A política está  mudando,  eu disse, está ficando uma política maricona. Mas  Seu  Nestor  não  estava  escutando, porque  nada  respondeu  e,  quando  eu vi  que  nada  respondeu,  também  calei minha  boca  e  fiquei na  aguarda,  ali.  Também  pouca  coisa  mais  tinha  que  fazer,  era  esperar. E esperar esperamos, porque ele estava sem pressa, tinha  que  pensar  bastante  no  que  devia  de  fazer.  Se  algum  estava  
avexado não  era eu nem ninguém,  era o  da  sala, que,  em vez  de  sentar, ficou caminhando até onde a corda dava. No  começo, quis  falar, armou discussão.       — O senhor precisa me escutar-me. Isso é um problema que  pode ser explicado.       Vá  explicar na  casa  da  puta  que  pariu,  disse  Seu Nestor,  e  levantou  até lá  e  deu  com  o joelho  nos  quibas  deles  duas vezes.  Assim amansa, não vou discutir com cabra safado, aviu. Voltou e  sentou na cadeira de vime e deu de balançar em cadência, olhando  duro na  frente. A  moça  o  senhor manda para  o convento de  São  José, disse Amaro. Lá depura. Sai velha e esquecida da memória.  Ou  então bote  num  daqueles  que  tem  grades  e  que  ela  só  pode  falar pelas grades e nem não vê ninguém, eu acho.       — Por mim morria, Seu Amaro. Por mim não existe.        An-bem, todos calados então, de quem era a filha se não era  dele.  Só  depois  de  mais  tempo  ainda  é  que  demonstrou  suas  idéias.       —  Impossível matar  o homem, pode  vim  alguém aqui. Não  suporto ninguém me tesourando.       Certo, certo. Podemos surrar.       — Porém, vou deixar ele roncolho. Vosmecê queima?       — Eu nunca queimei nem ôvo de bode, quanto mais.       —  Não  tem  dificuldade.  Encosta  o  ferro  quente.  Fica  um  pouco  de  um  cheiro  de  carne  esturricada,  mas  tem  precisão,  porque pode sangrar demais e o bicho morre de esvaição. Assim,,  faz a queima logo e sara, que fica ótimo.       Amaro disse que podia  amarrar um  fio de cabelo de rabo de  cavalo  na  raiz  do  quiba,  que  ia  apertando,  apertando,  até  ficar  como massapuba. Justo, disse  Seu Nestor,  mas  aí ele pode tirar,,  numa hora de desprecato de quem tiver olhando. Mas é o melhor,  disse  Amaro,  é  assim  que  melhor  se  tira  berrugas,  nem  dói,  só  desconforta  um  pouquinho.  Cortar  pode  resvelar  e  cortar  logo  tudo,  dá  um  estrago.  Não  tem  homem  que  fique  quieto  direito  numa hora dessas. 
      — A gente avisa: olhe, se chiar, enfio um pano na boca" bem  atufado  e  pode  lhe  afogar  logo  de  vez.  Melhor  se  conformar,  porque  o destino não  se engana. Também não  fique se mexendo,  que   dificulta.   Deixe   que   eu       corto   um    corte   só,   na   raiz,                                                             nunstantinho.       —  Também pode  dar  com a mão  do pilão, não precisa nem  enrolar,  porque  já  tem  embrulho  no  natural.  Pode  ir  pilando,,  pilando,  até  esfarinhar por  dentro  e  aí  deixa,  que vai  inchando  e  rende. Fica um  espotismo de cunhão, pode  dar até no joelho.  Sei  de um  velho  em Aquidabã, por  nome  Manoel  Joaquim,  que tem  um   assim,   o   direito,   que   é   direitinho   uma   abobra   dessas  compridas  e  ele  ali  pode  fazer  todas  espécies  de  serviço  sem  susto, só que as pernas  das calças tem que ser mais  folgadas um  pouco, para poder entrar. Vi diversas vezes, é interessante. Lá em  Aquidabã  não  tem nada  para  fazer  e  Seu Manoel  Joaquim  gosta  muito de prosar e fica com aquele cunhão inchado nas calças, que  nem um saco. Mas rendeu de moléstia, não foi de pancada. É uma  doença que dá, que incha os ovos e daí não tem mais jeito.       — Não,  que o vivente pode  esfalecer e não tornar.  Ou  ficar  abilolado para todo o futuro.       Mas  olhe  que  para  um  alguém  que  estava  um  pouquinho  todo  alterado, no vício mesmo, ver  a pajeú  do velho retinindo de  amolada,  coriscando  na  mão,  para  separar  um  ôvo  do  criaturo,  olhe que é preciso  ser muito macho para não se ajoelhar. Mas ele  não,  agora  que  reparei,  dava  umas  parenças  de  tão  cansado  que  nem era como se fosse com ele. Estava lá, acho que se mandasse  aj oelhar    aj oelhava,     se   mandasse       arreganhar       os   quartos  arreganhava. É bicho, pode crer. Udenista é gente, siô.       E   fiquemos      considerando       a   maneira   de   esmochar        os  balangandãs  do  homem,  um  saindo para  ele  sentir  e um  ficando  para  ele  lembrar,  mas  todas  algum  achava  defeito,  se  era  no  sangra-mento ou bem era no resultado, ou bem nas perguntas que  iam  fazer,  quando  chegasse  em  Aracaju.  Eu  mesmo  nada  vejo  
demasiado que um,udenista chegue em Aracaju roncolho. Isso eu  mesmo,   mas   tem   quem  repare   nisso,   tem   quem  repare   em  qualquer  coisa.  Para  mim  ele  é bicho,  não  faz  diferença.  Lá,  até  parando  de  andar,  por  volta  e  meia  e  ficando  estancado  em  pé,  como  cavalo,  com  a  testa  para  riba,  às  vezes  nem  parecia  que  a  conversa era com ele, às vezes esfregava as mãos mas não falava  nada, porque  Seu Nestor ia lá e dava com o joelho  por baixo dele  toda vez  que  ele falava, de maneiras  que deve ter  achado melhor  virar mudo.       — Assim vosmecê capa o homem antes da hora.       Isso vai esquentando ele, disse Seu Nestor. É um preparo. É  bom  que ele vá  sentindo, porque nessa  casa homem  que não  •eu  só  saca  a  vara  para  verter  água  e  mais  nada.  Não  gosto  desse  negócio, não admito falta de respeito.       — Isso é.       Mas já  era bem de noite e só tinha grilo e sapo, sem ninguém  resolver.   Seu  Nestor,   melhor  o  homem   ficar  inteiro.  Minha  obrigação é entregar o preso inteiro.       —  Vosmecê  me  desculpe,  inteiro  daqui  é  que  ele  não  sai.  Veja  se  ele  pensou  em  deixar  a  menina  inteira.  Não  é  Osonira  Velha, se aprofundava-se todo, fazia uma feirinha de natal.       Bom,  o jeito  é resolver  de  outro jeito.  Ô  Amaro,  batendo  a  cabeça  no  vrido  do  hudso,  quebra  o  vrido?  Amaro  disse  hum- hum, quebra não, aquilo amassa que nem quebraqueixo, pode até  raiar  um  pouco,  mas  não  quebra  assim  com  uma  nem  duas,  é  vrido  safeti. Então já  sei,  então  digo  que  o  homem  bateu  com  a  cara  no  vrido,  depois  de  dar  dois  tombos  na  estrada.  Qualquer  estrago na  cara está explicado. ele que diga que não  foi o tombo,  que é a última coisa que ele abre a boca para dizer. Vosmecê tem  um alicate aí? Que eu arranco dois dentes da frente dele. Arranco  dois  de  baixo,  dois  de  cima,  que  fica  mais  certo.  Assim  ele  assobia e cospe bem, hum? Primeiro, dou de coronha atrevessada  nos beiços,  que amorteceia, amolece e ele abre a boca mais  fácil.  Depois, puxo de uma, puxo de duas, puxo de três e arranco. Isso  
não  tem  dificuldade,  os  de  baixo  puxa  para  cima  direto  e  os  de  cima  puxa  para  baixo  direto.  Resistindo,  sacode  de  uma  banda  para  outra,  até  vir.  Seu  Nestor  trouxe  um  baú  de  folha,  aquilo  assim de ferruge, tão  assim que abriu com um roncor  devagar, e  deu o alicate. Esse, não muito melhor, um negrume. Achei que ia  estrompar  as  gengivas  do  coisa.  Acho  que  vai  estrompar  suas  gengivas, coisa. Vosmecê desculpe, não tem outro, mas é isso ou  capação. Vá entendendo, viu, esse menino?       —   Vosmecê   sabe  o  termo  bonito  para   arrancar  dente?  Vosmecê não  quer abrir logo essa boquinha  de bunina?  ôi peste,  ôi peste!       Aí inverti a arma, encarquei duas vezes no beiço do alguém e  arranquei quatro dentes de alicate. E deixei.       IV       Nem  nunca  pude  pensar  que  Amaro  soubesse  essas  rezas,  nem  muito  menos  que  esse padre  de  Japoatã  fosse botar  os  três  ajoelhados  e  rezando.  O  padre  eu  não  conhecia.  Só  de  nome,  e  quando  vi,  pensei  que  não  fosse  padre,  pensei  que  fosse  um  avariado maluco, fazendo de padre. Ou manifestado, pode sempre  estar.  ele  fala  depressa  e  grosso,  não  se  entende  quase.  Mas  se  sabe por que se chama o Padre de Aço da Cara Vermelha, porque  demonstra   a   dureza   e   porque   tem   uma   marca   vermelha  trespassada  pela  cara,  a  cuja marca  vermelha  fica mais  vermelha  agora, menas vermelha indagora e assim vai, conforme. Sabia que  a gente estávamos chegando e que era forçado abrigar, mas ficou  todo  monarca  na  porta,  com  os  braços  cruzados,  sendo  que  era  para  mais  de  onze  horas  da  noite  e  nós  no  mundo  há  não  sei  quantas. Espiou pela atrás de uma grade de pau que tinha no meio  da porta do lado da igreja. E ficou espiando, nem chite nem chute,  e  eu  e Amaro  que vinha  escarreirados  e mais  o  traste  que vinha  próximo  de  arrastado,  com  as  caras  desgueladas,  na  porta.  Inda  mais  que  a gente  estava de  disfarce  de  capote de  capuz  e  o trem  
amordaçado  atrás,  gemendo  por   causa  da  dor  do  lenço  nas  gengivas,  que  o  alicate  não  era  mesmo  para  tirar  dente  e  tinha  ferruge  e  deslizava,  de  maneiras  que  a  extraição  foi  puxada  e  desvaziou  gengiva  que  não  foi  graça  e  fiquemos  o  tempo  todo  com medo  dele morrer  logo  sem o punitivo  esperado e havia um  nervoso,  porque  a  hora  não  era  de  molequeira,  com  um  tenente  defunto e degolado e mais uma porção de cabras no tiroteio e um  sarseiro  completo  na  fazenda  de  Seu  Nestor  e  isso  tudo  ele  devendo  de  saber e  de braço  cruzado.  Ora, pode  ser padre  pode  ser frade, pode  ser freira pode  ser bispo, pode  ser santo pode  ser  anjo,  pode  ser  imagem  pode  ser  profeta,  mas  numa  hora  de  precisão  como que fica ali só espiando, que parece um  ano. Não  que parece um ano; parece um dia, que o ano passa depressa, mas  o  dia  passa  devagar.  Começando,  espiei  também,  segurando  o  cabo  do  revólver  com  a mão  e  encostando  a  cara na  grade  dele,  mas ele não desencostou, só fez alevantar uma vela de promessa e  alumiar  a  cara  dele  lá,  que  não  era boa  cara, mas  uma  cara toda  vermelha, uma cara vermelha e embolada, crequenta. Parecia mais  um cão, olhando assim. Mas fitou-me fixe, ali olho com olho, e o  meu bem  arregalado, para  dar testa. Baixei o capuz e botei  a cara  no lume e dei um arrasto no coisa, vem traste, só sabe gemer por  baixo dessa mordaça, aprenda jeito  de homem, olhe o padre, tome  a bença  ao padre,  estava  todo  meio  abestalhado  com  a  situação,  parece que levou horas. O padre terminou dizendo ô de fora, ô de  fora,  com  uma  voz  de  gruta.  Tinha  como  que  uma  goiva  na  cabeça,  que  trempe  é  essa  não  sei,  petrechos  de  padre.  Ô  de  dentro,  eu  disse,  ô  de  dentro,  ô  de  dentro.  Getúlio,  pois  não.  Getúlio  de  Acrísio  Antunes,  Antunes  do  pecidê,  pecidê  desse  Sergipe desse mundão, mundão que está esquentado, esquentado  que vai derreter, ora merda, seu padre; êi seu padre, que não abre  essa  castanha  dessa  porta,  vai  abrir  ou  temos  que  nos  pisarmos  para  Pacatuba  ou  Pirambu, mas  se  a missão  não  der  certo  quem  não  deu certo foi vosmecê. Padre avariado, pode  crer. Ô de fora,  ô  de  fora.  Ô  de  casa,  ô  de  casa!  Quer  que  toque  o  sino?  Ô  de  
casa.  Ô  de  igreja. Nestor  morreu,  o  padre  foi perguntando,  sem  abrir a bendita porta. Não  morre  fácil, disse  eu, porém  acho que  está  dando  um  fim  numa  ruma  de  gente  lá,  acho  que  está  uma  mortandade  na  Boa  Esperança,  porque  quiseram  entrar  apusso  nas  terras.  Mas  logo  eu  conto  a  vosmecê,  porque  vosmecê  não  abre a porta?       — Em nome de Deus — disse o padre, abrindo a porta.       Entremos  e  tinha  um  cachorro  preto  e  o  padre  de  goiva  e  camisolão, e arreado no ombro pela passadeira vinha uma de dois  canos serrados e caos puxados, que ele agüentava no subaco e no  cotovelo,  mirando  em  frente.  Nunca  vi  uma  dessas  igual,  seu  padre,  me  diga-me,  esses  dois  caos  não  estão  puxados?  Estão,  disse  o  padre,  e  se  der  um  trompaço  eles  batem  e  vai  ser  uns  pipocos. Tem boa carga aí, acho que os dois de vez joga  um bom  macho  avoando  para  trás  umas  quatro  braças.  E  vosmecê  não  acha  que  êssescãos  vosmecê  devia  de  encostar  devagar  nas  espoletas,  vote,  deve  dar  uma  porrada  de  umas  quinze  arrobas  para  mais.  O  padre  alisou  o  lado  da bicha  devagar,  empurrou  o  catapiolho  em  cada  cão  bem  devagar  e  fazendo  uma  caretinha  e  descansou  a  bicha.  Mesmo  assim,  disse  ele,  avirando  os  canos  para  o chão, ela atira, com um pouco  de força. Os  caos  sobem e  descem, como num revólver. Mas dentro da igreja eu não atirava,  porque  deixava de ser igreja, não  se pode matar dentro da igreja,  mata-se lá fora. Inda porém tem muito cerca-igreja nessa terra, de  modos  que não  se pode  facilitar, não  tolero  caceteiros.  Teve um  tempo que se fazia eleição na igreja, disse o padre, aí, aí é que era  preciso   muito   preparo,   disse   o   padre,   enfiando   o   cano   da  espingarda pelo meio do buraco de trás dum banco e deixando lá.  Ficou  como  quem  estava  falando  sozinho,  olhando  para  cima  e  para os lados, mais para cima.       —  Um  tiro  aqui  desses  despenca tudo. Não  fica nada. Não  tenho dinheiro para escorar.       Passou uns tempos assim, com a mão na cabeça do cachorro  e conversando sozinho, porque não tinha  dinheiro para  isso, não  
tinha dinheiro para aquilo.       —  Isso  é uma porra —  disse o padre,  levantando os braços  duros  para  o  lado  e  descendo  para  bater  forte  nos  quartos.  —  Desce todo mundo para rezar.       Todo  mundo  desceu  nos  joelhos,  nem  nunca  pude  pensar  que Amaro soubesse essas rezas todas, eu mesmo não sei. Amaro  principia uma reza alta. Cale essa boca,  disse o padre,  alto só eu.  Tivemos  antes  de  tirar  a  mordaça  do  coisa  e  Amaro  queria  tirar  devagar, visto  estar colada no meio das gengivas, mas  assim não  acabava  mesmo.  Por  mim  não  tirava,  o  bicho  acho  que  não  vai  poder  falar mesmo, nem para rezar, está com a fuça toda inchada  da operação e não sei nem por que rezar vai ele, Deus é contra os  udenistas, sempre digo, comunista não tem Deus. Mas Amaro foi  tirando e o trem  só chiando, chiando, inclusive aquilo não  estava  com bom cheiro, estava uma inhaca desgraçada mesmo, e o padre  segurou a vela, para olhar direito a cara do alguém. Acho melhor  tirar  de  vez,  disse  Amaro,  que  assim  dói  mais  ligeiro.  O  padre  achou  que  ia  dar  sangue  e  apertou  as  bochechas  do  coisa  para  espiar.  Que  foi  que  teve  aí  no  infeliz,  sargento?  Hum.  Nele  mesmo não teve, quem teve nele foi uma coisa de fora. Sim, sim.  Taí. Que é que o senhor fez aí, sargento? Virgem Santa. Bom, por  primeiro bati a coronha nele para ele abrir a boca; depois tirei dois  dentes  de  riba,  dois  dentes  de  baixo.  Foi  serviço  ligeiro.  Hum- hum,  disse  o  padre,  depois  você  me  conta.  Orêmus  confitodéu  ominipotente beaté Marié semper-virgi beatomicaéli arcanjo beato  Jones  Batista  sânquitis  apóstis  Pedro  é  de  Paulo  ominibussântis  etibipate cuia pecavinimis  cogi-tatone verbetópere mea  culpa mea  culpa orare promé  adidómino deunostri ameim. O  coisa fez sinal  de  duas  mãos,  porque  estavam  amarradas juntas,  quer  dizer, um  sinal  saiu  pelo  avesso,  não  estou  aí  nem  vou  chegando,  se  amaldiçoe  sozinho.  Indugêntum  absolutônein  é  de  remissione  pacatorum  nostroro  tributinóbis  ominípotes  é  de  misericórdia  dóminus.  Muitas  rezas.  Eu  rezei  dois  padrenossos  e  duas  ave- marias  e  depois  não  quis  mais  rezar,  fiquei  ouvindo  o  padre  
falando língua de padre.  Só quero que não faça o bicho ficar bom  de repente,  mas  acho  que  esse padre  não  é  de milagres,  só  é  de  rezas  e  assim  mesmo,  de  maneiras  que  sentei no  banco  e  fiquei  esperando  o  fim  das  rezas,  fazendo  tenção  de  dormir,  mas  não  sabia se a igreja deixava de ser igreja se eu dormisse nela, e fiquei  agüentando  os  olhos.  Amaro  está  uma  novidade,  entertido  nas  rezas.  Deve  ser  porisso  que  nunca  bateu  no  carro,  se  fecha-se  com as rezas. Tinha vontade de saber rezas assim. Me lembro do  filho   do   chefe,   que   eu   levei  para   tirar   retrato   de   primeira  comunhão, ele segurando uma vela com uma fita no braço, e tirou  um  retrato  com  uns  anjos  atrás,  mas  a  mãe  não  gostou,  porque  saiu perfilado. Por mim. Perfilou porque  quis, ele é que ficou de  perfil.       O padre disse, alisando o camisolão o padre da cara vermelha  e  andando  pelo  meio  dos  bancos,  andando  meio  nadando  como  um  vaqueiro,  e  o  peste  nisso  todo  descomposto  e  arreado  e  as  munhecas  reladas  pela   embira  que  eu  amarrei,  um   sono  da  moléstia,  bom,  disse  o  padre,  depois  das  rezas  pelo  perdão  dos  pecados,   depois   botamos   água   e   sal  na   boca   do   infeliz   e  arrumamos ele com vosmecês no quartinho do sobrado, por mim  eu  despencava  ali  mesmo  naqueles  bancos,  mas  manhãzinha  o  sacristão com certeza vem  abrir a porta  e começar as arrumações  da primeira  missa  e não  quero  também  amordaçar um  sacristão,  pode trazer desgraça, bom, disse o padre, eu mostro lá o quarto a  vosmecês,  tem  duas  camas  de  couro  e  um  chão  de  cimento  vermelho  que pode  forrar  de  esteira, dá-se um jeito.  Ali  mesmo,  se  pudesse,  bem  que  eu  emborcava  e  fico  olhando  esse  padre,  nem  sei  quantos  anos pode  ter,  pode  ter  cinqüenta pode  ter  mil,  andando  feito vaqueiro,  deve ter  sido  filho  de vaqueiro  antes  de  ser  padre,  um  pau  dum  homem  que  não  tem  mais  para  onde,  chega a vergar,  e também espiei o coisa com os beiços  inchados:  agora  fazia  lombo,  bem  que  pegava  umas  porretadas  nas  costas  do jeito  que estava ali, hum, an-bem, ora merda, não compreendo  direito, horas  parece  que  esse padre  é padre,  horas  parece  que  é  usineiro,  não  sei  direito,  bem  capaz  de  ficar  cavacando  a  noite  toda  e o pior  é que é gente branca  da política, não  sei, um  sono,  amanhã  resolvemos,  sargento,  pegue          o  paciente.  Como  é,  seu  padre? Pegue o paciente. E foi aí que eu ri porque achei mesmo o  bicho  com  cara  de  paciente  e  aí  fiquei  rindo  com  uma  cosca  na  barriga que já  dava até dor, fiquei achando tudo muito gracioso e  até  alisei  o  casco  da  cabeça  do  traste  e  dei  um  empurrãozinho.  Vamos,  seu paciente,  doutor paciente,  ôi, ôi. Apois  não tem cara  de paciente mesmo. Fico com vontade de fazer como se fosse um  animal, siu aí, paciente,  cada gaitada, mestre,  siu aí, cada gaitada,  ui.  O paciente, já  se viu,  é um  paciente  escrito. Essas  alturas,  se  ele pudesse,  me  matava.  Quer  dizer,  então não  pode  mais  viver,  que  eu não  vou  existir  com um  cabra  com  sede no  meu  sangue,  adonde.  Agora,  que  se  eu  pudesse  não  botar  água  e  sal  no  alguém, não botava, mas paramos  defronte do purrão  e depois o  padre resolveu que era melhor água benta. Amaro foi buscar, num  jarro  branco de metal, um metal espécie de metal de pinico só que  o  jarro  era  comprido,  e  o  padre  misturou  com  sal  devagar  e  botemos  e botemos  e botemos  e mais logo botemos  o traste para  mijar, que ele queria, e arrumamos ele na esteira, com mais embira  nos  pés.  E  lá  ficou,  muito  instalado.  Hem,  Amaro, já  viu  como  esse padre  anda nadando  para  baixo,  como um  vaqueiro?  Hum- hum. Se dá-se bem com cama de couro? Aqui não temos jias.  Me  diga-me, ficou com o fiofó  aprontado, quando viu  a fraqueza do  governo chegando lá na fazenda de Nestor, embalada que era uma  armada completa, você viu, era uma grosa de machos aquilo, hem  Amaro?  Descubra  isso,  peste,  que  de  tanto  dormir  ferrado  um  vem  e  ainda lhe  sangra como  aquela mulher  de  Campo  do  Brito  sangrou o marido, com ele roncando na rede. Isso é fato, chamou  o feitor que ela andava empernada com esse dito feitor, ajeitaram  o  homem  na  rede,  meteram  uma  bacia  por  debaixo  e  sangraram  todo como galinha, o bicho ficou alvo, precisava ver. Quer dizer,  eu não vi,  o Chefe me disse, mas todo mundo  soube disso. Pois  
um dia desses, leso como tu é, com essa barriga de purga orenha  subindo e descendo, vem um e lhe acerta e não pense que não tem  uns  querendo  lhe  finar,  porque  tem,  basta  dirigir  aquele  hudso  comigo  dentro.  Ô  Amaro,  esse  hudso  na  porta  da  igreja  e  se  aparecer a força aqui? Eu  estava com  sono, mas não  estou mais,  acho que vou  carregar aquela de dois canos do padre  e armar na  janela.   Um    devia   ficar   acordado,   isso     era   que   devia.   Ô  fidumaégua, ou filho de uma mãe com vinte pais, ô condenado tu  não  acha que essas alturas já  não  está vindo uma  força de cabras  aí? Não sei o que está em Aracaju, Elevaldo não disse direito, mas  está uma coisa qualquer, de maneiras que por mim essa viagem já  está  comprida, por  mim  a gente  arreda  o pé  daqui, pede  a bença  do  padre,  enrola  o  paciente  —  ô  Amaro,  ele  não  tem  cara  de  paciente? Paciente, paciente, doutor paciente, esse padre tem cada  uma  diferente,  viu  que  ele  soltou  uma  porra,  será  que  porra  é  alguma  coisa  em  língua  de padre?  A  gente  enrola  esse  paciente,  mete  atrás  todo  embirado  e  vai.  Por  mim,  esperava  recado  na  Barra dos Coqueiros, nem  queria saber mais. Lá ninguém busca,  eu acho, ninguém pensa que a gente vai ficar defronte de Aracaju,  carregando  esse  traste  bem  na  frente  da  cidade,  bem  na  cara  da  Ponte  do  Imperador,  olhando  os  siris  da  beira  dágua.  Amanhã,  não  sei, pode  ser. Bom,  esse padre  tem  artes, mal  se  sabe. Pode  fazer um par de rezas, pode sair com aquela de dois canos. Gostei  daquilo,  ele  mesmo  serrou,  está  bem  serradinho  mesmo,  aquilo  tem uma porrada de umas quinze arrobas, mata um boi, pode crer.  Bom,  se  aparecer  gente,  faço  questão  de  esperar  atrás  da  porta  desse sobrado, que é pegado mas não é igreja, espero bem assim  atrás da porta  e pico  a zorra no primeiro vivente que atravessar a  porta e esse eu abro um rombo da pinóia, êta caraio, catibum, um  dois gatilhos, trá-trá, é só bater. Viu que dois burros de dois caos,  aquilo  é  peça  antiga,  aquilo  não  falha,  não  engasga,  parece  que  tem  libras  de  chumbo  ali  dentro,  ou  então  não  é  chumbo,  é  cartucho  especial,  ainda  pior,  nunca  disparei  um  instrumento  daquele, ai vida, ai vida, isso não é uma peste duma vida, Amaro?  
Não  se quieta o rabo.  Também não  sei outra, que  diacho que  eu  sei  fazer?  Putamerda,  Amaro,  tu  dorme  fácil,  eu  não  agüento.  Acho que esse padre pode fazer umas rezas, mas possa ser que só  sabe  fazer  reza  de  bicheira.  Quer  dizer,  nunca  vi  padre  fazendo  reza  de  bicheira,  diz  que  não  adianta.  Não  adianta  porque  não  precisa,  padre  não  é  vaqueiro,  mas  vaqueiro  precisa  e  faz  e  as  bichas  cai, uma  por  uma,  pam-pam.  Me  diga-me,  Sergipe não  é  um  sertão só? Não  é? ô terra,  ô vida,  siô. Não  sei, essa cama de  couro  me  dói  o  espinhaço,  não  dói  o  seu?  Ninguém  conversa,  acho  que  sou  eu  que  mais  converso,  mas  pode  crer  que  você  assim  estica  a  canela  no  primeiro  dia  que  Deus  der.  Viu  o  cachorro  do  padre,  eu  tive  um  cachorro  assim,  quer  dizer  um  cachorro  mais  ou  menos  dessa  marca  de  cachorro  só  que  mais  grosso,   que   o   nome   era   Logo-Eu-Digo,   porque   o   povo  perguntava  o nome  e  eu  dizia Logo-Eu-Digo  e  ficava calado. Aí  passava um tempo e vinha a pessoa: como é o nome do cachorro.  E  eu:  Logo-Eu-Digo.  Aí  mais  tempo  e  a  pessoa  dizia:  vosmecê  não disse que logo dizia o nome do cachorro, como ê o nome do  cachorro,  e  eu  dizia  Logo-Eu-Digo.  Homem,  nem  risada  tu  não  dá, nem risada já  se viu,  é deitar ferra, acho que até em mundéu,  se tiver um mundéu  grande, acho que até em mundéu  lhe pegam  qualquer um que queira, Amaro, tu é uma besta, pois hoje eu não  durmo  direito.  Amaro,  passo  de  arapuca. Não  sei  mesmo  como  foi  que  a  gente  pôde  partir  de  Boa  Esperança  no  meio  daquele  fogo,  parecia  um  são  joão,  êta.  Embora  antes  estivesse  calmo,  ninguém dissesse pela  cara de  Seu Nestor  que tinha emergências  naquela hora, porque  ele chegou e apeou e ainda tirou  os  couros  todos  e  pendurou  devagar  e,  quando  chegou  no  copiar,  ainda  olhou os pés,  viu  que trazia  as  esporas,  entrou de novo,  tirou  as  esporas, chegou, acocorou, levantou, tirou o fumo do aió, picou e  disse: sabe? Eu que estava sem nada na idéia e Amaro que estava  deitado em baixo  do hudso,  posso  ter  certeza que  dormindo que  não tinha nada para  fazer no  carro, e o preso  que estava trancado  outra vez no quarto, o que é que eu podia saber. Nada. Nestor  só  
disse:  sabe?  E  fez uma  cara  e  ficou.  Eu  não  falei nada  e  quedei  espiando  a  feição  dele,  até  que  ele  acabou  de  picar  o  fumo  e  informou   que   tinha   uns   vinte   cabras   ali   e   tinha   mandado  Carmolino  arrebanhar nos  pastos  e  tinha  facãos  e  espingardas  e  um par de armas curtas, umas coisas dessas, e se eu podia esperar  e  sair pelo  outro  lado,  depois  que  chegasse  a  força.  Vem  força,  que  peste  é  essa?  Elevaldo  não  contou,  disse  Nestor,  mas  acho  que   a  política   entrou  pelos   contrários,   mandaram   buscar   o  homem.  Esse  aí?  Esse  mesmo  daí.  Bem,  matamos  o  homem,  ponto  final,  eles  levam  ele  duro,  espichado,  pronto  que  acabou.  Mas porém Nestor,  que  achava uma  desconsideração que  aquele  povo chegasse pelas terras dele adentro, resolveu que todo mundo  esperava   até   que   a   força   desse   na   encruzilhada.   Aí      fazia  resistência, até dar tempo da gente buscar guarida com o Padre de  Aço. An-bem, disse Nestor, levantando com um cigarro aceso no  bico  e a cara enfarruscada, vamos receber a porcaria do governo.  Não me lembro de quanto tempo fiquemos olhando o caminho, e  Nestor, picando mais fumo, começou a se bufar todo, umas bufas  altas.  Todas  decisões  me  borro,  disse  Nestor,  sou  assim,  me  ataca-me  uma  caminheira  bruta.  Da  última  vez  que  eu  tive  de  defender  essas  terras,  me  calabriei  todo,  chegava  a  pingar  pelas  calças. Ora,  chô, um  tiro, uma bufa,  quanto mais  se vive, não  é.  Pois  um  homem  macho  aquele,  pulando  na  frente  das  balas,  se  borrava, atirava e se borrava, chegava as calças a transparecer. Sei  bem não, máximo que sinto é o peito apertado, assim mesmo logo  antes. No aceso, nem vejo.       Nunca  pensei  que  ia  degolar  o  tenente,  pelo  menos  nunca  pensei  assim  no  claro,  quer  dizer,  nunca  disse:  Getúlio,  vamos  cortar a moléstia  da  cabeça do tenente. Até  só vi  que  era tenente  depois  de  perto,  mas  vi  mais  que  era  mais  cabra  safado  do  que  qualquer  outra  coisa.  A  gente  estava  desencostado  um  pouco  pelali,  todo  mundo  pensando  numa  coisa  um  cadinho  diferente,  com  o  olho na  estrada. Nessas  horas,  fica um  silêncio, o  ar  fica  duro  mais  ou  menos.  De  longe  um  matinho,  parecendo  uns  
bancos  de macambira, tudo  muito  quieto,  só mutucas  de vez  em  quando,  uns  bichos  assim,  umas  coisas  dessas.  Essas  alturas,  nunca  pensei  em  degolar  o  tenente,  até nunca  pratiquei  uma  de- golação  antes,  só  que  ele  chegou  com  um  lenço  branco  e  falou  com  Nestor   como  se  estivesse  dando  ordem  num  meganha  daqueles  lá  dele.  Me  olhou:  o  senhor  está  fora  de  uniforme,  sargento. Nisso, eu estou conhecendo ele, que chama-se Amâncio  e  é  por  demais  perverso,  todo  mundo  sabe,  e  é  udenista.  O  sol  batia muito quente e ele enrolou um lenço por debaixo do quepe e  espiava  a  gente  com  as  vistinhas  miúdas,  como  de  porco.  Fala  fino, nunca admiti homem de fala fina, se bem que seja o tipo de  maior  ruindade, possa  ser  até porque  tem  a  fala  fina mesmo.  ele  disse,  olhando  para  minha  cara,  esse  sargento  desenquadrado  retirou um homem de Paulo Afonso  e se homiziou na  sua terra e  eu  vim  buscar  o  homem,  o  sargento  e  o  chofer,  o  governo  não  tolera  essas bitrariedades.  O homem vai. Nestor  pregueou  a cara  toda, acho que já  estava se agüentando da vontade de bufar mais,  mas não  disse nada um tempão, apesar do tenente ficar falando e  tirar um patacho do bolso e fazer uma pose de porretã e dizer que  não tinha tempo,  quando não  foi que Nestor  cuspiu um  fuminho  mastigado  e  ficou  fazendo  pôit-pôit  com  a  boca,  até  tirar  todos  pedacinhos  de  fumo.  Aí  perguntou  ao  tenente:  o  senhor  é  do  governo  da  Bahia?  Porque,  se  se  aborreceu  porque  tiraram  um  homem de Paulo Afonso,  é porque é do governo da Bahia, não é  fato? Não,  disse o tenente, eu sou é desse governo mesmo daqui,  o  governo  do  senhor  e  desse  sargento.  Meu  mesmo  não,  disse  Nestor; só às vezes; às vezes nem é. Bom, eu sou do governo que  interessa,  disse  o  tenente.  Ah,  disse  Nestor,  e  deu  uma  bufa.  Nisso  só olhando para o chão, sabendo-se que, quando um cabra  como  Nestor  conversa  com  um  sujeito  olhando  para  o  chão  é  somente com a tenção que o outro não veja o que ele vá fazer nas  vistas  dele. Eu  lá. Calado, a terra não  era minha,  só  o  couro que  era,  e  aquele  peste  não  era  flor  que  se  cheirasse,  devia  ter  uma  porção  de  gente  espalhada  ali  pelas  beiras  do  caminho.  Nestor  
encostou na porteira e disse o senhor está vendo esta porteira, não  está, pois essa porteira é a porteira do caminho de minha fazenda,  que  vai  dar  na  minha  casa,  a  minha  casa  que  só  entra  quem  eu  convido,  e  ninguém  convidou  o  senhor.  Quase  que  dava  para  sentir um cheiro de defunto, tinha mais homem ruim espalhado ali  que nem  sei. Não  tenho nada com isso, disse o tenente, vim aqui  buscar três homens e só saio com eles. Quês homens, meu filho?  Eu  já  disse  ao  senhor,  já  expliquei  muito  bem  explicado,  é  o  sargento,  o  chofer  e  o  preso.  Bom,  disse  eu,  eu  é  que  não  vou,  você  vai,  Amaro?  Eu  não,  disse  Amaro,  eu  não  estou  com  vontade  de  viajar.  Pois  an-bem,  disse  Nestor.  Apois  está.  O  senhor  escutou  bem  direito  que  eles  não  estão  com  vontade  de  sair e não  sou eu que vou botar  as visitas para  fora, meu pai me  deu  educação. Agora,  uma  coisa  eu pedia  ao  senhor,  que  é para  não entrar, porque se entra vira visita e eu nunca dei um tiro numa  visita, não  sabe o senhor como é, disse Nestor,  e bufou mais. Lá  por  riba,  os  cabras  quase  podia  se  ouvir  cantando  panderrolê  tepandepi tapetape rugi, escolhendo quem ia receber a paçoca por  primeiro. Arre. Eu sei que o senhor veio pelai com a fraqueza do  governo  toda  embalada,  mas  tenho  para  mim  que  nem  aquele  sacrista daquele  seu patrão  vai  achar  decente  que  o  senhor  entre  assim na casa de uma pessoa honesta e venha aqui tirar as visitas  de   dentro   de   casa,   fazer   umas   macriações,   arranjar   umas  encrencas. Olhe, Seu Nestor, não queremos mortandade, o senhor  entrega os homens e eu vou embora e fica tudo na mais santa, não  se fala mais nisso.       — Pois eu acho que isso vai ser uma festa de urubu — disse  Nestor.       —  Possa  ser —  disse  o  tenente. —  Mas  o  senhor  alembre  que o caqui é mais duro para o bico do urubu.       — Roupa possa ser — disse Nestor — mas o couro é mais.       — Possa ser — disse o tenente. — Mas na companhia de um  sargento  corno  e  desertor,  com  um  pirobo  por   chofer,  não  acredito muito, não. 
      Eu  nem  sei  quem  descarregou  primeiro,  se  foi  eu  se  foi  Nestor,  se  foi  o  cabra  na  distância,  mas  a  situação  não  podia  prosseguir,   com  o  tenente  começando  a  dar  uns   assobios  e  aqueles  assobios  dando  umas  parenças  de  sinal  para  a  força  e  ninguém  sabendo  quantos  ele  vinha  trazendo  por  detrás  e  ainda  mais  me  chamando  nome,  que  eu  não  gostei,  de  formas  que  empoeirou logo tudo e a gente fomos caindo logo pelo outro lado  da  vala  no  meio  dos  pipocos  e  nisso  Nestor  se  levantava,  dava  num  pa-rabelo  em pé,  gritava  e  se borrava  sempre mais,  parecia  um  macaco,  nos  pinotes.  Foi  tudo  azul,  assim  uma  fumaça  grande,  mas  o  fidamãe  logo  na  primeira  escapou  dos  seis  tiros  que lhe dirigi encarreirado, a canhota no chão, e ficou no meio de  dois  pé  de  pau,  um  pouco  amarrado  de  um  lado  e  de  outro,  se  bem  a  força tivesse por  detrás  e guentasse  o  fogo bastante.  Mas  eu  tinha  resolvido  que  ia  lá,  que  era  que  eu  ia  fazer.  Logo  nos  princípios  é assim: um  frio na barriga  e um  aperto. Depois, uma  vontade de não fazer nada, umas lembranças. Até que a raiva sobe  na  cabeça,  ou  uma  coisa  dessas,  até  que  estrala um  negócio  e  a  gente  sobe.  Sobe  mesmo.  De  maneiras  que  procurei  feição  de  encostar  mais   e  Nestor   mandou   descer  os   cabras  por   riba,  atravessando atrás das cabeças da gente, para  arrodear e enfincar  no  meio  da  força  e  da  gente,  saindo  por  detrás  duns  matos  de  onde  ninguém  esperava.  Sei  bem  não,  mas  foi  um  fogo  brabo,  quase que um papôco  só, sem pedaços, um barulho grosso como  pedra, um barulho  inteiro. Voava  folhas que era bastante. Voava  aquele  folharame  numa  fuzilaria  e  eu  vou  chegando  junto  do  tenente, vou chegando pelo lado me arrastando e ele quase que me  acerta, mas Nestor levanta a mão e desce em cima dele uma chuva  de  chumbo  que  descia  e  subia  terra  por  todos  lados,  e  eu  ando  mais  e enrolo e aí espio a cara dele bem  de junto  da minha,  com  um  lenço enrolado na boca,  sem dúvidas por  causo de todo  o pó  que está avoando e então pego uma mão de terra e pico nos olhos  do  infeliz  e  pico  mais  e  pico  mais  e  vou  aterrando,  quando  ele  pega  um  punhal  que  tinha  nos  quartos,  quando  ele  pega  esse  
punhal  do  tamanho  de  um jegue  e  traça  pela  frente  dele  com  as  vistas  fechadas, mas num  arco que vai  e vem para  os lados, mas  porém  faz  curvas  de  baixo  para  cima,  de  modos  que  não  existe  posição para se entrar naquela roda que ele desenha com o punhal  que  mais  parece  uma  baioneta  e  eu  não  sei  o  que  vou  fazer,  porque não tenho na mão nada carregado na hora e a faca que eu  levei é curta e assim  estou  só  agarrando mais terra  com a mão  e  faço  tenção  de  arrumar  pela  goela  dele,  nisso  que  eu  vejo  uma  pedra  como  que uma  pedra  de  calçamento  e  agarro  essa pedra  e  com uma  raiva  que nem  sei, porque  a bicha  cortava minha  mão,  olhei bem no pé  do nariz dele, olho bem  assim para  a cara dele e  solto a pedra na cara dele com toda a força que eu tenho e vejo ele  amunhecar  de  logo  e  o  sangue  es-guinchar. Ah  vai,  ah  vai,  vai,  vai,  vai!  Hum.  Encarco,  peste  ruim,  quase  que  não  agüento  levantar mais  a pedra,  estava  deitado  de barriga  no  chão  e  tinha  chegado  ali  gatinhando  e  tinha  a  alma  nos  bofes,  mas  ainda  segurei com as duas mãos, mirei  devagar e carreguei a pedra  em  cima  dele  com  as  duas  mãos  outra  vez  e  aí  pronto,  com  uma  satisfação,   só   escutei   o   barulhinho   da   cara   dele   entrando,  tchunque, como quem parte uma melencia e o sangue dele correu  por  dentro de minha manga e a pedra rolou  e caiu no  colo dele e  ficou.       Pois  nunca  mesmo  tinha  feito  isso,  só  sabia  de  ouvir  falar,  mas deu uma vontade, de maneiras que fiquei sentado um pouco,  vendo  o punhal,  que estava largado no  chão e sem ação. E então  arrastei  ele  para  dentro  da  porteira.  Uma  visita,  uma  visita,  Seu  Nestor, uma visita de cara torta       pois ô de casa        abre essa porta        tem uma visita        de cara torta       e fui assim cantando baixo e com ele arrastando pelo cabelo e  
cheguei  na  porteira  e  com  o  mesmo  punhal   que  ele  estava  riscando o ar, com aquele mesmo punhal que ele estava ciscando,  passei no pescoço, de frente para trás, sendo mais fácil do que eu  tinha por  mim  antes de  experimentar, com aquele mesmo punhal  que ele estava na  cintura e depois na  esgrima e me  chamando de  corno, cortei o pescoço,  foi bastante mesmo mais fácil do que eu  pensei  antes  e  por  dentro  tinha  mais  coisa  também  do  que  eu  pensei, uma porção de nervos, só o osso de trás que demorou um  pouco,  mas  achei  um  buraco  no  meio  de  dois,  escritinho  uma  rabada  de  boi,  e  aí  foi  fácil,  atravessando  ligeiro  o  tutano  e  encerrando, a cavalaria de Deus pela justiça,  corno é a mãe, teve  sangue  como  quatro  torneiras,  numa  distância  mais  do  que  se  pode  acreditar, logo se esgotando-se e diminuindo e pronto  final.  Donde  que  o homem  esguincha  sangue mais  longe  do  que pode  cuspir.       Sonhos melhores  eu já  tive,  porque  hoje  é  sonho  com uma  perfeição  de jias.  Cada jia  grande, com umas bocas maiores,  que  fica perfiladas na minha frente. Impossível cortar a cabeça de uma  jia  sem cortar o resto  do corpo todo, por  falta de pescoço, mas  o  tenente, assim que decepei, pude amarrar a cabeça num pedaço de  corda e rodar por  cima da cabeça e marchar lá em baixo, nem  sei  como nem morri, porque não pararam, mas eu fiquei olhando um  tempo para  lá para  os  cabras e falando olhe a cabeça dele, olhe a  cabeça dele, quem permanecer vai acabar assim também e dei um  safanão  na  corda  e joguei  lá  no  meio  da  força,  que  parou  um  pouco na hora, também estava uma bicha feia, uma bicha troncha,  visto  que  não  fechou  direito  as  vistas  e  a  côr  era  a  mais  feia  e  ainda tinha terra até dentro dos ouvidos e mais eu tinha quebrado  as partes  da frente antes, de maneiras  que era um  desconchavo e  deve ter sustado a força da força. Mas não era eu que podia ficar,  com  a  responsabilidade  do  coisa  atrás  de  mim,  de  formas  que  estamos aqui e não é aqui que vamos parar, aliás, esse é um padre  bem  doido,  sonho  com uma  ruma  de jias,  ou nem  sonho,  sei lá,  Amaro  dorme  e  o trem vela,  garanto. Bom,  tem  essas jias.  Uma  jia  se  chama  Natércio  e  prefere  dar  risada  a  outra  coisa.  Uma  risada  de jia,  com  os  braços  cruzados.  E  fica  ali,  pensando  em  mosca e vagalume e besouro. A outra jia,  que se chama-se Roque  Pedrosa,  é  mais  séria  e  só  dá  uma  risada  de  vez  em  quando,  quando vê  necessidade.  Quando  acha  que  aparece  a necessidade  de  dar  risada,  ela  pára  e  fica  pensando,  pensando  e  depois  pergunta:  nesse  caso,  o  compadre  acha  que  tem  necessidade  de  dar risada?  Se o compadre achar, ela pergunta: vosmecê garante?  Se  ele  garantir,  ela  então  dá  risada,  mas  com  muita  educação,  a  mão  em  cima da boca  e  sem barulho  demais.  Tem  outra jia,  por  nome  Estêves  Jaques,  que  é  uma  jia  doutora  e  fica  com  muita  pose  e dando conselho às outras e fazendo propaganda, mas não  vale nada, porque só gosta mesmo de dinheiro e tomar conhaques  e fazer cara de santa e pimenta no eu dos outros é refresco. É um  carreirão de jias  que só vendo, com Roque Pedrosa na frente, que  nem um  comandante. Podia-se  dar uma  ordem unida nessas jias,  mas  só  que Estêves  Jaques  faz muita  confusão,  falando mal  dos  amigos  com  a mulher  e dizendo que  ele  sim é que  é bom  e  sem  defeito  e  contando tudo  que  os  amigos  contam  à mulher  e nisso  fazendo cada pelossinal  da pega,  até que  fica tudo num batebôca  danado,  fica  tudo  como  um  batuque,  porque  é  cada  talagada  de  cada  boca  de  jia.  Tudo  sem  dente,  mas  com  um  eco  dentro.  Também   sofro   recordação,   como   quando   eu   comi   em   São  Cristóvão,  na  casa  de  um  udenista  que  tem  lá,  muito  rico,  que  porém  é udenista e amigo do chefe, não  sei como, e gosta de dar  risada,  como  essa jia  Natércio.  Até  parece,  só  que  a jia  não  tem  bigode,  e aí não parece  tanto  assim. Primeiro:  a mesa  que nunca  eu  vi  igual,  de  pau  preto  duro,  talvez  gonçalo  alves,  muito  importante,  numa  varanda,  meia  varanda,  um  pedaço  dentro  de  casa outro pedaço fora, uns pés de árvore, uma cajarana e um oiti  e  um  abacateiro  muito  grande  e  mais  outras  para  dentro  do  quintal,  só  vendo  a  fresca  que  batia,  uma  fresca  mesmo,  se  pensava  em  dois  ganchos  de  rede  ali  para  dormir  ou  espichar,  uma  cidade  quieta  e  a  fresca  fazendo  barulho  como  chuva  nas  
folhas  das  árvores  e  lá  fora  tinha  sol,  mas  um  sol  que  só  escorregava  ladeira  abaixo  sem  ferir,  tocando  e  rebatendo  nas  pedras lisas, dobrando na igreja e acabando embaixo, numa praça  que tem  em  São Cristóvão que de lá se vê  a igreja em cima e da  igreja se vê  ela, como que se tivesse o mar lá, por  causo de tudo  ser  azul  em  riba  da  igreja  e  umas  ruas  velhas  que  desemboca,  sabendo-se  que  é velhas  por  ser  tortas  e  sem  largura  e  as  casas  uma  na  cara  da  outra  de janelão  em janelão  de  não  sei  quantas  partes  de  abrir,  e  o  sol  volta  ladeira  acima  e  fica  nisso,  e  lá  de  dentro  a  gente  pode  sentar  e  esticar  a  mão  para  quebrar  as  ro- dinhas das trepadeiras de chuchu nos dedos, ou então alisar como  se fosse para endireitar, parece umas molas e a gente vai puxando,  vai puxando, sem prestar muita atenção e esquece a vida, ou então  se lembra de uma vida verdadeira,  sentado, sentindo. Segundo: a  comida. O homem disse: hoje estamos aqui reunidos para comer,  graças a Deus, porisso vamos comer, graças a Deus, e se benzeu,  parecia   um   crente;  como   os   crentes  tem  parte   com   o   cão,  desconfiei,  além  disso  era  udenista;  mas  não  era  crente,  porque  não  cantou,  como  os  crentes  que  eu  ajudava  a jogar  pedra  em  Aracaju, com os cantos deles e escrito na parede do culto: se você  vem  em paz,  pode  entrar, mas  respeite  a religião  dos  outros,  e  a  gente tacava a pedra do mesmo jeito, já  se viu, porque crente não  dança,  não  brinca,  não  mija  e  quando  morre  não  apodrece,  fica  penando.  No  entretanto, não  era  crente. Bom,  estamos  aqui para  comer,  graças  a Deus,  e vamos  todo  mundo  comer,  sem pressa.  Quem  tem  o  que  fazer  não  faça  aqui,  porque,  deu  uma  hora  da  tarde,  a  gente  inicia  a  comer,  depois  desses  vermutes,  dessas  cangibrinas,  depois  dessas  catuabas,  dessas  jurubebas,   desses  alcatrãos,  dessas  meopatias,  depois  dessas  mundurebas,  e  dê  quantas  horas  dê  a  gente  só  paramos  de  comer  •quando  quiser,  graças a Deus,  e podemos  comer até quando der, graças a Deus,  para  isso tem comida aí, não  é? Tinha quatro empregadas, sendo  que duas de chapéu na  cabeça e avental branco  e umas bandejas,  que  tinha  de  segurar  de  duas  mãos, chega  estavam  pejadas  
mesmo. Terceiro: a comida mesmo, que veio primeiramente umas  curimãs  de  viveiro,  gordas,  com  banhas.  Veio  dois  tipos:  umas  curimãs assadas em folha, mas  assadas com mais  arte do que no  mato,  e  bem  espeladas.  Essas,  a  gordura  derreteu  e  soltou  nas  folhas, de formas que a folha já  rebrilhava mesmo e é necessário  emborcar as folhas em cima do prato, para não perder a gordura e  o  cheiro  e  a  carne  soltava  das  espinhas,  hum;  se  emborcava  no  pirão  branco  e tinha  ura  molho  dos  cozidos  dentro  do  óleo  com  pimentas   inteiras,  dos   que  engrossam  e  escurecem,  que  faz  bolhas,  no  meio  duns  temperos  verdes,  era bom  olhar  o  molho,  mexendo  devagar  com  a  colher.  A  outra  era  de  muqueca,  com  pirão  amarelo  e  essa  tinha  postas  dentro  da  terrina,  umas  partes  das postas mais escuras do que as outras e umas mais macias e se  podia pegar a parte do rabo e ir tirando a carne com cuidado, para  só  deixar  a  espinha  e  a  parte  do  rabo  e  aquilo  se  catava  com  facilidade e se despejava mais caldo no pirão e cada pedaço vinha  mais  macio.  Do  lado:  uns  pitus,  um  de  quarto,  no  meio  da  muqueca,  um  frito,  saído  do  rio,  na  manteiga  sem  sal, mas  com  sal  no  pitu,  na  manteiga  branca,  com  o  cheiro  que  se  cheirava.  Melhor  de  todos,  aqueles  pituzinhos  dos  miúdos  que  não  tinha  nem casca direito e que a gente ia comendo um e já  olhando outro,  para  escolher  o  que  vinha  seguinte.  Antes,  ostras  de  mergulho,  como uns bolachãos,, essas possa  ser cruas ou escaldadas, sendo  de preferência as cruas, por  se prestar a não ter de botar no prato  como  uma  malassada,  mas  poder  comer  com  barulho  dentro  da  concha, e uns sururus de bolo na tigela, que se pode misturar com  o molho e jogar  na ostra e uns  aratus fritos catados, e as ostras a  gente despejando um tico de salgema, aquilo côr-de-gema de ôvo  com  dourado,  e  afogando  no  ardido,  é  bom  que  dá  uma  tesão  muito boa.  Comemos diversas, mas tinha mais,  só que essas não  comemos. Isso,  eu comendo e olhando as outras coisas. O  dono  disse, depois todo mundo pode  dormir na rede,  se tiver rede  que  chegue.  Quarto:  um  feijão  com  couve,  que  pusemos  farinha  e  misturamos,  misturamos  e  botemos  em  cima  uma  jabá  frita  e  cortada   miúda   e  juntemos   umas   mangas           espadas     e   umas  melencias. Tinha uma porca matada na hora, de molho pardo, uma  porca  sequinha  e  desengordurada  e  quase  toda  desossada,  só  ficando osso  onde era de conveniência ficar pelo  gosto que dá, e  essa porca também foi. E tinha uma manta de carne do sol, que foi  comida por último, porque o homem disse: depois de carne do sol  tudo  fica  sem graça, tem  que  deixar por  derradeiro,  e  é verdade.  Essa se pode comer até crua, como presunto. Mas não vinha crua,  vinha  assada. Uma  manta  de  carne  do  sol, um  lado  gordura um  lado maciça, que essa também foi, em riba de um pirão de leite, no  ponto,  sem encaroçar nem anguzar, hum. A manta era cortada na  frente  de  todos  que  esperava  espiando  e  não  se  negava  nada,  levantando  com  um  garfão  grande  de  dois  dentes  e  tirando  as  lascas com a faca ligeirinho e derrubando por cima do pirão, com  caldo. No  meio, um aqui outro ali, uns pedacinhos de cebola que  quase não  se  conhecia,  atorresmados  e pretos,  mas  dando  muita  felicidade no  caldo.  O  caldo  era  um  caldo  devagar,  grosso,  que  escorre, escorre, hum. Aí todo mundo calado, comendo no calado  e  dando  arrotos;  quando  tinha  que  dar,  olhava  para  o  lado  e  desapertava o cinto e se rescostava e de vez em quando tem umas  paradas   para   suspirar,  todo   mundo   desencilhado   e   ancho   e  olhando  para  cima  sem  ver  nada  e  tirando  uma  talisquinha  de  coisa do meio de dois dentes. No  calado, hum. Quarto: uns  cajus  na  calda,  a  calda  que  parecia  um  vinho  com  cajus  dentro  e  os  cajus que parecia umas massas feitas naquele jeito  de propósito, e  então parte-se o queijo de cabra que vem ardido e com um cheiro  que ninguém se engana e por primeiro se bota o queijo no prato e  por  cima  disso  os  cajus,  com  bem  calda.  E  come-se  os  cajus.  Comemos  os  cajus  e  o  dono  ficou também  chupando pitomba  e  cuspindo  os  caroços  no  quintal.  Essa  terra  é  tão  boa,  disse  o  homem,  que  esses  caroços tudo  nascem  depois,  fica cheio de pé  de pitomba  isso  aqui. Eu  fiquei  agradando mais  uns  cajus.  E  eu  tenho  sangue  bom,  disse  o  dono,  basta  cuspir  uns  caroços  ou  jogar  assim como marraio, que nasce logo, e nós demos para uma  prosa  mole  enquanto  moía  o  café  e  veio  o  café  e  fiquemos.  O  dono  disse:  graças  a  Deus,  e  aí  nós  dormimos  nas  redes  e  não  teve sonhos.       Agora,  esse padre,  quando todo mundo  acordou e eu estava  na janela,  olhando  a  rua  pela  venziana  e  fumando  um  cigarro  e  sentindo  uma  tonteira  que  eu  sempre  sinto  quando  fumo  o  primeiro  cigarro  de  manhã  e  ouvindo  os  ralos  ralando  milho  de  cuscus, esse padre chega e diz que a gente espere, porque a gente  vai esperar o recado que ele mandou para umas certas pessoas, ou  senão  a  gente  vai  em  marcha  para  Ilha  das  Flores,  ou  qualquer  coisa, aí o padre se aporrinha e dá uma porção de nomes e diz que  ninguém vai sair dali nem nada até chegar as pessoas  que vai dar  uma decisão naquele caso. Porque esse caso já  está com cheiro de  podre, diz o padre, e eu nem sei se vosmecês das duas uma: ou dá  um  fim  direto  nesse  cristão,  louvado  seja  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo, para  sempre seja louvado, ou então solta ele, diz o padre,  porque  não  sei mais  se  é possível  levar  ele para  a capital, essa  é  que   é   a  verdade.   Inda  mais,   diz   o  padre,   que  temos   aqui  trocidades,   dentes  arrancados,  violências,   e  os  tempos   estão  mudando e vosmecê cortou a cabeça dum tenente e não  sei como  é que isso vai  ser, inda  se  fosse um  cabo, qualquer coisa assim,  mas  como  é  que  se vai  cortar  a  cabeça  dum  superior mesmo  no  aceso, acho que é maluquice. Que desse umas porradas, ainda vá,  ou  arrancasse um  olho  na  disputa, uma  coisa  dessas,  quase  que  sem querer, acontece. Agora,  a cabeça não;  a cabeça se vai lá, se  olha o pescoço e se resolve cortar, é uma coisa quase parada, não  pode  ser. Mas nesse mesmo minuto  se senta na marquesa  e olha  para o lado do coisa e fica olhando mais e mais e aí se acalma.       — É isso mesmo. Tem muitas cabeças nesse mundo de meu  Deus.       —  O  tenente  me  chamou  de  corno,  seu padre.  E  era  ele  ou  eu.       —  É  isso  mesmo  —  diz  o  padre.  —  Devia  de  ter  cortado  mesmo. 
      E  se benzeu  e disse  que não precisava  dizer aquilo. É que a  situação mudou, diz o padre, não sei se vosmecê vai poder levar o  homem para Aracaju, porque lá está uma novidade de gente e uma  porção  de jornais  e  dizem  que  quando  vosmecê  chegar  vão  lhe  encher  o  couro  e  soltar  o  homem.  Não  acredito  que  Antunes  possa  lhe sustentar. Ah,  isso não,  se Antunes não me sustenta, o  que  é que me  sustenta? Não  sei, disse  o padre,  e enfiou as  duas  mãos pelo  meio  da batina,  com as pernas  escarranchadas e ficou  com  a  cabeça  pendurada.  Essa  terra,  diz  ele  depois  de  muito  tempo, já  foi uma  boa  terra,  porque  havia  mais  homens  e  quem  era homem não tinha de que temer. Hoje essa terra não vale mais  nada não vale quase mais nada, está uma frouxidão e um homem  não  sabe  de  quem  depende  e  querem  mudar  tudo  e  nunca  vai  adiantar.  Porque,  se  tiram  os  recursos  do  homem,  o  que  é  que  deixam com o homem? Nada.  Uma vida, possa  ser, e isso não  é  vida  de  homem,  é  um  enterro.  Não  sei,  não  sei,  diz  o  padre,  sacudindo  a  cabeça  e  fazendo  um  bico  com  a  boca.  Por  que  vosmecê  não  some?  Eu  sumir,  eu  sumir?  Como  que  eu  posso  sumir,  se  primeiro  eu  sou  eu  e  fico  aí  me  vendo  sempre,  não  posso  sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca  que eu  posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca. Bom, isso é,  diz o padre.  Sempre quem pode sumir é os outros, a gente nunca.  An-bem,  depois  não  sei  quantos  homens  tem  em  Aracaju  que  possa me parar assim. Depois, o chefe me mandou buscar isso aí  e eu fui, peguei, truxe, amansei, e vou levar porque, mesmo que o  chefe agora não possa me sustentar, eu levei o homem e chego lá  entrego.  É  preciso  entregar  o  bicho.  Entrego  e  digo:  ordem  cumprida. Depois, o resto  se agüenta-se como fôr, mas  a entrega  já  foi  feita,  não  sou  homem  de  parar  no  meio.  Se  fôr  assim  mesmo  como  se diz que  é, espero as  outras ordens, porque  essa  está dada e nem ele que viesse aqui e me pedisse para não levar eu  não deixava de não levar, porque possa ser que ele esteja somente  querendo me livrar de encrenca e eu não tenho medo de encrenca,  eu levo esse lixo de qualquer jeito,  chego lá e entrego. Nem  que  
eu estupore. Quero ver  esse bom  em Aracaju  que me  diz que eu  não posso,  porque  eu  sou  Getúlio  Santos Bezerra  e igual  a mim  ainda não  nasceu.  Eu  sou  Getúlio  Santos Bezerra  e meu nome  é  um  verso  e meu  avô  era brabo  e todo  mundo  na  minha  raça  era  brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no sertão daqui  não  tem  ninguém  mais  brabo  do  que  eu, todas  as  coisas  eu  sou  melhor.  Pode  vim.  Getúlio  Santos  Bezerra  eu  me  chamo,  e  enquanto um  carneiro  qualquer um  mata  com uma  mão  de pilão  na testa  eu dou um murro na testa  e mato  esse carneiro ou outro  que tenha  e mato  qualquer vivente  e esses  ferros  que  eu carrego  eu  manejo.  Corro,  berro,  atiro  melhor  e  sangro  melhor  e  bebo  melhor  e  luto  melhor  e  brigo  melhor  e  bato  melhor  e  tenho  quatorze balas  no  corpo  e  corto  cabeça  e  mato  qualquer  coisa  e  ninguém me mata. E não tenho medo de alma, não tenho medo de  papafigo,  não  tenho  medo  de  lobisomem,  não  tenho  medo  de  escuridão, não  tenho  medo  de  inferno, não  tenho  medo  de zorra  de  peste  nenhuma.  E  não  escuto  liberdade,  não  converso  fiado,  não  falo de mulher, não devo favor e não gosto que ninguém me  pegue.  O  senhor  já  ouviu  falar  de  meu  nome,  Getúlio  Santos  Bezerra, sou eu mesmo e quando eu dou risada pode todo mundo  tremer e quando eu franzo a testa pode todo mundo tremer e se eu  bater  o pé  no  chão pode  todo  mundo  correr  e  se  eu  assoprar na  cara  de  um  pode  se  encomendar.  Sou  curado  de  cobra  e  passo  fomer  passo  frio  e  passo  qualquer  coisa  e  não  pio  e  se  me  cortarem  eu  não  pio.  Durmo  no  chão,  durmo  em  cama  de  vara,  durmo  em cama de  couro,  ou  então não  durmo  e quem primeiro  aparecer primeiro  quem atira sou eu e quando atiro não  atiro nas  pernas, atiro na cara ou atiro nos peitos e os buracos que eu faço  às vezes é um em cima do outro e tem uma coisa: em Sergipe todo  não  tem  melhor  do  que  eu  e  se  eu  lhe  digo  que  não  tem  um  melhor  do  que  eu  em  Sergipe,  não  vejo  esse  bom,  estou  lhe  dizendo que não tem melhor no  mundo, porque  essa é uma terra  macha e eu sou o macho dessa terra.  Se fôr para  esperar, espero,  
mas  esperar não  é  ficar.  E  eu  vou  levar  esse  traste  arrastado  ou  espetado, naquela hudso até Aracaju, e chegando lá apresento ele:  veio  de  Paulo  Afonso  até  aqui  e  está  com  essa boca  em petição  porque deu cupim no caminho e comeu dos dentes da frente. E se  cortei a cabeça do tenente,  foi bem  cortada. Mas não vou  dizer a  todo mundo que eu cortei a cabeça do tenente. Só digo ao chefe e  calo  a  boca  e  cruzo  os  braços  e  boto  o  olho  no  vento.  E  quem  quiser que bote o olho no meu. E pronto. E se ninguém quiser ir  comigo,  eu  vou  só,  aviu  Amaro?  É,  disse  o  padre,  eu  não  sou  esses machos todo.       ao  posso  dizer  que  eu  gosto  de  estar  aqui  no  sobrado  do  padre,  sem fazer nada e todo dia ouvindo os dobres desde cedo e  sem  vontade  nem  de  raspar  a  barba.  O  padre  vem  aqui  e  conta  umas  histórias.  Também trouxe  um jogo  de  dominó  que  eu  fico  jogando  com Amaro até fartar, depois jogamos  damas e fartamos  também e paramos de novo. Chamei o padre e disse a ele: espero  até  amanhã.  Não  chegando  ninguém  até  amanhã  vou  pisar  na  poeira,  não  tem  quem  me  segure.  Amaro  diz  que,  repetindo  ele  todas as mexidas que eu der nas minhas pedras de dama, eu tomo  um  porco  completo,  fico todo  entalado. Vemos  isso,  começando  pelos  cantos,  que  é  a  melhor  forma.  De  fato,  não  comendo  nenhuma,  entala.  Nunca  que  eu  vou  acertar  a  fazer  isso.  Não  tenho paciência para ficar estudando essas pedras nesse tabuleiro,  esquenta  a  cabeça,  não  tem  propósito.  Amaro  não,  fica  falando  nas damas como se fosse coisa. Também não jogo  sem assoprar e  Amaro   joga     sem    assoprar.   N ão     entendo    isso.   Melhor     é  assoprando, porque dá mais graça. Filho da mãe, joga  dama como  galo de briga de corrida. Vai deixando, vai deixando e lepe! —  à  traição. Dá porco e diz que vale 25 pontos cada porco de uma, 30  pontos cada porco de três, nunca vi essas regras. Dominó mesma  coisa,  uma  porção  de  idéias  com  as  bombas,  cada  qual  valendo  isso ou aquilo. Assim não pode, não acredito nesses jogos.  Podia  experimentar voltar na fazenda de Nestor, mas possa  ser que vá e  arraste  a  mala,  aquilo  está uma  guerra,  com  toda  certeza.  Lá  era  melhor,  pelo  menos  tinha  os  bois  e  as  jias  para  a  gente  ficar  falando  mal  e  Amaro   ficava  cortando  as  tiriricas  dele,  sem  apoquentar. Aqui me procura, precisa companhia, uma peste. Vez  em quando, espio pelas venezianas e tem uns meninos empinando  arraia,  que  é  setembro  e  tempo  de  arraia  mais  ou  menos,  como  tem um tempo de pinhão  e um tempo de ferrinho e um tempo de  marraio,  não  sei  como  é  que  esses  tempos  aparece,  mas  tem  tempo  de  tudo.  Umas  arraias  bestas,  sem  nada,  também  nesta  cidade não deve ter nem cordão. Eu mesmo nunca empinei arraia,  não  acertava,  mas  gostava  de  quebrar  pinhão  dos  outros  e  não  gostava que quebrasse os meus. Uns meninos magros, que nunca  viram  outro  lugar  e depois vão  embora e  some tudo  e fica  só  as  moças vitalinas, sem homem. O sujeito aí vai morar em Aracaju e  diz: eu nasci em Japoatão. Homem creia. E vai nascendo mesmo,  cada dia nasce mais gente. Tem gente que nasce até em Muribeca,  hem Amaro? An-bem. Esse padre é muito nervoso, precisava era  de umas  freiras aqui para ferrar. Tu acha que freira o padre ferra,  Amaro?  Possa  ser  que  nem  tenha  nada,  tem  quem  diga.  Fica  cantando       Capitão Moreira César        Dezoito guerras venceu        A terceira não interou        No Belo Monte morreu.       Uma voz grossa, e bate palmas quando canta.       O alfere Vanderlei        É bicho de opinião  
Quando foi para  Canudo Foi em frente ao batalhão. Os urubus de Canudo  Escreveu ao Presidente  Que já tão de bico fino  De comer carne de gente. Os urubus de Canudo  Escreveu pra Capital  Que já tão de bico fino  De comer oficial. Alfere Joaquim Teles  Por ser bicho de arrelia  Quando foi para Canudo  Baixou logo à enfermaria. A fraqueza do Governo  Passou por Cocorobó  Depois que passou por lá  O Governo ficou só. Alfere Luiz Peçanha  Era cabra bem valente  Quando chegou em Canudo  Lhe atacou dor de dente. Alfere Martim Francisco  Queria vencer a guerra  Quando chegou em Canudo  Findou em baixo da terra. Alfere Manuel da Costa  

      Era muito valentão        Quando chegou em        Canudo Fugiu pra Japoatão.       Isso ele canta sem mudar a voz e quebra a música com umas  risadas,  como  quando  subiu  aqui  outra  vez  e  explicou  quantas  pessoas tinham morrido em Canudo e como socavam pregos nas  espingardas para  fazer de bala. Pegava-se o prego, disse o padre,  um prego enferrujado e se pegava esse prego depois de socar bem  polvra  e  embuchava  na  espingarda  e  um  prego  desses,  todo  frouxo  no  cano,  fazia  um  estrago  desgraçado  no  recebente  e  quando  não  morria  da  pregada  morria  da  doença  que  dava  a  ferruge do prego.  Quer  dizer que morreu  muito macho  de prego  ali.       —  A  mortandade foi tão grande —  disse o padre —  que os  urubus só comia altas patentes.       E deu uma risada e foi descendo. E então eu fico aqui como  uma  vaca,  fico  eu  como  não  sei  quê,  esperando  que  venha  esse  povo  trazer  uma  decisão para  eu  me  mexer,  que já  não  agüento  mesmo. Bom, amanhã me  solto no mundo, não  fico aqui de jeito  nenhum.  De   onde  vem  esses  homens,   em  que  guritas  vem  amuntados, que melindrismo vão  amostrar? Não  entendo direito.  O padre  também vem  ensinar umas  rezas  e eu  e Amaro  ficamos  aprendendo  as  rezas  e  o  vivente  quer  se  meter  por  vezes.  Na  primeira vez, tencionei amarrar a mordaça nele novamente, porque  receei que começasse a gritar por adjutório, mas o padre disse que  podia  gritar  à  vontade,  que  dali  ninguém  tinha  condição  de  escutar. Mas de qualquer forma eu disse a ele, bem explicado, eu  disse:  olhe,  peste,  se  gritar,  eu  mando  tocar  o  sino  para  não  se  ouvir  o  barulho,  mando  tocar  um  toque  de  festa  e  na  mesma  batida  do  toque  acabo  de  lhe  arrancar  o  resto  dos  dentes,  que  é  para  deixar  de  ser besta.  E não  adianta olhar para  o padre,  eu já  estou  aqui  é  retado  mesmo,  socado  nesse  buraco  e  se  vosmecê  pensa  que  está  safo por  causa  dessa  conversa toda  que vosmecê  
anda ouvindo que vão lhe soltar, fique sabendo que o seu destino  está  escrito  e  vosmecê  vai  comigo  para  Aracaju  para  eu  lhe  entregar  e  lhe  fechar  no  depósito  e  lá  vosmecê  vai  sofrer  umas  duas dúzias de enrabaçãos, que os presos de lá só vive tudo seco,  está entendendo, e vosmecê já viu que eu torei a cabeça do tenente  e não  estou  olhando para  torar  a  cabeça  de  quem mais  aparecer,  com divisa ou sem divisa, inclusive a sua eu pelo menos arranjava  o que fazer, porque aparava aqui, aparava ali e fazia uma bolinha e  ia jogar  pirulêtas  com Amaro,  ou  então dava para  esses meninos  fazer  uma  linha  lá  em  baixo.  O  padre  diz  que  é  isso,  sargento,  estamos  destemperados,  e  eu  digo  é  isso  mesmo,  padre,  é  isso  mesmo  e  esse troço já  está me  dando uma  ingrizilha que  eu não  agüento, nunca tive tanta perturbação, não gosto dele. É como que  me  dá  uma  vontade  de  chorar,  mas  é  de  pena  de  mim.  Fico  assuntando umas coisas para fazer nele: botar um mamãe-evém-aí  na boca dele, com cadeado, abrir, jogar uma brasa e fechar e olhar  fumegar.  Vou  lhe  dizer,  uma  pessoa  pode  ficar  maluco,  numa  missão que não ata nem desata, e esses misteriosismos todos, não  pode isso, não pode aquilo, por que não pode? Por que não pode,  por  que  não  pode?  Tudo  não  pode,  tem  sempre  algum  para  informar que não pode. Pois pode. O que é que eu não posso, lhe  pergunto  isso,  ora bosta.  Mas  de vez  em quando  o padre  me  dá  um  esbregue, cada esbregue grosso que eu tenho de calar o bico,  porque  o  padre  também  carrega  aquela  perigosa  de  dois  canos  para  lá  e para  cá  e  tem  cara  de  quem  sabe  apontar  a  bichinha  e  mais tem cara de que se apontar atira mesmo e eu não quero matar  um  padre,  dá  atraso.  Mas  é  porque,  nessas  horas  que  não  tem  nada  para  fazer,  nessas  horas  vem  uma  vontade  de  arreliar  o  alguém  e  quanto  mais  ele  não  faz  nada,  mais  dá  vontade  de  arreliar e puxar e dar porrada, é isso mesmo. Agora, o padre vem  e  ensina  as rezas  e  faz pelossinais  e  se  ajoelha, de maneiras  que  nós também se ajoelhamos e rezamos e o coisa é quem mais reza  e  durante  o  tempo  todo  que  estamos  rezando  me  dá  vontade  de  arreliar ele, me dá sua mão aí para eu assoar o meu nariz que não  
estou  com vontade  de  sujar  a  minha,  mas  não  digo  nada  e  ficamos ali olhando para  cima e puxando umas rezas.  Também o  coisa  é  o  mais  necessitado  de  rezas,  porque  não  deve  andar  sastifeito da vida, do jeito  que vai, porque não vai bem, está mais  magro  e  amofinado  e  não  quer  mais  fazer  a  barba.  A  gengiva  sarou bem  e principiou  a murchar,  outro dia levantei os beiços  e  olhei. Não  ficou bem  sem os dentes, a boca parece uma flor para  dentro.  Está  uma  boca  de  fiofó   perfeita  e  quando  fala  sai,  sai  assobiada.  Fica  interessante.  Também  não  tem  tomado  banho,  deve  estar  cheio  de  lêndias na  barba  e  fede bastante.  Bom,  cada  qual vive como quer.       De qualquer forma, repito para o padre, de qualquer forma eu  não  fico mais  aqui  e  digo  isso  também  a Amaro,  que  disse  que  com  o  hudso  escondido  sem poder  esquentar não  garante  e  que  não sabe se a gasolina das latas de trás está secando e que naquela  terra não tem onde comprar nem  cem réis  de gasolina e que uma  porção    de   choramingação,   Amaro          sempre   foi   disso.   N ão  interessa,  se  aquela  estrovenga  quebrar,  a  gente  largamos  ela no  meio da rodagem e vamos andando mesmo, possa  ser até melhor.  Porque  carro  não  tem  sapato,  para  a  gente  colar  o  calcanhar  na  frente  e  o  seguidor  pensar  que  a  gente  está  indo  para  o  lado  contrário que  está indo mesmo, não  é isso?  Todos  casos, vamos  mesmo,  não  acredito  que  ninguém  esteja  atrás  da  gente,  mesmo  porque  não  acredito  que Nestor  vá  contar  quem  cortou  a  cabeça  do  tenente,  nem  acredito  que  tenha  ninguém  vivo  por  lá.  Sei  lá,  não  sei de nada,  mas  aqui não  fico mais  e  amanhã cedo  eu vou,  antes do sol levantar. Mas o padre vem e me diz que amanhã não  pode  ser, porque recebeu recado  que os homens  chegam amanhã  mesmo para conversar, de forma que convém ficar. Anbem, fico,  mas  só  até  amanhã,  depois  eu  vou,  não  sei  conversar  direito  mesmo e só devo sastifação a uma pessoa, graças a Deus, e dessa  pessoa nada ouvi até agora, a não ser o que ficam me dizendo, só  que  eu não  emprenho pelos  ouvidos.  Tenho que ver,  ali, pronto.  Padre,  quês  homens  são  esses?  Não  sei,  disse  o  padre,  são  
graúdos, eu acho. São graúdos. Bem, primeiro é Deus nas alturas.  Segundo, não  sei bem.  Quando  eu  era rapazinho,  era  o  dono  de  um vapor  de algodão que tinha.  Quando  eu era bem menino,  era  um  moendeiro  que  tinha.  Não  sei  direito,  essas  coisas  dão  uma  confusão. O padre disse você não tinha nada de cortar a cabeça do  tenente,  agora  você  é  desertor  e  não  tem  muito jeito  para  você.  Ora, estou estranhando isso, nunca vi tanta besteira por  causa de  uma  merda  duma  cabeça  de  tenente  cortada.  Nem  que  fosse  patente  mesmo,  que  ninguém  anda  respeitando  galão  mais.  Foi,  foi, pronto. O negócio é ser homem, foi, pronto. O tenente está no  céu, seu padre, pronto, deve estar com umas asas e tocando viola  e  melhor  do  que  o  resto  daqui  de  baixo.  Talvez  seja  o  padre,  parece  de  ser um  padre  importante.  Talvez  seja todos  os padres,  depois de Deus.  Sei não. Tem Cristiano Machado e o Brigadeiro  e Getúlio Vargas.  O Governador. Não, tem as amizades. Não  sei  como é que isso está disposto. Tinha vontade de saber um pouco,  possa  ser que Amaro  sabe, mas não vou perguntar  a ele, porque  não quero dar parte de ignorante. Campe-se, se eu fôr pensar, não  vou entender mesmo, de maneiras que o mundo é assim: é o chefe  e sou eu. Quer dizer, existe outras pessoas, mas não  são pessoas  para mim, porque estão fora. Não  sei. Hum. Quer dizer, eu estou  aqui.  Sou  eu.  Para  eu  ser  eu  direito,  tem  que  ser  com  o  chefe,  porque  senão eu  era outra coisa, mas  eu  sou  eu  e não posso  ser  outra coisa. Estou ficando velho, devo ter mais de trinta. Devo ter  mais  de  quarenta,  possa  ser,  e  reparei  uns  cabelos  brancos  na  barba já  tem muito tempo. Não  posso  ser outra coisa, quer dizer  que eu tenho de fazer as coisas que eu faço direito, porque  senão  como  é  que  vai  ser?  O  que  é  que  eu  vou  ser? Não  gosto  dessa  conversa  desses  homens  vir  aqui  conversar.  Se  o  chefe  vem,  bom.  Se não vem, não  sei. Eu  sou sargento da Polícia Militar do  Estado de  Sergipe. Não  sou nada,  eu sou é Getúlio. Bem que eu  queria  ver  o  chefe  agora,  porque  sozinho  me  canso,  tenho  que  pensar,  não  entendo  as  coisas  direito.  Sou  sargento  da  Polícia  Militar  do  Estado  de  Sergipe. O  que  é  isso?  Fico  espiando  aqui  essa dobra de caqui da gola da farda me  espetando o queixo. Eu  não sou é nada. Gosto de comer, dormir e fazer as coisas.       O que eu não  entendo eu não gosto, me canso. Chegasse lá,  sentava, historiava e esperava a decisão. Era muito melhor. Assim  como  está,  não  sei. Não  gosto  que  o  mundo  mude,  me  dá  uma  agonia, fico sem saber o que fazer. É porisso  que eu só posso ter  de levar esse traste para Aracaju e entregar. Tem que ser. Depois  resolvo  as  outras  coisas  e  tal.  Não  sei  se  esse  povo  é  da  Bota  Amarela,  se querem me  acertar, me  dar um  chá da meia noite  aí,  se são de confiança. Essa Bota Amarela faz os serviços ligeiro. O  homem  está  na  porta,  com  seu  pijama  e  seu  sossego,  sentado  numa  cadeira  de  vime,  chega  o  pistoleiro:  boa-noite,  desculpe  o  incômodo, que horas  são? E aí, por baixo do subaco mesmo, por  dentro do paletó, olhando para o outro lado, mete duas no homem  e  vai  embora  no  mesmo  pé.  Não  gosto  deles,  recebem  dinheiro  para fazer isso, não acho direito. Todos casos, quando os homens  chegar, não  conheço ninguém  e  seguro  a mão  debaixo  da mesa,  com um  negócio  apontado por  baixo  mesmo para  a  queixada  de  um.   Se  embarcar,  não  embarco  só,  e  não  tenho  vontade  de  embarcar agora. Preciso  avisar a Amaro.  Pode  ser uma  fuzilaria.  Quer ver que o padre me empresta aquela de dois.       Esse  grande  careca, esse  eu já  vi, uma  vez  quando mataram  Arnaldo  na  feirinha de Natal  e tivemos um  grande movimento  e  ele estava no meio do bolo da Chefatura, dizendo: ele foi levantar  o  copo  de  cerveja  e  quando  levantou  o  copo  de  cerveja,  foi  só  dois tiros, um  em cima do outro. Vão  dizer que é Mário Barreto,  vão dizer que é Mário Barreto. Eu que estou sabendo que não foi  Mário  Barreto,  que  estou  sabendo  quem  foi  mesmo  mas  não  estou com vontade  de dizer porque não  é para  dizer, fico calado,  olhando ele. Gosta de ficar esfregando as mãos e tem um dente de  ouro,  quer dizer, meio  dente de ouro,  que brilha.  Os  outros  dois  eu não conheço, nunca vi: um que fala embolado e usa alpercata e  tem um bigode. Esse um eu não gosto da cara, visto que não pára  as vistas. Esse outro, que eu vou apontar o ferro para ele, não fala  
nada  e  está  com  as  costelas grossas,  deve ter  artilharia aí. Possa  ser  que possa  ser para  mim  esse  armamento, possa  ser  que  não  possa,  ele  que  não  se  coce,  é  melhor,  porque  se  cocar  daqui  mesmo dessa mesa que eu estou —  e eu estou nessa mesa muito  bem, com as pernas esticadas e os pés numa cadeira e estou como  quem   não   quer   nada,   até   pensando   na   vida,   estou   assim  esfregando  a  barriga  com  uma  mão  e  com  a  outra  segurando  o  velho  de  guerra  debaixo  da  túnica,  olhando  para  o  outro  lado  e  estou muito  como  que  desprecatado para  quem me  olha  assim  e  nem ponho as vistas no calado, que é ele que eu atiro por primeiro  tendo  necessidade,  e nem  vou  dando  nas  parenças  e  até  dá uma  vontade  de  tomar  umas  coisas,  dar  umas  risadas,  está  um  dia  fresco  e  bom  e  nem  parece  que  existe  alguma  coisa,  mas  pois  daqui  mesmo  onde  eu  estou  só  mexendo  o  fura-bôlo  com  essa  cara  de  tacho,  eu  abro  um  rombo  nessa  mesa  direto  no  quengo  desse. Parece até que eu estou preferindo pensar em acertar ele do  que ouvir a conversa. É isso mesmo, meu  sangue não  foi com o  sangue  dele.  Me  abria-me  a  túnica,  mas  isso  é  o  de  menos,  remenda-se.  Bom,  esse  careca  é  o  que  fala,  mas  o  de  bigode  também  quer  falar e não pode  muito, porque  se  engasga na  fala,  como  é  que  um  bicho  desses  arranja  um  anel  de  doutor.  Essas  alturas,   eu   digo,   essas   alturas   Sergipe   inteiro  já   sabe   que  vosmecês estão aqui e que eu estou aqui. E já  estou adivinhando o  que o careca vai responder. Me dá uma agonia ver o de bigode se  remexendo  na  cadeira.  Fico  com  vontade  de  mandar  ele  parar  quieto,  mas  não  posso,  tenho  que  me  reconhecer.  O  senhor,  sargento, matou o tenente e estrompou o destacamento. Ah-hum,  ah-hum. Cortou a cabeça do tenente e sacudiu na ponta da corda.  Pereré-pereré.  Isso  não  é  a  lei  da  selva.  Bonito.  O  senhor,  sargento,   fez   uma   porção      de   coisas.   Pereré-pereré.   Estou  escutando,  parece  minha  mãe  falando,  quando  ela  falava.  Fiz  a  minha  obrigação, não  é por  ser tenente  que me  chama de  corno,  demais era ele ou eu. Demais, não foi eu que cortou a cabeça, foi  um  cabra. Que cabra? Ah,  esse eu não me lembro, tinha bastante  
poeira,  estava uma  dificuldade para  enxergar até os pés  da  gente  mesmo.  Eu  nunca  andei  matando  ninguém  assim,  foi  um  cabra  safado,  onde já  se  viu  cortar  a  cabeça  dum  tenente  numa  sexta- feira, não  fica bem.  Hum.  Tenho que passar  os  olhos no  calado,  que pode  estar  se mexendo,  mas  traz  as  duas  mãos  em  cima  da  mesa e é melhor. O doido se levantou: sargento, olhe sargento, o  poblema  é  que  foi  um  engano,  sargento,  um  engano  que  foi  mandar o senhor buscar o homem em Paulo Afonso, agora temos  complicação. Quem disse isso, foi o chefe? Foi o chefe que disse,  não tem mais  condição de cobertura, a coisa mudou. Foi  o chefe  que  mandou  o  recado?  Foi,  foi.  E  por  que  não  veio  ele?  Ah,  responda  essa. Não  veio  porque  não  quer  deixar ninguém  saber  que  foi  mandado  dele.  Vem  força  federal,  vem  tudo.  Então  o  senhor  solta  o  homem  e  some  e  pronto.  E  o  resto  se  ajeita  em  Aracaju.       — Não posso  sumir. Quem pode  sumir é os outros, como é  que  eu posso  sumir,  se  eu  sou  eu? Do  mais,  se vosmecês  estão  querendo  que  eu  solte  o  homem  e  suma,  é  porque  depois  ele  e  vosmecês  vão  atrás  de  mim,  me  arrancar  nos  infernos  para  me  botar a culpa do negócio.       — O senhor tem a minha palavra de honra.       Pode  ficar  com  sua  palavra,  eu  só  tenho  o  que  é  meu,  e  é  pouco.  Faço  o  seguinte: o  seguinte é o  seguinte: eu resolvo  isso  hoje.  Vosmecês  vão,  eu  fico  e  converso  com  o  padre  e  depois  solto o homem. Mas aqui, com vosmecês aqui, não solto, preciso  de garantia. O calado se mexeu e eu disse: meu santo, eu já vi que  vosmecê traz aí em baixo um armamento, mas me faça o favor de  me permitir que eu lhe diga uma coisinha, uma coisinhazinha: em  primeiro  lugar,  nunca  senti medo  de  macho  nenhum  e maior  do  que  vosmecê já  vi  diversos,  mas  todos  uma  balinha  do  mesmo  tamanho dá conta, basta ser bem encaixada; em segundo lugar, me  faça  o  favor  de  reparar  que  esta  minha  mão  que  está  aqui  em  baixo não está cocando as minhas partes, mas está em cima de um  chimite,  pode  crer,  um  chimite  bom  que  faz  gosto  e  que  se  
vosmecê faz questão eu mostro a vosmecê; em terço lugar, Amaro  está ali com uma  coisa atrás, bem por riba do balaústre da igreja,  não está Amaro, hem Amaro? Nem precisa olhar para trás, é uma  beleza  aquilo,  foi um  amigo meu  que  emprestou  a  ele,  ele  gosta  muito, não  gosta, Amaro?  Pode  crer que  gosta  e vosmecê já  viu  um  gatilho  daquilo  como  é  manso  de puxar,  por  causo  que  tem  uma mola,  a cuja mola basta  a gente roçar  o dedo que ela solta e  soltando  bate  os  caos  na  espoleta  e  batendo  na  espoleta  dá  uns  papocos  e  dando  uns  papocos  espalha  um  chuvisquinho  quente  danado,  é  só  vosmecê  pedir.  Sargento, vamos  ter  calma, pereré- pereré. Mas  eu estou calmo. Vosmecês me contaram que o chefe  não  quer  mais  saber  disso,  creio,  creio.  Assim  sendo,  eu posso  soltar  o  homem,  mas  com  vosmecês  aqui  não  solto,  de  formas  que  espero  vosmecês  ir  saindo,  na  mesma  paz  que  entraram  e  depois que vosmecês sair eu solto o homem e vou embora.       Não  sei direito como é que eu falei assim, mas de repente eu  estava  me  sentindo  muito  bom  e  o  que  é  mais  que  pode  me  acontecer. O  que pode  me  acontecer é  eu morrer,  daí para  baixo  não  pode  mais  nada,  e  se  eu  morrer  vou  com  diversos,  vai  ser  uma caravana, e quando os homens desistiram de mais conversar  e quando eu me lembrei do recado de Elevaldo e quando eu vi que  eles  foram  e  eu tinha  de  dar uma  decisão,  aí não  sei. Não  gosto  dessa  folia  de  recado,  não  é  meu  jeito.  Mas  possa  ser  que  é  verdade tudo, e então eu estou só no mundo, eu mais Amaro.       Agora veja, por Amaro eu respondo não, respondo por mim.  Que  foi que ele me  disse? Me  disse, me traga  esse homem  aqui,  pelo menos meio inteiro. Vai somente com quatro dentes faltando,  isso  ele bota  depois uns  pustícios,  e menos um pouco  de banha,  que  até  nem  é  bom  por  causo  do  calor.  Agora,  se  eu  tomo  o  recado  e não  levo o homem,  fico sem graça e possa  ser que nem  seja  verdade.  Se  eu  levo,  pelo  menos  vejo  com  meus  olhos,  e  morrer  assim ou assado é a mesma  coisa. Mas  o chefe pode não  gostar. Não sei. Não gosto.       Levo ou não levo, é isso. Talvez seja melhor sofrer a sorte da  gente  de  qualquer jeito,  porque  deve  estar  escrito.  Ou  é  melhor  brigar  com tudo e acabar com tudo. Morrer é como que dormir e  dormindo  é  quando  a  gente  termina  as  consumições,  porisso  é  que a gente sempre quer dormir. Só que dormir pode  dar sonhos  e aí fica tudo no  mesmo. Porisso  é que é melhor morrer, porque  não tem sonhos, quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque  a vida é comprida demais e tem desastres. Quem agüenta a velhice  que  vai  chegando,  os  espotismos  e  as  ordens  falsas,  a  dor  de  corno,  as  demoras  em  tudo,  as  coisas  que  não  se  entende  e  a  ingratidão, quando a gente não merece, se a gente mesmo pode se  despachar,  até  com  uma  faca?  Quem  é  que  agüenta  esse  peso,  nessa  vida  que  só  dá  suor  e  briga?  Quem  agüenta  é  quem  tem  medo da morte, porque de lá nenhum viajante voltou e isso é que  enfraquece  a  vontade  de  morrer.  E  aí  a  gente  vai  suportando  as  coisas  ruins,  só  para  não  experimentar  outras,  que  a  gente  não  conhece ainda. E é pensando  que a gente fica frouxo e a vontade  de  brigar  se  amarela  quando  se  assunta  nisso,  e  o  que  a  gente  resolveu  fazer, quando a gente se lembra disso  se desvia e acaba  não  se fazendo nada. Padre,  ô reverêndio,  em suas rezas,  lembre  dos meus pecados.       Faço o seguinte, eu levo, sim. Nunca fui homem de falhar no  meio, eu levo, sim. Eu  sei que o  senhor seu padre  dá preferência  que eu largue esse troço aí, mas não largo e pode dizer que foi eu  que disse e pode dizer que foi até na violência que eu desobedeci  essas  ordens,  mas  eu  levo  o  homem,  nem  que  me  deixe  os  pedaços  pelai,   qualquer  coisa.  Ultimo   caso,  me   arrumo  por  qualquer  caminho,  vou  e  volto,  faço  um  camin-sem-fim,  saio  daqui,  arrodeio por  Muribeca,  subo para  Malhada  dos  Bois,  me  bato  até  Gararu, volto  para  Amparo  de  São Francisco,  me  enfio  por  Aquidabã  e  Cumbe,  me  lasco  para  Feira  Nova  e  Divina  Pastôra  e  Santa Rosa  de Lima e Malhador  e Rosário  do  Catete e  Maruim e entro em Santo Amaro das Brotas e me despenco pelo  rio abaixo e quero ver ninguém me pegar, até que ninguém nunca  viu  sargento de canoa ou qualquer coisa e me paro na Barra  dos  
Coqueiros e quero ver ninguém me segurar, chego lá e me ajeito e  dou  um  fim  nessa  situação  e  nesses  lugares  todos  não  tem  prefeito nem delegado nem pretor que bote a mão em mim, muitos  deles não  tem  delegado nem prefeito,  que não  é nem  cidades, de  formas  que  eu vou.  Olhe,  se um  santo me  dissesse  quer morrer  velho  e  frouxo  ou  quer  morrer  assim  e  macho,  eu  posso  lhe  garantir  que  dizia  que  queria  morrer  macho,  não  vejo  graça  no  outro jeito.  E  de  mais  que já  estou  azuretado  •com isso  e  quero  parar.  E  demais  que  não  quero  viver  me  escondendo pelai  ou  ir  ser chofer em  São Paulo, nem  sei aonde é isso,  de maneiras  que  se  eu puder  meter  a mão naquela  água benta  e  fazer pelossinal  e  empacotar  meus  trens,  acho  que  tenho  uma  febre  quarta  de  aporrinhação, de vez em quando me dá e eu não agüento, pronto.  Deus me  livre que eu não  leve o coisa comigo e não  entregue, o  que  é  que  eu vou  ficar pensando  depois,  se já  tenho pouco  para  pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na minha cabeça e vai  tomando  conta  do  ôco  que  tem  lá  dentro?  Eu  lhe  agradeço  a  comida e a pousada  e as  cantigas e as prosas  e o trabalho. E lhe  agradeço  se  puder  emprestar,  que  talvez  nunca  nem  volte,  essa  bichinha a Amaro, que ele gostou e se dá bem com ela e faz pena  ele deixar, eu sei que o  senhor de onde tirou essa tira outras, um  padre  como  o  senhor.  Pela  mesma  porta  que  eu  entrei,  pela  mesma porta eu saio, esteja o senhor bem.       Tôdas  casas parece um prato  de comida, nem  que  seja papa  de  farinha.  Esse  hudso,  quando  encrencou por  não  ter  gasolina,  eu olhei bem ele e pensei que isso era um monarquismo de bicho,  porque necessitava que a gente botasse gasolina e as latas acabou  e  nem  bem  sei  aonde  nesse  mundo  direito  estamos.  Dizer  a  verdade,  sei, mas vejo que andar é o que se pode  fazer e o traste  abre  a  boca  e  diz  que  não  pode  andar.  E  eu  digo,  olhe  que  vosmecê   anda.   Senão  lhe  faço-lhe  as  piores   coisas,  não   se  
descompreenda.  Nem  fazia  nem  nada,  com  essa  canseira  e  a  túnica  eu  fui  largando,  que  me  pesava,  mal  carrego  a  arma  e  Amaro a dele, de fato gostou muito, só falta cheirar ela, aliás acho  que cheira, assim de noite, quando ninguém está espiando, dá uns  cheiros nela.  Que  lustra eu  sei, com a flanela que tirou  do  carro.  Eu  fiquei olhando  esse  carro, que  é novo  mas já  ficou velho  faz  muito  tempo,  eu  fiquei  olhando  ele  assim,  todo  frio.  Ficou  lá  morto. Amaro  ainda levantou a tampa  e espiou para  dentro, uma  ruma  de  partes  que  tinha  dentro,  tudo  parado,  até  os  hudsos  morre.  Então  o  que  fica para  Amaro  é a bichinha  de  dois  canos,  que ele alisa e lustra e cheira e quando encosta desafasta, põe  em  pé  com a coronha no  chão, pega  a espiar como quem  espia uma  filha.  Esse  Amaro  é  meu  irmão,  porque  só  tem  ele  no  mundo,  essas  alturas, posso  crer,  só tem  ele no  mundo  que  escuta o  que  eu  estou  dizendo,  possa  ser  que  só  tem  ele  no  mundo  que  não  acha  que  eu  estou  bobo  da  idéia,  até  mesmo  que  eu  estou  um  pouco  abestalhado  da  idéia  mesmo,  com  essas  léguas  todas  que  eu  tenho  comigo,  inda  mais  com  o  peste  de  arreio ,  só  posso  chamar isso de arreio, quase que só vive dependurado em mim e  fica  se  arrastando,  é mesmo  uma  fraqueza por  demasiado,  só  dá  para  política  de  prosa.  Então  eu  digo:  lhe  faço  as  piores  coisas,  aviu?  Nem  responde,  esse  acha  que  eu  estou  avariado  também,  deixe achar. Pois então: lhe penduro de cabeça para baixo num pé  de pau  e enfio  sua cabeça numa barrica  cheia de areia fina como  aquela do Morro de Areia de Aracaju, uma areia bem fininha, que  nem dá para  segurar direito com as mãos e lhe deixo lá, tomando  fôlego de areia. Vai espirando, espirando e vai enchendo os bofes  de areia e dói que nem lhe digo, hum. Nem acredita mais, eu acho.  Ou então acredita, mas nem está aí nem vai chegando mais, talvez  nem  se  lembre mais  do  nome  dele. Ninguém  se  lembra mais  do  nome dele, ninguém  se lembra mais nem do nome da gente, quer  dizer  eu  me  lembro  do  meu  nome  e  me  lembro  do  nome  de  Amaro  e  se  quisesse  me  lembrava  do  nome  do  peste,  mas  não  quero  e  esqueci.  E  pronto.  Então  fiquemos  nisso  e  de  vez  em  
quando ele empaca como uma mula e a gente tem que esporar ele,  para  ele  ir.  Oras  eu  esporo,  oras  Amaro  espora,  mas  eu  prefiro  esporar  eu mesmo,  porque  Amaro  não  espora bem.  Espora  mal:  quando  encarca  a  espora nos  quartos  do  traste,  faz uma  careta  e  agüenta a mão um pouco. Falta umas coisas em Amaro, não sei o  que  é,  bom  assim  alguém  acerta  ele,  sempre  eu  disse.  Bom,  eu  toma  a  espora na  minha  mão  e mostro  a Amaro  —  é  assim,  ôi,  humf  —  mas  não  tem  jeito,  que  quando  ele  pega  é  a  mesma  frouxidão  e  uma  caretinha,  desfranzindo  as  vistas.  Tem  que  se  esporar  esse preso,  senão  ele não  anda,  é justo,  já  se viu  querer  atrasar  os  outros  assim,  mas  vejo  que  um  dia  desses,  da  forma  que ele vai, nem vai ligar mais para a espora, a bunda já  deve estar  um calo, sem dúvidas, mas eu ainda amolo essa espora bem espo- radinha,  quero  ver  ele  não  andar,  pelo  menos  até  a  gente  se  deparar  com  um  lugar  para  arriar  os  costados  um  pouco   e  demandar viagem novamente. Estou  sabendo que andam atrás da  gente, dá para sentir uns fedores olhando assim para trás, mas não  quero  combate,  porque  o  cão  pode  atentar  e  aí  não  vou  poder  chegar  em Aracaju  com  o peste  e  isso  eu  chego,  em Aracaju  eu  encosto  com  ele,  nem  que  seja,  nem  que  seja,  nem  sei,  mas  encosto.  Esse  coitado  desse  hudso  velho  metralhado,  com  uma  porta quase que se pode  dizer soldada de metralhadora, já  viu foi  coisas. Parece uns  arrebites, esses buracos, parece uns  cravos de  panela.  Viu  foi  coisa.  An-bem,  ali  fica  com  a  tampa  levantada,  como um burro  morto  e depois de muito tempo alguém acha ele,  com  uns  maribondos  fazendo  casa  pelas  partes  dele  e  as  caças  passando  por  debaixo. Fica uma  estauta. Deixa  lá. Bem tu  anda,  peste, que eu lhe esporio e assim andemos e de noite Amaro conta  histórias de trancoso, depois que a gente amarremos o bicho bem  amarrado e demos água a ele e ficamos lá e Amaro diz: foi um dia  uma vaca vitória,  deu um peido  se acabou-se a história  e a gente  damos  muitas  risadas  e  como  não  temos  mais  o  que  dizer,  só  ficamos repetindo  foi um  dia uma  vaca  vitória  deu  um  peido  se  acabou-se   a  história,   mesmo   porque   Amaro   se   esquece   do  
começo  ou  do  fim  das  histórias,  às  vezes  esquece  do  meio,  às  vezes  esquece  do  fim,  às  vezes  esquece  do  começo  e  diz  assim:  essa  eu  começo pelo  meio,  essa  eu  começo pelo  fim,  conforme.  Tem umas  que  só  se  lembra  uns  pedaços  ali  outros  pedaços  lá.  Nos  princípios não  dá vontade nem de contar nem de ouvir, mas  depois  não  tem  diferença,  contanto  que  tenha  uma  história,  que  depois a gente vai botando o meio ou depois o fim, ou «ntão não  bota nada e fica lá. Amaro se lembra de uma história de uma velha  que  comeu um  macaquinho  e  o macaquinho  depois  de  dois  dias  ela botou vivo, vivo, no pinico. Como é, Amaro, ah-hum. Como é  as  histórias  do  macaco?  Então  se  deu-se  que  a  velha  comeu  o  macaco, mas o macaco saiu inteiro, quer dizer, ela botou inteiro, e  como foi que  esse macaco  saiu inteiro? Bom,  isso  a história não  diz,  é  porque  é  um  bicho  muito  safado,  comeu  assim  sem  uma  nem duas, ele sai inteiro. Apois:  saiu inteiro e cantou: eu vi eu vi  o cuzinho da velha, é preto  e branco  e amarelo. Como é, Amaro,  cante aí. Eu vi, eu vi, e eu sorrio muito, sorrio que me engasgo, às  vezes sorrio mais do que eu pensava que tinha condição de sorrir,  fico só pensando no diacho da velha com dor de barriga, e que eu  é  esse  que  é  preto  e  branco  e  amarelo?  Como  é,  Amaro,  quem  ensinou essa cantiga ao macaco, e a gente cantamos o tempo todo,  quando  a  gente  não  temos  mesmo  o  que  fazer  e  damos  muitas  risadas e depois paramos e voltamos de novo, até que paramos de  dar  risada  e  aí  só  fica umas  espremidazinhas:  ai,  ai.  Ui,  ui.  An.  Como  é,  Amaro,  e  ele bate  palma,  e tome-lhe  cantiga.  Já  se viu  isso,  um  macaco  saindo  ali  desse  eu  dessa  velha,  veja.  Homem  creia. Mecreia. É preto e branco e amarelo, coitada da velha, deve  ser  isso  mesmo.  É  negócio  comer  macaco,  desta.  Hem,  Amaro,  agora mesmo  a gente podia  estar em Tacaratu, na  festa de Nossa  Senhora da Saúde, já pensou como a gente estava lá agora? Hem?  Nem  fale, boa  festa. Tem uns bons pernambucanos, hem Amaro,  pelo  menos  não  é  gente  frouxa  por  lá,  tem  homens,  como  nas  Alagoas.  No  Piauí,  no  Ceará,  nas  Alagoas,  canta  Amaro,  no  Piauí,  no  Ceará,  nas  Alagoas,  o  macaco  voa,  o  macaco  voa.  Gostei  disso: no  Piauí, no  Ceará, nas  Alagoas,  o macaco voa,  o  macaco  voa,  gostei  dessa,  que  macaco  retado.  Como  é  esse  macaco  que  voa,  Amaro.  Bem,  tem  umas  asas,  umas  asas  de  macaco  mesmo,  umas  asas  de  carne,  como  morcego,  aquelas  asonas  de  macaco,  só  vendo.  Deixe  de  lorota,  tu  anda  contando  potoca, nunca ninguém me disse que macaco avoa, macaco não é  avião. É no Piauí, disse Amaro, no Ceará e nas Alagoas. Bom, só  se  é  lá,  porque  nunca  se  disse  que  um  macaco  sergipano  avoa,  esses  tenho  certeza.  É  no  Piauí,  mestre,  diz  Amaro.  Pronto,  lá  possa ser. Até que se um macaco desses de aviação passasse aqui  batendo  asa,  até  que  a  gente podia  matar  um  bicho  desses,  para  ver  se tinha  o que comer. Cada casa parece um prato  de comida,  mas  o  melhor  é  ir  desafastando  das  casas  que  não  se  sabe  de  quem é, porque pode dar complicação, o melhor é não trastejar na  vigilância,  arreceio  tudo  numa  hora  dessas.  Por  isso  que  um  macaco  desses  piauizeiros  dando  uma  avoadazinha  pelaqui  não  era ruim. Se tivesse um cachorro também, porque nesse mato tem  caças  e  nesses  morros  tem  preás,  mas  quem  pega?  Inclusivo,  melhor  era  uma  baleadeira  para  caçar  aqui  do  que  essas  armas,  porque  uma  desgraça  duma  fogopagou  que  se  dê  um  tiro  com  esse armamento, uma fogopagou nem fica nada dela, porque isso  tudo  é  arma  de  matar  boi.  Esse  teiú  que  nós  caçamos,  caçamos  sem  querer,  porque  Amaro  viu  a  toca  e  se  aprestou.  Paciência  assim nunca vi,  é que nem um perdigueiro  e ficou lá deitado, até  que o teiú se mexeu e ele quis pegar, mas o bicho entrou de novo,  mas Amaro  se afincou outra vez perto  da toca,  com meu  chimite  de  cão puxado,  esperando.  Que paciência,  não  sei  se  é ruindade  ou santidade. Até que eu ajudei e fui cavando um pouco de facão  e  alacei  a  toca,  essas  alturas  o  bicho  não  sei  nem  aonde  é  que  estava, mas depois que eu saí Amaro ficou na beira muito calado,  ficou  horas,  e  eu  sei  é  que  terminou  agarrando  o  bicho  e  nós  comemos. Vou tirar esse couro desse teiú para dar a uma mulher,  disse  Amaro,  mulher  gosta  muito  de  couro  de  teiú.  Eu  mesmo  nunca vi mulher nenhuma  dizer que gosta  de couro de teiú,  esse  
Amaro sabe de coisa. Bom, deixa tirar. A carne parece de galinha,  só  que  mais  desfiapada  e  todo  ele parece  um  calangro  grande  e  não  tem  muito  gosto  de  nada,  assado  assim  na  brasa  e  sem  sal,  com tanto sal que tinha lá com o padre para os batizados, esqueci  de pedir  um  cadinho para  trazer,  quem  é burro  pede  a Deus  que  mate e o diabo que carregue, é isso mesmo. Teiú sem sal. Melhor  do  que  nada  e  até  o  trempe  comeu  uns  pedaços,  pensei  que  ia  fazer chique, fez nada, comeu tudo direitinho e mais lhe desse.       Amaro,  tu  é  um  caçador  de  teiú  retado.  Nunca  cacei  não,  disse Amaro, mas eu estava com um buraco na barriga, isso era o  que  eu  estava. Um  gosto  de pustema,  lá  isso  tem  esse  teiú,  mas  bem  que  o  tempero  da  comida  é  a  fome,  e  até  parece  que  esse  peste  está  indo  a  locé  às  vezes,  veja  como  muda,  anda  até  sem  esporar. Mas isso de passar fome nos matos, isso nessas brenhas  não é boa coisa. Vez em vez, pego o animal e espio nas gengivas.  Espio para ver como está a situação, belisco os beiços  e espio de  perto,  muito bem,  sim  senhor,  estamos de  gengivas  ótimas, nem  parece.  Ô  Amaro,  se  sair  dessa  encrencada, vou  ser  dentista  em  Aracaju. Em Aracaju não, nem em Estância, que tem outros. Mas  em Porto  da Folha  garanto que  eu vou  ser o melhor  dentista, ou  senão em Muribeca, lá o povo nem sabe que tem dessas coisas de  dentista.  Estamos  ótimos  de  gengiva,  an-bem,  possa  ser  que  eu  tire  mais  uns  quatro  logo,  que  é  para  descompletar.  A  nestesia  está aqui mesmo, olhe aqui, olhe. Hum.       Até que quando está verde é bom. É um verdume.  Sergipe é  o  lugar mais verde  que tem,  quando  está verde, porque  às vezes  esturrica e amarronza e entristece. Mas quando está verde assim é  o mais verde  que tem  e a gente vê  diversas cores de mato, umas  mais  verdes  outras  menas,  dependendo,  e  tudo  cheira.  Poucos  matos ruins, maioria matos bons, descansados e as vistas corre de  leve por riba, é um verdume da fartura. Digo isso a Luzinete, que  está  aqui  deitada  e  nós  estamos  em  casa  dela,  nas  beiras  de  Japaratuba,  e  ela  tem  um  xodó  comigo,  é  enrabichada  e  é  bom  saber  disso,  por  causo  de  que  é  eu  sentir  e  é  ela  fazer, basta  eu  
levantar a cara. É um  diabo duma mulher grande, duas braças  de  mulher  de  cima para  baixo,  cinco arrobas  de mulher  da  legítima,  no  pesado,  uma  mulher  boa  e  quer  que  eu  faça um  filho  nela  e  fique  aqui morando,  só  fazendo mais  filho. Eu  disse,  se  eu  faço  um filho, o que é que eu estou fazendo? Estou é ficando por aqui,  estou  é pensando  na  criação. E  depois me  amarro,  fico parado  e  cheio  de  raiz,  não  me  serve.  Quando  eu  fui  chegando  e  fui  me  ajeitando, era de noitinha, e só tive tempo de dizer o que era que a  gente  estava  fazendo  e  amarrar  o  bicho  bem  amarrado  e  soltar  Amaro numa esteira, que foi logo ela me arrancando a camisa e a  calça  e  foi  logo me  arrumando  em  cima dela,  e  deu um  suspiro.  Sim, que eu não vejo mulher não  sei desquando, mas ainda disse  tem  uns  dias  que  eu  não  tomo  banho,  ando  nas  brenhas,  devo  estar  com um  cheiro  da pega  mesmo.  E  ela  disse,  é  o  cheiro  do  homem  que  mais  eu  gosto,  disse  ela,  e  eu  fui  sentindo  aquele  negócio  se  desencolher  de  dentro  das minhas  verilhas  e  foi uma  salvação, quer dizer, foi bom,  e chegou a doer, e ela faz falando,  só faz falando e fazendo zuada e dizendo: me enxerte, meu filho,  me enxerte, meu santinho, enxerte essa mulher toda encha ela toda  meu cavalo trepador, ai taça, e vai  se enroscando até misturar: eu  gosto. Mas não quero lhe enxertar, já  disse. An-bem, um dia você  pega juízo  e vai.  Pois  que  eu  só vou  ficar aqui mais uns  dias,  o  tempo  de  descansar,  que  eu vou  me  arrumar  daqui para  Aracaju  de qualquer jeito,  não tem gueguê nem gagá, pode crer. Os olhos  me  perturba,  isso  é  verdade,  porque  é  uns  olhos  lustrosos  e  grandes  e uns  olhos  muito  devagar,  que  me  olha  fundo.  Ou  me  passeia em cima, quase engordurando, dá para sentir. Não na hora  mesmo, porque na hora dá vontade de lascar, assim estufando por  dentro  e  eu  espio  entrar  e  quanto  mais  entra  mais  eu  tenho  vontade que entre e tenho vontade de abrir mais e levanto a cara e  espio outra vez entrando e vou alisando e repu-xando e dou umas  mordidas,  ai  meu  Deus,  tenho  vontade  de  dar  umas  porradas  e  perguntando  a  ela  você  quer  umas  porradas  minha  filha  e  ela  dizendo bata nela, bata nela  que ela é sua. Me mate,  ela dizendo.  
Ai meu bom Jesus, vuct-vuct. Cafute-cafute. Hum.       O destacamento de Japaratuba quase não tem. Só quando tem  eleição, aí tem. Mas não tendo eleição, quase que não tem, é uma  besteira.  Mesmo  tendo,  não  é  muita  coisa.  Tem  uma  casa  alta,  com o telhado de banda. De dois lados, dá para nada. Dum lado,  um  terreno  muito  gramado,  que  tem  sempre  sombra,  por  causa  dumas  gramas  e  fica  sempre  um  pouco  molhado,  porque  umas  mulheres estende a roupa ali, lençol, fronha e tudo. Na frente, tem  um batente que dá para uma porta  alta, mais ou menos vermelha,  de duas bandas, que está sempre aberta só uma banda, e tem umas  janelas  altas, da mesma côr. Do outro lado, dá numa casa não  sei  de quem, mas no meio tem um devão com um portão de pau e se  passando por  ali vai  dar no  quintal, que é pouca  coisa e não tem  nada,  mas  dá  saída  por  um  muro  baixo,  com  cacos  de  garrafa.  Pode-se  olhar junto  do muro:  sempre tem um  que mija junto  do  muro e se tiver um pé de pimenteira é bom para as pimentas, que  arde  mais.  Tem uns  pés  de  tomateiro  e  uns  quiabos,  com  umas  folhas largas, e uns pimentãos e umas coisas dessas e tudo fica ali  no sossego dias e dias, um ventinho sacudindo de quando em vez  e uma pessoa olhando da janela  sem prestar atenção e cuspindo de  lado  às  vezes.  Mas  teve  alguém  que  se  abaixou  ali  e  plantou  aqueles  quiabos  e  tomates  e pimentãos  e pensa  neles,  isso  deve  ter,  porque  é um  canteiro  estrumado  e  limpo,  e todo  tomate  tem  um  pai,  pode  se  dizer.  O  muro  dos  cacos  de  garrafa  se  pula,  aqueles cacos não corta nada, fica tudo cego e esbotado. Na frente  tem um largo com mais gramas e uns capins e por ali ninguém me  pega,  porque  por  ali  se  pega  todos  os  caminhos.  Solto  num  cavalo,  ainda  hoje,  quero  ver  quem  me  pega,  ah  meu  nome  é  Getúlio, minha  flor. E nesse  largo tem  como que uns  montinhos  baixos mas largos, que as patas do cavalo não empata e está tudo  ótimo. Porque  que eu vou não  sei, só que estou com vontade  de  fazer uma  arrelia, uma  coisa  assim,  só para  demonstrar. Precisar  não preciso  de uma máquina dessas, mesmo porque não  acredito  que  tenha  uma  em  Japaratuba,  com  um  destacamento  marca  
roscofe  desses  que tem  lá. An-bem,  mas  eu vou.  Digo  isso  não  sei direito por que, acho que é porque não estou tendo vontade de  sair  mais  daqui  e  me  dá  uns  arrupios  quando  eu  vejo  que  não  estou  tendo  mais  vontade  de  sair  daqui.  Amaro,  então,  nem  se  fala, fica tomando  leite de cabra, que nem um bezerro, vai  cevar.  Entra  e  sai  e  dá  uns  assobios  e  quando  pára  é  para  olhar  a  espingarda, é uma  agonia. Eu mesmo,  quando estou deitado aqui  e  olhando  o  embigo  dela,  fico  que  nem  sei.  Quando  eu  olho  o  embigo,  às vezes  me  dá tenção  de  assoprar,  às vezes  de meter  a  língua. Quando ela está em pé é melhor, porque a barriga faz uma  curva  para  fora  e  se  vê  com  mais  contorno  as  duas  coisas:  a  barriga  e  o  embigo. Eu  fico pensando,  taí  olhai  essa vaca,  não  é  que  essa  vaca  é  minha,  e  acho  ótimo.  Quando  eu  olho  o  seu  embigo, minha filha, me dá uma tesão. É porisso que eu não estou  com  vontade  de  sair  e  aí  vou  lá  buscar  essa  metralhadora  que  disseram a Amaro  que tem  lá,  só para  tirar  a teima  e para  ver  se  tem mesmo, porque não vejo muitas metralhadoras por aqui, essa  é que é a verdade e mesmo não gosto muito delas. Gosto de uma  arma que atira com precisão, é isso que eu gosto, e elas estragam  muito,  não  sei. Bom,  vou  lá.  É  verdade  que  fica  esse  embigo  aí  assim e não me dá vontade. Às vezes, penso: sabe o que é que eu  faço?  Penso  assim:  fico  aqui  mesmo  e  me  emperno  com  ela,  é  uma boa mulher,  é uma mulher  como outra qualquer, só que das  boas.  E penso  assim:  amarro  esse trempe  aí  e vou  deixando,  até  abes-talhar.  Até  esturricar.  Ou  senão  dou  um  fim  logo  nele,  enterro  e  acabou  e vou  ficando. Faço um  filho,  faço  dois  filhos,  faço uma  ruma  de  filhos. É uma  mulher  retada.  Se  eu  digo: não  gostei  dessa  peste  dessa  moringa,  ela  vai  e  quebra  a  moringa  e  ainda diz não  sei como essa peste dessa moringa veio parar  aqui,  não  suporto  essa  moringa.  E  se  na  hora  que  ela  vai  quebrar  eu  digo  mas  que  moringa  bonita  da  moléstia já  se  viu  um  diacho  duma moringa bonita  assim, ela pega  a moringa,  abraça ela e diz  que uma  moringa  porreta  assim  ela  só  tem  porque  eu  gosto.  Eu  bem  que  podia  ficar  o  dia  todo  fazendo  ela  pegar  e  soltar  a  
moringa,  mas  fico  com pena  e  aí paro.  Melhor  espiar  o  embigo,  que não é um embigo desse para fora que tem na maior parte, nem  desses batatudos, que é de choro demais em criança; nem também  é  um  embigo  desses  todos  para  dentro  demais,  que  as  beiradas  fica  pretas;  sai  um  pouco  em  cima;  agora  em  baixo  fica  uma  concha  dobrada  que  quando  sobe  vai  virando  para  fora  e  nessa  concha termina uns  cabelinhos que vem de baixo  quase que nem  se  enxergando  e  dentro  dessa  concha  sempre  é  cheiroso.  É uma  paisagem.  Uns  filhos,  mas  o  bom  mais  é  emprenhar.  Isso  me  disse  o  doutor  Renivaldo,  que  por  sinal  tem  um  engenho  aqui  mesmo, me disse ele que vai para  o Rio de Janeiro e dorme com  as  melhores  mulheres,  cada  mulher  que  só  vendo.  Mas  sabe  mesmo de que é que eu gosto, Seu Getúlio? Eu gosto é no tempo  de  cortar  a  cana,  quando  tem  as  mulheres  lá  cortando  cana  e  eu  vou  de  cavalo  correndo  o  canavial,  e  aí  é  que  eu  gosto,  porque  está  ali  uma  de  lenço  na  cabeça  amarrado,  cortando  sua  cana  e  toda suadinha e eu vou chegando, nem falo nada. Derribo no chão  e ela também não  fala nada,  fica derribada e ali mesmo,  sem dar  tenção,  ali  mesmo  eu  escabaço  e  gosto  de  ficar  pensando  que  estou emprenhando todas  as vezes. Depois  dou uma  casa a ela e  caso  ela,  se  ela  quiser.  Mas  é  assim  que  eu  gosto,  prefiro  muitíssimo.  Bom,  mas  isso  é  coisa  de  usineiro,  eu  não  tenho  usina  e  se  fôr  derribar  uma  mulher  cortando  cana  vou  ter  que  empacotar  a  família  dela  toda,  ou  senão  casar,  ou  senão  deixar  eles  me  empacotar.  Fico  pensando  que  eu  podia  levar  Luzinete  para  o  canavial  e  derribar  ela  no  meio  das  canas,  mas  me  sinto  meio  besta,  deixa  isso  assim  mesmo,  que  é  que  tem  essa  cama.  Agora,  enxertar  às  vezes  penso  que  é bom,  às  vezes  penso  que  não  é.  Porque  emprenhar  a  mulher  é  bom,  e  ver  a  mulher  inchando todo  dia, inchando, inchando, e passar  a mão  em cima,  mas  depois nasce  o  filho  e  aí possa  ser  que não  seja mais  bom,  porque  o  raio  do  menino  cresce  e  anda  e  faz  perguntas,  muitas  que  a  gente não  quer responder,  porque  incomoda.  E  vai  querer  uma porção de coisas, nem sei. Fica gente, não posso tolerar, não  
sei.  Depois  tem  ela  fazendo  perguntas  também  e  mulher  depois  que tem o filho fica como galinha choca, difere. Não sei. Não dou  para  isso,  ficando aqui. Que  é que  eu posso  ter, uns  roçados?  E  que é que eu posso  fazer aqui? É  ficar tendo uns  roçados  e todo  dia roçando  e indo na  cidade com um  sapato apertado e vendo  a  mulher  parir  e  ouvindo  o  menino  chorar  e  me  amofinando.  Depois morro e pronto. Morri. Ora, merda, tudo é assim, isso não  é  uma  merda.  Porisso  que  eu  estou  andando,  porque  quando  estou  andando  não  estou pensando  e  quando  estou  fazendo não  estou nem sabendo, é isso.       Razão essa por que eu estou metido nesse timão preto, que é  de  Luzinete,  enfiado por  dentro  das  calças,  que  é  para  ninguém  ver  que  eu  estou  de  saia  e  montado  num  burro  preto  e  tirei  as  esporas  que  é  para  não  estilintar  e  rebrilhar  nessa  meia  lua  aí  e  estou  perto  da  igreja,  ouvindo  cada bacurau  que  é  uma  festa  de  bacuraus,  inclusive  tem  umas  respostas,  acho  que  de  pai  para  filho  e  de  mãe  para  filha,  de  bacurau  par  bacurauinho,  êta,  mas  que   vai    ser   um    sarseiro,   vai,   quando      eu   entrar .   Estou  assombrando,  com  essa  cara  que  eu  estou,  pode  crer.  Hem,  Amaro,  se  eu  tivesse  um  dente  de  ouro  na  frente  essas  alturas,  estava  escritinho  o  cão,  cagado  e  cuspido,  eu  mesmo  não  me  olhava  no  espelho,  inda  mais  com  essas  corujonas  piando  aí.  Toda casa grande aqui tem corujas, mas é bom, que come ratos e  umas pragas assim, eu até que acho coruja bonitinho bem olhada,  mais do que aquele galo que não  se vê agora mas que eu ser que  está empinado em cima do  oitão não  sei para  que, porque  coruja  tem   aquela   cara  toda   fofa,   eu   gosto,   só  não   gosto   dumas  corujonas que estrala o bico, é cada estralo que chega estremece,,  já  viu? ele fica assim parado e espia para a frente e pisca as vistas  sem nem  dar  mostra,  dá um  estralo  com  o  bico,  aquilo  alto  que  parece uma martelada  seca, Ave  Maria. Esse  eu não  suporto, me  dá umas parenças que tira o dedo fora, se deixar.. E deve de tirar,  porque papagaio tira, já viu? Apois tira. Bom,, mas é isso mesmo,  assim  de  noite  só  pode  dar  corujona  mesmo,  tomara  que  elas  
comam  essa  morcegada  toda  que  deve ter  aí nos  ocos  da  igreja,  não  tolero  morcego.  Só  é  bom  para  experimentar  dar  uns  tiros,  quando eles estão todos  dependurados de cabeça para baixo  feito  uns  badalos,  mas  só  dá  para  dar  um  tiro,  visto  que  depois  do  primeiro  só  se  vê  morcego  doido  pelos  ares  e  aí não  tem  quem  acerte mesmo,  ô raça nojenta  e ainda faz qui-qui-qui quando está  voando,  um  barulho  que  um  cristão  não  pode  suportar.  Se  eu  pudesse,  não  tinha  morcego.  É  porisso  que  eu  não  entro  em  nenhumas  grotas,  nada  de  socavão,  se  encostar um  em mim  é  a  mesma coisa que me dar um copo de água morna, lanço logo até o  fato. Ah-bom, tu fica aqui encostado comigo e espera que a luz da  coletoria apague, porque o coletor fica acordado, lendo uns livros.  Deve de estar estudando tomar o dinheiro dos outros mais do que  ele já  toma,  com  aquele  bigodinho,  tu  conhece  ele?  Não  perde  nada,  aquilo não  vale  um  derréis  de mel  coado. Devo  estar uma  novidade, aqui todo de preto,  só não gosto de estar amuntado em  burro, já  sentiu que esse burro  daqui está bufando,  só quero que  não apareça aí uma jega  para  ele não querer cobrir agora, que vai  ser graça isso. esse burro eu conheço ele, é uma safadeza e fica aí  bufando. Bom a salvação é que essa cidade aquieta logo, fica essa  paradeira,  e  se não  fosse  o  estrumado do  coletor lá de lamparina  acesa, bem que eu já tinha entrado naquela delegacia para buscar o  material.  Tu  não   acha  que  entrar  nessa   certa  delegacia  para  apanhar  essa  certa  metralhadora  é  roubo,  porque  eu  não  sou  ladrão.  Pode  ser  crime,  mas  não  é  roubo,  porque  tirar  coisa  de  delegacia  não  deve  ser  roubo,  pode  ser  crime.  Pode  ser  o  que  quiser,  em  mim  não  pega  nada,  eu  sou  eu  e  nicuri  é  o  diabo,  campe-se. Agora, esse coletor fica lá arrastando os chichelos pelo  chão e lendo as besteiras  dele e empatando os  outros. Não  é por  nada, é porque,  depois dele apagado, dá trabalho para  acender de  novo  e  se  ele  estiver  em pé,  possa  ser  que  eu tenha  de  atirar na  cara dele com essa botina dessa carabina e aí não ia sobrar coletor  mais  nem  em  miúdos,  rapaz  eu  ando  doido  para  ver  essa  bicha  atirando, deve ser um desprecato. Mas olhe, não puxe  esses caos  
agora,  que  essa  merda  não  tem  regulador  e  esses  burros  pode  passarinhar  e  aí você  vai  ficar  até  dando  tiro  de  chumbo para  o  céu, não fica bem, possa ser que fure o chape do santo, uma coisa  dessas. Eu  fico pensando  assim aqui de preto  se eu fosse para  o  cangaço,  se  tivesse  cangaço.  Antigamente,  eu  tinha  raiva  de  cangaceiro,  acho  que  até  ontem, tresantonte,  antes  do  antes, mas  agora não  tenho mais;  que  é que  eu posso  fazer. Pois, podia  ser  do  cangaço, apois;  se tivesse  cangaço. Como não  tem,  fico aqui.  Ô Amaro, íu, ô fulô, se eu fosse Lampião, tu ia ser Maria Bonita?  Olhai, hum. Disse uma vez, digo duas e três, que tu é frouxo por  demasiado, fica aí mastigando  essa lasca de couro parecendo um  bode, homem creia. Já estou cansado de ficar aqui, daqui a pouco  me pico pelaquela porta de burro e tudo e estrompo a guarinição e  carrego  as  coisas.  Estou  melhor  do  que  o  reis  da  Hungria,  aqui  todo  de  preto,  hum,  bem  que  podia  ser  um  cavalo  sem  ser  um  cavalo chotão como essas pestes  que  eu vi pelai, mas um  cavalo  desses  que  os  cascos parece  de  cortiça, um  cavalo  que  morde  a  brida, baixa a cara e arresfolega fumaça, desses é que podia ser, e  eu melhor e mais bonito e mais valente do que o reis da Hungria,  esperando  o  combate.  Ninguém  me  segura,  vai  ser  de  burro  mesmo,  quero  ver.  Eu  estou  pensando:  se  um  peste  desses  da  delegacia me conhece, vai morrer, para não sair dando testemunho  pelo  mundo.  Mas  depois  eu  digo,  oras  seu  mano  que  besteira,  pode dizer que é Getúlio, que foi eu que arrombou essa castanha,  deu uns  croques na putada toda, mijou na  sala e arremeteu pelos  matos,  como faísca de coriscos, vaite. Hum. Ajeito  seu qualquer  que  dê  seu grito  ou  faça  sua valentia,  acho que  eu  estou  ficando  mais ruim, ah-bom. Está cheio de viado ali dentro e vai ser assim,  não quero nem saber o que é que vão dizer depois. Por mim.       Quando  eu desbarafustei nos  pinotes  pela porta,  carregando  uma fileira de pau furado enfiado nos ombros pelas alças, Amaro  saiu  que  saiu  embucetado  de  trás  dos  pés  de  árvore,  arrastando  um burro  e amuntado no  outro e fazendo um  espôrro retado e os  burros galopando daquele jeito  de burro com a garupa empinando  
e  a janela  do  coletor  ficou  logo  aluminada  e  foi  grito  de  mulher  que  não  tinha  mais  para  aonde  e  um  homem  saiu  de  cueca  de  dentro  e  apontou um  vinchesta para  o  lado  da  gente  e  eu berrei:  olha a vida, Amaro! e Amaro não conversou, enrolou a corda do  cabresto  do  meu  burro  no  peador,  nem  sei  como  rodeou  na  cangalha, e levantou a bichinha bem  em cima do  atirador que foi  uma só: tun! e não pegou nele, mas pegou no telhado de cima dele  e avoou foi pedaço  de barro  e foi uma  fumaceira e Amaro  quase  que  despenca  da  cangalha,  aquela  desgraça  tem  um  coice  quase  igual  ao tiro,  só mesmo para  aquele padre  grande  atirar  sem cair  para  trás.  Isso  tudo  muito  ligeiro  que  eu  já  vinha  azuretado,  porque lá dentro tinha muito mais soldado do que eu pensava que  tinha   e  quase  que  me   agarram  e  só  não   agarraram  porque  pensaram  possa  ser  que  eu  fosse  visagem  e porque  tudo  dorme  desprevenido.  Quando  eu  entrei,  a  desgrama  da  porta,  que  fica  aberta por  causa da quentura, deu um range  e eu aí parei  e espiei  lá  dentro.  Eu  dava  tudo  para  ter  um  dente  de  ouro  nessa  hora,  porque  lá  dentro tinha  um  caboverde  dormindo,  que  acordou na  hora  que  a  porta  rangiu  e  eu  nem  precisava  encostar  nele,  se  tivesse o dente de ouro, bastava dar uma risada alumiada, que ele  amunhecava de medo, preto assim tem um medo do diabo que só  vendo, porque  está mais perto,  acho. Eu  disse:  dormindo na  sua  cama de vara,  seu pirôbo,  agora veja  essa peixeira  que  eu truxe,  que deixei envenenada dentro dum rato morto duas semanas e tem  um  anzol no bico  que  é para  eu arrancar um pedaço  de  sua tripa  quando  ela  sair  da  sua barriga,  e  tomar  com  cachaça, porque  se  tem uma  coisa boa  essa coisa é uma tripa de cabra safado assada  de  ti-ragôsto,  fritada na  farinha  do  reino.  Disse  no  ouvido  dele,  para não fazer barulho, e de fato tinha uma peixeira na minha mão  das melhores  que  eu  carreguei  de Luzinete  e passei  o  dia  inteiro  amolando, mas não tinha anzol, porque eu não sou pernambucano  para  gostar  de  comer  tripa  do  inimigo,  e  eu  nem  estava  com  vontade  de  sangrar  aquele  caboverde  que  até  estava  ficando  branco  de medo  e tive  de meter  a mão na boca  dele para  ele não  
botar a boca no mundo e ele ficou unf unf e sacudindo as pernas,  mas  eu  encostei a pontinha  da peixeira  e  fui rodando,  encostei a  ponta  da peixeira numa  costela dele que ele estava sem camisa, e  fui rodando, sem porém enfiar muitíssimo, só a pontinha até ficar  vermelho  e  ele  sentir.  Olhe,  seu  peste,  se  piar  lhe  faço-lhe  de  churrasco  nestante,  onde  é  que  fica  as  armas  daqui.  Aí  tive  de  ficar esperando, que  ele quando  eu  soltava um pouco  a boca,  só  parecia  que  estava  com  vontade  de  rezar  e  eu  fiquei  assim  assuntando,  quase  que  sento  numa  cadeira  que  tem  lá  e  fico  olhando  ele  se  remexer.  Vosmecê  é  quem?  Ah  eu?  Eu  sou  o  esprito do dono de seu avô escravo, fidumaégua, e é agora! Mas  ele  ficava  com  atitude  de  reza,  estava  mesmo  uma  papa  de  frouxidão e aí eu botei  ele em pé,  que era pequeno  e fraco como  nem  sei  e  disse:  é  só  me  levar  no  armário,  que  eu  quero  pegar  umas  coisas,  vosmecê  deve  ser baiano,  preto  e  tremendo  assim,  só pode  ser baiano. Aí  ele disse pelo  amor de Deus,  que  eu  sou  de   Muribeca,   e   eu   quase   dou   uma       gaitada   porque     outro  muribequense   é  Amaro,   que   está  lá   fora   e  não   deve   estar  passando muito melhor do que esse daqui, lá no meio das corujas  na  escuridão,  segurando um  burro  e uma  espingarda. Está  certo,  vosmecê  é muribequense,  agora  amostre  aonde  está  o  negócio  e  fui   levando   ele  com   o  braço   torcido  para   o   lado   assim   e  cheguemos       defronte   dum     armário,   quem      disse   que   tinha  metralhadora  nem  nada,  só  tinha  uns  fuzios  velhos,  que  eu  fui  pegando e enfiando no braço, nisso que me entra que parecia uma  chuva de cabeça de gente, bem umas  quatro, uma  atrás da outra,  sendo que uma de chapéu e uma disse: que foi que teve aí? Foi o  cão,  eu  disse,  e  aí  achei  que  devia  de  vastar,  porque  era  muita  gente  e  podia  ter  mais  armas  que  não  aquelas  que  eu  apanhei  e  tive que vastar e aí levantei o pé e dei um chute de bico no traseiro  do caboverde e empurrei ele em cima do resto e me piquei, que foi  quando eu apareci pela porta  e pensando para  que diacho que eu  quero vim aqui nessas horas da noite apanhar umas armas velhas  me  arriscando  a  tomar  um  tiro   sem  necessidade?  Não   faço  
somente  o  que  eu  preciso,  mas  também  faço  o  que  eu  quero,  pronto,  e  fui  vendo  Amaro  se  despachando  na  porta,  só  que  na  afobação  descarregou  os  dois  canos  em  cima  do  telhado  do  homem  e  possa  ser  que  alguém  tenha  mais  outra  arma  e  queira  abrir  fogo,  de  maneiras  que  foi  só  me  arrumar  na  direção  de  Amaro  e  subir  no  burro,  que  estava  mesmo  num  assanhamento  danado  e  Amaro  ainda  segurando  a  corda  do  cabresto  enrolada  mais ou menos na canela, não sei como, e uma fumaceira infeliz e  mais  uma  porção  de  cabras  saindo  de  dentro  da  delegacia  nos  atropelos,  as  mulheres  sem parar  de  gritar. Aí  eu  disse  se pilhe,  Amaro,  que  agora  vai  ser  de jeito  e  qualidade,  não  quero  nem  apreciar. ele nem viu nada,  foi que foi desenroscando a corda do  pé,  que eu só tive tempo  de  subir no burro,  dar com o calcanhar  nele e sair ripado pelo  caminho da praça. Minha  sorte é que esse  burro já  conhece  o  caminho,  é  só  soltar  que  ele  vai  e  vai  bem,  porque  ainda estou para ver um burro  que goste de ouvir tiro  ou  passar  em  ponte,  que  nenhum  passa  por  gosto,  acho  que  tem  medo  de cair, e lá vou  eu, melhor  do que o reis  da Hungria, não  quero  nem  olhar  para  trás.  Temos  um  bom  caminho  para  essa  carreira  e  o  melhor  que  se  faz  é  pegar  pelos  matos  mesmo,  de  qualquer  forma  o  caboverde  deve  estar  dizendo  que  foi  alma  penada  e inda vai  demorar que venha um  atrás, ainda mais  que a  lua está murcha e sem luz e é escuro. Bom, Amaro, vá baixando a  cabeça por  causo de qualquer galho de pau  que tenha na  frente e  vá remando aí e pode até fechar as vistas, que os bichos não erra e  chega em casa direitinho. Amaro perguntou se eu apanhei alguma  coisa  e  eu  respondi  que  eu  queria  apanhar  o  cabrunquento  que  disse   que   tinha   uma   metralhadora   dentro   da   delegacia   de  Japaratuba,  só  tinha  mesmo  esses  fuzios  velhos  e  umas  car- tucheiras  que  eu  nem  dei  ousadia,  essas  pestes  se  duvidar  nem  fogo fazem mais,  an-bem, fui porque  quis  e gostei de ver  o jeito  que essa bichinha  aí ia quase derrubando a casa do homem toda,  também  o  que  é que  ele queria com aquele repetição  em cima da  gente. Quando eu saí e até tropecei na  saída da porta  e arrumei o  
dedão num pedaço  de ferro que tinha  saindo do chão, quando eu  saí  e  gritei vai  Amaro  que  eu matei vinte  e três  aí  dentro, posso  jurar  que  tu  acreditou,  mas  senão  tinha  uma  vintena,  bem  que  tinha  um  renque  de  cotia  lá  dentro, porque  só  se  viu  foi  cabeça  aparecendo. Depois  diz  que  eu não  sou bom.  Se  eu  fosse  ruim,  tinha parado ali e catado aquela putada toda na ponta do rifle, que  era  fácil,  estava  tudo  correndo  como  umas  cotias  mesmo,  umas  caças no meio dum descampado, isso  era o que era. Mas não  fiz  nem  mira  em nenhum.  Agora,  que  dava vontade  de parar  aqui  e  esperar,  isso  dava,  porque  ia  ser  uma  facilidade,  mas  primeiro  estou com um ranho no nariz que pode  ser defluxo e esse sereno  piora,  e por  segundo ninguém vem  atrás mesmo,  aquilo não  tem  cara  de  boa  guarnição  e  terço  esse  califom  de  Luzinete  fica  me  empatando  nas  partes  e  esses  bicos  parece  que  arranha,  não  sei  como mulher  agüenta usar  esse trembique,  com essas  farpas que  tem aqui. Pode dizer que já  me vesti de mulher, quando entrei na  delegacia de Japaratuba, quando entrei na delegacia de Japaratuba  e lá, na vista  de todos machos  que diz que tem lá e mais tivesse,  na vista de todos os machos que tem lá, fui entrando, fui abrindo  e  fui  panhando  o  que  bem  quis  e  é  isso  mesmo,  mulungu.  Precisar não preciso, fui só de abuso, graças a Deus.       Pois é, Luzinete, olhando assim pela janela,  podia ficar aqui.  Mas  tem  horas  que  se  pode  ficar,  horas  que  não  se  admite.  É  assim.  É  como  certas  horas  que  um  fole  tocando  lhe  agrada,  outras horas dá vontade de dar porrada no sanfoneiro. É a mesma  coisa. Por  isso certas horas,  com o cotovelo na janela,  quando tu  volta de lavar roupa  ainda com as mãos  encorugujadas de água e  umas  machas  de  anil  e  eu  fico  olhando  o  verdume,  essas  horas  pode ser. Porque o que é que tem depois? Tem o seguinte: eu fico  achando graça  em tudo,  e  com muita preguiça.  E  eu  sei que não  vai  ter  nada  para  fazer,  nem  hoje  nem  amanhã.  E  eu  sei  que,  voltando você, a gente pode esperar comer, que vai sair e a gente  pode  dizer  que  horas  quer  que  saia  o  de  comer.  E  pode  ficar  prosando  o  que  quiser,  tomando  umas  coisas,  e  de  repente  vem  
uma  novidade:  um  caranguejo.  Ou  dois.  A  gente  fica  muito  satisfeito  com  aquele  caranguejo,  tu  escalda  e  a  gente  chupa  as  pernas  e fica e é uma tarde tão comprida e depois a gente come à  vontade  e  vai  dormir.  Diga  se  não  é?  Ora,  ora.  ôi  fresca,  hum?  Quem perturba, hum? Umas  comilanças e umas  dormidas e vaite  para  a  sorete  quem  quiser,  adeus.  Mas,  quando  não  é  isso,  tem  conversas  ou  então  não  tem  nada  e  a  gente  fica  tendo  de  andar  para  riba   e  para  baixo,  pegando  numa   coisa  aqui  outra  lá,  sacudindo  uma  tira  de  couro  no  ar  e  chutando  umas  pedras.  Assim não pode, não quero. Me diga-me, vamos para o cangaço?  Eu sei que não tem cangaço, mas se tivesse você ia? Não ia, você  é mulher que gosta mais de um filho no bucho e de um homem na  cama  e  de  morte  morrida.  Eu  não,  que  na  minha  mão  tem  uma  linha riscando  a  linha maior,  que  diz: morte  matada.  Isso  é  fato,  não tem como correr. É melhor, dói menos e dá menos transtorno.  Nessa  morte  eu  acredito,  porque  não  posso  pensar  que  eu  vou  ficar velho  e  sem dente  e minha  mão  vai  tremer. Uma  coisa  que  não  existe é Getúlio velho,  só  existe Getúlio homem  inteiro, não  posso  ficar de boca mole,  falando porque no  meu tempo isso no  meu tempo  aquilo. Verdade  que tem certos velhos  que ainda são  machos,  mas  esses  é  do  tempo  antigo, não  é hoje.  Antigamente,  tinha  umas  mágicas,  acho.  Se  tivesse  cangaço,  eu  ia  para  o  cangaço,  com  um  chapéu  de  estrelas  prateadas  e  ia  me  chamar  Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer muito. Quando entrasse,  entrava  batendo  os  pés.  Quando  amuntasse,  amuntava  com  o  peito inchado e a cara para cima, com as vistas na frente, sempre.  Quando  marchasse,  marchava  rodando  o  corpo  e  cheirando  o  vento.  Quando  comesse,  comia  aos  batoques,  levando  a  faca na  boca.  Eu  ia  ser  o  maior  cangaceiro  do  Brasil,  o  maior  piloto  de  jagunço  do  Brasil  e  ia ter  a maior  tropa.  E  não  me  chamasse  de  sargento,  me  chamasse  de  capitão.  Ou  me  chamasse  de  major.  Um tenente que eu cortasse a cabeça, arrancava os dentes e fazia  um  colar.  Quantos  tenentes  cortasse  a  cabeça,  tantos  tenentes  arrancava  os  dentes.  E  todos  lugares  que  chegasse,  dava  uns  
urros  bem  altos  para  quebrar  vidraças  e  tomava  duas  pipas  de  cachaça  de  cada vez  e  comia  dois  cabritos  sozinho  ou  então um  bezerro  e  assoprava  para  arrancar  os  pés  de  árvore  do  chão  e  quando  eu  batesse  a  coronha  no  chão,  o  chão  tremia  todo  e  as  frutas   despencavam.   Dragão   Manjaléu,   pode   me   chamar.  Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar uns charutos. Amaro  pode  guiar  meu  carro,  que  eu  deixo.  Para  ser  deputado  não  é  preciso  nada.  Se  eu  fosse  deputado,  você  ia,  não  ia?  Para  ficar  toda  lorde, e aprendia a falar difícil, não  aprendia? Aí  quando eu  chegasse na  câmara  com  esse  traste  dali  amarrado pelo  pescoço,  eu  dizia  a  meus  corligionários,  olhe  aqui  esse  presente  e  sabe  o  que  é  que  eu  vou  fazer  com  esse  presente?  Vou  enforcar  esse  presente para todo mundo ver,  e enforcava ele no pé  da mesa  da  sala.  E  dizia:  esse  palmo  de  língua  de  fora  eu  dou  à  mulher  do  governador, que fala muito e nem repara. Esse pescoço quebrado  eu  dou  aos  doutores  de  medicina,  que  é  para  ver  como  é  um  pescoço  bem  quebrado.  Esses  braços  dependurados  eu  dou  ao  povo,  que é para o povo me abraçar. Essas pernas  assim bambas  eu também dou ao povo,  que é para o povo  andar. E por  aí eu ia,  dava o trempe todo  e depois  saía e ia na  rádio  difusora  e botava  um  lenço  no  bolso  e  um  duque  de  diagonal  e  sapato  carrapeta  marrom e branco e ia jogar baralho a dinheiro. Tu não acha que eu  tenho jeito  para deputado? Eu acho que eu tenho, pode crer, eu ia  ser  um  bom  deputado.  Isso  se  eu  quisesse  ser  deputado.  Tu  se  lembra  do  chefe?  Esse  também  agora  é  deputado,  eu  acho,  me  mandou  eu  buscar  esse  traste  em  Paulo  Afonso  e  agora  vieram  me dizer que não levasse mais ele para Aracaju, ordem do chefe.  Não  acredito  nisso,  tu  crê?  Possa  ser,  mas  agora  eu  levo  de  qualquer jeito.  Ontem eu disse que levava, hoje  eu nem  sei bem,  porque me dá mesmo uma moleza isso  aqui, mas  como é que eu  posso  viver  assim?  É  como  eu  digo:  muitas  vezes,  numa  hora  como essa, a gente pensa que o mundo pára. Mas não pára nada,  se  sabe.  Tem  uma  porção  de  gente  se  mexendo,  e  eu  aqui  no  meio, paradão. Mas parado como um peixe junto  das pedras dum  
riacho,  que  se  você  quiser  mexer  perto  ele  dá  uma  rabanada  e  some. Porque é assim que eu sou. Veja que povo mole, veja que  povo mais burro. Eu vou lá, pego essa porcariada toda, faço cosca  de  faca nas  costelas  dum  soldado  caboverde  e venho  bendomeu  aqui para perto  e não tem nada. Então eu podia morrer  de velho,  não podia? Podia. Podia ficar aqui e todo ano lhe emprenhar certo  para  vir  um  filho  em janeiro,  que  é  princípios  do  ano  e  acerta  mais. Não ia nascer mulher, só ia nascer um bando de macho e eu  botava uns nomes de macho e depois a gente tomava essas terras  que tem aí e armava umas tropas de mais macho e ficava dono do  mundo  aqui,  cada  filho  arranjando  outra  mulher,  cada  mulher  parindo mais macho e nós mandando, e quando eu morresse, avô  de todos, pai direto ou por tabela, me enterravam ali e botavam em  riba uma cruz com o Senhor crucificado e quem passasse ia dizer:  aquela  cruz  é  do  finado,  se  não  se  benzer  ele  ainda  vem  e  lhe  pega.   A    machidão   toda   aí,   era   Garanhão       Santos   Bezerra,  Malvadeza Santos Bezerra, Abusado  Santos Bezerra, Tombatudo  Santos  Bezerra,  Comegente  Santos  Bezerra,  Enrabador  Santos  Bezerra,   Rombaquirica         Santos   Bezerra,     Sangrador      Santos  Bezerra,  Vencecavalo  Santos Bezerra,  todo  mundo.  Tu bem  que  ia  gostar  disso,  eu  acho.  Um  belo  dia,  Vencecavalo  Santos  Bezerra   ia  pela   rodagem   e   encontrou  uma   tropa   de  burros  atravessando  um  caminho  que  só  dava  um  de  cada  lado,  e  Vencecavalo  disse  aos homens  da tropa: peço passagem, porque  sou  mais  homem,  e  sua  tropa  pode  muito  bem  esperar  que  eu  passe,  bem  descansado,  bem  devagar  e  assobiando,  ainda  mais  que eu sou o Reis •de Sergipe da Coroa. E o tropeiro disse: pode  vosmecê  achar  que vosmecê  é mais  homem  do  que nós,  e  achar  que é o Reis de Sergipe da Coroa, mas nós bem que não achemos  isso, aliás nós  achemos que semos mais homem do que vosmecê  e por  isso mesmo vosmecê vai  ficar aí sentadinho, esperando até  que  o  derradeiro  dos  burros  passe,  de  formas  que  vosmecê  vai  poder  então passar,  isso  se eu quiser. Aí  que Vencecavalo disse:  veja bem, seu minhoca amarelão, escute bem, largata mole, olhe o  
que  eu estou lhe dizendo, cara de besouro  bostento,  assunte, boi  pegado  na  saia  dador  de  venta,  atente,  que  eu  só  falo  uma  vez,  coração de caga-sebo: quando eu nasci, desceu uns  arcanjos para  me  presentear,  e  São  Romão  me  coroar  e  eu  era  tão  forte  que  minha  cama  era  de  aço  com  prata  e  quando  eu  chorava  chovia  aqui  e  na  Bahia  e  minha  mama  era  o  leite  de  quatro  vacas  douradas  landesas,  e  posso  lhe  dizer:  está  vendo  esse  braço  daqui? Pois  com esse braço  eu derrubo esse morro  de seiscentas  mil arrobas em cima de sua cabeça. E se eu lhe der uma dentada,  eu lhe tiro sua cabeça fora só com uma mordida. Se eu lhe cuspir  e pegar no olho, eu lhe cego. Se eu bater palma, deixo a tropa toda  surda. E  se  eu chutar essa mula madrinha,  ela vai parar  no jebe- jebe  de penedo,  é  o  que  eu  estou  lhe  dizendo. E  aí  ficou no  seu  cavalo  árdico,  empinado,  estufado  e  aguardando  resposta.  De  junto   dele  só  tinha  sombra,  porque  o  sol  não  era  besta  de  encostar.  Pois  então  o  tropeiro  tirou  uma  garruncha  e  fez  fogo  contra Vencecavalo Santos Bezerra, e os outros tropeiros também  fizeram fogo e foi a coisa mais sem juízo  que eles fizeram na vida,  porque  não  foi  assim  que Vencecavalo  agarrou  as balas  com  os  dentes   e   cuspiu   elas   no    chão   e   disse:   com   essas   balas,  apustemado , vosmecê me tirou uma lasca do dente queiro de cima  do  lado  direito  e  se  é  um  dente  que  eu  tenho  estimação  é  esse  dente queiro de cima do lado direito e por isso mesmo vou lhe dar  um punitivo, e aí pegou um burro pelo rabo em cada mão e rodou  e rodou  e rodou  e foi atacando a tropa  com os burros  e cada um  que  se  levantava tomava uma  burrada.  Depois  ele pegou  a tropa  toda e jogou  lá no jebe-jebe  de penedo. Já viu você que filho esse  que eu tenho? Arretado.       Pois  então  aqui  sentado  nessa  solta,  com  essas  cinzas  que  botei na cabeça e todos caminhos que cavei com os pés,  andando  em roda não sei quanto tempo e batendo no peito e gurgurando na  
garganta,  que  eu  dei  um  grito  que  se  ouviu  em  todo  Estado  de  Sergipe, para  todos  lados, para baixo, para  cima, até encostar no  ôco  do mundo,  que ribombou,  eu dei o  grito mais retado  que  se  deu  na  terra,  porque  foi  agora  que  eu  senti.  Primeiro,  eu  sentei  num toco e enfiei a cabeça no meio das duas pernas  espichadas e  fiquei  sentado vinte  e  duas  horas,  cinqüenta  e  oito  horas,  fiquei  sentado mais  horas  do  que  qualquer um já  ficou  sentado,  e não  mexi  nada:  espiei  o  chão, mas  sem  enxergar nada,  só  o  chão  de  uma  côr  só. Depois  eu me  levantei e me  deu uma  raiva,  a maior  raiva que já  se teve em todo Estado de Sergipe, me deu uma raiva  grossa como sangue e pesada como quinhentas sacas de açúcar e  quente como uma brasa do tamanho de uma boiada. E estando de  pé, estiquei um braço com a mão fechada, estiquei o outro braço e  bati  nos  peitos  tanto  que  trovejou  e  as  folhas  dos  pés  de  árvore  foram caindo e depois eu andei com cada passada de duas braças  e  quando  eu  andava  cada passada  subia umas  nuvens  de  poeira  que virou  lama na minha  cara com o choro que saiu. Aí  eu olhei  assim no redor e não vi nada. Forcei as vistas e não vi nada, e eu  queria  ter  uma  espada  muito  grande,  que  eu  com  essa  espada  botasse  embaixo todas  coisas  que  ficasse na  minha  frente  ou  de  trás,  amuntado  num  cavalo  preto  que  o  suor  fedesse  tanto  que  matasse  pelo  cheiro  e  com  esse  cavalo  fosse  com  a  espada pelo  rio  Cotinguiba,  metesse  a  espada  no  rio  e  matasse  os  peixes  e  abrisse  a  água  e  enchesse  o  mundo  de  água  e  comesse  tudo  e  sumisse tudo. E eu. Forcei as vistas dessa forma e não pude nada  ver mesmo, só estava sentindo, e apaguei a fogueira da noite com  as mãos e peguei a cinza que ficou, esfreguei na cabeça e na cara e  não  quis  fazer mais nada por  muito tempo, porque  fiquei triste  e  então eu dei um  grito ouvido em todo Estado de  Sergipe, o chão  tremeu e eu sentei de novo.       Quando  eu vi,  estava parado,  com o  olho  aberto, na  mesma  posição   que  tomava  para   bater   no   cano  da   arma,  baixar   e  descarregar. Quer dizer, com a mão direita ainda levantando, mas  nunca que pôde baixar, porque ficou presa pela manga num prego  
da parede e lá ficou. O primeiro que eu vi foi os olhos, porque eu  estava  espiando pela janela  para  fechar  a  entrada,  felizmente que  pelo  fundo não  podia  entrar ninguém,  que  é um  barranco  alto,  e  eu  estava  até  achando  que  era  serviço  coisa  pouca,  porque  era  aparecer na  estrada era acertar fácil, uns  bons  alvos, mesmo  eles  atirando para dentro e tirando batocas da parede, pelo lado de fora  e pelo lado de dentro. Nos princípios, veio na idéia botar o bicho  com a cabeça para o lado de fora, mas eles estavam atirando tanto  e tinha uma fumaceira tão descabida e um espôrro que parecia que  o mundo ia despencar, que se eu botasse a cara dele na janela  com  certeza  que  furavam  a  cara  dele  toda  logo,  morria  e  perdia  a  serventia. Fisdaputa, devem ter pedido campo na cidade toda para  me pegar  como tresmalhada,  só  que não  vão  pegar,  vão  pegar  a  mãe,   eu  não  vão  pegar.   Pois   eu  estava  de  olho  na  janela,  descansando  a  arma  para  atirar  nos  peitos  de  um  que  vinha  de  banda e eu queria atirar resvelado nas costelas dele e aí a arma de  Amaro  parou  de papocar.  Eu  digo:  que  é isso,  Amaro,  se  faltou  munição  pegue  uma  arma  dessas  do  destacamento,  que  tem  bastante  e ele nada respostou.  E nada,  de formas que, quando eu  consegui   acertar     dois   balaços   no     infeliz   lá,   que   ele   foi  desencostando   no   mourão         da   cerca,   desencostando,   desen- costando, até que eu vi que era a última desencostada que ele dava  na vida, eu espiei de banda e vi os olhos de Amaro.       Antes, ele estava bem, aliás estava ótimo, porque aprendeu a  manejar bem a arma, que não é fácil. Parece fácil, mas não é fácil,  precisa preparo. Mas  foi ele, que estava sentado no  chão com os  dois  joelhos    para   cima   e   esfregando   a   arma   pelo   cano   e  mastigando um talo de capim como quem não está nem aí, foi ele  que viu primeiro  chegar  alguma coisa  e aí  se levantou  sem dizer  nada  e  foi  olhar para  o  lado  do  caminho.  Guente  aí,  disse  ele,  e  encostou do lado da porta, cuspiu o capim e ficou. Essa porta vai  abrir daqui a pouco, disse ele, e eu vou fazer um festejo. An-bem,  disse eu, temos pertubação, e me levantei, segurei um instrumento  e espiei de meia travessa pela janela  e de  fato estava lá quase na  
curva  um  bando  de  cabra  safado,  tudo  esperando.  Esse  cá  que  Amaro  vai pegar  de jeito  deve de ter tirado  carta de valente  lá,  e  vem  aqui.  Êi  cambada  de  mulher  solteira  ordinária,  se  prepare  para   morrer!   Hum-hum.   Pensei,   mas   não   disse,   que   todos  estavam  parados  lá  e  nem  dava  na  impressão  que  a  gente  aqui  dentro  tinha  se  precatado.  Eu  mesmo  não  escutei  nada,  estava  pensando numas rapaduras e Luzinete estava catando uns piolhos.  Tudo  muito  assossegado,  não  tinha  nem  horas,  não  tinha  antes  nem depois, era uma paradeira e eu ficava com preguiça de pensar  quando  era que  eu ia  sair para  levar o trempe para  Aracaju, nem  sei, nem  sei. Amaro,  ..fareje esse um  se esbeirando para ver não  sei o quê aqui dentro, é capaz de não ter  certeza que a gente está  aqui dentro e aí vem em missão de espionagem. Segurei a arma na  mão,  encostando  o  cano na  madeira  da janela,  ôi  cospe-fogo,  ôi  cospe-fogo. Vamos  aí. Amaro  agora nem  parecia,  só  que  estava  com  os  caos  puxados  e  a  canhota  estava  com  os  dedos  meios  brancos,  agarrada  nos  dois  canos.  Que  quando  o  homem  foi  empurrando  a porta  e Amaro  estava  atrás para  meter  o  cano nas  costas  dele  e  a  gente  fazer  um  inquérito  com  ele,  o  sacano  do  traste, que estava amarrado mas  sem mordaça, gritou com aquela  fala de gengiva: cuidado que tem um homem na porta. Bom, dois  gritos o ordinário não deu, porque eu fui para ele e dei um par de  porradas na  cara com o cano de minha  arma e depois empurrei a  cara  dele  no  chão  com  a  sola  da  bota  e  fiquei  esfregando,  esfregando, até amunhecar e dei umas duas bicudas nos rins para  completar e  ele acho que  achou melhor  se  aquietar, ou  aquietava  ou dizia por que é que não aquietava. E eu disse a Luzinete, se ele  mexer  nem  que  seja  o  dedão  do  pé,  quebre  essa  moringa  na  cabeça dele e  se aporrinhar muito jogue  querosene e toque  fogo,  que assim ele aprende. Ela aí se abaixou e ficou olhando ele, com  um molho de fósforo desse que risca na sola do sapato de junto  e  o fifó de junto  e a moringa. Na primeira, dou uma moringada. Na  segunda,  toco  fogo.  E  pensou  que  era  até  melhor jogar  logo  o  querosene  para   garantir  dar  tempo  na  hora,   de  formas  que  
despejou metade do  fifó nas  calças dele e ficou lá abaixada, nem  parecia. Aquilo  é uma mulher  especial. Mas  o homem  que vinha  entrando  parece  que  não  deu  tempo  de  mudar  a  intenção  por  causo  do  grito,  ou  então  nem  ouviu  porque  o  traste  grita  fraco  mesmo, e foi empurrando a porta. E nisso foi que Amaro deu um  pulinho  de  banda,  ficou  na  frente  do  homem  e  deu  nos  dois  gatilhos de vez bem  na  direção e  só  se viu  foi a cara do homem  sumir e foi lasca de cabeça para todo lado. Êta, que se você acerta  no  escrivão  assim, não  ia ter  quem  escrevinhasse  em Japaratuba  por  mais  vinte  anos,  ave  Maria,  o  homem  quase  que  deu  uma  maria-escombona,  quando  recebeu  a  marrada.  O  homem  deu  aquele pulo, quer dizer, não foi ele que deu, foi o porrete da arma,  e foi se parar lá no caralhoplano. Sem nada quase dos peitos para  cima, estava uma pintura. Aí  eu pensei,  se naquela zorra daquela  delegacia  tivesse  mesmo  uma  metralhadora,  não  precisava  mais  nada,  daqui  mesmo  eu  resolvia  o  resto,  mas  não  pôde  ser,  de  maneiras  que  quando  eu  abri  fogo  a  raça  foi  se  espalhando  e  parecia  que cada hora  chegava mais homem.  Como que eu fosse  Lampião,  com  tanta  gente  para  me  levar,  está  bonito  uma  coisa  dessas?  Bom,  agora  é  segurar,  até  aparecer  um  jeito  de  sair  e  parece  que  não  vai  ter  muito jeito,  porque  esse  povo  não  é  de  desistir  e vai  ficar ali até entrar aqui, mas  eu  sou  eu  e quero ver  esse renque  de inquizilado entrar aqui. Vai vastar, tem de vastar,  ora  ora.  E  eu  que  dizia  que  tu  tinha  coração  mole,  hem  Amaro,  quem  te  viu  quem  te  vê,  bentevi.  Aquele  ali  deve  de  se  chamar  Secundino  da  Moleira  Grossa,  com  aquele  pitombo  em  riba  da  cabeça,  como  se  fosse  umas  ôndias.  Aquilo  é  banha  pura.  Pois  esse Secundino vinha atirando muito bem e dando umas negaças,  se  achando  grande  combatente.  Deve  ter  tomado  umas  antes  de  chegar e eu estou até vendo  a conversa dele: volto  aqui trazendo  esse cabra safado arrastado no cavalo, sem culote, sem gibão, sem  túnica e sem divisa e a cova dele vai ser a poeira que ele vai comer  antes de morrer. Vai ser uma cova por dentro. Isso ele deve de ter  dito.  Pois  assunte,  Secundino  da  Moleira  Grossa,  quem  vai  lhe  
enterrar  sou  eu  e vou  até deixando que você venha  feito macaco  de lá, com esses pulos  que nem palhaço pelanca, que pulo nunca  decidiu destino de homem, nunca suportei esses puladores, posso  lhe  garantir.  Secundino,  olhe  o  céu,  se  lembre  daquela  vaca  daquela  sua  mãe,  que  eu  vou  abrir um  buraco  em vosmecê,  um  buraco  tão  retado  que  vosmecê  vai  sair  por  ele,  louvado  seja  Nosso  Senhor Jesus Cristo, eu sou o Dragão Manjaléu, Comedor  de Coração. Eu aqui no canto da janela,  só olhando para ele dar os  pinotes  dele. Deixe  dar: vá  escolhendo as  quixabeiras do  céu, as  palmatórias  do  inferno,  hum-hum.  E  aí  a  boca  se  enche  dum  pouco dágua como quando se espreme um tumor e se arranca um  carnegão,  quando  ele deu um  pinote  para  a banda  da  esquerda  e  eu  escolhi  acertar  no  meio  do  pinote.  Adeus,   Secundino  da  Moleira  Grossa  Soares  de  Azevedo  da  Paixão,  pode  dizer  que  morreu  nos  ares.  Morreu  direitinho,  quando  desceu  nem  mais  mexeu.  Aquele  outro,  olhe,  Amaro,  aquele  tu  deve  de  dar  na  barriga  um  desses  caprichados,  porque  aquilo  é  uma  barrigua  agüenta, de banha  de porco,  de torresmo  de carneiro, aquilo vale  nada.  Um  homem  desses  está  prenho,  e  o  nome  dele  é  Fabrico  Fraco  Fofolento  da Farofa  e quando tu  acertar na pança  dele vai  ser  como  o  Vaza-Barril  impazinado,  desvertendo  água  por  tudo  quanto é lado, o diacho é que ele fica só deitado e oferece somente  um  pedaço   do  ombro.  Oferte  mais,  Fafá,  ôi.  Amostre   essa  barriguinha, meu  santo.  Siu! Luzinete, depois a gente mandamos  cobrar umas  contas  de  conserto  de reboco  no  destacamento, que  estão  me  arrancando  esse  reboco  todo, já  viu.  É  cada  torête  de  reboco,  olhe  aí  Homem  creia,  estão  crentes.  Amaro,  se  aquele  peste  levantar a barriga, você manda na barriga com os dois, que  nessa  distância  espalha bem  e  não  dá  para  o  vento  enfraquecer.  Aquilo  ali,  mesmo  que  viva,  não  tem  doutor  que  cate  centos  chumbos no  bucho  e dói  que  é uma beleza,  ainda mais naquelas  dobras,   deve   ter   a   barriga   cheia   de   roscas.   Fofolento,   hu  Fofolento. Siu! Olhe aí, Amaro, ele está subindo. Olhe aí, Amaro,  todo  suado,  parece  uma jega  enxertada,  olhe  a  cara  dele,  gordo  
assim  aonde já  se viu.  Olhe  aí, Amaro,  que  cara de  capilogênio,  cada  baga  de  suor  que  parece  uns  bagos  de  jaca,  já   se  viu.  Quando ele passar junto  da mangabeira, tu assiste ele, não precisa  apressar, que, gordo assim, ele vai encostar a mão na mangabeira,  tirar  o  chapéu  e  limpar  a  testa.  Aquela  água  toda já  deve  estar  entrando  nas  vistas  e  ardendo.  Bonito  ia  ser  acertar  na  bunda  desse boi,  mas  isso  ele não  vira,  é natural.  Pois  veja:  eu não  lhe  disse que ele ia encostar na mangabeira? Agora aí, olhe, ô canhão,  parece  uma  peça  do  Dezanove  BC,  ôvo  na  negrinha,  Amaro!  Hum. Vai ficar ali se estorcendo uns tempos, deixe ele. Tem umas  formigas pretas naquela mangabeira, daquelas que fede, ainda vai  apoquentar  mais,  deixe  ele.  Eu  disse  que  ele  ia  se  encostar  na  mangabeira.  Falei  e  disse.  Se  a  gente  sair  daqui,  vai  para  as  catanduvas, que as catanduvas briga por nós, não é certo? Lá vem  atrás  dois  outros,  um  fino  e  um  grosso  queimado.  Tu  não  está  achando isso uma facilidade não, Amaro? Se visse de bolo, aí não  sei, porque  tinha  que  ser uns  disparos muito  ligeiros, mas  assim  de um em um, de dois em dois, assim quantos venha quantos não  volta. Esse queimado chama-se Chico Banana  Seca, por  causa de  que  parece  que  tem  a  cara  toda  pregueada.  Acho  que  passaram  jenipapo  na  cara  dele, para  ficar  toda  preta  assim,  bicho  feio  da  desgrama,  hem  Amaro.  Esse  deixe  aqui,  que  ele  vem  na  minha  linha de tiro bonito, está parecendo uma galinha dágua galinhando  na  beira  da  lagoa.  O  fino  é  por  nome  Carolino  Carola  Caruara,  por  causa de duas  coisas: primeiramente, tem  cara de noiteiro  de  novena, diga se não? Tem. Bota as mulheres cantando para purgar  os  pecados,  que  ele  tem  medo  de  morrer  e  ir  para  o  inferno.  Segundo,  anda  todo   troncho,   espie,  veja   se  não   tem  umas  parenças  que  deu  caruara  nele  em pequeno.  Pois  muito  bom,  tu  soca  dois  caruchos  de novo  aí  e  acerta  Carolino  aonde tu  puder  acertar, que ele já  deve ter pagado uma vintena de novenas antes.  Me diga uma coisa, o cano dessa estrovenga não esquenta muito,  não?  Tu pega  o tortinho  que  eu pego  Banana  Seca e  se prepare,  porque deve de estar um espotismo de gente lá em baixo. Olhe aí,  
Amaro, ô vexame, o tortinho  se desentortou todo,  acho que você  acertou de re-lepada, porque ele já  se despencou e sumiu. O nome  dele mesmo deve ser Desandado da Desautoria, porque lá vai ele  como um garrote desautorizado, mas esse queimado acredito que,  quando  abaixou,  abaixou  de  vez.  De  formas  que  pode  esperar  aumentar a fuzilaria, ô peste, tem uma força de homem ali que não  acaba,  só  vendo.  E  fica  essa  fumaceira,  porque  o  tempo  está  molhado.     Se   tivesse   seco,   era   melhor,   não   levantava   essa  fumaçaria.  Possa  ser  que  todo  esse  logrador  esteja  cheio  de  homem atrás. Enfim, ou vai ou fica. Eu vou, e quero ver quem me  pára.       Pois  então,  quando  eu vi  os  olhos  de  Amaro  parados  e  ele  olhando para lugar nenhum, com o braço pendurado no prego, eu  vi que ele tinha sido matado e no começo não senti nada. Somente  olhei  de novo  e  disse  olhe  Luzinete,  olhe  que  acertaram Amaro,  não está bom a gente pendurar esse animal pelum pé, que foi por  causo  dele  que  mataram  Amaro?  Mas  não  tive  tempo  de  fazer  mais  nada,  porque  estava  ainda  a  fuzilaria  e  eu  tinha  de  me  agüentar e fiquei assim até quando deu umas duas horas  e parece  que eles mandaram buscar reforço, porque pelo que eu sei devem  ter deixado uns  quatro vigiando o caminho, ou mesmo mais, que  é  para  não  admitir  saída  nenhuma.  Em  meia  hora  esse  reforço  chega,  não  chega  não?  Deve  de  chegar,  disse  Luzinete,  e  não  estava com medo. Eu fiquei olhando mais Amaro morto. Luzinete  disse,  quando  você  estava  atirando  na janela,  eu  quis  fechar  as  vistas dele, mas não fechou, vai ter que ficar assim mesmo. É, eu  disse, vai  ter  que  ficar assim mesmo.  É, vai  ter  que  ficar. Aí  ela  disse ele era como seu irmão, e eu disse acho que era, era mesmo,  acho que era, e acredito que no mundo eu só tinha ele e você, isso  eu acredito. Estou sentido, eu disse, essa vida é uma bosta. Puxei  ar:  quem  está vivo  está morto,  a verdade  é  essa.  Reze um  terço,  Luzinete. Reze um rosário. Ainda  outro dia ele estava rezando  lá  no padre, ele sabe todas as rezas. Sabe, não; sabia, disse Luzinete,  e por  que tu não acaba com aqueles pestes de uma vez logo e vai  embora com sua missão? É, digo eu, só se eu fosse um avião. Só  se eu fosse um elefante. Ali tem uma ruma de homem e se eu fôr  lá, antes de eu poder dizer uai, eles dão conta de mim certinho e aí  quem vai levar esse bexiguento para Aracaju, você com certeza é  que não vai. Bom, ficando aí, tu também não sai. Isso eu sei, digo  eu, mas também não sei. Acontece sempre alguma coisa. Olhe, eu  sou  um  homem  diferente,  mas  não  diferente  do jeito  que  você  pensa,  mas  eu  sou  diferente  porque  me  sinto  diferente,  é  uma  coisa.  Posso  dizer  uma  coisa  que  pensei  quando  estava  lá  no  padre,  mas  escute  calada, porque,  se  der risada,  eu  lhe  dou uma  porrada: eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu pai era brabo e meu  avô era brabo  e no  sertão daqui não tem ninguém mais brabo  do  que eu. E eu dou um murro na testa do carneiro que aparecer e o  carneiro morre. E tem mais coisas, mas eu não digo agora. Essas  coisas eu acho que não  se fala, talvez. Hum, não  adianta. Eu  sou  eu. Meu nome  é um  verso:  Getúlio  Santos Bezerra,  e de vez  em  quando eu penso que, não tendo ninguém melhor do que eu, tudo  que pode me acontecer é melhor do que os outros. Hum. Não  sei,  acho  que  eu  penso  demais,  não  adianta.  Seu  nome  é  um  verso,  disse  Luzinete,  e você  nunca  que vai  morrer.  Isso  é  fato. Agora  mesmo  eu  levo  esse  homem.  Olhe,  tem  essa  força  lá  fora,  não  tem?  Sendo eu cabresteiro, já  tinha me livrado de tudo  isso. Não  tem ninguém por  trás  de mim,  essas  alturas. Mas  sendo eu mais  do  que  qualquer  coisa,  porque  eu  sou  e  fui  criado  assim,  pode  acontecer tudo, que esse traste eu levo para Aracaju arrastado. Eu  disse  que  levava,  e  levo  e  tiro  de  eito  tudo,  estou  lhe  dizendo.  Depois pode ser o que fôr, não é preciso cascavilhar esse Sergipe  inteiro  atrás  de  mim,  que  eu  estou  livre  e  homem  e  quero  ver,  porque  o pior  que pode me  acontecer é eu morrer  e isso não  é o  pior.  Pior  é  ser pataqueiro  em  qualquer  engenho. Pior  é não  ser  ninguém,  mas  lá  no  padre  eu  vi,  quando  conversei  com  os  homens  e Amaro  estava  com  aquela  ferramenta  apontada  dentro  da igreja, eu vi o que é que eu sou, e eu sou eu, e porisso  que eu  vou levar esse animal e ninguém me empata, que se me empata eu  
destruo.  Eu  sei,  disse  Luzinete  me  olhando,  mas  como  é  que  tu  não acaba com aqueles pestes de uma vez logo? Já lhe disse, tem  que  acontecer qualquer coisa, não  sou  avião. Possa  ser  de noite,  possa  ser  que  eu me  desembarafuste de noite pelai  e  suma, hoje  não  tem  lua  nem  eu  sou  vagalume  para  brilhar  no  escuro.  Tem  umas bombas aí, disse Luzinete, tem umas bombas aí, do homem  que  vivia  amancebado  com  minha  irmã  e  que  trabalhou  numa  pedreira. Quês bombas? Umas bombas,  disse ela, que parece um  rolo  cada  e  que vem  num  molho  dumas  cinco,  acende  e joga.  E  separando  todas  pode  jogar  umas  cinco  vezes,  meia  dúzia,  que  abre caminho ali e não sobra nada. São umas bombas ótimas.       Está   vendo   aquilo   brilhando   no   escuro,   peste?   Aquilo  brilhando  meio  azul,  aquilo  se  chama-se  uma  planta  por  nome  cunanã, que é como uns  cipós. Aquilo  é seu inferno, sempre foi.  Mas  meu, meu  é minhas  estrelas e por  ali  sei para  onde  eu vou,  porque  nasci  aqui  e  essa  terra  é  minha.  E  agora  é  minha  só,  porque  morreu  todo  mundo  que  prestava.  Tudo  culpa  sua,  que  não tem nada  com essa terra, posso  lhe garantir. Pois  está vendo  aqueles  brilhos,  são  meus  brilhos  do  mato  e  se  eu  quisesse  brilhava também e casava com a Princesa Vagalume e voava. Mas  não  faço isso,  lhe levo para  Aracaju  e lá não  sei. Luzinete  subiu  com as bombas, nada deve ser achado dela, no meio da pedra e do  barro.  Satisfatório, isso? Apois.  E  então. Não  ia  ficar lá, isso  eu  não  ia.  Tinha  uns  instantes  que  eu  pensava  que  eu  ia,  mas  era  porque eu me esquecia quem sou eu. Quando eu me lembrava, me  lembrava  da  estrada  e  dessas  soltas  que  tem  aí,  desse  e  daquele  logrador,  um   canavial  e  uma   catinga,  era  disso  que  eu  me  lembrava,  dessas  cabeças  de  frade.  Isso  é  um  verdume  só,  mas  isso  ninguém  sente,  só  que  sente.  Agora,  como  minha  mulher,  podia ela ficar lá o tempo todo, que uma vez no ano eu ia lá e com  uma vergalhada  só eu emprenhava ela por  toda  a vida,  suficiente  para ela ir parindo, ir parindo até o fim, cada filho tão grande que  os embigos era metros e a barriga de doze meses, porque eu tenho  aqui como um jegue,  eu tenho aqui como o maior dos bichos, e se  
eu galar esse chão nasce árvores de frutos. O chão é como minha  mãe,  seu peste.  Seu peste,  puto,  peste,  peste,  peste,  seu pirobão.  Perde  a  força  os  nomes,  quando  eu  lhe  xingo  e  porisso  vou  inventar uma porção de nomes para lhe xingar e de hoje em diante  todo  mundo  vai  xingar   esses  nomes.   Crazento  da  pustema,  violado  do  inferno, disfricumbado firigufico do  azeite. E  invento  mais.  Se ela ficasse, não que eu ficasse também, eu deixava. Mas  ia  lá  e  emprenhava  de  uma  enfincada  só  e  ela  nem  precisava  comer  nem  nada,  porque  ela  ficava  como  o  chão,  só  tomava  chuva.  Só precisava  disso. E meus  filhos, peste?  Carniculado da  isburriguela,  retrelequento  do  estrulambique.  Não   se  ouse  de  responder, porque lhe tiro sua vida da pior maneira, levando dois  anos  e  meio,  cada  dia  tirando  umas  gramas  de  sua  carne, pense  nisso,  nem  se  ouse.  Ela  era  minha  mulher,  agora  é  a  lua.  Sabe  vosmecê  que  minha  mulher  agora  é  a  lua?  Ficou  lua  quando  explodiu  com  as  bombas  e  os  cabras  que  estavam  lá  são  uns  belzebus  e  vão  viver  debaixo  do  chão  até  que  eu  queira  e  eu  sempre  vou  querer.  Agora,  Amaro.  Não  me  interessa  o  que  ninguém  diga  quando me  olhar,  com  essa  cinza na  cara, mesmo  porque quem disser o que eu não gosto eu como a alma, eu olho e  esturrico, eu viro a pessoa numa lingüiça. Quando eu gritei que se  ouviu em todo o Estado de Sergipe, desde lá no São Francisco até  no  Estado da Bahia, de bandinha por  bandinha,  foi por  causo de  Amaro  que  eu  gritei,  que  era  meu  irmão.  Luzinete  é  a  lua,  mas  Amaro?  Não  é  nada.  ele  não  é  nada,  porque  morreu  e  ficou  lá,  com as vistas abertas. Era pequeno, mas era homem, mais homem  do que novecentos mil da sua marca e com essa mesma arma que  era  do  padre  e  depois  dele  e  agora  minha,  que  eu  guardo  nas  costas  e  que  mão  nenhuma  pode  tocar  que  não  a  minha  senão  morre,  com essa mesma  arma eu enfrento o que aparecer, eu tiro  de eito. Se vem um batalhão, eu dou testa. Se vem um gigante, eu  garguelo. Agora eu tenho dor no peito e às vezes não posso tomar  fôlego e até agora estou chorando lama e passei umas horas  sem  querer nada, sem poder levantar a mão, sem enxergar nada. ele era  chofer,  escute,  e  agora  não  é  mais  nada.  Como  se  pode  pensar  nisso.  E  fique quieto  e vá  marchando bem,  que  cada vez  que  eu  digo Amaro eu também estou querendo dizer louvado seja Nosso  Senhor  Jesus  Cristo  e  vosmecê  pensa  sem  dizer,  mas  tem  que  pensar  mesmo,  que  eu  estou  olhando  sua  cara,  vosmecê  pensa  para  sempre  seia  louvado  tão  bom  Senhor,  e  tem  que  pensar  assim: para sempre seja louvado tão bom Senhor Amaro, tão bom  Senhor Amaro,  tão  bom  Senhor Amaro,  vai  que  eu  lhe  furo  as  costas  de  espora,  e agradeça que não  lhe  amunto e agradeça que  não lhe enterro no  chão de cabeça para baixo  com um  canudo de  mamão  na  venta  para  entrar  ar,  agradeça,  sacrista! Ai,  ai,  ai,  ai.  Pode  dizer  que  eu  estou  sujo,  mas  isso  é  cinza  e  cinza  de  tão  queimada é limpa e não tiro essa cinza da cara. Nem vi quando ele  tomou  o  tiro,  estava  vigiando  a  sua  laia.  Vá  marchando,  vá  marchando,  quero marchando. Nós  vamos marchando  até chegar  na beira do rio, que nós possa  ser que vamos de canoa, vosmecê  remando  e eu com pose,  é assim  que nós  vamos.  Diga:  louvado  seja  nosso  Senhor  Amaro,  para  sempre  seja  louvado  tão  bom  Senhor  Amaro.  Agora  me  digo:  como  pode  ter  outra  coisa  que  não eu lhe levar para Aracaju e depois, depois não sei? Porque, se  eu  fosse  tirar  vingança,  não  tinha  tantos  que  eu  matasse  que  pudesse   descontar  Amaro  nem  meus   filhos,  nem  a  cara  de  Luzinete avoando pelas nuvens e virando lua e eu daqui de baixo  com cinza na  cara e chorando lama, me  diga uma  coisa. Homem  creia. Não me diga nada: louvado seja nosso  Senhor Amaro, para  sempre  seja  louvado  tão  bom  Senhor  Amaro,  tão  bom  Senhor  Amaro,  vá  pensando,  vá  pensando,  e  quando  eu  falar  no  nome  dele,  vá  pensando  e  se  benzendo,  vosmecê  tem  pecado  por  demasiado.  Antes,  eu  nem  conhecia  Amaro  direito,  mas  depois  era  o  melhor  amigo  que  um  homem já  pôde  ter  e  até  de jia  ele  gostava,  ficava espiando jia  e tendo pena  de jia  e  qualquer  coisa  com jia.  Lá com as vistas  abertas. Quer dizer, agora que foi todo  mundo,  só  resto  eu  e  então.  Repare  aquele mato  brilhando  azul.  Diz que é mato? Não, diz que é alma, diz que é luz de defunto, diz  
que é caipora pitando,  diz tudo, mas não  é, e é um  fogo frio que  só  eu  sei, minhas  estrelas. Pode  compreender, eu estou no  céu e  vosmecê  está  no  inferno,  não  adianta.  E  eu  não  preciso  nem  comer  nem  fazer  nada,  daqui  nós  vamos.  Se  eu  quiser,  pego  a  Bandeira  do  Divino  e  seguro  em  riba  e  uns  apitos  que  pode  se  fazer  de  taquara,  mas  vosmecê  nem  sabe  o  que  é  taquara,  esses  apitos  para  chamar  o  Exércio  dos  homens  machos  donos  dessa  terra,  tudo  uns  campiãos  e  sempre  fazendo  guerra,  tudo  uns  santos.  Aí  é  que  eu  quero  ver  quem  vai  falar.  Eu  era  sargento,  veja vosmecê,  do  enfiador do  sapato até o  emblema. Bom,  então  me olho e digo: você é um macaco, coisinha, isso é o que você é,  mestre.  Então  não  sou  mais  macaco.  E  em  vez  de  ficar  aqui  olhando esses  flagelados, essas levas, esses libombos, chupando  mamãe de luana sem mais nada e vendo o mundo passar,  em vez  disso que se podia ter? Se podia ter, para provar que vosmecê não  presta, nem sua laia presta, se podia ter o meu Exércio novamente,  que  eu vou  chamar esse Exércio outra vez  e a terra toda vai ver,  porque,  quando juntar  aquele mundo  de  homem  e bicho,  aquele  Exércio, ninguém ganha mais, e a gente toma conta e eu vou fazer  meus  filhos na  lua.  O  que  é que  eu  fiz até agora? Nada.  Eu não  era  eu,  era um  pedaço  do  outro,  mas  agora  eu  sou  eu  sempre  e  quem pode?  Eu  vou  lhe  levar, peste,  até  o  meio  de Aracaju,  lhe  levo na Rua João Pessoa  de coleira e vou  dizer: se eu quiser  ser  governador,  eu vou  ser  governador  e  quem  quiser  que  se  acerte  com  o  meu  Exércio,  que  quase  que  nem  cabe  no  Estado  de  Sergipe.  Tomando   de   Canindé   de   São  Francisco   até  Brejo  Grande,  beirando  o  rio  e  entrando  mais  para  dentro  vem  os  alemãos brancos  do  comando  de  Porto  da  Folha  e  os  brabos  de  Própria, Primeiro Regimento dos Encourados, que faz uma fileira  de  quatrocentos  homens  por  fila  e  é  tanta  fila  que  não  se  pode  contar, tudo amuntado nuns cavalos pequenos de cabeça buliçosa  e que as patas  cavam no  chão e  sai fumaça das ventas no  tempo  frio.  Esses  tem  lanças,  carregando  as  guiadas  no  braço  direito  e  desce  como  uma  arribada,  uma  estourada  pela  riba  do  capim  
panaço  e  do  que  mais  tiver  na  frente,  não  tem  força  que  possa  resistir. De cada lado, vem uma fileira de trombeteiros assoprando  numas  trombetas  de  aço  que  nem  vinte  homens  dos  daqui pode  levantar  e  com  essas  trombetas  tocando  todos  homens  na  frente  desaparece  e  as  mulheres  que  vão  ter  filho  o  filho  encrua  e não  nasce,  por  causa  dessas  trombetas.  E  é  uma  raça  forte,  que  quando tem  come cuscus  com leite, quando não  tem  come bró  e  se   sustenta.   Comandada   pelo       Capitão   Geraldo   Bonfim        do  Cansanção,  que  o  cavalo  anda mais  do  que  o  vento  e  que  fuzila  um  homem  a  duas  léguas  e  que  quando  chove  desafasta  as  nuvens  assoprando  e  no  combate  só  perde  para  mim,  porque já  ganhou  de  São Jorge  e botou  o  santo correndo no  prado,  dando  uns  berros  de  santo  e  pedindo  misericórdia.  Esses  tem  gibão,  perneira, colete, joelheira  e guarda-pé de couro ruço e empoeirado  e  nada  fura  aquele  couro,  possa  ser  qualquer  peça  ronqueira,  possa  ser  o  que  vinher.  São  Jorge  desceu  uma  certa  feita  para  salvar um  homem  que  o  Capitão  Geraldo  ia  sangrar, por  ele  ser  ruim e um prejuízo e disse ao Capitão: esse homem é meu devoto,  me   faça  vosmecê   o   favor  de   soltar  ele  e  ainda  reza  umas  penitências  para  desfazer  o  malfeito.  Então  o  Capitão  Geraldo,  com o pé na goela do ordinário, tirou o chapéu, atufou a cabeleira  loura para  trás,  se benzeu  e  disse  ao  santo:  o  senhor  é um  bom  santo, merecedor de respeito e se fosse em outra ocasião eu estava  disposto a receber a vontade de Vossa Santidão, mas esse homem  aqui não merece preocupação e além do mais me deu trabalho de  correr  pelêsse  descampado  para  laçar  ele  e  o  senhor  queira  me  desculpar, mas  esse  vivente  daqui vai  ser  sangrado  e  é  agora.  E  dito  isso  fez  uma  careta  tão  medonha  que  um  pé  de  árvore  que  estava  de  junto   foi  logo  murchando.  O  santo  disse:  taí,  é  o  primeiro  homem  que  me  fala  assim  e  não  gostei  dessa  fala,  de  formas  que  eu  vou  pegar  minha  lança  e  vou  lhe  esbuchar,  e  é  agora.  E  esporeou  seu  cavalo  avoador  e  foi  de  lança  para  o  Capitão Geraldo, mas ele segurou a lança e arreganhou uns dentes  tão  lustrosos  para  o  cavalo  do  santo,  que  o  cavalo passarinhou.  
Ôi, santo, disse o Capitão Geraldo, vá desculpando, e encarcou a  lança na perneira  e  sendo  a perneira  daquele couro  duro,  a lança  partiu em vinte e três pedaços, e o santo não teve mais nada o que  fazer  e  somente  disse:  está  maluco,  homem?  Endoidou?  Estava  não,  mas  fiquei,  disse  o  Capitão  Geraldo,  e  arreganhou mais  os  dentes  ainda  e tirou uma  lambedeira de  dois metros  da  cintura  o  cujo  aço  era  tanto  que  dois  homens  dos  bons  não  agüentava  carregar,  e  disse  ao  santo,  ciscando  o  ar:  o  senhor  é  São Jorge,  mas  Deus  me perdoe  se  com  esse  espinho  de  Santo Antônio  eu  não  fizer uma  miséria,  se Vossa  Santidão não  sair  desse  Estado  nestante.  Vendo  dessa  forma  o  seu  cavalo  amofinado  e  a  sua  lança partida, o santo foi só virando no calcanhar e se meteu num  arrastador  com  o  Capitão  Geraldo  atrás  e  foi  uma  corrida  que  durou dois dias e meio, por  cima de terra,  água e macambira e o  que  viesse  e  o  Capitão  tirando  faísca  do  chão  com  sua  faca  de  arrasto,  que  de  tão  amolada  tirava  gemido  do  ar.  De  vez  em  quando, chegava perto  do  santo, mas  aí o  santo olhava para trás,  empinava  a  cabeça  e  se  picava,  esbagaçando  os  matos  pelo  caminho  e  levantando  folha  e  galho  por  tudo  quanto  era  canto,  ficava aquelas folhas e matos boiando  nos  ares e uma barulheira  de  galho  quebrado  pelo  campo.  Acabou  o  santo  se  escondendo  atrás  duma nuvem  e  o  Capitão  Geraldo  deixou  de  lado,  foi para  casa,  matou  um  bezerro  e  comeu  e  palitou  os  dentes  com  as  costelas. O santo correu quase que de Porto da Folha a Siriri e até  hoje tem aquela nuvem lá, que é para ele se esconder, se o Capitão  Geraldo Cansanção aparecer novamente por lá aperreado da vida.  O  Segundo Regimento dos Encourados parte  da quina de Nossa  Senhora da Glória, por cima de Carira e Frei Paulo, até Socorro, e  essa  força  é  comandada  pelo  Major  Jacaré  de  Carira,  assim  chamado porque tem mais dente do que um jacaré  e a boca maior  e  gosta  muito  de  dar  risada  e  dizem  que  não  tem  pai  nem  mãe,  nascendo  de  dentro  de uma  ipueira,  donde  saiu todo  armado, na  mão  esquerda uma  cruz  de mandacaru, na  mão  direita uma  foice  de prata e quem estava na beira da ipueira ele foi logo degolando  com a foice, para mostrar quem era o comandante daquelas terras.  Esse  regimento  tem  diversos  tenentes  dos  melhores,  e  todos  vestidos de couro malhado de preto  e branco  e que por mais que  tome  pó  nunca  avermelha nem  encarde. Muitos  vão  no  combate  amuntados em bois  e na hora do encontro se a arma cai arrancam  os  chifres  dos  bois  e  chifram  os  inimigos  com  aqueles  chifres  todos  entortados,  pretos  e  compridos.  Foi  o  Major  Jacaré  de  Carira que venceu duzentos batalhãos de baianos  que passaram  a  fronteira,  e  o  Major  foi  vencendo  baiano,  vencendo  baiano,  e  a  baianada  despencando  e  ele  aproveitando  para  fazer  um  roçado  que  foi  de  Itabaiana  até  Poço  Redondo  e  esse  vai  ser  sempre  o  roçado dele, quando o Exércio avançar e tomar as terras. E esses  combatem  com  gritos,  que  é  para  os  inimigos  amunhecar  só  de  ouvir  o  alarido.  É  como  se  diz:  se  olhando-se  a   Serra  do  Quizongo,  nada  se  vê-se,  só  que  de  repente  o  chão  principia  a  estrondejar e sair fumaça de trás dos montes e aquela fumaça vai  subindo, vai  subindo, quando  se não  é o Major  Jacaré  de Carira  que está naquelas bandas  e vai destabocando pela  serra em baixo  seguido pelos seus cavaleiros e onde vai passando vai arrancando  os  pés  de  árvore  e  desassombrando.  Ou  assim:  quando  o  rio  Morcego  está  cheio  e  todos  estão  desprecatados,  ouvindo  as  águas   desaguando   e   sentindo   o   cheiro   da   terra   molhada   e  aguardando  tanajuras  e  qualquer  coisa  nesse  sistema,  quando  é  que me pula de dentro do rio o Major Jacaré com os peixes tudo  saltando pela barba dele e quando ele sai levanta uma ôndia que o  rio  fica maior  do  que  o  São Francisco  e  depois  seca  de  medo  e  toda  a  terra  esturrica,  isso  até  o  Major  dar  uma  risada  e  se  embrenhar nos matos e nisso o rio vai voltando, vai voltando, até  voltar  com todos  os  seus peixinhos.  E  quando teve  a guerra iam  mandar  esse  povo  do  Major  Jacaré  para  a  guerra,  mas  veio  o  americano e disse: não me mande esses homens do Major Jacaré  aqui, que não  sobra nada  e aí não mandaram e a guerra demorou  mais.  O  Terceiro  Regimento  dos  Encourados  parte  mais  ou  menos  das  beiradas  de  Simão  Dias,  fazendo  ziguezague  até  
Barracão, de lá para Estância e Indiaroba e outros lugares, e esse  Comandante  é  o  Capitão  Rosivaldo  da  Silva com  Onça,  que  foi  criado  pelumas  onças,  mas  depois  teve  que  sair  ainda  menino,  porque  as onças não podiam com ele, porque  com dois meses de  idade  ele já  pintava  os  canecos  e  inclusive  num  dia  que  estava  muito  azuretado armou um  quebra-pé no  chão que afundou duas  dúzias  de boiadas,  buraco  esse  que  ele  cavou  só  com  as  unhas,  porque   nem   dente  tinha   ainda,  para   mascar   as   pedras   que  aparecesse,  e  depois  foi vaqueiro  muito  tempo.  Quando  baixava  um boi,  a mucica era tão  forte que o boi  entrava pelo  chão e tem  diversos plantados pelo chão que ele andou, isso das mucicas que  ele dava,  e  às vezes  cocorotes. Quando parou,  vinha numa  mula  de padre,  mas  dava muito trabalho para  criar e ele  soltou a mula  com muito  desgosto, mas  até hoje,  de vez  em quando,  ele chega  no mato e chama a mula e os dois ficam prosando muito tempo e  às vezes ele amunta e passa vinte dias nos matos passeando com a  mula,  quando  é  depois volta  muito  do  satisfeito. Esse  regimento  combate vestido de couro de onça, e o Capitão Rosivaldo anda de  couro de onça pintada, com a cabeça da onça em cima do chapéu e  uma flor vermelha dentro da boca da onça, carregando como arma  um  canhão pequeno  que ele usa  debaixo do subaco e que destrui  mil  e  duzentos homens  com  cada tiro bem  encaixado. Teve uma  certa  feita  que  o  Capitão  Rosivaldo  estava  lutando  com  mil  e  duzentos  homens  e  por  mais  que  lutasse  não  conseguia  matar  mais do que quarenta e dois por minuto, de formas que de repente  ele  disse:  macho  não  briga  assim  de  bolo;  macho  briga  com  ordem; façam fila aí, que eu recebo vosmecês um por um. Aí eles  fizeram fila e o Capitão Rosivaldo levantou o canhão mais do que  depressa e deu um tiro só e não ficou nenhum inimigo em pé e ele  voltou para casa muito ancho, assobiando uns assobios de chamar  onça e veio foi onça nesse dia festejar. Só que as onças ficaram se  queixando por não pode comer aquela força de homem toda, isso  porque quem estava ali no chão tinha virado poeira ou então papa  e muitos tinham ido parar no Estado das Alagoas, com a força do  tiro de canhão, e diz que choveu cabra safado no Maranhão nesse  dia, tudo em fila como tinha sido combinado.       Pois,  dando no juízo  fazer isso,  eu pego  uns  apitos  e umas  cometas  e  chamo  esse  meu  Exércio  que  eu  sou  Comandante  e  entro  em  Aracaju   com  vosmecê  numa  parada,   com  o   chão  cheirando  a  folha  de pitanga  e não  deixo nada  no  caminho. Isso  tudo são machos, isso é que eles são.       Esse rio tem pouca água, menas água do que os outros rios e  bem menas água do que o rio São Francisco, mas posso lhe dizer  que  é  bom  rio.  E  se  vamos  aqui  é  porque  eu  inventei  de  vim  pelaqui, acho que de Santo Amaro deslizemos pelo rio e estamos  chegando  logo  na  Barra  dos  Coqueiros.  De  lá  espio  Aracaju  e  fico lá olhando, curtindo raiva,  e uma bela hora  arrasto isso para  lá,  jogo  no  meio  da  rua,  faço  a  entrega  e  espero.  Entreguei,  cambada  de  capadoços,  entreguei.  Agora  quero  ver.  An-bem,  nunca pensei no  que eu vou  fazer depois, comigo agora não tem  depois. Rio safado, já  vai ficando salgado desde ionge, fica como  que um  mar,  isso  é  o  que me  reta, porque,  no  direito,  sendo rio  Sergipe,  devia  de  empurrar  essa  maré  toda  para  dentro  até  ela  gritar chega. Mas não, vai  salgando, vai  salgando e até faz umas  ôndias  de mar  e  fica  azul. Não  gosto  dessa  água toda.  Bem  que  gosto mas é às vezes de ver de cá os costados dos balaústres dos  cais  de Aracaju  e  essas  casas  de porta  grande  que  tem  do  outro  lado  da rua  da Frente  e uns  caminhãos ou  outros  e  às vezes um  navio.  Se vai-se  navegando,  se vai-se  vendo  a  cidade  chegando.  Tem um pedaço que se pode  sentir o cheiro da feira e essa barra,  que  só  se  vê  coqueiro.  Eu  que  digo,  antes  de  chegar  na  água  salgada, com bem umas cinco ou seis léguas da saída, antes disso  é  um  rio  bom.  Não  é  um  rio  como  o  São  Francisco,  que  é  um  espotismo e essas canoas e esses barcos que nem se compara com  as  canoas  e  os barcos  de  lá, porque  a  canoa  do  São Francisco  é  alta e forte e cabe centos coisas dentro. Defronte de Penedo, pode  dar voltas o  São Francisco, que as voltas não  é de fraqueza, é de  capricho mesmo,  e tem  a hora  das  cabaças, que  as mulheres vão  no rio e lá se pesca camarão com uma estôpa e tripa de galinha ou  qualquer coisa. Pode  ficar  sentado na beira,  com aquela estôpa e  trazendo  camarão,  que  é  farto  lá,  e  os  meninos  pegam  tanto  camarão  que  os  grandes  ficam  enjoados.  Também  possa   ser  piranhas, que uns  lugares tem, outros lugares não, com um dente  que  corta  o  fio  de  aço  e  uma  malvadeza  por  demais.  Aquilo  quando pega um animal que cai dentro do rio junta  mais de mil e  vai rebuliçando e entrando por debaixo do couro do bicho que só  se vê estufar e tudo junto  faz um barulho chiado quase que como  uns passarinhos. Logo fica a carcaça escarnada, é uma limpeza, e  aquilo  o  rio  vai  deixando,  vai  deixando  e  de  repente  vira  um  pedaço do rio, uma pedra cheia de limo, um chão e uma lama, e as  piranhas nunca mais se vê até que outro animal entra e elas fazem  a  limpeza  outra  vez.  Eu  que  não  sou  de  lá,  mas  tive  de  visitar  Passagem  muitas  vezes,  eu  que não  sou  de  lá, não  entro no  rio:  chego nas partes baixas de bota e boto a mão no queixo e assunto  aquela água amarela um tempão. Uma água que nem parece que é  a maior  do  mundo,  como  o  São Francisco  é,  separando  Sergipe  do  resto  em  riba,  como  o  Real  separa  o  resto  em  baixo,  e  fica  Sergipe  in-teirão  aí.  E  depois  o  São  Francisco  vai  para  todo  o  Brasil e enche tudo e carrega as terras até o ôco do mundo, quase  que não pode existir coisa mais importante. Muitas vezes, quando  faz  lua,  o  rio  prateia,  mas  não  é  sempre, mas  às  vezes  prateia  e  pode   se  olhar  aquilo  como  uma   fita,  escamando  e  luzindo.  Qualquer  barulho  que  se  faz  se  ouve,  um  homem  andando  na  beira  molhada,  quando  ela  é  baixa,  um  mourão  encostando  e  desencostando na borda da canoa ou uma mulher falando até bem  longe, e temos aquele sossego grande, às vezes um grilo ou outro,  às vezes bastantes sapos, mas só. Agora, esse rio daqui tem suas  boas coisas, passando nessas boas terras e fazendo essa confusão  de água aqui, desde Maruim, mais ou menos. Não  sei nem aonde  
começa o peste, porque  de repente pode  sumir e só pega mesmo  força aqui por  perto,  e aí entra e  sai e  sai e entra e  salga e é um  negócio,  qualquer  um  pode  ver.  Agora,  esse  povo  de  beira  de  maré  é uma  coisa  ruim,  está  acostumado  com  facilidade: mete  a  mão no mangue e tira um sururu, tira um gaiamum, tira um aratu,  tira  umas  ostras,  e  come.  No  outro  dia,  está  pensando  o  que?  Nada.  A  maré  nunca  seca,  nem  a  lama  nem  essas  gaiteiras  estralando aí com esse barulhinho de mangue, que quando a gente  vai entrando a gente vai ouvindo e toma até susto. Aí  sai tudo de  novo, vai lá dentro do mangue, pega um sururu, umas ostras, um  gaiamum  e  come  e pode  dormir.  Em  Aracaju,  atrás  da  igreja  de  São José, atrás do Carro Quebrado, tem um rio pelo nome de rio  Tamandaí,  um   bicho   imundo,   bicho   porco   desgraçado,   que  quando  se  entra  nele  se  «ai  com  uma  barba  de  lama.  Apois,  atravessando  o  apicum,  entrando  naquele  mangue,  se  vê  uma  ruma de gente com uma varinha, pegando siri no rio Tamandaí. E  tem umas  capineiras altas, aonde a terra  é mais  seca, que se acha  gente fazendo qualquer pior tipo de descaração. Povo de beira de  maré  é  isso,  come  e  faz  senvergonhice, tudo  tem  um  renque  de  filho  que  é uma  enfieira, porque  é tudo  na  facilidade. Então  fica  tudo ordinário, falador e testemunha, não vale nada, nunca tem de  pensar no outro dia, e isso não é bom. Eu mesmo não gosto dessa  raça, não  suporto, fico sem jeito  e vou me raspando, vou  saindo,  prefiro ir ficando .nos meus. Então já  estão fazendo uma revirada  lá em Aracaju e eu vou sair de noite pelo rio, que eu sei que estão  me   esperando   em  Aracaju   e   eu  não   gosto   de   homem   me  esperando,  que não  assenta.  Então: vão  me  esperar por  terra  em  Aracaju. Aí  eu chego por  água na Barra dos Coqueiros, para ver  como é que está tudo  e de lá eu atravesso e levo a carga. Aí tem  quem  me  segure.  Posso  lhe  dizer:  seu  eu  quiser,  atravesso  essa  merda  andando.  Se  eu  quiser, bebo  essa  água toda,  seco  o rio  e  vou  a  pé,  só  que  o  diabo  da  água  é  salgada  e  não  é  fácil.  Em  Aracaju,  tem  quem  atravesse nadando  todo  dia, tem uma  mulher  chamada Rita Peixe que faz isso, para mim ela é maluca e o irmão  
dela  também,  onde  já  se  viu  mania  de  atravessar  uma  largura  dessa  nadando  todo  santo  dia,  desta.  Bom,  possa  ser  que  eu  mande vosmecê nadando,  isso possa  ser, porque  com a sustança  que vosmecê  está vai  ser uma  festa, não  chega nem  na  beira.  A  gengiva deve de ir bem, essas alturas, hem? Ora, um serviço bem  feito  desses,  nem  pagando  se  encontrava  melhor.  Chegando  lá,  chegando bem de manhã, vamos ver tudo côr-de-rosa, com o sol  nascendo.  Se eu quiser, eu mando parar de nascer o sol, mas não  quero laçar o peste hoje, deixe ele. Pois então. Chegando logo de  manhã,  fico  com  o  dia  todo  para  pensar  e  ficar  lá.  Posso  lhe  ancorar  dentro  do  rio,  para  os  siris  ficar  lhe  pegando  os  pés  e  vosmecê vai ter que ficar dançando, que é para  os bichinhos não  se fartar. Mas não faça isso, que vem logo gente ver o que é, esse  povo não pode ver nada que não pergunte o que é, de formas que,  chegando de manhãzinha, encostemos na praia, passamos naquela  lama  e  aguardamos.  Podia  descer  logo  em  Aracaju,  com  a  raça  toda  me  esperando  lá,  mas  não  desço.  Não  pense  que  eu  tenho  medo, porque medo é uma coisa que um macho como eu não tem,  nunca teve, nunca vai ter, nem nunca  ia ter. Medo  de que? Duns  inquizilados  que  tem  lá  e  duns  praças  de  beira  de  praia,  tudo  tremendo, que nunca viu ação. Porque eu com uma mão amarrada  num pé almoço todos eles, porisso que não é medo. Mas, na hora  que  chegar,  pode  ter  uma  mortalidade  muito  grande  e  aí  se  atrapalha-se as coisas, porque até vosmecê pode receber d seu, no  melhor do gosto, e vosmecê não vai assim, não. Vai até a casa do  chefe, que eu quero levar e quero olhar a cara dele e dizer: olhe aí  sua  encomenda, pode  fazer  o  que  quiser;  por  mim,  pegava  esse  ordinário  e  aplicava um  merecido  logo,  que  aprontava  as  coisas,  mas não tenho nada com isso mesmo. É isso que eu quero fazer, e  quero botar as vistas bem dentro das dele, que é para ele dizer na  minha  cara  que  não  mandou  buscar  e  aí  eu  digo  a  ele:  quem  o  senhor  mandou  em  Paulo  Afonso,  que  eu  me  lembro,  aqui  mesmo  nessa  sala,  quem  o  senhor  mandou  em  Paulo  Afonso,  numa  noite  aqui  nessa  sala mesmo,  eu,  Getúlio  Santos  Bezerra,  
tomando um vermute vermelho aqui, quem o senhor mandou para  Paulo  Afonso  para  buscar  esse  criaturo,  não  foi  nem  eu.  Possa  ser  que  ele  diga  oxente  Getúlio,  mas  você  não  recebeu  o  meu  recado, que é isso, Getúlio, vá  sentando aí e vamos resolver esse  assunto, você é meus pecados, seu Getúlio. Uma coisa dessas. Eu  digo: o senhor não entendeu o que eu falei. Eu falei que o homem  que  o  senhor  mandou  em  Paulo  Afonso  —  e  me  diga  logo,  mandou  ou  não  mandou?  me  diga  logo,  me  diga  logo!  Mandei,  Seu  Getúlio,  mas  a  coisa  correu  diferente,  vamos  conversar.  Apois  estou lhe dizendo que o homem que o senhor mandou em  Paulo  Afonso,  numa  noite  aqui nessa  sala mesmo,  tomando  um  vermute, aquele homem que deixou o quepe pendurado nas costas  de  uma  cadeira  e  pediu  permissão  para  desabotoar  a  túnica  e  o  senhor deixou e seu filho ficou olhando as duas cartucheiras e eu  pedi um copo dágua e ele chamou a empregada e eu tomei água e  até  na  hora  a  barriga  me  cocou  do  lado  e  eu  fiquei  cocando  e  escutando, depois que bebi  a água. Aquele homem  que o  senhor  mandou  nessa  condição,  no  hudso  preto  com  Amaro,  que  nem  estava lá na hora  e estava dormindo na  Chefatura ou  olhando os  crentes na Rua Duque  de Caxia, que ele apreciava os  cantos dos  crentes, eu acho, pois então, aquele homem que o senhor mandou  não é mais aquele. Eu era ele, agora eu sou eu. Hum, seja homem,  sustente  o  seu,  que  eu  sustentei  o  meu,  tome  seu  pacote  e  não  rode  essa  manivela  desse  telefone  para  chamar  nada,  que  não  adianta,  porque  eu  vou  atravessar  essa  porta,  com  sua  licença,  estimo recomendação a seus parentes, muito agradecido por tudo,  qualquer coisa estou às ordens, ainda não sei aonde, muito prazer,  passe bem, muito obrigado, viva nós, qualquer coisa estou na sua  disposição,  agora  aquele cabo na  porta  é melhor  que  ele não  me  pare, estou lhe dizendo, doutor, não sou mais aquele que o senhor  mandou  para  Paulo  Afonso,  eu  era  ele  e  agora  eu  sou  eu.  Isso  mesmo  eu  digo  com  as  vistas  nas  vistas  dele  e  lhe  deixo  lá,  amarrado  e  sem  dente  e  com  minha  cara  de  cinza  e  com  minha  mulher  de  lua,  vou  no  mundo.  Eu  moro  no  mundo  mesmo,  
pronto.  É  porisso  que  eu  paro  aqui  e  fico  aguardando  a  melhor  hora. E mais, quero espiar bastante Aracaju. Eu nunca me dei bem  com Aracaju, de verdade. Quando estava assim sem nada, tomava  o bonde  circular e  ficava dando umas  voltas  até cansar  ou  então  ficava   na   Chefatura  jogando   pio   com   quem   aparecesse   ou  prosando  com Giba, que era um investigador que tinha, com uns  oclos pretos e meio capenga. E era só. Ou então ia para a Casa do  Chefe  e  pegava  um  pirão   e  ficava  lá,  ajeitando  uma   cerca,  comprando umas coisas na rua ou ensinando um cachorro grande  que tinha  lá, ou contando história  de trancoso  ao filho dele. Mas  logo que podia, ia embora para dentro de Sergipe e lá ficava, que  prefiro  muitíssimo.  Quero  ficar  olhando muito  Aracaju,  curtindo  minha raiva e pensando  em minha vida e querendo saber o que é  que  faz  tanto  povo  lá,  amuntuado  lá,  naquelas  ruas  grandes.  Quando  eu  falo,  ninguém  entende  lá,  quando  um  fala  lá  eu  não  entendo.  É,  depois  disso,  nunca  mais  eu  piso  lá.  Eu  não  tenho  nada, tenho as minhas armas e a minha cara de cinza e tenho essa  terra  toda.  Isso  eu tenho,  essa  terra  toda  eu tenho,  porque  quem  me pariu  foi  a terra,  abrindo um  buraco  no  chão  e  eu  saindo no  meio  de umas  fumaças quentes e como eu outros  ela sempre vai  parir, porque  essa terra é a maior parideira do mundo todo.  Quer  dizer, esse povo de Aracaju não sabe, nem nunca vai saber, só eu  que  sei  o  que tem  nessa  terra  toda  e posso  correr por  cima  dela  com  o  vento  na  cara, nas  águas  e no  chão.  Eu  não  tinha  nada  o  que  fazer  aqui  da primeira  vez,  nunca  tive.  Tinha minha  missão,  isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso tinha também, e vivi, e se  me perguntasse quer viver uma vida comprida amotinado ou quer  viver uma  vida  curta  de macho,  o  que  era  que  eu respondia?  Eu  respondia: quero viver uma vida curta de macho, sendo eu e mais  eu e respeitado nesse mundo e quando eu morrer se alembrem de  mim  assim: morreu  o  Dragão.  Que trouxe uma  mortandade para  os inimigos, que não traiu nem  amunhecou, que não teve melhor  do que ele e que sangrou quem quis  sangrar. Agora  eu sei quem  eu sou. 
      Aquela  força que vem,  coisa, aquela força que vem pelo rio  atravessando, pode se ver os fuzios apontando para cima e está se  vendo  que ninguém  pensa  que vai  me  pegar  fácil, porque  senão  não  vinha  tanta  gente.  Todo  mundo  sabe  que  eu  vou  dar  testa,  aviu vosmecê?  E  só vem  fardado, veja  bem,  coisa, não  vem  um  paisano para remédio  com certeza, só vem mesmo  os mandados,  os  mandadores  não  vem.  Antes  que  eles  queiram  me  acabar,  coisa,  eu  ainda  sou  capaz  de  lhe  arrastar  sete  vezes  pela  beira  dessa  praia  de  lama,  indo  e  voltando,  e  arrasto  o  comandante  dessa força e mais  quantos praças  chegue perto. Não  vejo nem  a  cara, coisa, e não quero conversar, acho que não  carece conversa  agora,  carece  atividade. Aquela  força,  aquela  força,  coisa,  é uma  fraqueza, e daqui mesmo,  com vosmecê amarrado aí no  coqueiro  que  é para  ver  um  macho  lutando,  o  que  vosmecê  nunca  fez na  vida,  trempe,  aquela  força  é uma  fraqueza, venha  de  lá  fraqueza  do governo, me solto, me destaramelo, me vou e é assim mesmo,  na  idéia umas  lembranças, na  mão uns  bacamartes, nos  pés  uma  fincada, minha vida e a laranjeira morta e a lua que Luzinete mora,  espie  aí,  coisa,  é  uma  fraqueza  e  miles  homens  desses  é  como  nada  e  como  eu tem  mais  aqui,  essa  é uma  terra  de macho,  viu,  traste,  e  a  terra  que  me  pariu  vai  me  vomitar  de  novo,  quantas  vezes  me  enterrarem,  quem tem  amigo nesse  mundo,  ôi Amaro,  viu  Amaro,  olhe  quês  jias  brancas  nos  tijolos  do  chão,  não  estremeça, trem, veja que terra essa, com a morte deslizando pelo  rio,  as  caras deles nem  se enxerga, mas veja  que terra  essa,  com  nós  aqui  plantados  no  chão,  não  semos  a  mesma  coisa?  não  semos  a  mesma  coisa?  é  engraçado  como  vem  esses  homens  e  esses  homens  nenhum  está  pensando  nada,  porque  todos  estão  somente  sentindo,  veja  bem,  eu  sinto,  eles  sentem,  tudo  sente,  olhe  essa  água  salgada,  sujeito,  que  veio  de  lá  de  dentro  dos  matos  de  Sergipe e vai  chegando devagar, Morcego,  Cotinguiba,  Jacarecica,  Ganhamoroba,  Poxi,  Pomonga  e  o  Vazabarril  e  o  Piauí  e  o  Itamerim  e  o  Siriri  e  o  Japaratuba,  veja,  coisa,  é  até  bonito essa água vindo de lá de dentro, isso tudo não é uma coisa  
só? a minha cara de cinza, o meu cabelo de terra, a minha bota de  couro,  a  minha  arma  de  ferro,  hem,  coisa?  não  semos  tudo  o  mesmo?  agora  não  muito,  porque  eu  sou  eu,  Getúlio  Santos  Bezerra e meu nome é um verso que vai ser sempre versado e se  tem lua alumia e se tem sol queima a cara e se tem frio desaquece,  ai dois bois de barro e uma caixa de fósforo e um garajau cheio de  barro,  aboio  eu  abóia  tu,  hem  Amaro,  ecô,  ecô,  nós  que  semos  marinheiros larguemos a grande vela porisso  que puxemos  ferro,  olerê, larguemos a grande vela,  olhe aí, Amaro,  eu sou maior  do  que o reis da Hungria, no dia dois de fevereiro tem uma festa em  Capela, hem coisa, sabe onde Capela fica? sabe onde Capela fica,  sabe onde Capela fica, e onde fica Capela? e onde fica Salgado e  onde fica Largato? e onde fiquemos nós? ôi, lá vem eles, assunte,  e tão devagar que não  se sente, em casa tem todos uma mulher e  um  cuscus  e  uns  inchadinhos,  veja  bem  isso,  cada  dia  se  pare  mais nessa terra, é assim uma fortaleza de gente aparecendo nesse  mundo  de meu  Deus, para  que isso, hem?  e eu  sendo  eu,  sendo  eu,  quando  eu  era  menino  eu  comi barro  e  entrei por  dentro  do  chão,  comendo  barro,  cagando  barro  e  comendo  de  novo,  ôi  coisa, olhe a vida, lá vem a força, em Japaratuba tem umas canas e  o  canavial  é  louro,  louro  como  uns  portodafolhenses  e  quem  nasce    em   Muribeca   é   muribequeno   ou   muribequeiro,   hem  Amaro? quando eu entrei em Luzinete, entrei e fiquei, minha santa  santinha, na  lua, minha  santa santinha e umas bombas  de banana  que jogou nos cabras, por que a gente não dá umas risadas, coisa?  que  é que  está vendo  aí, coisa, o  chão? isso tudo  é um  verdume  só,  coisa,  quando  chove  e  quando não  chove  é uma  amarelidão,  mas  vosmecê pode  se jogar  no  chão que não  tem perigo  que  ele  lhe abraça, talvez até lhe coma e você vire um pé de pau ou tu vire  um gaiamum ou vossa excelência vire numa pedra, isso pode crer  e mesmo quente com a chuva esfumaçando, mesmo assim ele lhe  abraça e pode  ficar lá, porque  aonde é que vai  ficar mesmo,  tem  que  ficar no  chão, já  chorou uma  certa  feita,  coisa?  de  fora para  dentro não, mas de dentro para fora, nos repuxos e cavando lá de  
dentro? eu mesmo não, mas possa ser que chore agora, porque eu  estou  com um pouco  de vontade  de  chorar  agora,  seu coisa,  seu  traste,  seu trempe, possa  ser que eu chore agora, visto  que não  é  que  eu  tenho  medo,  eu  não  tenho  medo  nem  de  alma,  mas  eu  posso  chorar  porque  eu  nunca  falei  com  aquela  força  fraqueza  nem vou  falar e tem tanta coisa que eu não pude  fazer porque  eu  não  sabia  e  o  mundo  inteiro parou  aqui, hem  Amaro?  veja  essa  água e essa beira  de rio,  com esse barulho  aí de leve noite  e dia,  veja  essa água e Aracaju  e a ponte  do imperador, veja  esse povo  vindo  atravessando de barco  atrás de nós  e carregando as  armas  apontando para  cima  e  aquele navio  parado  ali, nem  sabe  o  que  está se passando, tem uns homens lá jogando  dominó e pensando  na vida, mas porém o destino está dando volta, hem Amaro? lá na  lua  e  pode  crer  que  eu  estou  vivo  no  inferno,  lá  na  lua  está  Luzinete e essa força se atira eu também atiro, ô minha lazarina, ô  meu  papo  amarelo  e um  mandacaru  de  cabeça para  cima  eu vou  morrer e nunca vou morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca  vou  morrer  um  aboio  e  uma  vida  Amaro  aaaaaaaaaaaaaaaahhh  eeeeeeeeeeeeeeeh aê aê aê aê aê aê aê aê aê aê ecô ecô aê aê aê aê  aê  eu  nunca  vou  morrer  Amaro  e  Luzi  netena  lua  essas  balas  é  como  meu  dedo  longe  e  o  lhelá  Ara  eu  vejocaju  e  a  águacor  rendode   vagar      e  sal   gadaela   éboa   nun     cavoumor      rernun  caeusoueu, ai um boi  de barro,  aiumboi aiumboide barroaê  aê aê  aiumgara jauchei  de barro e vidaeu sou eu e vou e quem foi ai mi  nhalaran jeiramur chaai ei eu vou e cumpro e faço e       FIM