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 Vidas Secas
 Graciliano Ramos

 Capítulo I - Mudança    

    NA PLANÍCIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam  repousado  bastante  na  areia  do  rio  seco,  a  viagem progredira bem três léguas.           
    Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.   
 - Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca  de ponta.  Mas  o  pequeno  esperneou  acuado,  depois  sossegou, deitou-se,  fechou  os  olhos.  Fabiano  ainda  lhe  deu  algumas pancadas  e  esperou  que  ele  se  levantasse.  Como  isto  não acontecesse,  espiou  os  quatro  cantos,  zangado,  praguejando baixo.   
  A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos. - Anda, excomungado. O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração  grosso,  queria responsabilizar  alguém  pela  sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.    
   Tinham  deixado  os  caminhos,  cheios  de  espinho  e  seixos, fazia  horas  que  pisavam  a  margem  do  rio,  a  lama  seca  e rachada que escaldava os pés. Pelo  espírito  atribulado  do  sertanejo  passou a  idéia  de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se,  pegou  no  pulso  do  menino,  que  se  encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitória,  pôs  o  filho  no  cangote,  levantou-se,  agarrou  os bracinhos  que  lhe  caíam  sobre  o  peito,  moles, finos  como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.    
    E  a  viagem  prosseguiu,  mais  lenta,  mais  arrastada,  num silencio grande. Ausente do companheiro,  a   cachorra  Baleia  tomou  a frente  do  grupo.  Arqueada,  as  costelas  à  mostra,  corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.  Ainda  na  véspera  eram  seis  viventes,  contando  com  o papagaio.  Coitado,  morrera  na  areia  do  rio,  onde  haviam descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes  e  por  ali  não  existia  sinal  de  comida.  Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano  também  às  vezes  sentia  falta  dela,  mas  logo a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa: o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro  de  rês perdida  na  catinga.  Sinha  Vitória,  queimando  o  assento  no chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de casamento,       vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio,  que  andava furioso,  com  os  pés  apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente a  família  falava  pouco.  E  depois  daquele  desastre  viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.         
     As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou  o  passo,  esqueceu  a  fome,  a  canseira  e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira  tinha-lhe  aberto  entre  os  dedos  rachaduras  muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam. Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.   
     Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira,  chegaram  aos  juazeiros.  Fazia  tempo  que  não  viam sombra. Sinha Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria  os  olhos,  distinguia  vagamente  um  monte  próximo, algumas  pedras,  um  carro  de  bois.  A  cachorra  Baleia  foi enroscar-se junto dele.   
     Estavam  no  pátio  de  uma  fazenda  sem  vida. O  curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.    Fabiano  procurou  em  vão  perceber  um  toque  de  chocalho. Avizinhou-se  da  casa,  bateu,  tentou  forçar  a  porta. Encontrando  resistência,  penetrou  num  cercadinho  cheio  de plantas  mortas,  rodeou  a  tapera,  alcançou  o  terreiro  do fundo,  viu  um  barreiro  vazio,  um  bosque  de  catingueiras murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se  no  mourão  do  canto,  examinou  a  catinga,  onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar,  fazendo  tenção de  hospedar  ali  a  família.  Mas chegando  aos  juazeiros,  encontrou os  meninos  adormecidos  e não  quis  acordá-los.           
     Foi  apanhar  gravetos,  trouxe  do chiqueiro das cabras uma braçada de madeira meio roída pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira. Nesse  ponto  Baleia  arrebitou  as  orelhas,  arregaçou  as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto, localizou- os no morro próximo e saiu correndo.    Fabiano  seguiu-a  com  a  vista  e  espantou-se  uma  sombra passava por cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do sol.      
    Enxugaram  as  lágrimas,  foram  agachar-se  perto  dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente. Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A  tampa  anilada  baixava,  escurecia,  quebrada  apenas  pelas vermelhidões do poente. Miudinhos,  perdidos  no deserto  queimado,  os  fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de  afrontar  de  novo  a  luz  dura,  receosos  de  perder  a esperança que os alentava.     
     Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho  estava  ensangüentado,  lambia  o  sangue  e  tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras" que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.    
     Sinha Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste  de  alecrim  para  fazer  um  espeto.  Baleia,  o  ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro. Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se  no  chão,  bebeu  muito.  Saciado,  caiu  de papo para  cima,  olhando  as  estrelas,  que  vinham  nascendo.  Uma, duas,  três,  quatro,  havia  muitas  estrelas,  havia  mais  de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros - e uma alegria doida enchia o coração de Fabiano. Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira  de seu Tomás? Olhou  o  céu  de  novo.  Os  cirros  acumulavam-se,  a  lua surgiu, grande e branca. Certamente ia chover.    
      Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada.  E  ele,  Fabiano,  era  como  a  bolandeira .  Não  sabia porquê,  mas  era.  Uma,  duas,  três,  havia  mais  de  cinco estrelas no céu.          
       A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado  voltaria  ao  curral,  ele,  Fabiano,  seria  o vaqueiro daquela  fazenda  morta.  Chocalhos  de  badalos de  ossos animariam  a solidão.  Os  meninos,  gordos,  vermelhos, brincariam no  chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.    Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para não derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitação nova. Sentiu um arrepio na catinga, uma ressurreição de garranchos e folhas secas.   
      Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a sede da família. Em seguida acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiu- lhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.    Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as  nádegas  bambas  de  Sinha  Vitória  engrossariam,  a  roupa encarnada  de  Sinha Vitória  provocaria  a  inveja  das  outras caboclas.    
       A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem escurecia o morro. A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo. Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de pederneira, o aió, a cuia de água o baú de folha pintada. A fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas. Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam a cara triste de Sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria verde. Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir. 

    Capítulo II - Fabiano    

      FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aió um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinário. Não o encontrou, mas supôs distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a oração era forte.    Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência tranqüila e marchou para casa. Chegou-se a beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca,  as alpercatas dele  faziam  chape-chape,  os  badalos  dos  chocalhos  que  lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam  surdos. A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais  antigos  haviam-se acostumado  a  percorrer  veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos  já  começavam  a reproduzir o gesto hereditário. Chape-chape. Os  três pares  de  alpercatas  batiam  na  lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.    
      A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga a novilha raposa. Fabiano  ia  satisfeito. Sim  senhor,  arrumara-se.  Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara  conta  da  casa  deserta.  Ele,  a  mulher  e  os  filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos - e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.    
      Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió  um pedaço de fumo, picou-o,  fez  um  cigarro  com  palha  de  milho,  acendeu-o  ao binga, pôs-se a fumar regalado.    
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.    
      Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais  alheios,  descobria-se,  encolhia-se  na  presença  dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:     - Você é um bicho, Fabiano.    
      Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.    
 - Um bicho, Fabiano. Era. 
    Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara  uns  dias  mastigando  raiz  de  imbu  e  sementes  de mucunã. Viera a trovoada. E, com  ela, o fazendeiro,  que  o  expulsara.  Fabiano fizera-se  desentendido  e oferecera  os  seus  préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.    Agora  Fabiano  era  vaqueiro,  e  ninguém  o  tiraria  dali. Aparecera  como  um  bicho,  entocara-se  como  um  bicho,  mas criara  raízes, estava  plantado.  Olhou  as  quipás,  os mandacarus e os xiquexiques. Era mais  forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do  vaqueiro  derreava-se,  as  pernas  faziam  dois  arcos,  os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco. Entristeceu. Considerar-se  plantado  em terra  alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca.  Achava-se  ali de  passagem,  era  hóspede.  Sim  senhor, hóspede  que  demorava  demais,  tomava  amizade  à  casa,  ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.    Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se - Você é um bicho, Baleia.          Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés  duros  quebravam  espinhos  e  não  sentiam  a  quentura  da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia  para  um  lado,  para  o  outro  lado,  cambaio, torto  e feio. As vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua  com que se  dirigia  aos  brutos  -  exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.    
      Uma  das  crianças  aproximou-se, perguntou-lhe  qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a  repetição  da  pergunta. Não  percebendo  o  que  o  filho desejava,  repreendeu-o.  O           menino  estava  ficando  muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que  não  era  da  conta  dele,  como  iria  acabar?  Repeliu-o, vexado:      
- Esses capetas têm idéias ...    Não  completou  o  pensamento,  mas  achou  que  aquilo  estava errado.  Tentou  recordar  o  seu  tempo  de  infância,  viu-se miúdo, enfezado, a camiSinha encardida e rota acompanhando o pai no serviço do campo, interrogando-o debalde. Chamou os filhos,  falou  de  coisas  imediatas,  procurou  interessá-los. Bateu palmas.       
- Ecô! ecô!    A  cachorra  Baleia  saiu  correndo  entre  os  alastrados  e quipás, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a.  Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era bom eles saberem que deviam proceder assim.   
     Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou à ladeira que levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco. Necessitava  falar  com         a  mulher,  afastar  aquela perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao gado.  Felizmente  a  novilha  estava  curada  com  reza.  Se morresse, não seria por culpa dele.    
- Eco! ecô!    
    Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano se destoldou. Aquilo é que estava certo. Baleia não podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercício fácil - bater palmas, expandir-se  em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A  cachorra  tornou  a  voltar,  a  língua  pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que não fora ferrada  nem  levara  sela.  Haveria  na  catinga  um  barulho medonho.    
     Agora queria entender-se com Sinha Vitória a  respeito da educação  dos  pequenos.  Certamente  ela  não  era culpada. Entregue  aos  arranjos  da  casa,  regando  os  craveiros  e  as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores,  insuportáveis.  Fabiano dava-se  bem  com  a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.    
- Está aí.    
     Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.  Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira . Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira . Porquê? Só se era porque lia demais.       
     Ele,  Fabiano,  muitas  vezes  dissera:  -  "seu  Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros." Pois viera  a  seca,  o  pobre  do  velho,  tão  bom  e  tão  lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão puxado. Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomás  da  bolandeira   passava,  amarelo,  sisudo,  corcunda, montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu Tomás respondia tocando na beira  do  chapéu  de  palha,  virava-se  para  um  lado  e  para outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com remendos vermelhos.    
      Em  horas  de  maluqueira  Fabiano  desejava  imitá-lo:  dizia palavras  difíceis,  truncando  tudo,  o  convencia-se  de  que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo. Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima  de  jornais  e  livros,  mas  não  sabia  mandar:  pedia. Esquisitice  um  homem remediado  ser  cortês.  Até  o  povo censurava  aquelas  maneiras.  Mas  todos  obedeciam  a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam? Os  outros  brancos  eram  diferentes.  O  patrão  atual,  por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço,  desculpava-se  e  prometia emendar-se.         Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida? Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo de  fábrica,  perneiras,  gibão,  guarda-peito  e  sapatões  de couro  cru,  mas  ao  sair  largaria  tudo  ao  vaqueiro  que  o substituísse.    Sinha  Vitória  desejava possuir  uma  cama  igual  à  de  seu Tomás  da  bolandeira .         Doidice.  Não  dizia  nada  para  não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio  de  conduzir  os  cacarecos.  Viviam  de  trouxa  arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca  chegasse,  não ficaria  planta  verde.  Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente.  Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele  marchando  para  casa,  trepando  a  ladeira,  espalhando seixos com as alpercatas - ela se avizinhando a galope, com vontade de matá-lo.    Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeu- se.  Não  queria morrer.  Ainda  tencionava  correr  mundo,  ver terras,   conhecer   gente importante   como   seu   Tomás   da 
bolandeira . Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com  ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem.    
- Um homem, Fabiano. Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente  não  seria  homem:  seria  aquilo  mesmo  a  vida inteira,  cabra,  governado pelos  brancos,  quase  uma  rês  na fazenda alheia.    Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão  cedo.  Passara  dias  sem  comer,  apertando  o  cinturão, encolhendo  o  estômago.  Viveria  muitos  anos,  viveria um século. Mas  se  morresse  de  fome  ou  nas  pontas  de  um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos. Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.    
       Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar  mandacaru  para  o  gado,  consertar  cercas,  amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira . Coitado. Para que lhe servira tanto,livro, tanto jornal? Morrera por causa do, estômago doente e das pernas fracas. Um  dia...  Sim,  quando  as  secas  desaparecessem  e  tudo andasse direito. .. Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira  é que devia  ter  lido  isso.  Livres  daquele  perigo,  os  meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos.    
     Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles. Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam  no  chão  branco  e  liso. A  cachorra  Baleia  trotava arquejando, a boca aberta.   Aquela hora Sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada junto à trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com Sinha Vitória a respeito da educação dos meninos. 

 Capítulo III - Cadeia   

     FABIANO tinha ido à feira da cidade comprar mantimentos. Precisava  sal,  farinha,  feijão  e  rapaduras.  Sinha  Vitória pedira  além  disso  uma  garrafa  de  querosene  e  um  corte  de chita  vermelha.  Mas  o  querosene  de  seu Inácio  estava misturado com água, e a chita da amostra era cara demais.         Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostão em côvado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma  longa  desconfiança  dava-lhe  gestos  oblíquos.  A  tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de  que  todos  os  caixeiros  furtavam  no  preço  e  na  medida: amarrou as notas na ponta do lenço, meteu-as na algibeira, dirigiu-se à bodega de seu Inácio, onde guardara os picuás. Aí  certificou-se  novamente  de  que  o  querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de  um  trago,  cuspiu,  limpou  os  beiços  à  manga,  contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha água. Por que seria que seu  Inácio  botava  água  em  tudo?  perguntou  mentalmente. Animou-se  e  interrogou o  bodegueiro:            -  Por  que  é  que vossemecê bota água em tudo?    
    Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calçada,  resolvido  a  conversar.  O  vocabulário  dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre de seu Tomás. Um homem tão direito sumir-se como cambembe, andar por este  mundo  de  trouxa nas  costas.  Seu  Tomás  era pessoa  de consideração e votava. Quem diria? Nesse  ponto um soldado amarelo  aproximou-se  e  bateu familiarmente  no ombro de Fabiano:              -  Como  é,  camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?    
    Fabiano  atentou na  farda  com  respeito  e  gaguejou,procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira :                    
- Isto é.  Vamos  e não  vamos.  Quer  dizer Enfim,  contanto,  etc.  É conforme. Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava.  Fabiano  sempre  havia  obedecido.  Tinha  muque  e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.    Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde vários tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.   
 - Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente.          Os jogadores  apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se também. Sinha Vitória ia danar-se, e com razão.    
- Bem feito. 
   Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo.                 
- Espera aí, paisano, gritou o amarelo.  Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio  os  troços que  ele  havia guardado,  vestiu  o  gibão, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua.    Debaixo  do  jatobá  do  quadro  taramelou com  Sinha  Rita louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que desculpa iria  apresentar  a  Sinha  Vitória?       Forjava  uma  explicação difícil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma garrafada  para  Sinha  Rita  louceira.  Atrapalhava-se  tinha imaginação fraca e não sabia mentir. Nas invenções com que pretendia justificar-se  a figura de  Sinha  Rita  aparecia sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma história sem ela, diria  que  haviam  furtado  o  cobre  da  chita.  Pois  não  era? Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas não devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenço das notas ficara no bolso do gibão e levara sumiço. Falaria assim: - "Comprei  os  mantimentos.  Botei  o  gibão  e  os  alforjes  na bodega de seu Inácio. Encontrei um soldado amarelo" Não, não encontrara ninguém. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infância. A mulher se incharia com a notícia.       Talvez não se inchasse. Era  atilada,  notaria  a  pabulagem.  Pois  estava acabado.  O dinheiro fugira do bolso do gibão, na venda de seu Inácio. Natural. Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão, atirou-o contra o jatobá. A feira se desmanchava; escurecia; o  homem  da  iluminação,  trepando  numa  escada,  acendia  os lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja;  o  doutor  juiz  de  direito  foi  brilhar  na porta  da farmácia;  o  cobrador  da  prefeitura  passou  coxeando,  com talões de recibos debaixo do braço; a carroça de lixo rolou na praça     recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira retirou-se.    Fabiano  estremeceu.        Chegaria a  fazenda  noite  fechada. Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E não levava o querosene, ia-se alumiar durante a  semana  com  pedaços  de  facheiro.  Aprumou-se,  disposto  a viajar. Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele as vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se. 
 -  Vossemecê  não  tem  direito  de  provocar  os  que  estão quietos.    
- Desafasta, bradou o polícia.    E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.    - Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?    Engasgou-se.  A  autoridade  rondou  por  ali  um  instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do vaqueiro.    
- Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente.    O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.    
- Toca pra frente, berrou o cabo.  
     Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu.    
- Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano. Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu- se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando                       
- Hum! hum!    Porque  tinham  feito  aquilo?  Era  o  que  não  podia  saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso.     De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir.   
 - Bem, bem. Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os olhos  azulados  brilharam  como  olhos  de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tão esquisito que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar das machucaduras. Ora, o soldado amarelo ... Sim, havia um amarelo, criatura desgraçada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Não tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo:        
- Safado, mofino, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família. Pensou na mulher, nos filhos e na  cachorrinha.  Engatinhando,  procurou  os  alforjes,  que haviam  caído  no    chão,  certificou-se  de que  os  objetos comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusão. Lembrou-se de uma fazenda vista na última  das  lojas  que  visitara.  Bonita,  encorpada,  larga, vermelha  e  com  ramagens,  exatamente  o  que Sinha  Vitória desejava.  Encolhendo  um  tostão  em côvado,  por  sovinice, acabava o dia daquele jeito.      Tornou a mexer nos alforjes. Sinha Vitória devia estar desassossegada com a demora dele. A casa  no  escuro, os  meninos  em  redor  do  fogo,  a  cachorra Baleia  vigiando.  Com  certeza  haviam  fechado  a  porta  da frente. Estirou as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho. Mas  pegado  de  surpresa,  embatucara.  Quem  não  ficaria azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitar- se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso. Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas. as  injustiças.  E  aos  conhecidos  que  dormiam  no  tronco  e agüentavam  cipó  de  boi  oferecia  consolações:                 
--  "Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.”    Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo?    
- An!    E,  por  mais  que forcejasse,  não  se  convencia  de  que  o soldado  amarelo  fosse  governo.  Governo, coisa  distante e perfeita,  não  podia  errar.  O  soldado  amarelo  estava  ali perto, além da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira com  os  matutos  e provocava-os  depois.  O  governo  não  devia consentir tão grande safadeza.           Afinal  para  que  serviam  os  soldados  amarelos? Deu  um pontapé  na  parede,  gritou  enfurecido.  Para  que  serviam  os soldados   amarelos?   Os outros   presos   remexeram-se,   o carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se:                      
-  Bem, bem. Não há nada não. Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu Tomás da bolandeira , que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada. Só queria voltar para junto de Sinha Vitória, deitar-se na cama de  varas.  Porque  vinham  bulir  com  um  homem  que  só  queria descansar? Deviam bulir com outros.    
- An! Estava tudo errado.    
- An!    Tinham lá coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na catinga. Tinha graça. Não dava um caldo.
    Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinha Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da  cachorra  Baleia,  que  era  como  uma  pessoa  da  família, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um preá. Ia envelhecendo, coitada. Sinha  Vitória,  inquieta,  com  certeza  fora  muitas  vezes escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam. Se não fosse isso ... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos  pela  grade  da  rua.  Chi!  que  pretume!  O  lampião  da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada só botara nele meio quarteirão de querosene.              Pobre de Sinha Vitória, cheia de cuidados, na escuridão. Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saía da parede.    Estava tão cansado, tão machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela desgraça. Havia ali um bêbedo tresvariando em voz alta e alguns homens agachados em redor de um fogo que enchia o cárcere de fumaça. Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.    
      Fabiano  cochilava,  a  cabeça  pesada inclinava-se  para  o peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu Inácio. A mulher e os meninos agüentando fumaça nos olhos. Acordou  sobressaltado.  Pois não  estava  misturando  as pessoas,  desatinando?  Talvez  fosse  efeito  da  cachaça.  Não era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.    
     Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede. Era  bruto,  sim  senhor,  nunca  havia  aprendido,  não  sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia  a      brutalidade  dele?  Vivia  trabalhando  como  um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais - aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? Se não fosse aquilo ... Nem sabia.
     O fio da idéia cresceu, engrossou - e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se,  botar  as  coisas  nos  seus  lugares. O demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos. Enfim,  contanto  ...  Seu  Tomás  daria  informações.  Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomás da bolandeira , homem aprendido.  Cada  qual  como  Deus  o  fez.  Ele,  Fabiano,  era aquilo mesmo, um bruto.    O que desejava  ... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertão a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitória tropicava debaixo do baú de trens. Na beira do rio haviam  comido  o papagaio, que não sabia falar. Necessidade. Fabiano  também  não  sabia  falar.  As  vezes  largava  nomes arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira.  Não  podia arrumar  o  que  tinha  no  interior.  Se pudesse ... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.  Bateu  na  cabeça,  apertou-a.  Que  faziam  aqueles  sujeitos acocorados em torno do fogo? Que dizia aquele bêbedo que se esgoelava  como  um  doido,  gastando  fôlego  à  toa?  Sentiu vontade  de  gritar,  de  anunciar  muito  alto  que  eles  não prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguém no xadrez das mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida, certamente  de  porta  aberta.  Essa  também  não  prestava  para nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor  juiz  de  direito,  ao  delegado,  a  seu  vigário  e  aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguém prestava para nada.  Ele,  os  homens  acocorados,  o  bêbedo,  a  mulher  das pulgas, tudo era uma lástima, só servia para agüentar facão. Era o que ele queria dizer.    E  havia  também  aquele  fogo-corredor  que  ia  e  vinha  no espírito  dele.  Sim, havia  aquilo.  Como  era?  Precisava descansar.  Estava  com  a  testa doendo,  provavelmente  em conseqüência de uma pancada de cabo de facão. E doía-lhe. a cabeça toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecia- lhe que tinha nos miolos uma panela fervendo.   
     Pobre de Sinha Vitória, inquieta e sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da trempe. Se não fossem eles ...         Agora  Fabiano  conseguia arranjar  as  idéias. O que  o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como  onça  e  faria  uma  asneira.  Carregaria  a  espingarda  e daria  um  tiro  de  pé  de  pau no  soldado  amarelo.  Não.  O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de  cangaceiros  e  faria estrago  nos  homens  que  dirigiam  o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a idéia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.    Fabiano gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas. Tinha   aqueles   cambões pendurados ao pescoço. Deveria continuar a arrastá-los? Sinha Vitória dormia mal na cama de varas.      Os meninos  eram  uns  brutos,  como  o  pai.  Quando crescessem,  guardariam  as  reses  de  um  patrão  invisível, seriam  pisados,  maltratados, machucados  por  um  soldado amarelo. 

 Capítulo IV - Sinha Vitória   

    ACOCORADA junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens  entalada  entre  as  coxas,  Sinha  Vitória  soprava  o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e cobriu-lhe a cara, a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e azuis  desprendeu-se  do  cabeção  e  bateu  na  panela.  Sinha Vitória  limpou  as  lágrimas  com  as  costas das  mãos, encarquilhou  as  pálpebras,  meteu  o  rosário no seio  e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas. Labaredas  lamberam as achas de  angico,  esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da comida.    
   Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia  despertou,  retirou-se prudentemente, receosa  de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua  admiração  à  dona.  Chegou-se  a  ela  em  saltos  curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas Sinha Vitória não queria saber de elogios.    
- Arreda! Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários. Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites.     Fora de propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da  cama  de  varas.  Fabiano,  que  não esperava  semelhante desatino, apenas grunhira: 
- "Hum! hum!" E amunhecara, porque realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha Vitória andara para cima e para baixo, procurando  em  que  desabafar.  Como  achasse  tudo  em ordem,  queixara-se  da vida. E agora vingava-se  em  Baleia, dando-lhe um pontapé.   
    Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu  os meninos, entretidos no  barreiro,  sujos  de  lama,  fabricando  bois  de barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e não encontrou motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente  xingou  Fabiano.       Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas. Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a princípio  concordara  com ela,  mastigara  cálculos,  tudo errado.  Tanto  para  o couro,  tanto  para  a  armação.  Bem. Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e no   querosene.   Sinha Vitória   respondera   que   isso era impossível,  porque  eles  vestiam  mal,  as  crianças  andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar  outras  despesas.          
    Como  não  se  entendessem, Sinha Vitória  aludira,  bastante  azeda, ao  dinheiro  gasto  pelo marido  na  feira,  com  jogo  e  cachaça.  Ressentido,  Fabiano condenara  os sapatos  de  verniz que  ela  usava  nas  festas, caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinha Vitória ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava,  teria  despropositado.  Efetivamente os  sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava,  manquejava,  trepada  nos  saltos  de  meio  palmo.    Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado. Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a  inatingível e misturava-a às obrigações da casa. Foi a sala, passou por baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do caritó o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era capaz  de  se  ter  esquecido  de  curar  a  vaca  laranja.  Quis acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques e os mandacarus que avultavam na campina.    Um  mormaço  levantava-se da  terra  queimada. Estremeceu lembrando-se  da  seca,  o  rosto  moreno desbotou,  os  olhos pretos  arregalaram-se.  Diligenciou  afastar a  recordação, temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma ave- maria, já tranqüila, a atenção desviada para um buraco que havia na cerca do chiqueiro das cabras. Esfarelou a pele de fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o cachimbo de barro,  foi  consertar a  cerca.  Voltou,  circulou  a  casa atravessando o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.    
- É capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja. Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela  e  foi  cair  no  terreiro.  Preparou-se  para  cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato  com  a  lembrança  da  cama.  Se  o cuspo  alcançasse  o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a garganta.     Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia. Aproximou-se do canto onde o pote se erguia numa forquilha de três pontas, bebeu um caneco de água. Água salobra. 
 - Iche! Isto  lhe  sugeriu duas  imagens  quase  simultâneas,  que  se confundiram e neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava pensando? Olhou o chão, concentrada, procurando recordar-se, viu os pés chatos, largos,  os  dedos separados.  De  repente  as duas  idéias voltaram:  o  bebedouro  secava,  a  panela  não  tinha  sido temperada. Foi levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada de vapor. Não é que ia deixando a comida esturrar? Pôs água nela  e  remexeu-a  com  a  quenga  preta  de  coco.  Em  seguida provou o caldo. Insosso, nem parecia bóia de cristão. Chegou- se ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne, abriu a mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.     
     Agora pensava no bebedouro, onde havia um líquido escuro que bicho enjeitava. Só tinha medo da seca.    Olhou  de  novo  os  pés  espalmados.  Efetivamente não  se acostumava  a  calçar        sapatos,  mas  o  remoque  de  Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto anda  assim.  Para  que  fazer  vergonha  à  gente?  Arreliava-se com a comparação.    
     Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: - "Meu louro." Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como  Baleia.  Coitado.  Sinha  Vitória  nem  queria  lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido depois  que  chegara  à  fazenda.  A  referência  aos  sapatos abrira-lhe uma ferida - e a viagem reaparecera. As alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de fome,  carregava  o  filho  mais  novo,  o  baú  e  a  gaiola do papagaio. Fabiano era ruim.    
- Mal-agradecido.         Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família. Naquele momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação? Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das galinhas,   endireitou          o   poleiro.   Em   seguida   foi          ao quintalzinho  regar  os  craveiros  e  as  panelas  de  losna.  E botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas meninas  dos olhos.  Repreendeu-os:              
-  Safadinhos!  porcos! sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios. 
   Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do caritó, e Sinha Vitória voltou para  junto da trempe, reacendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno e  empoeirado  sacudia  as  teias  de  aranha  e  as  cortinas de pucumã  do  teto;  Baleia,  sob  o  jirau, coçava-se  com  os dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas idéias de Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança. Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.    Outra  vez  Sinha  Vitória  pôs-se  a  sonhar  com  a  cama  de lastro  de  couro.  Mas  o  sonho  se  ligava  à  recordação  do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o objeto de seu desejo.    Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas davam-lhe sensação de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um nó,  um  calombo  grosso  na  madeira.  E  ela  se  encolhia  num canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A princípio  não  se  incomodara.  Bamba,  moída  de  trabalhos, deitar-se-ia   em   pregos.   Viera, porém, um   começo   de prosperidade.  Corriam,  engordavam.  Não  possuíam  nada:  se retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles - e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que aperreava Sinha Vitória. Como já não se estazava em serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume  de  encafuar-se  ao  escurecer  não  estava  certo,  que ninguém é galinha.    
     Nesse  ponto  as  idéias  de  Sinha  Vitória  seguiram  outro caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedrês? Logo a pedrês,  a  mais  gorda.  Decidiu  armar  um  mundéu  perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.    
- Ladrona. Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar uma vara para  substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque não  tinham  removido  aquela  vara  incômoda?       Suspirou.  Não conseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira . Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e  bem  pregado.  Ali  podia  um  cristão  estirar  os ossos. 
     Se  vendesse  as        galinhas  e  a  marrã?  Infelizmente  a excomungada  raposa  tinha  comido  a  pedrês, a  mais  gorda. Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.     Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil consultar  Fabiano,  que sempre  se entusiasmava, arrumava projetos. Esfriava logo - e ela franzia a testa, espantada; certa de que o marido se satisfazia com a idéia de possuir uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira

 Capítulo V - O Menino Mais Novo   

   A IDÉIA surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreiosna  égua  alazã  e  entrou  a  amansá-la.  Não  era  propriamente idéia: era o desejo vago de realizar qualquer ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia. Naquele  momento  Fabiano lhe  causava  grande  admiração. Metido nos couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura  mais  importante  do  mundo.  As  rosetas  das  esporas dele  tilintavam  no  pátio;  as  abas  do  chapéu,  jogado  para trás, preso debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o rosto  queimado,  faziam-lhe  um  círculo  enorme  em  torno  da cabeça.    O animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e Sinha Vitória subjugava-o agarrando-lhe os beiços. O vaqueiro apertou a cilha e posse a andar em redor, fiscalizando os arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um coice  : virou o corpo, os cascos da égua passaram-lhe rente ao peito, raspando o gibão. Em seguida Fabiano subiu ao copiar, saltou na sela, a mulher * recuou - e foi um redemoinho na catinga.    
     Trepado na porteira do curral, o menino mais novo torcia as mãos  suadas,  estirava-se  para  ver  a  nuvem  de  poeira  que toldava as imburanas. Ficou assim uma eternidade, cheio de alegria  e  medo,  até  que  a  égua  voltou  e  começou  a  pular furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De repente a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno deu  um  grito,  ia tombar da porteira. Mas  sossegou  logo. Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio, os     arreios no     braço. Os estribos, soltos na carreira desesperada,  batiam um  no  outro,  as  rosetas  das esporas tiniam.  Sinha  Vitória  cachimbava  tranqüila  no  banco  do  copiar, catando lêndeas no filho mais velho. Não se conformando com semelhante indiferença depois da façanha do pai, o menino foi acordar  Baleia,  que         preguiçava,  a  barriguinha  vermelha descoberta, sem-vergonha.       A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de amolar, bocejou e pegou no sono de novo.    Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar a manga do vestido da mãe, desejando comunicar-se com ela. Sinha Vitória soltou uma exclamação de aborrecimento, e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.    Retirou-se  zangado,  encostou-se  num  esteio  do  alpendre, achando  o  mundo  todo  ruim  e  insensato.  Dirigiu-se  ao chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando, erguendo os focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de Baleia e  o  mau  humor  de  Sinha  Vitória  desapareceram.  A admiração a Fabiano é que ia ficando maior. 
   Esqueceu  desentendimentos  e  grosserias, um  entusiasmo verdadeiro encheu-lhe a alma pequenina. Apesar de ter medo do pai,  chegou-se  a  ele  devagar,  esfregou-se  nas  perneiras, tocou  as abas  do  gibão.  As  perneiras,  o  gibão,  o  guarda- peito, as esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no.    Fabiano desviou-o desatento, entrou na sala e foi despojar- se daquela grandeza.      
   O menino  deitou-se  na  esteira,  enrolou-se  e  fechou  os olhos.  Fabiano  era  terrível.  No  chão,  despidos  os couros, reduzia-se bastante, mas no lombo da égua alazã era terrível.    Dormiu e sonhou. Um pé-de-vento cobria de poeira a folhagem das  imburanas,  Sinha Vitória  catava  piolhos  no  filho  mais velho. Baleia descansava a cabeça na pedra de amolar.    No dia seguinte essas imagens se varreram completamente.    Os juazeiros  do  fim  do  pátio  estavam  escuros,  destoavam  das outras árvores. Porque seria?Aproximou-se do  chiqueiro  das  cabras,  viu  o  bode  velho fazendo um barulho feio com as ventas arregaçadas, lembrou-se do  acontecimento  da  véspera.  Encaminhou-se  aos  juazeiros, curvado, espiando os rastos da égua alazã. A  hora  do  almoço  Sinha  Vitória  repreendeu-o:                
- Este capeta anda leso.    
   Ergueu-se, deixou a cozinha, foi contemplar as perneiras, o guarda-peito e o gibão pendurados num torno da sala. Daí marchou para o chiqueiro - e o projeto nasceu.    Arredou-se,  fez  tenção  de  entender-se  com  alguém,  mas ignorava  o  que  pretendia  dizer.  A  égua  alazã  e  o  bode misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também. Rodeou  o  chiqueiro,  mexendo-se  como  um  urubu,  arremedando Fabiano.    A necessidade de consultar o irmão apareceu e desapareceu. O outro iria rir-se, mangar dele, avisar Sinha Vitória. Teve medo do riso e da mangação. Se falasse naquilo, Sinha Vitória lhe puxaria as orelhas.     Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava mostrar   que   podia         ser   Fabiano.   Conversando,   talvez conseguisse explicar-se.    Pôs-se  a  caminhar,  banzeiro,  até  que  o  irmão  e  Baleia levaram  as  cabras  ao  bebedouro.     A  porteira  abriu-se,  um fartum espalhou-se pelos arredores, os chocalhos soaram, a camiSinha de algodão atravessou o pátio, contornou as pedras onde se atiravam cobras mortas, passou os juazeiros, desceu a ladeira, alcançou a margem do rio. Agora as cabras se empurravam metendo os focinhos na água, os   cornos   entrechocavam-se.   Baleia, atarefada,latia correndo.
   Trepado na ribanceira, o coração aos baques, o menino mais novo esperava que o bode chegasse ao bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali em cima tinha crescido e podia virar Fabiano. Sentou-se  indeciso. O  bode  ia  saltar  e  derrubá-lo. Ergueu-se, afastou-se, quase livre da tentação, viu um bando de  periquitos  que  voava  sobre  as  catingueiras.                
    Desejou possuir um deles, amarrá-lo com uma embira, dar-lhe comida. Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando o céu cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos, mas desmanchavam-se e tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes se juntaram - e uma tinha a figura da égua alazã, a outra representava Fabiano. Baixou os  olhos  encandeados, esfregou-os, aproximou-se novamente  da  ribanceira, distinguiu  a  massa  confusa do rebanho, ouviu as pancadas dos chifres. Se o bode já tivesse bebido,  ele  experimentaria  decepção.  Examinou  as  pernas finas, a  camiSinha encardida e rasgada. Enxergara viventes no céu, considerava-se protegido, convencia-se de que forças misteriosas iam ampará-lo. Boiaria no ar, como um periquito.    Pôs-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão e a cachorra. Não obtendo resultado, indignou-se. Ia mostrar aos dois uma proeza, voltariam para casa espantados.    
     Aí o bode se avizinhou e meteu o focinho na água. O menino despenhou-se da ribanceira, escanchou-se no espinhaço dele.    Mergulhou  no  pelame         fofo,  escorregou,  tentou  em  vão segurar-se  com  os  calcanhares,  foi  atirado  para  a  frente, voltou,  achou-se  montado  na  garupa do  animal,  que  saltava demais e provavelmente se distanciava do bebedouro. Inclinou- se para um lado, mas fortemente sacudido, retomou a posição vertical, entrou a dançar desengonçado, as pernas abertas, os braços  inúteis.  Outra  vez  impelido  para  a  frente,  deu  um salto mortal, passou por cima da cabeça do bode, aumentou o rasgão da camisa numa das pontas e estirou-se na areia. Ficou ali estatelado, quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo vagamente que escapara sem honra da aventura.    Viu as nuvens que se desmanchavam no céu azul, embirrou com elas. Interessou-se pelo vôo dos urubus. Debaixo dos couros, Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu.    
    Sentou-se,  apalpou  as juntas  doídas. Fora sacolejado violentamente, parecia-lhe que os ossos estavam deslocados.    Olhou  com  raiva  o  irmão  e  a  cachorra.  Deviam  tê-lo prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade : o irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas, coices e marradas.     Ergueu-se,  arrastou-se  com  desânimo  até  a  cerca  do bebedouro,  encostou-se  a  ela,  o  rosto  virado  para  a  água barrenta, o coração esmorecido. Meteu os dedos finos pelo rasgão, coçou o peito magro. O tropel das cabras perdeu-se na ladeira, a cachorrinha ladrou longe. Como estariam as nuvens? Provavelmente  algumas  se  transformavam em  carneirinhos, outras eram como bichos desconhecidos.    Lembrou-se de  Fabiano e procurou esquecê-lo. Com certeza Fabiano e Sinha Vitória iam castigá-lo por causa do acidente. Levantou os olhos tímidos. A lua tinha aparecido, engrossava, acompanhada por uma estrelinha quase invisível. Aquela hora os Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de milho. Se possuísse um daqueles periquitos, seria feliz.    
    Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado esvaziara.  Uns  riachos miúdos  marejavam  na  areia  como artérias abertas de animais.     Recordou-se das cabras abatidas a mão de pilão, penduradas de cabeça para baixo num caibro do copiar, sangrando. Retirou-se. A humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu. Precisava  entrar  em casa,  jantar, dormir.  E  precisava crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de pilão,  trazer  uma faca  de  ponta  à  cintura.  Ia  crescer, espichar-se numa  cama  de  varas,  fumar  cigarros  de  palha, calçar sapatos de couro cru. Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas,  banzeiro.  Quando  fosse  homem, caminharia  assim, pesado,   cambaio,   importante, as   rosetas   das   esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga  como  pé-de-vento,  levantando  poeira.      Ao  regressar, apear-se-ia  num  pulo  e  andaria  no  pátio  assim  torto,  de perneiras,  gibão,  guarda-peito e  chapéu  de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados. 


 Capítulo VI - O Menino Mais Velho    

   DEU-SE  aquilo  porque Sinha  Vitória não conversou  um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando "a linguagem de Sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a  certo  lugar  ruim  demais,  e  como  o  filho  exigisse  uma descrição, encolheu os ombros. O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.    
- Bota o pé aqui.   A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata : deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas   - Arreda. O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe:               
- Como é? Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.    
- A senhora viu?   Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.    O  menino  saiu  indignado  com  a  injustiça, atravessou  o terreiro,  escondeu-se  debaixo  das  catingueiras  murchas,  à beira da lagoa vazia.         A  cachorra  Baleia  acompanhou-o  naquela  hora  difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso.  Provavelmente  não o receberia,  mas  acreditava  nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém  lhe  tirava  esta  certeza,  nenhuma  inquietação  lhe perturbava os  desejos moderados. As vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso. Naquele dia a voz estridente de Sinha Vitória            e  o  cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos.  Um  minuto  depois  levantou  o  focinho  e  procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a janela baixa  da  cozinha,  atravessou  o  terreiro,  passou  pelo  pé de turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegante, chamando  a  atenção  do  amigo.  Afinal  convenceu-o  de  que  o procedimento dele era inútil.  
    O  pequeno  sentou-se,  acomodou  nas  pernas  a cabeça  da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no  tempo  da seca.  Valia-se,  pois,  de  exclamações  e  de gestos, Baleia  respondia  com  o  rabo,  com  a  língua, com movimentos fáceis de entender. Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o contato agradável, experimentou  uma  sensação  como  a  que  lhe  dava  a  cinza  do borralho.    Continuou a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou bem no fundo os olhos tranqüilos.    Estivera metido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de barro, lambuzando-se. Deixara o brinquedo e fora interrogar Sinha Vitória. Um desastre. A culpada era Sinha Terta, que na véspera, depois de curar com reza a espinhela de  Fabiano, soltara uma palavra esquisita, chiando, o canudo do cachimbo preso nas gengivas banguelas. Ele tinha querido que a palavra virasse coisa o ficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso rezingara, esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.        Todos  os  lugares  conhecidos  eram  bons:  o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro - mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte que  a  cachorra        visitava,  caçando  preás, veredas  quase imperceptíveis   na   catinga, moitas o capões de mato, impenetráveis  bancos  de  macambira  -  e  aí  fervilhava  uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos viviam em  paz, às  vezes desapareciam  as fronteiras, habitantes dos dois lados entendiam-se  perfeitamente e  auxiliavam-se.  Existiam  sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas  forças eram  sempre vencidas.  E  quando  Fabiano  amansava  brabo, evidentemente  uma  entidade  protetora  segurava-o  na  sela, indicava-lhe  os  caminhos  menos  perigosos,  livrava-o  dos espinhos e dos galhos.   
     Nem  sempre  as relações  entre  as  criaturas haviam  sido amáveis. Antigamente os homens tinham fugido à toa, cansados e famintos. Sinha Vitória, com o filho mais novo escanchado no quarto,  equilibrava  o  baú  de  folha  na  cabeça;  Fabiano levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as  costelas  através  do  pêlo escasso.  Ele,  o  menino  mais velho, caíra no chão que lhe torrava os pés. Escurecera de repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido. Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta.    
    Naquele tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara, para bem dizer as coisas ruins não tinham existido. No jirau da cozinha arrumavam-se mantas de carne seca e pedaços de toicinho.  A  sede  não  atormentava  as  pessoas,  e  à  tarde; aberta  a  porteira, o  gado miúdo  corria  para  o bebedouro. Ossos  e  seixos  transformavam-se  às vezes  nos  entes que povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de macambira.    
   Como não  sabia  falar  direito,  o  menino  balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vente, o som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a idéia de aprender uma  palavra,  com  certeza  importante  porque  figurava na conversa  de  Sinha  Terta.  Ia  decorá-la  e  transmiti-la  ao irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.    
- Inferno, inferno.    Não  acreditava  que  um  nome  tão  bonito  servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória  impunha-se,  autoridade visível  e  poderosa.  Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa,  muito  bem.  Mas  tentara  convencê-la  dando-lhe  um cocorote,  e  isto  lhe  parecia  absurdo.  Achava  as  pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de  orelhas.  Esta  convicção  tornava-o  desconfiado,  fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar  Sinha  Vitória  porque  ela  estava  bem-disposta. Explicou  isto  à  cachorrinha  com  abundância  de  gritos  e gestos.    
    Baleia  detestava  expansões  violentas:  estirou as  pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de  alpercata  batia-lhe no  traseiro  -  saía  latindo,  ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se. Efetivamente a exaltação do amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou de novo. Seria bom dormir.    
    O menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de  macambira.  Fabiano  dizia  que  na  serra  havia  tocas  de suçuaranas. E  nos  bancos  de  macambira,  rendilhados  de espinhos, surgiam cabeças chatas de jararacas. Esfregou as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou nas figurinhas  abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a recordação da palavra infeliz. Diligenciou afastar do   espírito aquela   curiosidade   funesta, imaginou   que não fizera a pergunta, não recebera portanto o cascudo. Levantou-se.  Via  a  janela  da  cozinha,  o  cocó de  Sinha Vitória,  e  isto  lhe  dava  pensamentos maus.  Foi  sentar-se debaixo de outra árvore, avistou a serra coberta de nuvens. Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas andavam em cima dela. Como era possível haver estrelas na terra? A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e acomodou-se.    Como era possível haver estrelas na terra? Entristeceu.  Talvez  Sinha  Vitória  dissesse  a verdade.  O inferno  devia  estar  cheio  de  jararacas e  suçuaranas,  e  as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.    Apesar  de  ter  mudado  de  lugar,  não  podia livrar-se  da presença de Sinha Vitória. Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas estrelas que se acendiam na serra. Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas. Sentiu-se  fraco  e desamparado,  olhou  os  braços  magros,  os dedos  finos,  pôs-se  a  fazer  no  chão desenhos  misteriosos. Para que Sinha Vitória tinha dito aquilo? Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se. Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo. Esta imagem consoladora não a deixava.    
    O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era bom,  mas  estava       misturado  com  emanações  que  vinham  da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne. 

 Capítulo VII – Inverno   

     A FAMÍLIA estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, Sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro  no  chão e o resto  do  corpo  levantado,  olhava  as brasas que se cobriam de cinza.    Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora,  o vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante.     Fabiano esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições com a ponta da alpercata. As brasas estalaram, a cinza caiu, um círculo de luz espalhou-se em redor da trempe de pedras, clareando vagamente os pés do vaqueiro, os joelhos da mulher e os meninos deitados. - De quando em quando estes se mexiam, porque  o  lume  era  fraco  e  apenas  aquecia  pedaços  deles. Outros  pedaços  esfriavam  recebendo  o  ar  que  entrava  pelas rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não podiam  dormir. Quando iam  pegando  no  sono,  arrepiavam-se, tinham precisão de virar-se, chegavam-se à trempe e ouviam a conversa dos pais. Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. As vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo  as  imagens  que  lhes  vinham  ao  espírito, e  as imagens  sucediam-se,  deformavam-se,  não  havia  meio  de dominá-las.  
     Como  os  recursos  de expressão  eram  minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto.    Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante  confusa, mas  como só estavam  iluminadas  as alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o  rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no escuro  a  dificuldade  era  grande.            
    Levantou-se,  foi  a um canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de lenha. Sinha Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou a  interrupção,  achou  que  o  procedimento  do  filho  revelava falta  de  respeito  e estirou  o  braço para  castigá-lo.  O pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se pôs francamente do lado dele. - Hum! hum! Que brabeza!    Aquele  homem  era  assim  mesmo,  tinha  o coração  perto  da goela.  - Estourado. Remexeu as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou entre as pedras achas de angico molhado, procurou acendê-las. Fabiano ajudou-a:  suspendeu a tagarelice, pôs-se de quatro pés e soprou os carvões, enchendo muito as bochechas.                  
    Uma fumarada invadiu a cozinha, as pessoas tossiram, enxugaram os olhos. Sinha Vitória manejou o abano, e passado um minuto as labaredas espirraram entre as pedras.    O  círculo  de  luz  aumentou,  agora  as  figuras surgiam  na sombra,  vermelhas.  Fabiano, visível da  barriga  para  baixo, ia-se tornando indistinto daí para cima, era um negrume que vagos  clarões cortavam.  Desse negrume  saiu  novamente  a parolagem mastigada.    
   Fabiano estava de bom humor. Dias antes a enchente havia coberto  as  marcas  postas  no  fim da  terra de  aluvião, alcançava  as  catingueiras,  que deviam  estar  submersas. Certamente só apareciam as folhas, a espuma subia, lambendo ribanceiras que se desmoronavam. Dentro em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano não  pensava  no  futuro.  Por  enquanto  a  inundação  crescia, matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo muito bem. E Fabiano  esfregava  as  mãos.  Não  havia  o  perigo  da  seca imediata, que aterrorizara a família durante meses. A catinga amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e horríveis  visões  de  pesadelo  tinham  agitado o sono  das pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados da cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o trovão  roncara perto,  na  escuridão  da  meia-noite  rolaram nuvens  cor  de  sangue.  A  ventania  arrancara  sucupiras  e imburanas, houvera relâmpagos em demasia - e Sinha Vitória se escondera  na  camarinha  com  os  filhos,  tapando  as  orelhas, enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade findara de chofre, a chuva caíra, a cabeça da cheia aparecera arrastando troncos e animais mortos. A água tinha subido, alcançado a ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a água topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria invadida, os moradores teriam de subir o morro, viver uns dias no morro, como preás.      Suspirava atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco.      Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça.    
- An! A casa era forte.    
- An! Os esteios de aroeira estavam bem fincados no chão duro. Se o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões que formavam o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a família.    
- An! As varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios  de aroeira. O arcabouço da casa resistiria à fúria das águas. E quando elas baixassem, a família regressaria. Sim, viveriam todos  no  mato,  como  preás.  Mas  voltariam  quando  as  águas baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto da casa.    - An! Sinha  Vitória  moveu  o  abano com  força  para não  ouvir  a barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com intenção  de  progredir? O  abano  zumbia,  e  o  rumor  da enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para lá dos juazeiros. Fabiano   contava   façanhas.   Começara moderadamente, mas excitara-se pouco a pouco e agora via os acontecimentos com exagero e otimismo, estava convencido de que praticara feitos notáveis.  Necessitava  esta convicção.  Algum  tempo  antes acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na feira,  dera-lhe  uma  surra  de  facão  e  metera-o  na  cadeia. Fabiano  passara semanas  capiongo, fantasiando  vinganças, vendo  a  criação  definhar  na  catinga  torrada.  
    Se  a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas o  soldado  amarelo, depois  mataria o  juiz,  o  promotor  e  o delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e roendo a humilhação. Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e agora as goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das paredes. Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como o frio era  grande,  aproximou-as  das  labaredas. Relatava  um  fuzuê terrível, esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de atos importantes. O  rio  subia  a  ladeira,  estava  perto  dos  juazeiros.  Não havia  notícia  de  que  os  houvesse  atingido -  e  Fabiano, seguro, baseado nas informações dos mais velhos, narrava uma briga de que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano acreditava nela.   As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria. Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez Sinha Vitória adquirisse uma cama de lastro  de  couro.  Realmente  o jirau  de  varas  onde se espichavam era incômodo.    Fabiano  gesticulava.  Sinha  Vitória  agitava  o abano  para sustentar  as  labaredas no angico  molhado.  Os  meninos, sentindo frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir e escutavam as lorotas do pai. Começaram a discutir em voz baixa  uma  passagem  obscura  da  narrativa.  Não conseguiram entender-se,  arengaram  azedos,  iam se  atracando.  Fabiano zangou-se com a impertinência deles e quis puni-los. Depois 
moderou-se, repisou   o   trecho incompreensível   utilizando palavras diferentes.   
    O menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano, que se agitavam por cima das labaredas, escuras e vermelhas. As costas ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas e  cor  de  sangue.  Era  como  se  Fabiano tivesse  esfolado  um animal. A barba ruiva e emaranhada estava invisível, os olhos azulados e imóveis fixavam-se nos tições, a fala dura e rouca entrecortava-se  de  silêncios.           
    Sentado no  pilão,  Fabiano derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo que não se agüenta em dois pés. O  menino  mais velho  estava  descontente. Não  podendo perceber as feições do pai, cerrava os olhos para entendê-lo bem. Mas surgira uma dúvida. Fabiano modificara a história - e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto. Estirou- se e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras. Altercaria  com  o  irmão procurando  interpretá-las.  Brigaria por  causa  das  palavras  -  e  a  sua  convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o herói tinha-se tornado humano e contraditório. O menino mais velho  recordou-se  de  um  brinquedo  antigo,  presente  de  seu Tomás da bolandeira . Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento. O ar que entrava pelas rachas das paredes esfriava-lhe uma perna, um braço, todo o lado direito. Virou-se, os pedaços de Fabiano  sumiram-se.  O  brinquedo  se  quebrara,  o  pequeno entristecera vendo as peças inúteis. Lembrou-se dos currais feitos de seixos miúdos, sob as catingueiras.     
    Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que ele  construíra. O  barreiro  também  se  enchera,  atingia  a parede  da  cozinha,  as  águas dele  juntavam-se  às  da  lagoa. Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de losna, Sinha Vitória saía pela porta da frente, descia o copiar e atravessava a porteira de baraúna. Atrás da casa, as cercas, o pé de turco e as catingueiras estavam dentro da água. As goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e capões  de  mato onde  viviam  seres  misteriosos tinham  sido violados. Havia lá sapos. E a cantiga deles subia e descia, uma  toada  lamentosa  enchia  os  arredores. Tentou  contar  as vozes,  atrapalhou-se.  Eram  muitas,  com  certeza  havia  uma infinidade de sapos nas moitas e nos capões. Que estariam fazendo? Por que gritavam a  cantoria gorgolejada e triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes invisíveis da terra e dos bancos de macambira. Enrolou-se, acomodou-se, adormeceu, uma banda aquecida pelo fogo, a outra banda protegida pelas nádegas de Sinha Vitória.    O  abano  agitava-se,  a  madeira  úmida  chiava, o vulto  de Fabiano iluminava-se e escurecia.    Baleia, imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que a família se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano fazia.  No  campo,  seguindo  uma  rês,  se esgoelava  demais. Natural. Mas ali, a beira do fogo, para "que  tanto grito? Fabiano  estava-se  cansando à toa.  Baleia  se  enjoava, cochilava e não podia dormir. Sinha Vitória devia retirar os carvões e a cinza, varrer o chão, deitarse na cama de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo do caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia todo espiava  os  movimentos  das  pessoas,  tentando  adivinhar coisas  incompreensíveis.  Agora  precisava dormir,  livrar-se das  pulgas  e  daquela  vigilância a  que  a  tinham  habituado. Varrido o chão com vassourinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras  molhadas  e  ouvindo  rumores  desconhecidos, o  tique- taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la. 

Capítulo VIII – Festa   

  FABIANO, Sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na cidade.  Eram  três  horas,  fazia  grande  calor,  redemoinhos espalhavam por cima das árvores amarelas nuvens de poeira e folhas secas.    Tinham  fechado  a  casa,  atravessado  o  pátio, descido  a ladeira,  e  pezunhavam  nos  seixos  como bois  doentes  dos cascos. Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por Sinha Terta, com chapéu de beata, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e  elástico, procurava erguer o espinhaço, o  que ordinariamente  não  fazia.  Sinha Vitória, enfronhada  no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua - e  dava  topadas  no  caminho.  Os  meninos  estreavam  calça  e paletó.  Em  casa  sempre  usavam  camiSinhas  de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas para  ele  e  para  os  filhos.  Sinha  Terta  achara  pouca  a fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia  furtar-lhe os retalhos. Em conseqüência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas.   
   Fabiano tentava não perceber essas desvantagens. Marchava direito, a barriga para fora, as costas aprumadas, olhando a serra  distante.  De ordinário  olhava  o  chão,  evitando  as pedras,  os tocos,  os          buracos  e  as  cobras. A posição forçada  cansou-o. E ao pisar a areia do rio, notou que assim não poderia vencer as três léguas que o separavam da cidade. Descalçou-se,  meteu  as meias  no bolso,  tirou  o  paletó,  a gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu imitá-lo: arrancou  os sapatos e as meias,  que  amarrou no lenço. Os meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço e sentiram-se à vontade.   A cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo. Se ela tivesse chegado antes provavelmente Fabiano a teria enxotado.  E  Baleia  passaria  a  festa  junto  às  cabras  que sujavam o copiar. Mas com a gravata e o colarinho machucados no bolso, o paletó no ombro e as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dela e acolheu-a.    
   Retomou  a  posição  natural: andou cambaio, a  cabeça inclinada. Sinha Vitória, os dois meninos  e  Baleia acompanharam-no. A tarde foi comida facilmente e ao cair da noite estavam na beira do riacho, à entrada da rua.   Aí Fabiano parou, sentou-se, lavou os pés duros, procurando retirar  das  gretas  fundas  o  barro  que  lá  havia.  Sem  se enxugar,  tentou  calçar-se -  e  foi  uma  dificuldade:  os calcanhares das meias de algodão formaram bolos nos peitos dos  pés  e  as  botinas  de  vaqueta  resistiram  como  virgens. Sinha Vitória levantou a saia, sentou-se no chão e limpou-se também. Os  dois meninos  entraram  no  riacho,  esfregaram  os pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os movimentos dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se, mas Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinação de uma daquelas amaldiçoadas botinas; a outra emperrava, e ele, com os dedos nas alças, fazia  esforços inúteis. Sinha Vitória dava palpites que irritavam o marido. Não havia meio  de  introduzir  o  diabo  do calcanhar  no tacão.  A  um arranco mais forte, a alça de trás rebentou-se, e o vaqueiro meteu as mãos pela borracha, energicamente. Nada conseguindo, levantou-se resolvido a entrar na rua assim mesmo, coxeando, uma perna mais comprida que a outra. Com raiva excessiva, a que se misturava alguma esperança, deu uma patada violenta no chão.         A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a meia molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as paredes  de  vaqueta.  Fabiano  soltou um  suspiro  largo de satisfação e dor. Em seguida tentou prender o colarinho duro ao pescoço, mas os dedos trêmulos não realizaram a tarefa. Sinha Vitória auxiliou-o: o botão entrou na casa estreita e a gravata  amarrou-se.  As mãos  sujas,  suadas, deixaram  no colarinho manchas escuras.    
    - Está certo, grunhiu Fabiano.        Atravessaram a "pinguela e alcançaram a rilã. Sinha Vitória caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos sapatos, e conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para baixo e a  biqueira  para  cima,  enrolada  no  lenço.  Impossível  dizer porque Sinha Vitória levava o guarda-chuva com biqueira para cima e o castão para baixo. Ela própria não saberia explicar- se,  mas  sempre vira  as  outras  matutas  procederem  assim  e adotava o costume. Fabiano marchava teso. Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por isso   pisavam  devagar, receando            chamar a atenção das pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda, mundos maravilhosos  na serra  azulada. Aquilo,  porém,  era esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os, homens iriam brigar. Seria que o povo ali era brabo e não consentia que eles andassem entre as barracas?     Estavam acostumados a agüentar cascudos e puxões de orelhas.          Talvez as criaturas desconhecidas não se comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos retraíam-se, encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios de rumores estranhos. Chegaram  à  igreja, entraram.  Baleia  ficou passeando  na calçada, olhando a rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia estar no escuro, porque era noite, e a gente que andava no quadro  precisava  deitar-se.  Levantou  o  focinho,  sentiu  um cheiro que lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali perto e havia luzes em abundância, mas o que a incomodava era aquele cheiro de fumaça. Os  meninos  também  se espantavam.      No mundo,  subitamente alargado,  viam  Fabiano  e  Sinha  Vitória  muito  reduzidos, menores que as figuras dos altares. Não  conheciam altares, mas presumiam que aqueles objetos deviam ser preciosos. As luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz havia, na fazenda, o fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de querosene pendurado pela asa numa vara que saía da taipa; de canto, o bemdito de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era triste, uma cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o gado.              Fabiano  estava  silencioso,  olhando  as  imagens  e  as velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando, em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o.        De perneiras, gibão- e guarda-peito, andava metido numa  caixa,  como  tatu,  mas  saltava  no  lombo  de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos  e  os  braços  da  multidão  fossem  agarralo,  subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede.               
    Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em  questões  e  acabar  mal  a  noite.  Soprava  e esforçava-se inutilmente  por  abanar-se  com  o  chapéu.  Difícil  mover-se, estava  amarrado.  Lentamente conseguiu  abrir  caminho  no povaréu, esgueirou-se até junto da pia de água benta, onde se deteve, receoso de perder de vista a mulher e os filhos. Ergueu-se  nas  pontas  dos  pés,  mas  isto lhe  arrancou  um grunhido:  os  calcanhares  esfolados  começavam  a  afligi-lo. Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia atrás de uma  coluna.  Provavelmente  os  meninos  estavam  com  ela. A igreja  cada  vez mais  se enchia.  Para  avistar  a cabeça  da mulher,  Fabiano  precisava  estirar-se, voltar  o  rosto. E  o colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram indispensáveis.  Não  poderia  assistir  à  novena  calçado  em alpercatas,  a  camisa  de  algodão  aberta,  mostrando  o  peito cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na igreja uma vez por ano. E  sempre  vira,  desde  que  se  entendera,  roupas  de festa assim: calça e paletó engomados, batinas de elástico, chapéu de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar a  tradição,  embora sofresse  com  ela.  Supunha  cumprir  um dever,  tentava  aprumar-se.            Mas  a  disposição  esmorecia: o espinhaço  vergava,  naturalmente, os  braços  mexiam-se desengonçados. Comparando-se  aos  tipos  da  cidade,Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos  ardendo,  deixara  indignado  o  escritório  do  branco, certo  de  que  fora  enganado.  Todos  lhe  davam  prejuízo.  Os caixeiros,  os  comerciantes  e  o  proprietário  tiravam-lhe  o couro,  e  os  que  não  tinham  negócio  com  ele  riam  vendo-o passar  nas  ruas,  tropeçando.  Por  isso Fabiano  se  desviava daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por  Sinha  Terta,  o  colarinho,  a  gravata,  as  botinas  e  o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto.    
- Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos. Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os beiços. Não poderia dizer semelhante coisa. Por falta menor agüentara facão e dormira na cadeia. Ora, o soldado amarelo. .. Sacudiu a cabeça, livrou-se da recordação desagradável  e  procurou  uma  cara  amiga  na  multidão.  Se encontrasse  um conhecido,  iria  chamá-lo  para  a  calçada, abraçá-lo, sorrir, bater palmas. Depois falaria sobre gado. Estremeceu, tentou ver o cocó de Sinha Vitória. Precisava ter cuidado  para  não  se  distanciar  da  mulher  e  dos  filhos. Aproximou-se deles, alcançou-os no momento em que  a igreja começava a esvaziar-se. Saíram  aos  encontrões,  desceram os  degraus.                 Empurrado, machucado,  Fabiano  tornou  a  pensar no  soldado  amarelo. No quadro, ao passar pelo jatobá, - virou o rosto. Sem motivo nenhum, o desgraçado tinha ido provocá-lo, pisar-lhe o pé. Ele se  desviara,  com bons  modos.  Como  o  outro  insistisse, perdera a paciência, tivera um rompante. Conseqüência: facão no lombo e uma noite de cadeia.   
    Convidou a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumou- os,  distraiu-se um pouco vendo-os  rodar.  Em  seguida encaminhou-os as barracas de jogo. Coçou-se, puxou o lenço,desatou-o, contou o dinheiro, com a tentação de arriscá-lo no bozó. Se fosse feliz, poderia comprar a cama de couro cru, a sonho de Sinha Vitória.     Foi beber cachaça numa tolda, voltou, pôs-se a rondar indeciso, pedindo com os olhos a opinião da mulher. Sinha Vitória fez um gesto de reprovação, e Fabiano retirou-se,lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu Inácio, com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaça. Pouca a pouco ficou sem-vergonha.    
   - Festa é festa. Bebeu  ainda  uma  vez  e  empertigou-se,  olhou  as  pessoas desafiando-as.  Estava  resolvido  a  fazer  uma  asneira.  Se topasse o soldado amarelo, esbodegava-se com ele. Andou entre as barracas, emproado, atirando coices no chão, insensível às esfoladuras dos pés. Queria era desgraçar-se, dar um pano de amostra àquele safado. Não ligava importância à mulher e aos filhos, que o seguiam.    - Apareça um homem! berrou.    
    No barulho que enchia a praça ninguém notou a provocação. E Fabiano foi esconder-se por detrás das barracas, para lá dos tabuleiros  de doces.  Estava  disposto  a  esbagaçar-se,  mas havia nele  um resto  de  prudência.  Ali  podia irritar- se, dirigir ameaças e desaforos a inimigos invisíveis. Impelido por forças opostas, expunha-se   e acautelava-se. Sabia que aquela explosão era perigosa, temia que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-lhe no  pé  a  reiúna.      O  soldado  amarelo,  falto  de  substância, ganhava fumaça na companhia dos parceiros. Era bom evitá-lo. Mas a lembrança dele tornava-se às vezes horrível. E Fabiano estava   tirando   uma   desforra.           Estimulado pela   cachaça, fortalecia-se:        
- Cadê o valente? Quem é que tem coragem de dizer que eu sou feio? Apareça um homem. Lançava o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio de  ser  ouvido. Ninguém  apareceu.  E  Fabiano  roncou  alto, gritou que eram todos uns frouxos, uns capados, sim senhor. Depois de muitos berros, supôs que havia ali perto homens escondidos, com medo dele. Insultou-os:              - Cambada de ... Parou agoniado,  suando  frio,  a  boca  cheia  de  água,  sem atinar com a palavra. Cambada de quê? Tinha o nome debaixo da língua., E a língua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava na  mulher  e  nos  filhos  uns  olhos  vidrados.  Recuou  alguns passos, entrou a engulhar. Em seguida aproximou-se novamente das luzes, capengando, foi sentar-se na calçada de uma loja. Betava desanimado, bambo; o entusiasmo arrefecera. Cambada de que? Repetia a pergunta sem saber o que procurava. Olhou de perto a cara da mulher, não conseguiu distinguir-lhe os  traços.  Sinha  Vitória  perceberia  a  atrapalhação  dele? 
     Havia ali outros matutos conversando, e Fabiano enjoou-os. Se não estivesse  tão ansiado, arrotando, suando, brigaria com eles.  A  interrogação  que  lhe  aperreava  o  espírito  confuso juntou-se a idéia de que aquelas pessoas não tinham o direito de  sentar-se  na  calçada.  Queria  que.  o  deixassem  com  a mulher, os filhos e a cachorrinha. Cambada de quê? Soltou um grito áspero, bateu palmas:           
- Cambada de cachorros. Descoberta  a  expressão  teimosa, alegrou-se. Cambada  de cachorros.    Evidentemente os matutos como ele não passavam de cachorros.  Procurou  com  as  mãos  a  mulher  e  os  filhos, certificou-se de que eles estavam acomodados. Uma contração violenta no pescoço entortou-lhe o rosto, a boca encheu-se novamente de saliva. Pôs-se a cuspir. Serenou, respirou com força, passou os dedos por um fio de baba que lhe pendia de beiço. Estava era tonto, com uma zoada infeliz nos ouvidos. Ia jurar que mostrara valentia e correra perigo. Achava ao mesmo tempo que havia cometido uma falta. Agora estava pesado e  com  sono.  Enquanto  andara  fazendo  espalhafato,  a  cabeça cheia de aguardente, desprezara as esfoladuras dos pés. Mas esfriava, e as botinas de vaqueta magoavam-nos em demasia. Arrancou-as,  tirou  as  meias,  libertou-se  do  colarinho,  da gravata e do paletó, enrolou tudo, fez um travesseiro,  estirou-se no  cimento, puxou para os olhos o chapéu de baeta. E adormeceu, com o estômago embrulhado. Sinha  Vitória  achava-se em  dificuldade:  torcia-se  para satisfazer  uma  precisão  e  não sabia como  se  desembaraçar. Podia  esconder-se  no  fundo  do  quadro,  por detrás  das barracas, para lá dos tamboretes das doceiras. Ergueu-se meio decidida,  tornou  a  acocorar-se.  Abandonar os  meninos,  o marido naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos com  desespero,  que  a precisão  era  grande.  Escapuliu-se disfarçadamente,  chegou  a  esquina  da  loja,  onde  havia  um magote de mulheres agachadas. E, olhando as  frontarias das casas e as lanternas de papel, molhou o chão e os pés das outras matutas. Arrastou-se para junto da família, tirou do bolso  o  cachimbo  de  barro,  atochou-o,acendeu-o,  largou algumas baforadas longas de satisfação. Livre da necessidade, viu com interesse o formigueiro que circulava na praça,  a mesa do leilão, as listas luminosas dos foguetes.                
     Realmente a vida não era má. Pensou com um arrepio na seca, na viagem medonha  que  fizera  em caminhos  abrasados, vendo  ossos  e garranchos.         Afastou  a  lembrança  ruim,  atentou  naquelas belezas. O burburinho da multidão  era  doce,  o  realejo fanhoso dos cavalinhos não descansava. Para a vida ser boa, só faltava à Sinha Vitória uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira .  Suspirou, pensando na  cama  de  varas  em  que dormia.        
    Ficou  ali  de  cócoras,  cachimbando,  os  olhos  e os ouvidos muito abertos para não perder a festa. Os  meninos  trocavam  impressões  cochichando,  aflitos  com  o desaparecimento da cachorra. Puxaram a manga da mãe. Que fim teria  levado  Baleia?  Sinha  Vitória levantou  o  braço  num gesto  mole  e  indicou  vagamente  dois  pontos  cardeais com  o canudo do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha?  Indiferentes  à igreja, às  lanternas  de papel, aos  bazares,  às mesas de  jogo  e  aos  foguetes,  só se importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava por aí perdida agüentando pontapés. De repente Baleia apareceu. Trepou-se na calçada, mergulhou entre as saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e chegou-se aos amigos, manifestando com a língua e com o rabo um vivo contentamento. O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram explicar-lhe que tinham tido susto enorme por  causa  dela,  mas  Baleia  não  ligou importância  à explicação. Achava é que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos. A opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam as  lojas,  as  toldas,  a  mesa  do  leilão. E  conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo  teve  uma  dúvida  e  apresentou-a  timidamente  ao  irmão.      Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho  hesitou,  espiou  as  lojas,  as  toldas  iluminadas,  as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido  feito  por  gente. Nova  dificuldade chegou-lhe  ao espírito soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas  tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras?     Era impossível,  ninguém  conservaria  tão  grande  soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas.  Não  tinham  sido  feitas  por  gente.  E  os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não  desencadear  as  forças  estranhas  que  elas  porventura encerrassem. 
   Baleia cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e franzia  o  focinho. A  cidade  se  enchera  de  suores  que  a desconcertavam. Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de seu Tomás da bolandeira , uma cama de verdade. Fabiano  roncava  de  papo  para  cima,  as  abas  do  chapéu cobrindo-lhe os olhos, o quengo sobre as botinas de vaqueta. Sonhava, agoniado, e Baleia percebia nele um cheiro que o tornava  irreconhecível.  Fabiano se  agitava,  soprando. Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés com enormes reiúnas e ameaçavam-no com facões terríveis. 

Capítulo IX – Baleia    

     A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo  róseo,  onde  manchas  escuras  supuravam  e  sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida. Por isso Fabiano  imaginara  que  ela  estivesse  com  um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente,  enxotava  os mosquitos  sacudindo  as  orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.   
    Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.    Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninosassustados,  que  adivinhavam  desgraça  e  não  se  cansavam  de repetir a mesma pergunta:          
 - Vão bulir com a Baleia? Tinham  visto  o  chumbeiro  e  o  polvarinho,  os  modos  de Fabiano  afligiam-nos,  davam-lhes  a  suspeita  de  que  Baleia corria perigo. Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos  os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no      estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras. Quiseram  mexer  na  taramela  e  abrir  a  porta,  mas  Sinha Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou- se por tapar-lhes os ouvidos prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do  segundo. Como os pequenos      resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.    
    Ela  também  tinha o  coração  pesado,  mas resignava-se: naturalmente  a  decisão  de  Fabiano  era  necessária  e  justa. Pobre da Baleia.    Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha.  Suspirou. Coitadinha da Baleia.    Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinha Vitória  tinha  relaxado  os  músculos,  deixou  escapar  o  mais taludo e soltou uma praga:           - Capeta excomungado. Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens. Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes  feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro  doido  solto  em  casa.  Mas  compreendia  que  estava sendo  severa  demais,  achava  difícil  Baleia  endoidecer  e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.        
   Nesse momento  Fabiano  andava no copiar,  batendo castanholas com os dedos. Sinha Vitória encolheu o pescoço e tentou  encostar  os ombros  às  orelhas.  Como  isto  era impossível,  levantou  os,  braços  e,  sem  largar  o  filho, conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.    Fabiano  percorreu  o  alpendre,  olhando  a  baraúna  e  as porteiras,   açulando um cão   invisível   contra   animais invisíveis:       
- Eco! eco! Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela  baixa  da  cozinha.  
    Examinou  o terreiro,  viu  Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da  árvore,  agachada  e  arisca,  mostrando  apenas  as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal  estivesse  de  frente  e  não  apresentasse bom  alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar as catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pos a latir desesperadamente.    
    Ouvindo  o  tiro  e  os latidos,  Sinha  Vitória  pegou-se  à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando  alto. Fabiano recolheu-se.    E Baleia  fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho  da  esquerda,  passou rente aos  craveiros  e  às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.    Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos. Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo  muito  sangue, andou  como gente,  em  dois  pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda. Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um  deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria- se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas, era um bicho diferente dos outros. 
   Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer- se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se  a custo, ralando     as  patas,  cravando  as  unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto as pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.    Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu : um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.    Como  o  sol  a  encandeasse,  conseguiu  adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra. Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se. Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro  vinha,  fraco  e  havia  nele  partículas  de outros viventes.  Parecia  que  o  morro  se  tinha  distanciado  muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em  liberdade.         
   Começou  a  arquejar  penosamente,  fingindo ladrar.  Passou  a  língua  pelos  beiços  torrados  e  não experimentou  nenhum  prazer. O  olfato  cada  vez  mais  se embotava: certamente os preás tinham fugido.    Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que  lhe  apareceu  diante  dos  olhos  meio  vidrados,  com  um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer,      convencida      de     que     ele    encerrava       surpresas desagradáveis.     Fez  um  esforço  para  desviar-se  daquilo  e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo  estava  encolhido.  Não  poderia  morder  Fabiano:  tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas. O  objeto  desconhecido  continuava  a  ameaçá-la.  Conteve  a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas.  Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.    Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança. Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite?  A  obrigação  dela  era  levantar-se,  conduzi-los  ao bebedouro.  Franziu  as ventas,  procurando distinguir  os meninos. Estranhou a ausência deles.       Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as  cabras:  àquela  hora  cheiros  de  suçuarana  deviam  andar pelas ribanceiras, rondar. as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinha Vitória guardava o cachimbo.    Uma  noite  de  inverno,  gelada  e  nevoenta,                cercava  a criaturinha.      Silêncio  completo,  nenhum  sinal  de  vida  nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas  quando  o  galo  batia  as  asas  e  Fabiano se  virava, emanações  familiares  revelavam-lhe  a  presença  deles.  Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado. Baleia  respirava  depressa, a  boca  aberta,  os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto  e  a  viagem  difícil  do  barreiro  ao  fim  do  pátio desvaneciam-se no seu espírito.        Provavelmente  estava  na  cozinha,  entre  as  pedras  que serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinha Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E,  findos  os  cochilos,  numerosos  preás  corriam  e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.    A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia.  Do  peito  para  trás  era  tudo  insensibilidade  e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença. Baleia  encostava  a  cabecinha  fatigada  na  pedra.  A  pedra estava fria, certamente Sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.    Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes. 

 Capítulo X – Contas    

     FABIANO recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça  dos  cabritos.  Mas  como  não  tinha  roça  e  apenas  se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.    Se  pudesse  economizar  durante  alguns  meses, levantaria  a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa.     Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria a  gaveta  do amo,  cedia  por  preço  baixo  o  produto  das sortes, Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia- se: Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro,  criar  juízo.  Ficava  de  boca  aberta,  vermelho,  o pescoço inchando. De repente estourava               
- Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer.  Quem é do chão não se trepa.    Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano.  E  quando  não  tinha  mais  nada  para  vender,  o sertanejo  endividava-se.  Ao chegar  a  partilha,  estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia. Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se,  enfim  deixou a transação  meio  apalavrada  e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no  chão  sementes        de  várias  espécies,  realizou  somas  e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.   
    Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor,  via-se  perfeitamente  que era  bruto,  mas  a  mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada!  Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom  que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso  barulho  não.  Se  havia  dito  palavra  à-toa,  pedia desculpa.  Era  bruto,  não  fora  ensinado.  Atrevimento  não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser  ignorância  da  mulher.  Até  estranhara  as contas  dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.      
   O  amo  abrandou,  e  Fabiano  saiu  de  costas,  o chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru batendo no chão como cascos.    Foi até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo assim. Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de seu Inácio virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que acontecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era safadeza.    
- Ladroeira. Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro pedras na mão. Para que tanto espalhafato?    
- Hum! hum!    Recordou-se do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca, longe.  Num  dia  de  apuro  recorrera ao porco magro que  não queria engordar no chiqueiro e estava reservado às despesas do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na cidade. Mas  o  cobrador  da  prefeitura  chegara  com  o  recibo e atrapalhara-o.       Fabiano   fingira-se   desentendido: não compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera.  Bem, bem.  Deus  o     livrasse  de  história  com  o governo.  Julgava  que  podia  dispor  dos  seus  troços.  Não entendia de imposto.    
- Um bruto, está percebendo? Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o  chapéu de couro na mão, o espinhaço curvo:              
- Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.    Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua,  escondido.  Mas, atracado  pelo cobrador,  gemera  no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los. 
  Olhou  as  cédulas  arrumadas  na  palma,  os  níqueis  e  as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada! Espalhou a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados, que lhe reduziam o horizonte, a campina se estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera através dela, com a família,      todos  esmolambados e famintos. Haviam escapado,  e  isto  lhe  parecia  um  milagre.  Nem sabia como tinham escapado.   
   Se  pudesse  mudar-se,  gritaria  bem  alto  que o  roubavam. Aparentemente resignado,  sentia um  ódio  imenso  a  qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados  e  os  agentes        da  prefeitura.  Tudo  na  verdade era contra  ele.  Estava acostumado, tinha  a  casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.    
- Um dia um homem faz besteira e se desgraça. Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia o  seu  lugar. Bem. Nascera  com  esse  destino,  ninguém  tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia  mudar  a  sorte?  Se  lhe  dissessem  que era  possível melhorar  de  situação,  espantar-se-ia. Tinha  vindo  ao  mundo para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de  inverno  a verão.  Era  sina.  O  pai  vivera  assim,  o  avô também. E para  trás não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos - aquilo estava no sangue. Conformava-se, não pretendia  mais  nada  Se  lhe dessem  o  que  era  dele,  estava certo.   Não   davam. Era um desgraçado,   era  como  um cachorro, só recebia  ossos.  Por  que  seria  que os homens ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias. Na palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas com  o  amo  o  prejuízo  parecia  menor.  Alarmou-se. Ouvira falar em  juros  e  em  prazos.  Isto lhe  dera  uma  impressão bastante  penosa:  sempre  que  os  homens  sabidos  lhe  diziam palavras   difíceis, ele saía logrado.   Sobressaltava-se escutando-as.       Evidentemente só   serviam para   encobrir ladroeiras.  Mas  eram bonitas.  As  vezes  decorava  algumas  e empregava-as fora do propósito. Depois esquecia-as. Para que um  pobre  da  laia  dele  usar  conversa  de  gente  rica?  Sinha Terta é que tinha uma ponta de língua terrível. Era: falava quase  tão  bem  como  as  pessoas  da  cidade.  Se  ele  soubesse falar  como  Sinha Terta,  procuraria  serviço  noutra  fazenda, haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas horas de aperto dava para  gaguejar,  embaraçava-se  como  um  menino,  coçava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar?    
- An! Agora não criava porco e queria ver o tipo da prefeitura cobrar dele imposto e multa. Arrancavam-lhe a camisa do corpo e  ainda  por  cima davam-lhe  facão  e  cadeia.  Pois  não trabalharia mais, ia descansar.    Talvez  não  fosse. Interrompeu o monólogo, levou  uma eternidade  contando  e  recontando  mentalmente  o  dinheiro. Amarrotou-o  com força,  empurrou-o  no  bolso  raso  da  calça, meteu na casa estreita o botão de osso. Porcaria. Levantou-se, foi até a porta de uma bodega, com vontade de beber  cachaça.  Como  havia  muitas  pessoas  encostadas ao balcão, recuou. Não gostava de se ver no meio do povo. Falta de costume. 
    As vezes dizia uma coisa sem intenção de ofender, entendiam  outra,  e  lá  vinham  questões.  Perigoso  entrar na bodega. O único vivente que o compreendia era a mulher. Nem precisava falar : bastavam os gestos. Sinha Terta é que se explicava  como  gente  da  rua.  Muito  bom  uma criatura  ser assim,  ter  recurso  para  se  defender.  Ele  não  tinha.  Se tivesse, não viveria naquele estado. Um perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um quarteirão de cachaça, mas lembrava-se da última visita feita à venda de seu Inácio. Se não tivesse tido a idéia de beber, não lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir. Saiu  lento,  pesado, capiongo, as rosetas  das esporas silenciosas. Não conseguiria dormir. Na cama de varas havia um pau com um nó, bem no meio. Só muito  cansaço  fazia  um cristão acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigar- se no lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas. Derreado, bambo,, espichava-se e roncava como um porco. Agora não  lhe  seria  possível  fechar  os  olhos.  Rolaria  a  noite inteira  sobre  as varas,  matutando  naquela  perseguição. Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada.  Matar-se-ia  no  serviço  e  moraria  numa  casa  alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca.   
    Tirou do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a faca  de  ponta.  Se ao menos pudesse  recordar-se  de  fatos agradáveis, a vida não seria inteiramente má. Deixara a rua. Levantou a cabeça, viu uma estrela, depois muitas estrelas. As figuras dos inimigos esmoreceram. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre de Baleia. Era como se ele tivesse matado uma pessoa da família. 


 Capítulo XI - O Soldado Amarelo  

  FABIANO meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca, torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado, o  alo  cheio  a  tiracolo,  muitos  látegos e  chocalhos pendurados num braço. O facão batia nos tocos. Espiava o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A égua ruça, com  certeza.  Deixara  pêlos  brancos  num  tronco  de  angico. Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que não aconteceria se se tratasse de um cavalo. Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros que  se  cruzavam,  de  viventes  menores.  Corcunda,  parecia farejar o solo - e a catinga deserta animava-se, os bichos que  ali  tinham  passado  voltavam,  apareciam-lhe  diante  dos olhos miúdos. Seguiu a direção que ~a égua havia tomado. Andara cerca de cem braças quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o facão,  pôs-se  a  cortar  as  quipás  e  as  palmatórias  que interrompiam a passagem.    
    Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se percebendo rumor de garranchos, voltou- se e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara a cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário.    A lâmina parou de chofre, junto à cabeça do  intruso,  bem  em  cima  do  boné  vermelho. A  princípio  o vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais  grave,  uma  autoridade.  Sentiu  um  choque violento, deteve-se,  o braço  ficou  irresoluto,  bambo,  inclinando-se para um lado e para outro. O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão: procedera  como  quando,  a  montar  brabo,  evitava  galhos  e espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa coisa que ia partindo a cabeça do amarelo. Se ela tivesse demorado  um  minuto,  Fabiano  seria  um  cabra  valente.  Não demorara.  A  certeza  do  perigo  surgira-  e  ele  estava indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos.   
    Tinha medo e repetia que estava em perigo,mas isto lhe pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoa tremer assim.Cachorro. Ele não era dunga na cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira?  Não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.    Irritou-se. Porque seria que aquele safado batia os dentes como um caititu?      Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou a cara. A idéia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas. Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda, grossa  e  cabeluda,  à  cara  do  polícia,  que  recuou  e  se encostou a uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o infeliz teria caído.Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava  dinheiro  para  maltratar  as  criaturas  inofensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais feio  que  um  focinho.Hem?  Estava  certo?  Bulir  com  as pessoas que não fazem mal a ninguém. Porque? Sufocava-se, as rugas  da  testa  aprofundavam-se,  os  pequenos  olhos  azuis abriam-se demais, numa interrogação dolorosa. O soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar cego  outra  vez.  Impossível  readquirir  aquele  instante  de inconsciência.  Repetia  que  a  arma  era  desnecessária,  mas tinha a certeza de que não conseguiria utilizá-la - e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo. A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se -  e  Fabiano  estacou  desajeitado, como  um  pato,  o  corpo amolecido.    
     Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar a idéia absurda:        
- Como a gente pensa coisas bestas!       Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava frio  e  tinha lembranças  insuportáveis.  Era  um  sujeito violento, de coração perto da goela. Não, era um cabra que se arreliava algumas vezes - e quando isto acontecia, sempre se dava mal. Naquela tarde, por exemplo, se não tivesse perdido a paciência e xingado a mãe da autoridade, não teria dormido na   cadeia   depois       de   agüentar   zinco   no   lombo.   Dois excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas costas, ele se arrastara tiritando como um frango  molhado.  Tudo porque  se  esquentara  e  dissera  uma palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa? O  sarapatel  se  formara,  o  cabo  abrira  caminho  entre  os feirantes que se apertavam em redor: - "Toca pra frente". Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em cima  da  alpercata.  Impacientara-se  e  largara o  palavrão. Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada,  porque todo  o  mundo  vê  logo  que a  gente  não  tem  a  intenção  de maltratar  ninguém. Um  ditério  sem  importância.  O amarelo devia  saber  isso.  Não  sabia.  Saíra-se  com  quatro  pedras na  mão,  apitara.  
    E Fabiano  comera da  banda  podre.  - "Desafasta".    Deu  um  passo  para  a  catingueira.  Se  ele  gritasse  agora "desafasta", que faria o polícia? Não se  afastaria, ficaria colado ao pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe dele. Mas então... Fabiano estirava o beiço e rosnava. Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo... Soltou uns grunhidos. Porque motivo o governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha  receio de empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as  pessoas  inofensivas.  Ele,  Fabiano,  seria  tão  ruim  se andasse fardado?  Iria  pisar  os  pés  dos  trabalhadores  e dar pancada neles? Não iria.   
    Aproximou-se lento,  fez uma volta, achou-se em  frente do polícia,  que  embasbacou,  apoiado  ao tronco,  a  pistola  e  o punhal inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira, certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantar- lhe o salto da reiúna em cima da alpercata. Desejava que ele fizesse isso. A idéia de ter sido insultado, preso, moído por uma criatura mofina era insuportável. Mirava-se naquela covardia, via-se  mais lastimoso e miserável que o outro. Baixou  a  cabeça,  coçou  os  pêlos  ruivos  do queixo.  Se  o soldado  não  puxasse  o  facão, não gritasse,  ele,  Fabiano, seria um vivente muito desgraçado.    
    Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um bicho  resistente,  calejado.  Tinha nervo,  queria  brigar, metera-se  em espalhafatos e  saíra  de  crista  levantada. Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça.     Uma  vez,  de  lambedeira  em  punho,  espalhara  a  negrada.  Aí Sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso. Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas certamente  envelhecia  e  fraquejava.  Se  possuísse  espelhos, veria  rugas  e  cabelos  brancos.  Arruinado,  um  caco.  Não sentira a transformação, mas estava-se acabando. O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo de  uma  peste  que  se  escondia tremendo?  Não era  uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom para agüentar  facão no lombo e dormir na cadeira. Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era facão, não servia para nada. Ora não servia!   
 - Quem disse que não servia? Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando  palmas  de  quipá.     E  estivera  a  pique  de  rachar  o quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa tivesse  durado  mais  um  segundo,  o  polícia  estaria  morto. Imaginou-o  assim,  caído,  as  pernas  abertas, os  bugalhos apavorados,  um  fio  de  sangue  empastando-lhe  os  cabelos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrastá-lo  para  dentro  da  catinga,  entregá-lo  aos  urubus. E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente.    Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que  se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto  da  vida.  Estava  acabado?  Não  estava.  Mas  para  que suprimir  aquele  doente  que  bambeava  e  só  queria  ir  para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza  fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força. Vacilou  e  coçou  a  testa.  Havia  muitos  bichinhos  assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.    Afastou-se,  inquieto.  Vendo-o  acanalhado  e  ordeiro,  o soldado  ganhou  coragem,  avançou,  pisou firme,  perguntou  o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.    
- Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. 

Capítulo XII - O Mundo Coberto de Penas   

    O MULUNGU do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente  o  sertão  ia pegar  fogo.  Vinham  em  bandos, arranchavam-se nas  árvores  da  beira  do  rio,  descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços,  e  aquelas  excomungadas  levavam  o  resto  da  água, queriam matar o gado.    Sinha Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa,  achando  a  frase  extravagante.  Aves  matarem  bois  e cabras, que lembrança! Olhou a mulher, desconfiado, julgou que  ela  estivesse  tresvariando.  Foi  sentar-se  no  banco  do copiar,  examinou  o  céu  limpo,  cheio  de  claridades  de  mau agouro,  que  a  sombra  das  arribações  cortava.  Um  bicho  de penas matar o gado! Provavelmente Sinha Vitória não estava regulando.    Fabiano  estirou  o  beiço  e  enrugou  mais  a testa  suada: impossível compreender a intenção da mulher. Não atinava. Um bicho  tão  pequeno!         
    Achou  a  coisa  obscura  e  desistiu  de aprofundá-la. Entrou  em casa,  trouxe  o aió ,  preparou  um cigarro,  bateu  com  o  fuzil  na  pedra,  chupou  uma  tragada longa. Espiou os quatro cantos, ficou alguns minutos voltado para o norte, coçando o queixo.   
 - Chi! Que fim de mundo! Não permaneceria ali muito tempo.
   No silêncio comprido só se ouvia um rumor de asas. Como era que Sinha Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito  de  Fabiano  e  logo  a significação apareceu.  As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem.  As  arribações matavam  o  gado.  Estava  certo. Matutando,  a  gente  via  que  era  assim,  mas  Sinha Vitória largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria  dizer.  
   Esqueceu a  infelicidade  próxima, riu-se encantado com a esperteza de Sinha Vitória. Uma pessoa como aquela  valia  ouro.  Tinha  idéias,  sim  senhor,  tinha  muita coisa  no  miolo.  Nas  situações  difíceis  encontrava  saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam. Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma barrancharia pelada, enfeitava-se de penas.    Desejou ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aió  a tiracolo,  foi  buscar  o  chapéu  de  couro  e  a  espingarda  de pederneira. Desceu o copiar, atravessou o pátio, avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinham- lhe aparecido aquelas coisas horríveis na boca, o pêlo caíra, e  ele  precisara matá-la. Teria procedido  bem?    Nunca  havia refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor as crianças à hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeça para afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda que  lhe  trazia  a  imagem  da  cadelinha.  A  espingarda,  sem dúvida. Virou o rosto defronte das pedras do fim do pátio, onde Baleia aparecera fria, inteiriçada, com os olhos comidos pelos urubus. Alargou  o  passo,  desceu  a  ladeira,  pisou  a  terra  de aluvião, aproximou-se do bebedouro. Havia um bater doido de asas  por  cima  da  poça  de  água preta,  a  garrancheira  do mulungu estava completamente  invisível. Pestes. Quando elas desciam do sertão, acabava-se tudo. O gado ia finar-se, até os espinhos secariam. Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou o  gatilho  sem  pontaria.  Cinco  ou  seis  aves  caíram  no chão,  o  resto  se  espantou,  os  galhos  queimados  surgiram nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha fim.    Fabiano  sentou-se  desanimado  na  ribanceira  do  bebedouro, carregou lentamente a espingarda com chumbo miúdo e não socou a  bucha,  para a  carga  espalhar-se  e  alcançar  muitos inimigos. Novo tiro, novas quedas, mas isto não deu nenhum prazer a Fabiano. Tinha ali comida para dois ou três dias; se possuísse munição, teria comida para semanas e mês.    
    Examinou  o  polvarinho  e  o  chumbeira,  pensou na  viagem, estremeceu. Tentou  iludir-se, imaginou  que ela  não  se realizaria  se  ele não a provocasse  com idéias  ruins. Reacendeu  o  cigarro,  procurou  distrair-se  falando  baixo. Sinha Terta era pessoa de muito saber naquelas beiradas. Como andariam as contas com o patrão? Estava ali o que ele não conseguiria nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia tudo,  e  afinal  o  branco  ainda  achava  que  fazia  favor.  O soldado amarelo... Fabiano, encaiporado, fechou as mãos e deu murros na coxa. Diabo. Esforçava-se por esquecer uma infelicidade, e vinham outras infelicidades. Não queria lembrar-se do patrão nem do soldado amarelo. Mas lembrava-se, com desespero, enroscando- se  como  uma cascavel  assanhada.  Era  um  infeliz,  era  a criatura mais infeliz do mundo. Devia ter ferido naquela tarde o soldado amarelo, devia tê-lo cortado a facão. Cabra ordinário,  mofino,  encolhera-se e  ensinara  o  caminho. Esfregou  a  testa  suada  e  enrugada.  Para que  recordar vergonha?  Pobre  dele.  Estava então  decidido  que  viveria sempre assim? Cabra safado, mole. Se não fosse tão fraco, teria entrado no cangaço e feito misérias. Depois levaria um tiro de  emboscada  ou envelheceria  na cadeia, cumprindo sentença,  mas  isto  não  era melhor  que  acabar-se numa beira de caminho, assando no calor, a mulher e os filhos acabando-se também. Devia ter furado o pescoço do amarelo com faca de ponta, devagar.     Talvez estivesse preso e respeitado, um  homem  respeitado,  um  homem.  Assim  como  estava,  ninguém podia  respeitá-lo.  Não  era  homem,  não  era  nada.  Agüentava zinco no lombo e não se vingava.    
-Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergonha, Fabiano. Mata  o  soldado  amarelo.  Os soldados  amarelos são  uns desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele. Como gesticulava com furor, gastando muita energia, pôs-se a resfolegar e sentiu sede. Pela cara vermelha e queimada o suor corria, tornava mais escura a barba ruiva. Desceu da ribanceira,  agachou-se  à  beira  da  água  salobra,  pôs-se  a beber  ruidosamente  nas palmas  das  mãos.  Uma nuvem  de arribações voou assustada. Fabiano levantou-se, um brilho de indignação nos olhos. - Miseráveis. A cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a sentar-se  na  ribanceira,  atirou muitas  vezes  nos  ramos  do mulungu,  o  chão  ficou todo  coberto  de  cadáveres.  Iam  ser salgados, estendidos em cordas. Tencionou aproveitá-los como alimento na viagem próxima. Devia gastar o resto do dinheiro em  chumbo  e  pólvora,  passar  um  dia  no  bebedouro,  depois largar-se  pelo  mundo. Seria  necessário mudar-se? 
     Apesar de saber   perfeitamente que era   necessário,   agarrou-se  a esperanças frágeis. Talvez a     seca não viesse, talvez chovesse.  Aqueles  malditos  bichos  é  que  lhe  faziam medo. Procurou esquecê-los. Mas como poderia esquecê-los se estavam ali, voando-lhe em torno da cabeça, agitando-se na lama, empoleirados nos galhos, espalhados no chão, mortos? Se não  fossem  eles, a  seca  não  existiria.     Pelo  menos não existiria naquele momento: viria depois, seria mais curta. Assim, começava logo - e Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como se ela já tivesse chegado, experimentava adiantadamente a  fome,  a  sede,  as  fadigas  imensas  das retiradas.  Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos,  consertando  cercas.  De  repente,  um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o   medonho rumor de  asas  a  anunciar destruição. Ele  já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas. - Miseráveis.         As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse matá-las,  a  seca se  extinguiria. Mexeu-se  com  violência, carregou a espingarda furiosamente. A mão grossa, cabeluda, cheia de manchas e descascada, tremia sacudindo a vareta,                    
- Pestes.  Impossível dar cabo daquela praga. Estirou os olhos pela campina,  achou-se  isolado.          Sozinho num  mundo  coberto  de penas, de aves que iam comê-lo. Pensou na mulher e suspirou. Coitada   de Sinha Vitória,   novamente   nos   descampados, transportando  o  baú  de  folha.  Uma  pessoa  de  tanto  juízo marchar na terra queimada, esfolar os pés nos seixos,  era duro. As arribações matavam o gado. Como tinha Sinha Vitória descoberto  aquilo.  Difícil. Ele,  Fabiano,  espremendo  os miolos. Não  diria  semelhante  frase. Sinha Vitória fazia contas direito: sentava-se  na  cozinha,  consultava montes de sementes de várias espécies, correspondentes a mil- réis, tostões e vinténs. E acertava. As contas do patrão eram diferentes,  arranjadas  a  tinta  e  contra  o  vaqueiro, mas Fabiano  sabia  que elas estavam erradas  e o patrão queria enganá-lo.Enganava. Que      remédio?        Fabiano, um desgraçado, um cabra, dormia na cadeia e agüentava zinco no lombo.     Podia reagir? Não podia. Um cabra. Mas as contas de Sinha Vitória deviam ser exatas. Pobre de Sinha Vitória. Não conseguiria nunca estender os ossos numa cama, o único desejo que  tinha. Os  outros  não  se  deitavam  em  camas?  Receando magoá-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo fosse um sonho.  Não  poderiam  dormir  como  gente.  E  agora  iam  ser comidos pelas arribações. Desceu  da  ribanceira,  apanhou  lentamente  os cadáveres, meteu-os  no  aió ,  que  ficou cheio, empanzinado.  Retirou-se devagar. Ele, Sinha Vitória e os dois meninos comeriam as arribações. Se  a  cachorra  Baleia  estivesse  viva,  iria  regalar-se. Porque seria que o coração dele se apertava? Coitadinha da cadela.  Matara-a  forçado,  por causa  da  moléstia.  Depois voltara  aos  látegos,  às cercas,  às  contas  embaraçadas  do patrão. Subiu a ladeira, avizinhou-se dos juazeiros. Junto a raiz de um deles a pobrezinha gostava de espojar-se, cobrir- se de garranchos e folhas secas. Fabiano suspirou, sentiu um peso enorme por dentro. Se tivesse cometido um erro? Olhou a planície   torrada,  o  morro onde os preás saltavam, confessou às  catingueiras  e  aos  alastrados  que  o  animal tivera hidrofobia, ameaçara as crianças. Matara-o por isso.         Aqui  as  idéias de  Fabiano  atrapalharam-se:  a cachorra misturou-se  com  as  arribações,  que  não se  distinguiam  da seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinha Vitória tinha razão : era atilada e percebia as  coisas de longe.  Fabiano  arregalava os  olhos  e  desejava  continuar  a admirá-la. Mas o coração grosso, como um cururu, enchia-se com  a     lembrança  da  cadela.  Coitadinha,  magra,  dura, inteiriçada, os olhos arrancados pelos urubus.      Diante dos juazeiros, Fabiano apressou-se, Sabia lá se a alma de Baleia andava por ali, fazendo visagem?    Chegou-se a casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora ele  sentia  sempre        uns  vagos  terrores. Ultimamente  vivia esmorecido,   mofino,   porque   as desgraças   eram   muitas. Precisava  consultar  Sinha  Vitória,  combinar a  viagem, livrar-se  das  arribações,  explicar-se,  convencer-se  de  que não praticara  injustiça matando  a  cachorra.  Necessário abandonar   aqueles   lugares   amaldiçoados. Sinha   Vitória pensaria como ele. 

Capítulo XIII – Fuga   

     A VIDA na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia- se  tremendo,  manejava  o  rosário,  mexia  os  beiços  rezando rezas  desesperadas. Encolhido  no  banco  do  copiar,  Fabiano espiava   a catinga   amarela,   onde  as  folhas   secas   se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se  torciam,  negros,  torrados.  No  céu  azul  as  últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam,  devorados  pelo carrapato.  E  Fabiano  resistia, pedindo a Deus um milagre. Mas quando  a  fazenda se  despovoou,  viu  que tudo  estava perdido,  combinou  a  viagem  com  a mulher, matou  o  bezerro morrinhento  que  possuíam,  salgou  a  carne,  largou-se  com  a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.         Saíram  de  madrugada.  Sinha  Vitória  meteu o  braço  pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com  a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, Sinha Vitória lembrou-se da cachorra  Baleia,  chorou,  mas  estava  invisível  e  ninguém percebeu o choro.Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em silêncio,  quatro sombras  no  caminho  estreito  coberto  de seixos miúdos - os meninos à frente, conduzindo  trouxas de roupa, Sinha Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano atrás, de facão de rasto e faca de ponta, a cuia pendurada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió  a tiracolo, a  espingarda  de  pederneira  num  ombro, o saco da matalotagem no outro. Caminharam bem três léguas antes que a barra do nascente aparecesse Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão  parte da  carga,  olhou  o  céu,  as  mãos  em  pala  na testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os -a poupar forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito,  nem  acreditava  nela.            
     Preparara-a  lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido.Podia continuar a viver  num cemitério?  Nada  o  prendia  àquela  terra  dura, acharia  um  lugar  menos  seco  para  enterrar-se.  Era  o que Fabiano dizia, pensando em coisas alheias:" o chiqueiro e o curral,  que  precisavam  conserto,  o  cavalo de  fábrica,  bom companheiro,  a  égua  alazã, as catingueiras,  as  panelas  de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele esmoreciam,  as  alpercatas  calavam-se  na  escuridão.  Seria necessário  largar  tudo?  As  alpercatas  chiavam  de  novo  no caminho coberto de seixos.  Agora  Fabiano  examinava o  céu,  a  barra  que  tingia  o nascente,  e  não  queria  convencer-se  da realidade.  Procurou distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo  da  aba  curva  do  chapéu,  protegiam-lhe  os  olhos contra a claridade e tremiam. Os braços penderam, desanimados.    
- Acabou-se. Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim. Desde o aparecimento das arribações vivia desassossegado. Trabalhava  demais  para  não  perder  o  sono.  Mas no meio  do serviço um arrepio corria-lhe no espinhaço, à noite acordava agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido pelas pulgas, conjecturando misérias. A luz aumentou e espalhou-se na campina. Só aí principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos filhos,- apanhou a espingarda e o saco dos mantimentos, ordenou a marcha com uma interjeição áspera. Afastaram-se  rápidos;  como  se  alguém  os  tangesse,  e  as alpercatas de Fabiano iam quase tocando os calcanhares dos meninos. A lembrança da cachorra Baleia picava-o, intolerável.  Não  podia  livrar-se  dela.  Os  mandacarus e  os alastrados vestiam  a  campina, espinho, só espinho.  E Baleia aperreava-o. Precisava fugir daquela vegetação inimiga. Os meninos corriam. Sinha Vitória procurou com a  vista o rosário de contas brancas e azuis arrumado entre os peitos, mas,  com  o  movimento  que  fez,  o  baú  de  folha  pintada  ia caindo. Aprumou-se e endireitou o baú, remexeu os beiços numa oração.  Deus  Nosso  Senhor  protegeria os inocentes. Sinha Vitória fraquejou, uma ternura imensa encheu-lhe o coração. Reanimou-se, tentou libertar-se dos pensamentos  tristes e conversar com o marido por monossílabos. 
    Apesar de ter boa ponta de língua, sentia um aperto na garganta e não poderia explicar-se. Mas achava-se desamparada e miúda na solidão, necessitava um apoio,  alguém  que  lhe  desse  coragem. Indispensável ouvir qualquer som. A manhã, sem pássaros, sem folhas e sem vento, progredia num silêncio de morte. A faixa vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu. Sinha Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como um  pé  de  mandacaru,  secando,  morrendo. Queria  enganar-se, gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvores transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não valiam  nada.  Chegou-se a  Fabiano,  amparou-o  e  amparou-se, esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam carniça.            
    Falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderia voltar a ser o que já tinham sido? Fabiano  hesitou,  resmungou, como  fazia  sempre  que  lhe dirigiam palavras incompreensíveis.Mas achou bom que Sinha Vitória tivesse puxado conversa. Ia num desespero, o saco da comida e o  aió  começavam a  pesar  excessivamente. Sinha Vitória  fez a  pergunta,  Fabiano matutou  e  andou bem meia  légua  sem sentir.  A  princípio  quis  responder  que evidentemente eles eram o que tinham sido; depois achou que estavam mudados, mais velhos e mais fracos.       
    Eram outros, para bem dizer. Sinha Vitória insistiu. Não seria bom tornarem a viver  como  tinham  vivido,  muito  longe? Fabiano  agitava  a cabeça, vacilando. Talvez fosse, talvez não fosse. Cochicharam uma conversa longa e entrecortada, cheia de mal-entendidos  e  repetições.  Viver  como  tinham  vivido,  numa casinha protegida pela bolandeira  de seu Tomás. Discutiram e acabaram reconhecendo que aquilo não valeria a pena, porque estariam sempre assustados, pensando na seca. Aproximavam-se agora dos lugares habitados, haveriam de achar morada. Não andariam sempre à toa, como ciganos. O vaqueiro ensombrava-se com  a  idéia  de  que  se  dirigia  a  terras  onde  talvez  não houvesse gado para tratar. Sinha Vitória tentou sossegá-lo dizendo  que  ele poderia  entregar-se  a  outras  ocupações,  e Fabiano estremeceu, voltou-se, estirou os olhas em direção à fazenda abandonada. Recordou-se dos animais feridos e logo afastou  a  lembrança.  
    Que  fazia  ali  virado  para  trás?  Os animais estavam mortos. Encarquilhou as pálpebras contendo as lágrimas, uma grande saudade espremeu-lhe o coração, mas um instante depois vieram-lhe ao espírito figuras insuportáveis: o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada junto às pedras do fim do pátio. Os  meninos  sumiam-se  numa  curva  do  caminho. Fabiano adiantou-se  para  alcançá-los.  Era preciso aproveitar  a disposição  deles,  deixar que andassem  à  vontade.  Sinha Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos  lugares  onde  tinha  vivido  alguns  anos; o  patrão,  o soldado  amarelo  e  a  cachorra  Baleia  esmoreceram  no  seu espírito.    
     E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar o   desejo.   Temeu arriar, não prosseguir   na caminhada. Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem  que,  vista  de  perto,  escondia"  o  patrão,  o  soldado amarelo  e  a cachorra  Baleia.  Os  pés  calosos,  duros  como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não  caminhariam?  
     Sinha Vitória  achou que  sim.  Fabiano agradeceu a opinião dela e gabou-lhe as pernas grossas, as nádegas volumosas, os peitos cheios. As bochechas de Sinha Vitória avermelharam-se  e  Fabiano  repetiu  com  entusiasmo  o elogio. Era. Estava boa, estava taluda, poderia andar muito. Sinha Vitória riu e baixou os olhos. Não era tanto como ele dizia  não.  Dentro  de  pouco  tempo  estaria  magra,  de  seios bambos.        Mas  recuperaria  carnes.  
    E talvez  esse  lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinha Vitória combateu a dúvida. Porque não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira ? Fabiano franziu a testa: lá vinham os despropósitos. Sinha Vitória insistiu e dominou- o. Porque haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos?      Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como  bichos? Fabiano respondeu que não podiam.    
- O mundo é grande.  Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande - e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam osmeninos, que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu Sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas Sinha Vitória renovou a pergunta - e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem. - Vaquejar, opinou Fabiano.    Sinha Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora  os  livrasse  de  semelhante  desgraça.  Vaquejar,  que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde  havia  montes  baixos,  cascalhos,  rios secos,  espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles   eram   bois   para   morrer   tristes   por   falta de espinhos?  Fixar-se-iam  muito longe,  adotariam costumes diferentes. Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os músculos,  e  o  saco  da  comida escorregou-lhe  no  ombro. Aprumou-se, deu um puxão à carga. A conversa de Sinha Vitória 
servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De repente veio a fraqueza. Devia ser fome.                 Fabiano ergueu a cabeça, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do chapéu de couro.    Meio-dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados, procurou descobrir na planície. uma sombra ou sinal de água. Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco de novo e, para conservá-lo em equilíbrio, andou pendido, um ombro alto, outro baixo. O otimismo de Sinha Vitória já não lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a fantasias. Coitada. Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do baú  e da cabaça enterrando-lhe o pescoço no corpo.          
    Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava, misturando-se a poeira que enchia as rugas fundas, embebendo- se na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago sossegara.     Quando  partissem,  a  cabaça  não  envergaria  o espinhaço  de  Sinha  Vitória.  Instintivamente  procurou  no descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o. Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia  ter frio com semelhante calor?             
    Ficou um instante assim besta, olhando  os  filhos, a  mulher  e  a  bagagem  pesada.  O  menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se da  cachorra  Baleia,  outro  arrepio  correu-lhe  a  espinha,  o riso besta esmoreceu.  Se  achassem  água  ali  por  perto,  beberiam muito,  sairiam cheios,  arrastando  os  pés.  Fabiano comunicou  isto  a  Sinha Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou  o  que  havia  perguntado.  Então  ele não  conhecia aquelas  paragens?  Estava  a  falar variedades?  Se a mulher tivesse  concordado,  Fabiano  arrefeceria,  pois  lhe  faltava convicção;   como Sinha Vitória tinha  dúvidas, Fabiano exaltava-se, procurava   incutir-lhe   coragem. Inventava   o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo. E  Sinha  Vitória  excitava-se, transmitia-lhe  esperanças. Andavam  por  lugares        conhecidos.  Qual  era  o  emprego  de Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados havia  outro  mundo,  um  mundo  temeroso; mas  para  cá,  na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.    
     Os  meninos  deitaram-se e pegaram  no  sono. Sinha  Vitória pediu o binga ao companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano preparou um cigarro.  Por  enquanto  estavam  sossegados.  O bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a cochichar projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se. 
Fabiano insistiu nos seus conhecimentos topográficos, falou no cavalo de fábrica. Ia morrer na certa, um animal tão bom. Se tivesse vindo com eles, transportaria a bagagem.                    
    Algum tempo comeria folhas secas, mas além dos montes encontraria alimento  verde.  Infelizmente  pertencia ao fazendeiro -  e definhava, sem ter quem lhe desse a ração. Ia morrer o amigo, lazarento  e  com  esparavões,  num  canto de  cerca,  vendo  os urubus chegarem banzeiros, saltando, os bicos ameaçando-lhe os olhos. A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os bicos  pontudos  os  olhos  de  criaturas  vivas, horrorizou Fabiano. Se elas tivessem paciência, comeriam tranqüilamente a carniça. Não tinham paciência aquelas pestes vorazes que voavam lá em cima, fazendo curvas.    - Pestes. Voavam sempre, não se podia saber donde vinha tanto urubu. - Pestes. Olhou as  sombras movediças que enchiam a campina.         Talvez estivessem fazendo círculos em redor do pobre cavalo esmorecido  num  canto de cerca.  Os olhos  de  Fabiano  se umedeceram.   Coitado do cavalo. Estava magro, pelado, faminto e arredondava uns olhos que pareciam de gente                       
- Pestes. O que indignava  Fabiano era  o costume  que os  miseráveis tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se podiam  defender.      Ergueu-se,  assustado,  como  se  os  bichos tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo, de Sinha Vitória e dos meninos. Sinha Vitória percebeu-lhe a inquietação na cara torturada e levantou-se também, acordou os. filhos, arrumou os picuás. Fabiano  retomou  o  carrego.  Sinha  Vitória  desatou-lhe a correia  presa  ao  cinturão, tirou  a  cuia  e emborcou-a  na cabeça do menino mais velho, sobre uma rodilha de molambos. Em cima pôs uma trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu, esqueceu  os  urubus  e  o  cavalo. Sim  senhor. Que mulher! Assim ele ficaria com a carga aliviada e o pequeno teria um guarda-sol. O  peso  da  cuia  era  uma insignificância,  mas Fabiano achou-se leve,   pisou   rijo   e   encaminhou-se ao bebedouro.           Chegariam  lá  antes da  noite, beberiam, descansariam, continuariam a viagem com o luar. Tudo isso era duvidoso, mas adquiria consistência. E a conversa recomeçou, enquanto o sol descambava.    
- Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano desafiando o céu, os espinhos e os urubus.    
- Não  é? murmurou  Sinha  Vitória  sem  perguntar,  apenas confirmando o que ele dizia. 
   Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano,  criado  solto  no  mato. Cultivariam  um  pedaço  de terra. Mudarse-iam  depois  para  uma  cidade,  e  os  meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitória esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos agarradas  a  boca  do  saco  e  à coronha  da  espingarda  de pederneira.    
    Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o caminho. As palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam  uma terra desconhecida.  Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinha Vitória, as palavras que Sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se  como  uns  cachorros,  inúteis, acabando-se  como  Baleia. Que iriam  fazer?     Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para  a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.