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Menino de Engenho 
José Lins do Rego

EU TINHA uns quatro anos no dia em que minha mãe 
morreu. Dormia no meu quarto, quando pela manhã acordei com 
um enorme barulho na casa toda. Eram gritos e gente correndo 
para todos os cantos. O quarto de dormir de meu pai estava cheio 
de pessoas que eu não conhecia. Corri para lá e vi minha mãe 
estendida no chão e meu pai caído em cima dela como um louco. 
A gente toda que estava ali olhava para o quadro como se 
estivesse a assistir a um espetáculo. Vi então que minha mãe 
estava toda banhada em sangue, e corri para beijá-la, quando me 
pegaram pelo braço com força. Chorei, fiz o possível para livrar-
me. Mas não me deixaram fazer nada. Um homem que chegou 
com uns soldados mandou então que todos saíssem, que só podia 
ficar ali a Polícia e mais ninguém. 

Levaram-me para o fundo da casa, onde os comentários 
sobre o fato eram os mais variados. O criado, pálido, contava que 
ainda dormia quando ouvira uns tiros no primeiro andar. E, 
correndo para cima, vira o meu pai ainda com o revólver na mão e 
a minha mãe ensangüentada. “O doutor matou a Dona Clarisse! 
Porquê?” Ninguém sabia compreender. 

O que eu sentia era uma vontade desesperada de ir para 
junto de meus pais, de abraçar e beijar minha mãe. Mas a porta 
do quarto estava fechada, e o homem sério que entrara não 
permitia que ninguém se aproximasse dali. O criado e a ama, 
diziam, estavam lá dentro em interrogatório. O que se passou 
depois não me ficou bem na memória. 

À tarde o criado leu para a gente da cozinha os jornais com 
os retratos grandes de minha mãe e de meu pai. Ouvi como se 
aquilo fosse uma história de Trancoso. Pareciam-me tão longe, já, 
os fatos da manhã, que aquela narrativa me interessava como se 
não fossem os meus pais os protagonistas. Mas logo que vi na 
página de um dos jornais a minha mãe, estendida, com os 
cabelos soltos e a boca aberta, caí num choro convulso. Levaram-
me então para a praça que ficava perto de minha casa. Lá 
estavam outros meninos do meu tamanho e eu brinquei com eles 
a tarde toda. As criadas é que conversavam muito sobre o meu 
pai e a minha mãe, contando umas às outras coisas a que eu não 
prestava atenção, pois no que eu cuidava era nos meus 
brinquedos com os amigos. 

Na hora de dormir foi que senti de verdade a ausência da 
mãe. A casa vazia e o quarto dela fechado. Um soldado tomando 
conta de tudo. As criadas da vizinhança queriam vir conversar 
por ali. O soldado não consentia. Deitaram-me a dormir, sozinho. 
E o sono demorou a chegar. Fechava os olhos, mas faltava-me 
qualquer coisa. Pela minha cabeça passavam, às pressas e 
truncados, os sucessos do dia. Então começava a chorar baixinho 
para o travesseiro, um choro abafado, de quem tivesse medo de 
chorar. 

AINDA ME LEMBRO de meu pai. Era um homem alto e 
bonito, com uns olhos grandes e um bigode preto. Sempre que 
estava comigo, era a beijar-me, a contar-me histórias, a fazer-me 
as vontades. Tudo dele era para mim. Eu mexia nos seus livros, 
sujava as suas roupas, e meu pai não se importava. Às vezes, 
porém, ele entrava em casa calado. Sentava-se numa cadeira ou 
passeava pelo corredor com as mãos atrás das costas, e discutia 
muito com minha mãe. Gritava, dizia tanta coisa, ficava com uma 
cara de raiva que me fazia medo. E minha mãe ia para o quarto 
aos soluços. Eu não sabia compreender o porquê de toda aquela 
discussão. Sei que, daí a pouco, lá estava ele com a minha mãe 
aos beijos. E o resto da noite, até me ir deitar, era só com ela que 
ele estava, com os olhos vermelhos de ter chorado também. 

Eu amava-o, porque o que eu queria fazer ele o consentia, e 
brincava comigo no chão como um menino da minha idade. 
Depois é que vim a saber muita coisa a seu respeito: que era um 
temperamento de excitado, um nervoso, para quem a vida só 
tivera o seu lado amargo. A sua história, que mais tarde conheci, 
era a de um homem arrebatado pelas paixões, a de um coração 
sensível demais às suas mágoas. Coitado de meu pai! Parece que 
o vejo quando saiu de casa com os soldados, no dia do seu crime. 
Que ar de desespero ele levava no rosto de moço! E o abraço 
doloroso que me deu nessa ocasião! Vim a compreender, por 
aquele tempo, por que razão se deixara levar ao desespero. O 
amor que tinha pela esposa era o amor de um louco. O seu lugar 
não era no presídio para onde o levaram. O meu pobre pai, dez 
anos depois, morria na casa de saúde, liquidado por paralisia 
geral. 

Todos os retratos que tenho de minha mãe não me dão 
nunca a verdadeira fisionomia que eu guardo dela — a doce 
fisionomia daquele rosto, daquela melancólica beleza do seu 
olhar. Ela passava o dia inteiro comigo. Era pequena e tinha os 
cabelos pretos. Junto dela eu não sentia necessidade dos meus 
brinquedos. Dona Clarisse, como lhe chamavam os criados, 
parecia mesmo uma figura de estampa. Falava para todos com 
um tom de voz de quem pedisse um favor, mansa e terna como 
uma menina de internato. Criara-se num colégio de freiras, sem 
mãe, pois o pai ficara viúvo quando ela ainda não falava. Filha de 
senhor de engenho, parecia mais, pelo que me contavam dos seus 
modos, uma dama nascida para a reclusão. 

À noite ela fazia-me dormir. Adormecer nos seus braços, 
ouvindo a surdina daquela voz, era o meu requinte de sibarita 
pequeno. 

Ela enchia-me de carícias. E quando o meu pai chegava, nas 
suas crises, exasperado como um pé-de-vento, eu via-a chorar e 
pronta a esquecer todas as intemperanças verbais do seu marido. 
Os criados amavam-na. Ela também os tratava com uma bondade 
que não conhecia mau humor. 

Horas inteiras eu fico a pintar o retrato dessa mãe angélica, 
com as cores que tiro da imaginação, e vejo-a assim, ainda 
tomando conta de mim, dando-me banhos e vestindo-me. A 
minha memória ainda guarda detalhes bem vivos que o tempo 
não conseguiu destruir. 

O seu destino fora cruel: morrer como morreu, vítima de 
excesso de cólera do homem que tanto amara; e depois, cheia de 
pudor e de recato, a encher as folhas de sensação, com o seu 
retrato, com histórias mentirosas da sua vida íntima. 

A morte de minha mãe encheu-me a vida inteira de uma 
melancolia desesperada. Porque teria sido com ela tão injusto o 
destino, injusto com uma criatura em que tudo era tão puro? 

Esta força arbitrária do destino ia fazer de mim um menino meio 
céptico, meio atormentado de visões ruins. 

TRÊS DIAS depois da tragédia levaram-me para o engenho 
de meu avô materno. Eu ia ficar ali a morar com ele. Um mundo 
novo se abria para mim. Lembro-me da viagem de comboio e de 
uns homens que iam conosco no mesmo carro. O tio Juca, que 
fora buscar-me, contava a história, afirmando que o meu pai 
estava doido. Todos olhavam para mim com um grande pesar. 

— Eu avalio como deve estar o coronel Cazuza — dizia um 
deles. 
— Naquela idade, a sofrer destas coisas! 
Compreendi que falavam do meu avô. 
— Um homem de bem como ele e tão infeliz com a família! 
O meu tio Juca ficava calado. E a conversa mudava para o 
inverno que corria bem, para os partidos de cana. E, depois, para 
a política. 

O trem era para mim uma novidade. Eu ficava à janelinha 
do vagão a olhar os matos correndo, os postes do telégrafo, e os 
fios baixando e subindo. Quando chegava a uma estação, ainda 
mais se aguçava a minha curiosidade. Passavam meninos com 
roletes de cana e bolos de goma, e gente apressada a dar e a 
receber recados. E uma porção de pobres a receber esmolas. Uma 
mulher chegou-se para mim, e toda cheia de brandura: 

— Que menino bonitinho! Onde está a sua mãe, meu filho? 
Tive medo da velha. E a saudade de minha mãe fez-me 
chorar. A pobre afastou-se, espantada, dizendo para os outros 
que já tinha estranhado. O meu tio levou-me a beber qualquer 
coisa. E a viagem continuou a divertir-me como dantes. 

— Agora vamos saltar — disse-me ele. 
E na primeira parada deixamos o trem, com grande pena 
para mim. Na estação estava um pretinho com um cavalo, 
trazendo umas esporas, um chicote e um pano branco. Meu tio 
estendeu o pano branco na anca do animal, montou, e o pretinho 
atirou-me para a garupa. Era o meu primeiro treino de equitação. 

— O engenho fica ali perto. 
Eu ia reparando em tudo, achando tudo novo e bonito. A 
estação ficava perto de um açude coberto de uma camada 
espessa de verdura. Os matos estavam todos verdes e o caminho 
cheio de lama, e havia poças de água. Pela estrada estreita, por 
onde nós íamos, de vez em quando atravessava um boi. Meu tio 
dizia-me que tudo aquilo era do meu avô. E um pouco adiante, 
avistava-se uma casa branca e um bueiro grande. 

— É ali o engenho, mas nós temos que andar um bocado. 
A minha mãe falava-me sempre do engenho como de um 
recanto do céu. E uma negra que ela trouxera para criada sabia 
tantas histórias de lá, das moagens, dos banhos de rio, das frutas 
e dos brinquedos, que me acostumei a imaginar o engenho como 
qualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso. 

Quando cheguei, com o meu tio Juca, ao pátio da casa, o 
alpendre estava cheio de gente. Desapeamo, e uma mulher muito 
parecida com a minha mãe foi logo me abraçando e beijando. 
Sentado numa cadeira, perto de um banco, estava um velho a 
quem me levaram para receber a bênção. Era o meu avô. 

Uma porção de moleques olhavam-me admirados. E andei 
de mão em mão, olhado e examinado da cabeça aos pés. 

Levaram-me para a cozinha. As negras queriam ver o filho de 
Clarisse. Foi uma festa na casa. 

— Vai mostrar o menino à tia Galdina! 
E me conduziram para um quarto na dependência da casa-
grande. Era um quartinho escuro, com cheiro a coisa abafada. Lá 
dentro estava uma negra velha deitada. 

— Tia Galdina, olhe aqui o menino de Dona Clarisse. 
Chegou com o doutor Juca, de Recife. 
A velha chamou-me para junto da cama, olhou-me de 
pertinho como um míope que quisesse ler com atenção, e caiu 
num choro agoniado. 

— É a cara da mãe, meu Deus! 
Saí chorando do quarto da velha. A moça que se parecia com 
a minha mãe, e que era a sua irmã mais nova, levou-me para 
mudar de roupa. 

— Agora vou ser a sua mãe. Você vai gostar de mim. Vamos, 
não chore. Seja homem. 
E abraçou-me e beijou-me, com uma ternura que me fez 
lembrar os beijos e os abraços de minha mãe. Da minha maleta 
tirou um pijama e me vestiu, me penteou os cabelos assanhados. 

— Vá brincar com os moleques no copiá. 
Os moleques estavam me esperando, mas não se 
aproximavam de mim. Desconfiados, eles olhavam para o meu 
pijama, para os meus alamares, encantados, talvez, com a minha 
pompa. Porém, aos poucos, foram-se chegando, que pela tarde já 
estavam na intimidade. E fomos à horta para apanhar goiabas e 
jambos. O que chamavam de horta era um grande pomar. Muito 
da minha infância eu iria viver por ali, por debaixo daquelas 
laranjeiras e jaqueiras gordonas. 

O meu sono dessa noite foi curto. De manhã levaram-me 
para tomar leite ao pé da vaca. Era um leite de espuma, ainda 
morno da quentura materna. O meu avô andava vestido com um 
grande e grosso sobretudo de lã, falando com uns, dando ordens 
a outros. Uma névoa como fumaça cobria os matos que ficavam 
nos altos. Os moleques das minhas brincadeiras da tarde 
estavam todos ocupados, uns levando latas de leite, outros 
metidos com os pastoreadores no curral. Tudo aquilo para mim 
era uma delícia — o gado, o leite de espuma morna, o frio das 
cinco horas da manhã, a figura alta e solene de meu avô. 

Tio Juca levou-me a tomar banho no rio. Com uma toalha 
no braço e um copo grande na mão, chamou-me para o banho. 

— Você precisa ficar matuto. 
Descemos uma ladeira para o Paraíba, que corria num fino 
fio d’água pelo areal branco e extenso. 

— Vamos para o Poço das Pedras. 
Pouco mais adiante, debaixo de um marizeiro, de copa 
arrastando no chão, lá estava uma destas piscinas que o curso e 
a correnteza do rio cavava nas suas margens. E foi aí, com tio 
Juca, que bebeu, antes do seu banho, um copo cheio de remédio 
para o sangue, dormido no sereno, que entrei em relação íntima 
com o engenho de meu avô. A água fria do rio, àquela hora, 
deixou-me o corpo tremendo. Meu tio então começou a atirar-me 
para o fundo, ensinando-me a nadar. 

Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da 
pele. De fato, para mim, que me criara nos banhos de chuviscos, 
aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por uma 
vegetação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo. 

Na volta, o tio Juca veio dizemdo, rindo-se: 

— Agora você já está batizado. 
Quando chegamos a casa o café estava pronto. Na grande 
sala de jantar estendia-se uma mesa comprida, com muita gente 
sentada para a refeição. O meu avô ficava do lado direito e a 
minha tia Maria na cabeceira. Tudo o que era para se comer 
estava à vista: cuscuz, milho cozido, angu, macaxeira, requeijão. 
Não era, porém, somente a gente da família que ali se via. Outros 
homens, de aspecto humilde, ficavam na outra extremidade, 
comendo calados. Depois seriam eles os meus bons amigos. Eram 
os oficiais carpinas e pedreiros, que também se serviam como o 
senhor de engenho, nessa boa e humana camaradagem do 
repasto. 

EU TINHA SIDO criado num primeiro andar. Todo o meu 
conhecimento do campo fizera-o nuns passeios de bonde a Dois 
Irmãos. E era com olhos de deslumbrado que olhava então 
aqueles sítios, aquelas mangueiras e os meninos que via 
brincando por ali. As divergências de meu pai com meu avô 
nunca permitiram à minha mãe fazer uma temporada no 
engenho. Minha imaginação vivia assim a criar esse mundo 
maravilhoso que eu não conhecia. Sempre que perguntava a 
minha mãe porque não me levava para o engenho, ela se 
desculpava com o emprego de meu pai. Daí a impressão 
extraordinária que me iam causando os mais insignificantes 
aspectos de tudo o que estava vendo. 

Depois do café mandaram-me para o engenho, que ficava 
nos fins da moagem. Eram uns restos de cana que aproveitavam. 

— Quase que você não encontra o engenho safrejando — 
me disse o tio Juca. 
Ficava a fábrica bem perto da casa-grande. Um enorme 
edifício de telhado baixo, com quatro biqueiras e um bueiro 
branco, a boca cortada em diagonal. Não sei porque os meninos 
gostam tanto das máquinas. Minha atenção inteira foi para o 
mecanismo do engenho. Não reparei em mais nada. Voltei-me 
inteiro para a máquina, para as duas bolas giratórias do 
regulador. Depois comecei a ver os picadeiros atulhados de feixes 
de cana, o pessoal da casa das caldeiras. Tio Juca começou a me 
mostrar como se fazia o açúcar. Mestre Cândido com uma cuia de 
água de cal que ia deitando nas tachas e as achas a ferver, o 
cocho com o caldo frio e uma fumaça cheirosa a entrar pela boca 
da gente. 

— É aqui onde se cozinha o açúcar. Vamos agora para a 
casa de purgar. 
Dois homens levavam caçambas com mel batido para as 
formas estendidas em andaimes com furos. Ali mandava o 
purgador, um preto, com as mãos metidas na lama suja que 
cobria a boca das fôrmas. Meu tio explicava como aquele barro 
preto fazia o açúcar branco. E os tanques de mel-de-furo, com 
sapos ressequidos por cima de uma borra amarela, deixaram-me 
uma impressão de nojo. 

Andamos depois pela boca da fornalha, pela bagaceira 
coberta de um bagaço ainda úmido. Mas o que mais me 
interessava ali era o maquinismo, o movimento ronceiro da roda 
grande e a agitação febril das duas bolas do regulador. 

Quando vieram chamar-me para o almoço, ainda me 
encontraram encantado diante da roda preguiçosa, que mal se 
arrastava, e das duas bolas alvoroçadas, que não queriam parar. 

COM UNS DIAS MAIS eu já estava senhor da minha vida 
nova. Tinham chegado para passar um tempo no engenho uns 
meus primos, mais velhos do que eu: dois meninos e uma 
menina. Agora não era só com os moleques que me acharia. Meus 
dois primos, bem afoitos, sabiam nadar, montar a cavalo no osso, 
comiam tudo e nada lhes fazia mal. Com eles eu fui aos banhos 
proibidos, os do meio-dia, com a água do poço escaldando. E 
então nós ficávamos com a cabeça ao sol, enxugando os cabelos, 
para que ninguém percebesse as nossas violações. 

— Você está um negro — disse-me a tia Maria. — Chegou 
tão alvo, e nem parece gente branca. Isto faz mal. Os meninos da 
Emília já estão acostumados, você não. De manhã à noite de pés 
descalços, solto como um bicho. Seu avô ontem me falou nisto. 
Você é um menino bonzinho, não vá atrás destes moleques para 
toda parte. As febres andam por aí. O filho do seu Fausto, no 
Pilar, há mais de um mês que está na cama. Para a semana vou 
começar a lhe ensinar as letras. 
Mas os primos não paravam. De manhã íamos com os 
moleques lavar os cavalos, e aí passávamos horas inteiras dentro 
d’água. 


Galinha gorda, 
gorda é ela; 
vamos comê-la, 
vamos a ela. 

E sacudiam a pedra dentro do poço, mergulhando para 
pegá-la no fundo. Espanavam a água com os cangapés ruidosos, 
e saía sempre gente chorando, com enredos para casa. O dia todo 
passávamos assim, nessa agitação medonha. 

A MINHA TIA SINHAZINHA era uma velha de uns sessenta 
anos. Irmã de minha avó, ela morava há longo tempo com o seu 
cunhado. Casada com um dos homens mais ricos daqueles 
arredores, o Dr. Quincas, do Salgadinho, vivia separada do 
marido desde os começos do matrimônio. Era um temperamento 
esquisito e turbulento. Contava-se que um dia amanhecera num 
engenho de seu pai, amarrada num carro de boi, com uma carta 
do marido fazendo voltar ao sogro a sua filha. 

Era ela quem tomava conta da casa do meu avô, mas com 
um despotismo sem entranhas. Com ela estavam as chaves da 
despensa, e era ela quem mandava as negras no serviço 
doméstico. Em tudo isso, como um tirano, meu avô, que não se 
casara em segundas núpcias, tinha, no entanto, esta madrasta 
dentro de casa. 

Logo que a vi pela primeira vez, com aquele rosto enrugado e 
aquela voz áspera, senti que qualquer coisa de ruim se 
aproximava de mim. Esta velha seria o tormento da minha 
meninice. Minha tia Maria, um anjo junto daquele demônio, não 
tinha poderes para resistir às suas forças e aos seus caprichos. 
As pobres negras e os moleques sofriam dessa criatura uma 
servidão dura e cruel. Ela criava sempre uma negrinha, que 
dormia aos pés da sua cama, para judiar, para satisfazer os seus 
prazeres brutais. Vivia a resmungar, a encontrar defeitos, poeira 
nos móveis, furtos em coisas da despensa, para pretexto das suas 
pancadas nas crias da casa. 

As negras odiavam-na. Os meus primos fugiam dela como de 
um castigo. E quando saía para a casa de uma filha, na cidade, 
era como se um povo tivesse perdido o seu verdugo. Minha tia 
Maria assumia a direção da casa — e todos iam conhecer a 
mansidão e a paz de uma regência de fada. Depois que vim a 
saber a história de rainhas cruéis, as intrigas perversas das Ana 
Bolenas, acreditava em tudo, porque me lembrava da tia 
Sinhazinha. 

MAGRINHA E BRANCA, a prima Lili parecia mais de cera, de 
tão pálida. Tinha a minha idade e uns olhos azuis e uns cabelos 
louros até ao pescoço. Sempre recolhida e calada, nunca estava 
conosco nas brincadeiras. 

— Esta menina não se cria — diziam as negras. 
Na verdade, a prima Lili parecia mais um anjo do que gente. 
Qualquer coisa era motivo para um choro que não acabava mais. 
Comigo ela sempre se abria. Eu era-lhe menos agressivo que os 
irmãos. E juntos nós estávamos com a tia Maria, e nos cuidados e 
nos carinhos da nossa amiga nos encontrávamos de quando em 
vez. Lili não ia ao sol, vivia o dia todo calçada. Tudo lhe fazia mal: 

o chuvisco, o mormaço, o relento. E só vivia nos remédios. 

Não sei por que, fui criando a esta criaturinha uma amizade 
constante. Gostava de ficar com ela, na companhia das suas 
bonecas. E um preá-da-índia que me deram, eu lhe ofereci de 
presente. Também, era tão terna comigo! 

Um dia amanheceu vomitando preto e com febre. Entrei no 
quarto onde ela estava, mais branca ainda, e a encontrei muito 
triste, ainda mais magrinha. As suas bonecas andavam por cima 
da cama como se fossem as suas amigas em despedida. 

Os olhinhos azuis demoraram-se em mim, parecendo pedir-
me alguma coisa. Era talvez para que eu ficasse com ela mais 
tempo. Mas levaram-me do quarto. 

No outro dia, quando acordei, a minha priminha tinha 
morrido. Lembro-me do seu caixão branquinho, cheio de rosas, 
tia Maria chorando o dia inteiro. 

Ainda hoje, quando encontro enterros de crianças, é pela 
minha prima Lili que me chegam lágrimas aos olhos. 

COM A MORTE DE LILI, a tia Maria ficou toda em cuidados 
comigo. Proibiu-me a liberdade que eu andava gozando como um 
libertino. Passava o dia a ensinar-me as letras. Os meus primos, 
esses, ninguém podia com eles. 

Ficava horas a fio sentado na sala de costura, com a carta 
de á-bê-cê na mão, enquanto por fora de casa ouvia o rumor da 
vida que não me deixavam levar. Era para mim, esta prisão, um 
martírio bem difícil de vencer. Os meus ouvidos e os meus olhos 
só sabiam ouvir e ver o que andava pelo terreiro. E as letras não 
me entravam na cabeça. 


— Nunca vi um menino tão rude — dizia asperamente a 
velha Sinhazinha. 
A tia Maria, porém, não desanimava, continuando com 
afinco a martelar a minha desatenção. 
As conversas das costureiras começavam então a me 
prender. Elas trabalhavam mantendo uma palestra que não 
parava. Falavam sempre de outros engenhos, onde estiveram no 
mesmo serviço, contando das intimidades das famílias. 

— No Santarém ninguém come — dizia uma — , é 
Bacalhau no almoço e no jantar. 
A outra contava que o senhor do engenho de Poço Fundo 
tinha mais de vinte mulheres. Esta conversa me tomava 
inteiramente, e as letras, que a solicitude de minha tia procurava 
enfiar pela minha cabeça, não tinham jeito de vencer tal aversão. 
O que eu queria era a liberdade de meus primos, agora que as 
arribaçãs, com a seca do sertão, estavam a descendo em revoada 
para os bebedouros. 

Chamavam de arribaçãs a rolas sertanejas que desciam, 
batidas pela seca, para o litoral. Vinham em bando como uma 
nuvem, muito no alto, a espreitar um poço de água para a sede 
dos seus dias de travessia. E quando o avistavam, faziam a 
aterrissagem em magote, escurecendo a areia branca do rio. Nós 
ficávamos à espreita, de cacete na mão, para o massacre. E a 
sede das pobres rolas era tal que elas nem davam pelos nossos 
intuitos. Desatávamos às cacetadas, como se elas não tivessem 
asas para voar. A seca comera-lhes o instinto natural de defesa. 
Depois, no colégio, quando no Gênio do Cristianismo, eu lia uns 
versos falando dos pássaros da Bretanha, que fugiam do Inverno 
da sua pátria, vinha-me a saudade das pobres rolas sertanejas 
que trucidávamos. 

UMA TARDE, chegou um portador, num cavalo cansado de 
tanto correr, com um bilhete para o meu avô. Era um recado do 
coronel Anísio, de Cana Brava, prevenindo que António Silvino 
naquela noite estaria entre nós. A casa toda ficou debaixo de 
pavor. 

O nome do cangaceiro era o bastante para mudar o tom de 
uma conversa. Falava-se dele baixinho, em cochicho, como se o 
vento pudesse levar as palavras. 

Para os meninos, a presença de António Silvino era como se 
fosse a de um rei das nossas histórias, que nos marcasse uma 
visita. Um dos nossos brinquedos mais preferidos era até o de 
fingirmos de bando de cangaceiros, com espadas de pau e cacetes 
ao ombro, e o mais forte dos nossos fazendo de António Silvino. 

Naquela noite íamos tê-lo em carne e osso. Meu avô é que 
era o mesmo. Aquele seu ar de tranqüilidade poucas vezes eu via 
alterar-se. A velha Sinhazinha para dentro e para fora, nas suas 
ordens para o jantar, gritando para os negros e os moleques com 
a mesma arrogância incontentável. A tia Maria ficava no seu 
quarto a rezar. Tinha muito medo dessa gente que vivia no crime. 
Quando me viu a seu lado, abraçou-me, chorando. 

Não havia, porém, perigo de espécie alguma. António Silvino 
vinha ao engenho em visita de cortesia. Um ano antes ele estivera 
na vila de Pilar com outras intenções. Fora ali para receber o 
pagamento de uma nota falsa que o coronel Napoleão lhe 
passara. E não encontrando o velho, vingara-se nos seus bens 
com uma fúria de vendaval. Atirou para a rua tudo o que era da 
loja, e quando não teve mais nada para desperdiçar, jogou do 
sobrado abaixo uma barrica de dinheiro para o povo. Mas com 
meu avô o bandido não tinha rixa alguma. Naquela noite viria 
fazer a sua primeira visita. 

À noitinha chegava o bando à porta da casa-grande. Vinha 
António Silvino à frente, os seus doze homens a distância. Subiu 
a calçada como um chefe, apertou a mão do meu avô com um riso 
na boca. Levado para a sala de visitas, os cabras ficaram 
enfileirados na banda de fora, numa ordem de colegiais. Só ele 
tomava intimidade com os de casa. Ficávamos nós, os meninos, 
numa admiração, de olhos compridos para o nosso herói, para o 
seu punhal enorme, os seus dedos cheios de anéis de ouro e a 
medalha com pedras de brilhantes que trazia ao peito. O seu rifle 
pequeno, não o deixava, trazendo-o entre os joelhos. 

À hora do jantar foram todos para a mesa. Ele à cabeceira, e 
os cabras por ordem, todos calados, como se estivessem com 
medo. Só ele falava, contava histórias — o último cerco que os 
macacos lhe fizeram em Cachoeira de Cebola — , numa fala de 
tátaro, querendo fazer-se muito engraçado. 

Alta noite foi-se com o seu bando. Para mim tinha perdido 
um bocado do prestígio. Eu fazia-o outro, arrogante e impetuoso, 
e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura do herói. 

No outro dia o meu primo Silvino contou-nos que se tinha 
lembrado de dizer ao cangaceiro que a tia Sinhazinha não gostava 
dele. É que nos falavam sempre de uma velha que António Silvino 
fizera dançar nua, dando umbigadas num pé de caldeiros, por 
motivo semelhante. Se isto tivesse acontecido com a velha 
Sinhazinha, os moleques, as negras e os meninos do Santa-Rosa 
teriam dormido uma noite de grande. 

— VAMOS HOJE ao sítio do seu Lucino — disse-me a tia 
Maria. 
E de tarde saímos para esse passeio. Íamos a pé. Os 
meninos na frente a correr, e a tia Maria, uma negra e as duas 
costureiras atrás, conversando. Pela estrada encontrávamos de 
quando em vez gente a cavalo que vinha da feira de São Miguel. 
Traziam as cargas vazias, os caçuás  emborcados e o quilo de 
carne dependurado na cangalha. Também: mulheres a pé, de 
chinelas batendo no calcanhar e flor na cabeça. Os moleques 
informavam que eram as raparigas do Pilar que iam fazer a feira a 
São Miguel. Mas eu reparava que elas não traziam quilos de 
carne: vinham com as mãos vazias, a abanar. Essa gente toda 
conversava: os de cavalo com os que iam a pé. Mais adiante 
encontramos o negro Zé Passarinho bêbado, no seu costume de 
sempre. E um peso de carne, melado de terra, ao ombro, num 
cacete. Os moleques caíam em cima do pobre com pancadas, a 
que ele respondia descompondo. 

Pela estrada, toda sombreada de cajazeiras, recendia um 
cheiro ácido de cajá maduro. Nós íamos colhendo cabrinhas 
amarelas e arrebenta-bois vermelhos que não comíamos porque 
matavam as pessoas. 

Depois a cerca de arame abria-se num terreiro que dava 
para uma casa de telha, com parede de barro escuro. Um menino 
nu, que estava à porta, correu assombrado para dentro de casa. 
Umas mulheres apareceram. 


— São os meninos do engenho. 
Saíram para nos ver, quando avistaram a tia Maria na 
estrada. Foi uma festa de exclamações: 

— Entre, Maria Menina, entre. Como vão todos de lá? Como 
está gorda, benza-a Deus! 
E botaram tamboretes na porta, numa alegria saudável de 
quem estivesse em casa com uma princesa. Tia Maria conversava 
com elas sem altivez, perguntando pelos seus porcos, que elas 
criavam de meia, comendo umas goiabas que lhe foram buscar. 

— Maria Menina, cadê o menino de Dona Clarisse? 
Minha tia chamou-me, e elas fizeram-me todos os mimos, 
com aquelas mesmas exclamações: 

— É a cara da mãe! 
Foram me dando goiabas e limas-de-umbigo. 
Os primos já estavam no local a atirar pedras nas fruteiras. 
Atrás da casa ficava uma meia dúzia de laranjeiras e goiabeiras e 
um pé enorme de jenipapo. Num jirau, umas panelas velhas com 
craveiros brotando e bogaris pelas biqueiras florindo. E uns 
leirões de coentro cercados de faxina, porque as galinhas e os 
porcos criavam soltos, entrando por dentro de casa, como gente. 
Na cozinha, uma trempe de ferro com fogo aceso e um pote com 
água barrenta do rio, que bebiam. 

Dois meninos com medo correram para outra casa perto. 
Depois foram-se chegando para nós, desconfiados como cabritos, 
sujos e de barriga grande. Mas, quando o meu primo quis um 
jenipapo maduro, um deles trepou pela árvore numa ligeireza de 
macaco. 

A tia Maria ainda conversava no terreiro com as meninas de 
seu Lucino, como o povo chamava àquelas três velhas solteiras. 
Agora era de doenças que elas se queixavam, perguntando 
quando viria ao engenho o doutor, para receitar-lhes. A tia Maria 
prometia remédios, e contava a visita de António Silvino às 
velhas, que cortavam a conversa com um Pai-do-Céu e uma 
Nossa-Senhora de vez em quando. 

À tardinha voltamos para casa. 
A estrada escurecia com as sombras da noite. Ainda 
restavam pelas folhas das canas os últimos raios de sol do dia. E 
os moleques começavam a falar em mal-assombrados. Bem 
juntos de tia Maria, quietos e calados, com medo de almas do 
outro mundo, íamos fazendo o retorno da nossa viagem. 

A VELHA SINHAZINHA não gostava de ninguém. Tinha 
umas preferências temporárias por certas pessoas a quem 
passava a fazer gentilezas com presentes e generosidades. Isto 
somente para fazer raiva aos outros. Depois mudava. E vivia 
assim, de uns para outros, sem que ninguém gostasse dela e sem 
gostar direito de ninguém. De mim nunca se aproximou. E eu 
mesmo fugia, sempre que podia, da sua proximidade. Mas a 
propósito de nada, lá vinha com beliscões e cocorotes. Trancava 
na despensa as frutas, andava com a chave do guarda-comidas 
no cós da saia, para contrariar as nossas gulodices e fazer raiva à 
gente adulta da casa. A tia Maria roubava para nós os sapotis e 
as mangas que a velha deixava em montão apodrecer. 

O meu ódio por ela crescia dia a dia. Numa ocasião, quando 
eu jogava o pião na calçada, o brinquedo foi cair em cima do seu 
pé. A velha levantou-se como uma fúria direita a mim, e com o 
seu chinelo de couro encheu-me o corpo de palmadas terríveis. 
Bateu-me como se desse num cachorro, trincando os dentes de 
raiva. E se não fosse a tia Maria, que me acudiu, ela ter-me-ia 
despedaçado. Eu nunca tinha apanhado. Minha mãe, quando 
queria repreender-me por qualquer malfeito, punha-me de castigo 
em pé ou sentado num lugar. Esta surra fora a primeira da 
minha vida. Chorei como um desenganado a tarde inteira, mais 
de vergonha que pelas pancadas. Não houve agrado que me 
fizesse calar. E quando a negra Luísa, passando, me disse 
baixinho: "Ela só faz isto porque você não tem mãe", parece que a 
minha dor chegou ao extremo, porque foi quando chorei de 
verdade. 

Na hora da ceia não quis ir para a mesa. Ouvi então minha 
tia Maria dizer indignada: 

— Num menino daqueles não se bate! É tão sentido! 
E a velha Sinhazinha, replicando que era por isso que aos 
meninos da Emília ninguém podia aturar, porque não lhes davam 
criação: 

— Meninos só endireita com chinela! 
Fui dormir imaginando tudo o que era vingança contra o 
diabo da velha. Queria vê-la despedaçada entre dois cavalos como 
a madrasta da história de Trancoso. E cortada aos pedaços na 
serra do engenho. Aquela injustiça brutal despertava em meu 
coração puro de menino os impulsos mais cruéis de desforra. 

HÁ OITO DIAS que relampejava nas cabeceiras. Meu avô 
ficava de noite, por muito tempo, a espreitar o abrir rápido do 
relâmpago para os lados de cima. E quando se cansava de tanto 
esperar, botava os moleques para isto. 

Lá um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, 
quase rente ao horizonte, um abrir longínquo e espaçado de 
relâmpagos: era inverno na certa no alto sertão. As experiências 
confirmavam que com duas semanas de inverno o Paraíba 
apontaria na várzea com sua primeira cabeça-d’ água. O rio no 
verão ficava seco de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, 
pelo seu leito, formavam-se grandes poços, que venciam a 
estiagem. Nestes pequenos açudes pescava-se, lavavam-se os 
cavalos, tomava-se banho. Nas vazantes plantavam batata-doce e 
cavavam pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que 
vinha das caatingas, andando léguas, de pote à cabeça. O seu 
leito de areia branca cobria-se de salsas e junco verde-escuro, 
enquanto pelas margens os marizeiros davam uma sombra amiga 
nos meios-dias. Nas grandes secas o povo pobre vivia da água 
salobra e das vazantes do Paraíba. O gado vinha entreter a sua 
fome no capim ralo que crescia por ali. Com a notícia dos 
relâmpagos nas cabeceiras, entraram a arrancar as batatas e os 
jerimuns das vazantes. 

O povo gostava de ver o rio cheio, correndo água de barreira 
a barreira. Porque era uma alegria por toda a parte quando se 
falava da cheia que descia. E anunciavam a chegada, como se se 
tratasse de visita de gente viva: a cheia já passou na Guarita, vem 
em Itabaiana... 

A notícia corria de boca em boca. No engenho era no que se 
falava. A canoa já estava calafetada e pintada de novo. Nós todos 
dormíamos pensando na cabeça da cheia que não tardaria. Eu 
aguardava com uma ansiedade medonha essa cheia de que tanto 
se falava. No Recife, vira o Capibaribe nos seus dias de enchente, 
coberto de balsas, mas o Capibaribe vivia todos os dias a encher e 
a vazar com as marés. Por isto pensava tanto na cheia do 
Paraíba, como em coisa inédita para mim. 

Vieram dizer, ao engenho: 

— O chefe da estação de Pilar recebeu um aviso de que a 
cheia já vinha em Itabaiana. 
Não custava, portanto, a apontar entre nós. Diziam que o rio 
vinha de barreira a barreira. E uma tarde um moleque chegou às 
carreiras, gritando: 

— A cheia vem no engenho de seu Lula! 
Todos correram para a beira do rio — os moleques, os 
meninos, os trabalhadores do engenho, o meu avô. E começava-
se a ouvir a gritaria da gente que ficava pelas margens: 

— Olha a cheia! Olha a cheia! 
— Ainda vem longe — diziam uns. 
— Qual nada! Olha os urubus a voando por ali! 
De fato, dentro em pouco, um fio d’água apontava, numa 
ligeireza coleante e espantosa de cobra. Era a cabeça da cheia 
correndo. E quando passava por perto da gente, arrastando 
basculhos e garranchos, já a vista alcançava o leito do rio todo 
tomado d’água. 

— É muita água. O rio vai às margens. Vem com força de 
açude arrombado. 
O povo a gritar por todos os lados. E o barulho das águas 
que cresciam em ondas enchendo-nos os ouvidos. Num instante 
não se via nem um banco de areia descoberto. Tudo estava 
inundado. E as águas subiam pelas barreiras. Começavam então 
a descer grandes tábuas de espumas, árvores inteiras arrancadas 
pela raiz. 

— Lá vem um boi morto! Olha uma cangalha
E uma linha de madeira lavrada. 
— Aquilo é cumeeira de casa que a cheia deitou abaixo. 
Longe ouvia-se um gemido como um urro de boi. Estavam 
tocando o búzio para os que ficavam mais distantes. O rumor que 
as águas faziam nem deixava ouvir-se o que gritavam do outro 
lado do rio. As ribanceiras que a correnteza ruía por baixo 
arriavam com estrondo abafado de terra caída. 

Com a noite, um coro melancólico de não sei quantos sapos 
roncava sinistramente, como vozes que viessem do fundo da terra 
cavada pelos seus confins, pela verruma dos redemoinhos. 

Eu fiquei a pensar de onde viria tanta água barrenta, tanta 
espuma, tantos pedaços de pau. E custava a crer que uma 
chuvada no sertão desse para tanta coisa. 

Saímos da beira do rio quase à hora da ceia. Meu avô, à 
mesa, contava episódios da enchente de 75: 

— O rio subiu até à calçada da casa-grande. O velho Calisto, 
ao querer salvar um animal, foi arrastado pela corrente. Ele tinha 
perdido um escravo numa virada de canoa. A várzea ficou toda 
debaixo d’água, com mais de um metro de lama. 
Mas há muitos anos que o Paraíba não repetia a façanha. 

Fui dormir com a cabeça cheia de tanta novidade. E alta 
noite acordamos com o barulho que ia pela casa. Era que as 
águas que estavam crescendo cada vez mais. E se continuassem 
assim, de manhã estariam dentro da casa-grande. 

Fomos ver o rio. E pouco andamos, porque já estava a entrar 
pelas estrebarias. O marizeiro ficava em baixo; a corrente corria 
por cima dele. Era um mar d’água roncando. O meu avô, com 
aquele seu capote de lã, comandava o pessoal como um capitão 
de navio em tempestade. O perigo estava na casa de purgar, pois 
a safra de açúcar do ano encontrava-se nos grandes caixões de 
madeira e no tanques cheios de mel de furo. Não havia nada a 
fazer. Como evitar a invasão dos tanques? E mudar para onde 
aquela enormidade de açúcar? 

— É preciso mandar uma canoa para o povo da Ponte. Lá é 
mais baixo, deve haver precisão de socorro. 
E José Ludovina seguiu com a canoa pela várzea. Já estava 
tudo tomado pelas águas. Botávamos marcos de pau para ver se 
o rio baixava ou subia. Às três horas da manhã parara de encher. 
E se ouvia por toda aquela extensão de águas como que um 
gemido soturno. E de quando em vez um rumor de pancada das 
ribanceiras que caíam. 
Não sei porquê, eu tinha vontade de que o rio continuasse a 
encher, a entrar por toda a parte com as suas águas sujas. 
Queria ver os baús nadando dentro de casa. A minha tia Maria 
ficava com as negras no quarto do oratório a rezar. 

Quando acordei, de manhã, a várzea era um lago de água 
barrenta. Apenas, aqui e ali, uns pedaços verdes de canavial, 
como ilhas de verdura. O rio entrara pelos sangradouros das 
lagoas e deixava-nos cercados de um lado e de outro. Ia até os 
pés da caatinga. 

Meu avô, de pé, olhava de uma ponta da calçada as suas 
plantas de cana submersas, com a safra quase toda perdida. Mas 
não se lastimava, porque sabia que riqueza em limo lhe trouxera 
o rio para as suas terras. Ele mesmo dizia: 
— Gosto mais de perder com água do que com sol. 
Mais tarde os canoeiros chegaram contando os trabalhos da 
madrugada. Encontraram gente dentro de casa com água pelo 
peito. Mulheres chorando, sem esperança de mais nada. 
Passaram para o alto para mais de cem pessoas, e cacarecos, e 
criações. Tinha, porém, desaparecido o negro Salvador, quando 
procurava passar a nado pelo riacho da Ponte. Era preciso 
mandar comida para todo aquele povo desarvorado. Meu avô dava 
ordens para levarem uma barrica de bacalhau. 

— E o povo de Maravalha? — perguntava ele aos canoeiros. 
— Estão em São Miguel. Mas o capitão Joca ficou. O rio 
chegou ao batente da cozinha. Não se vê nem um pé de cana. É 
um mar de água daqui até lá. A canoa passou por cima do 
cerrado do engenho. 
Mas o rio, que vazara para mais de um metro, à noitinha 
começou a encher outra vez. Nós íamos sair de casa num carro de 
bois para a caatinga. Era preciso fazer uma volta de légua para 
chegar à estrada nova e alcançar uma bueira que atravessava a 
lagoa. Para os meninos tudo isto parecia uma festa. Saltávamos 
de contentes com as arrumações. E quando saímos no carro 
parecia que íamos fazer uma daquelas nossas visitas a outros 
engenhos. Pela estrada encontrávamos gente com notícia da cheia 
para as bandas do Pilar. "Na Rua da Palha não ficara uma casa 
de pé. A canoa virara, morrendo seis pessoas. A ponte de 
Itabaiana acabou-se". 

E isto ia aumentando mais o pavor da minha tia Maria. 
Conosco vinham as costureiras e umas quatro negras. Noutro 
carro, deitada, a vovó Galdina paralítica. A velha Sinhazinha não 
quisera vir: não ia abandonar o Cazuza sozinho. Os seus inimigos 
não podiam deixar de respeitar esta sua coragem. E naquela hora 
perdoávamos-lhe muito da sua ruindade. 

O carro chegou a casa do velho Amâncio às cinco horas da 
manhã. Todos estavam acordados. Pelo terreiro da casa viam-se 
os teréns dos refugiados, chegados ali primeiro do que nós. Eram, 
talvez, duas famílias, com os seus meninos, os seus porcos, suas 
panelas, as suas galinhas. Nós, os da casa-grande, estávamos ali 
reunidos no mesmo medo, com aquela pobre gente do eito. E com 
eles bebemos o mesmo café com açúcar em bruto e comemos a 
mesma batata doce do velho Amâncio. E almoçamos com eles a 
boa carne-do-ceará com farofa. 

À noite dormimos em cama de vara. A chuva pingava dentro 
de casa por não sei quantas goteiras. E o cheiro horrível dos 
chiqueiros de porcos pertinho da gente. Os outros retirantes 
ficaram na casa da farinha, pelo chão. Era tudo isto o que de 
melhor o pobre do velho Amâncio tinha para nos oferecer: esta 
sua desgraçada e fedorenta miséria de pária. 

Depois chegou do engenho o mantimento que tínhamos 
esquecido com a pressa. E a minha tia Maria distribuiu por 
aquela gente toda a carne-de-sol e o arroz que nos trouxeram. 
Eles pareciam felizes de qualquer forma, muito submissos e 
muito contentes com o seu destino. A cheia tinha-lhes comido os 
roçados de mandioca, levando o quase nada que tinham. Mas não 
levantavam os braços para imprecar, não se revoltavam. Eram 
uns cordeiros. 

— O que vale é a saúde e a proteção de Deus — diziam 
sempre. 
Mas, coitados, com que saúde e com que Deus estavam eles 
contando! 
No outro dia de manhã veio um portador nos chamar. O rio 
já estava no caixão. Botaram os bois no carro, e descemos para a 
várzea. Do alto podia-se avistar o grande lençol de águas 
barrentas que corria lá embaixo. E quando fomos chegando mais 
para perto, a várzea estendia-se aos nossos olhos, ainda coberta 
de água: é que os sangradouros naturais tinham-se obstruído 
com os depósitos de areias trazidas pela correnteza. Era preciso 
cavar com uma enxada para que as águas descessem outra vez 
para o rio. Nós, os meninos, queríamos encontrar os estragos da 
cheia. Parece que havia um certo prazer, uma vaidade nossa, em 
que também no engenho ela tivesse deixado sinais de destruição. 

Pelo caminho o homem que nos viera chamar contara como 
os canoeiros tinham encontrado o corpo do negro Salvador: 

— Zé Guedes viu uma coisa amarela a boiar. Pensou que 
fosse uma jaca. Meteu o remo: era a cabeça do negro coberta de 
lama, engalhada num pé de cabreira. Estava com três dias de 
afogado. E os urubus por cima, rodando. 
Vimos então o estado em que as águas deixaram os 
canaviais. Parecia que uma chuva pesada, de oca, caíra por ali; 
tudo parecia cor de barro vermelho. 

— O coronel este ano não faz duzentos pães de açúcar — 
dizia o carreiro. — Só ficou com cana para semente. 


E por onde as águas tinham passado, espelhava ao sol uma 
lama cor de moedas de ouro: o limo que ia fazer a fartura dos 
novos partidos. 

O meu avô esperava no terreiro. Quando chegamos, 
começou a interrogar-nos sobre tudo por que tínhamos passado. 

— A cheia destruiu mais que em setenta e cinco. O Joca 
perdeu a semente de cana. A linha férrea foi arrastada em mais 
de um quilômetro no Engenho Novo. No Espírito Santo caíram 
ruas de casas. Há muita Miséria. Muita fome no povo. O governo 
está a mandar mantimentos. 
Havia uma sombria tristeza na gente da casa-grande. Há 
três dias que ali não se dormia, comia-se às pressas, com o pavor 
da inundação. 

O engenho e a casa da farinha repletos de flagelados. Era a 
população das margens do rio, arrasada, morta de fome, se não 
fossem o bacalhau e a farinha seca da ‘fazenda’... Conversaram 
sobre os incidentes da enchente, achando graça até nas 
peripécias de salvamento. João de Umbelino mentia à vontade, 
contando pabulagens que ninguém assistira. Gente esfarrapada, 
com meninos amarelos e chorões, com mulheres de peitos 
murchos e homens que ninguém dava nada por eles — mas uma 
gente com quem se podia contar na certa para o trabalho mais 
duro e a dedicação mais canina. 

Saímos então para ver de perto o que o rio tinha feito. Na 
parede da estrebaria e nos paus do cercado ficara a marca das 
águas. A boca da fornalha parecia um açude; com mais um 
palmo a casa de purgar ter-se-ia ido embora. O cercado era um 
atoleiro por onde os bois iam deixando as marcas dos cascos. Por 
toda a parte um cheiro aborrecido de lama. Os galhos dos 
marizeiros, todos pendidos para um lado, como se tivessem sido 
torcidos por uma ventania. E garranchos e ramarias secas por 
cima deles. O engenho todo estava triste. Só os canoeiros alegres, 
passando a bom preço, de um lado para outro, os aguardenteiros 
que vinham do contrabando de cachaça de Pernambuco. E para 
nós era a única coisa a ver: a canoa cheia de ancoretas, e os 
cavalos puxados à corda, nadando, e a 
gritaria obscena do pessoal. O resto, tudo muito triste, e lama por 
toda a parte. 

 BOTARAM-ME PARA APRENDER as primeiras letras, em 
casa dum dr. Figueiredo, que viera da capital passar um tempo 
na vila do Pilar. Pela primeira vez eu ia ficar com gente estranha 
um dia inteiro. 

Fui ali recebido com os agrados e as condescendências que 
reservavam para o neto do prefeito da terra. Tinha o meu mestre 
uma mulher morena e bonita, que me beijava todas as vezes que 
eu chegava, que me fazia as vontades: chamava-se Judite. 
Gostava dela de forma diferente da que sentia pela minha tia 
Maria. Ela sempre que me ensinava as letras debruçava-se por 
cima de mim. E os seus abraços e os seus beijos eram os mais 
quentes que já tinha recebido. 

E o dr. Figueiredo não parava no lugar. Só ficava quieto a ler 
os jornais e os livros, que tinha muitos pela mesa. A mulher era 
quem me ensinava, quem tomava conta de mim. Uma vez a vi 
chorar, com os olhos vermelhos e o dr. Figueiredo sair 
de casa batendo a porta. E doutra, enquanto eu ficava sozinho na 
sala com a minha carta na mão, ouvi no interior da casa um 
ruído de pancadas e uns gritos de quem estivesse apanhando. 
Compreendi então que a minha bela Judite apanhava do marido. 
Tive mesmo o ímpeto de correr para a rua e chamar o povo para 
acudi-la. Mas fiquei quieto na cadeira, escutando-lhe os soluços 
abafados. Mais tarde ela chegou para me ensinar, e abraçou-me e 
beijou-me como nunca. Fiquei a pensar no que sofria a minha 
amiga, na convivência daquele homem magro e alto. E o meu 
coração sentiu-se cheio de uma afeição estranha pela sua 
mulher. Era tão terna para mim, me punha no colo para me 
agradar, para dizer que queria um bem de mãe. Eu 
sentia o seu sofrimento como se fosse o meu. 

Foi ali com ela, sentindo o cheiro dos seus cabelos pretos e a 
boa carícia das suas mãos morenas, que aprendi as letras do 
alfabeto. Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos 
porque ia ficar longe dos seus beijos e abraços. 

Depois mandaram-me para a aula dum outro professor, com 
outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime 
de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para 
eu beber água, e um tamborete de palhinha para “o neto do 
coronel Zé Paulino”. Os outros meninos sentavam-se em caixotes 
de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada em coro, 
com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenho nos 
ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas quando 
acertava mandavam que desse nos meus competidores. Eu 
sentia-me bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não 
me tinham raiva. Muitos deles eram de moradores do engenho. 

Parece que ainda os vejo, com seus bauzinhos de flandres, 
voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa a tiracolo, 
na garupa do cavalo branco que me levava e trazia da escola. 

O OUTRO MESTRE que eu tive foi o Zé Guedes, meu 
professor de muita coisa ruim. Levava-me e trazia-me da escola 
todos os dias. E na meia hora que estava com ele, de ida e volta, 
aprendi coisas mais fáceis de aprender que a tabuada e as letras. 
Contava-me tudo que era história de amor, sua e dos outros. 

— Ali mora a Zefa Cajá. 
E lá vinha com os detalhes, com as coisas erradas da vida 
desta mulher. Às vezes parava à porta, e era uma conversa 
comprida, cheia de ditos e de sem-vergonhices. 

— Olha o menino, Zé Guedes! Ô homem desbocado! 
Mas ele pouco se importava comigo,. Eu mesmo gostava de 
ouvir o bate-boca imundo. Pelo caminho o moleque continuava 
nas suas lições, falando de mulheres e de doenças do mundo. E, 
nome por nome, ele dava-os de todas as doenças: cavalo, mula, 
crista-de-galo. 

Às vezes, da estrada, pediam para comprar coisas na vila: 
carretéis de linha, papel de agulhas. Zé Guedes entregava as 
encomendas, puxando conversas compridas com as mulatinhas. 

— Aquela ali já foi passada. Quem manda nela é o doutor 
Juca. 
E eu ia sabendo que o meu tio Juca tinha mulatas em quem 
mandava. De uma feita desceu numa casa de palha, onde só 
morava uma negra. Ficou lá dentro uma porção de tempo. 
Quando saía, ouvi a mulher dizendo: 

— Não vá esquecer-se do corte de chita, seu xeixeiro! 
Eram assim as minhas lições de porcaria com aquele mestre 
que não se contentava com o lado teórico do seu magistério e 
também dava as suas lições de coisas. 

Nós tínhamos, porém, no curral pegado à casa-grande, uma 
aula pública de amor. O que Zé Guedes nos contava dele com as 
Zefas, os touros e as vacas nos faziam entrar pelo entendimento. 
Era ali um bom campo de demonstração. No cercado dos 
engenhos o menino inicia-se nestes mistérios do sexo, 
antecipando-se por muitos anos no amor. A reprodução da 
espécie ficava para nós um ato sem grandeza nenhuma. Víamos 
as vacas e as porcas nas dores do parto. E éramos quase os seus 
assistentes. Lembro-me de uma vaca malhada que morreu por 
uma malvadez do meu primo Silvino. Ele meteu-se a médico, e 
com uma imperícia infeliz matou a pobre novilha turina do meu 
avô. Ninguém soube no engenho deste crime cometido com a 
minha cumplicidade. 

Concorríamos também no amor com os touros e os pais-dechiqueiro. 
Tínhamos as nossas cabras e as nossas vacas para 
encontros de lubricidade. A promiscuidade selvagem do curral 
arrastava a nossa infância às experiências de prazeres que não 
tínhamos idade de gozar. Era apenas uma buliçosa curiosidade 
de menino, a mesma curiosidade que nos levava a ver o que havia 
por dentro dos brinquedos. 

Uma tarde o primo Silvino disse-me: 

— Hoje vamos fazer porcaria no curral. 

De fato, à boca da noite, quando o gado chegado da 
pastagem descansava, uns deitados e outros parados a olhar para 
o chão, eu vi o primo Silvino trepado na cerca, procurando pôr-se 
em cima de uma vaca mansinha. Nós todos ficávamos de longe, 
mudos e sôfregos, como se fôssemos cúmplices de um crime. 
— Sai daí, menino severgonho. Vou dizer ao coronel. 
MEU AVÔ levava-me sempre nas suas visitas de corregedor 
às terras do seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores, fazer 
uma visita de senhor aos seus campos. O velho José Paulino 
gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por 
canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber 
das precisões do seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir 
queixa; e implantar a ordem. Andávamos muito nessas suas 
visitas de patriarca. Ele parava de porta em porta, batendo com a 
tabica de cipó-pau nas janelas fechadas. Acudia sempre uma 
mulher com cara de necessidade: a pobre mulher que paria os 
seus muitos filhos em cama de vara e os criava até grandes com o 
leite de seus úberes de mochila. Elas respondiam pelos maridos: 

— Anda no roçado. 
— Está doente. 
— Foi para a rua comprar gás. 
Outras lastimavam-se de doenças em casa, os meninos de 
sezão e o pai entrevado em cima da cama. E quando o meu avô 
queria saber porque o Zé Ursulino não vinha para os seus dias no 
eito, elas arranjavam desculpas: 

— Levantou-se hoje do reumatismo. 
O meu avô então gritava: 

— Boto pra fora. Gente safada, com quatro dias de serviço 
adiantado e metidos no eito do Engenho Novo. Pensam que eu 
não sei? Toco fogo na casa. 
— É mentira, seu coronel, Zé Ursulino nem pode andar. 
Tomou até purga de batata. O povo foi contar mentiras pro 
senhor. Santa Luzia me cegue se estou inventando. 
E os meninos nus, de barriga tinindo como bodoque. E o 
mais pequeno, na lama, brincando com o barro sujo como se 
fosse com areia da praia. 

— Estamos a morrendo de fome. Deus quisera que Zé 
Ursulino estivesse com saúde. 
— Diga a ele que para a semana começa o corte da cana. 
E quase sempre mais adiante nós encontrávamos Zé 
Ursulino de cacete na mão e com a sua saúde bem rija. 

— Já disse à sua mulher que lhe boto pra fora. Não vai 
trabalhar na “fazenda” mas anda vadiando por aí. Não quero 
cabra safados no meu engenho. 
E era a mesma conversa. Que pra semana ia na certa. Que 
andava doente de novo, com dores pelo corpo todo. 

Doutras vezes batíamos a uma porta aonde não acudia 
ninguém. Mais adiante a família toda estava pegada na enxada. O 
homem, a mulher, os meninos. E vinha logo de chapéu na mão, 
pedir as suas ordens. Era um rendeiro que não tinha a obrigação 
dos três dias no eito. Pagava o foro ficava livre da servidão da 
bagaceira. O seu roçado de algodão e de fava garantia essa meia 
liberdade que gozava, Então meu avô perguntava pelo que se 
passava nos arredores, se alguém andava vendendo algodão por 
fora tirando lenha da mata para vender. 

— Que eu saiba, não, seu coronel. 
— Pois você vigie por aqui. E depois: 
— Cabra bom — me dizia. — Nunca me deu trabalho. 
E numa casa de palha uma mulher branca, como de 
madapolão, sem uma gota de sangue na cara, com um menino 
pequeno engatinhando no chão quente do terreiro e outro de 
peito, nos braços: era a mulher de Chico Baixinho. Tinha parido 
há oito dias, e o marido no mundo. 

— Ninguém sabe onde ele anda, seu coronel. Aquilo é um 
desgraçado. Me deixou em cima da cama com a barriga rachando, 
e danou-se. Só não morri à míngua porque o povo daqui 
socorreu. 
O meu avô dizia para ela ir buscar bacalhau no engenho. 
Noutra casa o povo todo estava caído de sezão. Tinham 
voltado da várzea de Goiana amarelos e inchados paludismo. 

— Mande o menino buscar quinino no engenho. Vocês saem 
daqui com saúde e voltam assim em petição de miséria. Vão outra 
vez pra Goiana. 
Eram assim as viagens do meu avô, quando ele saía a correr 
todas as suas grotas, revendo os pés de pau de seu engenho. 
Ninguém lhe tocava num capão de mato, que era mesmo que 
arrancar um pedaço de seu corpo. Podiam roubar as mandiocas 
que plantava pelas chãs, mas não lhe bulissem nas matas. Ele 
mesmo, quando queria fazer qualquer obra, mandava comprar 
madeira nos outros engenhos. Os seus paus-d"arco, as suas 
perobas, os seus corações-de-negro cresciam indiferentes ao 
machado e às serras. Uma vez, numa das nossas viagens, vi-o 
furioso como nunca. Entrávamos por uma picada na mata 
grande, e ouvimos um ruído de machado: 

— Quem lhe deu ordem para botar abaixo este pau-d"arco? 
— Foi o doutor Jucá — respondeu mais morto do que vivo o 
seu Firmino carpina. 
— Mas o senhor sabe que eu não quero que se meta 
machado por aqui, com os seiscentos mil diabos! 
E voltou para casa sem dar mais uma palavra, sem parar em 
parte alguma. 

NOS DIAS DE FESTA tiravam um pano que cobria o oratório 
preto de jacarandá e acendiam as velas dos castiçais. O quarto 
dos santos ficava aberto para todo mundo. Não havia capela no 
Santa Rosa como nos outros engenhos, talvez porque ficassem 
pertinho dali as duas matrizes do Pilar e de São Miguel. E mesmo 
o meu avô não era um devoto. A religião dele não conhecia a 
penitência esquecia alguns dos mandamentos da lei de Deus. Não 
ia às missas, não se confessava, mas em tudo que procurava 
fazer lá vinha um "se Deus quiser" ou "tenho fé em Nossa 
Senhora". A minha tia Maria cuidava de ensinar a mim e aos 
moleques as rezas que ainda hoje sei. O meu avô, nunca o vi 
rezando. Com ele, porém, contavam os padres das duas 
freguesias nas suas festas e nas necessidades. Ele, que morria 
pelas suas matas, mandara uma vez que os carpinas botassem 
abaixo a madeira que o padre Severino quisesse para as obras da 
igreja. 

Quando acendiam as velas do quarto dos santos, nós íamos 
olhar as estampas e as imagens. Havia um Menino Jesus que era 
o nosso encanto, um menino bonito com os olhos azuis da prima 
Lili e um sorriso bonzinho na boca. Trazia numa das mãos um 
longo bastão de ouro e na outra a bola do mundo. 
— Se aquela bola caísse, o mundo se acabava. 
Mas o nosso menino, vestido de manto azul estrelado, trazia 
por debaixo de suas vestes uma rolinha bicuda de criança. E nós 
levantávamos o manto de quando em vez, espantados que a gente 
do céu também precisasse daquelas coisas. 

— Os meninos estão bulindo no santuário. 
Vinham brigar com a gente. 
As estampas das paredes contavam histórias de mártires. 
Um são Sebastião atravessado de setas, com os seus milagres em 
redor do quadro. O anjo Gabriel com a espada no peito de um 
diabo de asas de morcego. São João com um carneirinho manso. 
São Severino fardado, estendido num caixão de defunto. Um 
santo comprido com uma caveira na mão. Os moleques então nos 
mostravam uma santa mulata com uma criança no braço, uma 
que tinha no rosto a marca de ferro em brasa. 

— Ela era uma escrava — contavam os moleques. — E a 
senhora queimou o rosto dela com um garfo quente. 
Eu pensava sempre na tia Sinhazinha quando os moleques 
falavam nesta senhora malvada. 
Mas o quarto dos santos vivia fechado. Não havia no 
engenho o gosto diário da oração. Talvez que o exemplo de meu 
avô, justo e bom como ele era, mas indiferente às práticas 
religiosas, arrastasse os seus a esses afrouxamentos de devoção. 
Pagava-se muita promessa, dava-se muito dinheiro para as festas 
de Nossa Senhora. Mas nunca vi ninguém do engenho numa 
mesa de comunhão, nem mesmo a tia Maria. O povo pobre do eito 
só se confessava na hora da morte, quando, à revelia deles, 
mandavam chamar o padre às carreiras. E no entanto não 
tiravam Nossa Senhora da boca e faziam novenas a propósito de 
tudo. 

A não ser a tia Maria, que me ensinava o padre-nosso, 
ninguém ali me falava de catecismo. A religião que eu tinha, 
vinha ainda das conversas com a minha mãe. Sabia que Deus 
fizera o mundo, que havia céu e inferno, e que a gente sofre na 
Terra por causa de uma maçã. Os moleques também não sabiam 
mais do que eu. Nas missas de festa que assistíamos na vila, 
pouco víamos o padre no altar. Andávamos pelos botequins no 
capilé, ou tirando a sorte de papeizinhos enrolados. 

Pela semana santa contavam-nos as malvadezas dos judeus 
com Nosso Senhor — da coroa de espinhos, da lançada no 
coração e do sangue que correu da ferida e abriu os olhos de um 
cego que ficara por baixo da cruz. Na sexta-feira santa só se 
comia uma vez no engenho. Vinha peixe fresco da cidade e 
parentes de outros engenhos: comia-se muito mais do que nos 
outros dias. As negras na cozinha falavam do martírio de Jesus 
com uma compaixão de dentro da alma, e diziam que se o padre 
na missa do sábado não achasse a aleluia, o mundo se acabaria 
de uma vez. Os moradores vinham então pedir o jejum, em 
bandos. Davam-lhes bacalhau e farinha. Eles saíam com a 
mulher e os filhos rotos, de sacos nas costas, como se estivessem 
fazendo um número de via-sacra. O dia todo era triste. O trem de 
ferro não corria na linha. 

Às vezes vinha ao engenho por este tempo uma velha Totonha, 
que sabia uma Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo em versos e 
nos deixava com os olhos molhados de, lágrimas com a sua 
narrativa dolorosa. 

A velha Sinhazinha dizia que semana santa boa era a do 
Itambé. O padre Júlio beijava os pés dos pobres, fazia procissão 
de encontro e um sermão de lágrimas que todo mundo chorava 
na igreja. As negras ficavam pela cozinha, sentadas, conversando 
em cochichos sobre o dia. Não se tomava banho de rio, para não 
se ficar nu na frente um do outro. Não se judiava com os animais. 
Não se chamava nome a ninguém. Um canário que eu tinha 
pegado me fizeram soltar. E as nossas conversas avançavam até 
em corrigenda à vontade de Deus. Nós achávamos que Jesus 
Cristo devia ter liquidado todos os judeus e tomado conta de 
Jerusalém. Não atinávamos com a grandeza do sacrifício. 
Queríamos a vitória material sobre os seus algozes. 

Abriam, por esse tempo, o quarto dos santos. O santuário 
coberto de preto e as estampas viradas todas para a parede. Os 
santos estavam com vergonha de olhar para o mundo. 
Era assim a religião do engenho onde me criei. 

O MEU AVÔ mandou botar o cabra no tronco. E nós fomos 
vê-lo, estendido no chão, com o pé metido no furo do suplício. 
Raramente eu tinha visto gente no tronco. Somente um negro 
ladrão de cavalos ficara ali até que chegassem os soldados da 
vila, que o levaram. Agora, porém, Chico Pereira estava lá, com os 
pés no buraco redondo. 

— É mentira daquela bicha severgonha. Ela botou pra cima 
de mim os estragos que os outros fez. Ela pode casar com o 
diabo, comigo não. O coronel me mata, mas eu não me amarro 
com aquela peste. Vou pra cadeia, crio bicho na peia, mas não 
vivo com a descarada daquela quenga. Eu não tapo buraco dos 
outros. 
O cabra, deitado de costas, com os pés presos no tronco, me 
impressionou com aquela sua fala de revoltado. Chico Pereira era 
cambiteiro, moleque chibante da bagaceira, cheio de ditos e 
nomes obscenos. Todo mundo acreditava que tivesse sido ele 
mesmo o autor do malfeito na mulata Maria Pia. A mãe da 
ofendida viera dar queixas ao meu avô, botando a coisa pra cima 
de Chico Pereira. E no tronco ele ficaria até se resolver a casar 
com a sua vítima. 

No outro dia voltei para junto do prisioneiro. As pernas 
presas já estavam inchadas, apertadas demais no buraco do 
tronco. Ele quando me viu me chamou: 

— Vá pedir a Maria Menina para me valer. Tia Maria me 
disse: 
— Se ele deve, deve pagar. 
Na hora do almoço eu mesmo fui levar ao preso o prato de 
comida. Estava com o corpo todo dormente. Aquela imobilidade 
de mais de 24 horas ia deixando entorpecida a circulação. 

— Morro aqui, e não caso. Aquela desgraçada me paga. O 
coronel pode me picar de facão. 
Fiquei ao lado de Chico Pereira, deixei os meus primos e os 
moleques. Não fui ao poço lavar os cavalos para ficar com ele, 
conversando, ouvindo as suas histórias, sentindo as suas 
angústias. Era uma injustiça o que estavam fazendo. Por que não 
seria mentira da mulata? Não havia ninguém no engenho que 
estivesse a favor do cabra. A moça tinha sido ofendida, e o 
moleque que pagasse o que devia. Chico Pereira só contava 
comigo. 

À tarde, estava o meu avô sentado na sua cadeira, perto da 
banca, no alpendre, quando chegaram Maria Pia e a mãe. Vinham 
todas duas chorando. A velha correu logo para a tia Maria, 
ajoelhando-se aos seus pés: 

— Proteja a minha filha, Maria Menina. 
O meu avô ordenou que acabasse com aquela latomia. E 
mandou buscar um livro que havia debaixo do santuário. 

— Você vai jurar em cima deste livro santo como contará a 
verdade de tudo. O cabra está no tronco. Ele nega, prefere morrer 
a casar. Vamos, bote a mão aqui em cima e diga o nome de quem 
lhe fez mal. 
Deu o livro vermelho com a cruz dourada na capa para a 
negra botar a mão em cima. A velha e a filha ficaram fora do 
mundo. Aquele livro santo não era para menos. E então a mãe de 
Maria Pia, como se estivesse com a faca nos peitos: 

— Menina, não bota a tua alma no inferno. 
O povo todo tinha chegado para perto da mulata. 
— Vamos — disse o meu avô, com aquela sua voz de mando. 
E a mulata com os olhos esbugalhados: 
— Juro que foi o doutor Jucá quem me fez mal. O meu avô 
não deu uma palavra. Só fez dizer: 
— Soltem o cabra. 

Corri para ver Chico Pereira, com a ânsia de encontrar o 
meu constituinte inocente. 

Ele não podia andar. Os pés inchados não tocavam no chão. 

— Estou com um formigueiro no corpo todo. Eu não dizia 
que a negra não prestava? O doutor Jucá agora vai ficar com 
mais esta nas costas. 
Na casa-grande só se falava baixinho no caso. Minha tia 
Maria não me deu uma palavra. Na hora da ceia meu avô pouco 
falou. Tio Jucá não viera para a mesa. Apenas no fim o velho José 
Paulino queixou-se: 

— Não sei pra que servem os estudos. A gente gasta um 
dinheirão, e eles voltam pra fazer besteiras desta ordem. 
A ESTRADA DE FERRO passava no outro lado do rio. Do 
engenho nós ouvíamos o trem apitar, e fazia-se de sua passagem 
uma espécie de relógio de todas as atividades: antes do trem das 
dez, depois do trem das duas. 

Costumávamos ir para a beira da linha ver de perto os trens 
de passageiros. E ficávamos de cima dos cortes olhando como se 
fossem uma coisa nunca vista os horários que vinham de Recife e 
voltavam da Paraíba. Mas nos proibiam esse espetáculo com 
medo das nossas traquinagens pelo leito da estrada. E tinha 
razão de ser tanta cautela: um dos lances mais agoniados da 
minha infância eu passei numa dessas esperas de trem. O meu 
primo Silvino combinara em fazer virar a máquina na rampa do 
Caboclo. Já de outra vez, com um pano vermelho que um 
moleque pregara num pau, um maquinista parara o horário das 
dez que meu primo queria era um desastre. E botou uma pedra 
bem na curva da rampa. Nós ficamos de espreita, esperando a 
hora. Quando vi o trem se aproximar como um bicho comprido 
que viesse para uma armadilha, deu-me uma agonia dentro de 
mim que eu não eu não soube 
explicar. Parecia que eu ia ver ali perto de mim pedaços de gente 
morta, cabeças rolando pelo chão, sangue correndo no meio de 
ferros desmantelados. E num ímpeto, com o trem que vinha 
roncando pertinho, corri para a pedra e com toda a minha força 
empurrei-a pra fora. Um instante mais ouvi o ruído da máquina 
que passava. Fiquei sozinho, ali no ermo da estrada de ferro. Os 
meus primos e os moleques tinham corrido. Meu coração batia 
apressado. Parecia que eu era o único culpado daquela desgraça 
que não acontecera. Comecei a chorar com medo do silêncio. 
Muito de longe o trem apitava. E banhado pelas lágrimas andei 
para casa. Nunca mais em minha vida o heroísmo me tentaria por 
essa forma. 

NA MATA DO ROLO estava aparecendo lobisomem. Na 
cozinha era no que se falava, num vulto daninho que pegava 
gente para beber sangue. Manuel Severino, quando voltava de 
uma novena, levara uma carreira do bicho. Ele mesmo contava: 

— Eu vi o vulto partir pra cima de mim, e larguei as pernas 
num carreirão de cavalo desembestado. Olhei pra trás, e só vi o 
mato bulindo com um pé-de-vento de arrancar raiz. 
As notícias do bicho misterioso chegavam com todos os 
detalhes. Uns afirmavam que José Cutia estava encantado outra 
vez. José Cutia era um comprador de ovos da Paraíba, um pobre 
homem que não tinha uma gota de sangue na cara. Andava 
sempre de noite, talvez para melhor fazer as suas caminhadas, 
sem sol. E por isto tinha-se na certa que era ele o lobisomem. 

— Ele quer corar com o sangue dos outros. 
E havia gente que até vira José Cutia por debaixo das 
ingazeiras virando bicho. As unhas cresciam como lâminas 
enormes, os pés ficavam como os de cabra, e os cabelos eram 
crinas de cavalo. Diziam que o homem grunhia como porco na 
faca, no momento de se encantar. Ele não queria, mas o seu 
corpo não podia viver sem sangue. E bancava lobisomem contra a 
vontade. 

O povo não tinha raiva dele; tinha pena até. Porque era certo 
que José Cutia era mandado de noite por uma força que não era 
dele. Mas nós, quando o víamos passar com as suas cestas de 
ovos, fugíamos da estrada com medo. Diziam também que ele 
comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de 
criança de peito. 

— Lá vem o papa-figo! — era assim que botavam a gente 
para correr de qualquer parte. 
E as histórias corriam como os fatos mais reais deste 
mundo. Agora era o encontro do padre Ramalho com o lobisomem 
na mata. O padre ia para dar a extrema-unção a um doente nos 
Caldeiros, quando viu uma coisa puxando pelo rabo do cavalo. 
Deu de rebenque, meteu as esporas, e nada. O cavalo parecia 
com os pés enterrados no chão. Olhou para trás, viu o bicho já 
querendo partir para cima dele. Tirou do bolso a caixinha com a 
hóstia consagrada, e apontou. Ouviu o baque de um corpo todo, e 
um gemido comprido de moribundo. O cavalo tomou as rédeas, 
disparando. No outro dia encontraram José Cutia desfalecido na 
estrada. 

E o lobisomem bebia sangue também dos animais, chupava 
os cavalos no pescoço. O poldro coringa do meu avô amanheceu 
um dia com um talho minando sangue. O lobisomem andara de 
noite pelas estrebarias. 

Eu acreditava em tudo isto, e muitas vezes fui dormir com o 
susto destes bichos infernais. Na minha sensibilidade ia 
crescendo este terror pelo desconhecido, pelas matas escuras, 
pelos homens amarelos que comiam fígado de menino. E até 
grande, rapaz de colégio, quando passava pelos sombrios 
recantos dos lobisomens, era assoviando ou cantando alto para 
afugentar o medo que ia por mim. Os zumbis também existiam no 
engenho. Os bois que morriam não se enterravam. Arrastava-se 
para o cemitério dos animais, à beira do rio, debaixo dos 
marizeiros, onde eles ficavam para o repasto dos urubus. De 
longe sentia-se o hálito podre da carniça, e a gente via os 
comensais disputando os pedaços de carne e as tripas do 
defunto. O zumbi, que era a alma dos animais, ficava por ali 
rondando. Não tinha o poder maligno dos lobisomens. Não bebia 
sangue nem dava surras como as caiporas. Encarnava-se em 
porcos e bois, que corriam pela frente da gente. E quando se 
procurava pegá-los, desapareciam por encanto. 

O velho Fausto, maquinista, uma vez, indo para o sítio da 
Paciência, se deparou com um porco-espinho roncando. Por onde 
ia, ia o porco, como um cachorro-de-fila. E ele, perdendo a calma, 
sacudiu o seu cacete de jucá, com toda a força, no lombo do 
barrão: foi num toco preto de pau que bateu. 


Eles me contavam estas histórias dando detalhe por detalhe, 
que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade é que para 
mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de 
carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais 
convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão perto da 
gente, ali na Mata do Rolo, com as suas unhas de espetos e os 
seus pés de cabra! Deus fizera o mundo somente. Era distante 
dos nossos medos, e nós não o víamos como a José Cutia com o 
seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com uma realidade tão 
da terra que era mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma 
idéia vaga de sua pessoa. Um homem bom, com um céu para os 
justos e um inferno para a gente ruim como a velha Sinhazinha, 
com caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isso depois que o 
sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente 
viva. Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e 
encontrá-lo. 

Punham-nos a dormir nos embalando com o bichocarrapatu. 
A cabra-cabriola, a caipora, encontravam na mata os 
caçadores solitários. A burra-de-padre andava tinindo as 
correntes de suas patas pelas porteiras distantes. Um mundo 
inteiro de duendes em carne e osso vivia para mim. E o que de 
Deus nos contavam era tudo muito no ar, muito do céu, muito do 
começo do mundo. É verdade que os sofrimentos de Jesus Cristo 
na semana santa nos tocavam profundamente. Mas Jesus Cristo 
era para nós diferente de Deus. Deus era um homem de barbas 
grandes, e Jesus era um rapaz. Deus nunca nascera, e Jesus 
tivera uma mãe, aprendera a ler, levava carão, fora menino como 
os outros. E nós não sabíamos compreender os mistérios da 
Santíssima Trindade. Só depois o catecismo viria destruir a 
minha crença absoluta nos bichos perigosos do engenho. Muita 
coisa deles, porém, ficou por dentro da minha formação de 
homem. 

A VELHA TOTONHA de quando em vez batia no engenho. E 
era um acontecimento para a meninada. Ela vivia de contar 
histórias de Trancoso. Pequenina e toda engelhada, tão leve que 
uma ventania poderia carregá-la, andava léguas e léguas a pé, de 
engenho a engenho, como uma edição viva das Mil e uma noites. 
Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um 
jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem 
nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às 
palavras. 

As suas histórias para mim valiam tudo. Ela também sabia 
escolher o seu auditório. Não gostava de contar para o primo 
Silvino, porque ele se punha a tagarelar no meio das narrativas. 
Eu ficava calado, quieto, diante dela. Para este seu ouvinte a 
velha Totonha não conhecia cansaço. Repetia, contava mais uma, 
entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato, 
sempre com aquele seu sorriso de avó de gravura dos livros de 
história. E as suas lendas eram suas, ninguém sabia contar como 
ela. Havia uma nota pessoal nas modulações de sua voz e uma 
expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus contos. 
O seu Pequeno Polegar era diferente. A sua avó que engordava os 
meninos para comer era mais cruel que a das histórias que 
outros contavam. 

A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar. 
Ela subia e descia ao sublime sem forçar as situações, como a 
coisa mais natural deste mundo. Tinha uma memória de prodígio. 
Recitava contos inteiros em versos, intercalando de vez em 
quando pedaços de prosa, como notas explicativas. Havia a 
história de um homem condenado à morte. Os sinos já dobravam 
para o desgraçado que caminhava para a forca. Era acusado por 
crime de morte. Todos os indícios estavam contra ele. E quando o 
cortejo passava pela porta da casa de sua mulher em lágrimas, 
um seu filho que mamava tirou a boca do peito, e começou a falar 
em versos, e descobriu tudo, salvando o pai que ia morrer 
inocente. Os versos que esse menino recitava, a velha Totonha 
declamava com uma expressão de dor de arrepiar. As lágrimas 
vinham-me aos olhos com aquele lamento fanhoso de menino de 
peito a cantar. 

Havia sempre rei e rainha, nos seus contos, e forca e 
adivinhações. E muito da vida, com as suas maldades e as suas 
grandezas, a gente encontrava naqueles heróis e naqueles 
intrigantes, que eram sempre castigados com mortes horríveis. O 
que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela 
punha nos seus descritivos. Quando ela queria pintar um reino 
era como se estivesse falando dum engenho fabuloso. Os rios e as 
florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam 
muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba-Azul era um 
senhor de engenho de Pernambuco. 

A história da madrasta que enterrara uma menina era a sua 
obra-prima. O pai saíra para uma viagem comprida, deixando a 
filha, que ele amava mais do que tudo, com a sua segunda 
mulher. Quando partiu, encheu a mulher de recomendações para 
que tivesse todos os cuidados com a filha. Era uma menina de 
cabelos louros, linda como uma princesa. A madrasta, porém, 
não queria bem a ela, com os ciúmes do amor de seu marido pela 
menina. Pegou então a judiar com a bichinha. Era ela quem ia de 
pote na cabeça buscar água no rio, quem tratava dos porcos, 
quem varria a casa. Nem tinha mais tempo de brincar com as 
suas bonecas. Parecia uma criada, com os cabelos maltratados e 
a roupa suja. Lá um dia a madrasta mandou que ela ficasse 
debaixo de um pé de figueira, com uma vara na mão espantando 
os sabiás das frutas. E a menina passava o dia inteiro tangendo 
os passarinhos com fome. As rolas-lavandeiras, aquelas que 
lavam a roupa de Nosso Senhor, vinham conversar com ela, 
contavam-lhe histórias do céu. Mas um dia ela se pôs a olhar 
para o mundo bonito, para o céu azul e a alegria toda do canto 
dos pássaros. Na sombra da figueira, com aquele mormaço do 
meio-dia, adormeceu sonhando com o pai que andava longe e 
com os brinquedos que traria. E os sabiás pinicaram os figos da 
figueira. Era o que a madrasta queria. Pegou a menina, deu-lhe 
uma surra de matar, e a enterrou, ainda viva, na beira do rio. De 
volta o pai chorou como um desgraçado, com a notícia da morte 
da filha. A madrasta contou que a menina adoecera desde que ele 
botara os pés fora de casa: 

— Não houve remédio para a pobrezinha. 
Uma manhã, porém, o capineiro do engenho saiu para 
cortar capim para os cavalos. Uma touceira bem verde crescia do 
meio do capinzal. Ele meteu a serra. Ouviu então de dentro da 
terra uma voz muito de longe. Pensou que fosse engano de suas 
ouças, e meteu outra vez a serra. Aí uma voz doída, como a de 
uma alma sofrendo, levantou-se numa cantiga: 

Capineiro de meu pai, 
não me corte os meus cabelos. 
Minha mãe me penteou, 
minha madrasta me enterrou, 
pelos figos da figueira 
que o passarinho picou. 


O capineiro assombrado correu para chamar o senhor de 
engenho. E voltaram com a enxada, e cavaram a terra. 

A menina estava verde como uma folha de mato. Os cabelos 
crescidos em touceiras de capim de planta. Os olhos cheios de 
terra. E as unhas das mãos pretas e enormes. O senhor de 
engenho chorou feito um doido, abraçando e beijando a filhinha. 

No engenho foi uma festa que durou muitos dias. Os negros 
trançaram coco duas semanas. Muitos escravos tiveram carta de 
alforria. E amarraram a madrasta nas pernas de dois poldros 
brabos. Os pedaços dela ficaram pela estrada, fedendo. 

Havia também umas viagens de Jesus Cristo com os 
apóstolos. Chegava Jesus para dormir num rancho com os seus 
companheiros. Os donos da casa eram pobres de fazer pena. Nem 
um pedaço de pão tinham para os hóspedes. Jesus mandou 
Pedro buscar o saco que ficara com os mantimentos. 

— Mestre, o saco está vazio. 
— Homem de pouca fé, vai ver o saco. 

São Pedro sabia que deixara o saco sem coisa nenhuma, 
mas foi. E encontrou duas cargas de farinha e de carne na porta. 

São Pedro nestas histórias era um homem que só acreditava 
no que via e estava sempre levando carão de Nosso Senhor. 

A velha Totonha sabia um poema a propósito do naufrágio 
do paquete Bahia nas costas de Pernambuco. Um náufrago 
contando o que vira do desastre: 

Oh que dia de juízo! 
Oh que dia de horror! 
Só as pedras não choravam, 
porque não sentiam dor... 
Ó mestres e contramestres, 
pilotos e capitão, 
vamos ver nosso Bahia 
se quer afundar ou não. 


Incidente por incidente eram narrados nestes versos: 
meninos agarrados com as mães em pranto; um choro agoniado 
de gente que vai morrer; a água entrando por dentro do navio; 
uma velha se salvando num garajau de galinhas; um homem rico 
chamado Pataca Lisa correndo para dentro do camarote para 
buscar um pacote de dinheiro e não voltando mais; foi ao fundo 
com a sua riqueza. Todo o poema era uma abundância de 
detalhes. E na voz plástica da velha, a tragédia parecia a dois 
passos de nós. Ficava arrepiado com esse canto soturno. Vinhame 
então um medo antecipado de embarcar em navios, pelo 
horror das cenas do naufrágio desse pobre Bahia. 


Depois sinhá Totonha saía para outros engenhos, e eu ficava 
esperando pelo dia em que ela voltasse, com as suas histórias 
sempre novas para mim. Porque ela possuía um pedaço do gênio 
que não envelhece. 

RESTAVA AINDA A SENZALA dos tempos do cativeiro. Uns 
vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu 
avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não 
deixaram a rua, como elas chamavam a senzala. E ali foram 
morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, 
Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes 
de comer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma 
alegria da escravidão. As duas filhas e netas iam-lhes sucedendo 
na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma 
passividade de bons animais domésticos. Na rua a meninada do 
engenho encontrava os seus amigos; os moleques, que eram os 
companheiros, e as negras que lhes deram os peitos para mamar; 
as boas servas nos braços de quem se criaram. Ali vivíamos 
misturados com eles, levando carão das negras mais velhas, 
iguais aos seus filhos moleques, na partilha de seus carinhos e de 
suas zangas. Nós não éramos seus irmãos-de-leite? Eu não tivera 
estes irmãos porque nascera na cidade, longe da salubridade 
daqueles úberes de boas turinas. Mas a mãe-de-leite de d. 
Clarisse, a tia Generosa, como a chamávamos, fazia as vezes de 
minha avó. Toda cheia de cuidados comigo, brigava com os outros 
por minha causa. Quando se reclamava tanta parcialidade a meu 
favor, ela só tinha uma resposta: 

— Coitadinho, não tem mãe. 

Nós mexíamos pela senzala, nos baús velhos das negras, 
nas locas que elas faziam pelas paredes de taipa, para os seus 
cofres, e onde elas guardavam os seus rosários, os seus ouros 
falsificados, os seus bentos milagrosos. 

Nas paredes de barro havia sempre santos dependurados, e 
num canto a cama de tábuas duras, onde há mais de um século 
faziam o seu coito e pariam os seus filhos. 

Não conheci marido de nenhuma, e no entanto viviam de 
barriga enorme, perpetuando a espécie sem previdência e sem 
medo. Os moleques dormiam nas redes fedorentas; o quarto todo 
cheirava horrivelmente a mictório. Via-se o chão úmido das 
urinas da noite. Mas era ali onde estávamos satisfeitos, como se 
ocupássemos aposentos de luxo. 

O interessante era que nós, os da casa-grande, andavamos 
atrás dos moleques. Eles nos dirigiam, mandavam mesmo em 
todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes, 
andavam a cavalo de todo jeito, matavam pássaros de bodoque, 
tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair 
para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que a 
gente; soltar papagaio, brincar de pião, jogar castanha. Só não 
sabiam ler. Mas isto, para nós, também não parecia grande coisa. 
Queríamos viver soltos, com o pé no chão e a cabeça no tempo, 
senhores da liberdade que os moleques gozavam a todas as 
horas. E eles às vezes abusavam deste poderio, da fascinação que 
exerciam. Pediam-nos para furtar coisas da casa-grande para 
eles: laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam conosco os 
seus bodoques e os seus piões pelos gêneros que roubávamos da 
despensa. E nos iniciavam nas conversas picantes sobre as coisas 
do sexo. Por eles comecei a entender o que os homens faziam com 
as mulheres, por onde nasciam os meninos. Eram uns ótimos 
repetidores de história natural. Andávamos juntos nas nossas 
libertinagens pelo cercado. Havia um quarto dos carros onde iam 
ficando os veículos velhos do engenho. Dali fazíamos uma espécie 
de lupanar para jardim de infância. A nossa doce inocência 
perdia-se assim nessas conversas bestas, no contato libidinoso 
com os moleques da bagaceira. As negras, porém, nos 
respeitavam. Não abriam a boca para imoralidade na frente da 
gente. Estavam elas nas suas palestras de intimidade de cada 
uma, e mal nos viam mudavam de assunto. E no entanto 
recebiam os seus homens no quarto com os filhos. O meu primo 
Silvino nos contou um dia o que vira no quarto da negra 
Francisca: 

— Zé Guedes numa cama de vara ringindo. 
E todo ano pariam o seu filho. Avelina tinha filho do Zé 
Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedro purgador. 
Herdavam das mães escravas esta fecundidade de boas 
parideiras. Eu vivia assim, no meio dessa gente, sabendo de tudo 
o que faziam, sabendo de seus homens, de suas brigas, de suas 
doenças. 
No quarto da negra Maria Gorda não se podia entrar. Nunca 
conseguíamos nos aproximar desta velha africana. Ela não sabia 
falar, articulava uma meia-língua, e na hora do almoço e do 
jantar saía da loca pendida em cima de uma vara para buscar a 
ração. Gritava com os moleques e as negras, com aqueles beiços 
caídos e os peitos moles dependurados. Era de Moçambique, e 
com mais de oitenta anos no Brasil, falava uma mistura da língua 
dela com não sei o quê. Esta velha fazia-me medo. As fadas 
perigosas dos contos da sinhá Totonha tinham muito dela. O seu 
quarto fedia como carniça. Na noite de São João era na sua porta 
somente que não acendiam fogueira. O diabo dançava com ela a 
noite inteira. Eu mesmo pensava que a negra tivesse qualquer 
coisa infernal, porque nela nada senti, nunca, de humano, de 
parecido com gente. Todos na rua temiam a Maria Gorda. À 
tardinha sentava-se num caixão à porta de casa, para fumar o 
seu cachimbo de canudo comprido; mas ficava sozinha, 
resmungando ninguém sabe o quê. 

A velha Galdina era outra coisa. Africana também, de 
Angola, andava de muletas, pois quebrara uma perna fazendo 
cabra-cega para brincar com os meninos. Fora ama de braço de 
meu avô, e todos nós a chamávamos de vovó. As negras queriam-
lhe um bem muito grande. A tia Galdina era para elas uma 
espécie de dona da rua. Não se falava com ela gritando, e davam-
lhe o tratamento de vossa mercê. Eu vivia em conversa com ela, 
atrás das suas histórias da costa da África. Viera de lá com dez 
anos. furtaram-na do pai. Um seu irmão a vendera aos 
compradores de negros, e marcaram-na no rosto a ferro em 
brasa. Contava a sua viagem de muitos dias: os negros 
amarrados e os meninos soltos; de dia botavam todos para tomar 
sol onde viam o céu e o mar. Já estava contente com aquela vida 
de navio. O veleiro corria como o vapor na linha. E um dia 
chegaram em terra. Ela passou muito tempo ainda para ser 
comprada. Os homens que vinham queriam mais gente grande e 
molecas taludas. 


A vovó contava que via almas, pássaros brancos batendo 
asas pelas paredes. Na viagem, estas almas, de noite, ficavam 
voando por cima dos negros amarrados. E nos ensinava uns 
restos de palavras que ela ainda sabia de sua língua. Na noite de 
Natal botavam os bois no carro para a velha Galdina ir ouvir 
missa no Pilar. E davam colchões velhos para a cama dela. Por 
qualquer coisa chorava como uma criança. Quando queriam 
pegar a gente para uma surra, era para junto dela que corríamos. 
Ela pedia pelos seus netos com os olhos cheios de lágrimas. 

A velha Generosa cozinhava para a casa-grande. Ninguém 
mexia num cacareco da cozinha a não ser ela. E viessem se meter 
nos seus serviços, que tomavam gritos, fosse mesmo gente da 
sala. Tinha não sei quantos filhos e netos. Negra alta e com 
braços de homem, tirava uma tacha de doce do fogo, sem pedir 
ajuda a ninguém. Só falava gritando, mas nós tínhamos tudo o 
que queríamos dela. A negra Generosa era boa como os seus 
doces e as suas canjicas. Era só pedir as coisas no seu ouvido, e 
ela nos dar, sem ligar importância às impertinências da velha 
Sinhazinha. 

— Quem quisesse mandar na cozinha que viesse para a 
boca do fogo. 
E quando iam reclamar qualquer coisa, saía-se com quatro 
pedras na mão: 

— Que se quisessem era assim. Tempos de cativeiro já tinham 
passado. 
Distribuía com os moleques do pastoreador as rações de 
carne-de-ceará e farinha seca. E o fazia aos gritos, chamando 
"severgonho" a todos eles. Não se importavam, porém, com esta 
raiva da velha Generosa. Os moleques sabiam que o coração dela 
era um torrão de açúcar. Pois dava remédios para as suas tosses 
e as suas feridas, e remendava-lhes os farrapos das roupas. 

A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. 
Ela continuava pegada à casa-grande, com as suas negras 
parindo, as boas amas-de-leite e os bons cabras do eito. 

DEPOIS DO JANTAR o meu avô sentava-se numa cadeira 
perto do grande banco de madeira do alpendre. O gado não havia 
chegado do pastoreador. Lia os telegramas do Diário de 
Pernambuco ou dava as suas audiências públicas aos moradores. 
Era gente que vinha pedir ou enredar. Chegavam sempre de 
chapéu na mão com um "Deus guarde a Vossa Senhoria". 
Queriam terras para botar roçados, lugar para fazer casas, 
remédio para os meninos, carta para deixar gente no hospital. 
Alguns vinham fazer queixa dos vizinhos. 

— Não podiam ter um pau de roça, com os animais do outro 
destruindo. Os porcos andavam fossando os leirões de batatas e 
os filhos chupando as caninhas verdes. Não tinham mais 
paciência, vinham se queixar porque não queriam fazer uma 
desgraça. 
— Vou mandar chamar aqui o Chico Carpina. Quero saber 
como isto é mesmo. 
E ficavam pela banca conversando com as negras, contando 
dos seus aperreios à tia Maria, chamando-a para madrinha de 
mais um filho. 

Outros vinham a chamado do meu avô. Porém tudo o que 
diziam dele era mentira. Nunca vendera um quilo de algodão na 
balança do Pilar. Nem eslava criando animais de outros engenhos 
nos pastos da fazenda. Se fosse verdade podia tocar fogo nos seus 
troços e botar o gado dentro do seu roçado. 

O meu avô chamava-os de ladrões, de velhacos e nem 
mostravam cara de aborrecidos. Parecia que aquelas palavras 
feias na boca do velho José Paulino não quisessem dizer coisa 
nenhuma. Muitos vinham arranjar carros do engenho para fazer 
mudanças, e alguns dar conta de suas meações com o senhor ou 
pagar o foro do ano. A todos o meu avô ia dando uma resposta ou 
passando uma descompostura, mas cedendo sempre no que eles 
pediam. 

Uma vez chegou um homem de cara diferente. Estava ali 
para pedir a proteção do coronel. Tinha matado um sujeito no 
Oiteiro, e correra para se valer do meu avô. O velho quis saber do 
crime. Havia sido por questão de mulher. 

— Vá se entregar ao delegado. Eu não açoito criminoso. Se 
matou com razão vai para a rua. Aqui não quero que fique. No 
júri protejo. Entregue-se à Justiça. Conte a sua história ao juiz. 
No meu engenho nunca protegi criminoso. Quando a gente está 
de cima, muito bem. Caiu, lá vem a polícia cercando a 
propriedade. Não estou para isto. Outro dia o tenente Maurício 
entrou nas terras do Quincas do Jatobá para prender um 
criminoso, e surrou uns moradores que nada tinham com o fato. 
Pela estrada iam passando os matutos que voltavam das 
feiras. Nas terças, em Itabaiana, aos sábados, no Pilar. O meu 
avô chamava-os para saber quanto dera a cuia de farinha ou a 
arroba de algodão. Davam notícia de tudo — do preço dos gêneros 
e dos boatos que corriam: 

— Feijão verde de graça, de fazer lama. O coronel Nô Borges 
vai cair na política. A polícia está prendendo o povo do doutor 
Odilon. Os matutos não podem mais entrar de camisa por fora 
das calças nas ruas, nem estalar o chicote tangendo os animais. 
Tem descido muito gado magro do sertão. A carne-de-sol a dois e 
oito. O doutor Ribeirinho comprou duzentas reses para a solta. 
Feira ruim, a do Pilar. O povo anda com medo de Antônio Silvino. 
Mataram somente dois bois, e sobrou carne no açougue. 
E com pouco mais apontava o gado chegando do 
pastoreador. O meu avô levantava-se para ver de perto as vacas e 
os bois de carro de barriga cheia. Indagava aos moleques em que 
pasto estiveram. Mandava curar as bicheiras dos animais. Havia 
sempre um boi ladrão chegando fora de horas. 

— AMANHÃ vamos passar o dia no Oiteiro. Fui dormir assim 
com a viagem na cabeça. Estes passeios a outros engenhos de 
bem perto eu os fazia com alegria, de todo o coração. 
De manhã bem cedo já estávamos prontos, com o carro de 
boi na porta. Cobriam o carro com uma esteira de piripiri e 
forravam as tábuas de sua mesa com um colchão. Era a nossa 
carruagem ronceira, mas segura. O carreiro Miguel Targino, 
grande e agigantado como um são Cristóvão, capaz de tirar 
sozinho o seu carro de um valado, já estava de vara e macaca, 
esperando o povo para a viagem. Quando a família saía a passeio, 
chamava-se ele para carrear. Todos os seus irmãos eram mestres 
carreiros; Chico, João e Pedro Targino. Ele, porém, fazia os 
serviços da casa-grande. O gado na sua mão não apanhava, e ele 
não ficava sentado na mesa, deixando o carro ao deus-dará. 


Nunca dera uma virada. Punha-se de vara na mão chamando os 
bois de cambão para os atalhos, desviando as rodeiras das pedras 
da estrada: 

— Ei, Labareda! Ei, Medalha! 
E nós saíamos para a grande viagem, com a gente grande 
sentada e os meninos dependurados pela mesa do carro, pedindo 
de quando em vez a Miguel Targino a macaca para tanger os bois 
do coice. Chamavam-se Medalha e Javanês os do coice, grandes e 
largos para bem agüentarem o peso e sustentarem as manobras; 
Estrela e Labareda os do cambão, pequenos e de pescoços 
compridos, ágeis, os verdadeiros motores do carro. Para estes a 
vara de ferrão, e a macaca para os do coice. E eles todos 
atendiam à voz do carreiro. Quando o Miguel Targino fazia um "ô" 
descansado, os do coice enterravam os pés na areia, e ninguém 
arrastava o carro dali. E com um "ei, Labareda", de ordem, os do 
cambão espichavam o pescoço na canga, e lá ia o carro andando. 

Ainda tudo estava escuro com a madrugada. A névoa dos 
altos chegava até os cajueiros. Tudo parecia branco daquele lado, 
como grandes paióis de algodão. Pelo curral começavam a tirar o 
leite; ouvia-se o bate-boca dos moleques na manjedoura. Mas o 
carro já deixara o cercado do engenho, ganhava a estrada de São 
Miguel. Vinham cargueiros com sacos brancos de farinha e caçuás
 cheios de louças de barro para a feira do Pilar. O chicote 
deles estalava naquele silêncio bom da madrugada. Passava-se 
por casas de moradores ainda com as portas fechadas; os 
homens, nus da cintura para cima, já estavam olhando o tempo, 
enquanto os meninos e a mulher se encolhiam no pobre quente 
das camas de vara. Os bogaris das biqueiras cheiravam no ar frio. 

Galinhas empoleiradas em pés de pau, com preguiça de deixar o 
seu sobrado de galhos. Mais adiante o sol espelhava pelos 
partidos, esquentando a folha da cana ainda pingando de 
orvalho. As casas dos moradores abertas, de porta e janela, com a 
família inteira no terreiro tomando o seu banho de sol, de graça. 
Às vezes o carro parava para minha tia falar com as comadres, 
que vinham alegríssimas dar duas palavras com a senhora. E os 
meninos de camisa comprida tomando a bênção à madrinha. 

— Deus te abençoe. 
E eram mesmo abençoados por Deus, porque não morriam 
de fome e tinham o sol, a lua, o rio, a chuva e as estrelas para 
brinquedos que não se quebravam. 

Depois o carro saía — e a casa toda ficava nos olhando até 
dobrar na curva da estrada. Botavam sabão nos cocões, que 
começavam a chiar. Carro levando gente não cantava: rodava 
mundo pelos caminhos. Agora batia-se a porteira do Engenho 
Maravalha. A estrada passava roçando a casa-grande. 

— É carro do Santa Rosa. 
E corriam as primas para falar com a tia Maria. 
Deviam se apear. Tomar café. Chegariam no Oiteiro muito 
cedo. 

Perguntavam por tudo. E a tia Neném, magrinha, querendo 
saber de José Paulino e por que não viera a Sinhazinha. Falavam 
ao mesmo tempo. Mas tia Maria saltaria na volta. E o carro 
partiu, com promessas de que à noitinha ficaríamos em 
Maravalha para a ceia. 

O Oiteiro estava bem perto. Passávamos já pelo balde do 
açude, coberto de folhas de baronesa. E via-se o sobrado branco 


aparecendo com os pilares de seu alpendre. Os moleques abriam 
a porteira para o carro. O povo da casa corria para nos receber. 
Era uma festa da cozinha à sala de visitas. Levaram a tia Maria 
para mudar o vestido da viagem. Ofereciam roupas de casa para 
vestir, davam aos meninos fofas dos outros. As negras do Santa 
Rosa todas metidas no seu vestido de recepção, em conversas 
pela cozinha. 

Para nós o Oiteiro tinha muito que ver, O senhor de engenho 
de lá, um primo do meu avô, o coronel Lola, morrera deixando 
um palácio para os seus. Era a melhor casa de morada da ribeira 
do Paraíba. Tinha água encanada até na horta. E banheiro de 
torneira para os criados. O engenho bem tratado, com um 
sobradinho de varanda para se olhar o serviço. 

O dia que passávamos ali anoitecia depressa. Em cima do 
sobrado um corta-vento puxava água para os tanques da 
serventia. Para mim, aquele ruído do moinho, o batuque 
compassado dos canos, parecia uma música. 

Nós mexíamos por todos os canos, com a liberdade que a 
cerimônia dava às visitas. E os meus primos pequenos de lá 
abriam-se em gentilezas. Não ficava nada que não víssemos. 
Havia uma caixa de música, com uns cilindros cheios de 
espinhos, que me deslumbrava com o Trovador e o Carnaval de 
Veneza. O meu grande número de concerto era o Trovador. 
Aquela monotonia de canto de igreja tocava a minha precoce 
melancolia. Pensava sempre em minha mãe diante de qualquer 
coisa triste da vida. Esta lembrança vinha-me acompanhando em 
todos os caminhos da minha sensibilidade em formação. 


ERA UM MENINO TRISTE. Gostava de saltar com os meus 
primos e fazer tudo o que eles faziam. Metia-me com os moleques 
por toda parte. Mas, no fundo, era um menino triste. Às vezes 
dava para pensar comigo mesmo, e solitário andava por debaixo 
das árvores da horta, ouvindo sozinho a cantoria dos pássaros. 

O meu esporte favorito concorria para estes isolamentos de 
melancólico. Eu andava pegando pássaros no alçapão. E, 
escondido, passava horas inteiras na expectativa do sucesso. Via 
o canário chegar, pousar em cima da gaiola, trocar suas carícias 
com o prisioneiro, lastimar a sorte daquele pobre amigo, e depois 
subir para o alçapão armado, fitar o milho dentro da armadilha, 
demorar um bocado, na indecisão de quem vai dar um grande 
passo na vida, e cair na cadeia. Mas isto demorava horas a fio. 
Muitos chegavam, examinavam tudo, punham o bico quase que 
dentro do alçapão, e iam-se embora, bem senhores do que se 
preparava para eles. Enquanto os canários vinham e voltavam, eu 
me metia comigo mesmo, nos meus íntimos solilóquios de 
caçador. Pensava em tanta coisa... E um rastejar de calangro nas 
folhas secas fazia um ruído de coisa grande bulindo. 
Pensava então naquilo que junto de gente eu não podia 
pensar. Já estava no engenho há mais de quatro anos. Mudara 
muito desde que viera de Recife. 

— Para o ano — diziam — iria para o colégio. 
E o que seria esse colégio? Os meus primos contavam tanta 
coisa de lá, de um diretor medonho, de bancas, de castigos, de 
recreios, de exercícios militares, que me deixavam mesmo com 
vontade de ir com eles. Mas o engenho tinha tudo para mim. Tia 
Maria tomava conta de mim como se fosse mãe. E a lembrança de 
rainha mãe enchia os meus retiros de cinza. Por que morrera ela? 
E de meu pai, por que não me davam notícias? Quando 
perguntava por ele, afirmavam que estava doente no hospital. E o 
hospital ia ficando assim um lugar donde não se voltava mais. 
Via gente do engenho que ia para lá, com carta do meu avô, não 
retornar nunca. E as negras quando falavam do hospital 
mudavam a voz: "Foi para o hospital." Queriam dizer que foi 
morrer. 

Tinha um medo doentio da morte. Aquilo da gente apodrecer 
debaixo da terra, ser comido pelos tapurus, me parecia 
incompreensível. Todo mundo tinha que morrer. As negras diziam 
que alguns ficavam para semente. Eu me desejava entre estes 
felizardos. Por que não podia ficar para semente? Dentro de um 
navio, enquanto o mundo todo se acabasse. E nesse barco eu me 
via cercado de tudo que era bicho, e a minha tia Maria, a negra 
Generosa, a vovó Galdina, o meu avô, tudo que me amava estaria 
comigo. Esta horrível preocupação da morte tomava conta da 
minha imaginação. 

Uma ocasião estava morrendo no engenho um trabalhador. 
Levaram-me para vê-lo, estendido na esteira, com a boca meio 
aberta, arquejando. O homem estava na hora da morte. Aquele 
rosto lívido e molhado, aqueles olhos revirando, e a boca caída 
não me fizeram dormir à noite. Acordei aos gritos, com o homem 
do engenho perto de mim. 

— Não deviam ter levado este menino para ver essas coisas! 
E a morte deixou essa imagem gravada em minha memória. 
Vira também a prima Lili no seu caixãozinho de rosas. Mas não 
parecia morta a minha pobre prima. Ela fora assim mesmo em 
vida, tão branca, que morta mudara pouco. 

O homem do engenho não me deixava ficar sozinho no 
escuro. Era ele que eu via quando se apagava a luz para dormir. 
E só podia dormir com uma pessoa junto de mim. Fiquei um 
menino medroso. De dia, porém, esperando os meus canários, 
amava a solidão. Era ela que deixava falar o que eu guardava por 
dentro — as minhas preocupações, os meus medos, os meus 
sonhos. O mundo de um menino solitário é todo dos seus desejos. 
Tudo eu queria ter nesses meus retiros: o tesouro da história de 
Trancoso, o cavalinho de sela, aquela vara mágica das fadas, que 
virava em tudo que a gente quisesse. Eu desejava também que a 
velha Sinhazinha morresse. Então começava a ver a minha 
inimiga trucidada, com os cavalos desembestados puxando-lhe o 
corpo pelos espinhos. 

Sentia um prazer sem limites quando me caía um canário no 
alçapão. Não ia para o almoço, entretido com a gaiola da chama. 
Procuravam-me por toda parte. Minha tia Maria ameaçava de 
soltar tudo quanto era passarinho. 

— Nem come mais, só pensando em canários... 
Absorvia-me inteiramente com o esporte cruel. Deixava os 
moleques e os primos para um canto. Mas os meus canários não 
cantavam. Via-os soltos, com trinados de estalos, dando os seus 
concertos nos galhos das árvores. Nas gaiolas, irremediavelmente 
mudos. Faziam greve contra mim. Tratava deles com cuidados 
maternos. Limpava-lhes as gaiolas, pisava-lhes milho — e nada, 
calados de vez. Dependurava-os então pelos pés de pau, para ver 
se os enganava com esse contato com os palcos dos seus dias de 
festa. E mudos sempre. Os meus pássaros só trabalhavam ao 
bom preço da liberdade. 

As negras me ameaçaram: 

— Judiar com passarinho bota as pessoas pro inferno, 
menino. Deus Nosso Senhor fez os pássaros foi pra cantar no 
mato, soltinhos. 
Porém os grandes dias de glória da minha infância me dera 

o meu alçapão, escancarado aos ingênuos canários do Santa 
Rosa. 
EU FICAVA com os mestres de ofício vendo os seus 
trabalhos. Os tanoeiros com as fôrmas e as cubas, os carpinas 
com as rodas de carro ou lavrando as cumeeiras. A enxó 
descascava os paus-d"arco, e as plainas iam aos poucos 
desbastando, alisando as tábuas de cedro. Seu Firmino carpina, 
Pixito tanoeiro, seu Rodolfo mecânico tomavam conta da casa do 
engenho na vaga da safra. Tiravam os seis meses de inverno 
raspando madeira e batendo ferro. Gostavam de mim. Mexia nos 
seus instrumentos, e nem se importavam com as minhas 
travessuras. 

O que, porém, mais me prendia aos meus amigos, eram as 
suas conversas e confissões. O seu Rodolfo sabia de muita coisa. 
Vivia consertando engenhos desde menino. E de toda a parte 
trazia uma história. Trabalhara para um marinheiro no Engenho 
do Meio, para o major Ursulino do Itapuá, para o dr. Pedro do 
Miriri. Os negros de Ursulino toda manhã levavam uma 
chibatada, na porta da senzala, para esquentar o corpo. O 
marinheiro dormia na rede, com a garrafa de cana nos braços. A 
destilação do engenho só trabalhava para a gente da casa-grande. 
E o seu Rodolfo falava também de mulheres. Quando estivera no 
Jaburu, apanhara uma carga de gálico que lhe deixara o corpo 
numa chaga. O mestre Firmino parava com o serviço para ouvir o 
fim da história. 

Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suas 
confidências. Contavam a história de uns carpinas num engenho 
do Brejo. 

— O senhor de engenho só mandava para eles bacalhau, na 
janta e no almoço. Passavam o dia inteiro bebendo água com a 
boca seca. Um dia um deles disse para o negro que não gostava 
de bacalhau, que não agüentava mais aquilo. No outro dia o 
tabuleiro com a comida chegou: era peru. E peru de tarde. E a 
semana toda, peru. Num domingo, o mestre saiu para dar umas 
voltas nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus 
nas costas: 
— O que é isto, moleque? 
— É peru prós carpinas. 
Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade. 
E rebentou ferida pelo corpo deles. Estiveram para morrer um 
tempão. 

— O velho Duda do Riachão não gostava de mulheres. Uma 
filha fugira com um cambiteiro. Casou a segunda vez. E sempre 
que a mulher estava para dar à luz, ficava o velho beirando o 
quarto. Chorava menino lá dentro. Batia na porta para a parteira, 
sabendo do sucedido. E se a notícia era ruim, o velho Duda só 
fazia dizer: "Acabai com ela." 

— O capitão Quincas, irmão do velho José Paulino, tinha 
uma mulher chamada Calu. Morava no sítio de sinhá Germínia. 
Era uma cabrocha bonita. Ele tirara a menina da família dum 
morador do Maravalha. Da irmandade, o capitão Quincas parecia 
o mais genista. O seu tio, Manuel César do Taipu, tinha fama de 
brabo. Falava gritando com todo mundo. Uma vez umas bestas 
do Santa Rosa fugiram para o engenho dele. O velho Manuel 
César mandou botar os animais na almanjarra de manhã à noite. 
Os bichos estavam comendo grosso. Ninguém no Santa Rosa 
tinha coragem de ir buscar. O coronel José Paulino respeitava o 
tio. Tinha medo. O capitão Quincas quando soube, saiu. Entrou 
no engenho adentro, parou a moagem e cortou os arreios da 
almanjarra. O velho Manuel César comeu calado o atrevimento. 
Era assim o irmão mais moço do coronel. 
Pois bem, a cabrocha dera corda ao feitor. O homem soube 
da coisa. Um dia, estavam na planta da cana, aqui, dos cajueiros. 
A escravatura no eito. O feitor Salvino de lado. O capitão chamou 
o cabra para perto dele. Os negros levantaram a cabeça do 
serviço. "Cabra atrevido!" E o rebenque cortou o rosto. Pegaram-
se os dois por cima das canas verdes. Rolaram no chão. Brigaram 
muito. Os negros correram. O capitão Quincas ficara estendido 
com uma facada no vão esquerdo. O cabra se entregou. Quiseram 
matá-lo de peia. O coronel mandou pra cadeia. O partido dele 
estava de baixo, e no júri foi um serviço. O velho Manuel César 
protegia o assassino do sobrinho. Estava se vingando da afronta. 
O povo do Santa Rosa vendia o engenho, mas o cabra não saía 
livre. Pegou trinta anos em Fernando. 

Na hora do almoço vinham chamar os mestres. Na mesa 
nem pareciam aqueles das histórias: todos calados, de cabeça 
baixa, comendo. Ficava a olhar para eles, naquela boa humildade 
de seus modos. No fim da mesa, parece que nem ouviam o que se 
falava. Eram surdos-mudos para as conversas da casa-grande. 

Aquele irmão mais moço do meu avô passava para a galeria 
dos meus heróis. O velho José Paulino governava os seus 
engenhos com o coração. Nunca o vi com armas no quarto. Umas 
carabinas que guardava atrás do guarda-roupa, a gente brincava 
com elas, de tão imprestáveis. Eu queria um senhor de engenho 
que protegesse assassinos, que tivesse guarda-costas, gente no 
rifle. Ouvia falar no dr. Quincas do Engenho Novo, num seu Né 
do Cipó Branco que, com cabras armados, arrombara a cadeia 
para tirar um protegido das grades. Estes sim, que eram senhores 
de engenho de verdade. Quando chegavam os parentes do Itambé, 

o seu Álvaro da Aurora, o Manuel Gomes do Riacho Fundo, com 
os filhos pequenos de botas e faca no colete, me punha a admirá-
los como os meus grandes modelos. Meu avô falava das eleições 
da monarquia, dentro das igrejas. Os senhores de engenho iam 
até às armas, nas disputas. Brigavam pelos seus partidos, 
profanavam os templos de Deus, arrombando urnas e queimando 
atas. No Brejo de Areia, Félix Antônio levantou o povo contra o 
governo. De Goiana saiu um exército para atacar o Recife. Os 
senhores de engenho iam na frente com os seus negros. Mas o 
velho José Paulino não era homem para tais coisas. Ele era 
temido mais pela sua bondade. Não havia coragem que levantasse 
a voz para aquela mansa autoridade de chefe. Não tinha 
adversários na sua comarca. Os seus inimigos eram mais de sua 
família do que dele. Herdara-os com o Santa Rosa. O meu grande 
senhor de engenho teria outro tipo. O irmão que morrera 
brigando, o capitão Quincas Vieira, esse sim, eu quisera que 
vivesse, para o gozo da minha vaidade. 

ATÉ QUE AFINAL conseguira o meu carneiro para montar. 
Vivia a pedi-lo ao tio Juca, ao primo Baltasar tio beleza, a todos 
os parentes que tinham rebanho. Um dia chegou um carneiro 
para mim. Já vinha manso e era mocho. Carneiro nascido para 
montaria. Chamava-se Jasmim. Via chegar ao engenho os 
meninos do Zé Medeiros, do Pilar, cada um no seu carneiro 
arreado, esquipando pela estrada. E uma grande inveja enchia o 
meu coração. 

Comecei então a aumentar o sonho de ser dono também de 
um cavalinho daquele. E um sonho de menino é maior que de 
gente grande, porque fica mais próximo da realidade. O meu 
tomara conta de todas as minhas faculdades. E de tanto pedir, eu 
entrara na posse do objeto sonhado. Já tinha o meu carneiro 
Jasmim. Faltavam-me a sela e os arreios. Sonhei também noites 
inteiras com o meu corcel todo metido nos seus arreios de luxo. 
Queria-os, e, por fim, mandaram fazê-los em Itabaiana. 

Os canários do Santa Rosa iriam cantar sem a sedução da 
minha armadilha escancarada. Era todo agora para o meu 
carneiro chamado Jasmim, Conduzia-o de manhã para o pasto, 
levava água fria para ele beber, dava-lhe banho com sabonete, 
penteava-lhe a lã. E à tardinha saía para os meus passeios. Esses 
passeios, sozinho, pela estrada, montado no meu Jasmim 
penteado, arrastava-me aos pensamentos de melancólico. 

Deixava a dócil cavalgadura a rédeas soltas, e fugia para dentro 
do meu íntimo. Pensava em coisas ruins — no meu avô morto, e 
no que seria do engenho sem ele. Ouvia sempre dizer: 

— Quando o velho fechar os olhos, quem vai sofrer é a 
pobreza do Santa Rosa. 
E esta idéia da morte do velho José Paulino dominava as 
minhas cogitações. Quem tomaria conta do Santa Rosa, quem 
pagaria os trabalhadores? 

O carneirinho, com o passo miúdo, andava os meus 
caminhos, e eu nem os olhava, embebido que estava nos meus 
pensamentos. Pensava muito em minha tia Maria. Ela estava se 
preparando para casar com o seu primo do Gameleira. Não sei 
quantas costureiras cosiam as suas camisas e as suas saias 
brancas. Bordavam letras nas fronhas. E ela comprava as rendas 
da terra que apareciam. Havia na horta um jirau com craveiros 
trabalhando para o dia do casamento. Ia-se embora a minha 
grande amiga. Mas um incidente qualquer me arrancava dessas 
cogitações. E começava a ver a estrada de verdade. 

O Jasmim sabia andar os seus caminhos com segurança, 
conhecia os atalhos e os desvios das poças d"água. Eu parava 
quase sempre pela porta dos moradores. As mulheres sem 
casaco, quase com os peitos de fora, faziam renda sentadas pelos 
batentes. Os filhos corriam para ver o meu carneiro e pediam 
uma montada. Ficava brincando com eles, misturado com os 
pequenos servos do meu avô, com eles subindo nas pitombeiras e 
comendo jenipapo maduro, melado de terra, que encontrávamos 
pelo chão. Contavam-me muita coisa da vida que levavam, dos 
ninhos de rola que descobriam, dos preás que pegavam para 
comer, das botijas de castanha que faziam. Muitos deles, 
amarelos, inchados, coitadinhos, das lombrigas que lhes comiam 
as tripas. As mães davam-lhes jaracatiá, e eles passavam dias e 
dias obrando ralo como passarinho. Cresciam e eram os homens 
que ficavam de sol a sol, no eito puxado do meu avô. As mulheres 
perguntavam pelas coisas do engenho, queriam saber de tudo: do 
casamento de minha tia, da saúde de todo mundo. E quando eu 
pedia água para beber, iam arear o caneco de flandres, para me 
darem a água barrenta de seu gasto. Na volta não se esqueciam 
das lembranças, dos remédios que a tia Maria prometera. E me 
entregavam pacotes de renda; 

— Diga à Maria Menina que é para o enxoval dela. 
E também plantavam craveiros pensando no dia do 
casamento da filha do senhor de engenho. 
O sol já quase escondido, nas minhas caminhadas de volta. 
Por debaixo das cajazeiras, o escuro frio da noite próxima. O 
carneiro corria. E o medo daquele silêncio de fim de dia, daquelas 
sombras pesadas, fazia-me correr depressa com o meu corcel. 
Trabalhadores, de enxada no ombro, vinham do serviço para 
casa. Conversavam às gaitadas, como se as 12 horas do eito não 
lhes viessem pesando nas costas. 

O SANTA FÉ ficava encravado no engenho do meu avó. As 
terras do Santa Rosa andavam léguas e léguas de norte a sul. O 
velho José Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seus 
domínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes que 
fossem seus. Tudo o que tinha era para comprar terras e mais 
terras. Herdara o Santa Rosa pequeno, e fizera dele um reino, 
rompendo os seus limites pela compra de propriedades anexas. 
Acompanhava o Paraíba com as várzeas extensas e entrava de 
caatinga adentro. Ia encontrar as divisas de Pernambuco nos 
tabuleiros de Pedra de Fogo. Tinha mais de três léguas, de 
estrema a estrema. E não contente de seu engenho possuía mais 
oito, comprados com os lucros da cana e do algodão. Os grandes 
dias de sua vida, lhe davam as escrituras de compra, os bilhetes 
de sisa que pagava, os bens de raiz, que lhe caíam nas mãos. 
Tinha para mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção. 
Senhor feudal ele foi, mas os seus párias não traziam a servidão 
como um ultraje. O Santa Fé, porém, resistira a essa sua fome de 
latifúndios. Sempre que via aqueles condados na geografia, 
espremidos entre grandes países, me lembrava do Santa Fé. O 
Santa Rosa crescera a seu lado, fora ganhar outras posses 
contornando as suas encostas. Ele não aumentara um palmo e 
nem um palmo diminuíra. Os seus marcos de pedra estavam ali 
nos mesmos lugares de que falavam os papéis. Não se sentiam, 
porém, rivais o Santa Fé e o Santa Rosa. Era como se fossem dois 
irmãos muito amigos, que tivessem recebido de Deus uma 
proteção de mais ou uma proteção de menos. Coitado do Santa 
Fé! Já o conheci de fogo morto. E nada é mais triste do que um 
engenho de fogo morto. Uma desolação de fim de vida, de ruína, 
que dá à paisagem rural uma melancolia de cemitério 
abandonado. Na bagaceira, crescendo, o mata-pasto de cobrir 
gente, o melão entrando pelas fornalhas, os moradores fugindo 
para outros engenhos, tudo deixado para um canto, e até os bois 
de carro vendidos para dar de comer aos seus donos. Ao lado da 
prosperidade e da riqueza do meu avô, eu vira ruir, até no 
prestígio de sua autoridade, aquele simpático velhinho que era o 
coronel Lula de Holanda, com o seu Santa Fé caindo aos pedaços. 
Todo barbado, como aqueles velhos dos álbuns de retratos 
antigos, sempre que saía de casa era de cabriolé e de casimira 
preta. A sua vida parecia um mistério. Não plantava um pé de 
cana e não pedia um tostão emprestado a ninguém. 

— Coitado do Lula — diziam os senhores de engenho em 
suas conversas. — Atrasou-se. 
E o seu engenho perdera até o nome bonito, chamavam-no 
somente de engenho do seu Lula. Diziam, então, que ele vivia de 
uma botija que arrancara ao avô. As suas visitas ao Santa Rosa 
eram sempre de cerimônia. Tiniam na estrada as campainhas, e 
lá vinha o seu Lula com a família, com os cavalos magros de sua 
carruagem. Iam sempre para a sala de visitas, numa distância de 
estranhos que se encontrassem pela primeira vez. Neném do seu 
Lula, a sua filha, educara-se nos colégios de Recife. Falava 
diferente do meu povo. Eu olhava para ela, sentindo uma criatura 
que nunca tinha visto. Sentava-se como se estivesse de castigo, 
sem um movimento de vida, numa posição só, desde que entrava 
até que saía. E d. Amélia, pequenina, petrificara-se também, na 
etiqueta. Sabia tocar piano, casara-se com o coronel Lula de 
Holanda, no Recife. 

Para o Santa Rosa, a visita dessa gente educada demais se 
tornava um suplício. A minha tia Maria nem tinha mais conversa. 
Os assuntos todos tinham ido embora. Ficamos então calados, a 
olhar um para o outro, até à noitinha, quando saíam. Nós nos 
interessávamos pelo cabriolé. As histórias de Trancoso falavam 
muito das carruagens. E sinhá Totonha nos contava os seus 
romances, com princesas que andavam pelas estradas reais, em 
carros que tiniam as campainhas como o de seu Lula. Maria 
Borralheira perdera um sapato descendo duma carruagem 
daquelas. 

Passava pelo Santa Fé, quando ia para a escola: A mesma 
tristeza, todas as manhãs e todas as tardes. O mato tomando 
conta do engenho. E a várzea com ressocas acanhadas, uns 
restos de cana que o tempo ia deixando viver, no meio do pasto 
grande. As casas dos moradores, caindo. Morava numa melhor o 
velho José Amaro sapateiro, que não plantava nada. Eu via o seu 
Lula na porta. Não tirava a gravata do pescoço. Mandava parar o 
cavalo para saber notícias do coronel José Paulino. Muito solene, 
muito parecido com aqueles senhores arruinados da Califórnia, 
que a gente vê no cinema, com os americanos tomando conta das 
terras deles. 

Corriam histórias da casa de seu Lula: o povo de lá não 
comia, as negras viviam de jejum; uma lata de manteiga era para 
um mês; as vacas trabalhavam nos carros de boi. E ele tinha 
dinheiro de ouro enterrado. Quando se ia a pé para o Pilar, via-se 
pela faxina de sua horta uma sua irmã maluca, d. Olívia, 
andando de um lado para outro, falando só. Com os cabelos todos 
brancos e soltos, nunca vi uma imagem tão pungente da dor. Não 
me contavam nada de sua vida. Parecia mesmo que não tinha 
história. 

O meu avô olhava para o seu vizinho com certo respeito. 
Dava-lhe a presidência da Câmara, como se quisesse corrigir com 
honrarias aquela crueldade do destino. Os moleques me 
contavam que o primeiro nome do Santa Fé fora Pegue Aqui Por 
Favor. O pai do seu Lula era um unha-de-fome. Levantara o 
engenho com o povo que passava na estrada. Pegue Aqui Por 
Favor e ia levantando a cumeeira, cobrindo a casa. E por isto 
ninguém ali ia para a frente. 

Aquele destino sombrio me preocupava. Nas visitas ao Santa 
demorava-me a olhar os quadros, os candeeiros bonitos, os 
tapetes, os móveis ricos de lá. Havia sempre uma nobreza 
naquela ruína. D. Amélia tocava piano, e a conversa era sempre 
de cerimônia. A doida às vezes aparecia sentada num canto, 
olhando-nos de longe, com a boca bulindo, como se comesse as 
palavras. Ouvia-se um sussurro de todo aquele cochichar com o 
desconhecido. 

Uma noite bateram à porta do engenho. Era uma carta do 
seu Lula chamando o meu avô com urgência. Depois se soube. O 
velho estava dentro de casa como um leão enfurecido. Um dr. 
Luís Viana queria roubar-lhe a filha. Dois negros com espingarda 
de caçar passarinho e o seu Lula de clavinote. A casa toda 
escorada de tranca. A filha e a mulher chorando no santuário. 
Tinha pegado uma carta combinando uma fugida. E dali a filha 
não saía, com ele vivo. Tudo aquilo, porém, era mais de sua 
imaginação. Ninguém queria roubar d. Neném. Isso só serviu 
para a mangação da cabroeira. Fizeram até versos com o roubo 
da moça. 

Seu Lula falava em voz alta, repetindo as palavras com um 
"já ouviu?" autoritário, no fim. Dizia uma mesma coisa duas, três 
vezes. De tarde aparecia para conversar com o velho José 
Paulino. Eu ficava ouvindo o que ele dizia. O meu avô só fazia 
escutar. O seu vizinho sabia muita coisa mais do que ele. 


— Pobre do Lula — dizia quando lhe vinham contar histórias 
do seu amigo. 
E o açúcar subia e o açúcar descia — e o Santa Fé sempre 
para trás, caminhando devagar para a morte, como um doente 
que não tivesse dinheiro para a farmácia. 

JÁ ESTAVA MAIOR, quando comecei a sofrer de puxado. 
Uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito 
chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim. Tenho 
uma impressão de terror das minhas noites de asmático, dos 
meus dias compridos em cima da cama, dos vomitórios 
abomináveis que me davam. Eram acessos de mais de três dias. 
Depois a convalescença, sem poder pisar no terreiro, sem ir ao 
alpendre por causa do mormaço, do sereno, dos chuviscos. Não 
comia frutas, não tocava em coco, assavam-me a cana para 
chupar, num resguardo rigoroso de mulher parida. Mandavam ao 
meu quarto, para brincar comigo, os moleques menores, mas eles 
se enjoavam daquela companhia de enfermo e me deixavam 
sozinho, me abandonavam. E, sozinho, começava a vencer o 
tempo com as minhas cismas de menino. 

Os primos tinham chegado do colégio, mudados, nos 
primeiros dias. 

— Menino só endireita no colégio — era como todo mundo 
julgava essa cura milagrosa. 
Com pouco mais voltaram a ser os mesmos diabos de 
antigamente. 
O engenho estava moendo. Do meu quarto ouvia o barulho 
da moenda quebrando cana, a gritaria dos cambiteiros, a cantiga 


dos carros que vinham dos partidos. A fumaça cheirosa do mel 
entrava-me de janela adentro. O engenho todo na alegria rural da 
moagem. E o diabo daquele puxado tomando-me a respiração, 
deixando-me sem ar e com gosto amargo na boca. 

Olhava para as réstias que as telhas de vidro espalhavam 
pelo quarto. Elas iam fugindo devagarinho, até subirem pelas 
paredes, redondas ou ovais, e, enfim, desapareciam, quando não 
havia mais sol no telheiro. Às vezes vinham de cima, como uma 
flecha, e se enfincavam num canto. Eu tinha visto esse jato de luz 
nas estampas do santuário. Diziam que era o Espírito Santo 
entrando em Nossa Senhora. O Menino Jesus havia saído dessa 
réstia de sol vinda do céu. Jesus viera do céu, mas os outros 
meninos não seriam como ele. Eram os homens que faziam os 
meninos. Tudo igual ao que a gente via nos cercados. 

O meu avô passava no meu quarto para me ver: não tinha 
febre, dizia, e ia-se embora. A febre, para ele, era o grande mal, e 
o seu grande remédio as lavagens. As moléstias do engenho 
tinham o seu diagnóstico e a sua medicina certa: sarampo, 
bexiga-doida, papeira, sangue-novo. Saindo dali era febre. O 
velho José Paulino tratava de tudo, fazia sinapismos de mostarda, 
dava banhos quentes, óleo de rícino, jacaratiá para vermes. 
Curava assim os negros, os netos, os trabalhadores. E lancetava 
furúnculos. Uma vez um carro de boi passara por cima do pé de 
um carreiro, esmigalhando o dedo. O meu avô cortou à tesoura 
aquele pedaço de carne dependurada, botou tintura de jucá na 
ferida e amarrou com tiras de camisa velha o pé do Chico 
Targino. Para o meu puxado prescreviam vomitórios de cebolas-
cecém. A minha tia Maria ficava comigo enquanto eu me 
extenuava nos vômitos desesperados. O puxado, porém, só 
passava no seu tempo. Piava no peito até quando bem quisesse. 

As noites pareciam-me uma eternidade. Ficava acordado na 
ânsia miserável do acesso, horas seguidas, de olhos fechados, 
com o meu medo do escuro. Depois via a madrugada entrando 
pelas telhas-vãs do quarto, e ouvia os passos de meu avô 
andando pela calçada, para o seu banho frio das quatro horas. O 
rumor do curral, o apito do engenho chamando o povo para o 
trabalho, me pareciam uma novidade de todos os dias. Mais tarde 
os pássaros cantavam as suas matinas no gameleiro. 

Essas noites de puxado envelheciam a minha meninice, mas 
obrigavam os meus olhos cansados da escuridão a esperarem 
extasiados as madrugadas. Quando o sol se abria, chegavam as 
réstias no meu quarto. Havia mesmo uma em cima de minha 
cama, bem redonda, junto dos meus travesseiros. Botava as mãos 
para lhe sentir a quentura, e via as nuvens passando por ela às 
carreiras ou devagar. Devagarinho lá iam deixando o meu leito de 
doente; faziam apenas uma visita ao enfermo, e já estavam com a 
metade pela barra da cama, e caíam no chão, onde se iam 
arrastar o dia inteiro. 

Eu entretinha o meu puxado com esse cinema, em que o sol 
e as nuvens faziam-se de artistas. 

O QUARTO do meu tio Juca vivia trancado de chave o dia 
inteiro. Ali só entrava a negra que lhe fazia limpeza e mudava as 
roupas da cama. Mas quando aos domingos descansava na sua 
grande rede do Ceará, de varandas arrastando no chão, eu ia ter 
com ele. O meu tio me punha ao seu lado, fazia brincadeiras 


comigo. Era o único sobrinho com quem se dava de intimidade. 
Ele tinha muita coisa para me mostrar: os seus álbuns de 
fotografias, os seus livros de muitas gravuras, o Malho, que 
assinava, cheio de gente de cara virada pelo avesso. Lia as 
histórias todas do Malho, com retratos dos políticos e com um Zé-
Povo que tinha resposta para tudo. 

— Ali não bula — me dizia, quando eu tocava por acaso num 
pacote embrulhado em cima da cômoda. 
Num dia em que ele me deixou sozinho, corri sôfrego para o 
objeto da proibição; uma coleção de mulheres nuas, de postais 
em todas as posições da obscenidade. Não sei para que meu tio 
guardava aquela nojenta exposição de porcarias. Sempre que 
sucedia ficar sem ele no quarto, era para os postais imundos que 
me botava. Sentia uma atração irresistível por aquelas figuras 
descaradas de meu tio Juca. 

Uma vez em que ele se demorou mais tempo, por não sei 
onde, entretive-me com as gravuras muito tempo. O meu tio 
pegou-me de surpresa com o pacote na mão. Botou-me para fora 
do seu quarto. Eu não era digno da sua intimidade, dos segredos 
de sua alcova. Mas ficava-me de seus aposentos uma saudade 
ruim daquelas mulheres e daqueles homens indecentes. 

UM MOLEQUE chegou gritando: 

— O partido da Paciência está pegando fogo! 
Tinha sido faísca do trem, na certa. 
O povo todo correu para lá, com enxadas, foices, pedaços de 
pau. Via-se o fumaceiro do outro lado do rio, tomando o céu todo. 

— Mande chamar o pessoal do eito — gritava o meu avô. 

E com pouco mais chegavam os cabras em disparada, para 
os lados do partido. O fogo ganhava o canavial com uma violência 
danada. As folhas da cana estalavam como taboca queimando. 
Parecia tiroteio de verdade. 

— Corta o fogo no Riacho do Meio! 
Era o único jeito de atalhar o incêndio para salvar o resto do 
partido, meter a enxada e a foice no riacho que cortava o 
canavial, abrindo aceiros de lado a lado. 

A casa de palha do negro Damião, o fogo comeu num 
instante. Nem tiveram tempo de tirar os trastes. O vento soprava, 
sacudindo faíscas à distância. Mil línguas de fogo devoravam as 
canas maduras, com uma fome canina. E o vento insuflando este 
apetite diabólico, com um sopro que não parava. Mas os cabras 
do eito estavam ali para conter aquela fúria. E o meu tio Juca no 
meio deles. As enxadas tiniam no massapê, as foices cantavam 
nas touceiras de cana, abrindo os aceiros para esbarrar a carreira 
das chamas. E davam no fogo com galhos de mato verde, gritando 
como se estivessem numa batalha corpo a corpo. 

Ficávamos de longe, vendo e ouvindo as manobras e o rumor 
do combate. Os meus olhos choravam com a fumaça, e o cheiro 
de mel de cana queimada recendia no ar. Descia gente das 
caatingas para um adjutório. E com o escurecer, o fogo era mais 
vermelho. 

Agora as chamas subiam mais para o alto, porque o vento 
abrandava. Os cabras pisavam por cima das brasas, 
chamuscavam os cabelos, nessa luta braço a braço com um 
inimigo que não se rendia. 

— Olha a casa de Zé Passarinho pegando fogo! 

Zé Guedes correu para dentro das chamas, e voltou com a 
velha Naninha, entrevada, nos braços, sacudindo-a no chão como 
um saco de açúcar. 

— Ataca o fogo — gritava meu tio, de panavueiro na mão. 
O meu tio Juca crescia para mim, neste arranco de coragem 
com seus cabras. Estava metido com eles no mesmo perigo e no 
mesmo aperreio. 

Vinham chegando moradores de Maravalha e de Taipu. E 
eram para mais de quinhentos homens que enfrentavam o 
inimigo desesperado. Não passaria mais do riacho, porque todo 
ele estava tomado de aceiros. E gente com galhos nas mãos para 
esperar o avanço. O vento abandonara o aliado no campo da luta. 
E só se via gente de pé queimado, de cara tisnada, de olhos 
vermelhos, de roupas em tiras. Zé Guedes com os peitos era 
chaga viva. E o pretume do canavial fumaçando. 

— É preciso deixar gente nos aceiros a noite toda. 
No engenho, o meu avô botava jucá nos feridos. A destilação 
se abria para uma bicada. A boca de fogo podia fazer mal. E o eito 
esperava por eles de manhãzinha. 

ESTAVAM NA LIMPA do partido da várzea. O eito bem 
pertinho do engenho. Da calçada da casa-grande viam-se no meio 
do canavial aquelas cabeças de chapéu de palha velho subindo e 
descendo, no ritmo do manejo da enxada: uns oitenta homens 
comandados pelo feitor José Felismino, de cacete na mão, 
reparando no serviço deles. Pegava com o sol das seis, até a boca 
da noite. Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos 
cabras. Trabalhavam conversando, bulindo uns com os outros, os 
mais moços com pabulagem de mulheres. Outros bem calados, 
olhando para o chão, tirando a sua tarefa com a cara fechada. 
Assim, poucos. Os demais raspavam a junça dos partidos 
contando histórias e soltando ditos. 

— Deixa de conversa, gente! — gritava seu José Felismino. 
— Bota pra diante o serviço. Com pouquinho o coronel está aqui 
gritando. 
E a enxada tinia no barro duro, e eles espalhando com os 
pés o mato que ficava atrás. O sol espelhava nas costas nuas; 
corria suor em bica dos lombos encharcados. 

Manuel Riachão puxava o eito na frente, como um baliza. 
Era o mais ligeiro. De cabeça enterrada, a enxada nas suas mãos 
raspava como uma máquina a terra que aparecesse na frente. 
Sempre na dianteira, deixando na bagagem os companheiros. O 
moleque Zé Passarinho remanchando, o último do eito. Não havia 
grito que animasse aquele preguiça alcoolizada. Também, 
ganhava dois cruzados, davam-lhe a mesma diária das mulheres 
na apanha do algodão. 

— Tira a peia da canela, moleque safado! O diabo não anda! 
E ele atrás, na maciota, com os pés roliços de bicho e o 
corpo rebentando em moléstias-do-mundo. 
Paravam às dez horas, para o almoço de farinha seca com 
bacalhau. Comiam na marmita de flandres, lambendo os beiços 
como se estivessem em banquetes. E deitavam-se por debaixo dos 
pés de juá, esticando o corpo no repouso dos 15 minutos. De 
alguns, as mulheres traziam a comida num pano sujo; a carne-
de-ceará assada, com farofa fria. Pegavam no pesado outra vez, 
até às seis da tarde. 

O meu avô vinha olhar a canalha no trabalho forçado. 

— Que está fazendo esta gente, seu José Felismino? Oitenta 
pessoas, e o partido no mato? Nem eito de mulher! 
Não se importavam com a gritaria do velho. Aquilo era de 
todos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco. Só tinha 
boca, o coronel José Paulino. Chamava nomes a todos, 
descompunha-os como a malfeitores, mas não havia um ali que 
não estivesse com dias adiantados no livro de apontamentos. 

Cachorrinhos com barriga partindo, de magros, 
acompanhavam seus donos para a servidão. Rondavam pelos 
cajueiros, perseguindo os preás. Porém não pisavam no terreiro 
da casa-grande. Os cachorros gordos do engenho não davam 
trégua aos seus infelizes irmãos da pobreza. 

João Rouco vinha com três filhos para o eito. A mulher e os 
meninos ficavam em casa, no roçado. Com mais de setenta anos, 
agüentava o repuxo todo, como o filho mais novo. A boca já 
estava murcha, sem dentes, e os braços rijos e as pernas duras. 
Não havia rojão para o velho caboclo do meu avô. Não era 
subserviente como os outros. Respondia aos gritos do coronel 
José Paulino, gritando também. Talvez porque fossem da mesma 
idade e tivessem em pequeno brincado juntos. 

— Cabra malcriado! 
E quando precisava de gente boa, para um serviço pesado, 
lá ia um recado para João Rouco. 
O velho Pinheiro não prestava para nada. Roubava como boi 
ladrão, vivia de enredadas no engenho. E os filhos, a mesma 
cambada. Quando vinha ao eito, passava o tempo se queixando 
de dores. Botavam-no então para serviços maneiros. Ouvia os 


desaforos do feitor com a cara mais limpa do mundo. E os seus 
vizinhos não criavam galinhas, porque ele era mesmo que raposa 
com fome. Também, para os cabras do eito não valia nada. João 
Rouco, respeitavam-no de verdade. Tratavam-no de seu João, e 
para ele não vinham com brincadeiras. Nós mesmos, os meninos 
da casa-grande, as negras da cozinha, os moleques do engenho, 
púnhamos o velho João Rouco numa categoria diferente. 

Em tempos de emergência, o cito se avolumava com os 
foreiros e os lavradores. Desciam para um adjutório ao senhor de 
engenho. Para mais de duzentas enxadas se espalhavam pelos 
canaviais. Os foreiros e os lavradores, os pequeno-burgueses do 
engenho, desciam de suas ordens para este contato ombro a 
ombro com os párias. E não recebiam nada pelo dia que davam. 
Queriam assim fugir da indignidade do eito, trabalhando de 
graça. Quando havia ajuntamento destes, para nós, meninos, era 
um espetáculo. Levavam mel-de-furo, para a regalada merenda 
dos cabras. E à noite, o terreiro da casa-grande se enchia com 
um exército de esfarrapados. Bebiam cachaça nos dias de chuva, 
e voltavam para casa para o sono miserável da cama de vara. 

O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me 
habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. 
Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, 
comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha 
compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles 
nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós 
éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos 
bois, nos burros, nos matos. 


O MEU AVÔ costumava à noite, depois da ceia, conversar 
para a mesa toda calada. Contava histórias de parentes e de 
amigos, dando dos fatos os mais pitorescos detalhes. 

— Isto se deu antes do cólera de quarenta e oito ou depois 
do cólera de cinqüenta e seis. 
Eram os sinistros marcos de suas referências. O seu grande 
motivo era, porém, a escravidão. 

— Tio Leitão dava nos negros como em bestas de 
almanjarra. Tinha uma escravatura pequena: um negro só para 
mestre-de-açúcar, purgador, pé-de-moenda. 
— O major Ursulino de Goiana fizera a casa de purgar no 
alto, para ver os negros subindo a ladeira com a caçamba de mel 
quente na cabeça. Tombavam cana com a corrente tinindo nos 
pés. Uma vez um negro dos Picos chegou na casa-grande do 
major, todo de bota e de gravata. Vinha conversar com o senhor 
de engenho. Subiu as escadas do sobrado oferecendo cigarros. 
Estava ali para prevenir das destruições que o gado do engenho 
fizera na cana dos Picos. Ele era o feitor de lá. O seu senhor 
pedira para levar este recado. O major calou-se, afrontado. 
Mandou comprar o negro no outro engenho. Mas o negro só tinha 
uma banda escrava. Pertencendo a duas pessoas numa partilha, 
um dos herdeiros libertara a sua parte. Então o major comprou a 
metade do escravo. E trouxe o atrevido para a sua bagaceira. E 
mandou chicoteá-lo no carro, a cipó de couro cru, somente do 
lado que lhe pertencia. 
Esta história da banda-forra, o meu avô contava para 
mostrar a ruindade do velho Ursulino. Era raro o senhor de 
engenho de coração duro para os escravos. Os dele vestiam e 
comiam com fartura. 

— Negro só mesmo com barriga cheia. Era verdade que 
alguns que pediam cipó-de-boi. Ali mesmo no Santa Rosa, uma 
escrava botara uma erva venenosa no caldeirão de comida da 
escravatura. Quase que morria tudo de dor de barriga. Tinha-se 
inimizado com uma crioula por causa de um negro, e queria 
matar o resto. Os jornais, na abolição, falavam de senhores de 
engenho que matavam negros de relho. Ninguém hoje mata boi de 
macaca. Queria-se o negro gordo para o trabalho e a revenda. Não 
se ia botar fora um conto nem dois de réis. Aqui comiam de 
estragar, e na várzea, só Ursulino botava negro na corrente. 
Também a escravatura dele era uma desgraça. Quem tinha o seu 
negro fujão, vendia pro eito do Itapuá. Mandavam-se escravos 
para o Ursulino como hoje se bota menino na Marinha — para 
amansar. E a gente do Partido Liberal botou o nome em Ursulino 
de "barão do couro cru". Quando veio o Treze de Maio, fizeram um 
coco no terreiro até alta noite. Ninguém dormiu no engenho, com 
zabumba batendo. Levantei-me de madrugada, pra ver o gado 
sair para o pastoreador, e me encontrei com a negrada, de enxada 
no ombro: iam para o eito. E aqui ficaram comigo. Não me saiu do 
engenho um negro só. Para esta gente pobre a abolição não serviu 
de nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dia. O 
que ganham nem dá para o bacalhau. Os meus negros enchiam a 
barriga com angu de milho e ceará, e não andavam nus como 
hoje, com os troços aparecendo. Só vim a ganhar dinheiro em 
açúcar com a abolição. Tudo o que fazia dantes era para comprar 
e vestir negros. 

— Cabeça de Puque ensinava os meninos de Manuel Antônio 
do Bonito. Um dia desapareceu um dinheiro de ouro do velho. 
Botou-se logo pra cima do mestre. E judiaram com o homem de 
tal forma, pra descobrir o roubo, que o deixaram pra morrer. Dias 
depois prenderam um pedreiro em Itabaiana trocando dinheiro de 
ouro na feira. Então tudo ficou descoberto. O pedreiro trabalhava 
retelhando o sobrado do Bonito quando viu o velho Manuel 
Antônio botando um saquinho debaixo duma galinha choca, 
deitada. Era ali a burra do engenho. E por causa desta surra em 
Cabeça de Puque o senhor de engenho andou pelos matos até o 
Partido Conservador subir. 
— Dom Pedro chegou no Pilar uma tarde. Ninguém esperava 
por ele. A casa da Câmara estava fechada. Era certo que estaria 
na vila no outro dia, mas o imperador só andava correndo, 
cansando os cavalos. Quando a cavalhada entrou na rua grande, 
o povo todo correu pra ver. Dom Pedro parou defronte da casa da 
Câmara. Vieram abrir. Tio Henrique, vereador, tremia de medo. 
Não havia nem uma cadeira lá dentro. Estava tudo no marceneiro 
se envernizando. A grande sala do júri, vazia. Dom Pedro subiu 
com o seu grande chapéu-do-chile, olhou para os cantos: não viu 
móveis. Sacudiu o chapéu no chão e deitou-se na rede do 
pedreiro que estava limpando a casa para a festa. O presidente da 
província mandou prender o tio Henrique pelo desastre. 
Estas histórias do meu avô me prendiam a atenção de um 
modo bem diferente daquelas da velha Totonha. Não apelavam 
para a minha imaginação, para o fantástico. Não tinham a 
solução milagrosa das outras. Puros fatos diversos, mas que se 
gravavam na minha memória como incidentes que eu tivesse 
assistido. Era uma obra de cronista bulindo de realidade. 

A história inteira da família saía nestes serões de depois da 
ceia. O avô do velho José Paulino viera de Pasmado, com um 
irmão padre, para São Miguel. Fundara ali pelas várzeas e 
caatingas do Paraíba uma grande prole de senhores de engenho. 
Espalhara sangue de branco por entre os caboclos daquelas 
redondezas. Por isto a gente do Taipu falava de branquidade com 
a boca cheia. 

— Hoje em dia está tudo virando camumbembe — dizia o 
meu avô. — Este negócio de família já não é dote pra moça casar. 
Ele tinha o orgulho da casta, a única vaidade daquele santo 
que plantava cana. 

A MINHA PRIMEIRA PAIXÃO tinha sido pela bela Judite, que 
me ensinara as letras no seu colo. O meu coração de oito anos 
agora se arrebatava com mais violência. Estavam no engenho 
passando uns tempos umas parentas de Recife. Era uma gente 
que não tirava as meias da manhã à noite, falava francês uma 
com a outra, só conversava negócios de teatro: o tenor tal, que 
belo homem!, a artista fulana, que chique! 

As filhas do tio João, quando chegavam no engenho, 
revolucionavam os hábitos pacatos da casa-grande. Só viviam 
trancadas nos banhos mornos, dando trabalho às negras, lendo 
romances nas cadeiras de balanço. Punham esteiras de piripiri 
por cima dos quartos delas, porque tinham medo da telha-vã: 
podia cair bicho de lá. Os moleques passavam o dia inteiro 
espantando os sapos das calçadas. Elas corriam das baratas, aos 
gritos. E até em nós esta influência se exercia; não tirávamos os 
sapatos dos pés, por causa da gente do Recife. A tia Maria 
desdobrava-se em cuidados, temendo a língua das parentas 
civilizadas. Uma delas dissera em carta para uma amiga da 
cidade que o povo do Santa Rosa só tinha de gente os olhos. E 
enchiam a casa de chiliques e de cheiros de extrato. Aos 
domingos iam de chapéu à missa do Pilar. E censuravam o 
pessoal do engenho, porque, a meia légua da igreja, ficava em 
casa nos dias de obrigação. 

— José Paulino é um herege, e cria essa gente daqui como 
bichos. O menino de Clarisse nem fez primeira comunhão. 
O meu avô ouvia as primas com aquele sorriso de justo. Ele 
sentia-se bem amigo de Deus com o coração de bom que era o 
dele. A grita de suas primas devotas não lhe doía na consciência. 

O Santa Rosa com as meninas do tio João parecia outro. A 
sala de visitas aberta o dia inteiro, as negras conversando baixo 
na cozinha, a tia Maria de vestido de passeio, os moleques 
pequenos, vestidos, sem as bimbinhas de fora. Às tardes, visitas 
de outros engenhos; brinquedos de prendas de noite, conversas 
sobre a moda e queijo-do-reino na mesa. Até o meu avô sem os 
seus gritos e palavrões para os moleques da estrada. 

Para mim, a visita viera me aperrear o coração de menino. 
Maria Clara, mais velha do que eu, andava comigo pela horta. 
Menina da cidade, encontrara um bedéquer amoroso para 
mostrar-lhe os recantos do Santa Rosa. Queria ver tudo — o rio, 
os cajueiros, o cercado. Maria Clara, com aqueles seus cabelos 
em cachos e uns olhos grandes e redondos, me fizera esquecer o 
carneiro e os passeios solitários. Brincávamos juntos, comíamos 
juntos, que todo mundo reparava nesse pegadio constante. Ela 
me contava as histórias de suas viagens de mar, pintava-me o 
vapor, os camarotes, o tombadilho e o mar batendo no olho de 
vidro das vigias. 

— Não havia perigo, parecia que se estava em casa. Havia 
mesa para os meninos e gente grande. E banho de chuvisco. 
Passavam-se dias só se vendo céu e mar. 
Sentávamos por debaixo dos gameleiros, nestas conversas 
compridas. Eu também contava as minhas coisas de engenho: o 
fogo no partido, a cheia cobrindo tudo d"água. Exagerava-me para 
parecer impressionante à minha prima viajada. Ali mesmo onde 
estava sentada, o rio passara com mais de nado. A canoa se 
amarrara no gameleiro. 

As nossas conversas iam longe. Maria Clara indagava por 
Antônio Silvino. Então me derramava em histórias. O cangaceiro 
se encantava em bicho. Uma tropa vinha atrás dele, e o que 
encontrava era um rebanho de carneiros. Uma vez matara uma 
onça numa luta corpo a corpo; quando não podia mais com a 
fera, lembrou-se do punhal: meteu o chapéu de couro no focinho 
da onça e enfiou-lhe a arma no coração. O couro desta onça era 
aquele que meu avô tinha na sala. 

Procurávamos a sombra dos cajueiros para os nossos 
colóquios. Havia folhas secas pelo chão, como um grande tapete 
cinzento, que rangiam nos pés. E o cheiro gostoso da flor do caju 
chegava até longe. 

— Vamos fazer piquenique nos cajueiros. 
Levávamos merenda, pedaços de pão e queijo, que as 
formigas comiam. Maria Clara me olhava séria, me pegava nas 


mãos, perguntando o que a gente faria ali se Antônio Silvino 
aparecesse. 

— Ele casava a gente. 
E me contava cena por cena das fitas de cinema que vira, 
dos amores dos seus heróis prediletos e dos casamentos bonitos 
que faziam. 

Os galos-da-campina cantavam bem perto de nós os seus 
números de sucesso. E os concriz pinicavam os cajus vermelhos, 
chiando de gozo. 

— O engenho é melhor do que o Recife — me dizia Maria 
Clara. — Mamãe conta que morando aqui a gente vira bicho. Ela 
quer que eu toque piano e fale francês. Aqui é bom porque não 
tem aula, não tem professora. 
Uma ocasião, depois que ela terminou uma fita de dois 
namorados deitados na relva, nos braços um do outro, eu peguei 
Maria Clara e beijei-a forte na boca. Corri como um doido para 
casa, com o coração batendo. 

— Este menino fez arte. Chega estar afrontado — repararam, 
quando apareci na cozinha. 
Escondi-me da namorada o resto da tarde. Na hora da ceia, 
ela estava com os seus olhos redondos e pretos, olhando para 
mim. A noite toda foi um sonho só com Maria Clara. Ia com ela 
no navio não sei por onde. E o mar batia com raiva no meu barco. 
Chovia que a água começava a encher o casco. Só se via mar e 
céu. Eu tinha medo de afundar. Maria Clara dizia que não havia 
perigo. E nós chegávamos nos cajueiros e ficávamos nas folhas 
secas, dormindo. 

Um dia ela me chamou para ver uma coisa: a canalha do 
curral estava em amor livre, num canto da cerca. Tirei a minha 
namorada dali. Aquilo era porcaria para os seus olhos limpinhos. 
E o meu amor crescia, dilatava o meu verde coração de menino. 

As meninas do tio João já estavam em despedidas. Para a 
semana voltariam para Recife. De engenho a engenho andavam 
passando dias. E chegavam presentes de toda parte; rendas da 
terra, colchas bordadas, panos de filé. Os bichos dos engenhos 
gostavam das primas assanhadas. 

A viagem seria na terça-feira. Depois de amanhã não veria 
mais a minha companheira. Fizemos os idílios derradeiros, 
correndo os nossos recantos preferidos, como um casal de 
namorados de livro. 

De manhã, o carro de boi saía com o povo para a estação. As 
meninas de tio João dando dinheiro às negras, a velha Generosa 
chorando, todos na sala em abraços e beijos. O tio Juca iria com 
a tia Maria à estação. Para menino não havia lugar. Maria Clara 
nem parecia que me queria bem, toda satisfeita, sentada no 
carro. Pensava que ela estivesse triste como eu. Mas qual! Alegre 
com a viagem, bem contente no meio do alvoroço das despedidas. 
Já saíam do terreiro, ganhando a estrada. Corri para as estacas 
do cercado a fim de olhar ainda o carro. Trepei-me na cerca até 
que se sumisse a carruagem com a minha ingrata. Quando 
cheguei, de volta, não sei quem, na cozinha: 

— Ficou sem namorada, hein? 
As lágrimas chegaram-me aos olhos, e disparei num choro 
que não contive. Foi a graça da casa durante o dia. Na mesa 
contaram ao meu avô. O velho José Paulino riu-se: 

— A quem puxou este menino assim namorador? 
E o meu amor ficava na conversa de toda gente. 
Dormi à noite, com Maria Clara junto de mim. Os sonhos de 
um menino apaixonado são sempre os mesmos. Acordei-me, 
porém, com a primeira angústia de minha vida. Os pássaros 
cantavam tão alegres no gameleiro, porque talvez não soubessem 
da minha dor. Senti nesse meu despertar de namorado um vazio 
doloroso no coração. Tinha perdido a minha companheira dos 
cajueiros. E chorei ali entre os meus lençóis lágrimas que o amor 
faria ainda muito correr dos meus olhos. 

O MEU AVÔ recebera uma carta sobre o meu pai. Soube 
disto por uma conversa dele com o tio Juca. Não sabiam que eu 
estava na sala de visitas olhando umas revistas velhas — e 
conversavam. O diretor do hospício escrevera, perguntando se o 
meu pai continuaria como pensionista, pois os parentes dele há 
meses que haviam suspendido a mesada. 

— Acho que o senhor deve pagar. Afinal de contas, é seu 
genro! 
— Foi isto mesmo o que eu fiz. Escrevi ao Lourenço para 
tomar conta disto todos os meses. 
Foi um choque para mim essa certeza da desgraça de meu 
pobre pai. Sabia que estava doente, mas assim, quase na 
indigência, me tocou fundamente. Contei a tia Maria o que 
escutara da conversa. Ela não me quis dizer coisa nenhuma. 

— Isto não é assunto para menino. Vá brincar lá fora. 
Não achei graça em nada, nesse dia. Só pensava no meu pai 
amarrado num quarto, gritando. 

Chegara uma vez um doido no engenho, para ser levado 
para o asilo. O homem olhava a gente como se quisesse comer 
com os olhos, e fazia um esforço desesperado para soltar os 
braços amarrados de corda. De noite cortavam o coração os seus 
gritos agoniados. Quando saiu de manhã para o trem, fui olhá-lo. 
Estava manso, com um sorriso de menino na boca. 

— O diabo tinha saído do corpo — diziam. 
O meu pai devia ser assim também. Devia estar trancado 
num quarto de grades, com aqueles gritos de desespero, tratado 
como animal perigoso. 

— Eles vão para o céu — afirmavam dos doidos. — São 
inocentes como os anjos. 
Havia, porém, doidos que o eram por influência do diabo. 
Metiam-se com invocações, e o demônio tomava conta do corpo. 
O meu pai, sem dúvida, não seria destes. Seria inocente 
como os outros, e iria para o céu. E isto me consolava um bocado 
de sua situação. Mas os doidos começavam a tomar conta de mim 
de uma maneira absorvente. E comecei a ter medo de ficar doido 
também. No engenho todo mundo falava: 

— Fulano puxou ao pai, é a cara da mãe, tem o gênio da 
família. 
Quem sabe se eu não ficaria como meu pai? Punha-me triste 
com estes pensamentos sombrios. 

— É porque a namorada foi-se embora. 
A lembrança do homem amarrado de cordas, e com aqueles 
olhos de cachorro doente, machucava a minha tenra 
sensibilidade. Essas preocupações de doença, começadas na 
infância, iriam ser uma das torturas de minha adolescência. 

Um médico que veio ao engenho me examinou de meu 
puxado. Perguntou por tudo, de que morrera minha mãe, de que 
sofria meu pai. Disse então que era preciso um tratamento 
rigoroso para o meu caso, fazer uma série de injeções. E porque 
não se pudesse aplicar ali no engenho o seu tratamento, passaria 
uns remédios internos. 

Fiquei preso aos horários dos frascos de mezinhas e às 
dietas exageradas, O meu avô com cuidados. Ninguém brigava 
comigo. Certa ocasião o primo Silvino queria uma coisa que eu 
também desejava. Deram-me, e porque o meu primo protestasse: 

— Carlinho é doente, ninguém pode fazer raiva a ele. 
Isso aumentava o meu desengano, as minhas desconfianças 
de mim mesmo. Voltei-me para os canários e o carneiro. Eles não 
me falavam de doenças, não tinham medo de que eu morresse. 
Eram também as meditações solitárias e as conversas mudas 
com o meu íntimo que voltavam. Já não ia aos banhos de rio, 
ralhavam-me quando me viam ao sol, não podia ficar de noite na 
conversa na senzala. 

— Entra pra dentro, Carlinho. 
Era o que ouvia de todos os lados. A minha vida ia ficando 
como a dos meus canários prisioneiros, enquanto os meus primos 
se soltavam e um magnífico verão se abria em dias de festa de 
sol, em noites brancas de lua cheia. Não me queriam levar para 
parte alguma. Os moleques tinham medo de andar comigo. 

— Brigam com a gente — era como respondiam aos meus 
convites de passeios e brincadeiras. 
Via os meus primos vermelhos de sol, chupando tudo o que 
era fruta, com uma amargura que me consumia. Aqueles 


cuidados excessivos me transtornavam. Criava uma raiva bem 
viva a todos os que se opunham às minhas vontades. Até para a 
minha tia Maria, tão meiga para mim, tão cheia de ternura para o 
seu filho adotivo, me voltava com rancor. 

— Este menino está ficando diferente — pensava ela dos 
meus maus humores de contrariado. 
A minha amiga acertava. Só me consentiam sair à tardinha, 
nos meus passeios de carneiro. Mas que não voltasse com sereno. 
Eu me consolava das proibições nessas fugidas aos 
arredores do engenho. Os meninos dos moradores brincavam 
comigo sem receio, pois até lá não chegavam os zelos de minha 
gente. Na casa de Maria Pitu demorava-me tardes inteiras, com o 
carneirinho amarrado comendo folhas de cabreira, enquanto eu, 
solto com os camaradas, fazia tudo o que não me consentiam 
fazer no engenho. Eram três os meninos de Maria Pitu. E um 
doente, coitado, sempre sentado num caixão, e com uma cabeça 
enorme, pendendo. Não andava, não falava, a cabeça arriada para 
a frente, com o peso, olhando para o mundo com uns olhos 
queimados de vivacidade. Desde que nascera que era assim. A 
mãe tratava dele como de um bicho doméstico. Dava-lhe a comida 
com uma colher de pau, deixando-o esquecido dentro do caixão, 
no terreiro. Fazia-me horror essa criatura quase desumana. Mas 
os seus olhos pareciam mesmo de gente. Pretos e vivos, fitavam-
me com um interesse que me perturbava. Era, sem dúvida, por se 
tratar de coisa estranha da casa. Não tinha nome, não fora ainda 
batizado. Chamavam-no de Cabeção, e ele respondia com um riso 
de boca mole, que fazia nojo. Às vezes ficava com medo dele, com 
aqueles guinchos que lhe saíam da boca. Era a fome. E davam
lhe um pedaço de brote para roer. A mãe desejava-lhe a morte em 
todas as conversas. 

— Deus Nosso Senhor devia levar aquilo do mundo. Só dava 
trabalho, aquele aleijão. Seria até um alívio para o pobrezinho. 
Mas ele não morria, como se estivesse muito sólido e 
satisfeito daquela miséria da natureza. Voltava para casa 
pensando nele. Ouvira dizer que o pai morrera de beber. O filho 
nascera assim por causa da cachaça. 

Destes problemas de hereditariedade me aproximava com 
pavor. Também tinha um pai a quem podia puxar. E todos no 
engenho pensavam nisto, porque me cercavam de cautelas e 
precauções. E os frascos de remédio me enchiam a boca de 
amargo três vezes ao dia. O pai do Cabeção bebia como José 
Passarinho. E dera ao mundo um filho daquele. 

Os meus pensamentos vinham assim de fontes envenenadas 
de pessimismo. Menino, e pingando em cima da minha infância 
este ácido corrosivo que me secava a alegria de viver. E os meus 
parentes ainda mais me sacrificando, em vez de me deixarem no 
contato inocente com os meus pequenos prazeres. O diabo 
daquele doutor me fechara num inferno, ali, a dois passos de um 
paraíso de portas abertas. 

Os pensamentos ruins principiavam a fazer ninho no meu 
coração. Batiam asas por fora, mas vinham sempre terminar 
comigo, nas soluções que me davam, nos sonhos que me faziam 
sonhar, nos ódios a que me arrastavam. Por debaixo dos 
sapotizeiros, nas sombras amigas destas árvores, à espera dos 
canários, só pensava pensamentos maus. Criava assim dentro de 
mim uma pessoa que não era a minha. As reclusões forçadas, a 
que submetiam o menino que precisava de ar e de sol, iam 
perdendo mais a minha alma que salvando o meu corpo. 
Lembrava-me de Maria Clara com uma saudade cheia de desejos 
que nunca tivera. Misturava as minhas alegrias de antigamente a 
umas vontades perversas de posse. Os meus impulsos tinham 
mais anos que a minha idade. Ficava horas seguidas olhando, no 
curral, as vacas que mandavam de outros engenhos para 
reproduzirem com os zebus do meu avô, e as bestas vadias 
rinchando com os pais-d"égua pelo cercado. O sexo crescia em 
mim mais depressa do que as pernas e os braços. 

A negra Luísa fizera-se de comparsa das minhas 
depravações antecipadas. Ao contrário das outras, que nos 
respeitavam seriamente, ela seria uma espécie de anjo mau da 
minha infância. Ia me botar pra dormir, e enquanto ficávamos 
sozinhos no quarto, arrastava-me a coisas ignóbeis. Eu era um 
menino sem contato com o catecismo. Pouco sabia de rezas. E 
esta ausência perigosa de religião não me levava a temer os 
pecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiosos se 
refletiria em toda a minha vida, como uma desgraça. A moleca me 
iniciava, naquele verdor de idade, nas suas concupiscências de 
mulata incendiada de luxúria. Nem sei contar o que ela fazia 
comigo. Levava-me para os banhos da beira do rio, sujando a 
minha castidade de criança com os seus arrebatamentos de 
besta. A sombra negra do pecado se juntava aos meus desesperos 
de menino contrariado, para mais me isolar da alegria imensa 
que gritava por toda parte. 

O engenho, na festa das 12 horas da moagem. O povo 
miserável da bagaceira compunha um poema na servidão: o 


mestre-de-açúcar pedindo fogo para a boca da fornalha, o ruído 
compassado das talhadeiras no mel quente espumando. E no pé 
da moenda: 

Tomba cana, negro, 
eu já tombei. 
....................................... 
O engenho de Massangana 
faz três anos que não mói. 
Ainda ontem plantei cana, 
faz três anos que não mói. 


Os carros de boi gemendo nos eixos de pau-d"arco, os 
cambiteiros tangendo os burros com o chicote tinindo, e o "ô!" dos 
carreiros para os Labareda e os Medalha, mansinhos. Os 
moleques trepados nas raesas dos carros, aprendendo a carrear 
com os mestres carreiros. Tudo nessa labuta melódica do 
engenho moendo. 

Chegavam visitas do Pilar. Os meninos do capitão José 
Medeiros com farda do Colégio Diocesano. Já não vinham 
montados em carneiros, com vergonha da montaria de outrora. 
Contavam-me histórias do internato. E aqueles botões dourados 
de uniforme me enchiam de inveja. O meu avô conversava com o 
padre Severino e o dr. Samuel, o juiz municipal. Tratavam dos 
negócios políticos da vila, das eleições próximas, e do júri de 
algum protegido do coronel José Paulino. 

À noite, quando essa gente retornava, saíam atrás os 
moleques, com as latas de mel e os cabaços de caldo na cabeça. 
Mas tudo isso, que fazia um acontecimento, agora me parecia de 
longe, indiferente. Só pensava nos meus retiros lúbricos com o 
meu anjo mau, nas masturbações gostosas com a negra Luísa. E 
comecei a querer-lhe um bem esquisito. Um bem que me 
arrastava ao rabo de sua saia para onde ela ia. E não gostava dos 
negros com quem se metia em cochichos. O grande mal dos 
amorosos, a inquietação dos que se sentem enganados, um ciúme 
impertinente enfiava-se todo pelo meu coração. A negra, porém, 
me dizia que eu ainda tinha o cheiro de leite na boca, e dava 
rendez-vous aos cabras pelas alcovas cheirosas das fruteiras. 

Era um vício absorvente o meu pegadio com a negra Luísa. 
O sexo impunha-me essa escravidão abominável. 

O CASAMENTO DA TIA MARIA estava marcado para o São 
Pedro. Ela fora ao Recife comprar muita coisa do seu enxoval. 
Trouxera-me um velocípede e uma roupa bonita de marinheiro. 
Comprara com estes presentes a minha vontade de ir com ela 
também. 

No engenho, os preparativos da festa tomavam conta de 
todas as atividades. Os pintores já tinham terminado a limpeza 
da casa-grande. Tudo estava cheirando ao óleo novo das portas; 
os marceneiros envernizavam a mobília preta da sala; recendia o 
ouro-banana das molduras remoçadas. O mestre Galdino, 
cozinheiro, chegara da cidade para fazer o banquete. A negra 
Generosa ficava assim destronada de seu reino, e na cozinha não 
podiam mais entrar os meninos. O homem de chapéu branco e de 
avental preparava os fiambres, isolado de todo mundo. Parecia 
que a casa-grande perdera a metade de sua vida com a porta da 
cozinha fechada. O homem não queria conversas pelos bancos. 


Ninguém podia saber das coisas, por ali onde se publicavam 
todas as novidades do engenho. Nas cozinhas das casas-grandes 
vivem as brancas e as negras, nessas conversas como de iguais. 
As brancas deitadas, dando as cabeças para os cafunés e a cata 
dos piolhos. E as negras vão lhes contando as suas histórias, 
fazendo os seus enredos, pedindo os seus favores. Agora, para o 
casamento da tia Maria, o velho Galdino fechara a cozinha do 
Santa Rosa. 

Começavam a chegar as gentes dos outros engenhos para a 
grande festa de São Pedro: o povo da Aurora, da Fazendinha, do 
Jardim, do Cambão. Os carros de boi paravam no terreiro com 
uma festa de abraços. Vinham meninos, vinham negras, vinha o 
baú com o vestido novo para o dia. Chegava gente de cavalo, 
gente de trem, da Paraíba e do Recife. Mandaram buscar o piano 
de d. Neném do seu Lula. E quando chegou, na cabeça dos 
cabras, lembrei-me de repente do Recife. Lá eles cantavam. Corri 
então para ver a cantiga dos ganhadores, regulando os passos 
com a toada, para não desafinar: 

João Crioulo, 
Maria Mulata. 
João Crioulo, 
Maria Mulata, 
................................. 
Ai pisa-pilão, 
pilão gonguê. 
Ai pisa-pilão, 
pilão gonguê. 



E na beira dos rios começava a matança dos porcos e dos 
carneiros. Fui ver os sacrifícios. Iam matar também o meu 
carneiro. Dar-me-iam outro, mas o Jasmim estava rebolando de 
gordo, bom mesmo para o talho. Os porcos gemiam na ponta da 
faca de Zé Guedes, e um sangue escuro corria em arco do 
pescoço furado. 

— Menino não pode ver estas coisas. Vira assassino. 
E o bicho ficava com o olho duro, olhando para a gente. 
O meu pobre Jasmim iria para a faca. Estava debaixo dos 
marizeiros esperando a hora da morte. Comia ainda o capim do 
chão, numa inocência que me tocou. Não sabia de nada. Olhei 
para o meu companheiro como para meu amigo condenado à 
forca. Zé Guedes com a maceta na mão pegou-o pelo cabresto. 
Sacudiu-lhe o cacete na cabeça, que o deixou estendido, 
arquejando. Amarrou o meu Jasmim pelos pés e dependurou-o de 
cabeça para baixo. Depois meteu-lhe a faca de ponta na garganta. 
Nem um gemido do pobrezinho. Calado, com o sangue correndo e 
os olhos abertos, bem vivos. Duas grandes lágrimas minavam 
naquele olhar comprido de sofrimento. E começaram a tirar o 
couro, com o quicé chiando e a carne branca aparecendo. 

— É gordura muita. 
Saí da matança com a alma doente, e teria chorado muito se 
não fosse o alvoroço do povo na casa-grande. As negras trepadas, 
limpando os vidros das rótulas. As visitas em conversas pelos 
quartos. E a pândega dos homens pela calçada. As risadas e as 
histórias contadas para fazer graça. Os senhores de engenho da 
redondeza, de meia e chinela no pé, falavam de safras, de preço 
de açúcar, de bois de carro, de inverno, de plantações de cana. Na 
casa-grande do Santa Rosa, não havia mais cômodo para tanta 
gente. Armavam redes pela casa de farinha e no sobradinho do 
engenho. E ainda chegariam convidados no dia do casamento. O 
meu avô ficava em palestra com os mais velhos. Os perus-de-roda 
e os capões gordos morriam aos magotes na cozinha. Vinha um 
caixão de gelo e outro de frutas estrangeiras, da Paraíba. A 
música da polícia estaria ali no trem das dez. Pelo alpendre da 
casa-grande só se via gente falando. Os moleques a cavalo, em 
osso, levando e trazendo recados do Pilar. O vestido da noiva 
chegaria de tarde, do Recife. O mestre Galdino não deixava 
ninguém na cozinha. Os moradores que apareciam iam ficando 
sentados pelas pontas da calçada, escutando tudo de boca 
aberta. Lica da Ponte trouxera uma porção de cravos para a 
noiva. A velha Sinhazinha dividia com os outros o seu prestígio de 
dona. Todo mundo mandava nas arrumações. E havia três e 
quatro mesas para o almoço e para o jantar. Esperava-se o noivo 
com o pessoal do Gameleira no outro dia de manhã. E de manhã 
chegaram, esquipando na estrada. Correu todo mundo para ver 
chegar. E foi uma gritaria de recepção. Levaram para o quarto de 
cortinado, e ele também ficou de meia e chinela, na conversa dos 
outros. Tia Maria, nem pude falar com ela. As primas do 
Maravalha estavam no seu quarto preparando a noiva para a 
tardinha. Os craveiros da horta, limpos. Uma "bem-casada" 
preparava o ramo da noiva. E a hora ia chegando. O padre 
Severino já estava lá com o juiz. A tia Maria toda de branco, bem 
triste, olhando para o chão. A música da Paraíba tocava no 
alpendre. O noivo, contente, respondendo às pilhérias dos 
rapazes. O meu avô, de preto, com o seu correntão de ouro no 
colete, e a velha Sinhazinha ringindo, na seda do vestido 
comprado feito, no Recife. A casa estava cheia de gente. Era um 
zunzum por toda parte. Buliam comigo: 

— Vai ficar sozinho, hein? Quem vai tomar conta dele agora 
é a velha Sinhazinha. 
Não quis ver o casamento. Corri chorando para a minha 
cama. Tiniam os pratos na sala de jantar. Era o banquete. O dr. 
Jurema fazia um discurso aos noivos. Bateram no copo quando 
ele se levantou. A tia Maria, enfiada. Nem olhava para ninguém. 
Os senhores de engenho embevecidos com o discurso do 
promotor. Era um elogio ao meu avô, que nem ouvia nada, 
pensando na filha. Depois veio a segunda, a terceira, a quarta e a 
quinta mesa. E o baile de arromba na sala de visitas. Quem 
marcava a quadrilha era o prof. José Vicente, do Pilar. Os noivos 
sentados no sofá, no centro da sala. E o baile rolando. 

Fui dormir. Minha tia Maria me beijou chorando. E de 
manhã, quando me acordei, ainda a música tocava para a dança. 
Os noivos iriam no cabriolé do seu Lula. Já estavam preparados 
para a partida. Maria Menina dava os seus adeuses com os olhos 
correndo lágrimas. Abraçava as negras, que soluçavam de pena. 
E me beijou, me abraçou não sei quantas vezes, enquanto eu 
chorava num pranto desesperado. O cabriolé saía tinindo as 
campainhas de seus arreios. E pela estrada molhada das chuvas 
de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia. No 
terreiro ainda fumaçava o resto da fogueira da noite. Depois 
selaram os cavalos para as visitas que se iam. Os de longe, mais 
cedo. Outros ficavam ainda para o almoço. Os carros de boi 
saíam carregados de gente. 


No outro dia amanheceu chovendo, e o Santa Rosa a coisa 
mais triste do mundo. Tudo vazio para mim, tudo oco, sem os 
cuidados, os beijos e as cavilações da minha tia Maria. 

A TIA SINHAZINHA me chamou para perto dela, e passou a 
mão pela cabeça, me agradando. Era a primeira vez que eu sentia 
um afago da velha. 

— Você, no mês que entra, vai para o colégio. 
Desde que a minha tia Maria se fora que me falavam do 
colégio: 

— Ele não vai sentir muito, porque está se aprontando para 
o colégio. 
E preparavam meu enxoval, faziam camisas de homem para 
mim, e calças compridas, e ceroulas. Tinha a mala nova cheia de 
roupa branca, para o internato. Comecei então a desviar as 
minhas lágrimas, pensando no tempo de colégio que viria. Não ia 
para ali com medo. Pelo contrário: vivia a desejar o dia de minha 
partida. Os primos tinham ido embora, e chovia todos os dias. E 
os dias de chuva me deixavam preso com os meus pensamentos. 

O pé-d"água vinha zunindo nos cajueiros. Descia da mata 
numa carreira rumorosa, e roncava ao longe como trem na linha. 

— Tira o feijão do sol! Empurra o balcão de açúcar! 
Os moleques corriam para o terreiro coberto de ramas de 
mulatinho secando. A chuva chegava com pingos de furar o chão 
e chovia dia e noite sem parar. As primeiras chuvas do ano 
faziam uma festa no engenho. O tempo se armava com nuvens 
pesadas, fazia um calor medonho. 

— Vamos ter muita água! 

O meu avô ficava pelo alpendre a olhar o céu, batendo com a 
vara de jucá pelas calçadas. Era a sua grande alegria: a bátega 
d"água amolecendo o barro duro dos partidos, a enverdecer a 
folha amarela das canas novas. 

Nas primeiras pancadas do inverno, os cabras deixavam o 
eito para tomar uma bicada na destilação. Vinham gritando de 
contentes, numa alegria estrepitosa de bichos. Mas isto somente 
nas primeiras chuvas. Depois agüentavam nas costas o 
aguaceiro, tomando o seu banho de chuvisco de 12 horas. Pela 
estrada passavam os cargueiros metidos em capotes, no passo 
moroso do cavalo. Paco, paco, paco, paco — lá iam espanando a 
água com os cascos. Chegavam os moradores com as calças 
arregaçadas, pedindo semente de algodão para o roçado. E a 
chuva caindo sem cessar. 

Ficava a olhar os riachos descendo pelos altos e a estrada 
que parecia um rio de lado a lado. A casa-grande, escura como se 
fosse a boca da noite. Acendiam os candeeiros mais cedo. E a 
cozinha melada de lama, da gente de pés no chão que entrava por 
lá. José Felismino chegava de noite, respondendo às perguntas de 
meu avô: 

— A terra molhou mais de um palmo. Tirou-se quatro 
cinqüentas na planta do roçado. Acabou-se o partido de baixo. O 
inverno deste ano vai ser pesado. O Crumataú já desceu com 
muita água. Invernão. 
Os dias ficavam compridos. Não se tinha por onde ir. Eu 
dava para olhar a chuva, que era a mesma coisa sempre, 
engrossando e afinando numa intermitência monótona e 
impertinente. 


A tardinha os cabras do eito chegavam, pingando da cabeça 
aos pés. Vinham com as canelas meladas de lama e as mãos 
enregeladas de frio. O chapéu de palha pesado de água, 
gotejando. Mas indiferentes ao tempo. Parecia que estavam 
debaixo de bons capotes de lã. Levavam bacalhau para a mulher 
e os filhos, e iam dormir satisfeitos, como se os esperasse o 
quente gostoso de uma cama de rico. Dentro da casa deles, a 
chuva de vento amolecia o chão de barro, fazendo riachos da sala 
à cozinha. Mas os sacos de farinha-do-reino eram os edredões 
das suas camas de marmeleiro, onde se encolhiam para sonhar e 
fazer os filhos, bem satisfeitos. Iam com a chuva nas costas para 
o serviço e voltavam com a chuva nas costas para a casa. 
Curavam as doenças com a água fria do céu. Com pouco mais, 
porém, teriam o milho verde e o macaça maduro para a fartura da 
barriga cheia. 
Estes dias de chuva, agora que a minha tia se fora, me 
faziam mais triste, mais íntimo comigo mesmo. Acordava de 
manhã com a chuva correndo na goteira e nem um sinal de 
pássaro no gameleiro. Estirava-me na cama, pensando na vida. 
Todos me diziam que eu era um atrasado. Com 12 anos sem 
saber nada. Havia meninos da minha idade que fazendo as 
contas e sabendo as operações. Só mesmo no colégio. Sabia 
ruindades, puxara demais pelo meu sexo, era um menino 
prodígio da porcaria. E ali, sozinho, no quarto, os pensamentos 
maus conduziam-me às agradáveis masturbações. A negra Luísa 
deixara-me, andava de barriga empinada, com as dificuldades e 
os medos da primeira cria. Estava prenha e não sabia de quem. 
Diziam que era de todos os cambiteiros do Santa-Rosa. 


Olhava muito para um são Luís Gonzaga que a minha tia 
Maria deixara na parede do quarto. Tinha vergonha dos meus 
pecados na frente do santo rapaz. Arrependia-me sinceramente 
daquelas minhas lubricidades de pequena besta assanhada. E no 
outro dia, enquanto a chuva derramava-se lá por fora, voltavam-
me outra vez os pensamentos de diabo. Sujava os olhos do santo 
com os meus atos imundos de sem-vergonha. 

Num dia a chuva parava, e o sol, vingando-se das nuvens 
escuras que lhe taparam o rosto pegando fogo, brilhava em cima 
dos matos, como nunca. As tanajuras aproveitavam a trégua para 
uma passeata por toda parte. Zuniam no pé do ouvido da gente e 
depois iam arrastar a bunda gorda pelo chão. Mane Firmino 
comia, torradas, com farinha seca, as tanajuras que pegava. 

— Era melhor do que galinha — dizia ele. 
Estes dias de estiagem acabavam com o mofo da umidade. 
Botavam feijão de rama para secar no terreiro. E abriam os baús 
de roupas pelas calçadas. Ia ver o milho novo apontando no 
roçado e os bezerrinhos nascidos saltando às doidas pelo curral. 
As mães ficavam bravas nos primeiros dias do parto, enganjentas 
dos filhos que tinham. Um sol criador ajudava a terra nos seus 
trabalhos de mãe. E, se demorasse, as lagartas caíam em cima 
das folhas das plantações, deixando rente com o chão. Pedia-se 
então uma pancada d"água de alagar. E começava a chover: os 
pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado 
gordo e as vacas parindo. 

O ENGENHO estava moendo quando se ouviu um rumor de 
pancada na boca da fornalha. Eram dois cabras brigando de 
cacete e faca de ponta: Mané Salvino e o negro José Gonçalo. O 
de arma na mão avançava para o que sacudia o cacete pequeno, 
que chega tinia na cabeça de escapole do outro. O engenho todo 
correu para ver a briga. Os cabras não atendiam aos gritos do 
velho José Paulino. 

— Deixem os negros se estragar. 
Já estavam na bagaceira grudados como cachorros, num 
vaivém de pancadas e de golpes. Nisto o negro Gonçalo deu um 
grito e tombou para um lado com a mão na barriga. E Mané 
Salvino em disparada pelo cercado. 

— Pega o cabra! Pega o cabra! 
Corria gente de todos os lados atrás do assassino. Mestre 
Fausto sacudiu um tijolo e ele caiu de bruços por cima da cerca 
de arame. 

Já estava amarrado de corda. E o outro estendido com as 
duas facadas mortais. Pedia água olhando para a gente com um 
olho amortecido. E nem dava um gemido: 

— Quero água, quero água! — com uma fala rouca de tísico, 
arrastando a voz como um bêbado. 
— Leve o homem para o sobradinho. 
Mas quando pegaram nele, os braços caíram bambos. 
Estava nas últimas. 

— Moleque bom, ordeiro — diziam do ofendido. 
Mais tarde chegavam a mulher e os filhos num berreiro 
doloroso. Era um choro alto e pungente, o da negra e dos 
moleques pequenos. Cinco filhos miúdos e um de peito ainda. 


Botaram o defunto na rede. Ia para o corpo de delito no 
Pilar. A família saiu atrás, enchendo aquela boa tranqüilidade 
rural de uns lamentos de canto fúnebre. 

O outro estava na casa de bagaço, apanhando: 

— Valei-me, minha Nossa Senhora! Valei-me, minha Nossa 
Senhora! 
E o cipó-de-boi roncando nas costas — lápote! lápote! E o 
grito de misericórdia do negro no chicote. 

— Vá dizer ao seu Juca que eu não quero isto aqui. 
Mande o cabra pra vila. Entregue à Justiça. Lá, façam dele 
o que quiserem; aqui, não. Estas surras não adiantam nada. 
O cabra vinha com a cabeça lascada, gotejando. A camisa 
toda suja de sangue, com as cordas amarrando os braços. Não 
olhava para ninguém. 

— Diabo malvado! 
— O negro me afrontou, seu coronel. 
Quando saiu para o Pilar, foi com um bando atrás. Muitos já 
estavam do lado dele. 

— Cadeia se fez foi pra homem. 
A mulher e os filhos choravam também, pedindo proteção ao 
senhor de engenho. 
O defunto deixara as tábuas do sobradinho encardidas de 
sangue. Rasparam com bucha no outro dia, mas a mancha ficou. 
Sangue de gente não larga. Sempre que estávamos pelo engenho, 
não pisávamos por cima daquilo, com medo. Espalhavam que 
enquanto aquele sangue não se sumisse o defunto ficaria 
aparecendo por ali. Havia gente que vira o negro deitado pelos 
picadeiros. E as visagens começavam a aparecer. Uns tinham 


encontrado o engenho moendo no seco. Outros, carros de boi 
andando sem sair do lugar. E o negro Gonçalo tombando cana. 
Estas histórias chegavam na cozinha, onde ninguém duvidava. O 
pé de marizeiro andava de um lado para outro do rio. E todo dia 
havia um sonho de botija para contar. Não se falava mais de 
lobisomem. As almas do outro mundo tomavam conta do medo do 
povo do Santa Rosa. 

TINHA UNS 12 ANOS quando conheci uma mulher, como 
homem. Andava atrás dela, beirando a sua tapera de palha, 
numa ânsia misturada de medo e de vergonha. Zefa Cajá era a 
grande mundana dos cabras do eito. Não me queria. 

— Vá se criar, menino enxerido. 
Mas eu ficava por perto, conversando com ela, olhando para 
a mulata com vontade mesmo de fazer coisa ruim. Ficou comigo 
uma porção de vezes. Levava as coisas do engenho para ela — 
pedaços de carne, queijo roubado do armário; dava-lhe o dinheiro 
que o meu avô deixava por cima das mesas. Ela me acariciava 
com uma voracidade animal de amor: dizia que eu tinha gosto de 
leite na boca e me queria comer como uma fruta de vez. Andava 
magro. 

— Este menino está com vício. 
Era mesmo um vício visguento aquele dos afagos de Zefa 
Cajá. Saía do café para a casa dela, ia depois do almoço e depois 
do jantar. Foram dizer ao meu avô: 

— O menino não sai da casa da rapariga. 
O velho José Paulino então passou-me uns gritos: 
— Se não fosse pra semana pro colégio dava-lhe uma surra. 

Mas não fez o barulho que eu esperava. Para estas coisas o 
velho olhava por cima. A sua vida também fora cheia de 
irregularidades dessa natureza. Quando brigou com o tio Juca 
por causa da mulata Maria Pia, ouvi a negra Generosa dizendo na 
cozinha: 

— Quem fala! Quando era mais moço, parecia um pai-d"égua 
atrás das negras. O seu Juca teve a quem puxar. 
Mas eu tinha que pagar o meu tributo antecipado ao amor. 
Apanhei doença-do-mundo. Escondi muitos dias do povo da casa-
grande. Ensinaram-me remédios que eu tomava em segredo na 
beira do rio. Dormia no sereno a goma com açúcar para os meus 
males. Não melhorava, tinha medo de urinar com as dores 
medonhas. E por fim souberam na casa-grande. Foi um 
escândalo: 

— Daquele tamanho, e com gálico! 
Botaram Zefa Cajá na cadeia, e eu, desconfiado, com 
vergonha de olhar o povo. Fiquei um caso de todos os 
comentários, de risadas. O meu tio Juca tomou conta do 
tratamento. Onde eu chegava, lá vinham com indiretas: 

— Menino danado! 
E comecei a envaidecer-me com a minha doença. Abria as 
pernas, exagerando-me no andar. Era uma glória para mim essa 
carga de bacilos que o amor deixara pelo meu corpo imberbe. 
Mostravam-me às visitas masculinas como um espécime de 
virilidade adiantada. Os senhores de engenho tomavam deboche 
de mim, dando-me confiança nas suas conversas. Perguntavam 
pela Zefa Cajá, chamavam-na de professora. 

— Puxou ao avô! 

E riam-se, como se fosse uma coisa inocente este libertino 
de 12 anos. 

O moleque Ricardo pegara na mesma fonte a sua doença de 
homem. Estava entrevado na rede, sem dar um passo, Eu tinha 
medo de ficar como ele. E me precavia de tudo, prendendo-me 
aos remédios, em escravidão. O meu companheiro pagara mais 
caro de que eu o seu imposto de masculinidade. Curava-se com 
os remédios de casa: as garrafas de raiz de mato com aguardente 
de cana. 

— A minha foi pior do que a sua: é de cabresto. 
Parecia um orgulho da ruindade de cada um. O tio Juca não 
dava tréguas. Levava-me aos banhos para o tratamento rigoroso 
de seringa. Bebia refresco de pega-pinto em jejum, chá de 
urinana de manhã à noite. E os diuréticos me faziam vergonha: 

— Mijou na cama! 
E era um debique de todo mundo. 
— Isto é lá homem! — dizia o velho José Paulino, quando 
soube da minha fraqueza. 
A negra França lavava os panos da minha doença. Batia no 
rio as minhas imundícies purgadas. 
Com um mês mais, já estaria em ponto de ir para o colégio. 
A doença-do-mundo me operara uma transformação. Via-me 
mais alguma coisa que um menino; e mesmo já me olhavam 
diferente. Já não tinham para mim as condescendências que se 
reservam às crianças. As negras faziam-me de homem. Não 
paravam as conversas quando eu chegava. Enxeriam-se. 
Procurava as lavadeiras de roupa pela beira do rio. Ficavam 
quase nuas, batendo os panos nas pedras. Tomava banho 


despido junto delas, olhando as suas partes relaxadamente 
descobertas. 

— Sai daí, menino safado! 
Mas riam-se, gostando da curiosidade. 
Agora o engenho oferecia-me o amor por toda a parte: na 
senzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os moleques 
levavam-me para as visitas por debaixo dos matos, esperando a 
vez de cada um. Na casa-grande os homens achavam graça de 
tanta libertinagem. 

— Menino vadio! Só pai-de-chiqueiro! 
Eu ficava a pensar na tia Maria, se ela soubesse de tudo 
aquilo. Longe de mim, parecia um vulto de uma outra vida, a 
minha tia. Era um outro o menino que ela criara com tanto 
dengue. O sexo vestira calças compridas no seu Carlinhos. E o 
coração de um menino depravado só batia ao compasso de suas 
depravações. Estava até esquecendo a doce ternura de minha 
segunda mãe. Corria os campos como um cachorro no cio, 
esfregando a minha lubricidade por todos os cantos. Os 
moradores se queixavam; 

— Ninguém pode deixar as meninas em casa com o seu 
Carlinho. 
João Rouco deu-me uma carreira por causa do filho 
pequeno, que eu quis pegar. 
Em junho iria para o colégio. Estava marcado o dia de 
minha partida. 

— Lá ele endireita. 
Recorriam ao colégio como a uma casa de correção. 
Abandonavam-se em desleixes para com os filhos, pensando 


corrigi-los no castigo dos internatos. E não se importavam com a 
infância, com os anos mais perigosos da vida. Em junho estaria 
no meu sanatório. Ia entregar aos padres e aos mestres uma alma 
onde a luxúria cavara galerias perigosas. Perdera a inocência, 
perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo 
maior que os outros. Olhava o mundo através dos meus desejos e 
da minha carne. Tinha sentidos que desejavam as botas do 
Polegar para as suas viagens. 

NO DIA SEGUINTE tomaria o trem para o colégio. O meu tio 
Juca me levaria para os padres, deixando carta branca a meu 
respeito. 

Acordei com os pássaros cantando no gameleiro. Tocavam 
dobrados ao meu bota-fora. E uma saudade antecipada do 
engenho me pegou em cima da cama. Vieram-me acordar. Há 
tempo que estava de olhos abertos na companhia de meus 
pensamentos. Uma outra vida ia começar para mim. 

— Colégio amansa menino! 
Em mim havia muita coisa precisando de freios e de chibata. 
As negras diziam que eu tinha o mal dentro. A tia Sinhazinha 
falava dos meus atrasos. Os homens riam-se das intemperanças 
dos meus 12 anos. 

— Menino safado, menino atrasado, menino vadio! 
O meu puxado entrava e saía sem ninguém dar por ele. Ia 
ficando bom com a idade. E nada de Deus por dentro de mim. 
Era indiferente aos castigos do céu. Os lobisomens faziam-me 
mais medo. A minha religião não conhecia os pecados e as 
penitências. O pavor do inferno, eu confundia com os castigos 
dos contos de Trancoso. Tudo entrava por uma perna de pinto e 
saía por uma perna de pato. Ia para a cama sem um pelo-sinal e 
acordava sem uma ave-maria. O meu são Luís Gonzaga devia 
olhar com nojo para o seu irmão afundado na lama. 

Agora o colégio iria consertar o desmantelo desta alma 
descida demais para a terra. Iriam podar os galhos de uma 
árvore, para que os seus brotos crescessem para cima. 

— Quando voltar do colégio, vem outro, nem parece o 
mesmo. 
Todo mundo acreditava nisto. Este outro, de que tanto 
falavam, seria o sonho da minha mãe. O Carlinhos que ela 
desejava ter como filho. Esta lembrança me animava para a vida 
nova. 

— Vá se vestir. 
A minha mala seguira na cabeça do Zé Guedes para a 
estação. Iríamos depois a cavalo. E nesta viagem, beirando os 
partidos de cana, passando pela porta dos moradores, a minha 
saudade se demorava por toda parte. 

— O seu Carlinhos vai pro colégio. 
E vinham os moleques olhar para mim. O tio Juca na frente, 
e eu ronceiro, sentindo em cada passo do Coringa o engenho que 
se ficava para trás. 

Na porta de Zefa Cajá só se viam uns panos estendidos no 
sol. A casa de portas fechadas, e mulheres de pano na cabeça, no 
roçado de perto. Um sol de nove horas enxugava a terra ensopada 
da chuva da noite. A enxada limpava o mato bonzinho de cortar. 
Os pés do povo deixavam o seu tamanho no barro mole da 
estrada. Lá vinha um moleque com uma carga de milho, com a 
folha verde arrastando no chão. Ia para a canjica e as pamonhas 
da negra Generosa. 
O engenho dava-me assim as suas despedidas, como os 
namorados, fazendo os derradeiros agrados. 

Na estação estava o povo de Angico esperando o trem. 

— Vai pro colégio, já estava em tempo. 
As mulheres me achavam parecido com a Clarisse. Os 
homens conversavam com o tio Juca. Já sabiam da minha 
doença, e me chamavam para as perguntas inconvenientes. 

O trem pedira licença de Itabaiana, partira do Pilar. A gente 
o via se enroscando na curva do Engenho Novo. Depois, se 
sumindo no corte, roncava perto. O poste de sinal caía. E 
chegava, apertando os passos, na plataforma. 
— Fique deste lado para ver o pessoal do engenho. 
E o trem saiu, correndo por entre os canaviais e os roçados 
de algodão do meu avô. 
Chegava gente na porta para ver o horário em disparada. O 
povo da Lagoa Preta no alpendre, olhando. O homem do correio 
sacudia a correspondência na porta. E o trem entrava pelos 
cortes e saía nos aterros da várzea, separando a água das lagoas 
improvisadas no inverno. 

Longe via o bueiro comprido do Oiteiro e o corta-vento 
trepado no sobrado. O gado pastava pela beira da linha. 

— Zebu bonito! 
Os bois levantavam a cabeça da rama gostosa para ver 
também o trem correndo. Com pouco mais apitou na rampa do 
Caboclo. Lá estava o Santa Rosa com o bueiro branco e a casa



grande rodeada de pilares. Os moleques estavam na beira da 
linha para me ver passar. 

— Adeus, adeus, adeus! — com as mãos para mim. 
E eu com o lenço, sacudindo. Os olhos se encheram de 
lágrimas. Cortava-me a alma a saudade do meu engenho. 
E o trem corria para o Entroncamento. Vinha Santana, 
Maraú no alto. Maçangana com o coronel Trombone na porta. A 
máquina tomava água. O trem de Guarabira chegava, mais curto 
que o nosso. Apareciam passageiros de guarda-pó para conversar 
com os outros do nosso carro. 

Todo esse movimento me vencia a saudade dos meus 
campos, dos meus pastos. Queriam me endireitar, fazer de mim 
um homem instruído. Quando saí de casa, o velho José Paulino 
me disse: 

— Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se 
arrepende. 
Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo 
sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do 
que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompéia, entrava no 
internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando 
a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nos 
anos, que ia atravessar as portas do meu colégio. 

Menino perdido, menino de engenho.