URUPÊS
MONTEIRO LOBATO
Os faroleiros
-Navio?
Dava azo à dúvida uma luz vermelha a piscar na escuridão da noite.
Escuridão, não direi de breu, que não é o
breu de sobejo escuro para referir um negror daqueles. De
cego de nascença, vá.
Céu e mar fundia-os um só carvão, sem fresta nem
pique além da pinta vermelha que, súbito, se fez amarela.
-Lá mudou de cor. E farol.
E, como era farol, a conversa recaiu sobre faróis.
Eduardo interpelou-me de chofre sobre a idéia que eu
deles fazia.
-A idéia de toda a gente, ora essa!
-Quer dizer, uma idéia falsa. "Toda a gente" é um
monstro com orelhas d"asno e miolos de macaco, incapaz
duma idéia sensata sobre o que quer que seja. Tens na
cabeça, respeito a farol, uma idéia de rua recebida do vulgo
e nunca recurihada na matriz das impressões pessoais. Erro.
-Confesso-me capaz de abrir a boca a um auditório de
casaca, se me desse na telha discursar sobre o tema; mas
não afianço que o farol descrito venha a parecer-se com
algum...
-Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal
conferência, ouvida por um faroleiro, poria o
homem de olho parvo, a dizer como o outro: Se percebo,
sebo!
-Acredito. Mas perceberia melhor uma tua? -retorqui abespinhado.
-É de crer. Já vivi uma inesquecível temporada no
farol dos Albatrozes e falaria de cadeira.
-Viveste em farol?!... -exclamei com espanto.
-E lá fui comparsa numa tragédia noturna de arrepiar
os cabelos. O escuro desta noite evoca-me o tremendo drama...
Estávamos ambos de bruços na amurada do Orion, em
hora propícia ao esbagoar dum dramalhão inédito. Esporeado na
curiosidade, provoquei-o.
-Vamos ao caso, que estes negrumes clamam por espectros que os povoem. É
calamidade à Shakespeare ou à
Ibsen?
-Assina o meu drama um nome maior que o de Shakespeare...
-? ? ?
-... a Vida, meu caro, a grande mestra dos shakespeares maiores e
menores.
Eduardo começou do princípio.
-O farol é um romance. Um romance iniciado na
antiguidade com as fogueiras armadas nos promontórios
para norteio das embarcações de remo e continuado séculos
em fora até nossos possantes holofotes elétricos. Enquanto
subsistir no mundo o homem, o romance "Farol" não conhecerá epílogo.
Monótono como as calmarias, embrecham-se nele, a espaços, capítulos de
tragédia e loucura -pungentes gravuras de Doré quebrando a monotonia de
um
diário de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita meteu-se no
farol aos vinte e três anos. É raro isso.
-Quem é Gerebita?
-Sabê-lo-ás em tempo. É raro isso porque no geral só
se metem nas torres homens maduros, quarentões batidos
pela vida e descrentes das suas ilusões. Deixar a terra na
quadra verdolenga dos vinte anos é apavorante. A terra!...
Nós mal damos tento da nossa profunda adaptação ao meio
terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulício
humano, a cidade, os campos, a mulher, as árvores... Conhecem os
faroleiros melhor do que ninguém o valor dessas teias. Enlurados num
bloco de pedra, tudo quanto para
nós é sensação de todos os instantes, neles é saudade e
desejo. Cessam os ouvidos de ouvir a música da terra, rumorejo de
arvoredo, vozes amigas, barulho de rua, as mil
e uma notas duma polifonia que nós sabemos que o é, e
encantadora, unicamente quando a segregação prolongada
nos ensina a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever
as imagens que desde a meninice lhes são habituais. Para
os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o marulho das
ondas às chicotadas no enrocamento da torre; e para a vista,
a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes
únicas, as velas que passam de largo, donairosas como garças, ou os
transatlânticos penachados de fumo. Figura a
vida de um homem arrancado à querência e assim posto,
qual triste galé, dentro duma torre de pedra, grudada como
craca a um ilhéu. Terá poesia de longe; de perto é alucinante.
-Mas o Gerebita...
-Uma leitura de Kipling despertara-me a curiosidade
de conhecer um farol por dentro.
-O Perturbador do Tráfego...
-Parabéns pela argúcia. Foi justamente a história do
Dowse o ponto inicial do meu drama. Esse desejo incubou-se-me cá dentro à
espera d"ocasião para brotar.
Certo dia fui espairecer ao cais -e lá estava, de mãos
às costas, a seguir o vôo dos joão-grandes e a notar a gama
dos verdes luzentes que à sombra dos barcos ondeia na
água represada dos portos, quando uma lancha abicou, e vi
descer um homem de feições duras e pele encorreada. Ao
passar por um magote de catraeiros, um deles chasqueou
em tom insinuativo:
-"Gerebita, como vai a Maria Rita?"
O desembarcadiço rosnou um palavrão de grosso calibre, e seguiu caminho,
de sobrecenho carregado.
Interessou-me aquele tipo.
-"Quem é?", indaguei.
-"Pois quem há de ser senão o faroleiro dos Albatrozes? Não vê a
lancha?"
De fato, a lancha era do farol. A velha idéia deu-me
cotoveladas: é hora! Fui-lhe no encalço.
-"Sr. Gerebita..."
O homem entreparou, como admirado de ouvir-se nomear por boca
desconhecida. Emparelhei-me com ele e,
enquanto andávamos, fui-lhe expondo os meus projetos.
-"Não pode ser", respondeu; "o regulamento proíbe
sapos na torre. Só com ordem superior."
Ora, eu tenho corrido mundo, sei que marosca é essa de
ordens superiores. Meti a mão no bolso e cochichei-lhe o
argumento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes, mas
corrompeu-se mais depressa do que esperei. Guardou o
dinheiro e disse:
-"Procure o Dunga, patrão da Gaivota Branca, terceiro
armazém. Diga-lhe que já falou comigo. De quinta-feira em
diante. E bico, veja lá!"
Prometi-lho caladíssimo, e tornei ao cais à cata do Dunga. Que sim -foi
a resposta do catraeiro, ilhéu palavroso,
logo que expus o negócio -" já fizera isso certa vez a
"outro maluco" e sabia prender a língua para não atanazar
a vida aos amigos. E como me informasse do faroleiro:
-"É o Gerebita, d"apelido ganho no Purus, onde serviu como grumete. Ao
depois se meteu na lanterna, p"r"amor d"amores, o alarve, como se
faltassem elas por aí, e
bem catitas. Mulheres! A mim é que não me empecem, não,
as songuirihas. O demo que as tolha que eu...
E foi pelas mulheres além, a dar de rijo, com razões nem
melhores nem piores que as de Schopenhauer.
No dia aprazado, antemanhã, a Gaivota largou de rumo
ao farol. Saltei num rude atracadouro de difícil abordagem,
e encontrei o faroleiro ocupado em polir os metais da lanterna. Recebeu-
me de boa sombra, largando o esfregão para
fazer as honras da casa. Examinei tudo, dos alicerces ao
lanternim, e à hora do almoço já entendia de farol mais que
uma enciclopédia. Gerebita deu trela à língua e falou do
ofício com melancólica psicologia. Também contou sua vida
desde menino, a grumetagem no Purus, sua paixão pelo mar
e por fim a entrada para o farol aos vinte e três anos de idade.
-"Por que assim tão moço?"
-"Caprichos do coração, má sorte, coisas...", respondeu com ar triste; e
acrescentou após uma pausa, mudando
de tom:
-"Pois a vida é cá isto que vê. Boazinha, hein? Entretanto, boa ou má,
temos, os faroleiros, um orgulho: sem
nós, essa bicharada de ferro que passeia nas águas fumando seus dois,
seus três charutos..."
-"Lá vem um!" -interrompeu-se, fisgando com a
luneta uma fumaça remota.
-"Bandeira alemã... duas chaminés... rumo sul... Há de
ser um "Cap" -o Trafalgar, talvez. Seja lá que diabo for, vá
com Deus. Mas, como ia dizendo, sem os faroleiros a manobrarem a
"óptica", esses comedores de carvão haviam de
rachar à toinha aí pelos bancos de areia. Basta cair a cerração
e já se põem tontos, a urrar de medo pela boca das sereias,
que é mesmo um cortar a alma à gente. Porque então nem
farol nem caracol. É a cegueira. Navegam com a Morte no
leme. Fora disso, salva-os o foguinho lá de cima. Pouco antes
de minha entrada para aqui houve desgraça. Um cargueiro
da Bremen rachou o bico ali no Capelão... Quem é o Capelão? Ah! ah! ah! O
Capelão... Pois o Capelão é o raio da
terceira pedra a boreste. São três deste lado, a Menina, que é
a primeira, a Curutuba, que é a do meio. A criminosa é o
Capelão, que reponta mais ao largo e só mostra a coroa nas
grandes vazantes. Cá a bombordo ainda há duas, a Virgem
e a Maldita, onde bateu o cargueiro Rotterdam."
-"É aquela lisinha, acolá?"
-"Uma coitada que nem nome tem. É mansa, está
muito perto da terra, não faz mal a navio. Ali mora um
anequim (2), bichanca de tamanho do diabo, que gosta de
virar canoas. Mas, aqui para nós, moço, isso é embromação.
Peixe mora em todo o mar, não tem toca como bicho de
terra. É abusão de pescador. Quando há mar, não se enxerga nada por ali;
mas se a água é serena e vem yindo a
vazante, vai aparecendo um lombo de pedra lisa com jeito
de peixe. Passa um pescador atolambado, vê aquilo de longe. "É anequim! É
anequim!" e toca a safar, com o medão
n"alma. Se acontece embravecer a água, e dá temporal, e a
canoa vira: "Qu"é de Fulano?" Tá, tá, tá, foi o anequim! Toda
a gente pega, feito mulher velha. "Foi o anequim do farol!"
Ora aí está como são as coisas. há muito anequim e
tintureira (3) por aqui. Onde é mar sem cação? Mas dizer que
um tal mora aqui ou ali, isso é embroma."
E na sua pinturesca linguagem de marítimo, que às
vezes se tornava prodigiosamente técnica, narrou-me toda
a história daquelas paragens malditas. Falou de como, segundo a tradição,
se foram batizando os arrecifes; falou dos
crimes de cada um; das hecatombes periódicas de aves
noturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra os
vidros da lanterna, juncando o chão de corpinhos latejantes;
das medonhas tormentas nas quais o farol estremece como
a tiritar de pavor. De que não falou Gerebita naquele inesquecível dia?
-"E o ajudante? Tem-no cá?", perguntei.
O rosto do meu faroleiro mudou de expressão. Vi de
relance que eram inimigos.
-"É aquele estupor que lá pesca", disse, apontando da
janela um vulto imóvel, acocorado num penedo. "Está a
apanhar garoupinhas. É o Cabrea. Mau companheiro, mau
homem...
Entreparou. Percebi que mascava uma confidência difícil. Mas a
confidência denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e murmurou
como de si para si:
-"Está cá de pouco, e é o único homem no mundo que
não podia cá estar. Já reclamei do capitão do porto, já mostrei o perigo.
Mas, qual!..."
Estranha criatura, o homem! Insulados do mundo naquela frágua, ambos
náufragos da vida, o ódio os separava...
Não faltavam no farol, entretanto, acomodações para as
famílias dos seus guardiães. Por que não as tinham ali?
Seria um bocado de mundo a lenir as agruras do emparedamento. Interpelei-
o; Gerebita retrucou-me de modo enviesado.
-"Família não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho,
porque sou casado, e não tenho porque... Histórias! Estas
coisas de família é bom que fiquem com a gente."
Notei de novo que a pique duma revelação mascava o
segredo por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram. Sombras más
anuviaram-lhe a fisionomia. E mais torvo ainda me pareceu quando Cabrea
entrou, sobraçando
um balaio de pescado. Tipo de má cara, passou em direitura à cozinha sem
nos volver um olhar. Mal se sumiu, Gerebita exclamou: "Raio do diabo!" assentando
num caixote
expiatório um murro de fender pinho. Depois:
-"O mundo é tão grande, há tanta gente no mundo, e
cai-me aqui justamente o único ajudante que eu não podia
ter..."
-"Por quê?"
-"Por quê?... Porque... é um louco."
Entre o primeiro e o segundo "porquê" notei transição
radical. Dúbio o primeiro, o segundo afigurou-se-me resoluto, como
iluminado pelo clarão duma idéia brotada no
momento.
Desde esse dia nunca mais o faroleiro abandonou o
tema da loucura do outro. Demonstrava-ma de mil maneiras.
-"E aqui onde até os sãos perdem a tramontana",
argumentava ele, "um já assim rachado de telha aos três
por dois rebenta como bomba no fogo. Eu jogo que ele não
vara o mês. Não vê seus modos?"
Metade por sugestão, metade por observação leviana,
razoável me pareceu a profecia; e como sem cessar Gerebita
malhasse na mesma tecla, acabei por convencer-me de que
o casmurro ajudante era um fadado ao hospício, com pouco
tempo de equilíbrio nos miolos.
Um dia Gerebita abordou a questão nestes termos:
-"Quero que o senhor me resolva um caso. Estão dois
homens numa casa; de repente um enlouquece e rompe,
como cação esfomeado, para cima do outro. Deve o outro
deixar-se matar como carneiro ou tem o direito de atolar a
faca na garganta do bicho?"
Era por demais clara a consulta. Respondi como um
rábula positivo:
-"Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse, matá-lo seria um direito
natural de defesa -não havendo socorro à
mão. Matar para não morrer não é crime -mas isto só em
último caso, você compreende."
-"Compreendo, compreendo", respondeu-me distraidamente, como quem lá
segue os volteios duma idéia secreta; e depois de longa pausa: "Seja o
que Deus quiser murmurou entre si, suspirando e recaindo em cismas.
Deixei-me ficar à janela a ver cair a noite. Nada mais
triste do que as ave-marias no ermo. A treva espessava as
águas e absorvia no céu os derradeiros palores da luz. No
poente, um leque aluarado enrubescia nas varetas, com dedadas sangrentas
de nuvens a barrá-lo de listrões horizontais.
Triste...
A ardósia do mar; as primeiras estrelinhas entreluzindo
a medo; o marulho na pedra, tchá, tchá, compassado, eterno... A alma
confrangeu-se-me de angústia. Vi-me náufrago, retido para sempre num
navio de pedra, grudado como
desconforme craca na pedranceira da ilhota. E pela primeira vez na vida
senti profundas saudades dessa coisa sórdida, a mais reles de quantas
inventou a civilização -o
"café", com o seu tumulto, a sua poeira, o seu bafio a
tabaco e a sua freguesia habitual de vagabundíssimos "agentes de
negócios"...
Correram dias. Minto. No vazio daquele dessaborido
viver no ermo o tempo não corria -arrastava-se com a
lentidão da lesma por sobre chão liso e sem fim. Gerebita
tornara-se enfadonho. Não mais narrava pinturescos incidentes da sua vida
de marujo. Aferrado à idéia fixa da
loucura do Cabrea, só cuidava de demonstrar-me os seus
progressos. Fora desse tema sinistro, sua ocupação era seguir de olhos os
navios que repontavam ao largo, até vê-los
sumirem-se na curva do horizonte.
Velas, poucas alvejavam, tirante barquinhas de pescadores. Mas uma que
surgisse lá nos levava os olhos e a
imaginação. Como se casa bem com o mar o barco de vela!
E que sórdido baratão craquento é ao pé dele o navio a vapor!
Escunas, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres,
brigues, iates... O que lá vai passado de leveza e graça!...
Substituem-nas, às garças leves, os feios escaravelhos de
ferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros comedores de
carvão, bicharocos que mugem roncos de touro
enrouquecido.
Progresso amigo, tu és cômodo, és delicioso, mas feio...
Que fizeste da coisa linda que é a vela enfunada? Do barco
à antiga, onde ressoavam canções de maruja, e todo se
enleava de cordame, e trazia gajeiro na gávea, e lendas de
serpentes marinhas na boca dos marinheiros, e a Nossa
Senhora dos Navegantes em todas as almas, e o medo das
sereias em todas as imaginações?
Desfez-se a poesia do reino encantado de Anfitrite ao
ronco do Lusitânias, hotéis flutuantes com garçons em vez
de "lobos-do-mar", incaracterísticos, cosmopolitas, sem donaire, sem
capitães de suíças, pitorescos no falar como seiscentos milhões de
caravelas. O fumo da hulha sujou a aquarela maravilhosa que desde Hanon e
Ulisses vinha o veleiro
pintando sobre a tela oceânica...
-Se paras o caso dos loucos e te metes por intermezzos
líricos para uso de meninas olheirudas, vou dormir. Volta
ao farol, romanticão de má morte.
-Eu devia castigar o teu prosaísmo sonegando-te o
epílogo do meu drama, ó filho do "café" e do carvão!
-Conta, conta...
Certa tarde, Gerebita chamou minha atenção para o agravamento da loucura
de Cabrea, e aduziu várias provas
concludentes.
-"Queira Deus não seja hoje!..."
-"Tens medo?"
-"Medo? Eu? De Cabrea?"
Queria que visses a estranha expressão de ferocidade
que lhe endureceu o rosto!...
A conversa parou aí. Gerebita chupava cachimbadas
nervosas, fechado de sobrecenho como quem rumina uma
idéia fixa. Deixou-me, e logo em seguida subiu. Como anoitecesse,
recolhi-me pouco depois e deitei-me. Dormi e sonhei. Sonhei um sonho
guinholesco, agitadíssimo, com lutas, facadas, o diabo. Lembro-me que,
agredido por um
facínora, desfechei contra ele cinco tiros de revólver; as
balas, porém, grudaram-se à parede e deram de ressoar
dum modo que me despertou. Mas acordado continuei a
ouvir o mesmo barulho, vindo de cima, da lanterna.
Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cama e aguço o
ouvido: barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três
degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abriLa: não cede.
Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos pelo
chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um
resfolego surdo, entremeado de embates contra os móveis.
Trevas absolutas. Nenhuma réstia de luz coava para a escada.
Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, quando
portas adentro dois homens se entrematavam? Permanecia
eu nessa dubiedade, quando choque violento escancaroume a porta. Um
clarão de sol chofrou-me os olhos. Senti nas
pernas um tranco -e rodei escada abaixo de cambulhada
com dois corpos engalfinhados. Ergui-me, tonto, e vi em
rebolo no chão os dois faroleiros.
Atirei-me à Luta em auxílio de Gerebita.
-"Dois contra um!", gemeu Cabrea, sufocado. "É covardia!"
Pela primeira vez lhe ouvi a voz -e hoje noto que
nada nela denunciava loucura. No momento pensei diversamente, se é que
pensei alguma coisa.
Gerebita, com grande assombro meu, também me repeliu.
-"Não! Não! Eu só!"
Nisto, um pegão de nortada, varrendo a torre, trancou
a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo
a escuridão.
E começa aqui o horror... Os rugidos que ouvi, os arrancos e socões
formidáveis da luta nas trevas, a minha
ansiedade... Pavorosos minutos de vida que não desejo
renovados.
Perdi a noção do tempo. Durou muito aquilo? Não sei
dizer. Só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um urro
de dor, e logo em seguida uma imprecação,
"Desgraçado!", cujas derradeiras sílabas morreram num trincar de dentes
atassalhando carnes. Cabrea grugulejou uns
roncos que se casaram com o arquejar do peito de Gerebita,
e a luta esmoreceu.
Sem palavras na boca, cegado pela escuridão, eu só
ouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquejo do
vencedor exausto caído à beira do vencido. Com os olhos
da imaginação eu via esse quadro, que com os da cara
enxergava tanto como se os tivera envoltos em veludo negro.
Não te conto os pormenores do epílogo. Obtive luz e o
que vi não te conto. Impossível pintar o hediondo aspecto
de Cabrea com a carótida estraçalhada a dente, caído num
lago de sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito
vermelhos, a mão sangrenta, estatelava-se no chão, sem
sentidos. Os meus transes diante daqueles corpos martirizados, àquela
hora da noite -daquela terrível noite negra
como esta e sacudida por um vento do inferno!...
Na manhã seguinte, Gerebita pousou-me a mão sobre o
ombro e disse:
-"O mar não leva daqui os corpos à praia e o mundo
não precisa saber de que morreu Cabrea. Caiu n"água morte de marinheiro e
o moço é testemunha de que matei
para não morrer. Foi defesa. Agora vai jurar-me que isto
ficará para sempre entre nós."
Jurei-o lealmente, tocando de leve a mão mutilada. E
ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se imóvel, a
olhar para o chão, murmurando insistentemente:
-"Eu bem avisei. Não me acreditaram. Agora, está aí,
está aí, está aí..."
Nesse mesmo dia veio buscar-me o Dunga. Mal a Gaivota largou, narrei-lhe
a morte do faroleiro, romanceando-a:
Cabrea, louco a despenhar-se torre abaixo e a sumir-se para
sempre no seio das ondas.
Dunga, assombrado, susteve no ar os remos.
-"Pois morreu? E louco."
-"Está claro!"
-"Claro que lhe parece, que a mim...
-"Conhecia-o?"
-"Não conhecia outra coisa. Des"que furtou a Maria
Rita..."
-"Que Maria Rita?"
-"Pois a Maria Rita, mulher do Gerebita, então não
sabe? Que ele seduziu, hom"essa."
Abri a minha maior boca e arregalei o que pude os olhos.
-"Como sabe disso?"
-"É boa! Sei porque sei, como sei que aquela gaivota
que ali vai é uma e que este mar é mar. A Maria Rita era
uma morena de truz, perigosa como o demo. O tolo do
Gerebita derreou-se d"amores pela bisca e lá casou. E vai
ela, a songuinha, mal o homem saía no Purus, metia em
casa ao Cabrea. E nesse jogo viveram até que um dia fugiram juntos para
outras terras. O pobre Gerebita se não acabou de paixão é que é teso. Mas
entrou para o farol, o que é
também um modo de morrer p"r"o mundo. Pois bem. A bola
vira, o tempo corre, e vai, senão quando, quem mete o
Governo no farol em lugar do defunto Gabriel? Ao Cabrea!
Ao Cabrea que também andava descrente da vida porque a
Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do mundo. Diz-me agora vossoria que
o homem enlouqueceu, e rolou no penedo, e
lá o rói o peixe. Está bem. Antes assim, que do contrário era
em ponta de faca que aquilo acabaria..."
Calei-me. Há situações na vida que as idéias embaralham de tal forma que
é de bom conselho deixarmo-las se
assentarem por si. Eis como...
-... o meu grande amigo Eduardo foi empulhado por
um assassino vulgar!
-Perdão. O fato de se não manejarem floretes não tira
àquele pugilato o caráter de duelo.
-"Cavalleria rusticana", então?
-E por que não?
Notas:
1. O conto "Os Faroleiros" foi publicado na Revista do Brasil, nº 20, de
agosto
de 1917, sob o título de: "Cavalleria Rusticana". Numa carta a Godofredo
Rangel,
Lobato explica a mudança: "Minha Cavalleria Rusticana, que vou mudar para
Os
Faroleiros porque toda a gente confunde "cavaleria" com "cavalaria" (que
cavalos!)...
2. Anequim: Espécie de tubarão.
3. Tintureira: Espécie de tubarão.
O engraçado arrependido
Francisco Teixeira de Souza Pontes, galho bastardo duns
Souza Pontes de trinta mil arrobas afazendados no Barreiro,
só aos trinta e dois anos de idade entrou a pensar seriamente na vida.
Como fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa
da veia cômica, e com ela amanhara casa, mesa, vestuário
e o mais. Sua moeda corrente era micagens, pilhérias, anedotas de inglês
e tudo quanto bole com os músculos faciais
do animal que ri, vulgo homem, repuxando risos ou matracolejando
gargalhadas.
Sabia de cor a Enciclopédia do Riso e da Galhofa, de Fuão
Pechincha, o autor mais dessaborido que Deus botou no
mundo; mas era tal a arte do Pontes, que as sensaborias
mais relambórias ganhavam em sua boca um chiste raro, de
fazer os ouvintes babarem de puro gozo.
Para arremedar gente ou bicho, era um gênio. A gama
inteira das vozes do cachorro, da acuação aos caititus ao
uivo à lua, e o mais, rosnado ou latido, assumia em sua boca
perfectibilidade capaz de iludir aos próprios cães -e à lua.
Também grunhia de porco, cacarejava de galinha, coaxava de untariha,
ralhava de mulher velha, choramingava
de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava
de patriota em sacada. Que vozeiro de bípede ou quadrúpede não copiava
ele às maravilhas, quando tinha pela
frente um auditório predisposto?
Descia outras vezes à pré-história. Como fosse d"algumas luzes, quando os
ouvintes não eram pecos ele reconstituía os vozeirões paleontológicos dos
bichos extintos -roncos de mastodontes ôu berros de mamutes ao
avistarem-se
com peludos homos repimpados e fetos arbóreos -coisa
muito de rir e divulgar a ciência do sr. Barros Barreto.
Na rua, se pilhava um magote de amigos parados à
esquina, aproximava-se de mansinho e -nhoc! -arremessava um bote de
munheca à barriga da perna mais a jeito.
Era de ver o pinote assustado e o -passa! nervoso do
incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros,
e a do Pontes, o qual gargalhava dum modo todo seu,
estrepitoso e musical -música d"Qffenbach.
Pontes ria parodiando o riso normal e espontâneo da
criatura humana, única que ri além da raposa bêbada; e
estacava de golpe, sem transição, caindo num sério de irresistível
cômico.
Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no
comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem
diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E
chegou a ponto de que escusava abrir a boca
ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava
sua presença. Mal o avistavam, já as caras
refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a
boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros
desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora!, eram
cascalhadas, eram rinchavelhos, eram guinchos, engasgos, fungações e
asfixias tremendas.
-É da pele, este Pontes!
-Basta, homem, você me afoga!
E se o pândego se inocentava, com cara palerma:
-Mas que estou fazendo? Se nem abri a boca...
-Quá, quá, quá -a companhia inteira, desmandibulada, chorava no espasmo
supremo dos risos incoercíveis.
Com o correr do tempo, não foi preciso mais que seu
nome para deflagrar a hilaridade. Pronunciando alguém a
palavra "Pontes", acendia-se logo o estopim das fungadelas
pelas quais o homem se alteia acima da animalidade que não ri.
Assim viveu Pontes até a idade do Cristo, numa parábola risonha, a rir e
fazer rir, sem pensar em nada sério vida de filante que dá momos em troca
de jantares e paga
continhas miúdas com pilhérias de truz.
Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos
de riso babado:
-Você ao menos diverte, não é como o major Carapuça que caloteia de
carranca.
Aquele recibo sem selo mortificou seu tanto ao nosso
pândego; mas a conta subia a quinze mil réis -valia bem a
pelotada. Entretanto, lá ficou a lembrança dela espetada
como alfinete na almofadinha do amor-próprio. Depois vieram outros e
outros, estes fincados de leve, aqueles até a cabeça.
Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilarião a sonhar
as delícias de ser tomado a sério, falar e ser ouvido sem
repuxo de músculos faciais, gesticular sem promover a quebra da
compostura humana, atravessar uma rua sem pressentir na peugada um coro
de "Lá vem o Pontes!" em tom
de quem se espreme na contenção do riso ou se ajeita para
uma barrigada das boas.
Reagindo, tentou Pontes a seriedade.
Desastre.
Pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês. Se antes divertia
como o Clown, passava agora a divertir como o Tony.
O estrondoso êxito do que a toda a gente se afigurou
uma faceta nova da sua veia cômica verteu mais sombra na
alma do engraçado arrependido. Era certo que não poderia
traçar outro caminho na vida além daquele, ora odioso?
Palhaço, então, eternamente palhaço à força?
Mas a vida de um homem feito tem exigências sisudas,
impõe gravidade e até casmurrice dispensáveis nos anos
verdes. O cargo mais modesto da administração, uma simples vereança,
requer na cara a imobilidade da idiotia que
não ri. Não se concebe vereador risonho. Falta ao dito de
Rabelais uma exclusão: o riso é próprio à espécie humana,
fora o vereador.
Com o dobar dos anos a reflexão amadureceu, o brio
cristalizou-se, e os jantares cavados deram a saber-lhe a
azedo. A moeda pilhéria tornou-se-lhe dura ao cunho; já a
não fundia com a frescura antiga; já usava dela como expediente de vida,
não por fogança despreocupada, como
outrora. Comparava-se mentalmente a um palhaço de circo, velho e
achacoso, a quem a miséria obriga a transformar reumatismo em caretas
hílares como as quer o público
pagante.
Entrou a fugir dos homens e despendeu bons meses no
estudo da transição necessária ao conseguimento de um
emprego honesto. Pensou no balcão, na indústria, na feitoria duma
fazenda, na montagem dum botequim -que
tudo era preferível à paspalhice cômica de até ali.
Um dia, bem maturados os planos, resolveu mudar de
vida. Foi a um negociante amigo e sinceramente lhe expôs
os propósitos regeneradores, pedindo por fim um lugar na
casa, de varredor que fosse. Mal acabou a exposição, o
galego e os que espiavam de longe à espera do desfecho
torceram-se em estrondoso gargalhar, como sob cócegas.
-Esta é boa! E de primeiríssima! Quá! quá! quá! Com
que então... Quá! quá! quá! Você me arruina os fígados,
homem! Se é pela continha dos cigarros, vá embora que me
dou por bem pago! Este Pontes tem cada uma...
E a caixeirada, os fregueses, os sapos de balcão e até
passantes que pararam na calçada para "aproveitar o espírito",
desbocaram-se em quás de matraca até lhes doerem os
diafragmas.
Atarantado e seriíssimo, Pontes tentou desfazer o engano.
-Falo sério, e o senhor não tem o direito de rir-se. Pelo
amor de Deus, não zombe de um pobre homem que pede
trabalho e não gargalhadas.
O negociante desabotoou o cós da calça.
-Fala sério, pff! Quá! quá! quá! Olha Pontes, você...
Pontes largou-o em meio da frase, e se foi com a alma
atenazada entre o desespero e a cólera. Era demais. A sociedade o
repelia, então? Impunha-lhe uma comicidade eterna?
Correu outros balcões, explicou-se como melhor pôde,
implorou. Mas por voz unânime, o caso foi julgado como
uma das melhores pilhérias do "incorrigível" -e muita
gente o comentou com a observação de costume:
-Não se emenda o raio do rapaz! E olhem que já não
é criança...
Barrado no comércio, voltou-se para a lavoura. Procurou um velho
fazendeiro que despedira o feitor e expôs-lhe
o seu caso.
Depois de ouvir-lhe atentamente as alegações, conclusas com o pedido do
lugar de capataz, o coronel explodiu
num ataque de hilaridade.
-O Pontes capataz! 1h! 1h! 1h!
-Mas...
-Deixe-me rir, homem, que cá na roça isto é raro. 1h!
1h! 1h! É muito boa! Eu sempre digo: graça como o Pontes,
ninguém!
E berrando para dentro:
-Maricota, venha ouvir esta do Pontes. 1h! 1h! 1h!
Nesse dia, o infeliz engraçado chorou. Compreendeu
que não se desfaz do pé p"r"a mão o que levou anos a
cristalizar-se. A sua reputação de pândego, de impagável,
de monumental, de homem do chifre furado ou da pele,
estava construída com muito boa cal e rijo cimentado para
que assim esboroasse de chofre.
Urgia, entretanto, mudar de tecla, e Pontes volveu as
vistas para o Estado, patrão cômodo e único possível nas
circunstâncias, porque abstrato, porque não sabe rir nem
conhece de perto as células que o compõem. Esse patrão, só
ele, o tomaria a sério -o caminho da salvação, pois, embicava por ali.
Estudou a possibilidade da agência do correio, dos tabelionatos, das
coletorias e do resto. Bem ponderados os
prós e contras, os trunfos e naipes, fixou a escolha na coletoria
federal, cujo ocupante, major Bentes, por avelhantado
e cardíaco, era de crer não durasse muito. Seu aneurisma
andava na berra pública, com rebentamento esperado para
qualquer hora.
O ás de Pontes era um parente do Rio, sujeito de posses,
em via de influenciar a política no caso da realização de
certa reviravolta no governo. Lá correu atrás dele e tantas
fez para movê-lo à sua pretensão que o parente o despediu
com promessa formal.
-Vai sossegado que, em a coisa arrebentando por cá e
o teu coletor rebentando por lá, ninguém mais há de rir-se
de ti. Vai, e avisa-me da morte do homem sem esperar que
esfrie o corpo.
Pontes voltou radioso de esperança e pacíentemente aguardou a sucessão
dos fatos, com um olho na política e outro
no aneurisma salvador.
A crise afinal veio; caíram ministros, subiram outros e
entre estes um politicão negocista, sócio do tal parente.
Meio caminho já era andado. Restava apenas a segunda parte.
Infelizmente, a saúde do major encruara, sem sinais
patentes de declínio rápido. Seu aneurisma, na opinião dos
médicos que matavam pela alopatia, era coisa grave, de
estourar ao menor esforço; mas o precavido velho não tinha
pressa de ir-se para melhor, deixando uma vida onde os
fados lhe conchegavam tão fofo ninho, e lá engambelava a
doença com um regime ultrametódico. Se o mataria um
esforço violento, sossegassem, ele não faria tal esforço.
Ora, Pontes, mentalmente dono daquela sinecura, impacientava-se com o
equilíbrio desequilibrador dos seus cálculos. Como desembaraçar o caminho
daquela travanca?
Leu no Chernoviz o capítulo dos aneurismas, decorou-o;
andou em indagações de tudo quanto se dizia ou se escreveu a respeito;
chegou a entender da matéria mais que o
doutor Iodureto, médico da terra, o qual, seja dito aqui à
puridade, não entendia de coisa nenhuma desta vida.
O pomo da ciência, assim comido, induziu-o à tentação
de matar o homem, forçando-o a estourar. Um esforço o
mataria? Pois bem, Souza Pontes o levaria a esse esforço!
-A gargalhada é um esforço, filosofava satanicamente
de si para si. A gargalhada, portanto, mata. Ora, eu sei fazer
rir...
Longos dias passou Pontes alheio ao mundo, em diálogo mental com a
serpente.
-Crime? Não! Em que código fazer rir é crime? Se
disso morresse o homem, culpa era da sua má aorta.
A cabeça do maroto virou picadeiro de luta onde o
"plano" se batia em duelo contra todas as objeções mandadas ao encontro
pela consciência. Servia de juiz a sua ambição amarga e Deus sabe quantas
vezes tal juiz prevaricou,
levado de escandalosa parcialidade por um dos contendores.
Como era de prever, a serpente venceu, e Pontes ressurgiu para o mundo um
tanto mais magro, de olheiras
cavadas, porém com um estranho brilho de resolução vitoriosa nos olhos.
Também notaria nele o nervoso dos modos quem o observasse com argúcia mas
a argúcia não
era virtude sobeja entre os seus conterrâneos, além de que
estados d"alma do Pontes eram coisa de somenos, porque
o Pontes...
-Ora o Pontes...
o futuro funcionário forjicou, então, meticulosos planos
de campanha. Em primeiro era mister aproximar-se do major, homem
recolhido consigo e pouco amigo de lérias; insinuar-se-lhe na intimidade;
estudar suas venetas e cachacinhas até descobrir em que zona do corpo
tinha ele o
calcanhar-de-aquiles.
Começou freqüentando com assiduidade a coletoria, sob
pretextos vários, ora para selos, ora para informações sobre
impostos, que tudo era ensejo de um parolar manhoso,
habilíssimo, calculado para combalir a rispidez do velho.
Também ia a negócios alheios, pagar coisas, extrair guias,
coisinhas; fizera-se muito serviçal para os amigos que traziam negócios
com a fazenda.
O major estranhou tanta assiduidade e disse-lho, mas
Pontes escamoteou-se à interpelação montado numa pilhéria de truz, e
perseverou num bem calculado dar tempo
ao tempo que fosse desbastando as arestas agressivas do
cardíaco.
Dentro de dois meses já se habituara Bentes àquele serelepe, como lhe
chamava, o qual, em fim de contas, lhe
parecia um bom moço, sincero, amigo de servir e sobretudo
inofensivo... Daí a lá em dia d"acúmulo de serviço pedir-lhe
um obséquio, e depois outro, e terceiro, e tê-lo afinal como
espécie de adido à repartição, foi um passo. Para certas
comissões não havia outro. Que diligência! Que finura! Que
tato! Advertindo certa vez o escrevente, o major puxou
aquela diplomacia como lembrete.
-Grande pasmado! Aprenda com o Pontes, que tem
jeito para tudo e ainda por cima tem graça.
Nesse dia, convidou-o para jantar. Grande exultação na
alma do Pontes! A fortaleza abria-lhe as portas.
Aquele jantar foi o início duma série em que o serelepe,
agora factótum indispensável, teve campo de primeira ordem para evoluções
táticas.
O major Bentes, entretanto, possuía uma invulnerabilidade: não ria,
limitava suas expansões hílares a sorrisos
irônicos. Pilhéria que levava outros comensais a erguerem-se da mesa
atabafando a boca nos guardanapos, encrespava
apenas os seus lábios. E se a graça não era de superfina
agudeza, ele desmontava sem piedade o contador.
-Isso é velho, Pontes, já num almanaque Laemmert de
1850 me lembro de o ter lido.
Pontes sorria com ar vencido; mas lá por dentro consolava-se, dizendo,
dos fígados para o rim, que se não pegara
daquela, doutra pegaria.
Toda a sua sagacidade enfocava no fito de descobrir o
fraco do major. Cada homem tem predileção por um certo
gênero de humorismo ou chalaça. Este morre por pilhérias
fesceninas de frades bojudos. Aquele péla-se pelo chiste
bonacheirão da chacota germânica. Aquel"outro dá a vida
pela pimenta gaulesa. O brasileiro adora a chalaça onde se
põe a nu a burrice tamancuda de galegos e ilhéus.
Mas o major? Por que não ria à inglesa, nem à alemã,
nem à francesa, nem à brasileira? Qual o seu gênero?
Um trabalho sistemático de observação, com a metódica
exclusão dos gêneros já provados ineficientes, levou Pontes
a descobrir a fraqueza do rijo adversário: o major lambia as
unhas por casos de ingleses e frades. Era preciso, porém,
que viessem juntos. Separados, negavam fogo. Esquisitices
do velho. Em surgindo bifes vermelhos, de capacete de cortiça, roupa
enxadrezada, sapatões formidolosos e cachimbo,
juntamente com frades redondos, namorados da pipa e da
polpa feminina, lá abria o major a boca e interrompia o
serviço da mastigação, como criança a quem acenam com
cocada. E quando o lance cômico chegava, ele ria com gosto, abertamente,
embora sem exagero capaz de lhe destruir
o equilíbrio sangüíneo.
Com infinita paciência, Pontes bancou nesse gênero e
não mais saiu dali. Aumentou o repertório, a gradação do
sal, a dose de malícia, e sistematicamente bombardeou a
aorta do major com os produtos dessa hábil manipulação.
Quando o caso era longo, porque o narrador o forja no
intento de esconder o desfecho e realçar o efeito, o velho
interessava-se vivamente, e nas pausas manhosas pedia esclarecimento ou
continuação.
-"E o raio do bife?" "E daí?" "Mister John apitou?"
Embora tardasse a gargalhada fatal, o futuro coletor não
desesperava, confiando no apólogo da bilha que de tanto ir
à fonte lá ficou. Não era mau o cálculo. Tinha a psicologia
por si -e teve também por si a quaresma.
Certa vez, findo o carnaval, reuniu o major os amigos
em torno a uma enorme piabanha recheada, presente dum
colega. O entrudo desmazorrara a alma dos comensais e a
do anfitrião, que estava naquele dia contente de si e do
mundo, como se houvera enxergado o passarinho verde. O
cheiro vindo da cozinha, valendo por todos os aperitivos de
garrafaria, punha nas caras um enternecimento estomacal.
Quando o peixe entrou, cintilaram os olhos do major.
Pescado fino era com ele, inda mais cozido pela Gertrudes.
E naquele bródio, primara a Gertrudes num tempero que
excedia as raias da culinária e se guindava ao mais puro
lirismo. Que peixe! Vatel o assinaria com a pena da impotência molhada na
tinta da inveja, disse o escrevente, sujeito lido em Brillat-Savarin e
outros praxistas do paladar.
Entre goles de rica vinhaça, ia a piabanha sendo introduzida nos
estômagos com religiosa unção. Ninguém se
atrevia a quebrar o silêncio da bromatológica beatitude.
Pontes pressentiu oportuno o momento do golpe. Trazia
engatilhado o caso dum inglês, sua mulher e dois frades
barbadinhos, anedota que elaborara à custa da melhor matéria cinzenta de
seu cérebro, aperfeiçoando-a em longas
noites de insônia. Já de dias a tinha de tocaia, só aguardando o momento
em que tudo concorresse para levá-la a
produzir o efeito máximo.
Era a derradeira esperança do facínora, seu último cartucho. Negasse fogo
e, estava resolvido, metia duas balas
nos miolos. Reconhecia impossível manipular-se torpedo
mais engenhoso. Se o aneurisma lhe resiste ao embate, então é que o
aneurisma era uma potoca, a aorta uma ficção,
o Chernoviz um palavrório, a medicina uma miséria, o
doutor Iodureto uma cavalgadura e ele, Pontes, o mais
chapado sensaborão ainda aquecido pelo sol -indigno,
portanto, de viver.
Matutava assim o Pontes, negaceando com os olhos da
psicologia a pobre vítima, quando o major veio ao seu
encontro: piscou o olho esquerdo -sinal de predisposição
para ouvir.
-E agora! -pensou o bandido. E com infinita naturalidade, pegando como
por acaso uma garrafinha de molho,
pôs-se a ler o rótulo.
-Perrins; Lea and Perrins. Será parente daquele lorde
Perrins que bigodeou os dois frades barbadinhos?
Inebriado pelos amavios do peixe, o major alumiou um
olho concupiscente, guloso de chulice.
-Dois barbadinhos e um lorde! A patifaria deve ser
marca X. P. T. O. Conta lá, serelepe.
E, mastigando maquinalmente, absorveu-se no caso fatal.
A anedota correu capciosa pelos fios naturais até as
proximidades do desfecho, narrada com arte de mestre,
segura e firme, num andamento estratégico em que havia
gênio. Do meio para o fim, a maranha empolgou de tal
forma o pobre velho que o pôs suspenso, de boca entreaberta, uma azeitona
no garfo detida a meio caminho. Um ar de
riso -riso parado, riso estopim, que não era senão o armar
bote da gargalhada, iluminou-lhe o rosto.
Pontes vacilou. Pressentiu o estouro da artéria. Por uns
instantes a consciência brecou-lhe a língua, mas Pontes deulhe um pontapé
e com voz firme puxou o gatilho.
O major Antonio Pereira da Silva Bentes desferiu a primeira gargalhada da
sua vida, franca, estrondosa, de ouvirse no fim da rua, gargalhada igual
à de Teufelsdrock diante
de João Paulo Richter. Primeira e última, entretanto, porque
no meio dela os convivas, atônitos, viram-no cair de borco
sobre o prato, ao tempo que uma onda de sangue avermelhava a toalha.
o assassino ergueu-se alucinado; aproveitando a confusão, esgueirou-se
para a rua, qual outro Caim. Escondeu-se
em casa, trancou-se no quarto, bateu dentes a noite inteira,
suou gelado. Os menores rumores retransiam-no de pavor.
Polícia?
Semanas depois é que entrou a declinar aquele transtorno que toda a gente
levara à conta de mágoa pela morte do
amigo. Não obstante, trazia sempre nos olhos a mesma
visão: o coletor de bruços no prato, golfando sangue, enquanto no ar
vibravam os ecos da sua derradeira gargalhada.
E foi nesse deplorável estado que recebeu a carta do
parente do Rio. Entre outras coisas, dizia o ás: "Como não
me avisaste a tempo, conforme o combinado, só pelas folhas vim a saber da
morte do Bentes. Fui ao ministro mas
era tarde, já estava lavrada a nomeação do sucessor. A tua
leviandade fez-te perder a melhor ocasião da vida. Guarda
para teu governo este latim: tarde venientibus ossa, quem
chega tarde só encontra os ossos -e sê mais esperto para
o futuro."
Um mês depois, descobriram-no pendente duma trave,
com a língua de fora, rígido.
Enforcara-se numa perna de ceroula.
Quando a notícia deu volta pela cidade, toda a gente
achou graça no caso. O galego do armazém comentou para
os caixeiros:
-Vejam que criatura! Até morrendo fez chalaça. Enforcar-se na ceroula!
Esta só mesmo do Pontes...
E reeditaram em coro meia duzia de -único
epitáfio que lhe deu a sociedade.
Nota:
O conto "O Engraçado Arrependido" foi publicado na Revista do Brasil, nº
16, de abril de 1917, com o título de "A Gargalhada do Colector".
A colcha de retalhos
-Upa!
Cavalgo e parto.
Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa
as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com
espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da
cerração para o banho de sol.
A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as
cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.
Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos
barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada
mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante
dalguns angiqueiros marginais.
Agora, uma porteira.
Ali, a encruzilhada do Labrego.
Tomo à destra, em direitura ao sítio do José Alvorada.
Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no
capoeirão do Bilu, nata da terra que pelas bocas do caeté
legítimo, (1) da unha-de-vaca(2) e da caquera(3) está a pedir foice
e covas de milho.
Não é difícil a puxada: com cinqüenta braças de carreador boto a roça no
caminho.
Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por
um -nove vezes quatro trinta e seis; trezentos e sessenta
alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras (4) que o
porco estraga e o que comem a paca e o rato...
Será a filha do Alvorada?
-Bom dia, menina! O pai está em casa?
É a filha única. Pelo jeito não vai além de quatorze anos.
Que frescura! Lembra os pés d"avenca viçados nas grotas
noruegas. Mas arredia e itê (5) como a fruta do gravatá. Olhem
como se acanhou! D"olhos baixos, finge arrumar a rodilha. (6)
Veio pegar água a este corrego e é milagre não se haver
esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.
-O pai está lá? -insisti.
Respondeu um "está" enleado, sem erguer os olhos da
rodilha.
Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas
não são caipiras. Quando comprou a
situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até que
entrava em sua casa um jornal.
Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras
ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê
de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo
de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina,
rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o
café novo -uma tamina, (7) três mil pés -o velho, amuado,
nunca mais espichou o nariz fora do sítio.
Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa
enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer:
mulher na roça vai à vila três vezes -uma a batizar, outra
a casar, terceira a enterrar.
Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural
que a pobrezinha da Pingo d"Água (tinha esse apelido a
Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo
de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte
dias, a batizar. E já lá ia nos quatorze anos sem nunca mais
ter-se arredado dali.
Ler? Escrever? Patacoadas, falta de serviço, dizia a mãe.
Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora,
se des"que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro?
Na roça, como na roça.
Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenheime por um atalho
conducente à morada.
Que descalabro!...
Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da
cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.
O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição;
na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de
broca e sopesando o polvo retrançado da
erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de
compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás,
promiscuamente com o mato invasor que só
respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e,
enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em
tapera.
Bati palmas.
-Ó de casa!
Apareceu a mulher.
-Está seu Zé?
-Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar
um mel na massaranduva do pasto. Apeie e entre.
Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.
Acabadinha, a Sinh"Ana. Toda rugas na cara -e uma
cor... Estranhei-lhe aquilo.
-Doença! -gemeu. -Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no
peito que responde na
cacunda . Casa
velha, é o que é.
-Metade é cisma -disse-lhe para consolo.
-Eu é que sei! -retrucou-me suspirando.
Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada,
no ceme, rija e tesa, que saudou e:
-Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de
agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo
não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho
e coso. Admira-se? Coso, sim!...
-Mecê é gabola porque nunca padeceu doença -nem
dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda
estar fora da cova... Aí vem o Zé.
Chegava o Alvorada. Ao ver-me, abriu a cara.
-Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na
sua mão porque estou assim... É só melado. Bonito, hein?
Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre
tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.
Depôs num mocho a cuja dos favos e se foi à janela,
lavar as mãos à caneca d"água que a mulher despejava. Pôs
os olhos no meu cavalo.
-Hoje veio no picaço... Bom bicho! Eu sempre digo:
animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé*48 de
Lima. O mais é eguada de moenda.
Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao
vê-la, o pai apontou para a cuja de mel.
-Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que
aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando
não tem serviço com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de
maritacas. Eu disse à loa: "São mais de
dez!" Pingo negou: "Não chega lá!" Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o
doce. Doce da roça mel é. Esta songuiriha
só vendo; não é o que parece, não...
A loquacidade daquele homem não desmedrara com o
atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o
tagarela da cidade.
Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu
um bocado, de queixo preso. Depois:
-Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Des"que caí
daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como
quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com
camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada
de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano
retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João
Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com
esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em
serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é
por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato,
como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem, concluiu com
ternura.
A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma
caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.
Aproximei-me, admirativo.
-Sim, senhora! Com setenta anos!
Sorriu, lisonjeada.
-É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de
retalhos que venho fazendo há quatorze anos, des"que Pingo nasceu. Dos
vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso.
Veja que galantaria de
serviço...
Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e
menores, todos de chita, cada qual de
um padrão.
-Esta colcha é o meu presente de noivado. O último
retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?
Pingo d"Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava
por uma fresta.
Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho
ralo -escolha (8) com rapadura -e:
-Está bem -rematei, levantando-me do mocho de
três pernas. -Como não pode ser, paciência. Apesar disso
acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se
estão pagando os roçados a oitenta mil réis o alqueire. Dá
para ganhar, não?
-Que dá, sei que dá -mas também sei para quem dá.
Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando
era gente, muitos peguei a sessenta e não me arrependi.
Mas hoje...
-Nesse caso...
Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse
intervalo Sinh"Ana faleceu. Era fatal a dor
que respondia na
cacunda . E não mais me aflorava à memória a imagem
daqueles humildes urupês, quando me
chegou aos ouvidos o zunzum corrente no bairro, uma
coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de
todo pancada, furtara Pingo d"Água aos Periquitos.
-"Como isso? Uma menina tão acanhada!..."
-"É para ver! Desconfiem das sonsas... Fugiu, e lá
rodou com ele para a cidade -não para casar, nem para
enterrar. Foi ser "moça", a pombinha..."
O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite perdi
o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e
nasceu-me a idéia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para
ouvir os comentários da triste velhinha. Que
golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.
Fui.
Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma
neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços
dos morros distantes.
Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma
porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.
No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da
menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda
às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me,
deserta. As três árvores do pomar extinto eram já
galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais
crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para
o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho
pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.
-O de casa! -gritei.
Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos
fundos uma sombra acurvada e trêmula.
-Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?
Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a
sitioca para mudar de terra.
Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo
escusas da má vista.
-Tem coragem de estar aqui sozinha?
-Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a
filha, a neta... Sente-se -murmurou apontando para o
mocho de dois anos atras.
Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que
dizer. Por fim:
-O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem
que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje...
A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.
-Viver setenta e dois anos para acabar assim... Felizmente a morte não
tarda. Já a sinto cá dentro.
Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era
passado -a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas, salvo trêmulo
espectro sobrevivente como a alma da tapera -a
triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas
chorava.
-Que mais agora? -murmurou pausadamente em
voz de quem já não é deste mundo. -Até à "desgraça",
eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a
filha, mas restava a neta -que era duas
vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha... Agora, que
mais? Só peço a Deus que me retire, logo
e logo.
Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura
inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos
pousaram ali, marasmados.
A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se,
tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a
colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com
tremuras na voz:
-Dezesseis anos -e não pude acabar a colcha... Ninguém imagina o que é
para mim esta prenda. Cada retalho
tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d"Água. Aqui leio a
vidinha dela des"que nasceu.
Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu... Tão
galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os
óculos com a mãozinha gorda...
Este azul, de listras, lembra um vestido que a madrinha
lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações,
perseguindo o Romão -que um dia, por
sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "ÓÓ
aquina
Este vermelho de rosinhas foi quando completou os
cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra
do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo,
não reparou?
Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma
o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou
tão engraçada, feita uma mulherzinha!
Pingo d"Agua ja sabia temperar um virado, quando usou
este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto
porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as
mãos.
Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com
sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao
pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!...
A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.
-E este? -perguntei para avivá-la, apontando um
retalho amarelo.
Pausou um bocado a triste avó, em contemplação. Depois:
-Este é novo. Já tinha feito quinze anos quando o
vestiu pela primeira vez num mutirão (9) do Labrego. Não
gosto dele. Parece que a desgraça começa aqui. Ficou um
vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas
minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da
coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.
-Este -disse-lhe eu, fingindo recordar-me -é o que
ela vestia quando cá estive.
-Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas
vermelhas, repare bem.
-É verdade, é verdade! menti. Agora me lembro, isso
mesmo. E este último?
Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:
-Este é o da desgraça. Foi o derradeiro que fiz. Com
ele fugiu... e me matou.
Calou-se, a lacrimejar, trêmula.
Calei-me também, opresso dum infinito apertão d"alma.
Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade
louca!...
E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.
Ela por fim quebrou o silêncio.
-Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis.
Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem
com ela.
E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro
arrancado ao imo do coração.
Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.
Que importa ao mundo a vontade última duma pobre
velhinha da roça?
Pieguices...
Notas:
1, 2, 3. Padrões de terra boa.
4. Bandeira de milho, diz-se de qualquer trecho do milharal
5. Itê: Sabor agreste, adstringente, ácido.
6. Rodilha: Rodela de pano torcido que os carregadores de água usam entre
a cabeça e
o pote ou a lata.
7. Tamina: Ninharia, coisa de nada.
8. Escolha: Café de ínfima qualidade -resíduo do "café escolhido".
9. Ajuntamento de vizinhos num serviço de roça.
A vingança da peroba
A cidade duvidará do caso. Não obstante, aquele monjolo do João
Nunes no Varjão foi durante meses o palhaço
da zona. Sobretudo no bairro dos Porungas, onde assistia
Pedro Porunga, mestre monj oleiro de larga fama, fungavam-se à conta
do engenho risos sem fim.
Sitiantes ambos em terras próprias, convizinhavam separados pelo
espigão do Nheco -e por malquerença antiga. Levantara Nunes uma
paca, certo domingo; mas ao
dobrar o morro a bicha esbarrou de frente com um Porunguinha que
casualmente lenhava por ali. Zás! Certeiro golpe de foice dá com ela
em terra.
Até aí nada.
Mas comeram-na, sem ao menos mandarem um quarto
de presente ao legítimo dono. Legítimo, sim, porque, afinal
de contas, aquela paca era uma paca nomeada. Sabida como
um vigário, dizia o Nunes, nem cachorro-mestre, nem mundéu, podiam
com a vida dela. Escapulia sempre. A gente do
outro lado não ignorava isso. Paca velha e matreira tem
sempre a biografia na boca dos caçadores. Paca muito conhecida,
portanto; moradora em suas terras. Paca do Nunes, homessa. Ora,
justamente no dia em que, numa batida
feliz, ele a apanhara desprevenida, fazer aquilo o Porunguinha?
-"Mas é uma criança!"
Sim, mas o pai não aprovou? Não disse, entre risadas,
"o Nunes que se fomente?" Haviam de pagar!
Veio daí a malquerença. O espigão vinha do período
um pouco mais remoto em que a crosta da terra se solidificou.
Agravava a dissensão uma rivalidade quase de casta.
Pertencia Nunes à classe dos que decaem por força de
muita cachaça na cabeça e muita saia em casa. Filho homem só tinha
o José Benedito, d"apelido Pernambi, um
passarico desta alturinha, apesar de bem entrado nos sete
anos. O resto era uma récula de "famílias mulheres"
Maria Benedita, Maria da Conceição, Maria da Graça, Maria
da Glória, um rosário de oito mariquinhas de saia comprida. Tanta
mulher em casa amargava o ânimo do Nunes,
que nos dias de cachaça ameaçava afogá-las na lagoa como
se fossem uma ninhada de gatos.
O seu consolo era mimar Pernambi, que aquele ao menos logo estaria no
eito, a ajudá-lo no cabo da enxada,
enquanto o mulherio inútil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol.
Pegava, então, do menino e dava-lhe pinga.
A princípio com caretas que muito divertiam o pai, o engrimanço
pegou lesto no vício. Bebia e fumava muito sorna,
com ares palermas de quem não é deste mundo. Também
usava faca de ponta à cinta.
Homem que não bebe, não pita, não tem faca de
ponta, não é homem, dizia o Nunes.
E cônscio de que já era homem o piquirinha batia nas
irmas, cuspilhava de esguicho, dizia nomes à mãe, além de
muitas outras coisas próprias de homem.
Do outro lado tudo corria pelo inverso. Comedido na
pinga, Pedro Porunga casara com mulher sensata, que lhe
dera seis "famílias", tudo homem.
Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito.
Plantava cada setembro três alqueires de milho; tinha dois
monjolos, moenda, sua mandioquinha, sua cana, além duma égua e duas
porcas de cria. Caçava com espingarda de
dois canos, "imitação Laporte", boa de chumbo como não
havia outra. Morava em casa nova, bem coberta de sapé de
boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteios
e portais eram de madeira lavrada; e as paredes, rebocadas
à mão por dentro, coisa muito fina.
Já o Nunes -pobre do Nunes! -não punha na terra
nem um alqueire de semente. Teve égua, mas barganhou-a
por um capadete e uma espingarda velha. Comido o porquinho, sobrou do
negócio o caco da pica-pau, dum cano só
e manhosa de tardar fogo.
Sua casa, de esteios com casca e portas de embaúba
rachada, muito encardida de picumã, prenunciava tapera
próxima.
Capado, nenhum. Galinhada escassa.
Ao cachorro Brinquinho não lhe valia ser mestre paqueiro de fama;
andava de barriga às costas, com bernes no
toutiço. O pobrezinho não caminhava dez passos sem que
parasse, pondo-se aos rodopios sobre os quartos traseiros,
tentando inutilmente abocar o parasita inatingível. Que preasse.
Cachorro é bicho ladino e o mato anda cheio de preás
atolambadas. E tudo mais no Vaijão afinava pela mesma tecla.
Certa vez contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia
negócio duma besta arreada. Besta arreada, o Porunga! Doeulhe aquilo
no fundo da alma. Era atrepar demais.
-Quê! Já roncam assim? -bravateou. -Pois hei de
mostrar à Porungada quem é o João Nunes Eusébio dos
Santos, da Ponte Alta!
E entrou-se, desd"aí, de grandes atarefamentos.
A mulher pasmava na súbita reviravolta do marido,
duvidando e esperando.
-Durará esse fogo? Quem sabe?
Planeava Nunes grandes coisas, roça de três alqueires,
conserto da casa, monjolo...
Aqui a mulher repuxou os lábios num muxoxo de dúvida.
-Monjolo? Ché, qu"esperança!
Nunes, metido em brios, roncou:
-Boto, mulher, boto monjolo, boto moenda, boto até
moinho! Hei de fazer a porungada morder a munheca de
inveja. Vai ver!...
Com assombro de todos não ficou em prosa fiada a
promessa. Nunes remendou mal e mal a casa, derrubou um
capoeirão descansado de oito anos e, num esforço de mouro, meteu na
terra nove quartas de milho.
Pedro Porunga soube logo da bravata. Riu-se e profetizou:
-Eh! Aquilo é fogo de jacá velho. Calor de pinguço
não dura...
O ano correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo
que em janeiro o milho desembrulhava pendão, muito medrado de espigas.
Nunes não cabia em si. Visitava as roças muito contente
da vida, urthando os caules viçosos já em pleno arreganhamento da
dentuça vermelha, ou apalpando as bonecas tenras, a madeixarem-se da
cabelugem louro-translúcida. Segurava então a barbica do queixo e
sonhava opulências
futuras, balanceando prós e contras. Os contras já estavam
de fora. Só havia prós. E concluía, entrando em casa, para a
mulher:
-Este ano quebro um milhão desgramado!
Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham
dobrados os lucros. Não foi o que
empolou os Porungas, a farinha? Uma resolução de tal vulto, porém,
não se toma assim do pé pr"a mão: era preciso
meditar, calcular. E Nunes "maginava"... O chóó-pan do
futuro engenho batia-lhe na cabeça como um ritornelo de
música do céu.
-Hei de mostrar ao Porunga que ele não é o único
monjoleiro do mundo. Empreito o serviço com o compadre
Teixeirinha da Ponte Alta.
A mulher botou as mãos na cabeça.
-Nossa Virgem! É coisa de louco! Pois o compadre
nem braço tem...
-Bééé! -urrou Nunes, estomagado. -Cale essa boca! Mulher não
entende das coisas...
E ela, nas encolhas:
-Tá bom. Depois não se queixe.
-Bééé! -rematou o marido.
Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas
relações familiares. Quando ali roncava o "bééé", mulher,
filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silêncio. Sabiam
por dolorosa experiência pessoal que o ponto
acima era o porretinho de sapuva.
Se a mulher emudecia, emudecia com ela a razão, porque o Teixeirinha
Maneta era um carapina ruim inteirado,
dos que vivem de biscates e remendos. Só a um bêbado
como o Nunes bacorejaria a idéia de meter a monjoleiro um
taramela daqueles, maneta e, inda por cima, cego duma
vista. Mas era compadre e acabou-se. Bééé!
Uma nova semana passou Nunes em trabalhos de "maginação". Coçava
lentamente a cabeça, pitava enormes cigarrões, muito absorto, com os
olhos no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim.
Rumou à Ponte Alta e trouxe de lá o velho carapina, com a ferramenta
capenga.
Só restava resolver o problema da madeira. Nas suas
terras não havia senão pau de foice. Pau de machado, capaz
de monjolo, só a peroba da divisa, velha árvore morta que
era o marco entre os dois sítios, tacitamente respeitada de
lá e cá. Deitá-la-ia por terra sem dar contas ao outro lado
-como lhe fizeram à paca.
Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore
à noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela
coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal.
-Está resolvido: derrubo a peroba!
Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite,
e ainda não raiava a manhã quando a peroba estrondeou
por terra, tombada do lado do Nunes.
Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a
sondar o que fora. Deram logo com a
marosca, e Pedro, à frente do bando, interpelou:
-Com ordem de quem, seu...
-Com ordem da paca, ouviu? -revidou Nunes provocativamente.
-Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo,
meia minha, meia sua.
-Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua
p"r"aí!... -retrucou Nunes apontando com o beiço a cavacana
cor-de-rosa.
Pedro continha-se a custo.
-Ah, cachorro! Não sei onde estou que não...
-Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo
na primeira "cuia" que passar o rumo!...
Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O
mulherio interveio com grande descabelamento de palavrões. De
espingardinha na mão, radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao
Maneta:
-Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este
cuiame!... (2)
A Porungada, afinal, abandonou o campo -para não
haver sangue.
-Você fica com o pau, cachaceiro à-toa, mas inda há
de chorar muita lágrima p"r"amor disso...
-Bééé! ... -estrugiu Nunes triunfalmente.
Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo,
seguidos do olhar vitorioso do Nunes.
-Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de
língua, pé, pé, pé; mas, chegar mesmo, quando! O guampudo
conheceu a arruda pelo cheiro!
E assombrou o velho com muitos lances heróicos, quebramentos de cara,
escoras de três e quatro, o diabo.
-O dia está ganho, compadre, largue disso e vamos
molhar a garganta.
A molhadela da garganta excedeu a quanta bebedeira
tinham na memória. Nunes, Maneta e Pernambi confraternizaram num bolo
acachaçado, comemorativo do triunfo,
até que uma soneira letárgica os derreou pelo chão. Com a
derradeira Maria pendurada do seio magro, a mulher olhava para aquilo
sacudindo a cabeça, a cismar...
-Que monjolo sairá disto, mãe do céu!...
Esvaídos os fumos da pinga, tornaram no dia seguinte
à peroba, muito acamaradados. A cachaça cimentara o compadresco
antigo, e a feitura do monjolo teve início com
grande quebreira de corpo. Nunes passava os dias na obra,
vendo o compadre desbastar a madeira com um braço só.
Pasmava daquilo, e do ajutório que ao braço perfeito dava
o toco aleijado. O velho Maneta sabia casos e casos, que
Nunes respondia com outros, sempre tendentes a patentear
a ruindade dos Porungas.
Falquejado o toro, correram um barbante embebido num
mingau de carvão. "Pegue nesta ponta, compadre, dizia o
velho; agora estique; isso." E tomando entre os dedos o
cordel pelo meio, plaf, chicoteava a madeira, riscando nela
um traço negro.
Nunes revelou grande vocação para esfnia-verruma. Esfnia-verrumas
são os "empaliadores" dos carapinas. Sentam-se com uma nádega à
beira da banca e durante horas
pasmam do rebote correr na tábua encaracolando fitas, ou
do formão ir lentamente abrindo uma fura. Ora pegam da
enxó, examinam-na, passam o dedo pelo fio e perguntam:
"É Gnive? (Greaves) Quanto custou?" E quando sai da madeira a verruma,
quente da fricção, pegam-na e põem-se a
soprá-la muito sérios.
Enquanto isso, muito desajeitadamente ia o Maneta escavando o cocho (3)
a machado e enxó. Depois rasgou as furas
furas da haste (4) e afeiçoou a munheca. (5) Prontas que foram,
atacou o pilão. (6) Escava que escava, em três dias pô-lo de
banda, concluso. Restava somente aparelhar a "virgem". (7)
-O compadre sabe a história do pau de feitiço?
Nunes não sabia. Nunes não sabia coisa alguma, tirante
emborcar o gargalo e difamar os Porungas. Sem interromper o
esquadrejamento da virgem, Maneta narrou o caso
que ouvira ao pai, o Teixeirão serrador, madeireiro de fama.
-Em cada eito de mato, dizia o meu velho, há um pau
vingativo que pune a malfeitoria dos homens. Vivi no mato
toda a vida, lidei toda casta de árvore, desdobrei desde
embaúva e embiruçu até bálsamo, que é raro por aqui.
Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho-do-mato. E de
tanto lidar com paus, fiquei na suposição de
que as árvores têm alma, como a gente.
-T"esconjuro! -espirrou Nunes.
-Isto dizia lá o velho; eu por mim não dou opinião.
E têm alma, dizia ele, porque sentem a dor e choram. Não
vê como gemem cértos paus ao caírem? E outros como choram tanta
lágrima vermelha, que escorre e vira resina? Ora
pois têm alma, porque neste mundo tudo é criatura de Deus.
-Lá isso...
-Então, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém sabe qual
é, a modo que peitado p"r"a desforra dos
mais. É o pau de feitiço. O desgraçado que acerta meter o
machado no cerne desse pau pode encomendar a alma p"r"o
diabo, que está perdido. Ou estrepado ou de cabeça rachada por um
galho seco que despenca de cima, ou mais tarde
por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito não
escapa. Não "dianta se precatar: a desgraça peala mesmo,
mais hoje, mais amanhã, a criatura marcada.
Isto dizia o velho -e eu por mim tenho visto muita
coisa. Na derrubada do Figueirão, alembra-se? morreu o
filho do Chico Pires. Estava cortando um guamirim quando, de repente,
soltou um grito. Acode que acode, o moço
estava com o peito varado até as costas. Como foi? Como
não foi? Ninguém entendeu aquilo. Eu fiquei cismando e
disse: "É feitiço de pau..." Como este um, quantos casos? O
mundo está cheio. O Sebastiãozinho da Ponte Alta fez uma
casa, o pau da cumeeira ele mesmo o derrubou. Pois não é
que a cumeeira arreia e estronda a cabeça do rapaz? Por
isso meu pai, sabido que era, especulava primeiro se por ali
perto não tinha havido desgraça. Era para ver se o feitiço
estava solto ou preso, e precatar-se.
Com estas e outras ia Maneta florejando de lérias as
horas de serviço, enquanto dava os derradeiros retoques no
engenho.
Estava pronto o monjolo. Jubiloso, via Nunes quase realizado o primeiro
sonho das futuras grandezas. Faltava apenas o assentamento, que é
pouco -e ele batia tapas amigos
na peroba vermelha.
-Aí, minha velha! Mansinha, hein? Há de chamar-se
Tira-prosa de Porungas, Cabaças e Cuias, eh! eh!
Recolheram cedo nesse dia para solenizar o feito à custa
dum ancorote (8) de cachaça, que esvaziaram a meio.
Dias depois, bem fincado, bem socado o pilão, o monjolo recebeu
água. Aberta a bica, um jorro d"enxurro espumejou no cocho, encheu-o,
desbordou para o "inferno". (9) A
engenhoca gemeu na virgem e alçou o pescoço. O cocho
despejou a aguaceira -chóó! A munheca bateu firme no
pilão -pan!
Nunes pulava d"alegria.
-Conheceu, Porungada choca, quem é João Nunes
Eusébio da Ponte Alta?
Mas não lhe bastou aquele barulho, nem a gritaria da
meninada a palmear, nem os ladridos do Brinquinho que,
espantado da maluqueira, latia de longe, a salvo de pontapés. Queria
mais. Correu à espingarda, espoletou-a e, erguendo-a
64 MONTEIRO LOBATO
para o "outro lado", desfechou. Mas o caco velho da
pica-pau não compartilhou da sua alegria, rebentou a espoleta
e calou-se. Nunes inda a manteve uns segundos alçada,
esperando o tiro. Como o fogo tardasse demais, remessou
com ela para longe, embrulhada num palavrão. Lembrou-se depois de três
foguetes sobejados de uma reza; foi buscá-los; atacou-os em direção aos
Porungas.
-Cheira essa pólvora, cuiada!
Infelizmente as bombas, muito úmidas, negaram fogo
por sua vez.
-Tudo nega, compadre! Vamos ver se o ancorote nega
também.
Não negou. E a prova foi roncarem logo p"r"ali como
dois gambás.
No outro dia partiu Maneta para a Ponte Alta, com
grande sentimento do Nunes que perdia nele um companheirão.
Quanto ao monjolo, como não houvesse milho a
pilar, ficou sua estréia para quando se quebrasse a roça.
Cessaram as chuvas de verão. Entrou o outono, refrescado,
limpo. Amarelaram as folhas do milharal, as espigas
penderam, maduras. Começou a quebra. Muito impaciente,
Nunes debulhou o primeiro jacá recolhido e atochou o pilão.
Ai! Não há felicidade completa no mundo. O engenho
provou mal. Não rendia a canjíca. Desproporcionada ao
cocho, a haste não dava o jogo da regra. A mão, por muito
leve ou por defeito de esquadria na virgem, guinava à
esquerda ao bater, espirrando milho para fora. Por mal dos
pecados, à primeira chuvinha o pilão entrou a rever agua.
Fora escavado em madeira ventada. (10) Não prestava.
Nunes, de má sombra, represando a cólera, meteu-se a
reparar tantas "torturas". Diminuiu o peso ao macaco, (11)
engrossou as águas, amarrou ali, especou acolá, calafetou
fendas. Consumiu dias em luta surda contra as manhas do
mal-engonçado. Mas a peste do monstrengo respondia a
cada arranjo com uma reincidência de desalentar.
O pobre homem explodiu, então. Da boca lhe espirraram injúrias sem
fim contra o patife do carapina.
-Excomungado do diabo de maldelazento de maneta...
Impossível meter no papel todas as contas do rosário;
as miúdas inda cabem, mas as graúdas não podem sair
do Varjão. Além de injúrias, ameaças. Que iria à Ponte
Alta rachar o compadre à foice; que lhe vazava a outra
vista; que...
Num desses desabafos, a tola da mulher meteu a colher
torta no meio.
-Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o "queixo duro"
não fez caso...
Ai! Nunes, que só esperava por aquilo, passou a mão na
sapuva (12) e encarnando na esposa o odiado maneta deslombou-a numa sova
de
consertar negro ladrão.
-Toma, cachorro! Toma, excomungado do inferno!
Aprende a fazer monjolo, porco sujo! e malhava...
A mulher sumiu-se aos pinotes mata adentro, seguida
do mulherio miúdo; e por oito dias andou em esfregações
de salmoura pela polpa avergoada. Nunes, porém, melhorou
consideravelmente com o derivativo. Mundificou-se da
bílis.
A nova de tais sucessos chegou à Porungada. Pedro,
exultante, não teve mão de si, quis ver com os próprios
olhos a caranguejola que o vingava tão a pique. Meditou
um plano, e lá um dia transpôs o espigão, rumo à casa do
rival. Voltou uma hora depois espremendo risos fungados.
-Eh, eh, minha gente! Vocês não calculam. Quando
virei o espigão ja ouvi o barulho -chóó-pan -, uma ronqueira dos
diabos! Disse comigo: roncar, ele ronca, eh, eh!
Fui chegando. O Nunes,
jururu, estava debulhando milho na porta. Quando
me viu entreparou, amode que assombrado.
-"É de paz!" eu disse, e me plantei diante dele. "Dois
chefes de família, ainda mais vizinhos, não podem viver
toda a vida assim de focinho "trucido" um p"r"o outro. O
que foi, foi. Acabou-se. Toque."
Ele relanceou os olhos p"r"o lado da ronqueira -eh,
eh! -e muito desconchavado me espichou a mão sem
abrir o bico.
-"Traga um café!", gritou p"ra dentro.
Enfiei os olhos pela casa: estava "assim" de mulherada
na cozinha! Peguei de prosa. Ele foi respondendo. Conversa sem graça,
amarradinha. Por fim especulei: "E o monjolo, vizinho, ficou na ordem?"
Nunes amarelou que nem
esta folha!
-"É bonzinho, rende bem..."
-"Quero ver", disse eu, "se não é curiosidade..."
-"Pois vá", respondeu sem se mexer do lugar.
E fui.
Nossa Virgem! Aquilo nunca foi monjolo, nem aqui nem
na casa do diabo! Só se vê amarrilhos de cipó e espeques e
macacos. A haste tem nove palmos e o cocho a mó que tem
dez!...
-Quiá! quiá! quiá! -cacarejou a roda, que em matéria
de monjolo era entendidíssima.
-A mão não pesa, homem, não pesa nem arroba e
meia! A virgem está errada e fora do prumo. Milho está
que está alvejando o chão. A mão pincha duma banda.
Os Porunguinhas babavam.
-Então, roncar ele ronca?
-Nossa! Ronca que nem uma trumenta. Mas, socar? O
boi soca! Nem três litros rende por dia. Homem, gentes,
aquilo é coisa que só vendo!
A cara dos Porungas, anuviada desde o incidente da
peroba, refloriu dali por diante nos saudáveis risos escarninhos do
despique. As nuvens foram escurentar os céus do
Varjão. Era um nunca se acabar de troças e pilhérias de
toda ordem. Inventavam traços cômicos, exageravam as
trapalhices do mundéu. Enfeitavam-no como se faz ao mastro de São
João. Sobre as linhas gerais debuxadas pelo velho, os Porunguinhas iam
atando cada qual o seu buquê, de
modo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente
cômica. A palavra Ronqueira entrou a girar nas vizinhanças
como termo comparativo de tudo quanto é risível ou sem
pé nem cabeça.
Aos ouvidos do Nunes foram bater tais rumores. O
orgulho, muito medrado no período dos sonhos de grandeza, murchara-lhe
como fruta verde colhida antes do tempo. Mas, impossibilitado de
vingar-se, deu de criar um
rancor surdo contra a Ronqueira, que, trôpega, lá ia malhando, dia e
noite, chóô-pan, muito lerda, muito parca de
rendimento. Para acalmar a bílis, Nunes dobrou as doses
de cachaça.
A mulher amanhava a casa num grande desconsolo da
vida, esmolambada, sem mais esperanças d"arranjo p"r"aquele homem.
Sempre rentando o pai, somíssimo, Pernambi parecia
um velhinho idiota. Não tirava da boca o pito e cada vez
batia mais forte no mulherio miúdo.
Brinquinho desnorteara. Sentado nas patas traseiras olhava, inclinando a
cabeça, ora para um, ora para outro, sem
saber o que pensar da sua gente.
E assim, meses.
Afinal, veio a desgraça. Feitiço de pau ou não, o caso foi
que o inocente pagou o crime do pecador, como é da justiça
bíblica. Certo dia soube Nunes que o José Cuitelo da Pedra
Branca, outro compadre, pusera nome a uma égua lazarenta de Ronqueira.
Era demais.
-Até aquele cachorro do Cuitelo! -gemeu o mísero,
passando a mão na garrafa.
Sorveu um gole e:
-Pernambizinho, vem cá. Bebe com teu pai, meu filho.
O menino não esperou novo convite: bebeu, um, dois e
três goles, estalando a língua. O resto da garrafa soverteu-se no
bucho do caboclo. Mal tonteado pelos eflúvios do
álcool, o menino banzou um bocado por ali e depois saiu.
Nunes estirou-se ao sol para dormir.
Era um dia feio de agosto. Céu turvo do fumo das queimadas.
Sol de cobre, sem brilho, a modorrar no ocaso. Folhinhas
carbonizadas a descerem lentas do alto, regirantes.
Transcorrida uma hora, o bêbedo acordou, relanceou
em torno os olhos mortiços.
-Quedele Pernambi? -disse às filhas acocoradas à
soleira da porta.
As meninas não sabiam do irmão.
-Chamem Pernambi, engrolou o bêbedo, recaindo em
cochilo.
Uma das pequenas saiu no encalço do menino.
Os olhos de Nunes a custo se abriam; sua cabeça oscilava, como se lhe
houvessem desossado o pescoço. Da boca
escorria-lhe baba, e molhadas nela as palavras vinham vagas, mal atadas.
Súbito, um grito lancinante ao longe alvorotou a casa.
A mulher, estonteada, surge de dentro do casebre, pára
à porta, orienta-se e corre para onde a voz. As filhas disparam-lhe
atrás, rumo ao monjolo.
Silêncio trágico.
Depois novos gritos -gritos em coro -, gritos de
desespero.
-Coitadinho do meu filho! -uivava lá longe a mãe.
Nunes soergue-se, amparado ao portal.
-Que é isso? -grunhe.
Ninguém lhe responde. Não há ninguém por ali. Mas
no monjolo recrudesce a grita. Para lá segue o bêbedo,
cambaleante. Em caminho dá de cara com a mulher, que
voltava descabelada, a falar sozinha.
-Que é que foi, mulher?
Arrostando com o marido, a pobre mãe afuzila nos olhos
um raio de cólera incoercível.
-O que é? É tua obra, cachaceiro do inferno! É a tua
pinga, homem à-toa, esterco imundo! Vá ver, vá ver, vá ver,
desgraçado!...
Nunes alcança o monjolo com dificuldade. E topa um
quadro horrendo. No meio das filhas em grita, o corpinho
magro de Pernambi de borco no pilão. Para fora, pendentes,
duas pernas franzinas -e o monjolo impassível, a subir e
a descer, chóó-pan, pilando uma pasta vermelha de farinha,
miolos e pelanca...
Esvaem-se-lhe os vapores do álcool e em semidemência
Nunes corre ao machado, ringindo os dentes, aos uivos.
-Chegou teu dia, desgraçado!
Cena lúgubre foi aquela! Entre rugidos de cólera, o louco
arremessava golpes tremendos contra o engenho assassino. Uma pancada na
mão -toma Barbazu! Outra na haste
-rebenta demônio! Outra no pilão -estoura feiticeiro do
diabo! -E pan, pan, pan -dez, vinte, cem machadadas
como nunca as desferiu derrubador nenhum com tal rijeza
de pulso.
Cavacos saltavam para longe, róseos cavacos da peroba
assassina. E lascas. E achas...
Longo tempo durou o duelo trágico da demência contra
a matéria bruta. Por fim, quando o monjolo maldito era já
um monte escavado de peças em desmantelo, o mísero
caboclo tombou por terra, arquejante, abraçado ao corpo
inerte do filho. Instintivamente, sua mão trêmula apalpava
o fundo do pilão em procura da cabecinha que faltava.
Notas:
1. O conto "A Vingança da Peroba" foi publicado na primeira edição
de Uru pês,
com o título de "Chóóó! Pan!".
2. Cuiame: Porção de cuias. Jogo de palavras; as cuias se fazem das
cabaças, ou porungas.
3. Cocho: Parte traseira do monjolo, que recebe a água.
4. Haste: Madeiro comprido que constitui a parte principal do monjolo.
5. Munheca: Mão de monjolo, peça que serve para pilar.
6. Pilão: Recipiente de madeira (tronco escavado) que recebe o milho a
ser pilado.
7. Virgem: Peça em cuja forquilha gira a haste.
8. Ancorote: Barrilete próprio para transportar pinga em Lombo de
burro.
9. Inferno: Lugar onde a água que move o monjolo despeja depois de
enchido o cocho.
10. Madeira ventada: Madeira naturalmente rachada.
11. Macaco: Contrapeso destinado a assegurar o bom equilíbrio de haste do
monjolo.
12. Sapuva: Madeira de que se fazem bons porretes.
Um suplício moderno
Todas as crueldades de que foi useira a Inquisição para
reduzir heréticos, as torturas requintadas da "questão" medieval, o
empalamento otomano, o suplício chinês dos mil
pedaços, o chumbo em fusão metido a funil gorgomilos
adentro -toda a velha ciência de martirizar subsiste ainda
hoje encapotada sob hábeis disfarces. A humanidade é sempre a mesma cruel
chacinadora de si própria, numerem-se
os séculos anterior ou posteriormente ao Cristo. Mudam de
forma as coisas; a essência nunca muda. Como prova denuncia-se aqui um
avatar moderno das antigas torturas: o
estafetamento.
Este suplício vale o torniquete, a fogueira, o garrote, a
polé, o touro de bronze, a empalação, o bacalhau, o tronco,
a roda hidráulica de surrar. A diferença é que estas engenharias matavam
com certa rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por anos a
agonia do paciente.
Estafeta-se um homem da seguinte maneira: o governo,
por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do
"familiar" do Santo Ofício, nomeia um cidadão
estafeta do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por via
férrea.
O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra penetrar na falange
gorda dos carrapatos orçamentívoros que
pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês um
ordenado fixo, tendo arrumadinha, no
futuro, a cama fofa da aposentadoria.
Note-se aqui a diferença entre os ominosos tempos medievos e os
sobreexcelentes da democracia de hoje. O absolutismo agarrava às brutas a
vítima e, sem tir-te nem habeas-corp os, trucidava-a; a democracia opera
com manhas
de Tartufo, arma arapucas, mete dentro rodelas de laranja
e espera aleivosamente que, sponte sua, caia no laço o passarinho. Quer
vítimas ao acaso, não escolhe. Chama-se a
isto -arte pela arte...
Nomeado que é o homem, não percebe a princípio a sua
desgraça. Só ao cabo de um mês ou dois é que entra a
desconfiar; desconfiança que por graus se vai fazendo certeza, certeza
horrível de que o empalaram no lombilho duro
do pior matungo das redondezas, com, pela frente, cinco,
seis, sete léguas de tortura a engolir por dia, de mala postal
à garupa.
Eis as puas do aparelho de tormento, as tais léguas!
Para o comum dos mortais, uma légua é uma légua; é a
medida duma distância que principia aqui e acaba lá. Quem
viaja, feito o percurso, chega e é feliz.
As léguas do estafeta, porém, mal acabam voltam da
capo, como nas músicas. Vencidas as seis (suponhamos um
caso em que sejam só seis) renascem na sua frente de volta.
É fazê-las e desfazê-las. Teia de Penélope, rochedo de Sísifo,
há de permeio entre o ir e o vir a má digestão do jantar
requentado e a noite mal dormida; e assim um mês, um
ano, dois, três, cinco, enquanto lhes restarem, a ele nádegas,
e ao sendeiro lombo.
Quando cruza um viandante a jornadear, morde-o a
inveja: aquele breve "chegará", ao passo que para o estafeta
tal verbo é uma irrisão. Mal apeia, derreado, com o coranchim em fogo, ao
termo dos trinta e seis mil metros da
caminheira, come lá o mau feijão, dorme lá a má soneca e
a aurora do dia seguinte estira-lhe à frente, à guisa de
"Bom dia!", os mesmos trinta e seis mil metros da véspera,
agora espichados ao contrário...
Breve o animal, pisado, dá de si, fraqueja. Já os topes o
cavaleiro galga a pé. Não possui meios de adquirir outra
montada. O ordenado vai-se-lhe em milho e "rapador" (1)
para a alimária, água de sal para os semicúpios e mais
remédios às pisaduras de ambos, cavalgante e cavalgado.
Não sobeja sequer para roupa.
Dá-lhe o Estado -o mesmo que custeia enxundiosas
taturanas burocráticas a contos por mês, e baitacas parlamentares a 200
mil réis por dia -dá-lhe o generoso Estado...
cem mil réis mensais. Quer dizer "um real" por nove braças
de tormento. Com um vintém paga-lhe trezentos e trinta
metros de suplício. Vem a sair a sessenta réis o quilômetro
de martírio. Dor mais barata é impossível.
O estafeta entra a definhar de canseira e fome. Vão-se-lhe as carnes, as
bochechas encovam, as pernas viram parênteses dentro dos quais mora a
barriga do desventurado rocim.
Além das calamidades fisiológicas, econômicas e sociais, chovem-lhe em
cima as meteorológicas. O tempo inclemente não lhe poupa judiarias.
No verão não se dói o sol de assá-lo como se assam
pinhões nas cinzas. Se chove, de nenhuma gota se livra.
Pelos fins de maio, à entrada do frio, é entanguido como um
súdito de Nicolau exilado nas Sibérias que devora as léguas
infernais. No dia de S. Bartolomeu, agarrado de unhas à
crina da escanzelada égua, é por milagre que não os despeja
a ambos, pirambeira abaixo, o endemoninhado vento.
O patrão-governo pressupõe que ele é de ferro e suas
nádegas são de aço; que o tempo é um permanente céu com
"brisas fagueiras" ocupadas em soprar sobre os caminhantes os olores da
"balsamina em flor".
Pressupõe ainda que os cem mil réis do salário são uma
paga real de lamber as unhas. E, nestas angelicais pressuposiçÕes, quando
há crises financeiras e lhe lembram economias, corta seus cinco, seus dez
mil réis no pingue ordenado, para que haja sobras permitidoras d"ir à
Europa um
genro em comissão de estudos sobre "a influência zigomática do periélio
solar no regime zaratústrico das democracias latinas".
E assim o exército dos estafetas, dia a dia mais encanifrado, encalacrado
de dívidas, enchagado de pisaduras, ao
sol de dezembro ou à garoa entanguente de junho, trota,
trota sem cessar, morro acima, morro abaixo, por atoleiros
e areões, caldeirões e escorregadoiros, sacudido pela miseranda
cavalgadura que de tanto padecer, coitada, já nem
jeito de cavalo tem.
O lombo delas é todo uma chaga viva; as costelas, um
ripado. Caricaturas contristadoras do nobre Equus, um dia
rebentam de fome, exaustas, a meio de viagem.
O estafeta toma às costas os
arreios , a mala, e conclui a
caminheira a pé. Nesse dia chega fora de horas, e o agente
do correio oficia ao centro sobre a "irregularidade".
O centro move-se; faz correr um papelório através de
várias salas onde, comodamente espapaçada em poltronas
caras, a burocracia gorda palestra sobre espiões alemães.
Depois de demorada viagem, o papelório chega a um gabinete onde impa em
secretária de imbuia, fumegando o seu
charuto, um sujeito de boas carnes e ótimas cores. Este
vence dois contos de réis por mês; é filho d"algo; é cunhado,
sogro ou genro d"algo; entra às onze e sai às três, com folga
de permeio para uma "batida" no frege da esquina.
O canastrão corre os olhos mortiços de lombeira por
sobre o papel e grunhe:
-Estes estafetas, que malandros!
E assina a demissão daquele a bem do serviço público.
(E se isso não acontece, acontece pior. Certa vez o agente do correio
duma cidadezinha paulista oficiou ao centro
queixando-se do estafeta. O centro respondeu autorizando-o a "punir com
severidade o faltoso". O agente medita
a sério sobre o caso; depois, mostrando o ofício ao estafeta,
e com muita dor de coração, ferra-lhe em nome do Governo
a maior sova de chicote de que há memória no lugar. Em
seguida, oficia ao centro dando conta do desempenho da
missão e declarando que o serviço ficaria interrompido por
uma quinzena, visto o paciente estar de cama, a curar-se
com salmoura...)
O supliciado, posto no olho da rua, sem saúde, sem
cavalo, sem nádegas, coberto de dívidas, com o fígado e
mais vísceras fora do lugar em virtude do muito que "chacoalharam", vê-se
logo rodeado pela chusma de credores,
ávidos como urubus de charqueada. Como está nu, mais nu
que Job, não pode pagar a nenhum -e ganha fama de
caloteiro.
-Parecia um homem sério, e no entanto roubou-me
cinco alqueires de milho, diz o da venda, calabrês gordo,
enricado no passamento de notas falsas.
-Tomou-me emprestados cem mil réis para a compra
de um cavalo, a jurinho d"amigo (cinco por cento ao mês),
já lá vão cinco anos, e por muito favor pagou-me o premiozinho e deu os
arreios por conta. Que ladrão! diz o onzeneiro, sócio do outro na nota
falsa.
A loja de fazenda chora umas calças de algodão mineiro
que lhe fiou em tempo. A farmácia, um quilo de sal-amargo
falsificado. Abeberado de insultos, o mártir só vê pela frente uma saída:
fincar o pé na estrada e fugir... fugir para uma
terra qualquer onde o desconheçam e o deixem morrer em paz.
Dest"arte, o moderno suplício do estafetamento, além de
charquear as carnes duma criatura humana limpa de crimes, dá-lhe ainda de
lambuja uma bela mortezinha moral.
Tudo isto a fim de que não falte aos soletradores de tais
bibocas do sertão o pábulo diário de graxa preta em fundo
branco, por meio do qual se estampam em língua bunda as
facadas que Pé Espalhado deu no Camisa Preta, o queijo
que furtou o Baianinho ao Manoel da Venda, o romance
traduzido de Jorge Ohnet, o salvamento da pátria pela alta
volataria nacional, o palavreado gordo das ligas disto e
daquilo, a descoberta de espiões onde nada há que espiar,
a policultura, o zebu, o analfabetismo, o aliadismo, o germanismo, as
potocas da Havas e quanta papalvice grela por
massapés e terras roxas deste país das arábias.
A política do coronel Evandro em Itaoca deu com o
rabo na cerca des"que em tal pleito o competidor Fidêncio,
também coronel, guindou a cotação dos votos de gravata a
quinhentos mil réis, e a dos votos de pé-no-chão a dois
parelhos de roupa, mais um chapéu.
O primeiro ato do vencedor foi correr a vassoura do
Olho da Rua em tudo quanto era olhodarruável em matéria
de funcionalismo público. Entre os varridos estava a gente
do correio, inclusive o estafeta, para cuja substituição inculcou-se ao
governo o Izé Biriba.
Era este Biriba um caranguejo humano, lerdo de maneiras e atolambado de
idéias, com dois percalços tremendos
na vida -a política e o topete.
O topete consistia num palmo de grenha teimosa em lhe
cair sobre a testa, e tão insistente nisto que gastava ele
metade do dia erguendo a mão esquerda à altura da fronte
para, num movimento maquinal, botar p"r"arriba a crina
rebelde. A política escusa dizer o que é.
Coligados ambos, topete e política comiam-lhe o tempo
inteiro, de jeito a não lhe deixar folga nenhuma para o
amanho do sítio, que, afinal, roído pelo cupim da hipoteca,
lá foi parar nas unhas dum onzeneiro ladrão.
Montou em seguida botequim mas faliu. Enquanto Biriba arrumava o topete,
os fregueses surrupiavam-lhe os mata-bichos; e nas cavaqueiras políticas,
os correligionários, de
passo que expeliam diatribes contra o governo, sorviam
capilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe por conta da vitória
futura.
Além do topete tinha Biriba o sestro do "sim senhor"
alçado às funções de vírgula, ponto-e-vírgula, dois-pontos e
ponto final de todas as parvoiçadas emitidas pelo parceiro;
e às vezes, pelo hábito, quando o freguês parando de falar
entrava a comer, continuava ele escandindo a "sim senhores" a mastigação
do bolinho filado.
-q
URUPÊS 77
Ao tempo da queda do outro e subida de sua gente,
andava Biriba reduzido à conspícua posição de "fósforo"
eleitoral. No pleito trabalhara como nenhum. Deram-lhe as
piores missões -acuar eleitores tabaréus embibocados nos
socavões das serras, negociar-lhes a consciência, debater
preço de votos, barganhá-los com éguas lazarentas e provar
aos desconfiados, com argumentos de cochicho ao ouvido,
que o governo estava com eles.
Após a vitória, sentiu pela primeira vez um gozo integral de coração,
cabeça e estômago.
Vencer! Oh, néctar! Oh, ambrosia incomparável!
O nosso homem regalou as vísceras com o petisco dos
deuses. Até que enfim os negrores da vida de misérias lhe
alvorejavam em aurora. Comer à farta, serrar de cima...
Delícias do triunfo!
Que lhe daria o chefe?
No antegozo da pepineira iminente, viveu a rebolar-se
em cama de rosas até que rebentou sua nomeação para o
cargo de estafeta.
Sem queda para aquilo, quis relutar, pedir mais; na
conferência que teve com o chefe, entretanto, as objeções
que lhe vinham à boca transmutavam-se no habitual "sim
senhor", de modo a convencer o coronel de que era aquilo
o seu ideal.
-Veja, Biriba, quanto vale a felicidade! Pilha um empregão! Vai o Regino
para agente e você para estafeta.
O mais que ele pôde alegar foi que não tinha cavalgadura.
-Arranja-se, resolveu de pronto o coronel; tenho lá
uma égua moira legítima, de passo picado, que vale duzentos mil réis. Por
ser para você, dou-a por metade. O dinheiro? É o de menos. Você toma-o de
empréstimo ao Leandrinho. Arranja-se tudo, homem.
O arranjo foi adquirir Biriba uma égua trotona pelo
dobro do valor, com dinheiro tomado a três por cento ao tal
Leandro, que outra coisa não era senão o testa-de-ferro do
próprio Fidêncio. Dest"arte, carambolando, o matreiro chefe
punha a juros o pior sendeiro da fazenda, além de conservar pelo cabresto
da gratidão ao idiota estafetado.
Iniciou Biriba o serviço: seis léguas diárias a fazer hoje
e a desfazer amanhã, sem outra folga além do último dia
dos meses ímpares.
Inda bem se fora devorar as léguas na só companhia da
chupada mala postal. Mas não lhe saiu serena assim a empresa. Como Itaoca
não passasse de mesquinho lugarejo
empoleirado no espinhaço da serra e desprovido de tudo,
não transcorria vez sem que os amigos políticos não viessem com
encomendas a aviar na cidade. À hora de partir,
surgiam aproveitadores com listinhas de miudezas, ou moleques com
recados.
-Sinhá disse assim p"ra suncê comprar três carretéis
de linha cinqüenta, um papel de agulhas, uma peça de
cadarço branco, cinco maços de grampo miúdo e, se sobejar
um tostão, p"ra trazer uma bala de apito p"r"o seu Juquinha.
Todos aqueles artigos existiam em Itaoca, um tantinho
mais caros, porém o encomendá-los fora visava apenas a
economia do tostão da bala de apito.
-Sim senhor, sim senhor!...
Não lhe escapava da boca outro som, embora o exasperasse a contínua
repetição do abuso.
Além das pequenas encomendas, pouco trabalhosas, surgiam outras de vulto,
como levar um cavalo arreado ao sr.
Fulano que vinha em tal dia, acompanhar a mulher de
Etcetrano, e que tais. A Tibúrcia, cozinheira preta do coletor, cada vez
que ia de férias descansar à cidade era o Biriba
o indicado para conduzi-la.
Foi como o conheci, guardando costa às amazonas. De
viagem para Itaoca, a meio caminho topo um homem encavalgado na mais
avariada égua que jamais meus olhos viram. à garupa iam malas do correio
e vários picuás; no
santo-antônio, mais picuás além duma vassoura nova enganchada nos
arreios
com a palha para cima. Estava parado, em atitude idiotizada, segurando
pelo cabresto um cavalinho de silhão. Abordei-o, pedindo fogo. Aceso o
cigarro, indaguei de quem montava a cavalgadura vazia.
-"Não vê" que estou acompanhando a dona Engrácia,
que é parteira em Itaoca. Ela apeou um bocadinho e...
Ouvi rumor atrás: saía do mato uma mulheraça rúbida,
de saias tufadas de goma, tendo na cabeça um toucadinho
coevo de 5. M. Fidelíssima... Para não vexá-la, pus-me a
caminho, não sem, voltando a cara de soslaio, regular-me
com os apuros do estafeta para entalar nas andilhas as
cinco arrobas da parteira aliviada.
E descomposturas...
-Seu Biriba, não foi linha 40 que eu encomendei. O
senhor parece bobo!
Quando a fazenda era má:
-Não viu que a chita desbotava? Que moda!
Doía-lhe, sobretudo, carretear para a execrável gente da
oposição. O coronel contrário não se pejava de por intromissão de
terceiro, neutro ou oposicionista encapotado, abusar da boa-fé do mártir.
Lembrava-se Biriba, com dor d"alma, de um bode de raça que lhe dera
grandes trabalhos
pelo caminho -e várias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificou
que vinha para o inimigo.
Toda a gente gozou do caso, entre espirros de riso e
galhofa.
-É um pax vobis o Biriba! Trazer o bode da oposição!
Quiá! Quiá! Quiá!
Estas e outras foram-lhe azedando os fígados e as vísceras
circunvizinhas. Biriba emagreceu. Biriba amarelou.
A égua, coitada, perdeu a feição cavalar. Seu lombo
selara em meia-lua, de modo que por um nadinha não
raspavam o chão os pés do cavaleiro. Montado, Biriba afundava. Sua cabeça
caía quase ao nível duma linha tirada da
anca às orelhas da égua. Horrendamente pisada, trazia a
bicha nos olhos permanentes lágrimas de dor; mas em vez
de tanta mazela mover ao dó o coração dos itaoquenses,
regalava-os, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acerca
do "Estafeta da Triste Figura mais a sua Bucéfala", como
os batizou um engraçado local.
Lazarento como eles, só o Cunegundes, cão sem dono,
coberto de sarna, que perambulava a esmo pela cidade,
fugindo a moscas e pontapés. Pois não lhe mudaram o
nome para Biribinha? Cachorrada!
Não tardou muito viesse o governo dar sua volta ao
torniquete, cortando dez mil réis no ordenado dos estafetas
-para salvar-se em certa ocasião de apuros financeiros. E
salvou-se, esta é que é!.
A roupa no fio. A entrada das chuvas uma alma caridosa deu-lhe uma velha
capa de borracha; mas no primeiro
aguaceiro verificou Biriba que tal capote vazava como peneira, de modo a
piorar-lhe a situação com a sobrecarga
dum panejamento absorvedor de litros d"água.
Biriba, perdida a paciência, murmurou.
Ai! Soube-o logo o chefe e fê-lo vir a contas.
-É certo que o senhor me anda arrenegando do emprego que lhe demos?
Queria, acaso, ser eleito senador ou
vice-presidente? Um pedaço de porcalhão que andava aí
lambendo embira, morre não morre de fome, passa, por
generosidade nossa, a ocupar um cargo federal com ordenado relativamente
bom (aqui Biriba tossiu um... sim senhor"), encontra todas as
facilidades, recebe um bom animal e ainda se queixa? Que quer então Vossa
Excelência?
Biriba intumesceu-se de coragem e declarou querer uma
coisa só: a demissão. Estava doente, surradíssimo, ameaçado de perder de
um momento para outro a égua e as
nádegas. Queria mudar de vida.
Muda-se, então, de vida assim do pé para a mão?
Quer abandonar os amigos? E a disciplina partidária onde
fica, meu caro palerma?
Não convinha a ninguém a saída do Biriba. Quem mais
serviçal? Lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos de
trazer um papel d"agulha fosse para quem
fosse. Não sairia. Itaoca impunha-lhe o sacrifício de ficar.
Mas a tortura do diário chocalhar por sete léguas das
vísceras do Biriba acabou por desconjuntar nele o cimento
da lealdade partidária. O mártir abriu os olhos. Lembrou-se com saudades
dos ominosos tempos do coronel Evandro,
das delícias do botequim e até do calamitoso período da
degradação "fosfórica". Piorara após o triunfo, não havia
dúvida.
Este livre exame de consciência -crede-me, foi o início
da queda do coronel Fidêncio em Itaoca. Biriba, o firme
esteio, apodrecia pelo nabo; viria abaixo, e com ele a cumeeira do
pardieiro político. A víbora da traição armara
ninho em sua alma.
Como o novo pleito se aproximasse, nova vitória lhe
seria novo triênio de martírio. Biriba ponderou de si para
sua égua que a salvação de ambos estava na derrota. Demitiam-no, e ele,
veterano e mártir do fidencismo, continuaria
com jus ao apoio do partido, sem padecer por via coccigiana o contato
odioso das sete horas diárias de socado.
Deliberou trair.
Na véspera da eleição incumbiu-o Fidêncio de trazer da
cidade um papel importantíssimo para o tribofe das urnas.
Sei lá o que era! Um "papel". A palavra "papel" dita assim
em tom de mistério traz no bojo coisas
Fidêncio frisou a gravidade da incumbência -a maior
prova de confiança jamais dada por ele a um cabo eleitoral.
-Veja lá! A nossa sorte está nas suas mãos. Isto é que
é confiança, hein?
Partiu Biriba. Recebeu na cidade o "papel" e rodou
para trás. A meio caminho, porém, tomou por uma errada,
foi ter à biboca dum negro velho, soltou a égua, pegou de
prosa com o gorila. Caiu a noite: Biriba deixou-se ficar.
Alvoreceu o dia seguinte: Biriba quieto. Dez dias se passaram assim. Ao
cabo, arreou a égua, montou e botou-se para
Itaoca como se nada houvera acontecido.
Foi um assombro a sua aparição. Baldadas as tentativas
para apanhá-lo no dia do pleito e nos posteriores, deram-no
como papado pelas onças, ele, égua, mala postal e "papel".
Vê-lo agora surgir sãozinho da silva foi um abrir de boca e
um pasmar à vila inteira. Que houve? Que não houve?
A todas as perguntas Biriba armava na cara a suprema
expressão da idiotia. Nada explicava. Não sabia de nada.
Sono cataléptico? Feitiço? Não compreendia o sucedido.
Afigurava-se-lhe ter partido na véspera e estar de volta no
dia certo.
Ficaram todos maravilhados, com asníssimas caras.
Fidêncio delirava na cama, com febre cerebral. Perdera
a eleição redondamente. "Derrota fedida", arrotavam os
vencedores, atochando foguetes de assobio.
Em conseqüência do inexplicável eclipse do estafeta senhoreou-se do
rebenque o ex-ominoso Evandro. Começou a
derrubada. O olho-da-rua recebeu em seu seio tudo quanto
cheirava a fidencismo. A vassoura da demissão, porém,
poupou a... Biriba.
O novo cacique aproximou-se dele e disse:
-Demiti toda a canalha, Biriba, menos a você. Você é
a única coisa que se salva da quadrilha do Fidêncio. Fique
sossegado, que do seu lugarzinho ninguém o arranca, nem
que o céu chova torqueses.
Pela derradeira vez em Itaoca, Biriba balbuciou o "sim
senhor". À noite deu um beijo no focinho da égua e saiu de
casa pé ante pé. Ganhou a estrada e sumiu.
E nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima...
Nota:
Rapador: Pasto de aluguel muito sovado; rapado.
Meu conto de Maupassant
Conversavam no trem dois sujeitos. Aproximei-me e ouvi:
-"Anda a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há
pouquíssimos Guys..."
-"Por que Maupassant e não Kipling, por exemplo?"
-"Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é nove em dez um
enquadramento engenhoso do amor
e da morte. Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a
substância persiste -o amor, sob a única face impressionante, a que
culmina numa posse violenta de fauno incendido de luxúria, e a morte, o
estertor da vida em transe, o
quinto ato, o epílogo fisiológico. A morte e o amor, meu
caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da
vida arranca a máscara e freme num delírio trágico."
-"Não te rias. Não componho frases. Justifico-me. Na
vida, só deixamos de ser uns palhaços inconscientes a mentirmos à
natureza quando esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto ou acena o
"basta" final que recolhe o mau ator
ao pó. Só há grandeza, em suma, e "seriedade", quando
cessa de agir o pobre jogral que é o homem feito, guiado e
dirigido por morais, religiões, códigos, modas e mais postiços de sua
invenção -e entra em cena a natureza bruta."
-"A propósito de que tanta filosofia, com este calor de
janeiro?..."
O comboio corria entre São José e Quiririm. Região arrozeira em plena
faina do corte. Os campos em sega tinham
o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem européia
de trigais.
A espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em
fuga lenta, se longe, ou rápida, se perto. Vultos femininos
de cesta à cabeça, que paravam a ver passar o trem. Vultos
de homens amontoando feixes de espigas para a malhação
do dia seguinte. Carroções tirados a bois recolhendo o cereal ensacado. E
como caía a tarde e a Mantiqueira já era
uma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimadura
evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do
"Angelus"...
-"Já te digo a propósito de que vem tanta filosofia."
E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma
pausa de minutos. Súbito, apontando um velho saguaraji
avultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:
-"A propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no "meu conto de
Maupassant"".
-"Conta lá, se é curto."
O primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou
o pigarro, como é de estilo. Sem transição foi logo narrando.
-"Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na
estrada. Tipo mal-encarado e ruim. Bebia,
jogava, e por várias vezes andou às voltas com as autoridades. Certo dia
-eu era delegado de polícia -uns piraquaras vieram dizer-me que em tal
parte jazia o "corpo morto"
de uma velha, picado à foice.
Organizei a diligência e acompanhei-os. "É lá naquele
saguaraji", disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. Espetáculo
repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de
horror que me correu pelo corpo ao dar uma topada balofa
num corpo mole. Era a cabeça da velha, semi-oculta sob
folhas secas. Porque o malvado a decepara do tronco, lançando-a a alguns
metros de distância.
Como por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o.
Havia contra ele indícios fortes. Viram-no sair com a foice,
a lenhar, na tarde do crime.
Entretanto, por falta de provas, foi restituído à liberdade, mau grado
meu, pois cada vez mais me capacitava da
sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo -e
negue-se valor ao pressentimento! -o miserável matador
da pobre velha".
-"Que interesse tinha no crime?"
-"Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial
de toda a gente. Não obstante, eu o
trazia de olho, certo de que era o homicida."
O patife, não demorou muito, traspassou o negócio e
sumiu-se. Eu do meu lado deixei a polícia e do crime só
me ficou, nítida, a sensação da topada mole na cabeça da
velha.
Anos depois o caso reviveu. A polícia obteve indícios
veementes contra o italiano, que andava por São Paulo
num grau extremo de decadência moral, pensionista do
xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteramno para cá, onde o
júri iria decidir da sua sorte.
-"Os teus pressentimentos..."
O sujeito sorriu com malícia e continuou.
-"Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o
trem no Brás e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra,
até São José; daí por diante (quem o conta é um soldado
da escolta) metia amiúde os olhos pela janela, como preocupado em ver
qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaraji. Nesse ponto
armou um pincho de gato
e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de
crânio rachado, a escorrer a couve-flor dos miolos perto da
árvore fatal."
-"O remorso!"
-"Está aqui o "meu conto de Maupassant". Tive a
impressão dele nas palavras do soldado da escolta: "veio de
cabeça baixa até São José, daí por diante enfiou os olhos
pela janela até enxergar a árvore e pinchou-se". No progresso ingênuo da
narrativa, li toda a tragédia íntima daquele
cérebro, senti todo um drama psicológico que nunca será
escrito..."
-"É curioso!", comentou o outro, pensativamente.
Mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu
sorridente, com pausada lentidão:
-"O curioso é que mais tarde um dos piraquaras
denunciadores do crime, e filho da velha, preso por picar
um companheiro a foiçadas, confessou-se também o assassino
da velhinha, sua mãe..."
"Meu caro, aquele pobre Oscar Fingall O"Flahertie
Wills Wilde disse muita coisa, quando disse que a vida
sabe melhor imitar a arte do que a arte sabe imitar a vida."
Nota:
Na primeira edição de Urupês, o trabalho "Meu Conto de Maupassant"
tinha o artigo precedendo o possessivo: "O Meu Conto de Maupassant".
"Pollice verso"
Dos dezesseis filhos do coronel Inácio da Gama, cedo
revelou o caçula singulares aptidões para médico. Pelo menos assim
julgara o pai, como quer que o encontrasse na
horta interessadíssimo em destripar um passarinho agonizante.
-Descobri a vocação do Nico, disse o arguto sujeito à
mulher. Dá um ótimo esculápio. Inda agorinha o vi lá fora
dissecando um sanhaço vivo.
Hão de duvidar os naturalistas estremes que o homem
dissesse dissecar. Um coronel indígena falar assim com este
rigor de glótica é coisa inadmissível aos que avaliam o
gênero inteiro pela meia dúzia de pafurícios agaloados do
seu conhecimento. Pois disse. Este coronel Gama abria exceção à regra;
tinha suas luzes, lia seu jornal, devorara em
moço o Rocambole, as Memórias de um Médico e acompanhava debates da
Câmara com grande admiração pelo Rui
Barbosa, o Barbosa Lima, o Nilo e outros. Vinha-lhe daí um
certo apuro na linguagem, destoante do achavascado ambiente glóssico da
fazenda, onde morava.
Quem nada percebeu foi dona Joaquininha, a avaliar
pelo ar emparvecido que deu à cara.
-Dissecando -explicou superiormente o marido -quer dizer destripando.
-E deixou você que ele cometesse semelhante malvadeza? -exclamou a
excelente senhora, compadecida.
-Lá vens com a pieguice!... Deixa-o brincar, que é da
idade, eu em pequeno fazia piores e nem por isso virei
nenhum ogre.
(Outra vez! "Ogre!" O homem nascera precioso. Este
ogre devia ser reminiscência do Ogre da Córsega, Napoleão
chamado. Perdoem-lho à guisa de compensação à parcimônia da esposa, cujo
vocabulário era dos mais restritos.)
Dona Joaquina fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou no
quintal pediu-lhe contas da perversidade,
asperamente. O coronel, que nesse momento lia na rede as
folhas recém-chegadas, houve por bem interromper a ingestão de um
flamante discurso sobre a questão do Amapá
para acudir em apoio ao fedelho.
-Uma vez que será médico, não vejo mal em ir-se
familiarizando com a anatomia...
-A anatomia está ali! -rematou a encolerizada senhora apontando a vara
de marmelo oculta atrás da porta.
-Eu que saiba que o senhor me anda com judiarias aos
pobres animaizinhos, que te disseco o lombo com aquela
anatomia, ouviu, seu carniceiro?
o menino raspou-se; o coronel retomou resignado o fio
do discurso; e o caso do sanhaço ficou por ali.
Mas não ficou por ali a malvadez do Nico. Acautelava-se agora. Era às
escondidas que "depenava" moscas, brinquedo muito curioso, consistente em
arrancar-lhes todas as
pernas e asas para gozar o sofrimento dos corpinhos inertes. Aos grilos
cortava as saltadeiras, e ria-se de ver os
mutilados caminharem como qualquer bichinho de somenos.
Gatos e cães farejavam-no de longe, aterrorizados. Fora
ele quem cortara o rabo ao mísero Joli da agregada Emiliana, e era quem
descadeirava todos os gatos da fazenda.
Isso, longe. Em casa, um anjinho. E assim, anjo internamente e demônio
extramuros, cresceu até a mudança de voz.
Entrou nesse período para um colégio, e deste pulou para
o Rio, matriculado em medicina.
O emprego que lá deu aos seis anos do curso soube-o
ele, os amigos e as amigas. Os pais sempre viveram empulhados, crentes de
que o filho era uma águia a plumar-se,
futuro Torres Homem de Itaoca, onde, vendida a fazenda,
então moravam. Nesta cidade tinham em mente encarreirar
o menino, para desbanque dos quatro esculápios locais, uns
onagros, dizia o coronel, cuja veterinária rebaixava os itaoquenses à
categoria de cavalos.
Pelas férias o doutorando aparecia por lá, cada vez "mais
outro", desempenado, com tiques de carioca, "ss" sibilantes, roupas caras
e uns palavreados técnicos de embasbacar.
Quando se formou e veio de vez, estava já definitivo,
nos vinte e quatro anos. Não se lhe descreve aqui a cara,
porque retratos por meio de palavras têm a propriedade de
fazer imaginar feições às vezes opostas às descritas. Dirse-á unicamente
que era um rapaz espigado, entre louro e
castanho, bonito mas antipático -com o olhar do Stuart
Holmes, diziam as meninas doutoras em cinemas. No queixo trazia barba de
médico francês, coisa que muito avulta
a ciência do proprietário. Doentes há que entre um doutor
barbudo e um glabro, ambos desconhecidos, pegam sem
tir-te no peludo, convictos de que pegam no melhor.
O doutor Inacinho, entretanto, aborrecia aquele meio
acanhado "onde não havia campo
-"Isto aqui", contava em carta aos colegas do Rio, "é
um puro degredo. Clínica escassa e mal pagante, sem margem para grandes
lances, e inda assim repartida por quatro curandeiros que se dizem
médicos, perfeitas vacas de
Hipócrates, estragadores de pepineira com suas consultinhas de cinco mil
réis. O cirurgião da terra é um Doyen
de sessenta anos, emérito extrator de bichos-de-pé e cortador de verrugas
com fio de linha. Dá iodureto a todo o
mundo e tem a imbecilidade de arrotar ceticismo, dizendo
que o que cura é a Natureza. Estes rábulas é que estragam
o negócio", etc.
Negócio, pepineira, grandes lances -está aqui a psicologia do novo
médico. Queria pano verde para as boladas
gordas.
-"Além disso", continuava, É-me insuportável a ausência de Yvonne e de
vocês. Não há cá mulheres, nem
gente com quem uma pessoa palestre. Uma pocilga! As
boas pândegas do nosso tempo, hein?"
Ora aqui está: Yvonne, os amigos, as pândegas foram o
melhor do curso. Com mão diurna e noturna manuseou-os
a estes tratadistas de anatomia, da fisiologia, da calaçaria, e
agora torturavam-no saudades.
Yvonne voltara à pátria, deixando cá a meia dúzia de
amantes que depenara a morrerem de saudades dos seus
encantos. Antes de ir-se, deu a cada parvo uma estrelinha
do céu, para que, a tantas, se encontrassem nela os amorosos olhares. Os
seis idiotas todas as noites ferravam os
olhos, um no "Taureau" (ela distribuíra as constelações em
francês), outro na "Écrevisse", outro na "Chevelure de Bérenice", o
quarto, no "Bélier", o quinto em "Aritarés", e o
derradeiro na "Épi de la Vièrge".
A garota morria de rir no colo dum apache monmartrino, contando-lhe a
história cômica dos seis parvos brasileiros e das seis constelações
respectivas. Liam juntos as seis
cartas recebidas a cada vapor, nas quais os protestos amorosos em
temperatura de ebulição faziam perdoar a ingramaticalidade do francês
antártico. E respondiam de colaboração, em carta circular, onde só
variava o nome da estrela
e o endereço.
Esta circular era o que havia de terno. Queixava-se a
rapariga de saudades, "essa palavra tão poética que fora
aprender no Brasil, o belo país das palmeiras, do céu azul,
e dos michês". Acoimava-os de ingratos, já em novos amores, ao passo que
a pobrezinha, solitária e triste "comme la
juriti", consagrava os dias a rememorar o doce passado.
Eis explicada a razão pela qual, nas noites límpidas,
ficava Inacinho à janela, pensativo, de olhos postos na "Chevelure de
Bérenice".
o sonho do moço era enriquecer às rápidas para reatar
a gostosura do idílio interrompido.
-Paris!... -balbuciava a meia-voz nos momentos de
devaneio, semicerrando os olhos no antegozo do paraíso.
Sonhava-se lá, riquinho, com Yvonne pelo braço, flamando
no "Bois", tal qual nos romances; e a realização deste sonho
era o alvo de todos os seus anelos. Jurara à amiga ir ter com
ela logo que a prosperidade lhe abastasse meios. O tempo,
entretanto, corria sem que nenhuma piabanha de vulto lhe
caísse na rede. Tardava a boiada...
Entre os médicos antigos de Itaoca, o doutor Inacinho
gozava péssimo renome -se renome péssimo pode ser
coisa de gozo.
-Uma bestinha! -dizia um. -Eu fico pasmado mas
é de saírem da Faculdade cavalgaduras daquele porte! É
médico no diploma, na barbicha e no anel do dedo. Fora
d"aí, que cavalo!
-E que topete! -acrescentava outro. -Presumido e
pomadista como não há segundo. Não diz humores ou
sífilis; é mal luético. Eu o que queria era pilhá-lo numa
conferência, para escachar...
O pai, já viúvo então, esse babava-se d"orgulho. Filho
médico, e ainda por cima destabocado e bem falante como
aquele... Era de moer de inveja aos mais. Enlevava-o, sobretudo, aquele
modo aicandorado de exprimir-se. Revia-se no
filho, o coronel...
-A terminologia inteira da ciência alopata, coisas em
grego e latim, circunvolve naquela cabecinha -disse ele
uma vez ao vigário, que o olhou de revés, por cima dos
óculos, ao som daquele mirífico circunvolve.
E assim corria o tempo; entre as diatribes das duas
ciências, a moça e velha, com entremeio dos belos vocábulos que o coronel
nunca perdia de meter na falação.
Entrementes adoeceu o major Mendanha, capitalista aposentado com
trezentas apólices federais, o Rockefeller de
Itaoca. Deu-lhe uma súbita aflição, uma canseira, e a mulher alvoroçou-
se.
-Não é nada, isto passa, acalmou ele.
-Passará ou não!... O melhor é chamar um médico.
-Qual, médico! Isto é nada.
Não era tão nada assim, como pretendia. À noite agravou-se-lhe o mal-
estar, e o velho, apreensivo, cedeu às instâncias da esposa. Chamar a
qual deles, porém?
-Pois o Moura, disse a mulher, para quem o da sua
confiança era este Moura.
-Deus me livre! -retrucou o doente. -Aquilo é
homem mal-azarado. Pois não foi quem tratou o Zeca, o
Peixoto, o Jerônimo? E não esticaram a canela todos três?
-O doutor Fortunato, então...
-O Fortunato! Já esqueceu você do que me ele fez por
ocasião do júri, o tranca? Cobrar cinqüenta mil réis por um
atestado falso? Não me pilha mais um vintém, o pirata...
No doutor Elesbão não se falou: era adversário político.
-Chama-se o Galeno...
-É tão mosca-morta o Galeno... -gemeu o doente
com cara de desconsolo. -Andou anos a tratar o Faria do
Hotel como diabético, e já o dava por morto quando um
curandeiro da roça o pôs saníssimo com um coco da Bahia
comido em jejum. Eram solitárias o diabetes do homem...
Só se viver o filho do Inácio?!
Aqui foi a mulher quem protestou.
-Eu, a falar a verdade, prefiro a ruindade do Galeno,
a má sorte do Moura, e até o Elesbão...
-Esse, nunca!... -interrompeu o velho, num assomo
de rancor político.
-... do que a antipatia do tal doutorzinho. Os outros
ao menos têm a experiência da vida, ao passo que este...
-Este, quê?
-Este, Mendanha, é moço bonito, que o que quer é
dinheiro e pândega, você não vê?
-Qual!... -emberrinchou o teimoso. -Sempre há de
saber um pouco mais que os velhos; aprendeu coisas novas.
No caso de Nhazinha Leandro, não a pôs boa num ápice?
-Também que doença! Prisão de ventre...
URUPÊS 93
-Seja prisão ou soltura, o caso foi que a curou. Mande
chamar o menino.
-Olhe, olhe! Depois não se arrependa!...
-Mande, mande chamá-lo e já, que não me estou
sentindo bem.
Inacinho veio. Interrogou detidamente o major, tomoulhe o pulso,
auscultou-o com o semblante carregado e disse,
depois de longa pausa:
-Não diagnostico por enquanto, porque não sou leviano como "certos" por
aí. Sem auscultação estetoscópica
nada posso dizer. Voltarei mais tarde.
-Vê? -disse Mendanha à esposa logo que o moço
partiu. -Fosse o Moura, ou qualquer dos tais, e já dali da
porta vinha berrando que era isto mais aquilo. Este é consciencioso. Quer
fazer uma auscultação, quê?
-Estereoscópica, parece.
-Seja o que for. Quer fazer a coisa pelo direito, é o
que é.
Voltou o moço logo depois e com grande cerimonial
aplicou o instrumento no peito magro do doente. Vincou de
novo a fisionomia das rugas da concentração e concluiu
com imponente solenidade.
-É uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal.
O doente arregalou o olho. Nunca imaginara que dentro de si morassem
doenças tão bonitas, embora incompreensíveis.
-E é grave doutor? -perguntou a mulher, assustada.
-É e não é! -respondeu o sacerdote. -Seria grave
se, modéstia de lado, em vez de me chamarem a mim
chamassem a um desses matassanos que por aí rabulejam.
Comigo é diferente. Tive no Rio, na clínica hospitalar, numerosos casos
mais graves e a nenhum perdi. Fique descansada que porei o seu marido
completamente são dentro
de um mês.
-Deus o ouça! -rematou a mulher, acompanhando-o
até a porta e já meio reconciliada com a "antipatia".
-Então? -perguntou-lhe o doente. -Fiz ou não fiz
bem em chamar este moço?
-Parece... Deus queira tenhamos acertado, porque isto
de médicos é sorte.
-Não é tanto assim -reguingou o velho. -Os que
sabem, conhecem-se por meia dúzia de palavras, e este moço, ou muito me
engano ou sabe o que diz. Fosse o Fortunato...
E riu-se lá consigo ao imaginar as doencinhas caseiras
que o Fortunato descobriria nele...
A doença do major Mendanha ninguém soube qual fosse. O lindo diagnóstico
de Inacinho não passava de mera
sonoridade pelintra. Bacorejara ao moço que o velho tinha
o coração fraco e qualquer maromba no fígado. Isto porque
lhe doía, a ele, aqui no "vazio"; aquilo por ser natural.
Confessá-lo com esta sem-cerimônia, porém, seria fazer clínica à moda do
Fortunato, e desmoralizar-se. Além do mais,
quem sabe lá se não estaria ali o sonhado lance? Prolongar
a doença... Engordar a maquia...
Inácio não enxergava em Mendanha o doente, mas uma
boiada maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo.
A saúde do velho importava-lhe tanto como as estrelas do
céu -exceção feita à "Cabeleira de Berenice". Como desadorasse a
medicina, não vendo nela mais que um meio
rápido de enriquecer, nem sequer lhe interessava o "caso
clínico" em si, como a muitos. Queria dinheiro, porque o
dinheiro lhe daria Paris, com Yvonne de lambuja. Ora, o
major tinha trezentas apólices... Dependia pois da sua artimanha
malabarizar aquele fígado, aquele coração, aquelas
palavras gregas e, num prestidigitar manhoso, reduzir tudo
a uns tantos contos de réis bem sonantes.
Mandou carta à francesinha: "Os negócios melhoraram.
Estou metido em uma empresa que se me afigura rendosa.
Saindo tudo a contento, tenho esperanças de inda este ano
beijar-te sob a luz da terna confluente dos nossos olhares..."
O velho piorou com a medicação. Injeções hipodérmicas, cápsulas, pílulas,
poções, não houve terapêutica que se
não experimentasse desastrosamente.
-É mais grave o caso do que eu supunha -disse o
doutor à mulher -e os escrúpulos do meu sacerdócio
aconselham-me a pedir conferência médica. Os colegas da
terra são o que a senhora sabe; entretanto, submeto-me a
ouvi-los.
-Não, doutor! Mendanha não quer ouvir falar nos
seus colegas; só tem confiança no doutor Inácio Gama.
-Nesse caso...
Inacinho voltou para casa esfregando as mãos. Estava
só em campo, com todos os ventos favoráveis. Paris corrialhe ao
encontro...
Mau grado seu, na semana seguinte, inesperadamente,
o raio do major apresentou melhoras. Sarava, o patife! E a
Inácio palpitou que com mais uma quinzena daquela arribação o homem se
punha de pé.
Fez os cálculos: trinta visitas, trinta injeções e tal e tal:
três contos. Uma miséria! Se morresse, já o caso mudava de
figura, poderia exigir vinte ou trinta.
Era costume dos tempos fazerem-se os médicos herdeiros dos clientes.
Serviços pagos em caso de cura aí com
centenas de mil réis, em caso de morte reputavam-se em
contos. Se os interessados relutavam no pagamento, a questão subia aos
tribunais, com base no arbitramento. Os árbitros, mestres do mesmo
ofício, sustentavam o pedido por
coleguismo, dizendo em latim: Hodie mihi, cras tibi, cuja
tradução médica é: prepare-se você para me fazer o mesmo,
que também pretendo dar a minha cartada.
Inácio ponderou tudo isto. Mediu prós e contras. Consultou acórdãos. E
tão absorvido no problema andou que à
noite se deixava ficar à janela até tarde, mergulhado em
cismas, sem erguer os olhos para a Berenice estelar.
O que a sua cabeça pensou ninguém o saberá jamais.
Têm as idéias para escondê-las a caixa craniana, o couro
cabeludo, a grenha: isso por cima; pela frente têm a mentira do olhar e a
hipocrisia da boca. Assim entrincheiradas,
elas, já de si imateriais, ficam inexpugnáveis à argúcia
alheia. E vai nisso a pouca de felicidade existente neste
mundo sublunar. Fosse possível ler nos cérebros claros como se lê no
papel e a humanidade crispar-se-ia de horror
ante si própria...
Positivo como era Inacinho, supomos que meteu em
equação o problema das duas vidas.
Primeira hipótese:
Cura do major = três contos.
Três contos = Itaoca, pasmaceira, etc...
Segunda hipótese:
Morte do major = trinta contos.
Trinta contos = Paris, Yvonne, "Bois"...
Depois desta sólida matemática, esta anavalhante filosofia. "A morte é um
preconceito. Não há morte. Tudo é vida.
Morrer é transitar de um estado para outro. Quem morre,
transforma-se. Continua a viver inorganicamente, transmutado em gases e
sais, ou organicamente, feito lucílias, necróforas e uma centena de
outras vidinhas esvoaçantes. Que
importa para a universal harmonia das coisas esta ou aquela
forma? Tudo é vida. A vida nasce da morte. Eu preciso, eu
"quero" viver a minha vida. Há óbices no caminho? Afasto-os..."
Fiquemos por aqui. Não há tempo para filosofias, porque o major Mendanha
piorou subitamente e lá agoniza.
Morreu.
O atestado de óbito deu como causa mortis flegmatite
complicada com necrose elipsoidal. Podia batizá-la de embolia estourada,
nó cego na tripa, tuberculose mesentérica,
estupor granuloso peristáltico ou qualquer outro dos cem
mil modos de morrer à grega.
Morreu, e está dito tudo. Morreu, e o doutor Inacinho
apresentou no inventário uma conta de chegar: trinta e
cinco contos de réis.
Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da Justiça.
Mói-se o palavreado tabelionesco. Saem
das estantes carunchosos trabucos romanos. Procede-se ao
arbitramento.
Os árbitros são Fortunato e Moura, os quais disseram
entre si:
-Que grande velhaco! Mata o homem e ainda por
cima quer ficar-se herdeiro! O tratamento, alto-e-meio, não
vale cem mil réis. Que valha duzentos. Que valha um conto
ou três. Mas trinta e cinco? É ser ladrão!...
No laudo, entretanto, acharam relativamente módico o
pedido -sem dizer relativo a quê.
A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros
ingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou um
monstrozinho chamado sentença, o qual obrigava o espólio
a aliviar-se de trinta e cinco contos de réis em proveito do
médico, mais custas da esvurmadeia forense. Inacinho, radiante, embolsou
os cobres e reconciliou-se com os dois
colegas que, afinal de contas, não eram os cretinos que
supusera.
-Colegas, o passado, passado; agora, para a vida e
para a morte!
-Pois está visto! -disse Fortunato. -Tolo andou
você em abrir luta com os que ajudam o negócio. O coleguismo: eis a nossa
grande força!...
-Tem razão, tem razão. Criançada minha, ilusões, farofas que a idade
cura...
Que mais? Que voou a Paris? É claro. Voou e lá está sob
o pálio da grenha astral, a passear com a Yvonne no "Bois". k
Ao pai escreveu:
-Isto é que é vida! Que cidade! Que povo! Que civilização! Vou
diariamente à Sorbonne ouvir as lições do grande Doyen e opero em três
hospitais. Voltarei não sei quando. Fico por cá durante os trinta e cinco
contos, ou mais, se
o pai entender de auxiliar-me neste aperfeiçoamento de
estudos.
A Sorbonne é o apartamento em Montmartre onde compartilha com o apache da
Yvonne o dia da rapariga. Os três
hospitais são os três cabarés mais à mão.
Não obstante, o pai cismou naquilo cheio d"orgulho,
embora pesaroso: não estar viva a Joaquininha para ver em
que altura pairava o Nico -o Nico do sanhaço estripado...
Em Paris! Na Sorbonne!... Discípulo querido do Doyen, o
grande, o imenso Doyen!...
Mostrou a carta aos médicos reconciliados.
-Isso de hospitais -gemeu o invejoso Fortunato -é
uma mina. Dá nome. Para botar nos anúncios é de primeiríssima.
-E o Doyen? -murmurou, baboso, o embevecido pai.
-Não há como a gente apropinquar-se das celebridades...
-É isso mesmo, concluiu o Moura, relanceando um
olhar ao Fortunato num comentário mudo àquele mirífico
apropinquamento. E os dois enxugaram, à uma, os copos
da cerveja comemorativa mandada abrir pelo bem-aventurado
coronel.
Bucólica
Tanta chuva ontem!... O cedrão do pasto fendido pelo
raio -e hoje, que manhã!
A natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinha
ao deixar o banho. Inda há rolos de cerração vadia nas
grotas. O sol já nado e ela com tanta preguiça de recolher
os véus de neblina... A vegetação toda a pingar orvalho,
bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri como em
êxtase. Há em cada vergôntea folhinhas de esmeralda tenra
brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste:
colhe-as de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhe a
polpa macia.
Meu Deus! O que vai de aranhóis pela relva -nos
galhinhos de joveva, nas flechas de capim, grandes e pequeninos, todos
mimosos de desenho, tecidos a fio de seda...
Compraz-se a noite em agrumar neles milhões de diamantezinhos que a luz
da manhã irisa. Malmequeres por toda a
parte -amarelos, brancos. E tanta flor sem nome...
-Flor à-toa, diz a gente roceira.
São, coitadinhas, a plebe humílima. A nobreza floral
mora nos jardins, esplendendo cores de dança serpentina
sob formas luxuriosas de odaliscas. A duquesa Dália, sua
majestade a Rosa, o samurai Crisântemo -que fidalguia!
Bem longe estão destas aqui, azuleguinhas, um pouco maiores do que uma
conta de rosário.
Não obstante, vejo nestas mais alma. Leio mil coisas na
sua modéstia. Lutaram sem tréguas contra o solo tramado
de raízes concorrentes, contra as lagartas, contra os bichos
que pastam. Que tenacidade, que prodígio de economia
não representam estas iscas de pétalas, e o perfume agreste
que as oloriza, e a cor -tentativa de azul -com que se
enfeitam, as feiticeirinhas!
São belas, sim -da sua beleza, a beleza selvática das
coisas que jamais sofreram a domesticação do homem.
As flores de jardim: escravas de harém... Adubo farto,
terra livre, tutores para a haste, cuidados mil -cuidados
do homem para com a rês na ceva... As agrestes morrem
livres no hastil materno; as fidalgas, na guilhotina da tesoura. Fábula
do lobo e do cão...
Que ar! A gente das cidades, afeita a sorver um indecoroso gás feito de
pó em suspensão num misto de mau
azoto e pior oxigênio, ignora o prazer sadio que é sentir os
pulmões borbulhantes deste fluido vital em estado de virgindade. O
oxigênio fresquinho foi elaborado naquele momento pela vegetação viçosa.
Respirá-lo é sorver vida à
nascente.
Ali, o rio. Ingazeiros desgalhados pendem sobre ele as
franças, cujas pontas lhe arrepiam o espelho das águas.
Caem na corrente flores mortas. O movediço esquife condulas com mimo até
a barulhenta corredeira próxima; lá
irritado, amarfanha-as, fá-las pedaços -e as coitadinhas
viram babugem.
Margeia o rio a estrada, ora d"ocre amarelo, ora roxoterra; aqui, túnel
sob a verdura picada no alto de nesgões
de luz; além, escampa. Nos barrancos há tocos de raízes
decepadas pelo enxadão e covas de formigueiros mortos
onde as corruíras armam ninho.
Surgem casebres de palha.
Lá na aguada bate roupa uma mulher.
Rumor no mato... Sai dele, de lenha ao ombro, uma
cabocla.
-Sirinh"Ana, bom dia! Que é do Luiz?
-No eito, coitado.
-Sarou bem?
-Chê que esperança! Melhorzinho. Panarício é uma
festa!... Baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se num
capão d"anjico. Borboletas amarelas nos úmidos. Parece um
debulho de flores de ipê.
Uma preá que corta o caminho.
-Pega, Vinagre!
Outra casinha, lá longe. E a toca do Urunduva, caboclo
maleiteiro. Este diabo tem no sítio a coisa mais bela da
zona -a paineira grande. Dirijo-me para lá. Um carreirinho entre roças,
a pinguela, um valo a saltar... Ei-la! Que
maravilha!
Derreada de flores cor-de-rosa, parece uma só imensa
rosa crespa. Beija-flores como ali ninguém jamais viu tantos. Milheiros
não digo -mas centenas, uma centena pelo
menos lá está zunindo. Chegam de longe todas as manhãs
enquanto dura a festa floral da paineira mãe. Voejam rápidos como o
pensamento, ora librados no ar, sugando
uma corola, ora riscando curvas velocíssimas, em trabalhos
de amor.
Que lindo amor -alado, rutilante de pedrarias!
Respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em enlevo
a ver as flores que caem regirantes. Se afia mais forte a
brisa, despegam-se em bando e recamam o chão. Devem
ser assim as árvores do país das fadas...
O Urunduva? É ele mesmo. Amarelo, inchado a arrastar
a perna...
-Então, meu velho, na mesma?
-Melhorzinho. A quina sempre é remédio.
-Isso mesmo, quina, quina.
-É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três
cruzados. Estou vendo que tenho de vender a paineira.
-Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por
ela -e inda um capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem
paina p"r"arrobas. Ele quer aproveitar;
derruba o...
Derruba!...
-Derruba e...
-Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus?
-Não vê que é mais fácil de derrubar...
-Derruba!...
Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça.
Aquela maleita ambulante é "dona" da árvore. O Urunduva está classificado
no gênero "Homo". Goza de direitos. É
rei da criação e dizem que feito à imagem e semelhança de
Deus.
Roças de milho. A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo
aguaceiro da véspera, inça-se de tocos carbonizados, e árvores
enegrecidas até meia altura, e paulama em
carvão. Entremeio, covas de milho já espontando folhinhas
tenras.
-Derruba!...
Adiante, feijão. O terreno varrido, cor de sépia, pontilhado pelo verde
das plantas recém-vindas, lembra chita
de velha: as velhas gostam de chitas escuras com pintas
verdes.
É aqui o sítio da Maria Veva. Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até
ali, dizem.
O marido -coitado -um bobo que anda pelo cabresto
-Pedro Suã. Ganhou este apelido desde o célebre dia em
que a mulher o surrou com um suã de porco. Lá vem ele,
de espingardinha...
-Vai caçar?
-Antes fosse. Vou cuidar do enterro.
-Enterro?...
-Pois morreu lá a menina, a Anica.
-Pobrezinha! De quê?
-A gente sabe? Morreu de morte...
Estúpido!
Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto da
Veva. É horrenda, beiço rachado, olhar mau -e aquele papo!
-Então, Nhá, morreu a menina? Soube-o inda agora
pelo Suã...
-É.
Que resposta seca!
-E de que morreu?
-Deus é que sabe.
Peste! E como a atrevidaça me olha duro! Sinto-me mal
em sua presença.
-Adeus, Sicorax!
Para alguma coisa sirva a literatura...
Arrepio caminho, entristecido. A manhã vai alta, já crua
de luz. O sol, estúpido; o azul, de irritar. Que é dos aranhóis? Sumiram-
se com o orvalho que os visibiliza. Estão
agora invisíveis, a apanhar insetinhos incautos que Nhá
Veva Aranha devora. A paisagem perdeu o encanto da
frescura e da bruma. Está um lugar comum. Não vejo flores
nem pássaros. O excesso de luz dilui as flores, o calor
esconde as aves. Só um caracará resiste ao mormaço, empoleirado num
tronco seco de peroba. Está de tocaia aos pintos do Urunduva, o
rapinante.
Um vulto... É mulher... Será a Inácia? Vem de trouxa à
cabeça. É ela mesma, a preta agregada aos Suãs.
-Então, rapariga?
-Ai, seu moço, vou-me embora. Alguém há de ter dó
da velha. Na casa da peste papuda, nem mais um dia!
Antes morrer de fome...
-Que coisa houve?
-Não sabe que morreu a aleijadinha? Pois é, morreu.
Morreu, a pobre, só porque ontem esta sua negra foi no
bairro do Libório e a chuva me prendeu lá. Se eu pudesse
adivinhar...
-Mas de que morreu a menina, criatura?
-Sabe do que morreu? Morreu... de sede! Morreu, sim,
eu juro, um raio me parta pelo meio se a coitadinha não
morreu...
Aqui soluços de choro cortaram-lhe a voz.
-... de seeeede! Meu Deus do céu, o que a gente não
vê neste mundo!
A menina era entrevada e a mãe, má como a irara. Dizia
sempre: Pestinha, por que não morre? Boca à-toa, a comer,
a comer. Estica o cambito, diabo! Isto dizia a mãe -mãe,
hein? A Inácia, entretanto, morava lá só para zelar da aleijadinha. Era
quem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquele passarico
enfermo. Sete anos assim. Excelente
negra!
-Coisa de três dias "garrou uma doencinha, dor de
cabeça, febre. Dei chá de hortelã; nada. Dei cidreira; nada.
Sempre a quentura da febre. Disse comigo: "Vou lá no
bairro e trago uma dose." Fui, é longinho, três quartos de
légua. O curador me deu a dose, mas quem disse de poder
voltar? Uma chuvarada... Pousei no Libório. Hoje, manhãzinha, vim.
Entrei alegre, pensando: a coitadinha vai sarar. Eu que
pisei na alcova, dou com a menina espichada na esteira,
fria. Anica! Anica! Quando vi bem que estava morta de
verdade, ah, seu moço, berrei como nunca na minha vida.
-"Nhá Veva, de que jeito morreu Anica, conte, conte!"
Nhá Veva quieta, repuxando a boca. Uma pedra! Caí
em cima da menina, beijei, chorei. Nisto, uma cutucada era o Zico, aquele
negrinho, sabe? Olhei p"ra ele: fez jeito
de me falar longe da taturana. Lá fora me contou tudo. A
menina, des"que eu saí piorou. Mas quietinha sempre. Noite alta, gemeu.
-"Cala a boca, peste!", gritou do outro quarto a mãe
-mãe, veja!
-"Quero água, nhá mãe."
-"Cala a boca, peste!"
A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez, baixinho.
-"Quero água! Quero água!"
Ninguém se mexeu.
-"E tu, negrinho safado, por que não acudiu a menina?"
-"Não vê! Eu conheço Nhá Veva!..."
Seu Pedro, aquele trapo, esse estava na pinga de todo
dia. Ninguém na casa para chegar uma caneca d"água à
boca da doentinha. Ela, um chorinho ainda; depois, mais
nada. De manhã...
Lágrimas escorriam a fio pela cara da preta e soluços de
dor cortavam-lhe as palavras.
-De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente ao pote
d"água. Arrastou-se até lá, o anjinho que
nem se mexer na cama podia -e morreu de sede diante
da água!...
-Quem sabe se...
-Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava
alto, e a caneca estava tal e qual no lugarzinho do costume.
Não bebeu, não! Morreu de sede, o anjo!
Enxugou as lágrimas na manga.
-Agora vou no Libório. Se ele me quiser, fico. Se não,
sou bem capaz de me pinchar nesse rio. Este mundo não
paga a pena...
Sol a pino. Desânimo, lassidão infinita...
O mata-pau
Píncaros arriba e pirambeiras abaixo, a serra do Palmital escurece de
mataria virgem, sombria e úmida, tramada
de taquaruçus, afestoada de taquaris, com grandes árvores
velhas de cujos galhos pendem cipós e escorrem barbas-depau e musgos..
Quem sobe da várzea, depois de transpostas as capoeiras da raiz, ao
emboscar-se de chofre no frio túnel vegetal
que é ali a estrada, inevitavelmente espirra. E se é homem
das cidades, pouco afeito aos aspectos bravios do sertão,
depois do espirro abre a boca, pasmado da paulama. Extasia-se ante a
graciosa copa dos samambaiuçus, ante as borboletas azuis, ante as
orquídeas, os liquens, tudo.
Sofrea o animal sem o sentir mas não pára. Vai parar
diante, na Volta Fria, onde um broto d"água gelada, a fluir
entremeio às pedras, o tenta a sorver um gole aparado em
folha de caeté. Bebida a água, e dito que nas cidades não há
daquilo, leva-lhe a vista o soberbo mata-pau que domina o
grotão.
-Que raio de árvore é esta? -pergunta ele ao capataz, pasmado mais uma
vez.
E tem razão de parar, admirar e perguntar, porque é
duvidoso existir naquelas sertanias exemplar mais truculento da árvore
assassina.
Eu, de mim, confesso, fiz as três coisas. O camarada
respondeu à terceira;
-Não vê que é um mata-pau.
-E que vem a ser o mata-pau?
-Não vê que é uma árvore que mata outra. Começa,
quer ver como? -disse ele escabichando as frondes com o
olhar agudo em procura dum exemplar típico. Está ali um!
-Onde? -perguntei, tonto.
-Aquele fiapinho de planta, ali no gancho daquele
cedro -continuou o cicerone, apontando com dedo e beiço uma parasita
mesquinha grudada na forquilha de um
galho, com dois filamentos escorridos para o solo. -Começa assinzinho,
meia dúzia de folhas piquiras; bota p"ra
baixo esse fio de barbante na tenção de pegar a terra. E vai
indo, sempre naquilo, nem p"ra mais nem p"ra menos, até
que o fio alcança o chão. E vai então o fio vira raiz e pega
a beber a sustância da terra. A parasita cria fôlego e cresce
que nem embaúva. O barbantinho engrossa todo dia, passa a cordel, passa a
corda, passa a pau de caibro e acaba
virando tronco de árvore e matando a mãe, como este
guampudo aqui -concluiu, dando com o cabo do relho
no meu mata-pau.
-Com efeito! -exclamei admirado. -E a árvore deixa?
-Que é que há de fazer? Não desconfia de nada, a
boba. Quando vê no seu galho uma isca de quatro folhinhas, imagina que é
parasita e não se precata. O fio, pensa
que é cipó. Só quando o malvado ganha alento e garra de
engrossar, é que a árvore sente a dor dos apertos na casca.
Mas é tarde. O poderoso daí por diante é o mata-pau. A
árvore morre e deixa dentro dele a lenha podre.
Era aquilo mesmo! O lenho gordo e viçoso da planta
facinorosa envolvia um tronco morto, a desfazer-se em carcoma. Viam-se
por ele arriba, intervalados, os terríveis cíngulos estranguladores;
inúteis agora, desempenhada já a
missão constritora, jaziam frouxos e atrofiados.
Imaginação envenenada pela literatura, pensei logo nas
serpentes de Laocoonte, na víbora aquecida no seio do homem da fábula,
nas filhas do rei Lear, em todas as figuras
clássicas da ingratidão. Pensei e calei, tanto o meu companheiro era
criatura simples, pura dos vícios mentais que os
livros inoculam. Encavalgamos de novo e partimos.
Não longe dali a serra complana-se em rechã e a mata
mingua em capoeira rala, no meio da qual, em terreiro
descoivarado, entremostra-se uma tapera. Esverdece o melão-de-são-caetano
por sobre o derruído tapume do quintalejo, onde laranjeiras com erva-de
passarinho e uma ou outra planta doméstica marasmam agoniadas pelo mato
sufocante.
-Antigo sítio do Elesbão do Queixo d"Anta, explicou
o camarada.
-Largado? -perguntei.
-Há que anos! Des"que mataram o homem ficou assim.
Bacorejou-me história como as quero.
-Mataram-no? Conte lá isso como foi.
O camarada contou a história que para aqui traslado
com a possível fidelidade. O melhor dela evaporou-se, a
frescura, o correntio, a ingenuidade de um caso narrado por
quem nunca aprendeu a colocação dos pronomes e por isso
mesmo narra melhor que quantos por aí sorvem literaturas
inteiras, e gramáticas, na ânsia de adquirir o estilo. Grandes
folhetinistas andam por este mundo de Deus perdidos na
gente do campo, ingramaticalíssima, porém pitoresca no
dizer como ninguém.
Elesbão morava com o pai no Queixo d"Anta, onde nascera. Quando a
puberdade lhe engrossou a voz, disse ao velho:
-Meu pai, quero casar.
O pai olhou para o filho pensativamente; em seguida
falou:
-Passarinho cria pena é para voar. Se você já é homem, case.
O rapaz pediu-lhe que pusesse em prova a sua virilidade.
O pai refletiu e disse:
-Derrube o jataí da grotinha, sem tomar fôlego.
Elesbão afiou o machado, arregaçou as mangas e feriu
o pau. Em toada de compasso, bateu firme a manhã inteira.
À hora do almoço, o pan pan continuava sem esmorecimento. Só quando o sol
aprumou no pino é que a madeira
gemeu o primeiro estalido.
-Está no chão -disse o pai, que se acercara do filho
exausto mas vitorioso. -Pode casar. É homem.
Elesbão trazia d"olho uma menina das redondezas, filha
do balaieiro João Poca, a Rosinha, bilro sapiroquento de
treze anos, feiosa como um rastolho.
-Meu pai, eu quero a Rosinha Poca.
-Case. Mas ouça o que digo. Os Pocas não são boa
gente. Os machos ainda servem -o João é um coitado, o
Pedro não é má bisca; mas as saias nunca valeram nada. A
mãe da Rosa é falada. Laranjeira azeda não dá laranja-lima.
Você pense.
-Meu pai, o futuro é de Deus. Eu quero casar com a
Rosinha.
-Pois case.
Deliberado com tal firmeza, Elesbão tratou de sitiar-se.
Arrendou a rechã da tapera, roçou, derrubou, queimou,
plantou, armou a choça. Barreadas que foram as paredes,
pediu a menina e casou-se.
Rosa só o era no nome. No corpo, simples botão inverniço, desses que
melam aos frios extemporâneos de maio.
Olhos cozidos e nariz arrebitado, tal qual a mãe. Feia, mas
da feiúra que o tempo às vezes conserta. Talvez se fiasse
nisso o noivo.
Elesbão, rijo no trabalho, prosperou. Aos três anos de
labuta era já sitiante de monjolo, escaroçador e cevadeira, (1)
com dois agregados no eito.
Prole, até esse tempo nenhuma; e isso entristecia a casa.
Mas resignavam-se já ao vazio da esterilidade quando certa
noite soou choro de criança no terreiro.
Não se conta o terror de ambos -aquilo era na certa
alma penada de criança morta pagã. Como, entretanto, a
pobre alma berrasse com pulmões muito da terra, e cada
vez mais, Elesbão duvidou do bruxedo e, acendendo uma
braçada de palha, lançou-a fora pela janela. O terreiro clareou até longe
e eles viram, a pouca distância, uma criaturinha
de gatas a berrar com desespero de quem é absolutamente deste mundo.
-E não é que é uma criança de verdade? -exclamou
ele, saído de um assombro e entrado noutro. -E agora?
-Pois é recolhê-la, disse Rosa, cujo instinto de mulher
só via no caso um pobre enjeitadinho ao léu, a reclamar
conchego.
Recolheu-o Elesbão, depondo o chorincas no colo da
esposa. Rosa o estreitou ao seio, acalmando-o, ao mesmo
tempo que "assentava" o marido.
-Se não aparecer a mãe, cria-se o aparecido. Faz tanta
falta um chorinho por aqui...
No dia seguinte bateram nas vizinhanças em indagações, sem nada colherem
explicativo do estranho caso. Resolveram, pois, adotar o pequeno.
o pai de Elesbão, consultado, ponderou:
-Não presta criar filho alheio.
Mas como o consulente armasse cara de vacilação, remendou logo a sua
filosofia:
-Também não é caridade enjeitar um enjeitado -e
ficou-se nisso.
Rosa conservou o pequeno e deu com ele criado à força
de leite de cabra e caldinhos.
À medida, porém, que medrava, o menino punha a nu
a má índole congenial. Não prometia boa coisa, não.
-Eu avisei, recordou o velho, como Elesbão se queixasse um dia da ruim
casta do recolhido.
-Meu pai disse também que não era caridade enjeitar
um enjeitado...
-É verdade, é verdade... -confirmou o filósofo de péno-chão, e calou-
se.
Manuel Aparecido era o nome do rapazinho. Como tivesse olhos gateados e
cabelos louros de milho, denunciadores de origem estrangeira, puseram-lhe
os vizinhos a
alcunha de Ruço.
Ganhou fama de madraço, e o era perfeito, inimigo de
enxada e foice, só atento a negociatas, barganhas, espertezas. Amado pela
Rosa como filho, livrava-o ela da sanha do
esposo escondendo suas malandragens, porque Elesbão vivia ameaçando
endireitá-lo a rabo de tatu.
Não endireitou coisa nenhuma. Com dezoito anos era o
Ruço a peste do bairro, atarantador dos pacíficos e traiçoeiro para com
os escoradores.
-É ruim inteirado! -dizia o povo.
Por esse tempo navegava Rosa na casa dos trinta anos.
Como a não estragaram filhos, nem se estragou ela em
grosseiros trabalhos de roça, valia muito mais do que em
menina. O tempo curou-lhe a sapiroca, e deu-lhe carnes a
boa vida. De tal forma consertou que todo o mundo gabava
o arranjo.
-Ninguém perca a esperança. Olhem a mulher do
Elesbão, aquela Poquinha sapiroquenta, como está chibante!...
A sua boniteza residia na saúde dos olhos e na gordura.
Na roça, gordura é sinônimo de beleza -gordura e "olhos
azuis que nem uma conta"...
Além disso, Rosinha cuidava de si. Virou faceira. Sempre limpa, vestida
de boas chitas da sua cor, cabelos bem
alisados para trás, torcidos em pericote lustroso à força de
pomada de lima, não havia na serra pimpona assim nem
moça de fazenda com pai coronel.
Suas relações com o Ruço, maternais até ali, principiaram a mudar de
rumo, como quer que espigasse em homem o menino. Por fim degeneraram em
namoro -medroso no começo, descarado ao cabo. A má casta das Pocas,
desmentida no decurso da primavera, reafirmava-se em
plena sazão calmosa. O verão das Pocas! Que forno...
Tudo transpira. Transpirou nas redondezas a feia maromba daqueles amores.
Boas línguas, e más, boquejavam
o quase incesto.
Quem de nada nunca suspeitou foi o honradíssimo Elesbão; e como na porta
dos seus ouvidos paravam os rumores
do mundo, a vida das três criaturas corria-lhes na toada
mansa a que se dá o nome de felicidade.
Foi quando caiu de cama o pai de Elesbão, doente de
velhice.
Mandou chamar o filho e falou-lhe com voz de quem
está com o pé na cova:
-Meu filho, abra os olhos com a Poca...
-Por que fala assim, meu pai?
O velho ouvira o zunzum da má vida; vacilava, entretanto, em abrir os
olhos ao empulhado. Correu a mão trêmula pela cabeça do filho, afagou-a e
morreu sem mais
palavra. Sempre fora amigo de reticências, o bom velho.
Elesbão regressou ao sítio com aquele aviso a verrumarlhe os miolos.
Passou dias de cara amarrada, acastelando
hipóteses.
Vendo o marido assim demudado, casmurro, de prazenteiro que era, Rosa
caiu em guarda. Chamou de banda
o Ruço e disse-lhe:
-Lesbão, des"que morreu o pai, anda amode que ervado. Mas não é
sentimento, não. Ele desconfia... As vezes
pega de olhar para mim dum jeito esquisito, que até me
gela o coração...
Manuel segurou o queixo e refletiu. Continuar naquela
vida era arriscado. Ir-se, pior; nada possuía de seu e trabalhar para
outrem não era com ele. Se Elesbão morresse...
Não se sabe se houve concerto entre os amásios. Mas
Elesbão morreu. E como!
Certa vez, de volta da vila próxima ali pelo escurecer,
caiu de borco na Volta Fria, barbaramente foiçado na nuca.
Descobriram-lhe o cadáver pela manhã, bem rente ao mata-pau.
A justiça, coitadinha, apalpou daqui e dali, numa cegueira... Desconfiou
do Ruço -mas cadê provas? Era o
Ruço mais fino que o delegado, o promotor, o juiz -mais
até que o vigário da vila, um padre gozador da fama de
enxergar através das paredes...
A viúva chorou como mamoeiro lanhado -fosse de
sentimento, de remorso ou para iludir aos outros. Talvez
sem cálculo nenhum pelos três motivos.
Manuel permaneceu na casa. Viviam como filho e mãe,
dizia ela; como marido e mulher, resmungava o povo.
O sítio, porém, entrou logo a desmedrar. Comiam do
plantado, sem lembrança de meter na terra novas sementes.
O moço ambicionava vender as benfeitorias para mergulhar no Oeste, e como
Rosa relutasse deu de maltratá-la.
Estes amores serôdios são como a vide: mais judiam
deles, mais reviçam. Às brutalidades do Ruço respondia a
viúva com redobros de carinho. Seu peito maduro, onde o
estio no fim anunciava o inverno próximo, chamejava em
fogo bravo, desses que roncam nas retranças dos taquaruçuzais. E isso
vingava Elesbão, esse amor sem jeito, sem
conta, sem medida, duas vezes criminoso sobre sacrílego e,
o que era pior, aborrecido pelo facínora, já farto.
-Coroca! Sapicuá de defunto!
cangalha velha!
Não havia insulto com o pião do veneno plantado na
nota da velhice que lhe não desfechasse, o monstro.
Rosa depereceu a galope. Adeus, gordura! Boniteza outoniça, adeus! Saias
a ruflar tesas de goma, pericote luzidio
recendente a lima, quando mais?
-O Ruço dá cabo dela, como deu cabo do marido -e
é bem-feito.
Voz do povo...
Um dia o Ruço ameaçou de largá-la, se não vendesse
tudo, já e já; e a pobre mulher deu ao bandido essa derradeira prova de
amor. Vendeu por uma bagatela o que restava acumulado pelo esforço do
defunto -a moenda, o
monjolo, a casa, o canavial em soca. E combinaram para o
outro dia o ambicionado mergulho na terra roxa.
Nessa noite Rosa despertou sufocada por violenta fumaceira. A casa ardia.
Saltou como louca da enxerga e
berrou pelo Ruço.
Ninguém lhe respondeu.
Atirou-se contra a porta: estava fechada por fora. O instinto fê-la
agarrar o machado e romper a furiosos golpes as
tábuas rijas. Escapa-se da fornalha, rola para o terreiro com
as vestes em fogo, precipita-se no tanque e, livre das chamas, cai inerte
para um lado -justamente onde vinte anos
atrás vira o enjeitadinho chorando ao relento...
Quando de manhã passantes a recolheram, estava d"olhos pasmados, muda.
Levaram-na em maca para o hospital, onde sarou das queimaduras, mas nunca
mais do juízo.
Foi feliz, Rosa. Enlouqueceu no momento preciso em que
seu viver ia tornar-se puro inferno.
-E o Ruço?
-Abalou com o dinheiro...
Aí parava a história do Elesbão, como a sabia o meu
camarada. Um crime vulgar como os há na roça às dezenas,
se a lembrança do mata-pau o não colorisse com tintas de
símbolo.
-Não é só no mato que há mata-paus!... -murmurei
eu filosoficamente, à guisa de comentário.
O capataz entreparou um momento, como quem não
entende. Depois abriu na cara o ar de quem entendeu e
gostou.
-Não é por gabar, mas vosmecê disse aí uma palavra
que merece escrita. É tal e qual...
E calou-se, de olho parado, pensativo.
Nota:
Ceifadeira: Aparelho rústico de ralar mandioca.
Bocatorta
A quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as
terras da fazenda de igual nome, pertencente ao major Zé
Lucas. A meio entre o povoado e o estirão das matas virgens dormia de
papo acima um famoso pântano. Pego de
insidiosa argila negra fraldejado de velhos guaiambés nodosos, a taboa
esbelta cresce-lhe à tona, viçosa na folhagem
eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência, longas
varas soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor de telha
que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a
batuíra de longo bico, e
saltita pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo se
ouriça nos espinheiros marginais. Fora disso, rãs, mimbuias
pensativas e, a rabear nas poças verdinhentas de algas, a
traíra, esse voraz esqualozinho do lodo. Um brejo, enfim,
como cem outros.
Notabiliza-o, porém, a profundidade. Ninguém ao vê-lo
tão calmo sonha o abismo traidor oculto sob a verdura.
Dois, três bambus emendados que lhe tentem alcançar o
fundo subvertem-se na lama sem alçar pé.
Além de vários animais sumidos nele, conta-se o caso
do Simas, português teimoso que, na birra de salvar um
burro já atolado a meio, se viu engolido lentamente pelo
barro maldito. Desd"aí ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular
como uma das bocas do próprio inferno.
Transposto o abismo, a vegetação encorpa, até formar a
mata por cujo seio corre a estrada mestra da fazenda.
Na manhã daquele dia passara por ali o trole do fazendeiro, de volta da
cidade. Além do velho, de sua mulher
Don"Ana e de Cristina a filha única, vinha a passeio o
bacharel Eduardo, primo longe e noivo da moça. Chegaram
e agora ouviam na varanda, da boca do Vargas, fiscal, a
notícia do sucedido durante a ausência. Já contara Vargas
do café, da puxada dos milhos e estava na criação.
-Porcos têm sumido alguns. Uma leitoa rabicó e um
capadete malhado dos "Polancham", há duas semanas que
moita. Para mim -ninguém me tira da cabeça -o ladrão
foi o negro, inda mais que essa criação costumava se alongar das bandas
do brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do
maldelazento. Aquilo, Deus me
perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não "querem" me acreditar...
O major sorriu àquele "querem". Vargas, com ojeriza
velha ao mísero Bocatorta, não perdia ensanchas de lhe atribuir
malefícios e de estumar o patrão a corrê-lo das terras que aquilo, Nossa
Senhora! até enguiçava uma fazenda...
Interessado, o moço indagou da estranha criatura.
-Bocatorta é a maior curiosidade da fazenda, respondeu o major. Filho
duma escrava de meu pai, nasceu, o
mísero, disforme e horripilante como não há memória de
outro. Um monstro, de tão feio. Há anos que vive sozinho,
escondido no mato, donde raro sai e sempre de noite, O
povo diz dele horrores -que come crianças, que é bruxo,
que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas
no arraial correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime
único é ser feio demais. Como perdeu a
medida, está a pagar o crime que não cometeu...
Vargas interveio, cuspilhando com cara de asco:
-Se o doutorzinho o visse!... É a coisa mais nojenta
deste mundo.
-Feio como o Quasímodo?
-Esse não conheço, seu doutor, mas estou aqui estou
jurando que o negro passa diante do... como é?
Eduardo apaixonava-se pelo caso.
-Mas, amigo Vargas, feio como? Por que feio? Explique-me lá essa feiúra.
Grande parola quando lhe davam trela, Vargas entreparou um bocado e
disse:
-O doutor quer saber como é o negro? Venha cá.
Vossa Senhoria "garre um juda de carvão e judie dele; cavoque o buraco
dos olhos e afunde dentro duas brasas
alumiando; meta a faca nos beiços e saque fora os dois;
"ranque os dentes e só deixe um toco; entorte a boca de viés
na cara; faça uma coisa desconforme, Deus que me perdoe.
Depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando as
pernas e esparramando os pés. Quando cansar, descanse.
Corra o mundo campeando feiúra braba e aplique o pior no
estupor. Quando acabar "garre no juda e ponha rente de
Bocatorta. Sabe o que acontece? O juda fica lindo!...
Eduardo desferiu uma gargalhada.
-Você exagera, Vargas. Nem o diabo é tão feio assim,
criatura de Deus!
-Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se
acredita. Aquilo é feiúra que só vendo!
-Nesse caso quero vê-la. Um horror desse naipe merece uma pernada.
Nesse momento surgiu Cristina à porta, anunciando café na mesa.
-Sabe? -disse-lhe o noivo. -Temos um belo passeio
em perspectiva: desentocar um gorila que, diz o Vargas, é
o bicho mais feio do mundo.
-Bocatorta? -exclamou Cristina com um reverbero
de asco no rosto. -Não me fale. Só o nome dessa criatura
já me põe arrepios no corpo.
E contou o que dele sabia.
Bocatorta representara papel saliente em sua imaginação. Pequenita,
amedrontavam-na as mucamas com a cuca,
e a cuca era o horrendo negro. Mais tarde, com ouvir às
crioulinhas todos os horrores correntes à conta dos seus
bruxedos, ganhou inexplicável pavor ao notâmbulo. Houve
tempo no colégio em que, noites e noites a fio, o mesmo
pesadelo a atropelou. Bocatorta a tentar beijá-la, e ela, em
transes, a fugir. Gritava por socorro, mas a voz lhe morria
na garganta. Despertava arquejante, lavada em suores frios.
Curou-a o tempo, mas a obsessão vincara fundos vestígios
em su"alma.
Eduardo, não obstante, insistia.
-É o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto
cru da realidade para desmanchar exageros de imaginação.
Vamos todos, em farrancho -e asseguro-te que a piedade
te fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgraçado
digno do teu dó.
Cristina consultou-se por uns momentos e:
-Pode ser -disse. -Talvez vá. Mas não prometo!
Na hora verei se tenho coragem...
A maturação do espírito em Cristina desbotara a vivacidade nevrótica dos
terrores infantis. Inda assim vacilava.
Renascia o medo antigo, como renasce a encarquilhada rosa
de Jericó ao contato de uma gota d"água. Mas vexada
de aparecer aos olhos do noivo tão infantilmente medrosa,
deliberou que iria; desde esse instante, porém, uma imperceptível sombra
anuviou-lhe o rosto.
Ao jantar foram o assunto as novidades do arraial -eternas novidades de
aldeias, o Fulano que morreu, a Sicrana que casou. Casara um boticário e
morrera uma menina
de quatorze anos, muito chegada à gente do major. Particularmente
condoída, Don"Ana não a tirava da idéia.
-Pobre da Luizinha! Não me sai dos olhos o jeito dela,
tão galante, quando vinha aqui pelo tempo das jabuticabas.
Ali, naquela porta -"Dá licença, Don"Ana!" -tão cheia
de vida, vermelhinha do sol... Quem diria...
-E ainda por cima a tal história de cemitério... interveio Cristina.
Papai soube?
Corriam no arraial rumores macabros. No dia seguinte
ao enterramento o coveiro topou a sepultura remexida, como se fora
violada durante a noite; e viu na terra fresca
pegadas misteriosas de uma "coisa" que não seria bicho
nem gente deste mundo. Já duma feita sucedera caso idêntico por ocasião
da morte da Sinhazinha Esteves; mas todos
duvidaram da integridade dos miolos do pobre coveiro
sarapantado. Esses incréus não mofavam agora do visionário, porque o
padre e outras pessoas de boa cabeça, chamadas a testemunhar o fato,
confirmavam-no.
Imbuído do ceticismo fácil dos moços da cidade, Eduardo meteu a riso a
coisa muita fortidão de espírito.
-A gente da roça duma folha d"embaüva pendurada
no barranco faz logo, pelo menos, um lobisomem e três
mulas-sem-cabeça. Esse caso do cemitério: um cão vagabundo entrou lá e
arranhou a terra. Aí está todo o grande
mistério!
Cristina objetou:
-E os rastos?
-Os rastos! Estou a apostar como tais rastos são os do
próprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco...
-E o padre Lisandro? -acudiu Don"Ana, para quem
um testemunho tonsurado era documento de muito peso.
Eduardo cascalhou uma risada anticlerical e, trincando
um rabanete, expectorou:
-Ora, o padre Lisandro! Pelo amor de Deus, Don"Ana!
O padre Lisandro é o próprio coveiro de batina e coroa! A
propósito...
E contou a propósito vários casos daquele tipo, os quais
no correr do tempo vieram a explicar-se naturalmente, com
grande cara d"asno dos coveiros e lisandros respectivos.
Cristina ouviu, com o espírito absorto em cismas, a bela
demonstração geométrica. Don"Ana concordou da boca para fora, por
delicadeza. Mas o major, esse não piou sim nem
não. A experiência da vida ensinara-lhe a não afirmar com
despotismo, nem negar com "oras
-Há muita coisa estranha neste mundo... -disse,
traduzindo involuntariamente a safada réplica de Hamlet
ao cabeça forte do Horacio.
Zangara o tempo quando à tarde o
rancho se pôs de
rumo ao casebre de Bocatorta.
Ventava. Rebojos de nuvens prenhes sorviam as últimas
nesgas do azul.
Os noivos breve se distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiam
comentando a boa composição do futuro casal. Não havia nisso exagero de
pais. Eduardo, embora
vulgar, tinha a esbelteza necessária para ouvir sem favor o
encômio de rapagão, e Cristina era um ramalhete completo
das graças que os dezoito anos sabem compor.
Donaire, elegância, distinção... pintam lá vocábulos esbeiçados pelo uso
esse punhado de quês particularíssimos
cuja soma a palavra "linda" totaliza?
Lábios de pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas
nas faces, olhos sombrios como a noite, dentes de pérola...
as velhas tintas de uso em retratos femininos desde a Sulamita não pintam
melhor que o "linda!" dito sem mais enfeites além do ponto de admiração.
Vê-la mordiscando o hastil duma flor de catingueiro
colhida à beira do caminho, ora risonha, ora séria, a cor das
faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nas
têmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, era
compreender a expressão dos
roceiros: Linda que nem uma santa.
Olhos, sobretudo, tinha-os Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém,
as sombras de sua alma coavam neles
penumbras de estranha melancolia. Melancolia e inquietação. O amoroso
enlevo de Eduardo esfriava amiúde ante
suas repentinas fugas. Ele a percebia distante, ou pelo menos
introspectiva em excesso, reticência que o amor não vê
de boa cara. E à medida que caminhavam recrescia aquela
esquisitice. Um como intáctil morcego diabólico riscava-lhe
a alma de voejos pressagos. Nem o estimulante das brisas
ásperas, nem a ternura do noivo, nem o "cheiro de natureza" exsolvido da
terra, eram de molde a esgarçar a misteriosa bruma de lá dentro.
Eduardo interpelou-a:
-Que tens hoje, Cristina? Tão sombria...
E ela, num sorriso triste:
-Nada!.. Por quê?
Nada... É sempre nada quando o que quer que é lucila
avisos informes na escuridão do subconsciente, como sutilíssimos
ziguezagues de sismógrafo em prenúncio de remota comoção telúrica. Mas
esses nadas são tudo!...
-À esquerda, pelo trilho!
A voz do major chamou-os à realidade. Um carreiro
mal batido na macega esgueirava-se coleante até a beira
dum córrego, onde se reuniram de novo.
O major tomou a frente, e guiou-os floresta adentro
pelos meandros duma picada. Era ali o mato sinistro onde
se alapavam Bocatorta e o seu cachorro lazarento, Merimbico, nome
tresandante a satanismo para o faro do poviléu.
Às sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merimbico virava lobisomem
e se punha de ronda ao cemitério, com
lamentosos uivos à lua e abocamentos às pobres almas
penadas -coisa muito de arrepiar.
O sombrio da mata enoiteceu de vez o coração de Cristina.
-Mas, afinal, para onde vamos, meu pai? Afundar no
atoleiro, como o Simas? Meu pai já fez o testamento?
-Já, minha filha -chasqueou o major -, e deixo o
Bocatorta para você...
Cristina emudeceu. Retransia-a em doses crescentes o
velho medo de outrora, e foi com um estremecimento arrepiado que ouviu o
ladrido próximo de um cão.
-É Merimbico -disse o velho. -Estamos quase.
Mais cem passos e a mata rasgou-se em clareira, na qual
Cristina entreviu a biboca do negro. Fez-se toda pequenina
e achegou-se a Don"Ana, apertando-lhe nervosamente as mãos.
-Bobinha! Tudo isso é medo?
-Pior que medo, mamãe; é... não-sei-quê!
Não tinha feição de moradia humana a alfurja do monstro. À laia de
paredes, paus-a-pique mal juntos, entressachados de ramadas secas. Por
cobertura, presos, com pedras chatas, molhos de sapé no fio, defumado e
podre. Em
redor, um terreirinho atravancado de latas ferrujentas, trapos e cacaria
velha. A entrada era um buraco por onde mal
passaria um homem agachado.
-Olá, caramujo! Sai da toca que estão cá o sinhô moço
e mais visitas! -gritou o major.
Respondeu de dentro um grunhido cavo. Ao ouvir tão
desagradável som, Cristina sentiu correr na pele o arrepio
dos pesadelos antigos, e num incoercível movimento de
pavor abraçou-se com a mãe.
O negro saiu da cova meio de rastos, com a lentidão de
monstruosa lesma. A princípio surgiu uma gaforinha arruçada, depois o
tronco e os braços e a traparia imunda que
lhe escondia o resto do corpo, entremostrando nos rasgões
o negror da pele craquenta.
Cristina escondeu o rosto no ombro de Don"Ana -não
queria, não podia ver.
Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele,
avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços,
e as gengivas largas,
violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às
tontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E
torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio
pode compor de horripilante. Embora se lhe
estampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a
culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas
cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé
humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados
de sangue na esclerótica amarela. E
pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele
quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a
teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima.
À porta do casebre, Merimbico, cachorro à-toa, todo
ossos, pele e bernes, rosnava contra os importunos.
Don"Ana e a filha afastaram-se, engulhadas. Só os homens resistiram à
nauseante vista, embora a Eduardo o
tolhesse uma emoção jamais experimentada, misto de asco,
piedade e horror. Aquele quadro de suprema repulsão,
novo para seus nervos, desnorteava-lhe as idéias. Estarrecido como em
face da Górgona, não lhe vinha palavra que
dissesse.
O major, entretanto, trocava língua com o monstro, que
em certo ponto, a uma pergunta alegre do velho, arregaçou
na cara um riso. Eduardo não teve mão de si. Aquele riso
naquela cara sobreexcedia a sua capacidade de horripilação. Voltou o
rosto e se foi para onde as mulheres, murmurando:
-É demais! É de fazer mal a nervos de aço...
Seus olhos encontraram os de Cristina e neles viram a
expressão de pavor da preá engrifada nas puas da suindara
-o pavor da morte...
Quando deixaram a floresta, morria a tarde sob o chicote dum vento
precursor de chuva.
-Foi imprudência, Cristina, vires sem um xalinho de
cabeça ao menos!... Queira Deus...
A moça não respondeu. D"olhos baixos, retransida, respirava a largos
haustos, para desafogo dum aperto de coração nunca sentido fora dos
pesadelos.
Generalizara-se o silêncio. Só o major tentava espanejar
a impressão penosa, chasqueando ora o terror da filha, ora
o asco do moço; mas breve calou-se, ganho também pelo
mal-estar geral.
Triste anoitecer o daquele dia, picado a espaços pelo
surdo revôo dos curiangos. O vento zunia, e numa lufada
mais forte trouxe da mata o uivo plangente de Merimbico.
Ao ouvi-lo, um comentário apenas escapou da boca do major:
-Diabo!
Fechara-se a noite e vinham as primeiras gotas de chuva quando pisaram no
alpendre do casarão.
Cristina sentiu pelo corpo inteiro um calafrio, como se
a sacudisse a corrente elétrica.
No dia seguinte amanheceu febril, com ardores no peito
e tremuras amiudadas. Tinha as faces vermelhas e a respiração opressa.
O rebuliço foi grande na casa.
Eduardo, mordido de remorsos, compulsava com mão
nervosa um velho Chernoviz, tentando atinar com a doença
de Cristina; mas perdia-se sem bússola no báratro das moléstias. Nesse em
meio, Don"Ana esgotava o arsenal da
medicina anódina dos símplices caseiros.
O mal, entretanto, recalcitrava às chasadas e sudoríferos. Chamou-se o
boticário da vila. Veio a galope o Eusébio
Macário e diagnosticou pneumonia.
Quem já não assistiu a uma dessas subitâneas desgraças
que de golpe se abatem, qual negro avejão de presa, sobre
uma família feliz, e estraçoam tudo quanto nela representa
a alegria, e esperança, o futuro?
Noites em claro, o rumor dos passos abafados... E o
doente a piorar... O médico da casa apreensivo, cheio de
vincos na testa... Dias e dias de duelo mudo contra a
moléstia incoercível... A desesperança, afinal, o irremediável antolhado
iminente; a morte pressentida de ronda ao
quarto...
Ao oitavo dia Cristina foi desenganada; no décimo o
sino do arraial anunciou o seu prematuro fim.
-Morta!...
Eduardo escondia as lágrimas entre as almofadas do
leito, repetindo cem vezes a mesma palavra.
Alcançava-lhe o significado tremendo e, no entanto, quantas vezes a
ouvira como a um som oco de sentido!
A imagem de Cristina morta, a esfervilhar na dissolução dentro da terra
gelada, contrapunha-se às visões da
Cristina viva, toda mimos d"alma e corpo, radiosa manhã
humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. Cerrando
os olhos, revia-se durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagos
pressentimentos. Vinham-lhe à memória as
suas palavras dúbias, a sua vacilação. E arrepelava-se por
não ter adivinhado na repulsa da moça os avisos informes
de qualquer coisa secreta que tenazmente a defendia. Tais
pensamentos, enxameantes como moscas em torno à carne
viva da dor de Eduardo, coavam nele venenos cruéis.
Fora, o sol redoirava cruamente a vida.
Brutalidade!...
Morria Cristina e não se desdobravam crepes pelo céu,
nem murchavam as folhas das árvores, nem se recobria de
cinzas a terra...
Espezinhado pela fria indiferença das coisas, fechou-se
na clausura de si próprio, torvo e dolorido, sentindo-se
amarfanhar pela pata cega do destino.
Correram horas. Noite alta, acudiu-lhe a idéia de ir ao
cemiterinho beijar num último adeus o túmulo da noiva.
Por sobre a vegetação adormecida coava-se o palor cinéreo da minguante.
Raras estrelas no céu, e na terra nenhum rumorejo além do remoto uivar de
um cão -Merimbico talvez -a escandir o concerto das untanhas que
coaxavam glu-glus nas aguadas.
Eduardo alcançou o cemitério. Estava encadeado o portão. Apoiou a testa
nos frios varões ferrujentos e mergulhou
os olhos queimados de lágrimas por entre os carneiros humildes, em busca
do que recebera Cristina.
No ar, um silêncio de eternidade.
Brisas intermitentes carreavam o olor acre dos cravos-de-defunto floridos
na tristeza daquele cemitério da roça.
Seu olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa de
atinar com o sítio onde Cristina dormia o grande sono,
quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos. Direis um
arranhar de chão em raspões cautelosos, ao qual se casava
o resfolego duma criatura viva.
Pulsou-lhe violento o sangue. Os cabelos cresceram-lhe
na cabeça. Alucinação? Apurou os ouvidos: o rumor estranho lá continuava,
vindo de um ponto sombreado de
ciprestes. Firmou a vista: qualquer coisa agachava-se na terra.
Súbito, num relâmpago, fulgurou em sua memória a
cena do jantar, o caso de Luizinha, as palavras de Cristina.
Eduardo sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dum
pânico desvairado, deitou a correr como um louco rumo à
fazenda, em cujo casarão penetrou de pancada, sem fôlego,
lavado em suor frio, despertando de sobressalto a família.
Com gritos de espanto, que o cansaço e o bater dos
dentes entrecortavam, exclamou entre arquejos:
-Estão desenterrando Cristina... Eu vi uma coisa desenterrando
Cristina...
-Que loucura é essa, moço?
-Eu vi... -continuava Eduardo com os olhos desmesuradamente abertos.
Eu vi uma coisa desenterrando Cristina...
O major apertou entre as mãos a testa. Esteve assim imóvel uns instantes.
Depois sacudiu a cabeça num gesto de
decisão e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes, como em resposta a
si próprio:
-Será possível, meu Deus?
Vestiu-se de golpe, meteu no bolso o revólver e atirando três palavras
enigmáticas à estarrecida Don"Ana, gritou
para Eduardo com inflexão de aço na voz:
-Vamos!
Magnetizado pela energia do velho, o moço acompanhou-o
qual sonâmbulo.
No terreiro apareceu-lhes o capataz.
-Venha conosco. A "coisa" está no cemitério.
Vargas passou mão de uma foice.
-Vai ver que é ele, patrão, até juro!
O major não respondeu -e os três homens partiram a
correr pelos campos em fora.
A meio caminho, Eduardo, exausto de tantas emoções,
atrasou-se. Seus músculos recusaram-lhe obediência. Ao defrontar com o
atoleiro, as pernas lhe fraquearam de vez e
ele caiu, ofegante.
Entrementes, o major e o feitor alcançavam o cemitério,
galgavam o muro e aproximavam-se como gatos do túmulo
de Cristina.
Um quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia fora
do túmulo -abraçado por um vulto
vivo, negro e coleante como o polvo.
O pai de Cristina desferiu um rugido de fera, e qual fera
mal ferida arrojou-se para cima do monstro. A hiena, mau
grado a surpresa, escapou ao bote e fugiu. E, coxeando, cambaio, seminu,
de tropeços nas cruzes, a galgar túmulos com
agilidade inconcebível em semelhante criatura, Bocatorta saltou o muro e
fugiu, seguido de perto pela sombra esganiçante de Merimbico.
Eduardo, que concentrara todas as forças para seguir de
longe o desfecho do drama, viu passar rente de si o vulto
asqueroso do necrófilo, para em seguida desaparecer mergulhando na massa
escura dos guaiambés.
Voando-lhe no encalço, viu passar em seguida o vulto
dos perseguidores.
Houve uma pausa, em que só lhe feriu o ouvido o rumor da correria.
Depois, gritos de cólera, d"envolta a um
grunhir de queixada caído em mundéu -e tudo se misturou ao barulho da
luta que o uivo de Merimbico dominava
lugubremente.
O moço correu a mão pela testa gelada: estaria nas unhas
dum pesadelo? Não; não era sonho. Disse-lho a voz alterada do feitor,
esboçando o epílogo da tragédia:
-Não atire, major, ele não merece bala. P"ra que serve
o atoleiro?
E logo após Eduardo sentiu recrudescer a luta, entre
imprecações de cólera e os grunhidos cada vez mais lamentosos do monstro.
E ouviu farfalhar o mato, como se por
ele arrastassem um corpo manietado, a debater-se em convulsões violentas.
E ouviu um rugido cavo de supremo desespero. E após, o baque fofo de um
fardo que se atufa
na lama.
Uma vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu
pensamento adormeceu...
Quando voltou a si, dois homens borrifavam-lhe o rosto
com água gelada. Encarou-os, marasmado. Ergueu-se, mal
firme, apoiado a um deles. E reconheceu a voz do major,
que entre arquejos de cansaço lhe dizia:
-Seja homem, moço. Cristina já está enterrada, e o negro...
-... está beijando o barro, concluiu sinistramente o Vargas.
Ao raiar do dia, Merimbico ainda lá estava, sentado nas
patas traseiras, a uivar saudosamente com os olhos postos
no sítio onde sumira o seu companheiro.
Nada mais lembrava a tragédia noturna nem denunciava o túmulo de lodo
açaimador da boca hedionda que babujara nos lábios de Cristina o beijo
único de sua vida.
O comprador de fazendas
Pior fazenda que a do Espigão, nenhuma. Já arruinara
três donos, o que fazia dizer aos praguentos: Espiga é o que
aquilo é!
O detentor último, um Davi Moreira de Souza, arrematara-a em praça,
convicto de negócio da China; já lá andava,
também ele, escalavrado de dívidas, coçando a cabeça, num
desânimo...
Os cafezais em vara, ano sim ano não batidos de pedra ou esturrados de
geada, nunca deram de si colheita
de entupir tulha. Os pastos ensapezados, enguanxumados,
ensamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios de
macegas mortiças, formigantes de
carrapatos. Boi entrado ali punha-se logo de costelas à
mostra, encaroçado de bernes, triste e dolorido de meter
dó.
As capoeiras substitutas das matas nativas revelavam
pela indiscrição das tabocas a mais safada das terras secas.
Em tal solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana-caiana
assumia aspecto de caninha, e esta virava
um taquariço magrela dos que passam incólumes entre os
cilindros moedores.
Pioravam os cavalos. Os porcos escapos à peste encruavam na magrém
faraônica das vacas egípcias.
Por todos os cantos imperava o ferrão das saúvas, dia e
noite entregues à tosa dos capins para que em outubro se
toldasse o céu de nuvens de içás, em saracoteios amorosos
com enamorados savitus.
Caminhos por fazer, cercas no chão, casas d"agregadores engoteiradas,
combalidas de cumeeira, prenunciando
feias taperas. Até na moradia senhorial insinuava-se a broca, aluindo
panos de reboco, carcomendo assoalhos. Vidraças sem vidro, mobília
capengante, paredes lagarteadas...
intacto que é que havia lá?
Dentro dessa esborcinada moldura, o fazendeiro avelhuscado por força das
sucessivas decepções e, a mais, roído pelo cancro feroz dos juros, sem
esperança e sem conserto, coçava cem vezes ao dia a coroa da cabeça
grisalha.
Sua mulher, a pobre dona Isaura, perdido o viço do
outono, agrumava no rosto quanta sarda e pé-de-galinha
inventam os anos de mãos dadas à trabalhosa vida.
Zico, o filho mais velho, saíra-lhes um pulha, amigo de
erguer-se às dez, ensebar a pastinha até às onze e consumir
o resto do dia em namoricos mal-azarados.
Afora este malandro tinham a Zilda, então nos dezessete, menina galante,
porém sentimental mais do que manda
a razão e pede o sossego da casa. Era um ler Escrich, a
moça, e um cismar amores de Espanha!...
Em tal situação só havia uma aberta: vender a fazenda
maldita para respirar a salvo de credores. Coisa difícil, entretanto, em
quadra de café a cinco mil réis, botar unhas
num tolo das dimensões requeridas. Iludidos por anúncios
manhosos alguns pretendentes já haviam abicado ao Espigão; mas franziam o
nariz, indo-se a arrenegar da pernada
sem abrir oferta.
-De graça é caro! -cochichavam de si para consigo.
O redemoinho capilar do Moreira, a cabo de coçadelas,
sugeriu-lhe um engenhoso plano mistificatório: entreverar
de caetés, cambarás, unhas-de-vaca e outros padrões de
terra boa, transplantados das vizinhanças, a fímbria das
capoeiras e uma ou outra entrada acessível aos visitantes.
Fê-lo, o maluco, e mais: meteu em certa grota um paud"alho trazido da
terra roxa, e adubou os cafeeiros margeantes ao caminho suficiente para
encobrir a mazela do
resto.
Onde um raio de sol denunciava com mais viveza um
vício da terra, ali o alucinado velho botava a peneirinha...
Um dia recebeu carta de um agente de negócios anunciando novo
pretendente. "Você tempere o homem, aconselhava o pirata, e saiba
manobrar os padrões que este cai.
Chama-se Pedro Trancoso, é muito rico, muito moço, muito
prosa, e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você
espigá-lo com arte de barganhista ladino."
Preparou-se Moreira para a empresa. Advertiu primeiro
aos agregados para que estivessem a postos, afiadíssimos
de língua. Industriados pelo patrão, estes homens respondiam com manha
consumada às perguntas dos visitantes,
de jeito a transmutar em maravilhas as ruindades locais.
Como lhes é suspeita a informação dos proprietários,
costumam os pretendentes interrogar à socapa os encontradiços. Ali, se
isso acontecia -e acontecia sempre, porque
era Moreira em pessoa o maquinista do acaso -havia
diálogos desta ordem:
-"Geia por aqui?"
-"Coisinha, e isso mesmo só em ano brabo."
-"O feijão dá bem?"
-"Nossa Senhora! Inda este ano plantei cinco quartas
e malhei cinqüenta alqueires. E que feijão!"
-"Berneia o gado?"
-"Qual o quê! Lá um ou outro carocinho de vez em
quando. Para criar, não existe terra melhor. Nem erva nem
feijão-bravo. (1) O patrão é porque não tem força. Tivesse ele
os meios e isto virava um fazendão."
Avisados os espoletas, debateram-se à noite os preparativos da
hospedagem, alegres todos com o reviçar das esperanças emurchecidas.
-Estou com palpite que desta feita a "coisa" vai! disse o filho maroto.
E declarou necessitar, à sua parte, de
três contos de réis para estabelecer-se.
-Estabelecer-se com quê? -perguntou admirado o pai.
-Com armazém de secos e molhados na Volta Redonda...
-Já me estava espantando uma idéia boa nessa cabeça
de vento. Para vender fiado à gente da Tudinha, não é?
O rapaz, se não corou, calou-se; tinha razões para isso.
Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia
d"olho uma de porta e janela, em certa rua humilde, casa
baratinha, d"arranjados.
Zilda, um piano -e caixões e mais caixões de romances...
Dormiram felizes essa noite e no dia seguinte mandaram cedo à vila em
busca de gulodices de hospedagem -manteiga, um queijo, biscoitos.
Na manteiga houve debate.
-Não vale a pena! -reguingou a mulher. -Sempre
são seis mil réis. Antes se comprasse com esse dinheiro a
peça de algodãozinho que tanta falta me faz.
-É preciso, filha! As vezes uma coisa de nada engambela um homem e
facilita um negócio. Manteiga é graxa e a graxa engraxa!
Venceu a manteiga.
Enquanto não vinham os ingredientes, meteu dona Isaura unhas à casa,
varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hóspedes; matou o menos
magro dos frangos e uma
leitoa manquitola; temperou a massa do pastel de palmito,
e estava a folheá-la quando:
-"Ei, vem ele!" -gritou Moreira da janela, onde se
postara desde cedo, muito nervoso, a devassar a estrada
por um velho binóculo; e sem deixar o posto de observação
foi transmitindo à ocupadíssima esposa os pormenores divisados.
-É moço... Bem trajado... Chapéu panamá... Parece o
Chico Canhambora...
Chegou, afinal, o homem. Apeou-se. Deu cartão: Pedro
Trancoso de Carvalhais Fagundes. Bem-apessoado. Ares de
muito dinheiro. Mocetão e bem-falante, mais que quantos
até ali aparecidos.
Contou logo mil coisas com o desembaraço de quem
no mundo está de pijama em sua casa -a viagem, os
acidentes, um mico que vira pendurado num galho d"embaúva.
Entrados que foram para a saleta de espera, Zico, incontinenti, grudou-se
de ouvido ao buraco da fechadura, a
cochichar para as mulheres ocupadas na arrumação da mesa o que ia
pilhando à conversa.
Súbito, esganiçou para a irmã, numa careta sugestiva:
-É solteiro, Zilda!
A menina largou disfarçadamente os talheres e sumiu-se.
Meia hora depois voltava trazendo o melhor vestido e
no rosto duas redondinhas rosas de carmim.
Quem a ess"hora penetrasse no oratório da fazenda notaria nas vermelhas
rosas de papel de seda que enfeitavam
o Santo Antônio a ausência de várias pétalas, e aos pés da
imagem uma velinha acesa. Na roça, o ruge e o casamento
saem do mesmo oratório.
Trancoso dissertava sobre variados temas agrícolas.
-O canastrão? Pff! Raça tardia, meu caro senhor, muito agreste. Eu sou
pelo Poland Chine. Também não é mau,
não, o Large Black. Mas o Poland! Que precocidade! Que
raça!
Moreira, chucro na matéria, só conhecedor das pelhancas famintas, sem
nome nem raça, que lhe grunhiam nos
pastos, abria insensivelmente a boca.
-Como em matéria de pecuária bovina -continuou
Trancoso -" tenho para mim que, de Barreto a Prado, andam todos
erradíssimos. Pois não! Er-ra-dís-si-mos! Nem
seleção, nem cruzamento. Quero a adoção i-me-di-a-ta das
mais finas raças inglesas, o Polled Angus, o Red Lirtcoln.
Não temos pastos? Façamo-los. Plantemos alfafa. Penemos.
Ensilemos. O Assis (2) confessou-me uma vez...
O Assis! Aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura!
Era íntimo de todos eles -o Prado, (3) o
Barreto, (4) o Cotrim... (5) E de ministros! "Eu já aleguei isso ao
Bezerra... (6)
Nunca se honrara a fazenda com a presença de cavalheiro mais distinto,
assim bem relacionado e tão viajado.
Falava da Argentina e de Chicago como quem veio ontem
de lá. Maravilhoso!
A boca de Moreira abria, abria, e acusava o grau máximo de abertura
permitida a ângulos maxilares, quando uma
voz feminina anunciou o almoço.
Apresentações.
Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a puseram de coração aos
pinotes. Também os teve a galinha
ensopada, o tutu com torresmos, o pastel e até a água do pote.
-Na cidade, senhor Moreira, uma água assim, pura,
cristalina, absolutamente potável, vale o melhor dos vinhos.
Felizes os que podem bebê-la!
A família entreolhou-se; nunca imaginaram possuir em
casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente
sorveu o seu golezinho, como se naquele instante travassem conhecimento
com o precioso néctar. Zico chegou a
estalar a língua...
Quem não cabia em si de gozo era dona Isaura. Os
elogios à sua culinária puseram-na rendida; por metade
daquilo já se daria por bem paga da trabalheira.
-Aprenda, Zico -cochichava ela ao filho -" o que é
educação fina.
Após o café, brindado com um "delicioso!", convidou
Moreira o hóspede para um giro a cavalo.
-Impossível, meu caro, não monto em seguida às refeições; dá-me
cefalalgia.
Zilda corou. Zilda corava sempre que não entendia uma
palavra.
À tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um
passeiozinho pedestre pelo pomar, a bem do quilo.
Enquanto os dois homens em pausados passos para lá
se dirigiam, Zilda e Zico correram ao dicionário.
-Não é com s -disse o rapaz.
-Veja com C -alvitrou a menina.
Com algum trabalho encontraram a palavra cefalalgia.
-"Dor de cabeça!" Ora! Uma coisa tão simples...
À tarde, no giro a cavalo, Trancoso admirou e louvou
tudo quanto ia vendo, com grande espanto do fazendeiro
que, pela primeira vez, ouvia gabos às coisas suas. Os pretendentes em
geral malsinam de tudo, com olhos abertos só
para defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em exclamações quanto ao
perigo das terras frouxas; acham más e
poucas as águas; se enxergam um boi, não despregam a
vista dos bernes.
Trancoso, não. Gabava! E quando Moreira, nos trechos
mistificados, com dedo trêmulo assinalou os padrões, o
moço abriu a boca.
-Caquera? mas isto é fantástico!...
Em face do pau-d"alho culminou-lhe o assombro.
-é maravilhoso o que vejo! Nunca supus encontrar
nesta zona vestígios de semelhante árvore! -disse, metendo na carteira
uma folha como lembrança.
Em casa abriu-se com a velha.
-Pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito à minha
expectativa. Até pau-d"alho! Isto é
positivamente famoso!...
Dona Isaura baixou os olhos. A cena passava-se na varanda. Era noite.
Noite trilada de grilos, coaxada de sapos,
com muitas estrelas no céu e muita paz na terra. Refestelado numa cadeira
preguiçosa, o hóspede transfez o sopor da
digestão em quebreira poética.
-Este cri-cri de grilos, como é encantador! Eu adoro as
noites estreladas, o bucólico viver campesino, tão sadio e feliz...
-Mas é muito triste!... -aventurou Zilda.
-Acha? Gosta mais do canto estridente da cigarra,
modulando cavatinas em plena luz? -disse ele, amelaçando a voz. -É que
no seu coraçãozinho há qualquer nuvem
a sombreá-lo...
Vendo Moreira assim atiçado o sentimentalismo, e dessa feita passível de
conseqüências matrimoniais, houve por
bem dar uma pancada na testa e berrar: "Oh, diabo! Não é
que ia me esquecendo do..." Não disse do que, nem era
preciso. Saiu precipitadamente, deixando-os sós.
Prosseguiu o diálogo, mais mel e rosas.
-O senhor é um poeta! -exclamou Zilda a um regorjeio dos mais sucados.
-Quem o não é debaixo das estrelas do céu, ao lado
duma estrela da terra?
-Pobre de mim! -suspirou a menina, palpitante.
Também do peito de Trancoso subiu um suspiro. Seus
olhos alçaram-se a uma nuvem que fazia no céu as vezes
da Via Láctea, e sua boca murmurou em solilóquio um
rabo-d"arraia desses que derrubam meninas.
-O amor!... A Via Láctea da vida!... O aroma das rosas,
a gaze da aurora! Amar, ouvir estrelas... Amai, pois só
quem ama entende o que elas dizem.
Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao paladar
inexperto da menina soube a fino moscatel. Zilda sentiu
subir à cabeça um vapor. Quis retribuir. Deu busca aos
ramilhetes retóricos da memória em procura da flor mais
bela. Só achou um bogari humílimo:
-Lindo pensamento para um cartão-postal!
Ficaram no bogari; o café com bolinhos de frigideira
veio interromper o idílio nascente.
Que noite aquela! Dir-se-ia que o anjo da bonança distendera suas asas de
ouro por sobre a casa triste. Via Zilda
realizar-se todo o Escrich deglutido. Dona Isaura gozava-se da
possibilidade de casá-la rica. Moreira sonhava quitações de dívidas, com
sobras fartas a tilintar-lhe no bolso.
E imaginariamente transfeito em comerciante, Zico fiou, a
noite inteira, em sonhos, à gente da Tudinha, que, cativa
de tanta gentileza, lhe concedia afinal a ambicionada mão
da pequena.
Só Trancoso dormiu o sono das pedras, sem sonhos nem
pesadelos. Que bom é ser rico!
No dia imediato visitou o resto da fazenda, cafezais e
pastos, examinou criação e benfeitorias; e como o gentil
mancebo continuasse no enlevo, Moreira, deliberado na véspera a pedir
quarenta contos pela Espiga, julgou de bom
aviso elevar o preço. Após a cena do pau-d"alho, suspendeu-o mentalmente
para quarenta e cinco; findo o exame
do gado, já estava em sessenta. E quando foi abordada a
magna questão, o velho declarou corajosamente, na voz
firme de um alea jacta:
-Sessenta e cinco! -e esperou de pé atrás a ventania.
Trancoso, porém, achou razoável o preço.
-Pois não é caro -disse -, está um preço bem mais
razoável do que imaginei.
O velho mordeu os lábios e tentou emendar a mão.
-Sessenta e cinco, sim, mas.., o gado fora!...
-é justo, respondeu Trancoso.
-... e fora também os porcos!...
-Perfeitamente.
-... e a mobília!
-É natural.
O fazendeiro engasgou; não tinha mais o que excluir e
confessou de si para consigo que era uma cavalgadura. Por
que não pedira logo oitenta?
Informada do caso, a mulher chamou-lhe pax vobis.
-Mas, criatura, por quarenta já era um negocião! justificou-se o velho.
-Por oitenta seria o dobro melhor. Não se defenda. Eu
nunca vi Moreira que não fosse palerma e sarambé. É do
sangue. Você não tem culpa.
Amuaram um bocado; mas a ânsia de arquitetar castelos com a imprevista
dinheirama varreu para longe a nuvem. Zico aproveitou a aura para
insistir nos três contos do
estabelecimento -e obteve-os. Dona Isaura desistiu de tal
casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão
-a casa do Eusébio Leite.
-Mas essa é de doze contos, advertiu o marido.
-Mas é outra coisa que não aquele casebre! Muito
mais bem repartida. Só não gosto da alcova pegada à copa;
escura...
-Abre-se uma clarabóia.
-Também o quintal precisa de reforma; em vez do
cercado das galinhas...
Até noite alta, enquanto não vinha o sono, foram remendando á casa,
pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade. Estava o
casal nos últimos retoques, dorme-não-dorme, quando Zico bateu à porta.
-Três contos não bastam, papai, são precisos cinco. Há
a armação, de que não me lembrei, e os direitos, e o aluguel
da casa, e mais coisinhas...
Entre dois bocejos, o pai concedeu-lhe generosamente
seis.
E Zilda? Essa vogava em alto-mar dum romance de
fadas. Deixemo-la vogar.
Chegou enfim o momento da partida. Trancoso despediu-se. Sentia muito não
poder prolongar a deliciosa visita,
mas interesses de monta o chamavam. A vida do capitalista
não é livre como parece... Quanto ao negócio, considerava-o
quase feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.
Partiu Trancoso, levando um pacote de ovos -gostara
muito da raça de galinhas criada ali; e um saquito de carás
-petisco de que era mui guloso. Levou ainda uma bonita
lembrança, o
rosilho do Moreira, o melhor cavalo da fazenda. Tanto gabara
o animal durante os passeios, que o fazendeiro se viu na obrigação de
recusar uma barganha proposta e dar-lho de presente.
-Vejam vocês! -disse Moreira, resumindo a opinião
geral. -Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um
doutor e no entanto amável, gentil, incapaz de torcer o
focinho como os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente!
À velha agradara sobretudo a sem-cerimônia do jovem
capitalista. Levar ovos e carás! Que mimo!
Todos concordaram, louvando-o cada um a seu modo.
E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço encheu a casa durante a semana
inteira.
Mas a semana transcorreu sem que viesse a ambicionada resposta. E mais
outra. E outra ainda.
Escreveu-lhe Moreira, já apreensivo e nada. Lembrou-se
dum parente morador na mesma cidade e endereçou-lhe
carta pedindo que obtivesse do capitalista a solução definitiva. Quanto
ao preço, abatia alguma coisa. Dava a fazenda
por cinqüenta e cinco, por cinqüenta e até por quarenta,
com criação e mobília.
O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar do envelope, os quatro corações
da Espiga pulsaram violentamente:
aquele papel encerrava o destino de todos quatro.
Dizia a carta: "Moreira. Ou muito me engano ou estás
iludido. Não há por aqui nenhum Trancoso Carvalhais capitalista. Há o
Trancosinho, filho de Nhá Veva, vulgo Sacatrapo. É um espertalhão que
vive de barganhas e sabe iludir aos que o não conhecem. Ultimamente tem
corrido o
Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos. Finge-se às
vezes comprador, passa uma semana em
casa do fazendeiro, a caceteá-lo com passeios pelas roças e
exames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas,
ou a filha, ou o que encontra -é um vassoura de marca!
-e no melhor da festa some-se. Tem feito isto um cento
de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de variar de
tempero, o patife. Como aqui Trancoso só há este, deixo de
apresentar ao pulha a tua proposta. Ora o Sacatrapo a comprar fazenda!
Tinha graça..."
O velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a missiva
sobre os joelhos. Depois o sangue lhe avermelhou as faces
e seus olhos chisparam.
-Cachorro!
As quatro esperanças da casa ruíram com fragor, entre
lágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens.
Zico propôs-se a partir incontinenti na peugada do biltre, a fim de
quebrar-lhe a cara.
-Deixe, menino! O mundo dá voltas. Um dia cruzo-me com o ladrão e justo
contas.
Pobres castelos! Nada há mais triste que estes repentinos desmoronamentos
de ilusões. Os formosos palácios d"Espanha, erigidos durante um mês à
custa da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas sombrias. Dona Isaura
chorou até
os bolinhos, a manteiga e os frangos.
Quanto a Zilda, o desastre operou como pé-de-vento
através de paineira florida. Caiu de cama, febricitante. Encovaram-se-lhe
as faces. Todas as passagens trágicas dos
romances lidos desfilaram-lhe na memória; reviu-se na vítima de todos
eles. E dias a fio pensou no suicídio.
Por fim, habituou-se a essa idéia e continuou a viver.
Teve azo de verificar que isso de morrer de amores, só em
Escrich.
Acaba-se aqui a história -para a platéia; para as torrinhas segue ainda
por meio palmo. As platéias costumam
impar umas tantas finuras de bom gosto e tom muito de rir;
entram no teatro depois de começada a peça e saem mal as
ameaça o epílogo.
Já as galerias querem a coisa pelo comprido, a jeito de
aproveitar o rico dinheirinho até o derradeiro vintém. Nos
romances e contos, pedem esmiuçamento completo do enredo; e se o autor,
levado por fórmulas de escola, lhes
arruma para cima, no melhor da festa, com a caudinha
reticenciada a que chama "nota impressionista", franzem o
nariz. Querem saber -e fazem muito bem -se Fulano
morreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem afinal
vendeu a fazenda, a quem e por quanto.
Sã, humana e respeitabilíssima curiosidade!
-Vendeu a fazenda o pobre Moreira?
Pesa-me confessá-lo: não! E não a vendeu por artes do
mais inconcebível qüiproquó de quantos tem armado neste
mundo o diabo -sim, porque afora o diabo, quem é capaz
de intrincar os fios da meada com laços e nós cegos, justamente quando
vai a feliz remate o crochê?
O acaso deu a Trancoso uma sorte de cinqüenta contos
na loteria. Não se riam. Por que motivo não havia Trancoso de ser o
escolhido, se a sorte é cega e ele tinha no
bolso um bilhete? Ganhou os cinqüenta contos, dinheiro
que para um pé-atrás daquela marca era significativo de
grande riqueza.
De posse do bolo, após semanas de tonteira, deliberou
afazendar-se. Queria tapar a boca ao mundo realizando
uma coisa jamais passada pela sua cabeça: comprar fazenda. Correu em
revista quantas visitara durante os anos de
malandragem, propendendo, afinal, para a Espiga. Ia nisso, sobretudo, a
lembrança da menina, dos bolinhos da
velha e a idéia de meter na administração ao sogro, de
jeito a folgar-se uma vida vadia de regalos, embalado pelo
amor de Zilda e os requintes culinários da sogra. Escreveu, pois ao
Moreira anunciando-lhe a volta, a fim de
fechar-se o negócio.
Ai, ai, ai! Quando tal carta penetrou na Espiga houve
rugidos de cólera, entremeio a bufos de vingança.
-É agora! -berrou o velho. -O ladrão gostou da
pândega e quer repetir a dose. Mas desta feita curo-lhe a
balda, ora se curo! -concluiu, esfregando as mãos no
antegozo da vingança.
No murcho coração da pálida Zilda, entretanto, bateu
um raio de esperança. A noite de su"alma alvorejou ao luar
de um "Quem sabe?" Não se atreveu, todavia, a arrostar a
cólera do pai e do irmão, concertados ambos num tremendo ajuste de
contas. Confiou no milagre. Acendeu outra
velinha a Santo Antônio...
O grande dia chegou. Trancoso rompeu à tarde pela
fazenda, caracolando o
rosilho.
Desceu Moreira a esperá-lo embaixo da escada, de mãos
às costas.
Antes de sofrear as rédeas, já o amável pretendente
abria-se em exclamações.
-Ora viva, caro Moreira! Chegou enfim o grande dia.
Desta vez, compro-lhe a fazenda.
Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse e mal Trancoso, lançando as
rédeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos,
todo risos, o velho saca de sob o paletó um rabo de tatu e
rompe-lhe para cima com ímpeto de queixada.
-Queres fazenda, grandíssimo tranca? Toma, toma fazenda, ladrão! -e
lepte, lepte, finca-lhe rijas rabadas coléricas.
O pobre rapaz, tonteando pelo imprevisto da agressão,
corre ao cavalo e monta às cegas, de passo que Zico lhe
sacode no lombo nova série de lambadas de agravadíssimo
ex-quase-cunhado.
Dona Isaura atiça-lhe os cães:
-Pega, Brinquinho! Ferra, Joli!
O mal-azarado comprador de fazendas, acuado como
raposa em terreiro, dá de esporas e foge à toda, sob uma
chuva de insultos e pedras. Ao cruzar a porteira inda teve
ouvidos para distinguir na grita os desaforos esganiçados
da velha:
-Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma! Em outra não hás de cair,
ladrão de ovo e cará!...
E Zilda?
Atrás da vidraça, com os olhos pisados do muito chorar,
a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto em
uma nuvem de pó, o cavaleiro gentil dos seus dourados
sonhos.
Moreira, o caipora, perdia assim naquele dia o único
negócio bom que durante a vida inteira lhe deparara a
Fortuna: o duplo descarte -da filha e da Espiga...
Notas:
1. Feijão-bravo: Plantas venenosas para o gado.
2. Assis Brasil;
3. Antônio Prado;
4. Luiz Pereira
Barreto;
5. Eduardo Cotrim, homens de muita autoridade em assuntos de pecuária, na
época;
6. José Bezerra, ministro da Agricultura.
O estigma
Fui um dia a Itaoca levado pelas simples indicações do
sujeito que me alugou a cavalgadura.
-Não tem errada, é ir andando. Em caso de dúvida,
pegue a trilha dos carros que vai certo.
Assim fiz e lá cheguei sem novidade.
No dia da volta, porém, choveu à noite como só chove
por aqueles socavões, e na primeira encruzilhada parei desnorteado.
Como o enxurro houvesse diluído todos os sulcos
da carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan,
à espera d"algum passante que me abrisse os olhos.
Não apareceu viv"alma, e minha impaciência empurrou-me
ao acaso por uma das pernas do V embaraçador. Caminhei
cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda
desconhecida me deu a certeza do transvio.
Resolvi portar. Abeiro-me do portão e grito o "ó de
casa". Abre-mo um negro velho, ocupado em abanar feijão
no terreiro.
-O patrãozinho é lá em cima, na casa-grande.
Dirijo-me para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a
escadaria de pedra fronteiriça ao casarão senhorial.
Um grupo de crianças brincava por ali, em torno de
uma fogueirinha de cavacos fumarentos.
-Fumaça para lá, santinha para cá!
Ao avistarem-me, calaram-se e fugiram, com exceção da
mais taluda, que permaneceu no lugar, esfregando os olhos
avermelhados e lacrimosos do fumo.
-Papai está?
Estava e ia chamá-lo respondeu, esgueirando-se pela
casa adentro.
As outras, com o dedinho na boca, via-as a me espiarem
da porta, à qual logo assomou esbelta menina aí entre quatorze e
dezesseis anos, de avental azul e corada como quem
esteve a lidar em forno.
-Faça o favor de entrar! -disse-me com linda voz,
sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam d"alto a
baixo, num relance.
-Sente-se e espere um bocadinho.
-A menina é filha do...
-Não, senhor. Prima. Mas moro aqui des"que morreram meus pais.
-Tão nova e já órfã!...
-De pai e mãe. Tinha seis anos quando os perdi na
febre amarela de Campinas. O primo trouxe-me de lá e...
Aqui rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da
casa.
Reconhecemo-nos incontinenti, com igual espanto.
-Bruno! -berrou ele. -Que milagre!
-E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que esperava ver surgir um
matutão desconfiado!
Abraços, explicações, perguntas atropeladas.
Fausto não cessava de admirar a coincidência.
-Há quantos anos não nos vemos? Dez, no mínimo...
-Desd"a opa da colação de grau. Como passa o tempo!...
Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem
conhecer o meu seio de Abraão e matar bem matadas as
saudades.
Durante estas expansões, a menina do avental não arredou pé da sala, e
eu, volta e meia regalava meus olhos na
linda criatura que ela era.
Fausto, percebendo-o, apresentou-ma.
-Laurita, minha prima...
-Já nos conhecemos -disse eu.
-Donde? -exclamou Fausto surpreso.
-Daqui mesmo, de há cinco minutos.
-Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam o café
para aqui!
A menina, ao retirar-se, pôs no andar esse requebro que
o instinto aconselha às moças na presença de um homem
casadoiro.
-Galantinha, hein? -disse Fausto, mal se fechou a porta.
-Linda! -exclamei, carregando com fúria o i. -Que
frescura! Que corado!
-O corado corre à conta do forno. Estão lá todos a
assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme, da
Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis
meses de roça com outros
tantos de capital.
-Excelente vida! É o sonho de toda a gente.
-Não me queixo, nem quero outra.
-Colheste, então, o pomo da felicidade?
Fausto não respondeu, e como o café entrasse no momento, a conversa mudou
de rumo. Trouxe-o Laura, com
bolinhos quentes.
-Estou adivinhando, dona Laurita, que este foi enrolado pelas suas mãos!
-galanteei eu, tomando um deles.
-Qual? -acudiu a menina. -Esse que tem marca de
carretilha?
-Sim!
Ela desferiu a mais sonora das risadinhas.
-Justamente os que têm marca são da Lucrécia...
-Ora você, cascalhou Fausto, a confundir as artes da prima com as da
preta!
-Os meus são estes -disse Laura, apontando os não
carretilhados.
Provei um, e:
-Realmente, a diferença é enorme.
Novo pizzicato da menina.
-Pois a massa é a mesma e tudo tempero da Lucrécia...
Fausto pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.
-Estás muito chucro no galanteio. Vem daí ver a criação, que é o melhor.
Saímos e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos
canastrões, o cercado das aves de raça, o tanque dos Pekins;
vimos as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a máquina de
café, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e que
no entanto examinamos sempre com real prazer.
Fausto era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava
logo dispêndio de dinheiro sem a preocupação da renda
proporcional; trazia-a no pé de quem não necessita da propriedade para
viver.
Ao jantar apresentou-me a sua mulher.
Não condisse com o molde que cá tenho de boa mulher
a esposa do meu amigo. De feições duras, olhar d"ave de
rapina, nariz agudo, era positivamente feia e provavelmente ma.
Compreendi o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às mãos
por intermédio da esposa.
Na presença dela Fausto mudava de tom. De natural
brincalhão, embezerrava-se numa sisudez que me era estranha; isso me
disse que casaram os bens, os corpos, mas não
as almas.
Também Laurita se coibia, e as crianças mostravam um
odioso bom comportamento de meter dó. A mulher gelava-os a todos com o
olhar duro e mau de senhora absoluta.
Foi um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara
um giro pelos cafezais e como já estivessem arreadas as
cavalgaduras, partimos. Sem demora voltou o meu amigo
à expansibilidade anterior, com a alegre despreocupação
dos anos acadêmicos. A conversa correu por mil veredas e
por fim embicou para o tema casamento.
-Aquele nosso horror à coleira matrimonial! Como
esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido
pelo padre, gatafunhado pelo escrivão... Lembras-te?
-E estamos a pagar a língua. É sempre assim na vida:
a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções
por baixo. O casamento!... Não o defino hoje com o petulante entono de
solteiro. Só digo que não há casamento -há
casamentos. Cada caso é um especial.
-Tendo aliás de comum -disse eu -um mesmo
traço: restrição da personalidade.
-Sim. é mister que o homem ceda cinqüenta por cento
e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável
a que chamamos felicidade conjugal.
-"Felicidade conjugal", dizes bem, restringindo com o
adjetivo a amplidão do substantivo.
A vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era
setembro, e o aspecto das árvores estrelejadas de florinhas
dava uma sensação farta de riqueza e futuro. Corremo-lo
em parte, gozando o "prazer paulista" de ver ondular por
espigões e grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.
-No teu caso -perguntei -foste feliz?
Fausto retardou a resposta, mastigando-a.
-Não sei. Cedi os cinqüenta, e espero que minha mulher imite a minha
abnegação. Ela porém, mais tenaz, embirra em não chegar a tanto.
Procuramos o equilíbrio ainda...
-E Laura? -perguntei estouvadamente...
Fausto voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito,
vacilante em revelar-me o fundo de sua alma.
Depois, como atravessássemos um sombrio trecho de caminho, com, barrancos
acima, avencas viçosas, samambaias e
begônias agrestes, disse apontando para aquilo:
-Sabes o que é uma face noruega? Cá tens uma. Não
bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas
nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura... É como um
raio de sol matutino que folga e ri na face
noruega da minha vida...
Calou-se, e até à casa não mais pronunciou uma só
palavra. Compreendi a situação do meu querido Fausto, e
não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.
Deixei o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com
três impressões n"alma: deliciosa, a da menina dos bolinhos,
no seu avental azul, corada como as romãs; penosa, a da
megera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente para
adquirir marido como quem adquire um animal de luxo. A
terceira não a define aí qualquer adjetivo espipado -complexa, sutil em
demasia para caber em moldes vulgares. Era
o vago pressentir duma equação sentimental cujos termos o raio de sol, a
face noruega e o meu Fausto -vagamente
perambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas.
Nunca tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço com qualquer
das três personagens.
Este mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos, estava
eu parado diante duma vitrina no
Rio de Janeiro, quando alguém me cutucou as costelas.
-Tu, Fausto!
-Eu sim, Bruno!
Envelhecera Fausto quarenta anos naqueles vinte de
desencontro, e o tempo murchara-lhe a expansibilidade folgazã. Enquanto
palestrávamos, uma a uma subiam-me à
tona da memória as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante
Laurita à frente. Perguntei por ela em primeiro.
-Morta! -foi a resposta seca e torva.
Como nas horas claras do verão nuvem erradia tapando
às súbitas o sol põe na paisagem manchas mormacentas de
sombras, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegria
do encontro.
-E tua mulher? Os filhos?
-Também morta, a mulher. Os filhos, por aí, casados
uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro
não é tudo na vida, e principalmente não é pára-raios que
nos ponha a salvo de coriscos a cabeça. Moro na rua tal;
aparece lá à noite que te contarei a minha história -e
gaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu
o Paraiso...
Eis o que ouvi:
-Quando a febre amarela em Campinas orfanou Laurita,
eu, como o parente mais bem condicionado, trouxe-a a
morar conosco. Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas
graças infantis a encantadora menina que seria.
Eu estava casado de fresco e errara no casamento. Minha
mulher -não o suspeitaste naquele jantar? -era uma
criatura visceralmente má.
O "má" na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de
expressões. Quando ouvires de uma mulher que é má, não
peças mais: foge a sete pés. Se eu fora refazer o Inferno,
acabaria com tantos círculos que lá pôs o Dante, e em lugar
meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras.
Haviam de ver que paraíso eram, em comparação, os círculos...
Confesso que não casei por amor. Estava bacharel e
pobre. Vi pela frente o marasmo da magistratura e a vitória
rápida do casamento rico. Optei pela vitória rápida, descurioso de sondar
para onde me levaria a áurea vereda. O
dote, grande, valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. Errei.
Com a experiência de hoje, agarrava a mais reles das promotorias. O viver
que levamos não o desejo como castigo
ao pior celerado.
-A face noruega!...
-Era exata a comparação, gélida como nos corria o
viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos, tentando
um equilíbrio impossível. Depois tornou-se-nos infernal.
Laura, à proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de
corpo, alma e espírito um poeta concebe
em sonhos para meter em poemas. Conluiava-se nela a
beleza do Diabo, própria da idade, com a beleza de Deus,
permanente -e o pobre do teu Fausto, um exilado em fria
Sibéria matrimonial, coração virgem de amor, não teve mão
de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou o
perigosíssimo amor dos trinta anos.
O vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da triste
mansão, ora a florir um vaso, ora a ameigar os pequenos, já
curando os doentes pobres da fazenda, sempre irradiando
beleza, felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do
viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos anos
adolescentes borbulharam em meu peito. Compreendi a
minha desgraça: era um cego a quem restituíam os olhos e
que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através das
reixas encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível...
Vitimava-me a pior casta de amor -o amor secreto...
Correram meses.
Ao cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse à
minha mulher uma visão de lince,
tudo leu ela dentro de mim, como se o coração me pulsasse num peito de
cristal. Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma humana: a caverna onde
moram os dragões do
ciúme e do ódio. O que escabujou minha mulher contra os
"amásios"!
A caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza
dum sentimento puríssimo, recalcado
no fundo do meu ser.
Intimou-me a expulsá-la incontinenti.
Resisti.
Afastaria Laura, mas não com a bruteza exigida e de
modo a me trair perante ela e todo o mundo. Era a primeira
vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza encheu
de assombro a "senhora". Tenho cá na visão o riso de
desafio que nesse momento lhe crispou a boca, e tenho
n"alma as cicatrizes das áscuas que espirraram aqueles olhos.
Apanhei a luva.
Estas guerras conjugais portas adentro!... Não há aí luta
civil que se lhe compare em crueza. Na frente de estranhos,
de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava a pobre menina, mas sem
revelar a verdadeira causa da perseguição.
A sós comigo, porém, que inferno!
Durou pouco isso. Escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para a
arrumação de Laura, quando...
Não te recordas do bosque de pinheiros plantados em
seguimento ao pomar?
-O pinhal d"Azambuja!
-Foi o nome que lhe pus, como andassem uns lagartões, seus fregueses, a
me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o passeio favorito de Laura.
Emboscava-se nele
com um livro, ou com a costura, e dess"arte sossegava um
momento da inferneira doméstica.
Um dia em que saí à caça, menos pela caçada do que
para retemperar-me da guerra caseira na paz das matas, ao
montar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o cestinho de
costura.
Demorei-me mais do que o usual, e em vez de paca
trouxe uma longa meditação desanimadora, feita de papo
acima, inda me lembro, sob a fronte de enorme guabirobeira.
Ao pisar no terreiro, vi as crianças a me esperarem na
escada, assustadinhas.
-"Papai não viu Laura?"
-"Laura?"
Estranhei a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se
a velha Lucrécia, que disse:
-"Não vá ter acontecido alguma para Nhá Laurita,
patrão! Saiu cedo, antes do café, já é quase noite e nada de
voltar."
-"A senhora...", comecei eu a perguntar não sabia
ainda o que.
-"Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e
se trancou por dentro. Não quer enxergar ninguém, parece
que comeu cobra..."
O coração palpitou-me violento e saí em procura de
Laurinha. Indaguei no terreiro: ninguém a vira. Lembreime do pinhal e
organizei uma alvoroçada batida ao bosque.
Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão reinante.
-"Nada!"
Eu desanimava já de encontrá-la por ali, quando um capataz, desgarrado à
frente, gritou:
-Certo bosque de Portugal onde se juntavam bandidos.
-"Está aqui um cestinho!"
Corremos todos. Estava lá o cestinho de costura, mais
adiante... o corpo frio da menina.
Morta, à bala!
A blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida:
um pequeno furo negro donde fluía para as costelas fina
esfria de sangue. Ao lado da mão direita inerte, o meu revólver.
Suicidara-se...
Não te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências, tudo, e
beijei-a longamente entre arquejos e sacões
de angústia.
Trouxeram-na a braços. Em casa, minha mulher, então
grávida, recusou-se a ver o cadáver com pretexto do estado,
e Laura desceu à cova sem que ela por um só momento
deixasse a clausura. Note você isto: "Minha mulher não viu
o cadáver da menina.
Dias depois, humanizou-se. Deixou a cela, voltando à
vida do costume, muito mudada de gênio, entretanto. Cessara a exaltação
ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um
mutismo sombrio. Pouquíssimas palavras lhe ouvi daí por
diante.
A mim, o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dos
terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.
Não compreendia aquilo..
Suas últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada
induzia o horrível desenlace. Por que se mataria Laura?
Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu quarto, em lugar só de
mim e de minha mulher sabido?
Uma inspeção nos seus guardados não me esclareceu
melhor; nenhuma carta ou escrito judicioso.
Mistério!
Mas correram os meses e um belo dia minha mulher
deu à luz um menino.
Que tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.
A velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à
sala com a notícia do bom sucesso.
-"Desta vez foi um meninão!", disse ela. "Mas nasceu
marcado..."
-"Marcado?"
-"Tem uma marca no peito, uma cobrinha coral de
cabeça preta."
Impressionado com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da
criança e desfiz as faixas o necessário
para examinar-lhe o peitinho. E vi... vi um estigma que
reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro,
imitante ao furo da bala, e a "cobrinha", uma
estria enviesada pelas costelas abaixo.
Um raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi
tudo. O feto em formação nas entranhas da mãe fora a única
testemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o com esmagadora
evidência.
-"Ela já viu isto?" -perguntei à parteira.
-"Não! Nem é bom que veja antes de sarada."
Não me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas
de sol no aposento, despi a criança e ergui-a ante os olhos
da mãe; dizendo com frieza de juiz:
-"Olha, mulher, quem te denuncia!"
A parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as
madeixas soltas e cravou os olhos no estigma. Esbugalhouos como louca, à
medida que lhe alcançava a significação.
Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles
olhos duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus.
Em seguida moleou o corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.
Sobreveio-lhe uma crise à noite. Acudiram médicos. Era
febre puerperal sob forma gravíssima. Minha mulher recusou obstinadamente
qualquer medicação e morreu sem uma
palavra, fora as inconscientes escapas nos momentos de
delírio...
Mal concluíra Fausto a confidência daqueles horrores,
abriu-se a porta e entrou na sala um rapazinho imberbe.
-Meu filho -disse ele -, mostra ao Bruno a tua
cobrinha.
O moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude
então ver o estigma. Era perfeita ilusão: lá estava a imagem
do orifício aberto pelo projétil e o do fio de sangue escorrido.
Veja você, concluiu o meu triste amigo, os caprichos da
Natureza...
-Caprichos de Nêmesis... -ia eu dizendo, mas o
olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime
de que fora ele próprio eloqüente delator.
Prefácio
da 2ª edição de URUPÊS
Esgotada num mês a primeira edição deste livro, sai
agora a segunda, aumentada, revista e com vários pronomes
recolocados pelo sr. Adalgiso Pereira, excelente amigo
que ainda a enriqueceu de numerosas vírgulas, aspas, hífens
e outras miudezas cuja ausência empobrecia o original.
E para ela entra mais uma, como direi? -o gênero é
inclassificável -uma "indignação": "Velha praga". E também
o artigo "Urupês".
Explica-se. "Velha praga" é a verdadeira mãe deste livro,
e não seria justo separar a mãe do filho.
Foi assim o caso. Em 1914, nos primeiros meses da
guerra, o autor não passava de humilde lavrador, incrustado
na serra da Mantiqueira. Terrível ano de seca foi aquele!
O fogo lavrou durante dois meses a fio, com fúria infernal.
céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente das
matas em chama, a fumarada invadindo a casa, os olhos a
arderem...
Um fim de mundo.
E sempre notícias más, a toda hora.
-Rebentou outro fogo no Varjão! -vinha dizer um
agregado.. (1)
Mal se ia aquele, vinha outro:
-Patrão, o Trabiju está queimando!
-Então, já seis?
-É verdade. Há o fogo do Teixeirinha, o fogo do Maneta,
o fogo do Jeca...
-Fogos signés!... Que patifes! Mas hão de pagar. Denuncio-os
todos à polícia.
O capataz sorriu.
-Não vale a pena. São eleitores do governo; o patrão
não arranja nada.
-Mas não haverá ao menos um incendiário oposicionista
que possa pagar o pato?
-Não vê! Caboclo é ali firme no governo justamente
p"r"amor do fogo.
Tinha razão o homem. Eram todos do governo. E o
eleitor da roça, em paga da fidelidade partidária, goza-se
do direito de queimar o mato alheio.
Impossibilitado de agir contra eles por meio da justiça,
o pobre fazendeiro limitou-se a "tocar" alguns que eram
seus agregados e... a "vir pela imprensa". Escreveu e mandou
para as "Queixas e Reclamações" d"O Estado de S.
Paulo, a tal catilinária mãe dos "Urupês". Esse jornal, publicando-a
fora da seção de queixas, estimulou o fazendeiro
a reincidir. Reincidiu. E quando deu acordo de si, virara o
que os noticiaristas gravemente chamam um "homem de
letras".
Ora aí está como as coisas se arrumam, e como, por obra
e graça de meia dúzia de Neros de pé-no-chão, entra a
correr mundo mais um livro.
Setembro, 1918
Nota:
Agregado: Categoria dos que lavram por conta própria um pedaço de terra
duma
fazenda, pagando o uso do terreno com porcentagem nas colheitas; meeiro.
Velha praga
O artigo "Velha praga" com que o
tal fazendeirinho "veio pela imprensa",
era o seguinte:
Andam todos em nossa terra por tal forma estonteados
com as proezas infernais dos belacíssimos "vons" alemães,
que não sobram olhos para enxergar males caseiros.
Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se lá fora o
jogo da guerra lavra implacável, fogo
não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não
menos germânico.
Em agosto, por força do excessivo prolongamento do
inverno, "von Fogo" lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas,
durante o mês inteiro.
Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar
poeira e, breve, novo "verão de sol" se estirou por outubro
adentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara
à sanha de agosto.
A serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na
Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e
acolá de manchas de verdura -as restingas úmidas, as
grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo o
mais é crepe negro.
À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas
que chuva cainha! Que miséria d"água! Enquanto caem do
céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo,
amortecido mas não dominado, amoita-se insidioso nas
piúcas, (1) a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas
mal se limpe o céu e o sol lhe dê a
mão.
Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto
fica na Europa por dia, em francos e cêntimos, um soldado
em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de
toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As
velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que,
breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o
rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a
destruição das aves silvestres e o possível advento de
pragas insetiformes; a alteração para o pior do clima com a
agravação crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto
ou depreciado pela falta de pastos; as cento e uma particularidades que
dizem respeito
a esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela "situação"
agrícola.
Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente, no Brasil
subtrai-se; somar ninguém soma...
É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de
matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcançou tal
extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus, parece aparentado
de perto como o célebre
ano
1000 de macabra memória. Tudo nele culmina, vai logo às
do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram
à regra.
Razão sobeja para, desta feita, encararmos a sério o problema. Do
contrário, a Mantiqueira será em pouco tempo
toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias esses dois términos
à uberdade das terras montanhosas.
Qual a causa da renitente calamidade?
É mister um rodeio para chegar lá.
A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho
da terra, peculiar ao solo brasileiro como o Argas o é aos
galinheiros ou o Sarcoptes mutans à perna das aves domésticas.
Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do Porrigo
decalvans, o parasita do couro cabeludo
produtor da "pelada", pois que onde ele assiste (2) se vai
despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna
decrepitude, nua e descalvada. Em quatro anos, a mais
ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das
perobeiras milenárias -seu orgulho e grandeza, para, em
achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da
vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do
sapezeiro -sua tortura
e vergonha.
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de
homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas
que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças.
A medida que o progresso vem chegando com a via férrea,
o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele
refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a
pica-pau (3) e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço,
mudo e sorna.
Encoscorado numa rotina de pedra,
recua para não adaptar-se.
É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua
arapuca de "agregado"; nômade por força de vagos atavismos, não se liga à
terra, como o campônio europeu "agrega-se" tal qual o "sarcopte", pelo
tempo necessário
à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para
diante com a mesma bagagem com que ali chegou.
Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em
íntima simbiose; sapé e caboclo são vidas associadas. Este
inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca, o sapé
lhe cobre a choça e lhe fornece fachos para queimar a colméia das
pobres abelhas.
Chegam silenciosamente, ele e a "sarcopta" fêmea, esta
com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos
à ourela da saia -este já de pitinho na boca e faca à cinta.
Completam o
rancho um cachorro sarnento -Brinquinho
-a foice, a enxada, a pica-pau, o pilãozinho de sal, a
panela de barro, um santo encardido, três galinhas pevas e
um galo índio. Com estes simples ingredientes, o fazedor
de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esterilização
iniciada com os remotíssimos avós.
Acampam.
Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam
casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar,
os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os
liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a
comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam
idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da
natureza -se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.
Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte
daquela paragem.
Começam as requisições. Com a pica-pau, o caboclo
limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo
palmitos no povoado vizinho. É este um
traço curioso da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de
pólvora; quando o palmito escasseia, rareiam os
tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se
o palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada a
estação venatória.
Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando
ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza
Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um
mel-de-pau escondido num oco.
Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra
em funções o isqueiro. Mas aqui o "sarcopte" se faz raposa.
Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de
dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças
para iludir a lei, cocando dest"arte a insigne preguiça e a
velha malignidade.
Cisma o caboclo à porta da cabana. (4)
Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as
posturas com a responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um
álibi demonstrativo
de que não
esteve lá no dia do fogo.
Onze horas.
O sol quase a pino queima como chama. Um "sarcopte"
anda por ali, ressabiado. Minutos após, crepita a labareda
inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento;
mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultua
infrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com infernal
violência, devorando as tranqueiras, esturricando as mais
altas frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de
faíscas.
É o fogo-de-mato!
E como não o detém nenhum aceiro, esse fogo invade a
floresta e caminha por ela adentro, ora frouxo, nas capetingas (5)
ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçu;
caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha,
insolente se o sol o ajuda.
E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a
passo lento e traiçoeiro até que o detenha
a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega. (6)
Barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás,
esgueira-se para os lados -e lá continua o
abrasamento implacável. Amordaçado por uma chuva repentina, alapa-se nas
piÚcas quieto e invisível, para no dia
seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.
Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo?
Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala,
amoitado num
litro (7) de terra litigiosa.
E agora? Que fazer? Processá-lo?
Não há recurso legal contra ele. A única pena possível,
barata, fácil e já estabelecida como praxe, é "tocá-lo".
Curioso este preceito: "ao caboclo, toca-se
Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma
galinha que vareja pela sala. E tão afeito anda ele a isso,
que é comum ouvi-lo dizer: "Se eu fizer tal coisa, o senhor
não me toca?"
Justiça sumária -que não pune, entretanto, dado o
nomadismo do paciente.
Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.
-Eta fogo bonito!
No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes são um jacu
abatido, uma paca fisgada n"água ou o
filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano,
supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.
Entrado setembro, começo das "águas", o caboclo planta na terra em cinzas
um bocado de milho, feijão e arroz;
mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males
que para preparar uma quarta de chão ele semeou.
O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinqüenta
alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome
e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo
da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos.
"Dando para passar fome", sem virem a morrer disso, ele,
a mulher e o cachorro -está tudo muito bem; assim fez o
pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele
momento brinca nua no terreiro.
Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No
lugar, ficam a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só
este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por
encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e,
como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais
lembra a passagem por ali do Manoel Peroba, do Chico
Marimbondo, do Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa
memória para a natureza circunvizinha.
Notas:
1. Piúcas: Tocos semicarbonizados.
2. Assiste: Reside; está estabelecido.
3. Pica-pau: Espingarda de carregar pela boca.
4. Cabana: Verso de Ricardo Gonçalves.
5. Capetingas: Capins de mato dentro, sempre ralos, magrelas.
6. Grota noruega: Grota fria onde não bate o sol.
7. Litro: A terra se mede pela quantidade de milho que nela pode ser
plantada; daí,
um alqueire, uma quarta, um litro de terra.
Urupês
Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento
dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios
num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand na
cabeça e a Iracema aberta sobre os joelhos, metem-se a palmilhar
sertões de Winchester em punho.
Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural
como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições
humanas, que no romance, ombro a ombro com
altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d"alma
e corpo.
Contrapôs-lhe a cruel etrologia dos sertanistas modernos
um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante,
tão incapaz. muscularmente, de arrancar uma palmeira,
como incapaz, moralmente, de amar Ceci.
Por felicidade nossa-e de D. Antônio de Mariz não
os viu Alencar; sonhou-os qual Rousseau. Do contrário,
lá teríamos o filho de Araré a moquear a linda menina
num bom brasileiro de pau-brasil, em vez de acompanhá-la em adoração
pelas selvas, como o Ariel benfazejo do
Paquequer.
A sedução do imaginoso romancista criou forte corrente.
Todo o clã plumitivo deu de forjar seu indiozinho refegado
de Peri e Atala. Em sonetos, contos e novelas, hoje
esquecidos, consumiram-se tabas inteiras de aimorés sanhudos,
com virtudes romanas por dentro e penas de tucano
por fora.
Vindo o público a bocejar de farto, já cético ante o crescente
desmantelo do ideal, cessou no mercado literário a
procura de bugres homénicos, inúbias, tacapes, bonés, piagas
e virgens bronzeadas. Armas e heróis desandaram cabisbaixos,
rumo ao porão onde se guardam os móveis fora
de uso, saudoso museu de extintas pilhas elétricas que a
seu tempo galvanizaram nervos. E lá acamam poeira cochichando
reminiscências com a barba de D. João de Castro,
com os frankisks de Herculano, com os frades de Garrett e
que tais...
Não morreu, todavia.
Evoluiu.
O indianismo está de novo a deitar copa, de nome mudado.
Crismou-se de "caboclismo". O cocar de penas de
arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; o ocara
virou
rancho de sapé: o tacape afilou, criou gatilho, deitou
ouvido e é hoje espingarda troxada; o boné descaiu lamentavelmente
para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa
aberta ao peito.
Mas o substrato psíquico não mudou: orgulho indomável,
independência, fidalguia, coragem, virilidade heróica,
todo o recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos Peris
e Ubirajaras.
Este setembrino rebrotar duma arte monta inda se não
desbagou de todos os frutos. Terá o seu "IJuca-Pirama",
o seu "Canto do Piaga", e talvez dê ópera lírica.
Mas, completado o ciclo, virão destroçar o inverno em
flor da ilusão indianista os prosaicos demolidores de ídolos
-gente má e sem poesia. Irão os malvados esgaravatar o
ícone com as curetas da ciência. E que feias se hão de
entrever as caipirinhas cor de jambo de Fagundes Varela! E
que chambões e sornas os Peris de calça, camisa e faca à cinta!
Isso, para o futuro. Hoje ainda há perigo em bulir no
vespeiro: o caboclo é o "Ai Jesus!" nacional.
É de ver o orgulho entono com que respeitáveis figurões
batem no peito exclamando com altivez: Sou raça de
caboclo!
Anos atrás, o orgulho estava numa ascendência de tanga,
inçada de penas de tucano, com dramas íntimos e flechaços
de curare.
Dia virá em que os veremos, murchos de prosápia, confessar
o verdadeiro avô: -um dos quatrocentos de Gedeão
trazidos por Tomé de Souza (1) num barco daqueles tempos,
nosso mui nobre e fecundo Mayflower.
Porque a verdade nua manda dizer que entre as raças
de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas
entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha no
beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução,
impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé.
Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o
país desperta estrovinhado à crise duma mudança de dono,
o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.
Pelo 13 de Maio, mal esvoaça o florido decreto da Princesa
e o negro exausto larga num uf! o cabo da enxada, o
caboclo olha, coça a cabeça, "magina e deixa que do velho
mundo venha quem nele pegue de novo.
A 15 de Novembro, troca-se um trono vitalício pela
cadeira quadrienal. O país bestifica-se ante o inopinado da
mudança. (2) O caboclo não dá pela coisa.
Vem Floriano; estouram as granadas de Custódio; Gumercindo
bate às portas de Roma; Incitátus derranca o país. (3)
O caboclo continua de cócoras, a modorrar...
Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social,
como individualmente, em todos os atos da vida, Jeca,
antes de agir, acocora-se.
Jeca Tatu é um piraquara do Paraíba, maravilhoso epítome
de carne onde se resumem todas as características da
espécie.
Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro
movimento após prender entre os lábios a palha de
milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d"esguicho,
é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só
então destrava a língua e a inteligência.
-"Não vê que...
De pé ou sentado, as idéias se lhe entnamam, a língua
emperra e não há de dizer coisa com coisa.
De noite, na choça de palha, acocora-se em frente ao
fogo para "aquentá-lo", imitado da mulher e da prole.
Para comer, negociar uma barganha, ingerir um café,
tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será desastre
infalível. Há de ser de cócoras.
Nos mercados, para onde leva a quitanda domingueira,
é de cócoras, como um faquir do Bramaputra, que vigia os
cachinhos de brejaúva ou o feixe de três palmitos.
Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na
realidade!
Jeca mercador, Jeca lavrador, Jeca filósofo...
Quando comparece às feiras, todo o mundo logo adivinha
o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama
pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão
e colher -cocos de tucum ou jiçara, guabirobas, bacuparis,
maracujás, jataís, pinhões, orquídeas; ou artefatos de taquarapoca
-peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de caçador;
ou utensílios de madeira mole -gamelas, pilõezinhos,
colheres de pau.
Nada mais.
Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências
da lei do menor esforço -e nisto vai longe.
Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir
aos bichos que moram em toca e gargalhar ao joão-de-barro.
Pura biboca de bosquímano. Mobília, nenhuma. A cama é
uma espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.
Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas
-para os hóspedes. Três pernas permitem equilíbrio; inútil,
portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a
nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de
sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam?
Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo
-colher, garfo e faca a um tempo?
No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a
pichorra e a panela de feijão.
Nada de armários ou baús. A roupa, guarda-a no corpo.
Só tem dois panelhos; um que traz no uso e outro na lavagem.
Os mantimentos apaiola nos cantos da casa.
Inventou um cipó preso à cumeeira, de gancho na ponta
e um disco de lata no alto: ali pendura o toucinho, a salvo
dos gatos e ratos.
Da parede pende a espingarda pica-pau, o polvarinho
de chifre, o São Benedito defumado, o rabo de tatu e as
palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem
de gaveta os buracos da parede.
Seus remotos avós não gozaram maiores comodidades.
Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para quê?
Vive-se bem sem isso.
Se pelotas de barro caem, abrindo seteiras na parede,
Jeca não se move a repô-las. Ficam pelo resto da vida os
buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
Quando a palha do teto, apodrecida, greta em fendas
por onde pinga a chuva, Jeca, em vez de remendar a tortura,
limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha
a água gotejante...
Remendo... Para quê? se uma casa dura dez anos e
faltam "apenas" nove para que ele abandone aquela? Esta
filosofia economiza reparos.
Na mansão de Jeca a parede dos fundos bojou para fora
um ventre empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados
pela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame.
A fim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências,
ele gnudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada
em moldurinha amarela -santo de mascate.
-"Por que não remenda essa parede, homem de Deus?"
-"Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?"
Não obstante, "por via das dúvidas", quando ronca a
trovoada, Jeca abandona a toca e vai agachar-se no oco dum
velho embiruçu do quintal -para se saborear de longe
com a eficácia da escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria o milagre; mas entre
pendurar o santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar a
madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdote
da Grande Lei do Menor Esforço não vacila. É coerente.
Um terreirinho descalvado rodeia a casa. O mato o beira.
Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores -nada
revelador de permanência.
Há mil razões para isso; porque não é sua a terra; porque
se o "tocarem" não ficará nada que a outrem aproveite;
porque para frutas há o mato; porque a "criação" come;
porque...
-"Mas, criatura, com um vedozinho por ali... A madeira
está à mão, o cipó é tanto..."
Jeca, interpelado, olha para o morro coberto de moirões,
olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.
-"Não paga a pena."
Todo o inconsciente filosofar do caboclo grulha nessa
palavra atravessada de fatalismo e modorra. Nada paga a
pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito
se vive.
Da terra só quer a mandioca, o milho e a cana. A primeira,
por ser um pão já amassado pela natureza. Basta
arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita,
nem exige celeiro. O plantio se faz com um palmo de rama
fincada em qualquer chão. Não pede cuidados. Não a ataca
a formiga. A mandioca é sem-vergonha.
Bem ponderado, a causa principal da lombeira do caboclo
reside nas benemerências sem conta da mandioca. Talvez
que sem ela se pusesse de pé e andasse. Mas enquanto
dispuser de um pão cujo preparo se resume no plantar,
colher e lançar sobre brasas, Jeca não mudará de vida. O
vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade
ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu
de um brejo salgado a Holanda, essa jóia do esforço, é que
ali nada o favorecia. Se a Inglaterra brotou das ilhas nevoentas
da Caledônia, é que lá não medrava a mandioca.
Medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços,
de pé no chão, amarelentos, mariscando de peneira no Tâmisa.
Há bens que vêm para males. A mandioca ilustra este
avesso de provérbio.
Outro precioso auxiliar da calaçaria é a cana. Dá rapadura,
e para Jeca, simplificador da vida, dá garapa. Como
não possui moenda, torce a pulso sobre a cuia de café um
rolete, depois de bem macetados os nós; açucara assim a
beberagem, fugindo aos trâmites condutores do caldo de
cana à rapadura.
Todavia, est modus in rebus. E assim como ao lado do
restolho cresce o bom pé de milho, contrasta com a cristianíssima
simplicidade do Jeca a opulência de um seu vizinho
e compadre que "está muito bem". A terra onde mora
é sua. Possui ainda uma égua, monjolo e espingarda de
dois canos. Pesa nos destinos políticos do país com o seu
voto e nos econômicos com o polvilho azedo de que é
fabricante, tendo amealhado com ambos, voto e polvilho,
para mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.
Vive num corrupio de barganhas nas quais exercita
uma astúcia nativa muito irmã da de Bertoldo. A esperteza
última foi a barganha de um cavalo cego por uma
égua de passo picado. Verdade é que a égua mancava das
mãos, mas inda assim valia dez mil réis mais do que o
rocinante zanaga.
Esta e outras celebrizaram-lhe os engrimanços potreiros
num raio de mil braças, granjeando-lhe a incondicional e
babosa admiração do Jeca, para quem, fino como o compadre,
"home"... nem mesmo o vigário de Itaoca!
Aos domingos, vai à vila bifurcado na magreza ventruda
da Serena; leva apenso à garupa um filho e atrás o
potrinho no trote, mais a mulher, com a criança nova enrolada
no xale. Fecha o cortejo o indefectível Brinquinho, a
resfolgar com um palmo de língua de fora.
O fato mais importante de sua vida é, sem dúvida,
votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do
casamento, sarjão funadinho de traça e todo vincado de
dobras; entala os pés num alentado sapatão de bezerro; ata
ao pescoço um colarinho de bico e, sem gravata, ringindo e
mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe
Coisada, que lho retém para maior garantia da fidelidade
partidária.
Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no
livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a que
chama "sua graça".
Se há tumulto, chuchurreia de pé firme, com heroísmo,
as porretadas oposicionistas, e ao cabo segue para a casa do
chefe, de galo cívico na testa e colarinho sungado para trás,
a fim de novamente lhe depor nas mãos o "dipeloma".
Grato e sorridente, o morubixaba galardoa-lhe o heroísmo,
flagrantemente documentado pelo latejar do couro cabeludo,
com um aperto de munheca e a promessa, para
logo, duma inspetoria de quarteirão.
Representa este freguês o tipo clássico do sitiante já com
um pé fora da classe. Exceção, díscolo que é, não vem ao
caso. Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca Tatu.
O mobiliário cerebral de Jeca, à parte o suculento recheio
de superstições, vale o do casebre. O banquinho de
três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo
se reedita dentro de seus miolos sob a forma de idéias: são
as noções práticas da vida, que recebeu do pai e sem mudança
transmitirá aos filhos.
O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem
sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo é
grande, que há sempre terras para diante, que muito longe
está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia,
donde vêm baianos pernósticos e cocos.
Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República:
-"O homem que manda em nós tudo?"
-"Sim"
-"Pois de certo que há de ser o imperador."
Em matéria de civismo não sobe de ponto.
-"Guerra? T"esconjuro! Meu pai viveu afundado no
mato p"ra mais de cinco anos por causa da guerra grande. (4)
Eu, para escapar do "reculutamento", sou inté capaz de
cortar um dedo, como o meu tio Lourenço..."
Guerra, defesa nacional, ação administrativa, tudo quanto
cheira a governo resume-se para o caboclo numa palavra
apavorante -"reculutamento".
Quando em princípio da Presidência Hermes andou na
balha um recenseamento esquecido a Offenbach, o caboclo
tremeu e entrou a casar em massa. Aquilo "haverá de ser
reculutamento", e os casados, na voz corrente, escapavam
à redada.
A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília
-em qualidade. Quantitativamente, assombra. Da noite
cerebral pirilampejam-lhe apózemas, cerotos, arrobes e
eletuários escapos à sagacidade cômica de Mark Twain.
Compendia-se um Chernoviz não escrito, monumento de
galhofa onde não há rir, lúgubre como é o epílogo. A rede
na qual dois homens levam à cova as vítimas de semelhante
farmacopéia é o espetáculo mais triste da roça.
Quem aplica as mezinhas é o "curador", um Eusébio
Macário de pé no chão e cérebro trancado como moita de
taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga meio
honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade
que entre eles ainda não encontrou heréticos.
Doenças haja que remédios não faltam.
Para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca de
um peixe vivo e soltá-lo: o mal se vai com o peixe água abaixo...
Para "quebranto de ossos", já não é tão simples a medicação.
Tomam-se três contas de rosário, três galhos de alecrim,
três limas de bico, três iscas de palma benta, três
raminhos de arruda, três ovos de pata preta (com casca;
sem casca desanda) e um saquinho de picumã; mete-se
tudo numa gamela d"água e banha-se naquilo o doente,
fazendo-o tragar três goles da zurrapa. É infalível!
O específico da brotoeja consiste em cozimento de beiço
de pote para lavagens. Ainda há aqui um pormenor de
monta; é preciso que antes do banho a mãe do doente
molhe na água a ponta de sua trança. As brotoejas saram
como por encanto.
Para dor de peito que "responde na
cacunda", cataplasma
de "jasmim de cachorro" é um porrete.
Além desta alopatia, para a qual contribui tudo quanto
de mais repugnante e inócuo existe na natureza, há a medicação
simpática, baseada na influição misteriosa de objetos,
palavras e atos sobre o corpo humano.
O ritual bizantino dentro de cujas maranhas os filhos do
Jeca vêm ao mundo, e do qual não há fugir sob pena de
gravíssimas conseqüências futuras, daria um in-fólio d"alto
fôlego ao Sílvio Romero bastante operoso que se propusesse
a compendiá-lo.
Num parto difícil, nada tão eficaz como engolir três
caroços de feijão-mouro, de passo que a parturiente veste
pelo avesso a camisa do marido e põe na cabeça, também
pelo avesso, o seu chapéu. Falhando esta simpatia, há um
derradeiro recurso: colar no ventre encruado a imagem de
São Benedito.
Nesses momentos angustiosos, outra mulher não penetre
no recinto sem primeiro defumar-se ao fogo, nem traga
na mão caça ou peixe: a criança morreria pagã. A omissão
de qualquer destes preceitos fará chover mil desgraças na
cabeça do chorincas recém-nascido.
A posse de certos objetos confere dotes sobrenaturais. A
invulnerabilidade às facadas ou cargas de chumbo é obtida
graças à flor da samambaia.
Esta planta, conta Jeca, só floresce uma vez por ano, e
só produz em cada samambaial uma flor. Isto à meia-noite,
no dia de São Bartolomeu. É preciso ser muito esperto para
colhê-la, porque também o diabo anda à cata. Quem consegue
pegar uma, ouve logo um estouro e tonteia ao cheiro
de enxofre -mas livra-se de faca e chumbo pelo resto da vida.
Todos os volumes do Larousse não bastariam para catalogar-lhe
as crendices, e como não há linhas divisórias
entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada
teia, não havendo distinguir onde pára uma e começa
outra.
A idéia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica. São
os santos os graúdos lá de cima, os coronéis celestes, debruçados
no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nela
ajudando-os ou castigando-os, como os metediços deuses
de Homero. Uma torcedura de pé, um estrepe, o feijão
entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou -tudo
diabnuras da corte celeste, para castigo de más intenções ou
atos.
Daí o fatalismo. Se tudo movem cordéis lá de cima, para
que lutar, reagir? Deus quis. A maior catástrofe é recebida
com esta exclamação, muito parenta do "Allah Kébir" do
beduíno.
E na arte?
Nada.
A arte rústica do campônio europeu é opulenta a ponto
de constituir preciosa fonte de sugestões para os artistas de
escol. Em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer para
um ingênuo embelezamento da vida. Já não se fala no
camponês italiano ou teutônico, filho de alfobres mimosos,
propícios a todas as florações estéticas. Mas o russo, o hirsuto
mujique a meio atolado em barbárie crassa. Os vestuários
nacionais da Ucrânia nos quais a cor viva e o sarapantado
da ornamentação indicam a ingenuidade do primitivo,
os isbás da Lituânia, sua cerâmica, os bordados, os móveis,
os utensílios de cozinha, tudo revela no mais rude dos
campônios o sentimento da arte.
No samoieda, no pele-vermelha, no abexim, no papua,
um arabesco ingênuo costuma ornar-lhes as armas -como
lhes ornam a vida canções repassadas de ritmos sugestivos.
Que nada é isso, sabido como já o homem pré-histórico,
companheiro do urso das cavernas, entalhava perfis de mamutes
em chifres de rena.
Egresso à regra, não denuncia o nosso caboclo o mais
remoto traço de um sentimento nascido com o troglodita.
Esmenilhemos o seu casebre: que é que ali denota a
existência do mais vago senso estético? Uma chumbada no
cabo de relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo
roliço do porretinho de guatambu. É tudo.
Às vezes surge numa família um gênio musical cuja
fama esvoaça pelas redondezas. Ei-lo na viola: concentra-se,
tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e "tempera". E fica
nisso, no tempero.
Dirão: e a modinha?
A modinha, como as demais manifestações de arte popular
existentes no país, é obra do mulato, em cujas veias o
sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos,
borbulha d"envolta com o sangue selvagem, alegre e são do
negro.
O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas lúgubres.
Não dança senão o cateretê aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.
Não compõe sua canção, como o felá do Egito.
No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e
cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente
e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro,
abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol,
esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida
dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio
urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das
grotas.
Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio de tanta vida, não vive...