CHAPADÃO DO BUGRE
Mário Palmério
Cavaleiro e montada
1
A MONTARIA MAL se encostara à cerca de limão brabo, e o cavaleiro j á desapeava. Vazou a
tronqueirinha, rumando direito para a j anela de frente da meiágua. Chamou:
— João, ô João da Preta!
Teve de bater mais uma vez com o argolão da taca e chamar de novo:
— João, ô João da Preta! Sou eu, é o José de Arimateia!
A mulher foi quem veio ver à porta, mesmo assim sem arredar de todo a escora. Meia tirinha só de confiança na fresta mal aberta:
— Seu Isé?
— Sou eu sim. Anda logo, que a friagem aqui no tempo...
Siá Preta acabou de abrir a porta, e o cavaleiro entrou. Treme-soprava:
— Viaj inha danada de fora de horas... Qu"é de o João? Recebeu o aviso?
Descalço, encolhido num resto de poncho campanheiro, João da Preta apareceu. Mal salvou, e foi dizendo:
— Recebi de tardezinha. Seu Valério foi quem trouxe. Quer baldear agora, ou dilata um tico pro café?
E antes que o outro resolvesse:
— Vigia a mulher j á na cozinha. Fogo de sabugo esquenta de vereda...
Não, não carecia tanta pressa — José de Arimateia calculava. Havia saído com muita folga do Sassafrás, e a besta rompera bem o trecho até o porto, apesar do nevoeiro que fechava o rio e a serra. E haveria de seguir assim rendosa, conhecedora que era do meio eito apenas de subida do outro lado, do porto à fazendinha do Pinhé, onde morava seu Valério.
Sem que o dono da casa oferecesse, José de Arimateia apanhou o guampo no prego da parede e chocalhou-o. Sentiu o sacolej o da cachaça, e virou o chifre na boca.
— Quer soprar também um pouco no berrante, hem João? — perguntou, passando o guampo.
João da Preta bebeu uma golada, e aj eitou na cara boa um risinho oferecido:
— Se atira para adonde, nessas horas?
Mas o viaj ante não informou. Tampouco pagou a risadinha, ocupado em contraesfregar as mãos. Fechado de natural, mais ainda lhe amarravam o rosto à aba descida do chapéu e a gola alta da capa.
João da Preta não insistiu, que conhecia de sobejo José de Arimateia: bom de coração e convivência, mas homem de prosa reduzida, reservado por demais. Paciência: seu Isé não iria mesmo, ali naquele instante, delatar nada da viagem, mas ele, o preto velho, acabaria ficando a par de tudo, mais hoje mais amanhã. Era na meiaguinha do porto que os peões do Sassafrás costumavam se arranchar; vinham comer da comidinha de siá Preta, se demoravam horas conversando, abriam a alma com a velha e ele...
— cansados de saber que os dois eram gente de fiança, colocados j á de indústria ali na balsa pelo seu Americão. Podia andar hoj e sem préstimo, a vista ruim, o coração inventando de acelerar j usto na hora em que mais precisava do desempenho dele; mas camarada fiel, merecedor...
— João da Preta se reconhecia.
A mulher tossia na cozinha, na labuta com o fogo de sabugo e palha. João da Preta, enrolado no poncho e acocorado no chão, via o frio chegar cada vez mais apertado, avançando de parelha com a noite. Sim, todos paravam no Paiol Queimado, somente ali é que atravessavam o rio.· Desde os tempos de passagem a nado, quando não havia ainda a balsa mandada colocar pelo seu Americão Barbosa, era ele, o João da Preta, quem conduzia os cavaleiros até o barranco do outro lado. Via, então, quando quebravam mão esquerda ou mão direita, tomavam o tronco mais batido da boiadeira ou se sumiam pelo capoeirão dos pés-da-serra — conhecia assim do destino deles. E os peões de seu Americão Barbosa voltavam sempre, raros os que deixavam de voltar; ligeiros uns, mais retardados outros — esses últimos em geral os que traziam boas histórias compridas de contar. Se os levava à outra margem, ia buscá-los também, fosse a hora que fosse, andasse o mau tempo que andasse. Conhecia de cor o grito de cada um — o aboio alto e cantado que soltavam para pedir a balsa: Chico Doido, Lico, seu Hirondino...
De um deles, de especial, foi que o balseiro achou de indagar agora:
— E seu Arcanjo, tem visto ele?
Como que saindo do outro mundo, José de Arimateia respondeu:
— Hem? Ah, o Arcanjo... Não, já faz tempo que eu não vejo. E só. Levantou-se do tamborete e despendurou outra vez o guampo, bebendo mais um gole avantaj ado. Despropósito de trago, que teve de ressoprar, num estrebuchão de beiços, o fogo da bebida.
O frio aumentava. O rio já amanhecia com os barracos esbranquiçados de orvalho, a água vagarosa e fumacenta — certeiros sinais de geada, lá pela primeira lua de junho. O trânsito das comitivas pelo Porto do Paiol Queimado crescia por essa temporada, época em que voltavam do pantanal. Um dia repontavam, boiada trás boiada, ror de gado atropelado pelas marchas de muitos meses, desfeito pela dura maceguinha sem sustância do chapadão. Com as comitivas, vinha a peleja para os pobres de siá Preta e seu João — cismava José de Arimateia. Fornecer comida a que horas da noite, o porto atravancado de camaradagem e tropa, os currais entupidos de boi — a balsa num ir- e-vir sem descanso. Mas os dois velhos se conformavam: bastantinha criação no terreiro, a lavourinha do gasto bem ali no fresco do barranco...
E seu Americão Barbosa protegia: da Fazenda do Sassafrás vinha de tudo: rapadura e o café em coco, banha, o sal, querosene. Farinha e sabão de cinza, até o azeite de candeia, isso a danada da siá Preta, ela mesma, é quem fazia.
O café demorava, e José de Arimateia começou a sentir a friagem subir-lhe pelo couro grosso das botas e empapar-lhe o revesso da capa de lã. Se no porto o tempo andava assim tirano, quanto mais depois de escalado o espigão — a ventania a galopar, solta de tudo, pelos ermos da chapada! Bem ainda que, naquela noite, ia ter casa de telha onde pousar, a conversa boa de seu Valério Garcia, cana picada e milho à vontade para a besta... Do Pinhé para diante, porém, tirante à morada de seu Arcanjo e a fazenda de seu Torquato, os pousos costumavam ser na imundície dos
ranchos de gente largada ao deus-dará, mal vivendo tal qual bicho naquele abandonado fim de mundo; e ter de precisar, também, sabe lá Deus quantas vezes, de ficar escondido o dia inteiro, o pobre do animal peado no meio do mato, curtindo sede e comendo de embornal... E seu Americão Barbosa inventara ainda, desta feita mais carrancudo e severo que nunca nos decretos:
— Só me viaje de noite! Só me viaje escoteiro!
Moído na hora, recendeu o café. Ao descer para a rebaixa da meiágua, José de Arimateia teve de se encurvar para não bater a cabeça no telhado; de sombreiro e capa agauchada, mais corpulento ainda parecia, quase que enchendo, ele só, o acanho da cozinha. Tomou o café e pediu, quando a velha lhe preparava a garrafinha de viagem:
— Bota metade só no meio litro, siá. De café, dá e muito. Acabo de interar o resto com o estoque do guampo do seu João... Lhe pago depois, companheiro, e lhe pago com cachaça lá do...
Calou-se, porém, a tempo. Não, nada diria. Cabeça já ruça de tudo, mas boa ainda, o cabreiro do preto velho... Pura astúcia dele aquilo de j ogar o verde, vir com a perguntazinha inocente pelo seu Arcanj o... Era dizer que ia passar pela Barra Limpa, onde morava o Arcanj o, e a novidade não sairia nunca mais da lembrança do João da Preta. E seu Americão Barbosa repetira muito a ladainha:
— E para amigo nenhum, para ninguém, seu José de Arimateia, me delate o seu destino!
O patrão devia de saber porque regia assim o mandado; podia ser sistemático por demais da conta, cheio de modas e exagero, mas a verdade era que peão nenhum do Sassafrás se arrependia de cumprir à risca tais ordens e conselhos. Homem engraçado! Seu Americão Barbosa tratava todo o mundo a sim-e-não, mas certas horas falava muito, minuciava; e gostava de obrigar o camarada a repetir depois, feito menino de escola, as explicações que recebia, para ver se o cuj o havia mesmo aprendido a lição. Tirava também sempre a prova: disfarçava de satisfeito, dava por acabada a conversa, distraía e até dispensava o coitado... Num repente, porém, rompia com acessos de perguntação: "Qual é mesmo o nome do senhor seu pai? Qual a graça do fazendeiro onde o senhor falhou com o gado? Por conta de que patrão viageia agora?" Pura inventação de modas de seu Americão: o nome do pai do peão era outro, falso também o do fazendeiro, de mentira o tal pouso do gado...
E mais coisas que nasciam só mesmo na cabeça de seu Americão Barbosa ou na do gerente dele, o seu Clodulfo: até aprender a descosturar e costurar de novo, sem deixar sinal, certas emendas do
arreio, para guardar escondidos, ali dentro, dinheiro e recados de importância. Peão de estima, empregado de confiança, na Fazenda do Sassafrás, era quem melhor decorava de cabeça essas malícias, passando por aprovado logo no primeiro ensaio; e quem sabia ver e escutar calado, sem nunca ir comentar adiante o percebido. "Orelha em pé, olho vivo, e bico calado: essa, a reza de corpo fechado de mais valência...", seu Americão Barbosa não se cansava de ensinar. Enquanto soltava a mula, José de Arimateia via o preto descer o laj eado de pedras do barranco. Sombra só, restinho à toa do que tinha sido antes o João da Preta, todos falavam. Hoj e em dia, um traste: doente do coração, os pés inchados, as mãos sem mais o competente governo, a vista mal-mal dando para desenvolver o servicinho de baldear gente a pé e cavaleira... — José de Arimateia se compadeceu. Bem que podia mentir, inventar uma direção qualquer para a viagem, iludir a curiosidade do João da Preta — nenhum mal havia em contar uma lereia para o pobre do coitado... Resolveu:
— Amanhã ou depois, devo de estar de volta... Lhe trago então uma rapadura e uma cabaça cheia lá do engenho do seu Valério... Avisado d e véspera, João da Preta deixara a balsa dormir no j eito, os casqueiros no lugar, tudo pronto para o embarque. O cavaleiro entrou, a besta douradilha logo atrás — essa a mesquinhar orelhas, apalpando astuciosa o estivado dos pranchões. Mas, com um tapa sacudido que o balseiro lhe estalou nas ancas, o animal perdeu preceito .e avançou: trotej ou ligeiro, castanholando a quatro mãos a ferragem nova no assoalhado do canoão.
— Ei, Camurça! — gavou entusiasmado João da Preta. Solta pelo varej eiro, a balsa começou a fugir de través, carregada pelo rio. Foi rodando, foi rodando, descansadona e bandoleira, até que se sumisse no esfumaçado da neblina. Que diferença da Camurça daqueles outros tempos! — pensava José de Arimateia, ao sentir o passo largo da besta pelo carreiro pedregoso dos primeiros lançantes da serra. Uma toada só, no plaino e na subida! Por debaixo da capa, as rédeas iam soltas por entre as mãos cruzadas e em descanso no cabeço redondo da boa sela viaj eira. Cinco anos, quase cinco anos j á passados! Não, não mais adiantava querer evitar, repetir aquelas lembranças que vinham sempre, principalmente quando podia estar assim, sozinho com Camurça, a caminhar no escuro e no silêncio. E tão claras, que era como se estivesse vivendo de novo na Fazenda do Capão do Cedro, trotejando como antigamente em frente à comprida fila das casinhas da colônia do engenho, nas horas de depois da janta ou nos dias de domingo...
— o pessoal mais velho nas j anelas, as moças e a rapaziada a subir e descer pelo trecho largo da estrada que, ali, era como uma rua principal. Camurça, adomadinha de pouco, mas j á apreciada e cobiçada por tudo o que era peão da fazenda e até da redondeza. Novinha, mas j á convencida e semostradeira, espirituosa e luxenta por demais...
E ele,José de Arimateia, estimado, prosperando no serviço, respeitado. E, da noite para o dia, de instantâneo, aquele mau sucesso, a vida demudada por completo — assim como um redemoinho formado de repentino para arrasar com tudo, carregar com ele mais Camurça e jogá-los em terra estranha, em meio de gente desconhecida. Hoje, tudo, tudo tão diferente! A serra se empinava, começava a apertar o mau tempo, e José de Arimateia teve de abaixar mais ainda por sobre os olhos a aba do chapéu para protegê-los das unhas geladas da ventania. Diabo ia ser mas era nas outras noites, quando ganhasse o chapadão — calculava. Mas esqueceu-se logo do que estava para vir, tão teimosas lhe vinham à cabeça suas passadas lembranças. Até que chegasse à fazendinha do Pinhé, onde j á esperava por ele seu Valério Garcia — e iam ser ainda umas boas três horas de frio e vento — em outra coisa não haveria de pensar o cavaleiro a não ser na quadra antiga da vida no Capão do Cedro — o povo da colônia do engenho de açúcar, o povo do sobradão da sede, o velho Tonho Inácio...
2
Mata dos M ineiros
OS PRIMEIROS a desbravar o vale do Araraúna — chão superior de mata virgem, massapé roxo sem mistura -foram uns Inácios, gente vinda das Gerais. Chegaram e se afazendaram a seu modo: café, cana e zebu. Derrubada a mataria, a zona mudou de aspecto: em cada vertente de ribeirão, boa sede assobradada, curralama de lei, engenho de serra e de açúcar. Num curto correr de anos, virou lugar afamado, de muito progresso e fartura. Seu Tonho Inácio descendia desses antigos da Mata, e a fazenda que conservava — Capão do Cedro — era, por assim dizer, a gema do vale. A casa da sede situava-se bem na forquilha de duas cabeceiras de muita água, no sopé que circundava a baixada; j á dali, continuando o pomar, subiam as ruas bem carpidas e sempre verdes do cafezal. As lavouras de cana e invernadas, essas ocupavam o plaino restante — frescas e muitas léguas de beira-rio. Movimento assim reclama exagero de braço, mas colono não faltava no Capão do Cedro. Além de tanta comodidade — igreja, escola e armazém — havia o de mais principal, que é a regra severa e o respeito. Por isso, seu Tonho Inácio prosperava, ano a ano colhendo mais arrobas de mantimento e sempre com mais boi na pastaria. Pois foi ali no Capão do Cedro que um dia apareceu, atrás de serviço, o dentista-ambulante José de Arimateia. Moço novo, bem afigurado, seu Tonho Inácio gostou logo dele, mandando que o próprio feitor da fazenda o acomodasse em casa — casa da Feitoria e que era também o armazém. Não tardou muito, e José de Arimateia viu que havia razão para a boa fama do velho Tonho Inácio. "O homem é impertinente, exigidor", lhe diziam; "mas também aberto de coração, dador de si: quem anda direito com ele, acaba com a vida arranjada..." De fato: corria tudo bem para o dentista, considerado por seu Osorião Feitor como pessoa da família, a fazenda correta nos acertos, gente novata chegando em quantidade para mais e mais lavouras. Entrou a safra da cana, entrou a safra de café, e o gabinete de viagem passou a viver sempre cheio. Abençoada a hora — contente se repetia José de Arimateia — em que havia conhecido seu Tonho Inácio, a cuja bondade e proteção devia aquela boa sorte. Numa tarde de domingo — isso mais de ano já que vivia José de Arimateia na Fazenda do Capão do Cedro — acabava ele de desarrear a bestinha xucra, recém-passada pelo primeiro costeio de adomação, quando se achegou seu Osorião Feitor com um recado: — Seu Tonho Inácio quer falar com o senhor. Está esperando na sede. Ah, talvez para ofertar mais dinheiro pela Camurça! -José de Arimateia logo astuciou. Até quinhentos mil-réis o patrão chegava — seu Osorião havia informado na véspera, contando ainda que seu Tonho Inácio namorara muito a mulinha, uma hora em que ela comia no cocho, de permeio com outros animais-de-sela da fazenda. Pudera: dois anos e pouco só de erada, e já um palmo mais alta que o burro lagoano de seu Tonho Inácio, a canela mais fina, o peito mais criado... Seu Tonho apreciava o que era bom, amante de luxar e se intimar — se via. Decerto amargava sua pontinha lá de despeito, por ver um empregado da fazenda mais bem amontado do que ele... Osorião continuava: — O velho, hoje, me gavou muito o senhor. Admirou muito sua bizarria lá no
curral... gostou mesmo dos seus modos de adomar a besta... Animal de gênio que nem a Camurça, ele declarou, só peão de muita queda e calej o para desenqueixar assim no primeiro arranco... José de Arimateia se riu: — Pois até que já tenho topado animal bem mais pior na doma do que ela... Mas que a Camurça vai sair montaria de muito luxo, isso vai ! O senhor não arreparou no estilo que o marcheado dela tem? — Burro da serra do Carrascal nunca negou, seu Isé... Ainda mais desse tipo douradilho, de sapato preto... Camurça fizera mesmo um bonitão, ali no curral-de-grama da fazenda, na hora de receber, pela primeira vez,
arreio e cavaleiro. Valente que só ela, se entregara, mas somente quando a espuma da boca virava em sangue, e a pobre não podia mais parar em pé de tão estrompada. Não mostrara a raça apenas em fortaleza e valentia, mas no j eito de picar as mãos e balancear a marcha, no aprumo do pescoço e na soberba da cabeça, também. Povo engraçado: agora, porém, é que viam e reconheciam! Douradilha, a burrinha sempre fora, e calçadinha de casco escuro, e crioula da serra do Carrascal... - ela já era tudo isso no dia em que chegou à fazenda, e ninguém havia reparado! Quando entrou para o curral grande da sede, embolada com o burrame do mascate, verdade que vinha como que meio aguada e mancando muito, ressabiada e tristonha. Seu Tonho Inácio, seu Osorião Feitor, até o próprio seu Persilva — sim, o exibido do seu Per silva também, com todas as suas partes de mestre adomador de tropa da fazenda — quem disse que eles ligaram para o desmazelo da mulinha desbarrigada e cabeluda? Foram logo apartando o que achavam ser a cabeceira da tropa, escolhendo o que mostrava mais corpo e mais era, desdenhando da pobrezinha, que acabou refugada j unto com a cambulha sem prestança. Os pândegos conheciam mas era de animal de carroça! Se entendessem mesmo de tropa, tinham obrigação de desconfiar que aquele mau estado da bestinha nova era obra de desmame fora de época — j udiação de criador ambicioneiro, afadigado por vender a burradinha do ano; e também não tinham notado a postema na mão dela... Ele, porém, José de Arimateia, tinha achado j eito de uma prosa em particular com o mascate, depois d"o negócio feito e acabado com a fazenda; o tal era um meio cigano, cabelo de milho e olho verdolengo, zap"te no ofício... mas acabou entregando a burrinha por setenta mil-réis. Mal aposseado da bichinha, tão fácil o remédio: arrancar o estrepe primeiro — uma ferpa de prego de cerca enferrujado por debaixo do machinho — queimar a carne esponj osa com azeite fervendo, ração à vontade depois: canj iquinha de milho com melado de rapadura, soro de leite com gema de ovo de pata, e uma colherada de sal para disfarçar o adoço em demasia. De sobremesa, um mês de boa-vida no bengo vedado da cabeceira do brej o. Mas lhe dera trabalho, a Camurça! Ele, José de Arimateia, estava ali mas estava de vergão pelo corpo, as cadeiras em brasa, as costas como se houvesse levado uma roda mestra de pau. Dissera por dizer ao seu Osorião Feitor que tinha visto animais ainda mais rebeldes. Que o quê! Na hora daquele primeiro repasse, Camurça mais parecia um touruno amestiçado de nelore! O
arreio novo, porém — um socadinho sul-de-minas, de
barrigueira dupla e reforço na cabeça — havia mais que aprovado. Depois, de cavaleiro na besta, estava mas era ele, José de Arimateia: nem arco de ferro em brasa encaixado a marreta em roda de carro e esfriado a água depois, para se agarrar assim como as pernas dele por bem debaixo dos sovacos dela... A bichinha. negava corpo, saltava que saltava de roda, furtava pulo que furtava, mas nem o gostinho de derrubar o chapéu do cavaleiro ela tinha tido! José de Arimateia parou em casa de seu Osorião Feitor apenas para lavar as mãos e o rosto. Tomava banho depois de falar com seu Tonho Inácio, depois de saber o que queria o velho —
resolveu. Mudava então de roupa, e, acabada a janta, ia ver a do-Carmo. Ela presenciara tudo do alpendrão do sobrado, j unto com o pessoal da família de seu Tonho, pois quando souberam na fazenda que não era o seu Persilva e sim ele mesmo, José de Arimateia, quem ia domar a mulinha xucra, aquilo fez reunir muita gente, ainda mais por ser dia de domingo, a sede entupida de colono, mulher e criançada. Maria do Carmo presenciara a doidura da mula, a malícia da danada em procurar espremer o cavaleiro por de encontro ao grosso esteio do meio do curral e às quinas vivas do tabuado da cerca... Quantas vezes não devia de ter rezado, a do-Carmo? Ela fora falar com ele depois: queria saber como ele passava, se não tinha se ofendido muito. Maria do Carmo vestia de cor-de-rosa, o cabelo do j eito que ele apreciava — caído pelas costas, lustrosozinho de óleo... E a mãe dela também, a siá Gorgota — procurando conversa com ele na frente de todo o mundo, na presença de seu Tonho e dona Dosolina, todos vendo e escutando. Namoro mais que declarado, pois se a própria siá Gorgota puxava intimidade. Velha boa, trabalhadeira, mas muito excedente e desbocada: não olhava roda nem hora, siá Gorgota, para soltar suas inconveniências. Não viera falar, ali no alpendre de seu Tonho Inácio, com dona Dosolina, a do-Carmo e mais outras moças por perto, que "o especial, agora, para o senhor curar a dor no corpo, era um descarrego em regra, um purgante reduzido... dose reforçada de pinhão torrado com ruão e sal amargo"?! A do-Carmo e a Camurça... — inchou-se por dentro José de Arimateia. As duas mais cobiçadas ali no Capão do Cedro, duas descobertas dele, educadas no preceito dele... Feitosas, sem graça, despercebidas no princípio... Agora, com certeza que já havia mas era muita gente magoada, ambicionando; queira Deus até que j á não se armasse malquerença... José de Arimateia subiu a escada de pedra do alpendrão, e deu com seu Tonho Inácio na cadeira de balanço, distraído em trançar o lacinho de seis pernas com palha de milho desfiada. A gente encontrava aquelas trançazinhas por toda parte: na parideira das porcas, na cerva, na casinha-de- queij o, ao derredor das tachas de melado do engenho — naqueles lugares onde o velho gostava de ficar, horas e horas, namorando a criação e fiscalizando a camaradagem no serviço. Com a chegada do dentista, Tonho Inácio voltou a si da avoação em que andava: — Hã, é o senhor? Pois se assente... Hum... espera que a Dosolina quer lhe falar também. Vamos até lá dentro... E entrou pelo corredor do sobrado, acompanhado do rapaz. Na sala — quase que sempre fechada, naturalmente por causa disso aquele sossego e o cheiro murcho de coisa velha — a mobília de palhinha, o sofá muito grande, a cadeirona de balanço igual à outra do alpendre. Retratos nas paredes: os homens, de testa curta e barbados, as mulheres de coque enrolado e alto — de pituca —, a gola do vestido j usta e abotoada no pescoço à feição de colarinho. Povo dos Inácios, dos Gusmões: famílias de seu Tonho e dona Dosolina. Morriam, mas os retratos ficavam para os filhos os mostrarem às visitas — contar como aqueles antigos eram, as manias que cada qual devia de ter, as proezas deles nos tempos das primeiras derrubadas no sertão da mata dos Mineiros.
De seus pais, José de Arimateia nem saber o nome sabia. Lembrava-se mas era só do seu Joaquinzão Carapina, comprido e muito magro, sempre de ferramenta na mão — derrubando árvore, lavrando e serrando, aparelhando madeira. O Joaquinzão e o seu Sinésio, esse, esse um, um meio carapina também, aj udante. E ele, José de Arimateia, menininho de tudo ainda, mas j á agarrado no serviço, a catar lascas e serragem para cozinhar a panela de feij ão e coar a água-rala do café de rapadura, adj utorando no que podia. Mas os dois homens não conversavam; era por sinais, gesticulando, ou só pelos modos de olhar que se entendiam. Seu Joaquinzão era gago, dificultoso no falar, e tossia demais da conta quando experimentava — uma tosse-de-cachorro comprida e chiadeira que lhe inflamava as vistas e as entupia de água. Evitava prosa, por isso. Seu Sinésio, pior : surdo por total, de nascença — um tiú. E aqueles eram os únicos que talvez soubessem dizer alguma coisa: filho de que pai, de que mãe, o cristão pelo menos que o tinha batizado e posto nele aquele nome de José de Arimateia. Não sabia de nada: filho incomodativo de algum casal cigano ou de mulher andej a, perdida pelo mundo — gente desalmada que o enjeitara num carreiro de queixadas para ser comido. Encontrado assim, por um acauso. Nem atinava como pudera aprender a falar, pois viver em tão calada companhia era o mesmo que ter nascido surdo, da moda do seu Sinésio. Talvez até que tivesse sido uma benção a morte de repente do Joaquinzão Carapina, perdão de Deus; e o sumiço levado pelo outro, o aj udante. Se continuasse na mesma vida, irmanado com eles, acabava em bicho-do-mato, tal qual. José de Arimateia se lembrava: o dia inteiro, no mais fechado da mata, quando da tiração de madeira — candeando j unta-de-boi na puxação de toras, segurando a linha besuntada de picumã de lamparina na hora de marcar a lavragem das peças, atiçando o fogo na ocasião de caldear e malhar a ferragem — que a primazia e mestria de seu Joaquinzão Carapina era carro-de-boi. Vez em quando, muitos anos depois desse tempo, José de Arimateia topava com um daqueles carros, conhecia. Não adotava qualquer madeira, seu Joaquinzão; e que capricho nas peças menorzinhas, fosse uma simples chavelha, um fueiro à toa que fosse! Seu Joaquinzão é que ia, ele mesmo, apartar as madeiras no mato, as espécies mais levianas no cerrado. Para as chedas e o cadeado, para o pigarro e o cocão, tinha de ser bálsamo. O tabuado, de pau-pereiro ou amendoim, e o eixo, de sucupira-preta. Mas no chumaço é que estava o segredo de seu Joaquinzão Carapina: açoita-cavalo, pombo ou vinhático — as rainhas das madeiras cantadeiras. Passava no chumaço, como unto, na hora da primeira experiência, um leite visgoso de cipó, mistério particular que nem seu Sinésio conhecia. A gente nem precisava de ver aqueles carros de boi mais de perto: de longe mesmo, só pela toada da cantiga que o tal leite produzia, se adivinhava a mão caprichosa do Joaquinzão Carapina. Depois que seu Joaquinzão morreu, começara outra vida: candeeiro, boieiro de lavoura, capinador de enxada. Largado hoje aqui, largado ali amanhã, corrido a mór parte das vezes da maldade dos mais grandes. José de Arimateia admirava os retratos na sala de visitas do seu Tonho Inácio, e pensava. Não, não tinha tido família. Nem se recordava mais se era de pai que chamava seu Joaquinzão, se tomava bênção dele. Mas que não era filho, disso quase tinha certeza de que não era; se fosse, quando morreu seu Joaquinzão Carapina, seu Sinésio decerto que não ia ficar com a ferramenta do companheiro, nem um canivete ao-de-menos deixando para o menino. Seu Sinésio carregou com tudo e campou pé. Seu Tonho Inácio voltou com a mulher e, mal assentado ainda na cadeira de balanço, começou:
— Lhe chamamos hoj e aqui, seu José de Arimateia, para um assunto reservado. Andamos observando o senhor, j á faz tempo, e estamos muito satisfeitos com o seu proceder na fazenda. De pouca idade, mas rapaz trabalhador, cumpridor da obrigação... — Ora, seu Tonho... — o moço engasgou ao agradecer. — O senhor j á deve de estar a par que a do-Carmo é afilhada nossa... - o velho não perdeu tempo. — O defunto pai dela, seu Claudemiro, foi meu capataz-de-gado por muitos anos, e nós é que ficamos cuidando da viúva e da menina. O senhor sabia? — A do-Carmo me falou. Depois, seu Tonho, nem carecia: todo mundo nota a proteção do senhor e de dona Dosolina com siá Gorgota e a menina... — Pois então está fácil d"o senhor entender. Quero casar a Maria do Carmo com pessoa que possa zelar por ela e a mãe. Já "tamos cientes de que o senhor namora a moça, frequenta a casa. Não duvido das suas intenções, mas quero clarear este caso... — A mocinha j á está na idade, e é muito prendada... — aj udou dona Dosolina, a vozinha bondosa. — Temos de olhar por ela, antes que alguém que não preste venha lhe virar a cabeça... José de Arimateia não entendia direito aquela história. Cansado, o corpo moído da peleja com a Camurça, as ideias lhe chegavam baralhadas. Depois, a presença do patrão por si só impunha, avexava também a companhia de dona Dosolina, essa então de fala delicada, mas positiva, o modo esquisito de fincar os olhos empapuçados nas pessoas... Uma santa de criatura, dona Dosolina, todos gavavam, mas mulher de pouco falar, de pouco aparecer — raça de Gusmão, povo graúdo, autoritário. Mas o rapaz criou coragem: — A senhora pode crer que eu não ando empachando a moça não, dona Dosolina. Não pedi ela ainda, mas foi porque não me encontro em condições. A senhora vê: vivo do que ganho na arte — e dentista-ambulante não é lá meio de vida que renda muito. Mas minha vontade sempre foi me casar com ela, isso logo assente mais o meu estado... Olhavam-se os dois, seu Tonho Inácio e dona Dosolina. Ele esperava por ela, ela por ele, cada um desej oso de que o outro retomasse o assunto — parecia. Mas o marido continuava mudo, ocupado de novo em trançar o lacinho de palha, e foi a mulher quem se decidiu: — Pois é o que interessa, seu José de Arimateia: as suas intenções com a do-Carmo. Calou-se. Não demorou muito, porém, em voltar com a maneira delicada de conversar — a voz macia, mas que sabia mandar, ditar ordens: — O senhor pode pedir a moça. José de Arimateia rodava o chapéu nas mãos, avexado agora por completo. Nunca pudera nem de longe imaginar : o casal de velhos, gente rica e tão acima dele, a conversar ali na sala como se fosse com pessoa de cerimônia. No dia em que tivessem de combinar o casamento de seu Inacinho, o filho deles, deveria de ser assim — seu Tonho Inácio e dona Dosolina a tratar com os pais da moça. Pai e mãe... não, nunca os tivera. Achava-os, porém agora: seu Tonho e dona Dosolina. E não lhe perguntavam pelo passado, a que família pertencia, não especulavam um nadinha da vida antiga dele. O que valia o bom procedimento! Um aparecido pelo Capão do Cedro, que de seu só tinha o nome e a mala com a tralhazinha da profissão. Nem um ano ainda que trabalhava na fazenda, e, entretanto, j á recebia a paga de quem houvesse vivido ali a vida toda, sob o olhar exigente dos patrões. Gente boa... — ah, abençoada a hora em que lhe haviam aconselhado vir procurar serviço na fazenda de seu Tonho Inácio! De repente, porém, José de Arimateia lembrou-se de seu Valico Ribeiro e de siá Domingas. Aqueles outros dois... Não: abaixo de Deus, em primeiro lugar seu Valico e a santa da siá Domingas. O que acontecia agora nada mais era que o resultado do ensino dos antigos patrões do Curral de Esteio. A caridade deles: bichinho guaxo, comido de piolho e lombriga, largado pelo mundo... — e entretanto recolhido na fazenda, vestido e zelado pela bondade dos dois.. . Ia chamar seu Valico e siá Domingas para padrinhos do casamento, mostrar que não se havia esquecido deles
— José de Arimateia, naquele momento, resolveu então. Seu Tonho Inácio e dona Dosolina pareciam que estavam, os coitados, comovidos também. O velho pôs-se de pé: — Vou mandar esvaziar uma casa das grandes na colônia do Engenho, e dar ordem no armazém para fornecerem todo o enxoval. Algum puxado que carecer de fazer na casa por causa do gabinete, o senhor vej a e me fale depois. Dona Dosolina não deixava por menos: — O enxoval é por minha conta, Tonho, que isso é assunto de mulher. Deixa, que eu combino tudo com a comadre Gorgota. Acompanharam José de Arimateia até a escada do alpendrão. Seu Tonho Inácio seguia de cara boa, e ainda quis saber : — E a besta? Animal de futuro está ali. Lavou ela bem lavada? Curou bem o lombo, antes de soltar no pasto? E sem mostrar nenhum ciúme da Camurça:— Zele da mulinha, moço, pois é artigo que, hoj e em dia, não se encontra fácil mais não... Dona Dosolina parecia mesmo mãe ranzinza, a fingir ralho: — Mas me case logo, me case logo, rapaz! Tenho horror de noivado que não ata nem desata — empacho pior que missa cantada e canj a de galo velho, as duas coisas neste mundo que mais demoram!
3
AINDA MEIO NO AR, abobado de surpresa, José de Arimateia caminhava para a casa de seu Osorião Feitor, onde seguia morando desde que viera para o Capão do Cedro. Caminhava e pensava, mas j á de tenção feita: ia mesmo parar por ali, de cabeça assentada na fazenda. Casava com Maria do Carmo, punha fim naquela vida de j udeu-errante, sem futuro — hoj e aqui, amanhã sabe Deus onde — acabava de vez com tal desassossego. Viver de marido e mulher com a do-Carmo, dormir a noite inteira com ela — os dois agarrados um no outro: ela, de costas, embodocadinha, a cabeça cheirosa no travesseiro do braço dele. Comer da comidinha que ela mesma ia cozinhar, vestir roupa lavada e passada pela mãozinha dela... Tinha por quem puxar, a menina: quando havia gente de circunstância na fazenda, siá Gorgota é que ia cuidar do movimento do sobradão da sede — zelar pela arrumação da casa, botar governo na cozinha, tomar conta das quitandas no forno-de-cupim. A velha entendia de tudo, e muito prestativa, muito limpa e despachada. Na certa que vinha morar com os dois, para aj udar a filha. E isso de siá Gorgota vir ficar com eles — apesar do intrometimento e da desbocação da sogra — ela, de per si, j á valia por um farturão. Tudo por seguir os bons conselhos de seu Valico Ribeiro — via José de Arimateia. Se tinha aprendido a criar ambição e se resolvido a virar homem de verdade, essa sorte ele devia àquele antigo patrão do Curral de Esteio. Assim é que, para ele, seu princípio de vida menos infeliz, mais de gente, começava a contar daquela época de empregado na fazenda de seu Valico. Daí por diante, lembrar-se do passado pouco ou nenhum incômodo trazia, parecendo até que convinha e aj udava. Do mais distanciado, porém, dos tempos de seu Joaquinzão Carapina e, logo em seguida, do amaldiçoado viver de cachorro-sem-dono — sempre corrido e maltratado — disso é que somente se lembrar bastava para causar desgosto. Tempos de duro serviço, sem descanso nem hora! Desinquieto e arroj ado, seu Valico Ribeiro vivia de bicho-carpinteiro quando da formação da fazenda. Por toda parte, a lida sem parada: derrubadas de mato virgem, lavoura-de-toco em seguida, capim na soqueira sem dó de muda e semente, depois; e casa de sede, e curral, e mangueiro-de-porco em tudo o que era retiro, e cerca e mais cerca a cortar o mundão de boas beiradas de rio que seu Valico possuía. Serviço nenhum José de Arimateia refugava, tanto assim que acabou por ser notado pelo patrão que via e sabia de tudo, de tudo dava notícia. O homem gostara do bom j eito do caboclinho, do zelo que punha na obrigação, e resolveu carregar com ele para a sede. Ficou ali, de aj udante de curral e cozinha, tomando conta da criação de terreiro, da hortinha de couve e da porcada. De esperto e bem mandado que era, seu Valico foi-se acostumando com ele, e outro peão não gritava, se carecido de algum serviço de mais despacho e capricho. Passou a acompanhar seu Valico nas horas de correr lavoura, medir empreitos, fiscalizar a fazenda. Como aquela amizade dava raiva e despeito nos outros! Mas José de Arimateia não ligava para falação e fuxico; desse tento aos maus diz-ques da roceirama invej osa, e acabaria tal qual acabavam: tocados de fazenda em fazenda — esconj urados que nem peste. Em certas horas seu Valico virava conversador; gostava de contar porção de casos que sabia, aproveitando para dar conselho. Ele se gabava de ter principiado a vida assim como José de Arimateia — j ogado muito cedo no mundo, sem eira nem beira, sozinho.
Mas, se muito j á havia padecido, aprendera também, e bastante; a regra principal para quem desej ava prosperar na vida e merecer a estima alheia — seu Valico sempre repetia — era obediência ao patrão e respeito. "Destino de vaca maninha é cutelo", explicava; por isso é que empregado encostador e revoltoso, mais amante de agradar à companheirada vadia e sem préstimo do que acatar e bem servir ao patrão — camarada assim descompreendido e baldoso não podia mesmo receber, em aperto de precisão, simpatia e mão-de-aj uda. José de Arimateia acreditava nesses preceitos de seu Valico — respeitava e obedecia, como o patrão ensinava; e nunca se havia arrependido desse bom comportamento. A prova chegou com seu Custodinho Dentista, um dia aparecido na fazenda do Curral de Esteio. Seu Valico mandou que o ambulante montasse ali o seu ponto, e até a uma ou outra pessoa da redondeza ele não se importava de seu Custódio atender. O dentista foi ficando, que além de vagaroso no serviço, encontrara na fazenda trato de primeira e a prosa boa de seu Valico. Como seu Custodinho era pessoa estudada e maneirosa, seu Valico lhe pediu um dia para dar um bom repasse de cartilha e escrita em José de Arimateia, nas horas de folga de depois da j anta. Mas José de Arimateia apreciava mesmo mais, em vez do entoj ado servicinho de ficar copiando bê-a-bá e decorando tabuada, gostava mas era de prestar atenção na paciência e leveza de mão de seu Custodinho, quando este se punha a trabalhar no fogareiro e no tornozinho de banca, derretendo metal nos moldes, polindo, preparando o serviço do dia. Principalmente na hora de alinhar a dentaria postiça na massa da dentadura — encomenda que mais o povo pedia. Enquanto chocava o afazer de seu Custodinho, José de Arimateia pensava na vida, refletia. Reparava na roupa, nas mãos finas do ambulante, notava a cerimônia com que o tratavam na fazenda. Seu Custodinho dormia na casa da sede, comia na mesa com o patrão e siá Domingas, ficavam seu Valico e ele ferrados na conversa até a que tantas. E, por dia de serviço, devia de ganhar o que peão nenhum ali no Curral de Esteio, por mais cumpridor e estimado que fosse, apurava num mês de suada labuta. E aquilo de arrancar dente a boticão, tocar com o pé o maneirinho motor, preparar dentadura — aquilo José de Arimateia via não ser tão custoso assim, apenas inclinação e capricho. Vocação ele mostrava que tinha; capricho também não lhe faltava: o que lhe saía das mãos, fosse rédea de sedenho ou laço de couro trançado, gaiola de taquara ou ralo-de-folha para cozinha, seu Valico até que elogiava, admirado do bom j eito do rapazinho. Seu Valico Ribeiro, que nada deixava sem nota, percebeu o reservado cismar do rapaz, e, em dia, aconselhou José de Arimateia a aprender também a arte, com o que, de cara boa, seu Custódio concordou. Seu Valico Ribeiro, com esse caridoso proceder, sabia que ia perder o empregado, mas de tal prej uízo não fez conta. Desej ava somente o bem de José de Arimateia, como demonstrou quando seu Custodinho deu o ensino por terminado: emprestou ao dentistinha novato o precisado dinheiro para a compra de ferramenta e remédio, e ainda lhe deu, de presente, calçado, roupa, e uma eguinha arreada. O mais importante, porém, foi na hora de deixar a fazenda do Curral de Esteio, em companhia de seu Custodinho, para dar começo à vida de dentista-ambulante: "Casa e comida, e serviço, "ocê tem, se algum dia sentir precisão de voltar... E amizade, e proteção...", assim falou seu Valico, na despedida. E José de Arimateia guardaria dentro de si, para o resto da vida, a certeza de que o patrão lhe dissera essas palavras com verdadeiro sentimento. Sim, ia mesmo ficar parado pelo Capão do Cedro, de cabeça assentada na fazenda de seu Tonho Inácio — pedia, contente, o coração de José de Arimateia. Montava o gabinete na salinha de frente da casa grande da colônia que seu Tonho Inácio prometera, a oficina na cobertazinha de telha que ia pedir ao patrão para fazer no quintal. Enquanto atendia o povo ou se ocupava na coberta, ia poder ficar ouvindo o movimento da do Carmo lá por dentro, a arrumação das coisas na sala de j anta ou na cozinha; os tapas da roupa ensaboada na prancha do batedor, a musiquinha do sarilho da cisterna... E
ela gostava de cantarolar no serviço — quantas vezes não a encontrara assim! — amiga de trabalhar alegrezinha, festeira. Dona de casa, ela é que devia de trazer tudo limpo e asseado. Siá Gorgota, essa ia para a cozinha e o quintal, deixando para a do-Carmo a arrumação, passação de roupa e costura — a limpeza do gabinete também. Nada como o mexe-mexe caseiro da mulher de quem se gosta — José de Arimateia imaginava. O café pegava preço, o açúcar também, e todo ano eram novas levas de colonos a vir caçar serviço na fazenda. Não dava conta: aos domingos e dias santos, até de noite tinham de atender gente carecida de dentista. Podia prosperar, j untar dinheiro; e seu Tonho Inácio lhe oferecera aj uda, caso precisasse. Depois, fazenda sem misérias, o Capão do Cedro: pasto de graça para animal de sela dos camaradas, até sal, olho de cana, e lá uma espiguinha ou outra de milho, seu Tonho Inácio costumava não cobrar. Domingo de sorte. De princípio, aquilo com Camurça — seu Tonho Inácio, dona Dosolina, seu Inacinho, o tanto de gente reunida no curral para assistir à primeira quebra da mulinha. Muito cavaleiro com partes de adomador, decerto só esperando pela hora de debochar — de primazia seu Persilva, que tinha até declarado não acreditar que ele, José de Arimateia, fosse capaz de aguentar o primeiro negaceado da besta, quanto mais o roj ão do que viria depois. O capataz-de-tropa ficara de longe, na cerca, azarando... azarando e agourando menos por maldade, mas por soberba natural de mais velho contra principiante. Homem de muita prosopopeia, o seu Persilva, muito bazofento, mas tivera de se chegar depois, morto de sem graça: "Pois se eu até que j urava... Mas porém nunca o senhor me contou que tinha tanta prática assim de adomação..." O bobo ia ver mas era na hora de pôr os tamancos nas mãos da besta, e ensinar ela a picar o passo e a peneirar bateia, da moda que usava seu Eulálio, capataz-de-gado de seu Valico Ribeiro! Agora, era abreviar o casamento com Maria do Carmo. Noivado curto — conforme dona Dosolina havia determinado — o prazo preciso para o enxoval e apresentar a casa montada de acordo. E trabalhar, e gramar no serviço com vontade! Seu Tonho Inácio aj udando, em pouco tempo arrumava de vez a vida. Mais tarde, quem sabe, até um sitiozinho ia de poder comprar, ali na Mata, nas divisas do Capão do Cedro, de modo a ficar sempre perto de seu Tonho. O ideal dele, José de Arimateia, era um punhadinho de alqueires — chãozinho pouco e despresunçoso, mas coisa sua, onde pudesse mandar e desmandar. Os pastos catados a enxadão, que foice só servia para fazer voltar, com mais broto e mais força, o espinho-agulha e a malícia, aroeirinha e camará. O quintal, que nem havia aprendido de uma conversa de seu Valico Ribeiro com o Custodinho Dentista: pomar e mangueiro-de-porco, ao mesmo tempo. Muita goiaba — o principal — da branca e da vermelha; mangueira de toda qualidade — de especial manga coração-de-boi para fazer fartura — coco babaçu, guariroba e macaúba, muito mamão e abacate. Do lado de fora da cerca, mas de modos que as frutas ficassem de dentro do mangueiro, maracuj á, saborosa, cará-do-ar e chuchu. E j aca também: árvore imponente e de muita sombra, a fruta um despropósito de grande, carnuda e de sustância. Diziam que criação refugava o cheiro enj oativo de remédio que a j aca tem, mas seu Valico explicava que, com o tempo, porco acostuma com tudo, bicho sem luxo que é, de conhecida esganação. Marmelo para o doce, e o que fosse da família do araticum: ata, fruta-do-conde e da condessa, cabeça-de-negro, pinha-lisa e pinha-preta... Depois de formado o pomar, tudo crescido e produzindo, podia-se então soltar no mangueiro a leitoama. Com tanta fruta à vontade, a bicharinhadinha dava de erar pimpona e sadia, desmamando j á de meia ceva. E remédio de farmácia, nenhum: talo picado de bananeira, abobra bastante, e adeus batedeira e lombriga! No arruado da colônia, as casinhas brancas, barradas de vivo azul, eram como que comprida fieira de roupa de menina quarando ao céu: saiazinha e blusa, saiazinha e blusa,
dependuradas e esticadinhas em arame de estendedor. José de Arimateia caminhava afoito por levar à namorada a novidade, a conversa com seu Tonho Inácio e dona Dosolina na sala de visitas do sobradão. Ia pelo meio da estrada que, no trecho da colônia, era o ponto de movimento, principalmente assim em dia de domingo. Na esquina, o armazém cheio de camaradagem mais graúda, e, nas j anelas das casas, as mães na tocaia das mocinhas donzelas que, às filas e de braço dado, subiam e desciam pela estrada; subindo e descendo também, em rumo contrário, a rapaziadinha. Cruzavam-se, recruzavam, se riam — namoravam. José de Arimateia caminhava e percebia que, ao vê-lo, a gente se punha a comentar — uns bem falando, por causa do bonitão que fizera com Camurça, outros diz-que-dizendo; principalmente as mulheres — povinho j aneleiro e gostador de mexerico — essas decerto j á a par do noivado dele com a do-Carmo. Fora uma pena ter de maltratar assim a Camurça — j udiar tanto dela, quebrá-la, ensanguentar-lhe a boca com o bruto do bridão, as virilhas com talho e mais talho de espora! Antes, porém assim: nunca mais a bestinha iria meter-se a saliente. Depois, somente com uns dois ou três repasses maneiros e a crisma leviana dos tamancos, o ensino principal acabava; com o tempo, as baldas curavam, firmava a marcha-picada. Fora uma pena, paciência! Mas, bom que o pessoal da fazenda aprendesse que não era só servicinho de mão fina, de dentista, que ele, José de Arimateia, executava. Dessem-lhe um machado, uma foice, um alqueire bem medido de feij ão para j ogar às costas e sair correndo de acelerado... Caminhava, distinguia melhor agora o vulto de Maria do Carmo que esperava por ele na porteirinha do j ardim. Ela trocara o vestido cor-de-rosa pelo outro, o de seda-palha, que só tinha usado uma vez. Quem diria! Tão limpinha, tão cuidada, tão vistosa! No primeiro dia em que fora ao gabinete, ela mais siá Gorgota, dava até pena ver o desmazelo: as unhas pretas e roídas, o ouvido entupido de cera, o pescoço encoscorado de suj eira... E os dentes? Nem uma falha, mas muitos j á com princípios de cárie — e logo as duas presas de cima, as que mais ornavam a boca — as gengivas escuras. No começo, siá Gorgota também vinha, e ficava no gabinete o tempo todo, muito rente e perguntadeira, vigiando a filha. Mas, por fim, deixava-a vir sozinha, j á mais confiada na presença séria do dentista e por causa do tanto de gente que frequentava o gabinete. Pouco a pouco Maria do Carmo fora se modificando, perdendo o acanhamento. Já respondia às perguntas sem ser sacudindo apenas a cabeça, largava a mania de olhar para o chão, vez por vez sorria. E não era nada feia não, a diabinha da do-Carmo! Foi com j eito, com paciência, que José de Arimateia começou. Ensinou-a primeiro como lavar os dentes para conservá-los sempre brancos e brilhantes, e ele mesmo preparou e deu para ela a latinha de pó de carvão misturado com sal e bicarbonato; depois, a receita para o gargarej o de hortelã-pimenta. Os cabelos em seguida: desmaçarocá-los com pente fino, enxaguá-los em água de bica, pô-los a secar ao sol; à noite, na hora de dormir, passar neles, bem esfregado antes nas mãos, o óleo de copaíba — mas de cabeça seca para que os cabelos não se embatumassem; com poucos dias apanhavam lustro, perfumados sempre de cheiro limpo, natural. O tempo passava, e José de Arimateia ia ganhando intimidade com a do-Carmo, avançando na educação: ela j á não era mais menina, carecia de cuidar melhor de si, largar daquelas brincadeiras bobas de correr e esconder com as outras mocinhas da colônia. Maria do Carmo obedecia e demudava: agora, quando abria a boca, mostrava uns dentes areados e lustrosos; e os lábios, as gengivas, a boca inteira era um sadio vermelho puro — durinho, madurinho — de polpa de caqui. Coisas que José de Arimateia não tinha coragem de ensinar, certas liberdades, ela aprendia por si mesma. O banho de todo dia, por exemplo: ela o tomava quase j á na hora de vir para o dentista, a água morna com folhas de malva e manj ericão. Do decote, das cavas das mangas do vestido, de entre os joelhos, esses frescos cheiros recendiam. Principiara então a sentir-se aflito quando ela demorava. Vigiava-a pela janela do gabinete, olhos pregados na porteira do secador de café que Maria do Carmo tinha de atravessar, chegada de casa. Ela não faltava: vinha, esperava sua vez lá por dentro, de prosa com a mulher e as meninas de seu Osorião Feitor. E, quando entrava para o tratamento, sabia sentar-se bem posta e comportada, o lencinho limpo apertado nas mãos. Mas o serviço acabava. Nada mais a fazer — todo buraquinho de dente chumbado e lixado, e ele sem coragem de dizer que ela não carecia mais de vir. Tampouco a do-Carmo reclamava; parecia até gostar quando o dentista botava outra vez óleo de cravo no último queixalzinho do fundo — derradeira cariezinha j á preparada e limpinha — e ficava naquilo de trocar remédio, explicando que ainda era preciso esperar, deixar para fechar o dente no outro dia. O melhor seria propor namoro a Maria do Carmo. Mas tinha de ser namoro de longe, até que siá Gorgota desse licença para ele frequentar a casa. Ali na fazenda do Capão do Cedro, ninguém podia noivar, muito menos namorar firme, a sós, que todo mundo punha reparo, recriminava; ademais, seu Tonho Inácio e dona Dosolina não admitiam — sistemáticos com respeito à honra de mulher casada e de moça solteira. Depois de tão acostumado a ficar sozinho com a do-Carmo, encostado no corpo dela, sentindo o cheiro da bocazinha tão próxima... — trocar isso por apenas espiá-la de longe, esperar meses antes que a mãe permitisse o noivado, mais outro tempão até o dia de se casar com ela... As últimas tardes no gabinete, que suplício! A correia curta do motor obrigava José de Arimateia a encostar o alto de suas pernas bem rente ao braço de manga curta que se apoiava na guarda da cadeira. O vai-e-vem compassado e vagaroso do pedalar do motor de pé, na hora em que lustrava as pintinhas de ouro que ela havia pedido para enfeitar os dois dentes do centro, a boniteza em que se transformaram o desleixado e o encardido de antigamente, o roçar repetido dele j usto no vão dos j oelhos meio levantados dela. Maria do Carmo não afastava o braço nem endireitava as pernas, não repelia o corpo dele. A boca aberta obrigava-a a cerrar os olhos, e ele, então, não podia evitar de reparar. Via, via pelo vazio do decote, as viçosas redondezas que ali dentro cresciam. Filhotões ainda, mas que j á sabiam bibicar com força, moldando estufozinhos na blusa. Até que por fim, sem mais forma de adiar o tratamento, José de Arimateia resolveu chumbar a cariezinha do queixal, e dar por terminado o serviço de Maria do Carmo. E estava quase que decidido a contar-lhe o que se passava com ele, o que sentia por ela, dizer-lhe de suas intenções. Se ela achasse que podia, até falar com siá Gorgota ele se dispunha a ir falar. É que não comia, não dormia mais direito — esmagrecia. Se pegava mal-mal no sono, tal se dava só de madrugada, assim mesmo desinquieta modorra sem sustância, cortada de faltas de ar e pesadelo. Aquilo de não dormir o bastante, nem de comer o carecido — de apenas provar e beliscar a comida, de passar a poder de café e cigarro — extravagância assim a nada de bom conduzia. Porém, de puro mau j eito e ressabiamento, não falou com a Maria do Carmo; tampouco com a mãe, siá Gorgota, no dia em que a velha foi buscar a conta do serviço para entregar ao seu Tonho Inácio. E siá Gorgota bem que deu lado, pois se até que convidou: " Que não deixasse de passar uma hora pela chácara, fosse um dia tomar café, comer um docinho malfeito..." As duas, mãe e filha, viviam sozinhas, sem companhia — a velha se queixou — e até que agradeciam quando uma alma caridosa se lembrava de aparecer. Depois disso, logo no dia seguinte, foi a do-Carmo que veio, trazendo a compoteira de doce de mamão e a lata de pão de queij o. Trouxe o presente para o dentista e ficou de prosa com as meninas de seu Osorião, trançando com elas pela casa. Até que descobriu que, da coberta do quintal, se via a j anela do gabinete, de onde José de Arimateia não saía, vigiando os moldes de dentadura que punha ali a secar. Assim foi que começou o namoro. Siá Possidônia, a mulher de seu Osorião Feitor, essa fingia que nada reparava, se
demorando na coberta, acompanhada das filhas e da do-Carmo — j eitoso expediente de siá Possidônia, percebeu logo José de Arimateia, de proteger a menina sem chamar atenção. Naquela mesma tarde, José de Arimateia foi à chácara de siá Gorgota. E continuou indo outras tardes: de espaçado a princípio — mais de seguido, depois. Neste pé em que andava o namoro de José de Arimateia com Maria do Carmo, foi que se deu o primeiro repasse da adomação de Camurça, e, na tardinha do mesmo domingo, foi também que seu Tonho Inácio e dona Dosolina mandaram chamar o rapaz, no sobrado da sede, para clarear a situação, como disseram. Ele, José de Arimateia, é que morria de apaixonado pela Maria do Carmo, e quem vinha botar fogo, apressar o casamento, era o desinsofrido do seu Tonho Inácio — muito mais sem paciência e afadigado! Pouco importava se havia gente na estrada, nas j anelas, se tanta criança j unta brincava ali por perto. José de Arimateia tomou as mãos da noiva e seguiu segurando-as enquanto lhe contava a conversa com seu Tonho Inácio e dona Dosolina. Maria do Carmo ouvia, corada de acanhamento. Custou a responder, quando José de Arimateia lhe perguntou pela siá Gorgota: — A mãe está lá na rebaixa, limpando açúcar. Coitada, vai levar um susto! Atravessaram, assim de mãos dadas, o j ardinzinho. Entraram na salinha da frente, desceram o degrau que dava para a meiágua da cozinha. Ninguém: tudo vazio — a sala, o quarto de Maria do Carmo, o outro quartinho pegado onde a mãe dormia. A velha continuava pelo
paiol, se demorava ainda: vinha de lá, o cheiro forte de mama-cadela macerada no melado, sinal de que siá Gorgota não podia deixar naquela hora o serviço — ponto aquele da depuração do açúcar em que era preciso mexer, remexer sem parar a tachada. — Me larga, seu Isé... Alguém chega de repente, pode ver... Mas ele não largava, não ouvia. Ela, também, não se incomodava mais. E sorria, e ansiava, a boca tão bonita de Maria do Carmo: o noivo encontrou-a aberta e quente, com um doce cheiro longe de hortelã.
4
ESCORRIAM AINDA, lançante abaixo, os enxorros deixados pelo temporal. Mas o céu havia se limpado: a lua muito clara e redonda, a noite cheirosa da mataria que se lavara recém. Dia perdido! — clamava com razão José de Arimateia. Antes tivesse voltado para a fazenda, em vez de ficar tentando passagem, margem acima e margem abaixo. A chuva caíra geral: havia abarcado todo o vale — as duas vertentes dos barrancos a despej ar um mar de água no rio cada vez mais encorpado. Rodara a ponte do ribeirão do Pato Bravo, enchera de fora a fora o vargedo da Baixada dos Santos Reis. Poucas horas de tromba, mas foi um dilúvio o temporal que de instantâneo se formou e desabou por sobre a Mata dos Mineiros. O remédio era regressar, desistir da viagem ao Curral de Esteio, a fazenda de seu Valico Ribeiro; ou senão, tentar a volta de vinte léguas pelas cabeceiras da serra e o arraial de São Miguel, o que queria dizer três dias, pelo menos, de pura perda. E se a chuva continuasse? Aí era ter de retornar, outra vez, da fazenda de seu Valico para o Capão do Cedro, por tal e tão comprido caminho! José de Arimateia pedira a seu Tonho Inácio apenas uns três ou quatro dias de prazo — tempo mais que bastante, se não fosse a chuvarada, para ir ver seu Vali co, ficar de pouso uma noite com ele mais siá Domingas, voltar sem muita fadiga para casa. Um diabo, a chuva tão fora de hora — depois de tudo j á acertado com a do-Carmo e seu Tonho Inácio, com o povo do gabinete também. Uma pena: seu Valico ia ficar tão satisfeito, na certa que havia de vir para o casamento. Agora, o remédio era pedir ao seu Tonho Inácio um empregado da fazenda, mandar uma carta explicando; mas sem dispensar a presença de seu Valico no dia, padrinho de casamento que ele tinha de aceitar, por honrosa obrigação. O casamento ficara para o dia oito, dia da Imaculada Conceição, e j á se estava nos meados de novembro. Siá Gorgota queria a marca para j aneiro, a do-Carmo também: faltava muito do enxoval, e as duas achavam que se devia esperar até que tudo ficasse pronto. Mas o aviso que o padre Pena havia mandado do Campanário era positivo: só podia vir ao Capão do Cedro no dia oito; depois dessa data, somente lá pelos fins de março, meados de abril. Além do mais, para aproveitar o padre, j á tinham aprazado mais um outro casamento para o dia oito; e havia ainda, para a ocasião da festa de Nossa Senhora, ror de criança, tanto da fazenda como de-por-perto, esperando por batizado. Maria do Carmo quis fazer beicinho, emburrar; mas com o recado do padre Pena e as explicações de seu Tonho Inácio, a má satisfação sarou logo. O importante era se cuidar agora do trivial, do mais urgente. Maria do Carmo se apurava: toda noite, até que horas, lá ficava ela debruçadinha na máquina de mão, a embainhar fronha e lençol, lidando com as peças de algodãozinho alvej ado e morim mandadas do armazém por dona Dosolina. José de Arimateia via então que as ordens de dona Dosolina eram para que siá Gorgota escolhesse, no estoque sortido da fazenda, o que fosse preciso para o enxoval, sem olhar o quanto nem se acanhar na apartação do mais fino. Siá Possidônia do seu Osorião Feitor, as meninas dela, uma das filhas de seu Persilva também, todas aj udavam — agarradas nos bordados de bastidor. Já-j á, porém, a lufa-lufa findaria: das mulheres e dele também; mais umas duas semanas, e estaria pronta a casa da colônia — os portais e tudo o que era madeira pintados com nova demão de óleo, o gabinete cimentado de vermelho, tudo caiadinho de fresco.
A casa da colônia, essa seu Tonho, ele mesmo, é que havia escolhido — uma das grandes, de sala e cozinha, e mais dois quartos. De manhã bem cedo, na folga de depois do almoço, e à tardinha após fechar o gabinete, José de Arimateia passava fiscalizando o serviço de limpeza e pintura das paredes; assim rente do pedreiro, apertando o carapina, auxiliando também no que podia, dois domingos bastaram para ficar pronta a coberta do quintal e, pegado a ela, o cercado de ripas para a horta de couve e o quarador de roupa. Chiqueiro, forno de quitanda, a tralha de sabão e farinha de mandioca, isso tinha de ficar mesmo pela chácara, que siá Gorgota não houve meio de concordar em vir morar com a filha. Mas prometera aparecer todo santo dia, adj utorar no que fosse preciso; é que não criava coragem — a pobre da velha acabara confessando — de deixar o j ardinzinho e o mandiocal, o monj olo dos fundos do
paiol, a riqueza do rego d"água... Tudo o que havia na chácara — desde o fogão de chapa da cozinha, a casinha da fossa, a cerca de aroeira lampinada do mangueiro... — tudo, tudo obra da ideia e das mãos do finado Claudemiro; viver na chacrinha era o que lhe sobrava de consolo, a coitada... Camurça lutava com o barro do caminho, mas rompia bem o lançante. O cavaleiro, distraído com seus pensamentos, deixava a bestinha a gosto, livre dos acochos de rédea e dos espinhos das esporas. Quase um mês ainda — sonhava José de Arimateia — e a do- Carmo cada vez mais compenetrada na obrigação e alegrezinha, cada vez mais encorpada e mais bonita. Venciam agora, José de Arimateia e Camurça, o trecho de estrada batido pelas carretas de boi e os carroções de burro adotados no pesado transporte de café, açúcar e rapadura. A chuva transformara o massapé caroquento em feio lamaçal, escorregoso e traiçoeiro, e, em tal pântano, José de Arimateia não podia descuidar da besta — animal com pouco tempo de ensino, ainda espantadiço e estranhador. Mas a diabinha da Camurça progredia. Acostumara-se com o freio água-choca, mais aj eitado e leviano, bem diferente do perna-de-sapo usado nos burros de carroça da fazenda, retaco e desbocador. A burrinha tretava ainda, vez ou outra: entoadeira e niquentazinha, espirituosa por demais... Mas, perigo de repetir certas doideiras, isso não havia não. Como aquela falta de j uízo na porta da venda do Santanhense, na esquina do largo da igrej inha da fazenda: ele, José de Arimateia, j á amontado e de rédeas na mão, e a Camurça a fincar pé, a querer se mostrar historienta! O mais pior era o povo ao derredor, dia de domingo, assim de gente assistindo ao terço de siá Salvina do seu Persilva. Mas não aconteceu nada não: a espora buriti até o cabo, argola de taca no focinho, na cara, nas orelhas... — uma lembrançazinha do primeiro dia da doma no curral-de-grama da sede, um refresco só de cabeça... A boba, em vez de assentar ideia, inventou, mas foi de enqueixar e, em seguida, disparar que nem louca! Ah, inocência dela — visagem que só serviu para geral diversão do povo amontoado à porta da igrej a!... Ter de apanhar na frente dos outros, passar assim por tanto vexame! Não fosse a dilatada espera no
rancho da Passagem — escuro j á de todo quando o dilúvio serenou — não fosse a temporada perdida atrás de outro j eito de vadear o rio, e voltaria à fazenda com tempo ainda de alcançar a do-Carmo acordada, na labutazinha com o enxoval — José de Arimateia suspirou. Ela não esperava por ele, pois sabia que a viagem à fazenda de seu Valico era viagem de falha por uns três dias. Não ia adivinhar que a chuvarada causasse enchente assim tamanha; se adivinhasse, então podia ser que sim: ela e a mãe, decerto até que j á de comida guardada na chapa do fogão, esperando por ele. Não, não adiantava querer abreviar viagem, apertar Camurça sem propósito. Aquela era a primeira e a mais custosa experiência de estrada que a pobrezinha fazia. A montaria voltara a trotej ar agora como bem queria. O cavaleiro, perdido novamente em
lembranças, deixava-a outra vez escolher caminho, não lhe revi vendo mais as dores da boca mal curada, não mais lhe reacendendo o ardume das virilhas com as estrelas de fogo das rosetas. O pontilhão de tábuas, o começo do cafezal. Uma hora dessas, Maria do Carmo j á dormia — pensava, voltava a pensar na noiva, sem descanso, José de Arimateia. Amanhã bem cedo iria vê-la, contar as peripécias da viagem, combinar com ela e a mãe a maneira melhor de mandar o aviso para seu Valico Ribeiro, do Curral de Esteio. Pessoa como poucas, seu Valico: ia ficar satisfeito com a notícia do casamento: siá Domingas também, seu Eulálio, os outros — aquela gente boa de quem ele, José de Arimateia, não podia nunca se esquecer. Seu Tonho Inácio escrevia a carta, escrevia, determinava um portador esperto para levar ao seu Valico as novidades todas, contar quem eram os outros padrinhos. Não podia ter havido escolha de mais acerto: no civil, seu Valico mais seu Inacinho, o caçula de seu Tonho Inácio — esse para honrar os donos da fazenda, conforme lembrara siá Gorgota; no religioso, seu Osorião Feitor e a mulher, siá Possidônia, em casa de quem José de Arimateia ainda morava — j oia de gente amiga e serviçal, e que j á o tinham como fazendo parte da família. Naquele passo desj eitoso pelo atoleiro em que virara a estrada, Camurça gastaria ainda umas duas boas horas para vencer a légua e tanto que se esticava até a fazenda, corredor afora. Era mesmo de se perder a paciência: — Atrapalho de chuva, dianho de burra lerda! Nas doloridas virilhas de Camurça é que José de Arimateia despicava a desesperada saudade da do-Carmo. Resolvera não seguir mais pelo corredor, dar a volta pelo centro da colônia, apear na porta da casa de siá Gorgota. O excomungado massapé virara agora um puro visgo, amassado por casco ferrado de animal e cortado pelas rodas cravej adas dos carroções. A lama se agarrava aos pés e pernas da montaria, impacientando-a, atrapalhando-lhe a marcha. Derradeiro estirão que não se acabava nunca, aquele lance barrento da chegada! E o cavaleiro ainda tinha o que fazer, antes de soltar a besta e ir descansar de tão fracassada viagem. Aquela, a fase mais melindrosa da educação de Camurça, e não ia ser por culpa dele, por falta de atenção e zelo, fosse a mula futurosa apanhar balda para o resto da vida. O certo era ir desencilhar Camurça na beira do rego d"água, lavá-la e enxugá-la a escova, untar com azeite-doce as partes mais sensitivas do couro — o fio do lombo e os vazios das virilhas principalmente — por amor das pisaduras causadas pelo
arreio e dos talhos abertos pela esporas. Esses comecinhos de machucado, se não atalhados de princípio, acabavam por virar bieiras e feias feridas outras sem remédio. E enquanto a bestinha estivesse comendo, encabrestada no cocho, ficar por perto conversando com ela, para acostumá-la a estimar e agradecer a presença e a voz do dono. Paciência e carinho: esse, segundo seu Eulálio — e José de Arimateia estava por conhecer outra pessoa mais entendida em animal de sela que o capataz da fazenda de seu Valico Ribeiro — era esse o preceito mais principal entre todas as outras e muitas regras da adomação. Montou de novo, depois de fechar a
tronqueira de arame do pasto dos animais de carroça da fazenda. Com as chuvas, chegadas cedo e com tamanha fartura naquele ano, gramara o j araguá e
embuchara de vereda. Parecia até que se podia ver, escutar o crescimento acelerado do capim, tal a força do chão roxo ali da Mata dos Mineiros. Não havia dente de gado ou de animal que vencesse: poucos dias antes, as pontas das touceiras mal alcançavam os j oelhos de Camurça, e hoj e, j á lá envinha o capim encharcado do orvalho da chuva a ensopar as calças do cavaleiro! O que valia um culturão daqueles, sapiroca pura de massapé! Os trilhos sumiam, abafados pela perfilha viçosa do provisório. Um chape-chape, molhado e fofo, por sobre a raizama do capim, o passo vaqueano de Camurça a achar caminho, apesar de enfiada até as ancas no tufo fechado da pastaria. E se fosse ver a do-Carmo? — a ideia chamej ou na cabeça de José de Arimateia como labareda acesa de repentino no borralho das saudades da noiva. Enquanto atravessava o pasto, vinha ele namorando de longe o vulto do arvoredo do quintal de siá Gorgota: a moita redonda do bambu- indiano beira-corgo, a espigada carreira das guarirobas, o encorpado escuro da mangueirona da frente do
paiol. Tão perto, a cerca da divisa com o canavial da chácara... Levava Camurça até lá, largava-a à espera na cerca, num instante varava o quintal. Chamava depois na j anela de Maria do Carmo. O dianho era se a velha inventasse de acordar, querer que ele entrasse, fosse coar café... Como sempre acontecia, siá Gorgota não despregava nunca dos dois, ia ficar rente até que ele se fosse embora da chácara. José de Arimateia guiou Camurça para os lados do canavial, apeou ao dar com a cerca. Meditara bem: atravessado o canavial, a horta logo em seguida, chegaria ao oitão da casa e arranharia de leve a j anelinha do quarto. Chamava a do-Carmo bem baixinho para que a mãe não acordasse, pedia que a noiva viesse para o quintal com ele. Ah, poder sentir de novo os altos e os vãos do corpo dela espremido ao dele... Tinha sido assim a primeira vez, na cozinha, no primeiro dia do noivado. Tudo muito às pressas, porém, ela morrendo de medo da mãe, cismada de que alguém podia chegar de repente. Hoj e, não — se decidira José de Arimateia. Hoj e ia ser mas era no escuro da casinha do
paiol — a do-Carmo descalça e de cabelo desmanchado, só de camisola de dormir por cima do corpo ainda quentinho da cama. Ah, meu Deus, e ter de esperar quase que um mês ainda para poder, então, dormir direito com a do-Carmo!
5
DO OUTRO LADO da cerca emaranhavam-se as fechadas touceiras do canavial. Afiadas de corte são as largas e rij as folhas de cana - espéciecie de capim-navalha em ponto grande - mas, apesar dos cuidados com as mãos e o rosto, José de Arimateia venceu sem demora o postiço capoeirão. Atravessou a pinguelinha de um toro só de buriti, j á meio escondido na escuma e garrancheira que o corguinho cheio carregava, meteu-se de novo por mais canavial, e seguiu beirando a cerca de pau-em-pé do mangueiro até a cancela do chiqueirinho. O mandiocal, o telhado de capim da ceva, o rego d"água. Teve de parar ali: o rego transbordara, vazava também o esgoto do monj olo, tudo um lameiro só — o que obrigava José de Arimateia a ter de escolher melhor caminho, para não emporcalhar, do barro fedorento escorrido do chiqueiro, as botas de vaqueta. Foi quando bulhazinha arrastada de lata lhe avivou a atenção. O capado não era: lá estava ele, canastro de pesadão, escarrapachado num canto do telhado de capim, j unto ao cocho de pau — gordo demais da conta para afoitar-se e estranhar simples chegada de gente. Ademais, nenhuma lata, vasilhame nenhum de folha se via por perto. Com certeza, rato ou gambá fuçando nos guardados de siá Gorgota, na farinha ou no açúcar acostumados a dormir no acrescente do
paiol... — José de Arimateia calculou. Prosseguiu, agora j unto ao telhadinho do chiqueiro, onde mais firme parecia o chão. Outra vez agora! E não era esbarrado à toa, de bichinho larápio, mas barulho de lata vazia arteiramente mudada de lugar. José de Arimateia não gastou tempo em atinar com o que seria: no quiriri costumeiro da noite — cantiguinha de grilo, algazarrinha de perereca, murmurej o de rego d"água — bem distinto desses rumores conhecidos, o que se escutava, vindo do
paiol, era um risozinho abafado; e cochicho de gente também. Siá Gorgota mais a filha?! O diabo da velha acordada a essas horas, a vir estragar todo o plano, tudo o que ele havia imaginado? O j eito, agora, era aparecer para elas, explicar por que arrepiara viagem... — se resolvia José de Arimateia. Mas — e chegou-lhe, com a aborrecida decisão de ter de ir-se apresentar às duas, chegou a dúvida também: e se fosse gatuno, gente mal inclinada? Sempre desprevenido, inimigo de arma de fogo que era, nada, nadinha de nada trazia no cinturão, a não ser o canivete pequetito, de uma folha só, que carregava no bolso j unto ao fumo e à binga de fuzil; por perto, pau nenhum com que pudesse ao menos se defender... Melhor se fosse embora, voltando de novo pelo caminho do canavial — principiou a pensar José de Arimateia. Recordou-se, porém, do tanto de açúcar limpo e dos mais mantimentos guardados na coberta do
paiol. E do resto: as roupas de uso fervidas na tacha, o algodãozinho e o morim de molho na água de anil. Enxoval de Maria do Carmo, posses afinal de contas dele também. Novamente a conversinha baixa. E, ao perceber diferença nas vozes, aí então foi que mais desarvorado o rapaz ficou. Não lograva distingui-las, mas era prosa de homem e de mulher ! Gente da colônia, uma daquelas negras senvergonhas do engenho, alguma mulher descabeceada aproveitando ausência do marido... Mas por que j usto o
paiol, logo o quintal de siá Gorgota? Decidido a tirar a coisa a limpo, José de Arimateia imaginava a maneira de chegar despressentido perto do
paiol. Difícil por ali onde se encontrava: além do atoleiro podre, o escorrido do quintal favorecia a vista de quem se encontrasse lá por dentro da rebaixa. O j eito e
voltar pelo mesmo caminho, cortar mais abaixo o mandiocal, vadear o rego em ponto mais distanciado. Foi o que fez, e alcançou, sem demora e sem ser visto, o monte de lenha empilhado j unto à meiágua da fossa, j á bem perto da casa de siá Gorgota. Ficava, dessa outra posição, encoberto pelo corpo do
paiol e a cavaleiro do restante do quintal. Matutava: se os cuj os do puxado do
paiol não iam gostar de ser vistos, muito menos ele, José de Arimateia, ia deixar que descobrissem andar ele, tão fora de horas, pelo quintal da chácara onde morava a noiva. Segredo era o que não se guardava na fazenda do Capão do Cedro, as colônias sempre cheias de gente, a mulherada, de orelha em pé, atrás de tudo o que servisse para comentário. Uma novidade dessas se esparramaria como cinza por obra de redemunho: os dois, o dentistinha tão comportado e a do-Carmo, de encontros pelo fundo da horta, noite alta... o sonso do casalzinho a adiantar expediente, quebrar j ej um antes do tempo... Ia ser pano para muita manga, pé pra muita invenção e maldade: arrumação antiga dos dois — iam dizer — desde quando a menina frequentava o gabinete... a marosca decerto que acontecida na própria cadeirinha de dentista, tamanho desrespeito à boa fé de seu Osorião e siá Possidônia... Capaz até de a fuxicação acabar envolvendo seu Tonho Inácio: o patrão a ter de botar panos quentes, inimigo de enrosco e mau exemplo... a ter de engenhar o noivado e marcar o casamento tão às carreiras. Pelo visto, a do-Carmo andava mas era j á de esperança — por isso é que seu Tonho abreviara ainda mais o casamento, tivera de inventar a desculpa do pode-não-pode do padre Pena... Pelo menos topava com o que se armar e se valer agora — via José de Arimateia, escondido por detrás do monte de lenha, o sem-conta de rachas de angico espalhadas ao derredor. Da tocaia, enxergava todo o
paiol, a rebaixa emendada nele e aberta dos três lados, segura por dois esteios apenas. Na hora de sair lá de dentro, os tais tinham de atravessar o terreiro, ou pelo lado de cima — a parte mais varrida do quintal e alumiada mais em cheio pela lua — ou pelo lado do batedor de roupa, limpo também de plantação; o lado de baixo, onde corria o enxorro do calabouço do monj olo, esse nem vigiar carecia, que dava para o encharcado e o lameiro do chiqueirinho. Espiava com um olho o
paiol, vigiava com o outro a casinha de siá Gorgota. Lá estava a j anela do quarto da do-Carmo, a do quarto da mãe, a parede descascada dos fundos da cozinha. Trepada pelo esteio do oitão, a primavera cor-de-tij olo, dadeira de flor o ano todo; perto dela, o jirau com salsa e cebolinha-verde, invenção da velha contra bico e ciscado de galinha. Pendurado alto, no batente da porta da cozinha, o papagaio de siá Gorgota, friento, encoruj ado, a cabeça escondida por debaixo da asa — ferrado no sono. O canário cabeça-de-fogo da do-Carmo, esse é que não dormia nem parava quieto na gaiola, incomodado pela lua — desinsofrido, trocando toda hora de poleiro. Mau-mau! Um vento fora de propósito dera de chegar, vindo da serra. Chuva outra vez!... — e José de Arimateia virou-se para olhar o céu do cafezal; ia chover sim, e outra boa pancada, mas não de imediato, que a barra escura da nuvem mal apontava por sobre a morraria ainda toda batida de lua. O vento insistia porém, e o casal de quero-queros que morava ali na chácara se alvoroçava, mal parando na catação de bichinhos no terreiro, amiudando a gargalhadinha esganiçada. E os dois descarados ainda metidos dentro do
paiol de siá Gorgota! José de Arimateia se decidira entretanto a esperar, que por nada deste mundo ia sair da chácara sem apurar a senvergonhagem do
paiol. E, enquanto aguardava o fim da história, se ocupava com o roldão de pensamentos que lhe atropelavam a cabeça: a pobre da Camurça, arreada e à espera na cerca do pastinho, o courame do
arreio, o tucum da
barrigueira, tudo ensopado e se encolhendo, incomodando ainda mais... o trato que ele ainda tinha de dar à mula antes de soltá-la no piquete... o
positivo a ser mandado com a carta para seu Valico... E o tanto de serviço ainda por terminar antes do dia do casamento — o pessoal do gabinete, principalmente os de dentadura, fazendo todos questão de estrear aparelho novo na festa. Um azar se fosse chover novamente! Perto da pilha de lenha, o pezinho de urucum fez José de Arimateia recordar-se do Custodinho Dentista. Seu Custódio implicava com a cor da massa que comprava para moldar gengiva postiça — cor que nunca entoava direito com a da boca do cliente — uma hora escura demais, outras vezes muito desbotada. Vivia experimentando: derretia uma cor com outra, misturava, ensaiava tudo o que era tintura e anilina. Uma ocasião, na fazenda do seu Valico, seu Custodinho passara uma noite toda no fogão de siá Domingas, fervendo massa em diversos temperos de água de urucum, separando as amostras para observar, depois, o resultado. A princípio, parecia que a invenção aprovava, pois a tinta disfarçava bem o vermelhão e o amarelo encardido da massa, dando na gengiva um ar mais natural. Mas, com o tempo, seu Custodinho desistiu: o urucum deixava na dentadura um ranço forte de açafrão de farmácia, fácil de enj oar o cliente. Capricho bobo de seu Custodinho, pois o povo até que gostava de exibir o aparelho; riam sem precisão, só mesmo para poder intimar. Exigiam mas era serviço resistente, pouco se incomodando com o tamanho ou colorido da gengiva. Apreciavam também mandar botar um ou dois dentes de ouro bem na frente da dentadura, como queria agora seu Osorião Feitor. Alma boa... havia entregado, para o serviço dele, quatro coroas antigas — uma até que de siá Possidônia — que lhes tinham caído da boca, e também mais um par de brincos da mulher. O ouro que sobrasse — seu Osorião declarara — era para as duas alianças do casamento dele, José de Arimateia: presente que, como padrinho, o amigo fazia empenho de ofertar. Siá Possidônia, outra prenda de criatura... Quando deu fé, nem bote de cobra para ser mais veloz: José de Arimateia desacocorou-se de supetão, olhos fincados na porta da cozinha de siá Gorgota. De alto a baixo, uma faixa escura de sombra descia emparelhada com o portal, larga demais para ser barrado de sombra comum; e a faixa se estreitava, e se alargava, e se estreitava de novo — gangorrado de porta aberta balançada pelo vento. Siá Gorgota! — foi a primeira ideia ruim que lhe veio à cabeça; em seguida, outro pensamento mais medonho ainda: Maria do Carmo! Não, meu Deus, ela não! — ela não, Virgem Santíssima, a do-Carmo não! — e o ímpeto foi correr, invadir a casa de siá Gorgota pela porta aberta da cozinha, varej ar os quartos. Porém, tal qual os maus pensamentos, o j uízo chegou também de carreira: não adiantava nada... : fosse a mãe, fosse a filha, não havia de ser em casa que a cachorra se encontrava... Passou os olhos à roda, claro que descarecia de mais ser o terreiro: um pau, um rachão de lenha, um como-é-que-chama qualquer com que se aj udasse... — José de Arimateia buscava. No meio dos cavacos, encostado na casinha da fossa, avistou o machado, o corte brilhando à lua que nem caco de espelho. Apanhou a ferramenta — firme, pesadona, a cunha bem arrochada ao cabo — e se foi, silencioso, para o oitão de pau corrido do
paiol. O coração batia-lhe compassado — surda mão de monj olo socando pilão na arca do peito. Deitada para trás pelo clarão fronteiro da lua, seguia-o a sombra — passo a passo, muda, companheira. Os ouvidos ouviriam um pimpingar, um vaporar que fosse de orvalho. Ao rentear a quina do
paiol, tirou o chapéu e descansou-o no chão. Mais livre avançava assim a cabeça, mais espremido avançava o rosto de encontro ao esteio derradeiro. Era o faro, agora: o azedo do açúcar preto, uns longes de suma e mama-cadela, o polvilho velando no gamelão, a decoada escorrendo no barreleiro. Arrastava-se de mansinho — um j araracuçu, tal qual — adiantava o rosto, os olhos... —
divulgava. Os trastes de siá Gorgota: a tulha de taboca para o arroz pilado, o cocho de soro de mandioca, o ralo, o pitipi; o rasteiro fogãozinho de chapa, a tacha do sabão, as latas de ferver roupa. Estendido pela lua, branco-azul transparente, o pano de claridade tudo recobria. No fundo, j unto aos sacos de mantimento, é que os dois se encontravam. José de Arimateia não pôde, desde logo, reconhecer o homem de costas, parecido que aj oelhado no chão. Mas, as pernas da outra, abertas de todo para deixarem caber dentro delas o corpo emborcado do parceiro. — Nossa Mãe! Seu Isé! Maria do Carmo recuou de instantâneo as pernas, encurvou-as, e com os j oelhos, e os pés, e as mãos, com a força toda de todo o corpo — meu Deus, ela estava nua, quase que nuinha de tudo, a camisola arregaçada até as virilhas! — desvencilhou-se num repelão. E, rolando por sobre as sacas de farinha — nem uma gata de tão esperta — atirou-se pelo vão dos fundos da rebaixa do
paiol. — Cadela desgramada! — o noivo quis correr atrás. Mas havia o outro. José de Arimateia voltou-se para ele, o machado j á no alto. — Pelo amor de Deus, seu Isé... Me perdoe! — implorava seu Inacinho, o filho caçula de seu Tonho Inácio, as mãos labutando para acabar de sungar as calças que o peavam pelas pernas e o prendiam meio caído no chão. José de Arimateia suspendeu mais os braços, ouviu o olho da ferramenta tropeçar na meia altura do telhado. — Não me mata desse j eito não, seu Isé! O machado desceu — certeiro, um raio. As mãos de José de Arimateia sentiram o corte resvalar, batido de gume numa coisa dura e escorreguenta, antes de enterrar-se, maciço, numa j unta apertada e rangente. — Diabo! — teve de pisar no ombro do infeliz, torcer e destorcer o cabo do machado para poder desentranhar o aço. José de Arimateia mal-mal relanceou os olhos pelo corpo — a cabeça parecia que rachada ao meio, o sangue a gorgolar aos tufos — e precipitou-se atrás de Maria do Carmo, saltando pelo mesmo vão dos fundos da rebaixa do
paiol.
6
OS PÉS DESCALÇOS de Maria do Carmo haviam moldado fundas marcas no lameiro beira- rego. Escorrendo para enchê-las, o caldo mole do barro começava a empoçar-se naquelas formas parecidas com meias-cabacinhas de pescoço fino, serradas de comprido -fáceis pegadas ao clarão da lua. Num átimo José de Arimateia as seguiu; sumiam-se, porém ao chegarem ao fim do corredor formado pelo
paiol e a cerca do chiqueiro. Na ceva não se escondera a excomungada — ele viu, depois de se agachar e olhar melhor por debaixo da cobertinha de capim; tampouco ela atravessara por dentro do chiqueiro, pois os pés enlameados largariam, na certa, restos de barro no empedrado lavado pela chuva. O mesmo acontecia na parte de cima, lado direito do rego d"água: sinal nenhum mostrava o terreiro escorrido e limpo. Ainda espiou ao longo da faixa lamacenta do lado de baixo do rego. Enfiara-se mesmo pelo mandiocal afora, a desbriada — José de Arimateia logo descobriu, que molde mais nenhum coberto de água mostrava a passagem dos pés descalços da Maria do Carmo. Ah, cadelinha dos demônios! — e ele, de um pulo, alcançou a moita de feij ão-andu, amassadinha de pouco: por ali é que a bandida havia entrado no mandiocal ! Rompeu então pelo anduzeiro, correndo por dentro da ramaria alta, fechada e caroquenta, guiando-se por um ou outro talo partido, folha ou outra acabadinha de murchar; num fôlego, venceu a tira de mandioca-castelinha. Varou-a e ganhou o trecho do mandiocal novo, a rama rala e mais miúda mal lhe chegando ao cinturão. Nem o vento que pouco a pouco apertava desfazia os sinais da corrida de Maria do Carmo: lá estava a batida, como se marcada de tenção, rum ando enviesada para a cabeceira de brej o dos fundos do quintal, as touças de folhas pequenas da mandioquinha nova vergadas de banda e outra do caminho aberto pela moça em disparada. A cabeceira chacosa do corricho, que dificultoso lugar fora a desgramada descobrir ! José de Arimateia amaldiçoou, ao se dar conta do destino tomado por Maria do Carmo. Um atoladouro de pântano só — praguej ada pindaíba de taboa, e samambaia, e são-j osé, feioso navalhal que nem cateto e queixada aventuravam vadear. Mas José de Arimateia não desanimou: ia abrindo com o machado as touceiras de assa-peixe, marmela e capeba, entrando mais e mais pela sombra dos pombeiros e sangras d"água, se enfiando j á pelo molhado do tremedal. A chuva havia alagado toda a cabeceira, virada agora em puro lagoão. As botas atolavam, difíceis de se desgrudarem do chão fundo e pegaj oso. Não, não podia prosseguir por tal fechado caminho — ele teve de reconhecer, as mãos lanhadas pelo corte ardido das flechas de dois gumes do capim-navalha, unhadas pelos espinhos do maldito cipó-bengala. Peste dos infernos! — agora eram as orelhas, o pescoço, o rosto... agora tudo lhe queimava. Ainda por castigo, a praga das venenosas formiguinhas negrasmina, fogo vivo a subir por baixo das mangas da camisa, a descer pelas maminhas e o sovaco, obrigando-o a largar o machado e a se esfregar como um desatinado, a fugir correndo de tão esconj urado lugar. Por onde, santo Deus, por que buraco se enfiara a do-Carmo? — José de Arimateia buscava com os olhos, até com as mãos, agachado, aj oelhado no brej al, o recomeço da batida. Ah! — de repente se lembrou: o pombo onde ela havia achado o meleiro de abelha bij uí ! Ele chegara a ver a gamela entupida de favo de samora e mel que a do-Carmo tinha trazido do capãozinho do brejo... O pau era o pombo mais altaneiro de todos, o mel escondido num oco da
primeira das forquilhas, e essa a mais de duas braças do chão — Maria do Carmo havia contado, muito entusiasmada. A árvore estava lá — José de Arimateia a avistava — sobressaída e bem no meio do capão. Mas, para se chegar até aquele ponto, eram mais de seis ou sete braças de atoleiro, e j usto o trecho mais mole da cabeceira, o mais podre e perigoso: atapetada, por cima daquilo, era a angica-do-brej o o que somente se alastrava — ramazinha predileta de chão traiçoeiro assim. E, na maior parte da pindaíba, boiava apenas ponta ou outra de capim e ramo, a água crescida de mais de palmo. A lua começava a se abeirar da faixa escura de nuvem que j á cobria todo o recortado da serra. E o vento prosseguia mais constante, fazendo estralar os mastros empenados do bambu-indiano e os empenachados altos das guarirobas. Mas continuava ainda muito clara a noite: chegavam a fosforar, de tão brancas e veludosas, as grandes folhas das embaubeiras, lustrava de tão liso o verde do são-j osé. José de Arimateia procurava a passagem para o capão do brej o, não lhe escapava moita de capim ou murundum de barro que mais firmes e mais secos lhe parecessem. Nem que tivesse de rodear toda a
pindaibeira , seguir apalpando e farej ando palmo a palmo, revirar as beiradas todas do corricho, descer o corguinho cheio abaixo. Buscava, vasculhava, mas não perdia a cabeça: Camurça, de
arreio novo e reforçado, amarrada na cerca do canavial, essa ainda podia esperar; ponta ou outra de provisório ou de folha de cana, ela j á aprendera a mastigar decerto, apesar do freio na boca. Se preparasse, a coitada, para o que só Deus mesmo é que sabia estar por acontecer... Amanhecer? Não, não ia amanhecer tão cedo. Duas horas, talvez até que nem isso o tempo gasto no quintal desde o momento em que apeara da bestinha — José de Arimateia calculava. Ia ter ainda umas boas três horas pela frente antes de clarear de todo o dia . Ah, se pegasse agora aquela descarada! Ela podia aj oelhar, rezar, implorar de rastos pelo amor de Deus, como fizera o porquera do Inacinho... A vontade era arrancar, a poder de fio de machado, as marcas que o cachorro deixara pelo corpo da do-Carmo: enfiar embaixo a cunha da ferramenta, subir cortando, rasgando ao meio as indecências dela. Correra mais da metade da pindaíba, vencia o tufo de pirizal da barrinha do corricho. Balouçavam muitas moitas muito bichinho bulhava — mas nenhum semover duvidoso de ramagem, ruído algum estranho ao assobiinho do vento e às miles de vozes moradoras pelas beiradas frias da cabeceira. Quem havera de dizer que seria em tão desgraçada ocasião que punha em prática os ensinos de seu Valico! O velho gostava de recordar, quando saía a cavalo pelos campos da fazenda, as astúcias aprendidas nas épocas antigas da vida dele, seus muitos anos de peão, primeiro, de capataz-de- comitiva depois. Contava casos de boi alongador, de peão mestre-arribador mandado atrás de rês fugida. Seu Valico parava o cavalo, chamava a atenção para um ramo da beira do caminho: ""cê está vendo, Isé? Aquela folhica à-toinha, murchada assim sem razão? Vigia bem..." — mas José de Arimateia, muito novato e inocente, não sabia o que dizer. " Pois aprende: isso é rabej o de cola de rês, vej a a altura... Agora, vai me seguindo, prestando atenção, que j á-j á aparece outra folhinha murcha, irmã da primeira, mais adiante..." Seu Valico não errava: por perto, em outro pé de planta, lá surgia folha ou ponta de ramo verde, o talo quebrado pelo espanej ar da cauda. E no chão — fosse chão do mais rapado e mais duro — havia sempre de se achar a certidão: rama rasteira esmagada
mata-barata ou flor-de-santo-andré... Touçazinha vasqueira de capim, mal tosada nas pontas? "Espia, menino, arrepara: rês finória que j á aprendeu a comer andando, pra não atrasar a fugida..." Moita de pasto arrancada e de raiz para cima? Seu Valico avistava, apontava com o dedo, se ria de satisfeito, a cara bonachona: "Esse um passou, mas passou de a-galope; "rancou o capim na carreira, mastigou mal mastigado, cuspiu fora o bagaço lá longe..." E mais, muito mais: capim comido sempre de um lado só? Criação cega de um olho; molhado de mij o por detrás do monte de obra, em lugar de ser mais na frente? Animal fêmea, "tava mais que na vista! Outras coisas assim, seu Valico Ribeiro ensinava. Remoto rilhar de dentes, gangorro de ramo alto de capoeira, abafado retremor de chão: certeiras notícias de boi fugido, a aparar, rente ao pé, o fresco pampuã num oco de sossegado croão; ou a recolher, puxando-a pelas cordas despenduradas, a roupa farturenta do cipó-são-j oão que tanto aprecia vestir de vermelho a copa grimpeira de um pau-terra; solertes mas sem j eito de evitar pesados, os passos da arribada a pastar capim-fino em fofo pindaibal... Já se espevitava, e pela segunda vez, um j oão-corta-pau sem sono. Meio fora de hora, também, mas assanhadinha de contente com a chegada de mais chuva, cantava também a narcej a: " Água só, água só, só, só, só..." No céu, a lua principiava a se encobrir no barrado escuro de cima da serra. E o tempo a passar, a correr — via, desesperado, José de Arimateia. Siá Gorgota, levantadeira muito cedo, ia logo dar por falta da filha... Aquele vento, agora se firmando, devia de estar a gangorrar a porta da cozinha com mais força, fazendo-a ringir e bater... Vento de chuva muda de rumo toda hora, dá repelão, acabava por entrar estabanado por dentro da cozinha, bulindo nas canecas e bacias, nas vasilhas de folha arrumadas ali... Se a velha acordasse e não visse Maria do Carmo dormindo, ia correndo procurar : descobriria o corpo destroçado do seu Inacinho, botava o bué no mundo. Alvoraçaria a fazenda. Podia ser também que a lazarenta da siá Gorgota estivesse a par de tudo, e até que alcovitasse a filha. Então, se a velha acordasse com o barulho do vento, e se notasse a ausência da do-Carmo, não ia se importar, ia imaginar que os dois, socados na rebaixa do
paiol, não tinham mas era acabado a coisa ainda... Ali no Capão do Cedro — José de Arimateia via claro agora — era tudo uma cachorrada, farinha-de-um-saco-só. Siá Gorgota, seu Tonho Inácio mais a fingida da dona Dosolina. "Me case logo, me case logo..." — a bruaca falara. "O enxoval é por minha conta, faço questã"..." — acrescentara, para entusiasmar ainda mais o bobo-alegre. Sim, via tudo agora José de Arimateia: o Inacinho desonrara a mocinha, havia posto barriga nela; tinham que encontrar um palerma, e correndo, antes que a sujice fosse descoberta... O simplório do namorado estava ali no ata-não-desata, e foi só dar um empurrãozinho, ofertar dinheiro emprestado, dar casa e o enxoval... E ele, inocente que era, acreditando na bondade dos patrões! Enquanto isso, continuava a bancar o cupim, para que o Inacinho se servisse, mais a cômodo, da eguinha da do- Carmo. Passar por tal vergonha, e ainda ter de se mostrar agradecido, ficar devendo obrigação! O j eito era ir embora, largar por ora a do-Carmo, que não a encontraria mesmo mais. A cabeceira cheia, a água correndo sobre o brej o — impossível descobrir o ponto por onde a do- Carmo vadeara, lugar que somente ela conhecia. Se Deus aj udasse, viaj ando de noite e se escondendo de dia, ele era capaz de chegar escapo à fazenda de seu Valico Ribeiro, mesmo tendo de dar volta pelo arraial de São Miguel, atravessando o rio pelo vau abandonado da divisa do cafezal. Ia chover novamente, e a chuva apagaria os rastos de Camurça, desnorteando o mundo de gente que seu Tonho Inácio ia soltar atrás -José de Arimateia se decidia. Maria do Carmo que ficasse, que esperasse... Um dia ele havia de voltar. Ao enxugar com as mãos a cabeça, foi que notou a falta do chapéu. Largara-o j unto ao
paiol — lembrou-se. Para ir buscá-lo, tinha que desrodear de novo a cabeceira, chegar outra vez até o quintal de siá Gorgota. Resolveu-se a ir; e levou consigo o machado, a única defesa que então podia ainda vir a lhe servir. Machado outra vez nas mãos, um
ódio sem tamanho na alma, José de Arimateia subiu novamente pelo meio das touceiras do mandiocal novo, atravessou a moita de mandioca-castelinha, e vadeou o rego d"água sem mais se importar com o lamaçal. Lá estava a parede descascada dos fundos da casa de siá Gorgota, lá estava o papagaio, a gaiola do canarinho cabeça-de-fogo da do-Carmo. A porta gangorrava ainda, a tira do escuro da cozinha se alargando e se estreitando... Achou o chapéu, arrastado pelo vento para um pouco mais longe de onde o pousara, enganchado na rama baixa de um pezinho de alecrim. Entrou pelo acrescente do
paiol adentro, avistou o corpo caído de costas, as calças ainda arriadas pelo meio das pernas, as popas muito brancas ao claro do luar. Do lameiro de sangue preto e coalhado recendia o fedor morno e adocicado de barrigada de porco aberto de recém. Mas não se demorou em olhar para aquela desgraceira, mais ocupado em outra coisa. Achou fácil o que desej ava: o meio saco branco, amarrado pela boca, largado por sobre as latas; farinha de mandioca — conheceu pela leveza do volume. Na tábua pendurada do telhado, a pilhazinha de rapadura. No prego do esteio da rebaixa, a faca de matar capado. Pôs a faca na cintura, a rapadura no saco de farinha, foi catar um punhado das cabeças de palha que acabava de ver largadas por ali. Ao passar de volta pela porta do
paiol, lembrou-se então de Camurça: não, não ia encher ainda mais o saco com espiga de milho, aumentar à toa a carga. Carecia não: repartiria com a besta, se preciso, o que j á levava de matula para si. "Deus foi, foi, foi, foi..." -rezava sermão, vizinho, um crente de urutau. Os galos, porção deles, que os terreiros das casas da colônia se saudavam - bateção de matracas primeiro, algazarrenta matinada depois. Dentro de pouco, as tesourinhas, os tuins, o peixe frito... — a madrugada. Mas José de Arimateia j á estava montado de novo em Camurça, o saco de comida bem aj ouj ado na garupa, machado no
arção da sela. Pelos escuros da serra, piscava, insistente, um relâmpago; remoto, um trovoo rosnava. Ainda longes, mas certeiros avisos de mais e muita chuva.
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DE UM LADO E OUTRO do rio Araraúna, a Mata dos Mineiros estendia-se por umas boas vinte ou trinta léguas de comprido e suas outras três ou quatro de largura - isso desde as cabeceiras da Serra do Macuco até bem embaixo da zona de varj ões do Campanário, fronteira j á do estado. A maioria das fazendas da Mata localizava-se porém de um lado só, o lado esquerdo do rio -cultura, se dizia, mais apropriada às lavouras de café e cana. A estrada descia desse lado, acompanhando os plainos dos pés de serra, e só cruzava o Araraúna no Porto da Passagem — porto de balsa a varej ão —, trecho onde o rio corria favorável, largo e manso. . Depois do porto, no lado direito do Araraúna, a primeira e mais principal fazenda era o Curral de Esteio, propriedade de seu Valico Ribeiro. A estrada passava porém distante da fazenda, contornando novamente as águas contrárias da serra, rumando para a zona de campo de Sobradinho, Chapada de Santo Inácio, Açaflor. Meio recanteado assim, a sede da moradia ideada em plena furna de terra de primeira, na barra quase do córrego das Marrecas com o ribeirão da Estrela, seu Valico Ribeiro vivia então a seu gosto. O movimento e correção sem descanso de antigamente — derrubadas de mato, capoeira e lavoura por todo canto, formação de pasto de capim plantado — todo aquele alvoroço havia tido fim. Da sede ao rio Araraúna — légua e pouco de baixada margeando o ribeirão, retalhada de cerca sem dó de arame e pena de aroeira, cada invernada com sua aguada limpa e à vontade — aquele mundo era agora pura pastaria de farto e fresco provisório. Com pouco peão e fadiga, se cuidava das mil e tantas vacas de criar e dos seus outros tantos bois de pasto — merecido sossego e fim-de-vida para seu Valico, depois dos muitos anos de labuta e sacrifício. Mas seu Valico Ribeiro continuava levantador de madrugada e bebedor de leite no curral. E, para não perder o costume e mostrar ainda o que regia, a primeira vaca do dia era sempre dele — em geral novilha de primeira parição, braba e escondedeira de leite, carecida de peia e agrado. Escuro ainda, sentado no calcanhar e esgotando o peito de uma novilhona de três anos, num barro de dar gosto, assim é que foi encontrado seu Valico pelo capataz-de-tropa da Fazenda do Capão do Cedro, seu Persilva. O chegante vinha com mais dois — todos os três de carabina, capa e alforj e de viagem, tropa nova e bem ferrada. Aparato de provocar cara desgostosa e até mesmo mau recebimento, que seu Valico era inimigo de tal coisa — gente armada assim a entrar por terra alheia. Mas não provocou, pois seu Persilva, pessoa conhecida, foi logo se explicando: — "dia, seu Valico. O senhor releve a gente chegar assim tão fora de horas e sem aviso; esses dois são do Capão do Cedro tam"ém... "tou trazendo um recado do seu Tonho Inácio... — Pois apeie e desarreie... — seu Valico levantou-se do barro, e passou o balde para o menino que segurava o laço. — Vamos até lá em casa... Viaj aram a noite inteira então... Mande os peões tomar café e comer qualquer coisa no seu Eulálio. Seu Eulálio, o capataz do Curral de Esteio, j á se abeirara, a tempo de ouvir a ordem que o patrão dava em voz alta, e de entender a distraída recomendação que seu Valico punha no modo arisco de olhar. Seu Persilva apeou, entregou as rédeas do burro a um dos peões que o acompanhavam, e
atravessou com seu Valico o gramado de frente do curral até a varanda da casa da sede. — O senhor entra, tira essa capa que deve de estar um melado. Pelo visto, pegaram muita chuva... saíram do Capão do Cedro j á bem tarde... — Não senhor, saímos mas foi ontem, e até que bem cedinho; não sei se o senhor j á está a par, mas o rio pegou enchente. Tivemos de atravessar muito mais por baixo, no corredeirão da Aj uda; e mais a poder de nado do que mesmo a vau... Estiou um pouco, mas foi só de tarde. Lá pelo meio da noite, o senhor deve de ter visto, caiu mais outra pancadona; e boa, de mais de hora... — É... Vai ser ano de fartura. A balsa da Passagem parou? — indagou.seu Valico, tirando a botina enlameada e enrodilhando as pernas da calça. - Às vezes o senhor quer uma outra roupa mais seca... tenho aí... Mas, ao de menos um esquento o senhor haverá de tomar... — "gradecido, a pinga eu aceito. "uxa! Nem chegar na balsa eu pude! O Pato Bravo derramou, rodou a ponte. A baixada do lado de lá do rio virou mas foi um mar... — Hum... O Santos Reis, quando pega água, leva dias... Mas, qual é mesmo o recado do seu Tonho Inácio? O menino do curral j á estava rente outra vez, com o litro de cachaça e a canequinha cheia para o seu Persilva. Este bebeu a golada, careteou: — Valentona!... Deve de ser do alambique do Fraj ala... E nova... Ahm... de Açaflor ! O senhor precisa de ver a cana deste ano... a que seu Tonho plantou na primeira lua de setembro... Valico Ribeiro percebeu a reserva de seu Persilva e adivinhou que a causa era o menino. Mandou que o cuj inho entrasse: — Aperta o café lá dentro, ô Romualdo! Fala com siá Domingas que me arrume a mesa na sala. E "ocê me fique por lá tam"ém. Já-j á nós entramos... O Romualdo se foi, e seu Valico continuou: — O senhor pode-se abrir agora sem rodeio, seu Persilva. Que novidade de ruim foi que aconteceu lá pelo Capão do Cedro? Algum ladrão de cavalo? Alguma moça fugida? Seu Valico Ribeiro escutava, calado, a medonha notícia. Hora ou outra é que interrompia: — Se não fosse o senhor que me viesse contar essa barbaridade, lhe j uro, seu Persilva, que eu nem acreditava! O José de Arimateia! Aquilo, sempre pensei que era incapaz de matar uma galinha... — Brasa coberta, seu Valico. Todo mundo no Capão do Cedro pensava assim que nem o senhor. O senhor havera de ver o corpo do seu Inacinho: ficou mais pior do que rês depois de quarteada... O capataz da Fazenda do Capão do Cedro dava relação de tudo: — Seu Isé falou com seu Tonho que vinha lhe convidar de padrinho de casamento. Arreou a besta, pegou a estrada do Porto, e, daí por diante, ninguém mais teve notícia dele. Só no outro dia de madrugada foi que siá Gorgota deu o alarme na fazenda... Siá Gorgota é a mãe da moça, viúva do Claudemiro... o senhor deve de estar lembrado... — Hum... Me lembro do Claudemiro, sim. Negociei muito gado com ele. Mas, o senhor estava me contando, eu é que ia ser padrinho de casamento do Arimateia? — O senhor e a patroa do senhor, tam"ém. Pelo menos, foi isso que eu sube pelo seu Tonho Inácio. O casamento ia ser no dia oito, agora no mês que vem, e seu Isé foi pedir licença pra vir falar com o senhor. Por causa disso, co" ele ausente da fazenda, foi que deu aquela confusão danada na hora que siá Gorgota descobriu o corpo... A velha "tava que era ver uma louca, sem saber também do que tinha acontecido com a filha, se "tava morta ou fugida... Mas acharam ela logo, debaixo da chuva, e atolada até os peitos numa pindaíba que tem no fundo do quintal. Então a do-Carmo debulhou tudinho...
— O rapaz, o filho de seu Tonho, foi encontrado dentro da casinha do
paiol? — Foi sim. A cabritinha é peste muito à-toa, seu Valico. Não "tou querendo desculpar o morto, mas a fazenda inteirinha sabia do que se passava. Seu Isé tam"ém sabia... e aceitou de casar com ela assim mesmo. Recebeu de seu Tonho casa de morada, enxoval, diz"que até que bom dinheiro... Seu Valico Ribeiro coçava a canela da perna: — É... Deveras... Agora é que "tou compreendendo melhor... O Arimateia pediu ordem para vir me fazer o convite, saiu de viagem; mas a chuva pegou ele no caminho, o rio encheu de repente, o porto não deu passagem... Então voltou pra trás, deixou a viagem pr"outro dia, passou na casa da noiva decerto pra avisar, e foi topar com ela de sinagoga com o rapaz, na casinha do
paiol... — Seu Tonho Inácio j á acha diferente — disse seu Persilva. — Ele pensa que foi coisa preparada: seu Isé fingiu a viagem, ficou escondido no quintal... — Mas isso é muito fácil de descobrir. O rapaz carregou com dinheiro? Levou a roupa dele? Saiu armado? — Isso eu não sei, não senhor... — E pelo estado do sangue... era coalho de muitas horas, j á duro, ou coalho de fresco? — O senhor sabe que eu nem prestei atenção? Seu Tonho Inácio chegou correndo, a moça "tava sendo encontrada naquela hora. O patrão arreuniu os empregados ali mesmo na chuva, e deu ordem pra todo mundo sair atrás, campeando. O decreto é pra pegar o criminoso vivo ou morto. Eu, foi pr"aqui que seu Tonho me mandou, mo"de alertar o senhor, pedir seu aj utório. O senhor sabe: o morto é filho... Seu Tonho disse que o senhor é pai tam"ém, que haveria de compreender... — Tem dúvida não, compreendo sim. Mas, ora-ora, quem ia imaginar, logo o pamonha do Arimateia! Tem muita gente caçando ele? — Um povão. Eu vim, mais esses dois que o senhor viu. Subindo o rio, seu Tonho mandou o Bolivarão — aquele que foi mascate-de-tropa, o senhor se alembra... Seguiu com outros dois homens. Na corredeira da Aj uda, me separei do seu Xisto do Engenho, que desceu o rio com o lote dele; me disse que ia até no Campanário. Pro lado de lá da estrada, seu Tonho despachou outra manada. E a peonagem de cana está revirando tudo o que é cabeceira, capão e grota da fazenda... — Então não tem mais meu-deus-me-aj uda. Já-j á o rapaz "tá no estanho! No Campanário, logologo a polícia bate em cima... Mas seu Persilva não se mostrava muito convencido. Não escondia a dúvida, pois seu Valico a percebeu; tanto, que provocou: — Aqui na minha casa, eu penso que ele não vai ser doido de querer aparecer... — Seu Tonho j á acha que é para aqui que ele vem — seu Persilva encontrara afinal a deixa. — Seu Isé intimava muito a amizade com o senhor, na certa que vem lhe pedir proteção... Seu Tonho, ele mesmo em pessoa, é que queria vir lhe falar sobre o assunto, mas a mulher dele, dona Dosolina, está que o senhor precisa de ver... dando ataque um atrás do outro, e o pobre do seu Tonho não pôde aluir da fazenda. — A infeliz, coitada da mãe... São as que mais sofrem com esses descabeceios de rapaz. Seu Tonho Inácio, também, que tristeza! O senhor diz, seu Persilva, diz pro seu Tonho Inácio e pra família, que eu "tou muito sentido, muito passado mesmo com a desgraça que sucedeu. E diga tam"ém que recebi o recado dele, que "tou avisado. Não acredito que o Arimateia apareça por aqui; mas, se por um acauso aparecer, o senhor diga pro seu Tonho que deixe o criminoso por minha conta... Siá Domingas chegava ao alpendre; vinha avisar que o café j á estava arrumado na sala. Pôs a
mão na cabeça quando o marido lhe contou a barbaridade da notícia trazida pelo seu Persilva: — Que horror, santo Deus! E logo com o José de Arimateia! Ainda outro dia... parece que a gente "tava até adivinhando, hem Valico?! Falamos tanto nele, seu Persilva... Mas a velha não pôde continuar, tendo de se ir para dentro, esconder o choro que sabia não ser capaz de sopitar. Seu Valico chamou o capataz: — Siá Domingas, coitada... É isso que o senhor "tá vendo. Depois, o Arimateia, a bem dizer, quase que foi criado por ela... Mas o senhor entra, seu Persilva, entra. Vem, vem tomar seu café, comer alguma coisa.
8
OUTRA VEZ NA VARANDA da sede do Curral de Esteio, depois da coalhada com farinha e muita rosca e biscoito, seu Persilva minuciava a história: — O mais pior foi a chuvarada: mal-mal selamos os burros, em antes ainda de pegar o corredor, o pé-d"aguão apertou. Já tinha chovido muito de véspera, e a estrada virou num pantanal. A coisa estrangolava por completo: rasto, que era bom, bau-bau ... O mais pior foi a chuvarada: mal-mal selamos os burros, em antes ainda de pegar o corredor, o pé-d"aguão apertou. Já tinha chovido muito de véspera, e a estrada virou num pantanal. A coisa estrangolava por completo: rasto, que era bom, bau-bau... Seu Valico Ribeiro estava entretanto mais interessado no destino do capataz, no que iria ele fazer dali por diante: — É, a chuva foi geral, abarcou toda a serra. Mas, agora que o senhor viu que o Arimateia não veio para o Curral de Esteio, que outra ideia é que o senhor tem? — Bem... Agora quem determina é o senhor — seu Persilva respondeu. — Tempo também d"ele j á ter chegado aqui não passou ainda... a bestinha moderna de
arreio, essas beiradas de rio tomadas pela enchente... Se o senhor acha que eu devo, fico esperando mais um, mais dois dias... Na casa da sede é que não pode, pois dá muito na vista. A gente ficava
amoitados aqui por perto, a tropa escondida j unto. Se ele aparecesse, o senhor mandava um aviso; ou senão, volto pra beira do rio, subo e desço atrás do ponto onde seu Isé deve de ter atravessado, se é mesmo que ele cruzou o Araraúna; pode ser tam"ém que j á agarraram ele nessa altura... Seu Valico refletiu, antes de dar a opinião: — É... Acho que esperar aqui é perder tempo. Mas convém que o senhor tire a dúvida, aproveite para descansar o corpo: um dia e uma noite assim sem dormir, o senhor deve de estar quebrado! Bote essa roupa e o calçado no calor do fogo... a Domingas zela disso... O senhor fica de falha hoj e aqui comigo, os peões podem pousar na casinha de
arreio do curral. Seu Persilva não se fez de rogado: — Vou aceitar, que, assim como "tou, o serviço nem rende. Depois, a tropa carece também duma folga. Se o senhor pudesse mandar soltar ela num pastinho meio recanteado... — Pois venha se deitar, que eu olho o resto — disse seu Valico, erguendo-se do banco do alpendrão. — O senhor entra, fica neste quartinho aqui da sala... Seu Persilva ainda relutou: "ora, que bobagem, não carece não... estou costumado com esta vida...", fez cerimônia, mas acabou entregando ao seu Valico a roupa molhada e as botas pesadas de barro vermelho. Logo depois, acomodado no catre do quartinho da sala, ferrava no sono, que, do alpendre, se lhe ouvia o vaivém do roncado. Sozinho na varanda, os olhos perdidos pelas alturas da serra j á banhadas de sol, seu Valico dava tempo para que seu Persilva se afundasse mais ainda na soneira: bem comido que o homem estava, ia dormir que nem um capado. Até que se decidiu, e foi gritar o menino Romualdo para mandar : — Vai lá no curral, vigia se seu Eulálio j á soltou a vacada. Diz pr"ele me dar um pulo até aqui, bem ligeiro.
Seu Valico foi esperar o capataz fora da varanda, debaixo da paineira do gramado. Dali enxergava tudo: a porta da sala que dava para o alpendre da sede, a casa do seu Eulálio, a casinha de
arreios pegada ao curral. Até o pastinho de bezerros ele podia vigiar : lá estavam os três burrões de Capão de Cedro, amadrinhados e de cabeça baixa, rabo badalando de contente - tosando ali mesmo a mancha viçosa de marmelada, esganados demais para perder tempo em ir caçar melhor capim mais longe. Viu vir seu Eulálio, acompanhado do Romualdo, o piquirinha quase que correndo para poder alcançar o passo largo e balanceado do vaqueiro, velho mas sacudidão ainda. Outra pobre criaturinha enj eitada, guaxa, sem pai nem mãe... E esse unzinho, que sina é que teria? — seu Valico se perguntava. Mas despediu logo o menino, e mandou que o capataz se acercasse: — Se sente por aí, seu Eulálio; e vamos prosear baixo, que o seu Persilva "tá dormindo ali no cômodo da sala. "ocê "rancou alguma coisa daqueles outros dois? O capataz se acocorou também num veio de raiz da paineira, bem rente ao patrão. Puxou da faca e do fumo, começou a preparar o cigarro: — Não tive muito prazo, senão atrasava a tiração do leite. Mas me referiram quase que tudo. A ordem do seu Tonho Inácio é pra levar seu Isé de volta, de qualquer maneira: vivo, se puder... se não puder, a orelha dele, a roupa do corpo, a besta... qualquer coisa de garantia... — Já sei. Seu Persilva me falou. Seu Tonho Inácio acha porque acha que o Arimateia rum ou direito pr"aqui. Seu Eulálio grosava a palha com o lombo da faca: — Me falaram que viram rasto com j eito de ser da besta do seu Isé, porém rasto de cara pra trás, voltando do Porto da Passagem de novo pro Capão do Cedro. Mas diz" que ficaram na dúvida, que a estrada está impossível de tanto lameiro. Que, antes de poderem sair do Capão do Cedro, a chuva apertou e virou num temporal de novamente... O rapaz foi de muita sorte, hein seu Valico? — É .. Deus aj udou... Com esta imundície de gente de carabina atrás dele... — Um deles, o mais pequetito, o baiano de cabelo ruim e perna selada, um tal de Zé Caxico, esse me disse que seu Isé "tá condenado: a besta é animal novato, adomado de pouco e destreinado de viagem... — muito baldosa, mestrel de empacar... Mas pode ser despeito de peão, pois levou um coice dela uma vez, me contou. Implicância sim, porque j á o outro, o grandão de orelha cortada, o Aparecido, esse porém gavou a mula. Só acha mas é que ela vai prej udicar mais ainda seu Isé: animal facinho de se conhecer, douradilha, vistosona, chamadeira de atenção... — Mas, se o Arimateia rapou bem antes dos outros, ganhou distância. O perigo vai ver, seu Eulálio, é quando der a fome... na hora do rapaz ir campear comida... — Eles "tão desconfiados que seu Isé "tá sortido, de capanga lotada... — seu Eulálio disse —... a mãe da moça dis" que deu falta de farinha e rapadura na casinha do
paiol... que foi ele quem carregou... Parecia que seu Valico se animava — notou seu Eulálio. Mas o vaqueiro permaneceu de cabeça baixa, sem dar nenhuma mostra do que desconfiara. Esfregava o fumo j á picado na mó grossa das mãos — a palha no canto da boca, esperando pelo patrão. Seu Valico acabou se abrindo: — Gosto daquele menino, "ocê sabe, seu Eulálio. Cresceu aqui,
virou gente comigo, nunca me deu um desgosto... nunca respondeu de maus modos — bem-mandado, obediente, reconhece dor de favor e benefício. Depois, "cê vê: vinha me convidar mais a Domingas para apadrinhar o casamento dele... prova de que não é nenhum mal-agradecido; e eu ia seu Eulálio... a velha ia também, e com muita satisfação! Agora, acontece essa calamidade... Que ele vem bater aqui em casa, logo bambeiem a vigiação, isso é na certa... — Penso igualzinho ao senhor... — Mas não revelei nada pro seu Persilva; "tou, mas é enrolando ele. Agora, que é aqui, aqui no Curral de Esteio que o Arimateia vem bater, isso não tem nem graça... Só se não escapar de tanta perseguição. Botar a mão nele, porém, antes de mim, isso é que ninguém vai botar : quero ouvir da boca dele, primeiro, o acontecido lá no seu Tonho Inácio. Depois, então, eu resolvo. — O senhor não pediu minha opinião, nem carecia, seu Valico, pois quem sou eu... Mas "tou com o senhor, "tou calçando o mesmo número... — falou então seu Eulálio. — Aquilo é uma dama de rapaz: não deixou uma inimizade na fazenda, nunca levantou a voz pra ninguém. Entregar ele assim pr"esse povo, sem a gente saber do que se passou... Vão picar ele em pedacinho, abusar demais da conta. E em assunto de honra, a gente há de respeitar... Meu coração "tá me contando que seu Isé agiu como precisava, regeu pela vergonha, puniu pela homagem... Seu Eulálio falava, enrolava ao mesmo tempo a palha; bateu a binga, e confessou afinal suas dúvidas: — Mas "tou achando muito custoso seu Isé chegar vivo até aqui ! — Sei lá... pode ser que não, mas pode ser também que sim. Se o Arimateia cruzou o rio, e caiu na mata fechada do lado de cá, custoso vai ser mas é pr"os outros pegarem ele... E tem também outra coisa: ele é cavaleiro reduzido, conhecedor de animal, "cê mesmo muitas vezes me falava. Não vi ainda essa tal de mula que ele apanhou, mas "magino: o sonho dele, des" em rapazinho, era possuir montaria de luxo... e "ocê escutou o que o peão falou da besta... — Mas porém animal novo ainda, com pouco mais de dois anos, e o senhor sabe: agora com qualquer aperto mais puxado... Deus queira, seu Valico. Deus queira que seu Isé saia escapo! Seu Valico Ribeiro pediu o toretinho de fumo ao capataz, pediu a faca e a palha; quase que não pitava ultimamente, só de longe em longe, assim mesmo quando lhe vinha alguma preocupação. Quedou pensativo enquanto preparava o cigarro: seu Tonho Inácio, homem rico e de respeito, vizinho ali da Mata, lhe mandava o capataz com um recado daqueles; e tinha razão o pobre de estar assim desesperado e com tanto ódio — ele, Valico Ribeiro, também era pai, compreendia; tudo o que havia j untado com tamanho sacrifício — a fazenda, o gado, dinheiro... — tudo era para os filhos: o Tonico, a Floripes e a Celeste; o que mais apreciava era a companhia deles, meninadinha ainda... E, entretanto, se mortificava na fazenda, sozinho com siá Domingas, para que os três pudessem estudar em colégio, conhecer outra vida. O Tonico, interno com os padres do Sobradinho, as duas meninas com a tia, em Açaflor... Não, não gostava nem de pensar numa fatalidade parecida: o Tonico picado a machado, acabado de forma tão horrenda... Deus haveria de livrar a ele, Valico Ribeiro, homem respeitador de família alheia e cumpridor da obrigação, de um precipício assim! Mas, e se por infelicidade tal desgraça sucedesse? Não ia proceder tal qual seu Tonho Inácio? Talvez até que pior... Que Deus lhe perdoasse, mas não dormiria mais enquanto não pegasse o criminoso, não lhe fosse arrancando a alma, a poder de ponta de faca, de miudinho em miudinho... Seu Eulálio devia de estar cismando também, pensando quem sabe no Damastor, filho dele, muito agarrado com o Isé de Arimateia quando do tempo de os dois rapazinhos, a idade deles regulando... O velho capataz matutava noutra coisa, porém, que perguntou de repente: — Será que o Isé não tomou a estradinha de São Miguel? A volta é volta muito grande, mas caminho j á desdeixado desde que botaram a balsa na Passagem. E vem vazando só mata e croão de faveiral... — Hum... — fez seu Valico —... e cruzou o rio no Murici... Pode ser... Mas será que dá vau, ainda mais com esta chuvarada? Com esta enchente? — Ali só tem um canalão perigoso, no meio do rio. Mas se pode arrodear mais por cima, numa veia de pedra. Nós j á baldeamos mas foi o gado, por ali... a gente labutava, mas passava... — Eu sei... Mas "cê alembra que rodava isso e a rês... Rodava, e o golfo da cachoeira, logo embaixo, nunca brincou de guardar e devolver... Depois, naquele tempo, tinha muito trânsito: todo mundo zelava do vau, punha pedra, cuidava dos barrancos. Hoj e em dia, sei não, seu Eulálio. Seu Eulálio continuava gostando da ideia que lhe viera: — Pois olha, perdido por um... O senhor pensa: do lado de lá do rio é que seu Isé não ia caçar esconderij o — zona de muita fazenda, povo aparentado do seu Tonho Inácio ou fornecedor de cana pr"o engenho dele, devedores de obrigação. Tinha de ser do lado de cá — ou para vir aqui lhe pedir proteção, ou para se sumir por este fim de mundo afora. Ahm!... "tá aí ! Seu Custodinho Dentista não montou casa em Açaflor? O senhor mesmo foi quem me disse... Seu Custodinho é outra pessoa amigona que seu Isé tem! Pois vigia, meu patrão: caso o que o senhor quiser como o Isé de Arimateia fez tal qual "tou lhe mostrando: atalhou por dentro do cafezal, subiu margeando o Araraúna até no Murici, j ogou a besta n"água com chuva e tudo... e, se o canal não carregou com os dois... Seu Valico Ribeiro olhava para a ponta apagada do cigarro, olhava vazio para o chão, meditava. Levou tempo, antes de aprovar a ideia: — "ocê sabe, seu Eulálio, pois o senhor está é com a razão; foi mesmo isso que deve de ter sucedido! O rio enche muito mas é do salto para baixo, por via das vertentes da serra; por cima do Murici, o espigão reparte mais as águas... e, lá pelas cabeceiras, nunca chove lá essas coisas. Era só o Arimateia não perder de vista a estradinha de São Miguel, pender a uma certa altura para o rio outra vez...; o carreiro que vem do arraial até na boiadeira está logo no espigão... — Mas aí é que não, seu Valico, aí o senhor me desculpe... — o capataz riscava agora com a ponta da faca no rapado da sombra da paineira —... O que seu Isé deve de ter feito é ter seguido até bem mais adiante, até quase na entrada de São Miguel; não sei se ele conhece o atalho que tem por detrás dum cemitério antigo, mas, se sabe dele, então nem susto passou, que é caminho sem mais nenhuma serventia, largado j á faz tempo. Atalhar por fora do arraial, e ir pegar o rumo da Retranca mais adiante, como se "tivesse de tenção feita no Sobradinho. Perto da Retranca, é as Marrecas, o capãozinho da cabeceira... Seu Valico não interrompia, deixava que o capataz riscasse o chão e fosse acompanhando na mente o traj eto do fugitivo. Acompanhando e relatando. Ouviu tudo até ao fim. —... Agora, "tá facinho de calcular — continuou seu Eulálio. — No dia de ontem, seu Isé viaj ou do Murici até perto do São Miguel; de noite, cruzou o arraial, largando à esquerda a estradinha que vem de lá até na encruzilhada do Porto. Então, aí, pegou o galho que vira pra Retranca, e, pra amanhecer hoj e, j á devia de estar chegando nas Marrecas. Se chegou, "tá fazendo hora, tirando um sono dentro do capão, esperando escurecer_outra vez. — E "ocê viu o lado da chuva, depois que o vento virou. Foi muita água que caiu lá nas Marrecas, em São Miguel também, na certá... Rasto que ficou... —... nem paqueiro acha mais, seu Valico, ainda por cima de mimosal ! O campo da Retranca queimou cedo, o mimoso j á "tá desta altura assim... Seu Isé está lá na cabeceira das Marrecas, seu Valico! O senhor vai ver : hoj e, lá pelo meio da noite... — Mas, e esse povo aqui na fazenda? Seu Eulálio olhou para a lombada da serra, escura de mata virgem, o espigãozinho da Mão de Pedra de barrancos altos, cortados a pino, vindo morrer quase que ali rente ao pastinho dos fundos do curral; olhou e apontou: — Se fosse eu, se fosse o senhor... Dali de cima, lugar melhor para a gente ficar vigiando não existe não. A hora que eles se fossem embora... Seu Valico Ribeiro emudecera novamente. Mas o que se lhe passava na cabeça, nem seu Eulálio, tão habituado com o patrão j á havia tantos anos, lograva descobrir. De uma coisa, entretanto, o capataz não tinha medo: de seu Valico entregar José de Arimateia ao seu Persilva e à capangada de seu Tonho Inácio. Pessoa de coração bondoso, j usticeiro, seu Valico não ia deixar ninguém sair dali do Curral de Esteio amarrado de pé e mão, j á de destino marcado, que nem boi pro matadouro. Muito menos o Arimateia, como seu Valico o chamava. Hm, hm... Nem seu Valico, tampouco siá Domingas, iriam atraiçoar amizade... Ali estava outro exemplo da caridade das duas criaturas — o Romualdinho, bichinho do mato também desguaritado, aparecido ninguém sabia como pela fazenda, que nem o seu Isé... E, tal qual outra vez, os dodóis de seu Valico e siá Domingas... Rolando o cigarro apagado nos dedos, coçando o pelado da canela da perna lisa e desbotada, riscadinha de veia azul, seu Valico Ribeiro cismava. Até que se levantou da raiz da paineira, dando a conversa por encerrada: — Escuta uma coisa, seu Eulálio. O senhor me fique em casa, pombeia bem pombeado aqueles dois, provoca prosa com eles... Eu vou seguir na fazeção de sala pro seu Persilva. De qualquer maneira — volta ele pra beira do rio ou não volta — nós dois, seu Eulálio, vamos continuar nossa conversa, mais tarde. Hoj e não é terça, dia do Chitado? Pois então: "ocê traz o boi pro curral, e, enquanto cortamos a frieira dele, a gente proseia. Assim dá menos na vista.
9
AMANHECIA, QUANDO José de Arimateia chegou ao capãozinho das Marrecas. Meio morto de canseira e sono - dois dias e duas noites quase que sem desamontar da besta! — quase que sem desamontar da besta! — não perdera entretanto a cabeça: se j á estava em terras de seu Valico Ribeiro, não se achava todavia fora de perigo; do Capão das Marrecas à sede do Curral de Esteio havia ainda boa légua e meia de caminho, e — José de Arimateia imaginava — gente mandada atrás dele por seu Tonho Inácio devia j á de estar, uma hora dessas, rondando por ali, vigiando as entradas da fazenda. Se o Capão das Marrecas era lugar ermo — trecho de mato de pindaíba, mangue e buriri —, bom de esconderij o, com água bastante, e muito pampuã e membeca para a mula, por outro lado era difícil movimentar-se dentro dele, de se sair dali num de repente, em surgida precisão — José de Arimateia refletia. E meio distante ainda da sede de seu Valico, aonde tinha de ir mas ir de a-pé, sem correr o perigo de a tropa da fazenda farej ar de longe a chegada de Camurça, relinchar alarme. O mais seguro era seguir descendo por dentro da restinga de mato que beiradeava o corguinho até à barra do Jirau Velho, ponto mais favorável. Perto da barra havia o retiro de seu Gervásio, começava de novo a mataria virgem da serra; e no retiro morava o amigo Damastor, filho de seu Eulálio e genro de seu Gervásio. Lhe aj udariam em tudo: mantimento, outra muda de roupa, até mesmo uma arma de fogo era capaz de lhe emprestar o Damastor, de coração aberto. Fazendo picada com as mãos por entre o ramalhal e cipoama da
pindaibeira , José de Arimateia entrou pelo capão até a água da nascente. Desapeou — ah, que vontade de desarrear Camurça por ali mesmo, se espichar de comprido em cima dos baixeiros do
arreio, descansar afinal o corpo maltratado! — e foi beber a água que minava, borbulhante, da areia muito branca. Camurça, essa parecia também não querer mais sair daquela sombra; desej ava mas era ficar se espoj ando no barro frio da cabeceirinha, olhos compridos no tanto de taquarinha-do-brej o que apontava por entre folhagem das beiras do corricho. José de Arimateia, porém, não queria perder tempo. Mal-mal esperou que Camurça acabasse de beber — tosasse o seu tantinho de cipó-caboclo e cana-de-macaco — e j á montava de novo. Seu Persilva não dormira o tanto precisado. Sono pesado mas de prazo curto, pois andava ainda longe do meio-dia o relógio de armário da fazenda que o capataz foi espiar, entreabrindo a porta do quartinho da sala onde seu Valico o havia acomodado. Viu as horas, viu também, j á passada e arrumada na cadeira j unto à porta, a roupa levada por seu Valico para que a limpassem do barro e a enxugassem a ferro. Enquanto se vestia e calçava as botas também j á limpas, endurecidas e ainda quentes do fogão de siá Domingas, seu Persilva refletia e tomava nova decisão. Ficar pela Fazenda do Curral de Esteio de nada adiantava — compreendia o capataz; de duas, uma — ele calculava: se José de Arimateia não tivesse tomado o rumo do Curral de Esteio, de nada valeria ficar gente tocaiando por ele na fazenda; e, se a ideia do criminoso era vir atrás da proteção de seu Valico, não iria chegar assim sem mais nem menos, confiado e desprevenido... Ia mas era ficar escondido por perto, num oco qualquer dos espigões de mato que rodeavam o enfurnado da sede, assuntar dali o movimento. E seu Valico Ribeiro, apesar de toda aquela macieza, fora muito positivo: ali, nas propriedades dele, que deixassem tudo por sua própria conta... Já vestido e de guaiaca apertada na cintura, as botas ringindo tal qual novas, seu Persilva, desceu a escada do alpendre e caminhou para a bica d"água da porta da cozinha. Lavava ali as mãos e o rosto, quando seu Valico chegou dos fundos do quintal, j acá de mandioca na cabeça. — Uai !... — O fazendeiro estranhou; — o senhor não descansou quase nada... — É que a gente não sossega mesmo, enquanto não arremata a obrigação... E mudei de pensar : "tou achando melhor ir ver se pego outra batida... Ficar por aqui, o senhor tem mesmo razão, acho que vai mas é adiantar muito pouco... — Adiantar sempre adianta... é folga pr"os peões, pra tropa... Mas, como lhe disse, continuo pensando que o Arimateia tomou destino diferente... — O senhor não tem outro cálculo, não faz ideia pra onde pode ele ter tocado? — seu Persilva ainda achou de perguntar. — Hum... Sei não... Se cometeu o crime de causo pensado, como o senhor disse que seu Tonho acha que foi, j á devia estar também de plano feito... Decerto está procurando se alongar daqui da Mata o mais que pode... Talvez que no rumo do Campanário, mo "de ganhar, logo adiante, a vertente do Caramuj o... Cruzar a fronteira, sumir no sertão... Mexer mais com seu Valico era mesmo perder tempo — via seu Persilva. O velho era atencioso, sabia cumprir com as obrigações de dono-de-casa, muito oferecedor... Mas não ia arredar uma palha. Se quisesse mesmo aj udar, j á teria, há que tempo, mandado selar animal, despachado gente para bater as redondezas, tomado enfim algum expediente. Pelo menos, prometido: eu pego, eu faço, eu aconteço... Não: só aquele "deixa por minha conta"... Depois, havia também a mulher, a siá Domingas: destampada em choradeira quando soube que o guaxinho dela tinha virado criminoso... — O senhor almoça, siá Domingas guardou seu prato... — seu Valico disse. — E vai se deitar mais um pouco, sossega; olha, mais de tarde, passa pelo curral... quero lhe mostrar a bezerradinha guzerá que "tá nascendo... Seu Persilva aceitou o almoço, e não tocou mais no assunto do crime, tampouco no nome de José de Arimateia. Seu Valico Ribeiro veio também para a mesa, mas somente a fim de fazer companhia e continuar a conversa de bezerro, vaca e boi guzerá. Siá Domingas, essa então parecia esquecida por completo da má notícia trazida pelo capataz do Capão do Cedro, de tão dada e atenciosa: — Ara, seu Persilva... O senhor está mas é desgostando da minha comida... Hm... Vigia, Valico: do meu doce, também... Experimenta então esse... Não, esse outro aí, o amarelinho... "semelha coco, mas é miolo ralado de mamoeiro... Se serve, criatura de Deus, se serve mais de requeij ão... Pernas do touro bem aj ouj adas uma à outra e metidas por entre as mãos também atadas rij amente, um pau comprido e roliço enfiado no meio dos dois amarilhos de sedenho, a servir de torniquete — assim é que seu Eulálio mantinha imóvel o Chitado, depois de derrubá-lo no chão. E, para maior garantia, o capataz forçava a tal manguara contra o vazio do infeliz, à moda de alavanca, e ainda segurava, pela vassoura da ponta, a cauda torcida e atravessada por debaixo do traseiro. A cabeça, laçada pelos chifres, espremida de encontro ao moirão do centro do curral. Seu Valico acabava de afiar, paciencioso, a faca de ponta. Podia agora prosear à vontade, aliviado j á da presença de seu Persilva e dos peões que o acompanhavam: — O homem nem descansar direito descansou; fingimento ou não, mas acabou concordando comigo: aqui no Curral de Esteio é que o Arimateia não ia inventar de aparecer, todo mundo sabendo da amizade dele com a gente. Me disse que ia voltar pra beira do rio, ficar fuçando por lá. — Seu Persilva lhe perguntou sobre a passagem do Murici? — Não. Nem tocou nisso. — Pois aqueles outros dois sabiam dela... me falaram... ois" que a volta era muito grande, mas que, em todo caso, ainda existe a estradinha velha por ali... Mas seu Valico não deu importância à observação do capataz. Começava a cortar a podriqueira do casco do touro Chitado: — Chiii... Isso "tá feio, seu Eulálio. É uma broca só: a manteiga "tá subindo pro machinho... Onde é que "tá o cordão? Ahm... vigia a cor do sangue... Mas duas voltas bem arrochadas do barbante estacaram a bica de sangue preto; bem lavada com água de sabão de cinza, seu Valico recomeçou a cortar a frieira: — Seu Tonho Inácio vai revirar pelo avesso a redondeza toda. Não vai sossegar enquanto não pegar o Arimateia, "ocê escute... Queira Deus que, um dia desses, não me apareça ele por aqui, j ogando indireta, me apertando... O Damastor j á acabou de plantar a cana do seu Gervásio? Seu Eulálio não tirava os olhos do serviço: — Se não acabou, j á deve de estar no finzinho... Mas eu posso ir até lá no retiro, daqui a pouco, se o senhor acha que é preciso... — Não, não... carece não... No outro dia que a gente for mexer com este boi, seu Eulálio, acho que vai ter de ser na torquês... Repara, como "lá isso... Mas é preciso de ter muita cautela, seu Eulálio: nunca fui apreciador de confusão, "cê sabe muito bem, muito menos de procurar desavença com os outros... Mas siá Domingas está abafada por demais da conta, coitada. Veio, logo que o seu Persilva foi-se embora, ela veio me rogar para não deixar o rapaz no desamparo... — Lá em casa, também, a mulherada "lá tudo de olho merej ando... Dá mais uma volta no barbante, seu Valico, arrocha bem senão o senhor acaba não enxergando direito. O Damastor podia sair logo que escurecesse, levando comida e um pouco de roupa, algum dinheiro... Se topasse com seu Isé, podia até trocar de montaria com ele... — E a besta dele, decerto que j á aguada sem mais arrumação, a gente matava e enterrava ela num lugar arretirado... Se desse pr"o Arimateia chegar até no Sobradinho, de lá por diante o Gumercindo dava expediente... O diabo é se achar, assim na última hora, um animal bom de sela sem a marca da fazenda; se me pegarem o rapaz montado em cavalo ou burro com minha marca... Qu"é de o querosene? Seu Eulálio empurrou com o pé a latinha com o querosene e o sal j á misturados. A cabeça do velho trabalhava depressa, que de pronto explicou para o patrão: — No campo do Mimoso, adonde ele deve de ter passado, tem muita tropa solta... tropa nossa... Desculpa não vai faltar : seu Isé cruzou por lá, fechou a manada no curralzinho da tapera, escolheu o que bem quis, e largou a besta dele de arribada... Coisa feita sem o senhor nem ninguém ter sabido da barganha do animal... Aí, então, nem carecia mais de matar e enterrar a besta, como o senhor falou. — Ou, se não, o Damastor podia pegar um animal qualquer de vizinho... do Calafate, por exemplo... Trazia o animal, soltava lá a besta do Arimateia... A história que "ocê inventou fica servindo do mesmo j eito... Seu Valico acabou de passar o querosene com sal no casco do touro, e foi desamarrando, aos poucos, o barbante apertado em volta do machinho.
— Pode soltar o pau, seu Eulálio, vamo" afrouxar a peia... Foi quando rangiu a porteira grande do curral de entrada. Seu Valico Ribeiro virou-se e viu os dois cavaleiros que chegavam; quando voltou a olhar para a cara do capataz, encontrou seu Eulálio muito sério, um ar bem fingido de espanto. — Seu Gervásio mais o Damastor... Foi o senhor que mandou recado pra eles, não foi? — seu Valico perguntou, num começo de má satisfação. — Pra mim foi a Rosinha que andou tramelando com a língua... — seu Eulálio achou logo a desculpa. — Seu Persilva "tava saindo da fazenda, quando bem que vi a danadinha arreando a Pitôca... Mas pensei que ela ia aj udar o Romualdo a recolher a vacada-de-Ieite... Já bem distante da sede do Curral de Esteio — a boiadeira começava a descambar para as beiras do Araraúna — seu Persilva esbarrou o burrão preto e chamou o peão que viaj ava mais de par, o tal que era troncho de uma orelha: — "cê me faz o seguinte, Parecido: toca sozinho para fazenda, explica pro seu Tonho que eu mais o Zé Caxico vamos revirar esses fundos de São Miguel. Se j á pegaram o homem noutra parte, mandem deixar recado para mim na venda do Lisiário, pois é ali que eu vou fazer pião... Nem esperou que o Aparecido se adiantasse muito, e esporeou o burro, acompanhado do peão pequetito, de cabelo ruim. À esquerda da estrada boiadeira que demandava o Porto, subia um trilho bem cortado no chão escuro da mata j á bem alta — puro palmito e perobal. Por ali se enfiaram os dois, carregados pela marcha sacudida das montarias — cabedal de que tanto se gabava o soberbo capataz-de-tropa do Capão do Cedro.
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SEU PERSILVA SÓ pôde voltar ao Capão do Cedro no outro domingo, depois de j á rezada, na capelinha da fazenda, a missa de sétimo dia do Inacinho. Veio barbado, a roupa e o resto engomados de suor e suj eira. Os burros em que viaj avam os dois, ele e o Zé Caxico, mostravam também o tanto que haviam virado e revirado a Mata dos Mineiros e suas dilatadas vizinhanças. Na sede, o ror de gente que se via no alpendrão, o lote de animais arreados e amarrados à sombra das barrigudas da cerca do curral, o entra-e-sai das visitas — por tudo isso, o sobrado mais parecia em festa do que em dia de luto e tristeza. Apeado em casa, ao menos para livrar-se, a poder de bucha e sabão-de-soda, da morrinha que lhe pesteava a roupa e o corpo, seu Persilva foi logo se inteirando das novidades acontecidas na fazenda. Siá Salvina não perdia tempo: enquanto despej ava nas costas do marido a chaleira de água esperta, esvaziava para ele o sortido balaio das notícias — o visto e o escutado, o inventado e o sucedido de-deveras. A missa de sétimo dia, rezada pelo padre Pena — chegado às carreiras do Campanário —, fora missa de capela cheia, o limpo ao derredor entupido da fazendeirama vizinha, colonos e peonada; parente de seu Tonho e dona Dosolina, somente não veio quem morava longe, mas estavam aparecendo todos eles, pouco a pouco — muito unidos que eram os Inácios e os Gusmões. Os outros filhos de seu Tonho Inácio — dona Rosária mais seu lrineu e seu Isidoro —, esses é que não haviam chegado ainda. Maria do Carmo e a mãe, siá Gorgota, as duas j á tinham deixado o Capão do Cedro, num carroção-de-burro lotado da bugigangada delas, escorraçadas de lá que nem duas cadelas lazarentas. O capataz ouvia, hora ou outra perguntava — mas somente o carecido, e sem dar muita trela à mulher. Mesmo assim, a bica corria cheia, de telha derramando: — O corpo do Inacinho ficou o tempo todo fechado no caixão, proibido de ninguém ver ele, mo"de o estrago... Seu Xisto do Engenho? Veio sim, vieram de volta o povo todo; cada um de embornal moj ado, mas tudo milho carunchado, sem serventia... Seu Tonho parece que "tá com muita esperança mas é num zunzum que chegou do Campanário: diz" que seu Isé de Arimateia foi visto de noite, j á descendo o Caramuj o, por uns cuj os que velavam criança defunta numa casa de tábua... falaram que o cavaleiro passou meio de largo, mal-e-mal deixou a besta beber água no rego da porta, apertou a marcha dela de novo... Seu Bolivarão? Esse "tá aí desde ant"ontem... não, "pera um pouco, me deixa ver... : foi na quinta, trasantontem... Tudo falação e patacoada, pantomina — via seu Persilva. Por isso, se apurava, vestido de parelho limpo: quem ia levar romaneio genuíno aos patrões era ele — a notícia verdadeira, essa sim, que seu Tonho Inácio e dona Dosolina aguardavam há tantos dias. Seu Bolivarão, seu Xisto do Engenho... uns boas-vidas: mestres, mas em arrotação de grandeza e baj ulação. Na porta da casa, aflitos por ele, a rodinha dos especulas j á se formara. Dos empregados da fazenda despachados por seu Tonho Inácio atrás de José de Arimateia, seu Persilva era o último a retornar, a derradeira vaza esperada pela fazenda tomada de desinsofrimento e j á meio desiludida. Porém o capataz-de-tropa se abeirou da roda sem o costumado rompante, desenxavido de cara e de modos. Jogou mas foi mais água no restinho de fervura: — Teve j eito não.
O homem exalou mesmo... E escapou-se: — "cês vão me dar licença, mas tenho que ir na sede, avisar seu Tonho que j á "tou de volta... Encontrou o patrão na cadeira de balanço do alpendre, rodeado dos parentes e amigos mais de casa — envelhecido e desfeito, como se tivessem sido, os dias daquela semana, anos inteiros de doença e sofrimento. Pelo chão, por todo canto, os lacinhos de seis pernas de palha de milho, quase todos sem acabar — reparou o capataz-de-tropa — sinal da impaciência e desespero do desventurado do patrão. Por um tico que seu Persilva não bota tudo a perder, tal o dó que lhe causava o estado do infeliz: o rosto e as mãos descarnadas, a barba crescida de dias, a fundura das olheiras pretas como o fumo da braçadeira enrolada na manga do paletó. Se acabara, o pobre! Mas seu Persilva não se precipitou. Fácil e até muito vantaj oso para si — ele bem que via — contar tudo o que descobrira; desfiar a meada ali mesmo no alpendre, naquela hora de desconsolo, arribar o ânimo de seu Tonho e da parentada reunida, todos eles cobertos de ódio e arados de vingança. E isso, logo em seguida ao fiasco de seu Bolivarão e do seu Xisto do Engenho... Seu Persilva conhecia entretanto — e de muitos anos de convivência — o sistema e as manias do patrão e também de dona Dosolina. Inimigos de muita conversa e intrometimento, apreciavam mas era empregado guardador de reserva, cego e surdo-mudo, de acordo com a ocasião. Se falasse — sabia o capataz — seu Tonho ia, na certa, ficar mais esperançado, agradecer o serviço, elogiar — o patrão e os outros... Isso, no primeiro momento; mas, e depois? Esparramada a notícia, que nem fogo em coivaral, de quem seria a culpa, se o restante da história, o que estava ainda para vir, não desse mais certo? Quem é que ia perder a confiança dos patrões, escutar indireta e incriminação, ficar encostado na fazenda tal qual traste sem mais serventia? Não e não: o dono da notícia tinha de ser somente seu Tonho Inácio, mais ninguém. Se ele quisesse, por conta própria, abrir a boca, então paciência... Olho aceso, agoniado, seu Tonho não se continha: — Me avisaram da sua chegada; "tava j á ficando aflito, pensava até em mandar atrás do senhor... Pelo que eu vej o... O ar avexado de seu Persilva, boca fechada e cabeça descaída — aquilo era a má notícia em pessoa. — Nada de nada? — seu Tonho só faltava chorar. — Informação nenhuma, seu Persilva? — Muita prosa, muita inventação, seu Tonho... — dava pena de ver também a sem-graceza do capataz. — Mas pista de confiança... o senhor não há de ver... não houve modos de achar, não senhor... Quem pôs fim ao silêncio que se seguiu foi seu Eduardo, o irmão mais moço de dona Dosolina, o que era escrivão em Campanário: — Mas não é possível, gente!... Isso até parece brincadeira! Ninguém soverte assim, da moda de orvalho! Seu Persilva sentia que, se não falasse, se pelo menos não se desculpasse, cairia morto de vergonha: — O dianho é que o homem saiu muito mais primeiro que a gente, ganhou distância demais... E a chuvarada que desabou, seu Eduardo... O senhor sabe que eu sou prático, costumado com rasto de animal, difícil de me enganar... Mas com chuva ninguém pode, o enxorro lava tudo... Agora, não ficou um morador dessas bandas sem aviso; todo mundo "tá ciente, me j uraram de pé junto. Fui até no seu Calafate, lá na encruzilhada do Sobradinho... É veem o criminoso, terem no
dele, e o recado vem voando... — O senhor esteve no Valico Ribeiro, que ficamos sabendo pelo peão que o senhor mandou de volta... — seu Joãozinho Gusmão, o outro irmão de dona Dosolina, foi quem falou. — O senhor voltou lá de novo? — Não senhor, voltei não. Fui lá só a primeira vez. Seu Valico não sabia mesmo de nada, não senhor. — Mas também ainda estava meio cedo... Não tem uma estradinha que rodeia a cabeceira da serra, passando pelo arraial de São Miguel? — Tem sim senhor. Sempre desconfiei dessa estrada velha, da passagem pelo vau do Murici. Mandei também o Parecido avisar seu Tonho que era pra lá que eu ia. E fui, e rodei tudo aquilo, varri bem varrido esquisito por esquisito, vistoriei aguada por aguada, revirei que revirei...: São Miguel, o cemitério velho, a Retranca, o mimosal das Marrecas, o capãozinho... Antes, quando saí da fazenda do seu Valico Ribeiro, j á tinha também investigado a estrada que vai do arraial à boiadeira, j á quase na beira do rio... — O senhor disse que chegou até no capãozinho das Marrecas, na divisa de campo do Valico... — seu Tonho Inácio mostrou que bebia, gole a gole, as palavras do capataz. — E daí? — Desci cabeceira abaixo, até pertinho da sede do seu Valico... fui só até num retiro. Não acabei de chegar na fazenda porque o caminho que eu cortei "tava sem sintoma nenhum. Depois, voltar assim outra vez, e por dentro da propriedade dele, seu Valico podia até achar que era agravo... — "cê fez bem — seu Tonho Inácio concordou. — Nessas horas, aumentar inimizade é tolice. Depois, seu Valico é pessoa correta, não ia me fazer traição tão suj a assim... Seu Persilva não se aguentava mais. Seu Eduardo, o padre Pena, seu Joãozinho Gusmão... os outros... E ele, ali, de ás-de-copas, feito réu que devesse culpa. E ter de estar se explicando, pedir contemplação... Mas o que mais o magoava era o olhar desiludido, quase que de desconfiança, que o patrão não disfarçava. Tinha mas era de sair dali, fugir depressa, antes que arriasse a carga, falasse o que não podia. —... licença, seu Tonho — seu Persilva pediu então, os olhos fincados no ladrilhado do alpendre. — Vou ver se salvo dona Dosolina... — Pois pode ir. Ela "tá lá dentro, no quarto... mas "ocê é de casa, "ocê entra... Seu Persilva afastou-se. E o fez como devia, pois ninguém, dos que estavam reunidos com seu Tonho Inácio no alpendrão do sobrado, nenhum deles havia visto até aquele dia uma pessoa de aparência mais derrotada, mais sucumbida de humilhação! Mas seu Eduardo Gusmão, irmão mais novo de dona Dosolina, escrivão em Campanário, esse farej ara coisa no ar. Conhecia muito bem o seu Persilva, homem turrão e vaidoso, competente no serviço. Não, o capataz não era desses de voltar assim de mãos abanando, de samburá vazio. Naquele pau havia mel ! — convencia-se seu Eduardo, j á se dispondo a acabar com tal desconfiança. Sem despertar a atenção dos que seguiam conversando no alpendre, seu Eduardo desceu a escadaria de pedra da sede, e foi postar-se debaixo do caramanchão de maracuj á da porteirinha de entrada. Por ali passaria o capataz, quando se fosse de volta para casa; conversariam então a sós, e haveriam de entender-se — o escrivão tinha certeza. Mesmo porque os dois eram bons amigos, companheiros de jirau e barranco de rio, na pega de passarinho também. Em seus tempos de rapazinho, era ali na fazenda que o Eduardo ia passar as férias do colégio; não largava de seu Persilva, caçando e pescando j untos, ambos também com o igual gosto apaixonado por bicudo e curió. Homem feito, mais tarde, a mesma coisa; ultimamente, depois que se casara em Campanário, foi que, virado em escrivão no cartório de sogro, o tempo
havia-se tornado vasqueiro para o Eduardo. Mas suas duas, suas três vezes por ano, ele inventava sempre j eito de aparecer pelo Capão do Cedro, espingarda no
arção da sela, as varas-de-emendar enroladas num canudo de lona, as gaiolas dos chamas vestidas de pano preto de guarda-chuva acomodadas na garupa do cavalo. Seu Eduardo chegava, amadrinhava-se logo com o capataz, caía a dupla na gostosura do vício. Até tarde da noite, engarupados no jirau, ficavam conversando baixinho, contando histórias, enquanto os bichos não apareciam; na beira do rio, muito proseavam também, na espera da fisgada do peixe; e, no brej o, escondidos por detrás das moitas de marmela e capim- navalha, era o dia todo em contação de casos e mais casos, interrompidos somente pelo bicudo ou curió dono daquele trecho de banhado que apontava -ciumenta e valente ferazinha — para escorraçar de lá o cantador intruso, preso na gaiola de alçapão. Ocasiões em que seu Persilva se mostrava: bicudo por mais arisco que fosse acabava grudado nos arames de visgo que o capataz espalhava, bem disfarçadas pontas secas de galho, de permeio com a ramaria ao redor; tampouco escapava a caça, o jirau armado por seu Persilva j usto aonde ele adivinhava que ia passar a manada; e os maiores, os melhores peixes do rio, ele sempre é que pegava, j ogando o anzol na corredeira ou no poço mais rendoso! E os casos que seu Persilva contava, de burro fuj ão, abridor de porteira e varador de cerca, passador em pinguela de um pau só? E aquilo de descobrir, apenas espiando o barreiro apisoado da entrada do curral — a fazenda toda dava testemunho — o animal que faltava na tropa fechada lá dentro?! Não: pessoa assim — meditava seu Eduardo, esperando no caramanchão de maracuj á — não ia perder o rasto da bestinha novata em que fugira o criminoso, se deixar enganar por um peãozinho inexperiente, e dentista ainda por cima... Seu Persilva descia, afinal, a escada do alpendre. E ainda tão cabisbaixo, e aluado, que passaria sem dar tento do escrivão se este não se acercasse: — Então, companheiro, j á vai de volta para casa? — "tou indo sim... sim senhor... — parecia que o capataz se punha em guarda. — Pois vamos j untos. Já faz tempo que não proseamos um pouco... Lá do alpendre, seu Tonho Inácio viu os dois atravessarem o portão da entrada, caminhando rumo ao curral de grama. Seu Joãozinho Gusmão também viu. No olhar porém que os dois cunhados trocaram, nada havia que levasse à suspeita de terem eles maldado qualquer coisa. Razão sobrava ao capataz-de-tropa no j uízo que fazia de seu Tonho Inácio: pessoa avessa a conversalhada e abelhudismo, amante de reserva e ponderação. Outro qualquer que não ele, seu Persilva, teria ido apear à porta da sede, o alpendre entupido de visitas: exibir a roupa ensebada e a barba grande, o armamento dependurado do
arreio, o burro estropiado — se mostrar, alardear bravata. Ou, senão, proceder piormente ainda: ao dar com gente à roda do patrão, pedir logo um reservado com ele! Aí sim: destemperava a falação, se alastrava o corre-corre, os comentários ferveriam: seu-fulano- chegou, pegaram-não-pegaram, mataram-não-mataram... Olhem o caldo entornado, e com gamela e tudo! Seu Persilva, não. Parou primeiro em casa, tomou banho e trocou a roupa, deu tempo à siá Salvina para descarregar as novidades da fazenda; enquanto isso, ia deixando que o Zeca Caxico espalhasse pela colônia o fiz-e-aconteci particular lá dele — o que, trocado em miúdo, era mesmo apenas aquilo que o peãozinho não tinha ouvido e, muito menos, presenciado. Depois, então, se apresentar na casa da sede, proceder tal e qual como seu Persilva havia procedido: ao ver o patrão acompanhado, rabo entre as pernas e cara pancrácia de cachorro que perdeu o faro! A prova da razão de seu Persilva foi a resolução tomada por seu Tonho Inácio. O velho, sabedor pelo seu Eduardo de que o capataz trouxera informação — e informação muito importante — mandou que o cunhado voltasse à colônia com a ordem: — O Tonho quer ver o senhor com urgência, seu Persilva. Ele j á está ciente de tudo o que o senhor me contou — o mano Joãozinho também. E o que combinamos lá na sede, os três, foi o seguinte: o Tonho vai lhe dar, na frente da família, das visitas, do padre Pena, de todo mundo... — o velho vai lhe determinar que o senhor me acompanhe até no Campanário, devido aquele diz-que da passagem do José de Arimateia pelo Caramuj o... — não sei se o senhor j á sabe: um pessoal de velório numa casa de tábuas... Ahm... j á soube? Pois bem: mas isso é só para despistar, o senhor me entende... Não: de mentira é só a conversa do Caramuj o. A viagem ao Campanário é de verdade... e amanhã bem de madrugadinha... E, antes que o capataz voltasse à salinha de j anta e à cozinha apinhadas do povo da colônia: — Lhe espero aqui fora, seu Persilva. O senhor entra, calça as botinas e veste o paletó; e não faz mal nenhum em j á ir soltando a notícia pro pessoalzinho que está aí: que eu mais o senhor, amanhã bem cedo, estamos de saída para o Campanário... que o criminoso foi visto mesmo lá pelas bandas do Caramujo...
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O VERANICO SEGUINTE às chuvas caídas na véspera e no dia do crime transformara o massapé da estrada boiadeira num coscorão duro e vidrado, sonoro à marcha bem ferrada das montarias. Eram duas, viaj ando parelhas a fim de que os cavaleiros pudessem conversar sem necessidade de altear de muito a voz. — O senhor precisava de ver, seu Persilva, a cena que foi a chegada, ontem de noite, da Rosária mais do lrineu e o Isidoro. Pensei até que a Dosolina não resistisse... — Hoj e cedo, quando levantei, a Salvina me falou. Eu devia de ter ido lá na sede pra ver eles, mas fico um molambo, seu Eduardo, quando presenceio quadro triste assim... Depois, irmandade tão unida... principalmente como era seu lrineu com seu Inacinho: tão agarrados, unha-e-carne um com o outro... Quando seu Inacinho resolveu parar de estudar e ficar com o pai, aj udando no Engenho... — hoj e eu lhe conto, seu Eduardo — palavra que tive um pressentimento... Menino novo, esfogueteado, no meio dessa porção de mocinha donzela... Já seu Irineu, não: rapaz sério, até que meio seco... — O lrineu está que dá pena: queria porque queria viaj ar hoj e com a gente. Jurou que não volta mais para a academia, enquanto não vir o irmão vingado. — Seu Tonho pôs ele a par? — Me falou que não, me garantiu que não foge do combinado: só quem sabe é ele mais o mano Joãozinho, tirante o senhor e eu. Ahm... me diga uma coisa, seu Persilva: aquele peão pequetito, o tal Zeca Chico, ou Zé Caxico, não sei direito, ele está mesmo na ignorância de tudo? — Por completo. O sol esquentava, doíam ainda as pernas de seu Eduardo, por causa do trote forçado da viagem ao Capão do Cedro logo em seguida à chegada ao Campanário da notícia da morte do Inacinho. E mais uma noite sem dormir, os desmaios repetidos da irmã, a trançação sem parar das mulheres pelos corredores do casarão, a dor-de-cabeça que o éter dava, o amoníaco, o óleo-canforado... E a viagem ao Campanário, agora, o dia inteiro de marcha debaixo de um sol daqueles! Seu Persilva, esse, se não lhe desse corda -temia o escrivão — acabaria por calar-se, decerto que também estrompado pela correria da afadigada semana. O j eito era atiçar o companheiro, estumar a vaidade dele: — Às vezes, eu fico pensando, matutando, admirado de pessoas assim como o senhor, seu Persilva. Quanta coisa "ocês aprendem nessa vida que "ocês levam! Isso que o senhor me explicou ontem, a história de se poder conhecer a espécie de animal de sela pelo rasto — se cavalo ou burro — isso se descobrir se comeu capim ou comeu de embornal... se foi milho, farelinho-de- arroz ou rapadura... se o batido da marcha foi toque viageiro ou toque atropelado... e tudo somente pelo aspecto e a cor do estrume!... Risonho de cara, seu Persilva escutava a prosa macia do companheiro de viagem. Tão agradado ficou, que bocou o engodo: — A obra do animal também é boa, aj uda... Mas, ainda não lhe ensinei o modo de se saber se um cavaleiro "tá ou não está com pressa? Não? Pois então vej a que simplicidade: é pelo j eito do chão onde a montaria ficou amarrada: de cabresto comprido, ela vai comendo a grama e abrindo roda espaçosa em volta do palanque — proceder de viaj ante folgado de prazo, deixando o animal encher bandulho à vontade... A gente, seu Eduardo, tem de aplicar, nessa
nossa vida, porção de austuciazinha... lidar com tropa ensina muita nequícia! O senhor vigia: na roça, antes ainda de menino engatinhar, o bichinho j á aprende a amontar em pelo... O capataz estava mas era muito bem disposto, e seu Eduardo se animou: — Me conta, mas me conta bem contado, como foi que a mulher de dor de dente viu o José de Arimateia passar... reconheceu a mula... O capataz soltou a risadinha: — Mas o senhor "tá enganado! A mulherzinha viu mas foi um peão- de-gado qualquer, montado num machinho baio... É porque não lhe relatei direito como é que se deu essa passagem. Agora, lhe explico. Seu Persilva fez o burro abeirar-se mais ainda do cavalo em que montava seu Eduardo, e principiou: — Quando entramos em São Miguel, eu mas o Zé Caxico, j á "tava tarde da noite. O Lisiário não sabia ainda de nada, todo o mundo lá do arraial tam"ém na ignorância, pois, com a mudança da estrada pro Porto, o movimento deles arruinou de uma vez... Apeamos na venda, a mulher do Lisiário se levantou tam"ém, fez comida e eu então comuniquei a desgraça pra eles. Comuniquei, e pedi pra não fazerem segredo dela, e sim para esparramarem a notícia bem esparramada, casa por casa de São Miguel. Como "tava ainda meio escuro aproveitei e fui tirar um sono... — O senhor foi-se acomodar, e, quando o dia clareasse, o Elisiário mais a mulher iam começar a plantar o verde... — Mas até lá pelas seis horas, seis e pouco, quando acordei, eles não tinham ainda colhido o maduro não... — seu Persilva emendou ao pé da letra. — Mas a venda lotava de gente... —... trazendo as novidades: a besta do criminoso começou então a surgir, a deixar rastro, aparecer aqui e ali... — se adiantava seu Eduardo. — Não, não tinha ainda notícia nenhuma não. A besta não aparecia, porque, nessas horas, a gente tem de adotar velhacada... contei pro Lisiário o milagre, mas muito pouco do santo. Disse quem era o criminoso, mas não revelei sinal dele nenhum, nem tampouco do animal companheiro dele... se era burro ou cavalo... Me especularam, o Lisiário e a mulher, mas eu desconversava, dava sempre um j eito de deixar a coisa meio por alto. O senhor "tá me entendendo: se eu falasse a verdade, então sim, começava a inventação... E eu acabava, mas era que nem barata-tonta, correndo pr"aqui, acudindo pr"acolá... — Igual o seu Xisto do Engenho... — seu Eduardo sabia mesmo agradar ao companheiro. — Foi conversar além do que precisava, lá no Campanário, e ficamos nós todos naquela confusão danada... Até enxergar o cavaleiro dando água pra besta, eles enxergaram, aquele povinho sem-que-fazer do Caramuj o... — Pois é... Mas quando eu digo as coisas, seu Tonho pode até pensar que é enxerência minha, que é despeito... — E o Zeca Chico, estava instruído também? — Esse "tava proibido até de pensar, quanto mais de abrir o bico; peão meu conhece minha regra... não se salienta não! Mas, como a espalhação da notícia custava a render efeito, resolvi dar uma olhadela por perto, vistoriar uma passagenzinha que eu sabia existir por trás dum cemitério velho. Mas, antes de sair da venda, recomendei pro Lisiário como era que ele tinha de proceder : se surgisse alguma informação que prestasse, então era pr"ele segurar a pessoa na venda até a minha volta. E fui, mais o Zé Caxico, pro caminho abandonado do cemitério; nem bem eu começava a revistar a porçãozinha de trilheiros que tem lá, escutei então um meio-galope; me virei, me preparei pra ver quem era o cavaleiro, e lá envinha o Lisiário atrás de mim! Ele então informou: era o marido da mulher, a tal sicrana de dor no dente. O homem tinha aparecido na venda, comunicando que a mulher dele havia levantado da cama para pôr soda caus"ca numa panela-de-dente que não deixava ela dormir, quando, nisso, "viu latido de cachorro, e escutou um tropel apagado lá fora... Aí, ela, foi, pegou e espiou por uma greta da parede e avistou um cavaleiro... — Vindo dos lados do cemitério velho... — É, mas j á depois de ter arrodeado São Miguel; a dona dis" que viu o cavaleiro na horinha que ele desvirava do atalho, ganhando j á a estrada da Retranca. Avistou ele, mas não divulgou direito se era cavalo ou burro, se era égua ou se era besta... — Espera um pouco, seu Persilva — o escrivão interrompeu para arrumar as ideias. — O senhor, nessa hora, estava ainda lá perto do cemitério, conversando com o Elisiário... recebendo dele a notícia da chegada na venda do marido da mulher... Isso se deu na quarta-feira de manhã; quer dizer que foi só na terça de noite que o cavaleiro passou por São Miguel... — Não senhor. O marido da mulher disse que ela tinha visto o cavaleiro mas era na segunda- feira, uma noite antes da noite da minha chegada na venda do Lisiário. Mas me deixe lhe contar tudo como foi que aconteceu. Voltamos pro arraial, o Lisiário mais eu e o peão, pois o Lisiário me aconselhou a ir conversar com o homem: dis"que era pessoa de pouco aparecer na venda, ocupado sempre lá com a obrigação dele, carapina de tulha-de-mantimento e roda-de-fiar... merecedor de atenção — o Lisiário me garantiu. Passei na venda, larguei lá o Zé Caxico, peguei o marido que "tava me esperando, e toquei logo de uma vez com ele mais o Lisiário pro
rancho do finzinho do arraial. A dona me repetiu o sucedido, muito seriazinha, sem acrescente ou exagero: tinha avistado um cavaleiro, mas porém só o vulto dele. Aí foi que me lembrei: havia chovido bastante na noite de segunda-feira, mas chuva de culatra, espaçada, de manga... e a lua no pino da cheia... Mesmo com o tempo revoltoso — chovia, parava, chovia, parava outra vez... — a claridade devia de ser suficiente pr"a mulher ter avistado mais alguma coisa. Então fui proseando com muita cautela, esperei ela ir fazer café, fui puxando por ela devagarzinho, aj udando a ideia dela... até que, uma hora, ela se lembrou dum relampeado que deu no pescoço do animal... o cavaleiro assim meio de frente, no ele ir destorcendo a montaria e ir ganhando a estrada... — O peitoral de argola! — não se conteve seu Eduardo, quase que gritando, recordado da descrição da montaria de José de Arimateia, feita na véspera pelo seu Persilva. E lhe acudiu também a lembrança da birra do capataz por peiteira e rabicho, atavios que ele não permitia peão seu usar hora nenhuma. Aproveitou a vaza, boa para entusiasmar mais ainda o companheiro de viagem: — Estrumela, como o senhor diz, de peão semostrador, pomadista! — Pois é o que eu vivo falando! Animal de sela meu, ou de peão de minha responsabilidade, não anda de coleira não... Depois, aquilo é tralha que só serve mesmo para atrair faísca, ainda mais com montaria ferrada dos quatro pés... Raio e malefício, seu Eduardo! — Aí, o senhor, informado do peitoral, perdeu a dúvida... acabou de acreditar na mulher... — O senhor sabe? Fui vendo aquela mulherzinha do carapina, fui acreditando nela. A gente vai vivendo, vai aprendendo a conhecer as pessoas... Mas um restinho de dúvida sempre fica, e o que acabou mesmo com a cismazinha foi o tal relampeado, o astro que brilhou nas argolas da peiteira... Porém a ocasião não era ainda de mostrar cara satisfeita, nem de dar o alarma. Sei muito bem como é que seu Tonho Inácio apreceia um serviço... Principei, mas foi ver se embaralhava a mulher, turvava as ideias dela, mo"de ela se esquecer do que tinha enxergado, e só se recordar do que não tinha visto... Tomei mais outro café, fui dando linha outra vez, obrigando ela a me explicar tudo de novo: a hora que ela levantou para pôr a soda caus"ca no dente, quando foi que o cachorro latiu, o repinicado do tropel lá fora... Ai é que precisava d"o senhor "tar junto, seu Eduardo! Quando a pobre falava
"animal", eu pegava e torcia para cavalo; quando dizia "cor meia clara", eu consertava com j eito para cor baia; quando tornava a se lembrar do astro no pescoço da montaria, eu pegava e entrava com uma rédea-de-três-argolas, depois com um guampo-de-boca-de-prata; enfiei no meio da nossa conversa até uma taca-de-cabeça-de-bola... tudo trem de metal, brilhador... Pus tanto bicho-de- goiaba na cabeça da coitadinha que, no fim, ela tinha avistado mas j á era só aquilo que eu queria... — Então a besta douradinha do José de Arimateia acabou virada em cavalinho baio! — soltou risada seu Eduardo. — Baio-amorim, cambrainha de tudo!... E o cavaleiro, amontado nele, virado num peão-de-boiadeiro, e munido de guampo de beber água na cabeça-do-
arreio, rédea de argolão, daquelas que eles usam na Chapada, relho desses de se lidar com boi-arreador — de cabeça de bola... E, para completar a figuração, me despedi do carapina mais da mulher com a cara mais desanimada da vida, explicando pra eles que o cavaleiro em questã" devia de ser mas era algum peão retardado de comitiva, desguaritado àquelas horas da noite, atrás de alguma rês fugida. E voltei, eu mais o Lisiário, pra venda... — Mas, agora, j á estava precisando d"o senhor começar a explicar, lá em São Miguel, como é que era mesmo o animal do José de Arimateia... Senão, como é que o senhor ia ter tanta certeza de que o cavaleiro enxergado pela mulher de dor-de-dente não era o criminoso? — Ara, seu Eduardo... parece até que o senhor não me conhece direito... Esperei mas foi só j untar mais gente na venda do Lisiário... Quando chegou a hora, dei o romaneio completo: a besta, altona duns sete palmos, a pelagem cor-de-gema-de-ovo... o criminoso, esse, reforçadão por igual, sombreiro de aba larga e parelho completo de brim, o saco de mantimento na garupa... E disse pr"eles tam"ém que eu ia mas era voltar para beira do rio, caçar o rasto do José de Arimateia noutro ponto... — E o Elisiário? — O Lisiário, seu Eduardo, é pessoa minha amiguíssima, de anos... Homem morteiro, dentrista... Deve de ter desconfiado que eu "tava mas era fazendo mironga... Mas não perguntou, não falou nada; ficou quieto. Só sei que, quando eu saí de São Miguel, depois do almoço, saí mas foi num rumo muito diferente da Retranca; deixei de ilusão perdida d"o criminoso ter cruzado por ali o povo daquela corrutela de arraial... Dei volta, mas fiz o serviço bem-feito! Seu Eduardo, entretanto, não estava de todo satisfeito — se via pelo arzinho de dúvida que lhe pairava ainda pela cara. Seu Persilva adivinhou, porém, o que faltava na história para que ficasse bem alinhavada e arrematada: — Já sei o qu"e que o senhor "tá "magicando. É que, depois que eu expliquei pro pessoal da venda do Lisiário como é que o criminoso "tava montado — o porte e a cor da besta, a arreata... — a mulher do carapina ia acabar sabendo, e podia então se lembrar do ar-de- espelho, do astro que brilhou no pescoço do animal... desturvar de novo as ideias! Mas eu penso em tudo, seu Eduardo, e lhe agaranto: se teve palavra que eu não falei, ali no arraial de São Miguel, hora nenhuma, foi a azarenta palavra peitoral...
12
SUBIA O SOL, o calor aumentava. Mas a viagem rendia -j á deixados para trás, há muito tempo, o Ribeirão do Pato Bravo e a Baixada dos Santos Reis. Seu Persilva continuava a história: a saída de São Miguel, a volta que teve de dar a fim de despistar o povo do arraialzinho, as seis léguas sem parada até o ranchão de pouso da Retranca, a conversa sem proveito com a família dos papudos que vivia ali. Seu Persilva continuava a história: a saída de São Miguel, a volta que teve de dar a fim de despistar o povo do arraialzinho, as seis léguas sem parada até o ranchão de pouso da Retranca, a conversa sem proveito com a família dos papudos que vivia ali. —... não tinham visto nada, sabiam de coisa nenhuma, não senhor. Depois, só mulherada e menino... e tudo j á de papo crescido, parecendo até que de nascença: povo doente, meio bobo... Mas comi e descansei o tanto que precisava. Também, aquela foi a primeira noite de sono bem dormido, des" que saí da fazenda do seu Tonho... De manhã muito cedo, me levantei e arreei o burro; e expliquei pro Zé Caxico a obrigação: ficar parado, ali no
rancho, puxando prosa com a mulherada. Pra isso, não tem ninguém melhor que o Zé Caxico: lá no Curral de Esteio, enquanto eu "tava ocupado com seu Valico Ribeiro e passava pela madorna na casa da sede, o peãozinho botava o dedo na goela da mulher e das meninas de seu Eulálio... — e elas vomitaram o que ele quis. Seu Eulálio tinha um filho-homem de nome Damastor, muito amigo do José de Arimateia; o rapaz era casado, e morava com o sogro num retiro, na beira de um ribeirão — as Marrecas; o sogro se chama seu Gervásio, a sogra siá Jeroma, a filha deles, casada com o Damastor, o nome dela é Zilda... E até que essa, casada no começo do ano, j á estava de enxoval pronto, esperando por criança... — Peão bom de serviço, de utilidade... — Mas serviço só de boca: come, que o senhor carece de ver o tanto! Bebe feito um gambá, e não tira o toco-de-cigarro dos queixos... cantador de viola que nem ele... E, para conversar, principalmente com mulher e moça, o rapazinho "tã apartado... — E assovia, e chupa cana, toca flauta... — seu Eduardo se divertia. — Flauta eu não agaranto não... Mas gaita... Porém o Zé Caxico me disse mais: no retiro do seu Gervásio só mora ele e o genro, o Damastor... Como o senhor vê, parecia que eu "tava inzonando, perdendo meu tempo, saracoteando à toa; mas eu "tava era aj untando as manilhas, guardando elas pra derradeira mão. Mas — eu lhe contava — deixei o Zé Caxico no
rancho das papudas, mandei a velha da cozinha me arrumar um pouco de farinha de mandioca, uma talha de carne-de-sol, fritar ovo... Botei a matula na capanga e, o sol não tinha ainda acabado de sair, eu j á tocava, sozinho mais meu burro, pro campo de mimosal... Queimado cedo, a chuva caída nem que fora de encomenda por cima da cinza quente, o mimoso havia brotado e crescido tão gramado e sadio que as Marrecas pareciam um j ardim. Mas a tropa solta no campo poupava ainda o mimosal, entretida com a brota do capim-fino que margeava o chão molhado da cabeceira abaixo. Um descampado, vazio e quedo, a meia-bacia de campo limpo no meio da qual o capãozinhode-mato surgia — uma bola de redondo e espesso — altaneiro de puro mangue, pombo e buriti. O criminoso havia passado j á bem de noite pelo arraial de São Miguel — dúvida mais nenhuma perturbava os pensamentos de seu Persilva, depois da informação da mulher de dor-de-dente. Não
podia, pois, ter chegado ao capãozinho das Marrecas antes de amanhecer o dia, por mais que atropelasse a besta. E, apesar do sossego do campo de mimoso, não iria arriscar-se a ser visto por alguém, cavaleiro ou peão de ali por perto que andasse cruzando casualmente pela estradinha da Retranca, ou madrugando no campeio da tropa reunida na queimada. O que devia de ter feito o fugitivo — meditava o capataz — era haver-se metido logologo pelo capãozinho adentro, dado água à mula estropiada, tratado também de descansar o corpo... — dormir, afinal, depois de tão comprida e custosa correria. Mas, por onde se enfiara o José de Arimateia, onde fora ele abrir caminho naquele emaranhado impossível de ramaria e cipoal? Seu Persilva apeou o burro e amarrou-o num ramo da
pindaibeira. Começou a descer então, a pé, pela orla do capão-de-mato — vagaroso, prático, nada deixando sem revista, moita alguma de capim ou ramo, nada sem ser aberto e esquadrinhado pelo cano da carabina, mexido e investigado. Mas o capataz não precisou de andar demasiado: vinte braças, talvez até que nem isso, e ali estava a certidão! E bem na alturinha dos j oelhos dele, num ramo maduro de cipó-bengala: a mechazinha de crina, enrolada e agarrada, tal e qual cabelo em pente, na unha curva de um daqueles medonhos espinhos do cipó! E como se não bastasse o punhadinho de crina, apontava também, logo adiante, o talo ainda verde de um broto de embaubeira, decepado rente ao galho pela bocada faminta do animal. Seu Persilva apanhou a trançadinha de crina, desfiou-a na mão, e a cara dele se abriu num risozinho alegrezinho. Crina de cauda, e amarelo-castanha, Camurça... — ele reconheceu. Imaginar o que se havia passado ali na beira do capãozinho, serviço foi de um instante apenas: o cavaleiro a forçar entrada na pindalôa, a besta a trastej ar; o cutucão de esporas e, então, o rabej o de cauda que animal de sela nenhum dispensa ao sentir a ferroada nas virilhas... Escapar de um roçado em fisga de cipó-bengala... quanto mais crina basta e comprida da cola de uma montaria bem zelada... Pois sim! Peão recruta, inocente... — o risozinho de seu Persilva era agora uma risada de deboche. — Decerto fora o bobo usar as mãos para fazer caminho na ramagem, esquecendo as rédeas soltas no santantônio do
arreio; o animal se aproveitara então do descuido para ir comendo, lado e outro, o que lhe oferecia a vedada e fresca
pindaibeira. Pelo menos, três... não: quatro boas bocadas dera a bestinha do José de Arimateia nos ramos das beiradas da passagem: a primeira no broto da embaúba; a outra, na moita nova de erva-d"anta entrançada de ipezinho; à esquerda, mais duas, e rendosas, numa touça baixota de j aborandi. Guiado por esses vestígios, seu Persilva chegou à nascente d"água que cantigava, fervedourazinha, na areia solta e branca. Ali, sobravam mais sinais: o desbarrancado da beirada mole da mina d"água, os dois pilõezinhos gêmeos calcados na areia pelas mãos do animal, a broa empelotada de estrume — preta, encardida da rapadura — ainda úmida devido ao orvalho da nascente; aqui e acolá, o tantinho comido de cipó-caboclo e cana-de-macaco, a muda inteirinha de taquarinha-do-brej o, arrancada mas largada e caída de raiz para cima — com certeza na hora da apressada despedida de tão abençoado lugar. Mas o fugitivo demorara-se muito pouco à beira da mina d"água — seu Persilva concluíra. Amassado de ramo nenhum aonde tivesse ele estendido os baixeiros do
arreio, o pouco de broto pastado pela besta, um montinho só e reduzido, do estrume dela... Ahm!... — avistou então o capataz: cruzando a mancha de capim, descia a batida, cabeceira abaixo... Na beira do corricho, num limpo aonde mal chegava o sol por causa do arvoredo alto, o capim- membeca não ganhara ainda forças para reerguer-se, novamente. O trilhozinho que se escapava, mui sorrateiro, por entre as folhas tenras de queimada, era como se fosse um descuidoso caminho aberto de recém.
A estrada boiadeira cortava agora a zona dos varjões — a água represada pela enchente espalhada ainda pelos baixios beira-rio. Seu Eduardo observou: — Olha o tanto de garça e socó empoleirados na copas do buritizal... Ih!... Vigia o bando também de peixe, abrindo água... Ah, uma boa rede de malhar aqui, agora! — Curimatã, papa-terra, seu Eduardo. Peixe que não me serve nem pra isca de anzol. Bom deve de estar mas é nas barras, com essa enchente... Domingo passado, j oguei mas foi o j acá de milho na barrinha do Valete; e hoj e, de manhãzinha, na hora que eu saí, pedi à Salvina que me fosse botando mais. Corgo pra p"racanj uba é aquele... — Valete... Engraçado, seu Persilva: o senhor me fez recordar agora do seu Mendonça. Foi ele quem pôs esse nome no ribeirãozinho da fazenda... — Foi sim. Primeiro, botou o apelido no seu Geraldo dos porcos, mo"de a barbinha que ele usava no queixo. Depois, o poço do fundo do chiqueiro é que ficou com o nome... e acabou o corguinho virando o corgo do Valete... — Homem gozado, o seu Mendonça. Pr"onde é que será que ele anda agora? — Sei não, seu Eduardo. Depois que largou de mascatear j oia, nunca mais voltou na fazenda. Criatura boa... Louco pr"uma fritada de piabinha e lambari... Era o calor, a canseira — seu Eduardo percebia. Tinham parado para almoçar, e o sono chegava, aj udado pela andadura maneira dos animais por sobre a areia que cobria aquele trecho de estrada. As pernas voltavam a incomodar, começavam a doer também as cadeiras, os músculos do pescoço... E a conversinha enj oada, sem muito assunto, morre-não-morre, não ia se aguentar por mais tempo. Bem que seu Persilva procurava prosa, pelej ava... Acabariam mas era de ter de parar outra vez, ir tirarem, os dois, um cochilo debaixo de alguma sombra. Mas seu Eduardo reagiu, que desej ava chegar ao Campanário o mais cedo que pudesse: — O senhor me contou que, depois que descobriu o lugar onde o José de Arimateia entrou na pindruôa das Marrecas, achou também a batida dele, numa queimadinha nova de membeca... — Pois foi... E segui por ela, renteando o corguinho por dentro da cabeceira. Fui descendo, até que cheguei num curralzinho de madeira branca, onde tinha também uma tapera velha. O lugar era uma aguada, e a tropa "tava recanteada ali; o retiro, esse j á "tava bem perto, que escutei cantiga de galo e berrado de bezerro, Resolvi então deixar o burro escondido na pindaíba, e caminhar, de a-pé, o trecho que faltava. Seu Persilva parecia também disposto a combater a lombeira, pois estacou o burrão preto: — Me deixa fazer primeiro um cigarro. E seguia falando, enquanto picava o fumo: — Fui descendo... Eu "tava bem armado, a guaiaca carregada de bala. Mas, não demorou muito, encontrei a barrinha da outra cabeceira... — Na tal onde o José de Arimateia amoitou a besta... — Foi sim senhor. Mas, como j á lhe expliquei ontem, não tinha mais nada lá. Só o espoj adouro, a porçoeira de estrume, o rapado em volta dum pé-de-capitão. Então eu achei, esquecida num canto, a folhona grande de taioba, a correição de formiguinha amarelinha, miudiquinha, carregando resto de ração de por cima dela. Farelinho de arroz, de monj olo, fubá de munho e sal... — esfreguei uma pelotinha na mão e provei: e j á com um principiozinho longe de azedo, de vesp"ra, mo"de o orvalho... E a peste da bestinha, que "tava-não-"tava pra aguar, começava a arribar, a desgramada... — O senhor conheceu, por estar ela j á comendo ração... — Comendo e bebendo muita água, tam"ém. Perto do capitão, era o corgo, e o lugar d"ela beber
"tava j á picado de casco. A filha da mãe, na horinha j á de ficar inutilizada por completo... eu j á dando ela por desenganada! Seu Persilva percebia a atenção do seu Eduardo, sabia dos gostos dele... : caprichou, por isso mesmo, mais ainda: — Mas não foi só pelas formiguinhas miúdas comendo a ração, e o barranco do corgo cortado de casco, que eu conheci que a besta "tava escapa, sarando j á do aguamento. Pelo estrume, tam"ém... — Ahm!... O senhor, um dia, começou a me explicar. Me ensina agora, me ensina... — O primeiro sinal, a mais primeira certidão do aguame da mula, eu j á tinha arreparado no capãozinho, na beira da nascente d"água: o montico reduzido da obra dela, encaroçada e preta assim que nem de cabrito — o resto da rapadura que ela j á não "tava mais digerindo direito... Porém na devesa, lá na barrinha dos dois corgos onde a besta ficou de resguardo, a gente j á notava a diferença, dum dia pro outro: a cor ficando verdolenga, aumentando mais o tamanho... mais solta... A derradeira obra da mulinha, na quarta-feira de tarde, na hora em que ela saiu da devesa, na vesp"ra, essa j á demonstrava... — Não! Não, seu Persilva! Essa, agora, o senhor tenha paciência, mas essa j á passou da conta! — seu Eduardo foi quem parou, agora, o cavalo. — Saber que a besta saiu da devesa na quarta-feira, na véspera, e de tardezinha ainda por cima!... Eu é porque lhe conheço, não acredito que o senhor estej a querendo me embrulhar... — Pelo amor de Deus, seu Eduardo! Não pense nunca num agravo desses... — e seu Persilva acabou se rindo também, quando viu a cara de braveza fingida de seu Eduardo. — O senhor escute. Tocaram as montarias de novo, seu Persilva de cigarro aceso, baforando a fumaça cheirosa: — É a prática que a gente tem, seu Eduardo. O senhor é porque nunca perde tempo com essas coisas, nem carece... sua ocupação é outra . O senhor pensa: o criminoso passou pelo arraial de São Miguel na noite de segunda-feira; beiradeou a Retranca na madrugada de terça, seguiu tocando cabeceira das Marrecas abaixo, parando só para beber e dar água pra besta no capãozinho... — tudo isso no mesmo dia, na terça-feira; chegou na devesa cedo ainda... — Está certo — seu Eduardo concordou. — Agora, eu. O senhor romaneia os dias, vigia se não entoa: terça de madrugada, na fazenda do seu Valico Ribeiro; quase que amanhecendo quarta, na venda do Lisiário; quarta de noite, eu pousei no
rancho da papudalhada da Retranca; quinta, bem de madrugadinha, foi que desci pelo campo de mimosal, achei a batida no Capão das Marrecas, topei com o esconderij o da besta... — Confere também... — teve de aceitar o seu Eduardo. Mas insistia, turrão: — Eu quero saber, porém, mas é como foi que o senhor adivinhou a hora em que a besta saiu da barrinha do corgo. E j á de tardinha, como o senhor disse que foi !... — Bom... — começou, muito sério, o capataz. — Pra mim, até que bastava a correição de formiguinha miúda, o resto tam"ém j á meio rançoso do farelinho e do fubá... Mas tinha uma outra certidão mais garantida ainda — todo tropeiro prático que nem eu, calej ado na obrigação, conhece ela, decifra... Animal muar, seu Eduardo, é muito regulado do intestino, ver um relógio; desonera sempre na horinha certa... e cinco vezes. E eu contei, e recontei... mas só as roscas de vésp"ra, as mais sadias. Só achei três: faltavam as duas outras parcelas de depois da j anta... Seu Persilva corria os olhos pela sombra da devesa. Por uma diferencinha de uma noite que não alcança a besta ainda amarrada na moita de mato da barra! Ah, se tivesse sido ele, e não o pamonha do seu Bolivarão! Se seu Tonho Inácio houvesse destrocado as ordens, na hora do afobo e corre- corre da saída da fazenda!... Mas não: no quente do alcança-alcança, do pega-pega, do mata-mata... a ocasião não era de discutir mandado nem de escolher obrigação. "O senhor, seu Persilva, o senhor
me desce a boiadeira, beiradeia o rio, atravessa, me vai até no Valico Ribeiro! O senhor aí, seu Bolivar, sobe pelo café, soca até onde o senhor achar que deve, me revira, de baixo para cima, essas cabeceiras de serra! "ocê outro aí, é o senhor sim, seu Xisto, pode j á ir tocando pro Campanário; avisa a família, os meus cunhados, manda eles passar telegrama, vai co" eles na polícia!... " Não, ninguém podia refletir direito, naquela confusão, o pobre do seu Tonho que nem um desatinado. Mas ele, seu Persilva, sabia o que iria acontecer; estava ali, estava vendo: chegar seu Bolivarão ao barranco do rio, espiar a passagem do vau do Murici, ver a enchente; a feiura do golfo-d"água, a cachoeira urrando logo a par... Hã, hã... Comigo não, gavião!... Cadê a coragem do seu Bolivarão chuchar o burro na corredeira?! Que o criminoso não se encontrava mais no retiro, aquilo entrava pelas vistas; na sede, também não. Se ele tinha vindo buscar a mula na barrinha, era porque j á estava de viagem resolvida, de destino tomado. E de arma de fogo na cintura, dinheirinho na guaiaca, rumo e conselho na cabeça — tudo fornecido pelo seu Valico... Mas podia também não ser assim: talvez até que seu Valico ignorasse a presença do criminoso na fazenda — seu Gervásio e o Damastor acoitando por conta própria, correndo risco só eles dois. Já-j á porém a marosca ia clarear — seu Persilva estava certo disso. Percorria os olhos pelo chão amassado de ramo e aparado pela besta, erguia-os para as copas dos pés-de-pau que fechavam a acanhada barrinha dos dois córregos, parou-os na altura grossa e no denso miudinho do folhedo de um pau-d"óleo. Árvore altaneira e encorpada — ele observou e mediu boa, sim, além até do que carecia... Seu Persilva decidiu-se. Carabina às costas, abraçado ao tronco — um macaco velho de desengonçado, mas desenvolto e forçudo ainda — o capataz galgou tora acima. E pouco se demorou enganchado na forquilha mestra para retomar o fôlego, pois logo se acomodava num galho rij o da árvore, bem oculto no meio da rama espessa. Via, como em pintura colorida de folhinha: a palhoça de lascas de coqueiro rej untadas de barro cinza, quase branco, o telhado lavado de chuva e amarelinho da trança de buriti — tudo lustroso do sol a meia altura; o curralzinho em frente, as duas mangueironas carregadas de fruta, o carro de boi de cabeçalho escorado no chão — penso, vazio e só. No fundo, próxima, a serra vestida de mataria verde-preta; o céu plaino e inteiriço, azul, sem uma painazinha de nuvem; de vermelho, só o pano pendurado no arame do quintal — saia de mulher, baeta de criança, ou lenço grande, desses de velha usar. Os berros que tinha ouvido antes, quando vinha se aproximando do Jirau Velho, eram aqueles dois — marmanj ões e ainda guaxos, tratados decerto por mão boa de mulher, em porta de cozinha, a soro de leite coalhado e resto de comida. A desinquieta trincazinha carij ó de angola, um galo pescoço-pelado, todo branco, se equilibrando na pilha de lenha, o cachorrinho novo quentando sol. Mora os bezerros e a criaçãozinha miúda, mais ninguém — seu Persilva divulgava. Dava até para fumar — e quase que ele se arrisca, ferroado pelo vício impaciente em ocasião solitária assim, em espera de jirau. Havia porém outro expediente para se acalmar a vontade, j eito que deu seu Persilva: cortou com o casqueiro saliente da unha pedacinhos no torete de fumo, j ogando aquilo à boca e começando a mascar. Se aguentaria, agora, se preciso, o dia inteiro no topo do pau- d"óleo; não arredaria mais dali enquanto não soubesse do que precisava saber.
A primeira pessoa que apareceu, saída da meiágua dos fundos, foi a moça de latinha de alça e garrafinha de café. Atravessou pela frente do
rancho, tomando o rumo da cabeceira do outro córrego. Mas parou logo adiante, virando e se abaixando, fingindo de ameaçar j ogar pedra no cachorrinho que queria porque queira ir atrás. Gordona e j á vizinha de adoecer — seu Persilva reparou, lembrando- se, ao mesmo tempo, da informação colhida pelo Zé Caxico na casa de seu Eulálio. Era a Zilda, mulher do Damastor. Mas seu Persilva não pode segui-la com a vista por mais distância, porque logo ela se encobriu na moita de mato beira-corgo. Não teve entretanto de esperar muito, até que ela voltasse, agora sem mais latinha e garrafinha na mão. Almoço para o pai ou o marido — fora fácil de seu Persilva calcular; mas almoço para uma pessoa somente: pelo tanto que cabia na vasilha, a comida dava apenas para um deles, seu Gervásio ou o Damastor. E, se a latinha de alça havia ficado, era porque sobrara um resto para o requentado do meio do dia... Ahm!... Hum... quem sabe?!... e a ideia crepitou de repente na cabeça do seu Persilva — quem sabe se o almoço não havia mas era sido levado para o José de Arimateia, a besta mudada de esconderij o, amoitada agora j unto dele e em outro reservado lugar?! Excitado da ideia que lhe chegara, sem saber contudo se contente ou enraivado com ela, seu Persilva vacilava em se decidir. E o tempo passava, o pedaço comido de carne-de-sol e o fumo mascado principiavam a dar uma sede ardida na boca. A hesitação durou pouco porém: tronco abaixo — menos pesado e mais lesto — viu-se ele novamente no chão da devesa. Seguro j á de que ninguém andava ao derredor, agia então com mais desembaraço e afoiteza. Bebeu do que quis no córrego, molhou as mãos e a cabeça, lavou a boca do ranço amargoso do fumo em corda. Cano da carabina a abrir caminho novamente, seu Persilva subiu margem acima o outro córrego da barra, disposto a descobrir, de uma vez, para quem a Zilda, mulher do Damastor, tinha levado aquele almoço. Voltava caminho, as ideias mais claras — tudo se compondo, coisa a coisa, em seu lugar. Na cabeceira do córrego, era seu Gervásio quem carpia a cana plantada de pouco — e sozinho, sem companheiro. Tão limpinha a derrubada que o velho fizera no terreno, tão nova a cana mal apontada no chão queimado da roça, que o capataz nenhum trabalho teve, tampouco perdeu muito prazo em averiguar o desej ado. Lá estava seu Gervásio agarrado à capina — a cabeça branca, as costas sem camisa, pretas de tanto sol — lá se via também, pendurada na forquilha de um tronco encarvoado, a latinha de folha, de alça. Empezinha, encostadinha ao pau, a garrafinha de café. Chegou de novo à barra, mas não parou mais ali. Seguiu pelo ribeirão — grosso das duas águas emendadas — buscando distanciar-se do retiro para atravessar de margem e achar a estradinha que descia do outro lado. A estrada — seu Persilva havia guardado de cabeça, quando estivera na fazenda — entrava nos currais pelo lado em que ele se encontrava, mas o ponto onde ela cruzava o ribeirão, esse seu Persilva ignorava; podia ser que afastado da sede, podia ser de pertinho de lá... Mas o capataz seguia descendo, esperando para vadear o ribeirão onde fosse mais favorável. Caminhava, cuidadoso mas decidido, vagaroso mas cada vez mais próximo da fazenda. Avistou a estrada, quando ela j á pendia para o córrego. O vau estava perto. Estava sim, que,
logologo, apontou o primeiro esticador do pedacinho de cerca do barranco. Poucas braças mais adiante, a porteira apareceu. O pasto abriu-se então, repentino — limpo, rapado pelo gado que se acostumara a malhar ali na entrada da porteira. Tão cortado por foice e criação, que seu Persilva enxergou a casa da sede — o telhado alto, a varanda — rodeada do arvoredo do pomar, a fumacinha que subia do fogão de siá Domingas. Mais por perto, a vacada parida, de leite. Pressentiam vizinhança de pessoa forasteira que, vaca e outra, as novilhonas mais novas principalmente, se viravam erguendo a cabeça para os lados do vau, farej ando o ar. Ai-ai ! Era agora o enj oamento dos quero-queros... a voação assanhada deles, a gritalhadinha... Seu Valico Ribeiro, se andasse pela varanda e percebesse aquilo... — seu Persilva imaginava. Era preciso, entretanto, chegar até a beiradinha do vau, o trechinho de areia entre a água e a porteira fechada, ali onde a vacada de leite não podia descer para ir baralhar tudo, apagar os rastos de cavaleiro... A invernada de provisório da outra margem do ribeirão, essa parecia estar ainda sem boi nenhum, vedada — o capim se mostrava tapado e alto .. Ah, se ele, seu Persilva, tivesse sorte, se mais ninguém houvesse passado a cavalo pelo vau, se achasse os rastos que procurava logo ali tão pertinho, sem necessidade de seguir até a sede... Mais cinco, seis braças só de cerca, o barranco raso cortado pela descida da passagem... Nem carecia de ir até a porteira: agachado, quase que deitado no chão, foi que seu Persilva atravessou por baixo do último arame farpado da cerca. No cavado do vau, ficava oculto novamente. Deus aj udava: ali estavam os rastos de dois cavaleiros! E vindos do retiro, em direção à sede da fazenda. José de Arimateia e um outro, o Damastor com certeza: a besta douradilha e mais um cavalo... cavalo ou égua, pouco importava. O principal era a burrinha nova em que fugira o assassino de seu Inacinho; e essa passara ali no vau com o criminoso no lombo, levando-o até a varanda da casa da sede, para j unto de seu Valico Ribeiro e siá Domingas! Seu Persilva demorava-se em olhar os sinais cheios de água — rasos aqui, ali mais fundos — calcados na areinha fina da beira do ribeirão. Tão fininha e molhada, a areia do vau, que até os buraquinhos dos cravos da ferradura se viam — quatro de cada lado, repartidos por igual. Escolhendo onde pôr os pés — uma pedra, touça de grama, outra — cuidadoso com os próprios rastos que não queria largar na areia, seu Persilva abeirou-se mais da água. Aj oelhou-se, molhou as mãos e os cabelos, deixou que a frescura se escorresse pelo pescoço, lhe entrasse por dentro do colarinho da camisa. Ia beber, quando se recordou do Inacinho, a cabeça aberta a machado, a sangueira preta e coalhada no chão da rebaixa do
paiol de siá Gorgota. A gastura fê-lo levantar-se com noj o, sem matar a sede. Seu Persilva enfiou-se de novo por debaixo do arame farpado da cerca, e se escondeu outra vez na beiradinha de mato do barranco. Apertava o passo, quase que corria, sem descuidar-se porém. Precisava ainda de chegar, e depressa, ao corguinho das Marrecas, onde deixara escondido o burro. Montar, e voltar, à toda, para a fazenda do Capão do Cedro, lá onde o aguardava, decerto que morrendo de aflito, o infeliz do seu Tonho Inácio, o patrão. Passaram pela ponte do ribeirão do Fica-Anzol e começaram a subir outra vertente, afastando-se agora dos varj ões beira-rio. O sono passara, parecia que a canseira também. Seu Eduardo seguia querendo saber de tudo, curioso sempre, perguntador : — Eu sei que distinguir casco de burro de casco de cavalo não é nada difícil não. O de burro é mais estreito e mais fino, despontado; de cavalo, o casco é mais curto e redondo, mais aberto... Mas o senhor vai me explicar agora outra coisa, seu Persilva: está certo que, ali no vau do ribeirão, depois que o senhor j á havia encontrado o malhadouro da besta na devesa da barra... — sabia que ela estava no retiro... — está certo que tudo indicava que o rasto de burro que o senhor achou na areia era o rasto dela, da montaria do José de Arimateia... Mas vamos supor que o senhor não soubesse de nada: o senhor era capaz de reconhecer o rasto da bestinha, se visse ele num outro lugar? — Bom... o senhor é de casa, parente, por isso lhe conto... Mas peço reserva... Até hoj e, só quem sabe é o seu Tonho Inácio mais eu, e o seu Nacleto tam"ém. Seu Nacleto, o senhor conhece ele sim, é aquele pretão sacudido que trabalha na forj a do engenho; remenda tacha, faz corrente, bota aro em roda de carroça, mexe com ferragem... Seu Nacleto é quem ferra animal da fazenda, tam"ém. De primeiro, não sei se o senhor se alembra, era uma sumição de tropa que não tinha mais arrumação: burro alongado, burro fugido, burro roubado... Então, eu e o seu Tonho Inácio inventamos... O senhor me acompanha, vem ver... O capataz dirigiu o burro preto para a beira da estrada, fê-lo marchar por sobre o assoreado da areia que se acumulava naquela parte cavada pelos enxorros de chuva. — O senhor arrepara, põe sentido: o senhor não "tá vendo ali, atrás do casco, aquelas duas tirinhas mais fundas, os dois calços? Ferradura de rompão, mineira, é assim meia parecida com sapato de mulher, sapato alto, mas de dois saltinhos em cada um pé... Seu Tonho, mais eu e o seu Nacleto, resolvemos então arredondar e despontar mais um pouquinho os rompões de trás... Coisa à- toinha de nada, diferencica que ninguém percebe... Animal de sela ou de carroça, no Capão do Cedro, todos eles são assim... — Vej am só!... Seu Persilva parecia que titubeava, mas acabou por contar o resto do segredo: — E pessoa de fora, gente novata na fazenda, aparecida... um assim como esse José de Arimateia, a gente previne tam"ém... Só que é no volteado da frente da ferradura: seu Nacleto aperta ele mais, deixa um tiquinho mais virado e mais grosso... Voltaram a j untar-se as montarias, a viagem prosseguiu. Convencido de tudo, nada mais havendo a perguntar, seu Eduardo não deixava entretanto morrer a conversa; — Ahm!... Não lhe falei ainda, seu Persilva, dum chama-de-curió que eu tramei com o Miúdo, um dono de barbearia muito meu amigo, que tem lá no Campanário... Dei a troco três bicudos: dois baios e um pintão. Vou lhe mostrar o chama lá em casa, e o senhor vai ficar conhecendo também o Miúdo: vou levar o senhor no salão dele. Está que nem louco coitado, pr"eu trazer ele comigo, ficar uns dias com a gente, pescando e pegando passarinho lá no Tonho. O senhor vai gostar muito dele: e o danado do Miúdo... seu Persilva, toca violão que só mesmo o senhor vendo!
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SOMENTE DEPOIS de esperar por um bom pedaço de tempo — prazo que aproveitou para esquadrinhar o quintalzinho da chácara até onde dava a vista —, depois de se certificar de que nenhum vivente rondava pela vizinhança, foi que o Damastor bateu de leve na j anela dos fundos do chalé. O morador devia de estar acordado ou tinha o sono por demais maneiro, pois logo deu sinal de si: — Quem é? — O Damastor... Tr"uxe um recado do padrinho Valico... Uma troca de conversa cochichada que, do lado de fora, o chegante não pôde entender. Um riscado de fósforo, e o dono-da-casa de novo, a voz agora bem rente à j anela: — Arrodeia, que vou abrir a porta da cozinha. "cê "tá só, ou tem mais gente? — Sozinho e Deus. Seu Gumercindo abriu primeiro uma meia chave de fresta, esperou que a luz da lamparina clareasse a cara do rapaz; mandou então que ele entrasse, quando reconheceu os fiapos do bigode na pele cor de rapé, os oito palmos de porte. — Isso lá são horas... — resmungou o velho, só de ceroula e tamanco. — Cunhado Valico "tá bem? Siá Domingas? — Tudo sem novidade... — tranquilizava mais que a resposta o carão risonho do Damastor. — Que susto "ocê me passou! — era tia Rita que vinha também para a rebaixa. — Pelo visto, nem comer direito "ocê comeu no caminho... Esquento a j anta num instante. — Deixa, tia Rita; vim bem sortido de queij o e paçoca... Mas um café eu aceitava... E vou revirar nos cascos agorinha mesmo, que o padrinho Valico não quer que me vej am por aqui. — O que foi que sucedeu? Que recado doido foi esse que "ocê trouxe? — se impacientava o Gumercindo. — Desfia logo o rosário... — O senhor ainda não soube do crime no Capão do Cedro? A morte do filho do seu Tonho Inácio? — Ah... Fiquei sabendo sim. O criminoso é o José de Arimateia, aquele que o cunhado Valico mais siá Domingas embelengavam tanto... trabalhava ultimamente de dentista no engenho do seu Tonho Inácio... Quando vi "ocê chegar a essas horas, feito curiango, adivinhei logo que era por causa disso que o Valico te mandou atrás de mim... Aonde é que "tá o rapaz? "cês esconderam ele aonde? Damastor alargou ainda mais a cara, risão, por causa dos adiantamentos do velho: — O Isé veio j unto. Larguei ele vigiando a tropa naquele mangueiral do piquete do matadouro; vim de a-pé depois, pela invernadinha de gordura, até no valo do fundo da chac"ra; nem cachorro topei... A madrinha é que está muito aflita; dis"que só vai sossegar na hora que ver ele entregue pro senhor... — Comigo, no Sobradinho? Siá Domingas mais o Valico "tão mas é sem miolo de tudo! Deve de ter gente do seu Tonho Inácio esgravatando por todo canto; me admiro é como "ocês dois vararam até aqui ! — "tamos navegando com muita cautela, seu Gumercindo. Saímos da fazenda ontem j á bem de noite, viaj ando por dentro do cerradão; quando o dia quis clarear, escondemo" pra dormir na mata do Calafate... A lua "tá nascendo agora mais tarde, e só fomo" cruzar a fronteira j á bem em frente do matadouro; mas voltamo" e apagamo" os rastos.
— Cortaram arame de cerca? — Vazamos bem umas três... mas arrancando os grampos e pregando eles de novamente; ficou sinal nenhum, não senhor. O Gumercindo, porém, não melhorava de cara. Seguiu perguntando: — E o povo do Capão do Cedro, não andaram lá pelo Valico? — Só um capataz deles e mais dois capangas; mas isso foi no dia seguinte do acontecido, antes do Isé dar sinal de vida. Os homens chegaram muito cedo, descansaram mal-mal, e raparam pra trás quando viram que tinham errado a batida. O capataz declarou que iam de novo pra beira do rio, mas o pai seguiu eles e viu que só um foi que continuou pela boiadeira; os outros dois pegaram a estradinha de São Miguel. — É... "tão mesmo campeando de pente-fino. Não voltou mais ninguém, depois disso? — Até ontem de noite, na hora que eu saí, não senhor... — E o outro, o Arimateia, quando foi que surgiu? — Logo que os tais foram embora, o pai mandou a Rosinha buscar nós lá na roça de cana do seu Gervásio, ficamo" então ciente do caso. O padrinho Valico mais o pai andavam cismados que era pelo capãozinho das Marrecas que o Isé ia entrar na fazenda; na ideia deles, não podia ser senão por ali, rodeando pela Retranca. Então, voltamo" pro retiro com ordem de subir o corgo... mas j á topamo" com o danado do Isé dentro de casa, dormindo no quarto de seu Gervásio! — Coitado!... E as pobres da siá Jeroma mais a Zilda... O pavor de chegar gente armada atrás de seu Isé, co"ocês dois ausentes de casa... — Tia Rita falou, se aproximando da mesa, a cozinha j á de fogão aceso, cheiroso da fumaça de angico. — E a Zilda j á está bem adiantada... Mas, coitado mesmo, tia Rita... — continuou o Damastor. — A senhora carecia de ver o estado de petição dele... — Confessou tudo pr"ocês? — voltava o Gumercindo com a perguntação. — Delatou, sim senhor. Dis"que tinha saído do Capão do Cedro no domingo bem cedo, mo"de convidar o padrinho Valico mais a madrinha pro casamento; mas que desabou o temporal, veio a enchente, e ele não teve outro j eito senão voltar da beira do rio. Aí foi que teve a lembrança de passar pela casa da noiva dele, avisar ela mais a mãe; isso, na maior boa-fé... pra acabar pilhando a senvergonhinha de suflagrante com o outro na casinha do
paiol... O Isé fez a desgraça, mas no imp"to do ódio, com um machado de rachar lenha largado no terreiro. Queria pegar a vagabunda tam"ém — ele disse fazer o mesmo, mas ela foi mais ligeira e escapuliu do
paiol, se socou num aguaçal que tem atrás da chac"ra... — Matou o filho do patrão e capinou... — Que nada, seu Gumercindo! Ainda ficou caçando a porcariinha da outra um tempão... Do j eito que ele relata, a gente nem compreende como foi que ele conseguiu escapar do enxame de cavaleiro que seu Tonho remeteu atrás... A valência foi que caiu mais outra chuvada pra apagar os rastos da besta. Agora, o senhor "magina: até que o Isé alcançasse as Marrecas, foi mais um dia e uma noite sem parada; e ainda teve fôl"go pra tocar por dentro da cabeceira até na barrinha do Jirau Velho, j á encostada no retiro! Aí, ele então não "guentou mais: dis"que só veio dar tento outra vez de si quando escurecia de novo. Ah!... e não rodou salto abaixo, no Murici porque a besta... — Bebe o seu café, Damastor... — tia Rita servia a bandej a. — Olha o bolo... Mas o Gumercindo não dava folga: — Deixa a besta em paz... E daí? Com o homem em casa, "ocês correram na sede pra avisar o cunhado Valico... — Seu Gervásio é que foi — prosseguiu o Damastor, a boca preguenta entupida da brevidade. — Eu fiquei, fazendo companhia pra siá Jeroma e a Zilda, cuidando do Isé...
— Gente! — acudiu tia Rita. — "cês ficam aí, esquecidos na prosa, e o rapaz esperando lá no matadouro... — Tem pressa não... — cortou o Gumercindo. — E o Valico, qu"e que ele resolveu? — Levaram tempo conversando na fazenda, que seu Gervásio veio de lá j á bem tarde. O padrinho mandou chamar o pai, quis tomar opinião com ele — seu Gervásio contou. Combinaram então tudo: fornecer pro Isé outro animal descansado, roupa e comida; o padrinho mandou dinheiro, o pai deu dado a garrucha dele, seu Gervásio entrou com a capa, uma rede e o surrão de viagem... — Mas só ontem é que "ocês saíram — o Gumercindo observou. — Nesse meio-tempo, o qu"e que ficaram fazendo? — Foi uma febre que bateu de repente no Isé, acompanhada de muita evacuação de sangue... ficou de resguardo dois dias... Gumercindo levantou-se da mesa, foi abrir a porta da cozinha, se demorou examinando a altura da lua j á em minguante. Voltou e se sentou novamente: — Cunhado Valico "teve com o rapaz? — Só na hora que nós saímos; o padrinho "tava meio de pé atrás, acismado... mas acabou aceitando que o Isé fosse tomar a bênção dele e da madrinha Domingas... Não demoramos quase nada na sede... — Gente do céu, olha a hora! — alertou tia Rita outra vez. Finalmente o Gumercindo resolveu-se: — "cê me espere um rico, Damastor. Boto uma roupa e j á volto; vou co"ocê até no matadouro... Antes porém de entrar no quarto, virou-se para mais uma pergunta: — O animal que "ocês forneceram pro Arimateia "tá com a marca da fazenda? Com marca de algum d"ocês? — "tá não senhor. O animal é a besta dele mesmo... não houve quem convencesse o Isé de destrocar a montaria... Ainda "tá meia desbarrigada, desmerecida... mas, o senhor não há de ver que a desgramadinha da mula não aguou?! Começavam a piar os pintassilgos das gaiolas do Gumercindo quando o velho regressou do matadouro. Entrou pela porta da cozinha, sentou-se no rabo do fogão para tirar as botinas encharcadas do orvalho do passinho de meloso, pôs também as calças a secar ao calor das brasas. Tia Rita veio ao encontro do marido: — Como é, despachou os dois? — Despachei. — Pra onde? — Pro Bugre, o José de Arimateia; o Damastor j á tomou o rumo dele também. — Voltou pra fazenda? — Voltou sim. — E o outro? Pro seu Torquato? — Foi.
Quando o velho ficava assim de pouca prosa, ridico de palavras, é que estava turvo de ideias, preocupado — tia Rita conhecia. Mas ela queria saber do resto do acontecido e, por isso, adoçou a voz: — Vem deitar um pouco, Cindo... "tá muito cedo ainda pra tiração de leite... Gumercindo havia-se sentado novamente perto do fogo, sem saber se ia se deitar ou não. Atendeu porém à mulher, e foi-se aj eitar debaixo das cobertas, aproveitar o restinho do calor da cama. Mas seguia de cigarro aceso, a cabeça semeada de muitas cismas. Até que se dessopitou: — Desde a hora que eu sube desse crime, me veio um mau pressentimento. Mandei o Damastor falar com o Valico que é pra ele mais siá Domingas abreviarem viagem, virem logologo aqui pro Sobradinho. "cê vai ver : vão acabar descobrindo que o José de Arimateia andou escondido no Curral de Esteio, e, que no lugar de entregarem ele, o que o Valico fez foi acoitar, favorecer criminoso... E o Tonho Inácio não é homem de se brincar, fazer pouco dele... Eu é que ainda tive de consertar o que pude, na última hora... "cê não escutou o Damastor falar na garrucha do pai, o seu Eulálio? Pois tive de berganhar... ela "tá lá no rabo do fogão, por debaixo da calça. Dei pr"ele o meu revólver... — o seu? — "panhei a arma na gaveta, quando vim vestir a roupa... Agora, "cê calcula: des" que conheço seu Eulálio, conheço aquele bacamarte dele... não há quem j á não tenha visto a garrucha na cintura do seu Eulálio... — Mas, Cindo, agora quem vai ficar comprometido é "ocê! — Fico não, que quase não uso arma de fogo; essa, então, acho que ninguém nunca viu. Gosto mas é de tramar com os outros: o revólver, esse um, negoceei ele co"um cozinheiro de comitiva — "cê "tá lembrada sim... aquela manadinha de vaca que dormiu aqui na chac"ra, no ano passado, quando a cerca do matadouro arrombou, no desbarrancado... — Pois então "ocê devolve a garrucha... Seu Eulálio paga... — "cê vai depois me contar quem é que vai arcar com o prej uízo... Escute só o que eu "tou lhe dizendo. Lá fora crescia a matinada dos galos, os pintassilgos das gaiolas da varanda, as vacas-de-Ieite e a bezerradinha. Pelas frinchas do telhado, entrava o claror azulado da manhã. Seu Gumercindo e tia Rita continuavam porém deitados, o velho receoso e emburrado ainda: — Deus queira que isso tudo acabe bem. O cunhado Valico facilitou, fez muito mal... devia mas era de ter entregado o criminoso... — Mas Cindo, o rapaz foi, por assim dizer, acabado de criar pelo Valico mais a Domingas... Já lá envinha a tia Rita com seus panos quentes e a mesma mania também! — o Gumercindo por pouco que não responde de maus modos, começando discussão. Bate-boca porém sem serventia e resultado — o marido sabia —, que tia Rita, mais tempo passava, mais encasquetava na cabeça aquele mau gosto de adotar enj eitado, tal qual o Valico e siá Domingas. Talvez até que mais enrabichada ainda que eles por criança alheia, pois a pobre era desregulada de certos órgãos, machorra sem mais arrumação. Chegava a brincar com boneca, da moda de menina-mulher, principalmente com um nenenzão desconj untado, de celuloide e elástico, de cabelo louro, e olho de abrir e fechar, que tia Rita conservava desde a época de solteira; nesse, até banho ela dava, conversando e cantarolando, ninando pro estrupiciozinho dormir. Vivia também fabricando, com saquinhos de paina, retrós de seda e penugem de milho, empetecadas bruxinhas de pano que, depois de enfeitarem as almofadas da sala e os travesseiros da cama, tia Rita dava de presente às filhas das conhecidas que apareciam pela chácara; e, vira-e-mexe, vinha pedir a ele, Gumercindo, para aceitar enj eitado em casa... Não, não ia brigar com a desinfeliz da tia Rita — o Gumercindo se abrandava — mas não queria perder, por outro lado, tão boa ocasião para repetir o que sempre dizia ao cunhado Valico e siá Domingas: — Quando eu falo, "ocê mais sua irmã, e o cunhado Valico tam"ém, acham que é implicância, pura birra que eu tenho de criança enj eitada. Mas eu vivo mostrando os exemplos... Olhe, agora, no que deu esse tranca, esse tal de Arimateia... Calou porém o nome do outro, guaxo também, j usto aquele para j unto de quem despachara o José de Arimateia, conforme a ideia e recomendação do cunhado Valico Ribeiro: entregar o fugitivo ao seu Torquato, para que esse, por sua vez, o encaminhasse ao Clodulfo, em Santana do Boqueirão. Tia Rita ouvia calada o sermão do marido. É que seu pensamento havia voado para muitas e muitas léguas de distância do Sobradinho, na outra vertente do chapadão, lá onde morava j á fazia vários anos a mesma pessoa que ocupava, agora, a mente do Gumercindo: o Clodulfo, irmão de criação das duas, dela e da Domingas. Tantas havia o cuj o aprontado ali no Sobradinho, que acabou tendo de se mudar para tão longe, às carreiras, meio corrido. Mas agora, graças a Deus, o Clodulfo ia se dando muito bem no Bugre — tia Rita recebia notícias — trabalhando, parecia que de guarda- livros, em Santana do Boqueirão. Ali dentro de tão sombrio capoeirão, o dia escurecia mais cedo. José de Arimateia não podia pois esbanj ar tempo: mal acordou da ma doma em que caíra depois da cuia de farofa de carne-seca, foi cuidar de Camurça. Entrou com ela pela rasoura de cascalho do córrego, lavou-lhe, uma a uma, as feridas do lombo e das virilhas. Em seguida, untou-as do remédio — a cheirosa mistura preparada por siá Jeroma do seu Gervásio: óleo de babosa com malvado-reino e cordão-de-são-francisco -esperou que Camurça mesma se enxugasse, antes de colocar-lhe os baixeiros de grossa lã torcida. Quando acabou de arreá-la, vistosa assim de porta-capa e surrão, os bordados das baldranas, argolas do peitoral prateando de tão areadas, José de Arimateia não duvidou mais de que a mula douradilha voltaria ao que era antes. Por perto, sobej avam as melhores mostras da cura sem mais senão: a metade comida do embornal de milho, as moitas de canarana tosadas rente à raiz, o estrume de um verde j á sadio. Era subir sempre e sempre o córrego, beiradeando o capoeirão — seu Gumercindo ensinara — acompanhar a estrada de cavaleiro que seguia à direita pela crista do espigão de campo. Deixar o tempo correr até que apontassem uns restos de olaria: a pipa de manj arra quebrada numa ponta, uns poucos esteios j á meio queimados de um
rancho, pinguela e vau. Mais adiante, do outro lado do córrego, era a subida da serra: um único trilho cortado na pedreira, e estreito, e fundo de encobrir, vezes, cavalo e cavaleiro. Se nada sucedesse naquele trecho, se Deus aj udasse, a peripécia maior teria passado. Restava depois a travessia pelas grimpas da serra. Quatro marchas até a fazenda de seu Torquato, onde então poderia se entregar de coração desafogado — havia explicado seu Gumercindo, falando da amizade antiga do fazendeiro do Bugre com seu Valico. Dali por diante — eram essas também as ordens de seu Gumercindo — quem ia mandar então era seu Torquato, senhor de escolher, quando entendesse, a hora e a maneira mais favorável para que ele, José de Arimateia, seguisse viagem para Santana do Boqueirão. José de Arimateia chegou às alturas do chapadão sem topar com embaraço algum. Apeou, então, para acertar o
arreio e reapertar as
barrigueiras , vestir a capa rodada que lhe dera seu Gervásio. Tudo pronto, achegou-se ao aparado da serra para se despedir do mundo que ficara lá por baixo — os fundos precipícios que se sumiam na escuridão. Sim, havia de voltar um dia, nem que tivesse de vender a alma! — ele praguej ou mais uma vez, antes de montar e tocar de novo. A encruzilhada surgiu mais adiante, igual a um pé-de-galinha conforme seu Gumercindo mostrara com os três dedos da mão, ensinando o caminho para o seu Torquato — a estradinha da esquerda. Antes porém de puxar pela rédea, o cavaleiro estranhou, espantado, que Camurça j á tomava, de per si, o trilho certo: e sem amaneirar a marcha, sem um trisco de dúvida no manej o das orelhas! Nem que a bestinha houvesse escutado a prosa de seu Gumercindo!... — foi o que perpassou pela cabeça ainda muito cheia de confusão de José de Arimateia.
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SOMENTE NA NOITINHA de sexta-feira da outra semana foi que chegou ao Campanário seu Joãozinho Gusmão, vindo da Fazenda do Capão do Cedro. Seu Jerônimo residia com a mãe no sobrado da rua das Flores, velha morada da família dos Gusmões, antiga mas ainda uma das maiores e melhores casas da cidade. Ali é que foram encontrá-lo — j á banhado e j antado, de paletó de pij ama e chinelos — o mano Eduardo mais o sogro, seu Monso, e também o capataz-de-tropa, seu Persilva. A princípio, a conversa foram só as notícias da fazenda: o Tonho cada vez mais inconformado, e a pobre da Dosolina reduzida a um caquinho de gente — atacada dos acessos, sem ter podido ainda levantar-se da cama; os filhos, todos reunidos — a Rosária com o marido, e os outros dois irmãos, o Irineu e o Isidoro. Padre Pena tinha vindo embora também, aproveitando a companhia de seu Joãozinho. O resto — os mais parentes, os amigos e vizinhos — cada qual tomava j á seu rumo. A fazenda voltava à vida costumeira, os colonos ocupados na capina do café e dos canaviais novos, os carroções trafegando lotados pela estrada do Porto. Esse, o assunto, porque se encontrava na sala de j antar dona Maria Rosa, mãe de seu Joãozinho e seu Eduardo, ali estava a Madalena — empregada-de-dentro, arrumadeira — e até a Dita Preta, menina de criação. Mas a sala não demorou a esvaziar-se das três: primeiramente se foi dona Maria Rosa, muito velhinha e diabética, que se recolhia sempre cedo ao quarto grande do corredor, levando consigo a Dita Preta; a Madalena, em seguida, depois de deixar para os homens a j arra d"água e o bule de café. A conversa passou então a ser outra, e seu Eduardo contava as novidades do Campanário: — Aqui, mano, o que combinamos no Capão do Cedro: telegramas para as outras comarcas, um destacamento de quatro praças que o delegado mandou para a fronteira, a cidade inteirinha sabendo que o criminoso foi visto no Caramuj o. Eu mais seu Persilva, j untos toda hora, nos mostrando, aparecendo por toda parte: no fórum e na delegacia, trançando pelas ruas... — E o Zito do Adão? — seu Joãozinho não gostava de perder tempo. — Já seguiu — informou o Eduardo. — Acertamos tudo com seu Afonso, e o rapaz viaj ou anteontem de madrugada. — Foi com o irmão? — voltou a indagar seu Joãozinho. — Foi com o Miliano sim — seu Afonso, o sogro do Eduardo, foi quem respondeu. — Isto é... O Zito do Adão me garantiu que ia apanhar o irmão dele no caminho, para irem j untos... Seu Joãozinho contava nos dedos. Costume dele, mesmo que a conta fosse fácil; era assim no balcão da loj a, em toda parte. Principiou: — Hoj e é sexta... "perem aí: anteontem foi quarta; quarta- feira, quinta, hoj e... — seu Joãozinho parou a conta no dedo médio da mão esquerda. — Mas, então, j á era hora d"a gente ter notícia... E eu passei hoj e pelo Porto, mais o padre Pena, almoçamos lá... Ninguém sabia ainda de nada não... — Quando eu vinha para sua casa, vinha comentando com o Eduardo e seu Persilva... — disse seu Afonso. — Vamos aguardar, ter mais um pouquinho de paciência. Para mim não vai ser surpresa nenhuma se o Zito do Adão, ou o irmão dele, me estourarem por aí uma hora dessas... Nisso surgiu à porta da sala a Madalena: — "tá aí fora o Tiãozinho, com um recado da siá Josina pro seu Afonso.
Dis" que tem lá na casa dela uma pessoa chegada de viagem... Dis" que está esperando... Olharam todos para seu Afonso, meio espantados. Nem que fosse combinação! Seu Afonso porém não mostrou surpresa: — Pode dizer pro Tiãozinho, ô Madalena, que nós j á vamos indo. E, quando j á se ouvia a arrumadeira mexer novamente com os talheres lá na copa: — "tou falando pr"ocês... Só pode ser o Zito ou o irmão dele... "cês não acham melhor a gente ir conversar com o suj eito lá em casa? Apesar de cansado da viagem, tendo ainda que ir vestir-se, pôr gravata e as botinas, seu Joãozinho foi o primeiro a levantar-se: — Tem que ser mesmo lá na sua casa, seu Afonso. Esses dois, quanto menos forem vistos zanzando agora na cidade, melhor. Se é algum outro, o senhor atende... A gente espera, depois continuamos nossa prosa por lá mesmo... No quintal da casa de seu Afonso, onde morava o genro e funcionava o cartório, havia um telheiro velho que o Eduardo mandara fechar pela metade e arrumar melhor. Passara então a servir de depósito e de uma espécie de varanda reservada, onde o escrivão gostava de ficar nas horas de folga do cartório, fazendo e consertando gaiola, preparando rede e tarrafa, linhada de anzol. E, pegado ao tal barracão, havia um portãozinho, no muro do quintal: por ali é que entrava e saía a peonada da fazenda de seu Afonso - as varas de pescar de seu Eduardo, a companheirada de pega de passarinho, o Miúdo com o violão. Eram os fundos da casa uma ruazinha que beirava o córrego, beco estreito e esburacado; à noite, escuro e sem trânsito nenhum. As pessoas chegavam e, se fosse cavaleiro, largava o animal ali no beco. Coisa tão comum, que não chamava mais a atenção, dos que passavam pela esquina e atravessavam a ponte do córrego, cavalo ou burro arreado e preso no esteiozinho de argola que havia do lado de fora do portão. Quando seu Afonso chegou com o genro e os outros dois, o Zito do Adão esperava no canto mais escondido da varanda, sentado num rolo de corda, cigarrando. — Então? — foi logo perguntando seu Afonso. — Me atrasei um pouco porque tive de esperar escurecer primeiro. Deixei o animal na entrada da caixa-d"água; vim de a-pé, de lá até aqui. — Mas, e a coisa? — Gorou, seu Afonso. O homem não "tava na fazenda não. Seu Persilva voltava a prestar atenção no cabrito sentado no rolo de corda, a aba do chapéu sempre a tapar-lhe as feições, a gola abotoada do colarinho bem mais alta que a gola do paletó. Tão falado e gavado pelo seu Monso e seu Eduardo... — e, no entanto, encroado daquele j eito, pequerrucho tal qual garnisé. E rouco, a voz esquisita, meio assobiada... Zito do Adão relatava: — Falamos, mas foi co"um capataz... — "cês se apresentaram como o quê? — Da maneira que seu Monso mandou. De comerciante de gado, o Miliano mais eu. Apresentamos lá na fazenda j á quase que escurecendo... — Isso anteontem, na quarta-feira... — seu Joãozinho interrompeu. — Foi sim senhor. Declarei quem eu era, donde é que nós vinha" vindo... de Conceição do Carmo... Que meu nome era Elpídio, o nome do Miliano era Realberto, de apelido Sinhô... Eu tinha trazido uma partida de tourinho lá do Carmo, vendido j á quase que tudo, quando encontrei, empastados numa fazendinha da beira do Caramuj o — fazenda dum tal de seu Astromiro — uma ponta de garrote guzerá, pertencente a um mascate do Campanário, de nome seu Dedé... — Ahm!... — fez seu Joãozinho, olhando para seu Monso. — A touradinha que o Dedé passou com ela no Campanário, j á está com coisa de um mês... Seu Monso concordou com a cabeça, deixando que o Zito do Adão prosseguisse: — Aí, contei que vi a tourama, que agradei muito dela, e perguntei pro seu Astromiro quem é que era o criador. Seu Astromiro me deu a informação e, como eu tinha mesmo que passar no Campanário pra entregar um dinheiro pro seu Bem, da Casa Francana, pr"ele remeter pra Conceição do Carmo, de ordem minha... — Mas, isso aos poucos, para não parecer lição recitada de cor - comentou seu Eduardo. — Foi sim senhor. O capataz, na voz de que eu era comprador de gado, mandou eu mais o Miliano desarrear os animais... Mas desconfiado, que o senhor carecia de ver, me olhando demais da conta, arreparando em tudo... Ele ia perguntando, eu ia respondendo... — O velho é danado, isso de ladino... — seu Persilva observou. — O senhor tinha me avisado... Mas, como eu "tava contando, eu disse que tinha de passar no Campanário, mo"de aquela importância em dinheiro pro seu Bem, e foi então que resolvi acabar de chegar no Porto, ir dar uma espiada naquele gado, capaz até de me interessar por uma partida de novilhas... — expliquei pro seu Eulálio. A influência, no Carmo, era zebu, e eu j á tinha quase que uma encomenda de gado fêmea, aguzeratado... Se fosse do tipo que eu pensava... Nisso, veio a j anta, e vi que seu Eulálio principiava a acreditar, mas ainda fazendo pergunta uma atrás da outra... — E no crime, ele tocou? — perguntou seu Joãozinho Gusmão. — Só muito depois, na hora que eu j á "tava estendendo a rede na casinha de
arreios... Perguntou se eu tinha ouvido falar... Aí, eu disse que sim, que escutei o eco na loj a do seu Bem; mas que "tavam pega-não-pega o criminoso, j á em cima da batida dele, no outro lado da fronteira... — E ele, o seu Eulálio? — perguntou seu Persilva. — Ficou firme. Disse que tinha sabido do crime por um povo da fazenda do pai do rapaz assassinado, que andavam atrás do criminoso, um dentista-ambulante. Eles tinham passado ali na fazenda do seu Valico Ribeiro, contando o caso... Questã" de honra de moça... — seu Eulálio informou. — Disse que o José de Arimateia era pessoa conhecida dele? Que j á tinha trabalhado de empregado lá do seu Valico? — perguntou de novo seu Persilva. — Não senhor, não revelou mais nada. Parece que ficou mas foi muito satisfeito quando eu falei na história da polícia do Campanário j á estar ciente da travessia do José de Arimateia pela fronteira do Caramuj o... Devia de ser verdade — seu Eulálio então me disse — porque ele j á estava tam"ém a par da notícia, dada por um cavaleiro vindo do Porto... — Mas e daí? — seu Afonso não deixava o assunto se perder em passagens de somenos. — Aí foi que o capataz me disse que o fazendeiro não estava, que tinha viaj ado mais a mulher pro Sobradinho e Açaflor, que se ia demorar uns vinte dias, mo"de os meninos no colégio... que tinha ido buscar eles por causa das férias... E que o gado, só o patrão é que tinha poder de negociar... Então, virei e perguntei pro seu Eulálio: "E ver as novilhas, eu não podia? Saber do preço delas?" Assim — desculpei — eu não perdia por completo a viagem... Eu olhava elas, ficava conhecendo o sangue, a era, deixava conversado se interessava pra nós ou não. No caso de servir, seu Valico mandava depois um recado pro seu Bem.. . o seu Bem passava o aviso pra Conceição do Carmo... Seu Monso ouvia, calado, o relato do Zito do Adão, sinal de que aprovava. Ali, na Casa Francana, é que iam acabar mesmo todos os negócios de gado da zona; no cofre do seu Bem é que se guardavam documentos de dívida, com ele é que se arranj ava dinheiro... E, quando ele, seu Monso, combinava com o genro e o seu Persilva a maneira d"o Zito se apresentar com o irmão no Curral de Esteio, o nome de seu Bem havia surgido como a pessoa mais indicada para transferir a tal importância em dinheiro para Conceição do Carmo... Surgido o nome, e o Eduardo se lembrado de que o seu Bem estava ausente do Campanário, com a mulher internada num sanatório do Carmo... O alarife do Zito do Adão ouvira o comentário do Eduardo, guardara-o bem guardado na cabeça, e soubera usá-lo na hora apropriada! Mesmo que seu Eulálio desconfiasse, e fosse tomar informação dos tais Elpídio e Realberto... até que seu Bem voltasse de Conceição do Carmo... O outro continuava: — Seu Eulálio então concordou. Mostrava as novilhas, uns tourinhos de sobreano também, irmandade delas... Andava mas era com pouco peão para arreunir, assim correndo, o gado... Mas se a gente aj udasse... O preço ele não podia dar, mas garantiu que seu Valico Ribeiro era pessoa aj eitada, fácil de se combinar com ele; e, havendo abonador conhecido — seu Bem mesmo devia de servir... — até prazo seu Valico costumava conceder... Zito do Adão pediu licença para picar e enrolar outro cigarro, e seguiu comentando: — No outro dia, isto é, amanhecendo ontem, fomos pro campeio. Seu Eulálio j á tinha mandado avisar o filho dele, o tal Damastor, e o rapaz foi se encontrar com nós na invernada de recria. Aí, então, fiquei conhecendo ele... — Esse, eu não cheguei a ver... — falou seu Persilva. — É um rapazão ainda novo, desempenadão, despachado... — disse o Zito. — Moreno fechado assim como eu, mas cara larga, de bolacha, se rindo toda hora... Seu Monso cortava outra vez: — "cês olharam as novilhas, apartaram as que eram de negócio, viram a garrotadinha também... Mas por quê que "ocê me voltou pro Campanário? E o Miliano, onde é que ele ficou? — Foi o que eu achei melhor des" que o homem não "tava na fazenda. Não podia avançar a mão sem outra ordem do senhor... Eu olhava o gado, e pensava: se a gente pegasse o Damastor — e era a coisa mais à-toinha deste mundo... não ia mais dar tempo de chegar no Sobradinho, descobrir o velho. O senhor sabe: a notícia corria, e a primeira coisa que eles iam fazer era mandar aviso pro seu Valico, lá no Sobradinho ou na Açaflor, onde ele deve de estar agora. Então, eu "maginei outro modo, e vim pra ver se o senhor aprova... — Que modo? — perguntou seu Monso. — Ir atrás do velho primeiro, e correr, voltar pro Curral de Esteio, na fumaça... Aí, então, pegar o Damastor, descobrir onde foi que esconderam o Isé de Arimateia, bater com o Miliano em cima do dentistinha... Só vou precisar mas é de alguém no Sobradinho ou na Açaflor pra me ensinar a achar o seu Valico Ribeiro. Aqueles lados, eu conheço eles mas é pouco... não tenho também por lá pessoa nenhuma assim de prontidão, de confiança, para me auxiliar no serviço... — Isso eu arrumo — seu Monso falou. — Mas me diga uma coisa, ô Zito: e o Miliano, aonde é que "ocê deixou ele? Zito do Adão parecia que vacilava, a primeira vez em toda a conversa. Mas respondeu à pergunta: — O senhor desculpa, seu Monso, se me adiantei um pouco... Eu sei porém que o senhor não gosta de perca de tempo... O Miliano, uma hora dessas, j á "tá me esperando na Aj uda; fui com ele até no corredeirão, por isso é que atrasei mais um pouco. A gente, ali na Aj uda, arrodeia por baixo, e vai sair quase que j á na entrada do Sobradinho... Esse caminho eu sei dele... Seu Monso não disse de imediato nem sim nem não. Levou algum tempo a decidir : — Eduardo, "ocê me podia fazer um favor : dê um pulo lá dentro, pede pra Josina mandar café aqui pra gente. E quando o genro saiu da varanda: — "tou achando que "ocê "tá certo, Zito. Mas vamos esperar o Eduardo, vamos conversar mais direito sobre este negócio. Diabo desse trolha do Valico Ribeiro! Já tudo tão bem urdido e combinado, e o emplastro desse velho a inventar de viaj ar numa hora dessas, atrapalhar a coisa desse jeito! Zito do Adão j á se tinha ido, seu Monso se recolhera também. Voltando para a casa da mãe, na rua das Flores, seguia seu Joãozinho Gusmão, acompanhado do mano Eduardo e de seu Persilva, pois ainda queriam prosear, mais um pouco, aqueles três. Em caminho, seu Persilva achou hora, afinal, de perguntar : — Me diga uma coisa, seu Eduardo. Esse Zito do Adão... j á desde o outro dia que "tou querendo saber do senhor... ele não é filho do Adão Preto, aquele comitiveiro aqui do Campanário, que, vez em quando, conduzia tropa pro seu Tonho Inácio, isso logo que eu entrei de empregado pro Capão do Cedro? O senhor deve de "tar lembrado... homem j á bem de idade, morreu num tiroteio com uns ciganos, mo"de furto de animal... Esse Zito tinha algum parentesco com ele? Seu Eduardo soltou a risada, se agachando e esfregando as mãos, tal qual fazia quando contava ou escutava uma boa anedota, ou quando dava certo alguma brincadeira que ele mesmo inventava: — O senhor "tava querendo saber, seu Persilva, e eu, doidinho também, mas esperando o senhor perguntar... Eu caí nessa, o mano Joãozinho também, acho até que o seu Monso caiu... O Zito, seu Persilva, não é filho de Adão nenhum, nem parente... O senhor não reparou no colarinho da camisa dele, sempre abotoado, alto, quase que esbarrando no queixo? Não notou a voz dele, meia apagada, esquisita? Pois aquilo foi uma facada que ele levou, um lanho feio que carregou com mais da metade do gogó, do adão dele... Eu nunca vi não, mas dizem que ainda tem o buraco. Então, foi, botaram o apelido... ficou...
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SEU VALICO RIBEIRO encontrara a cidade de Sobradinho em plena animação. Vesprava a festa de santa Bárbara, padroeira do lugar, e, além da arrumação das barraquinhas em frente à igrej a e · a coleta das prendas para o leilão do último dia, apressados preparativos anunciavam outro e importante acontecimento: a estreia do Grande Circo Cavaliére. Boa ideia tiveram o Gumercindo mais tia Rita em mandar recado para que ele, seu Valico, abreviasse a viagem ao Sobradinho. Siá Domingas pensava também do mesmo modo: quanto mais cedo deixassem a fazenda, melhor, pois a capangada de seu Tonho Inácio não parava com a busca e, hora ou outra, acabaria por voltar ao Curral de Esteio. Não haviam descoberto que o Arimateia passara por ali — assim imaginava seu Valico Ribeiro — mas certamente deviam continuar desconfiados; e, apesar de ter o Damastor garantido não haverem ele e o fugitivo cruzado com ninguém na viagem, não se podia, por enquanto, dar por encerrado o assunto. Sorte também a ida do maj or Virgilinho, irmão do Gumercindo, a Açaflor. O maj or levara então o recado: a Vicência que viesse j unto, e correndo, e que trouxesse as duas meninas com ela, pois o circo j á estava de estreia marcada para a noite de santa Bárbara. Nem vaca magra por queimada de brej o, a paixão da Vicência por palhaço e pantomima! Conta só de chegar a Açaflor o maj or Virgílio, acertar por lá seus quefazeres, e virar nos pés para o Sobradinho com a Vicência e as sobrinhas, j á em férias o externato das irmãs. Uma pena se a mana Vicência e os meninos perdessem a temporada do circo — via seu Valico Ribeiro, contente com o entusiasmo dos filhos. Tudo era mesmo divertido, até a conversa atrapalhada de seu Giordano Cavaliére, chegado ao Sobradinho com antecedência de dias. O italiano fora apear à porta da casa de seu Oto da Câmara, fiscal municipal, pois era ali que iam bater, sem dúvidas e perdas de tempo, os empresários dos parques de diversão, touradas e circos-de-cavalinho. Seu Giordano entregara-se, desde logo, aos cuidados do seu Oto, e, j á no mesmo dia, inseparáveis um do outro, o expediente de ambos teve início. Começaram por ir à chácara do Gumercindo, atrás de pasto para a tropa do circo, e seu Giordano explicara então o muito que havia a providenciar, antes de estar a cidade em condições de hospedar o batalhão de gente e bicharada. E tudo às carreiras, em ciminha da hora: a limpeza do local — o apropriado terreno baldio de detrás do Grupo e à beira do córrego, necessitado porém de roçada e capina, que muito infestado de mamona, fedegoso e picão; pasto para a tropa dos carroções de seis e até de oito burros que transportavam a babilônia dos mastros e cordame, barracas, bagagem e j aulas — o sem-fim de coisas por chegar. Os convites às autoridades, a distribuição das permanentes, a venda dos camarotes reservados para toda a temporada. E ainda: a compra, na bacia das almas, de tudo o que fosse égua velha e imprestável; a pega oficial — a poder de laço, carrocinha e senha grátis para as matinês dos domingos — da cachorrada e gatalhada vadia da cidade, necessária provisão de boca para as numerosas feras do elenco; a encomenda antecipada dos foguetes, o aluguel dos carros de praça para a passeata dos artistas, a reserva de serragem e casca de arroz para o picadeiro de piso sempre renovado e limpo, que boa arrumação e asseio eram o principal — seu Giordano toda hora repetia. E a data se aproximava: dia quatro de dezembro, quinta, a sessão da estreia às nove horas, depois da procissão, barraquinhas e leilão da festa de santa Bárbara. Para a véspera, na quarta-feira às três
horas da tarde, a entrada do Grande Circo em Sobradinho — a movimentada passeata dos artistas e dos bichos pelas ruas da cidade. Seu Gumercindo havia se prevenido a tempo, conseguido duas j anelas inteiras da casa de esquina de dona Quituca, de porão alto, num canto do largo. Isso, providenciado logo se soubera da estada de seu Giordano Cavaliére em Sobradinho; entretanto, por pouco que não fica o Gumercindo no ora- vej a, tais e tantos pedidos a velha começara então a receber. Numa das j anelas acomodaram-se tia Rita, siá Domingas, tia Vicência — a irmã de seu Valico que morava em Açaflor — e ainda as duas meninas, Floripes e Celeste; na outra, o Gumercindo, seu Valico Ribeiro, o Tonico e mais o maj or Virgilinho. Tia Rita bem que tinha adivinhado, ao ficar apressando todo mundo, a querer descer para a casa de dona Quituca logo depois do almoço: nem tivera início ainda a passeata, e j á invadiam a casa — gente conhecida e também estranha — a arrastarem cadeiras, treparem uns por cima dos outros, se enfiarem pelas folgazinhas das j anelas. O largo apinhado, o comércio fechado a meia porta; j anelas carregadas de mulher, os portõezinhos entupidos das empregadas e criançada mais miúda — as calçadas cheias, os telhados, o arvoredo — Sobradinho em peso recebia o Grande Circo. Mesmo que não houvesse a novena da Matriz, às seis da tarde, seu Oto da Câmara cumpriria o horário. Ele era muito organizado e pontual — tio Gumercindo garantia ao Tonico j á morto de impaciência. De fato: batiam as três horas no relógio da igrej a, quando o primeiro roj ão se aprumou, soltado do topo da Ladeira do Asilo, o alto principal da cidade. Subiu, explodiu, e o bumbo da banda reboou — um eco, tal e qual. E o pagode começou então. Ladeira abaixo, descia a passeata. Bem na frente, de guia, o Perna de Pau, de fraque e cartola, as calças de xadrez amarelo e preto, boca-de-sino, de duas braças de altas — a distribuir os programas. Em segundo, seu Benedito Fogueteiro — seu Valico logo reconheceu — seu Benedito em pessoa, o que só em solenes vezes sucedia, corcunda, de óculos de aro e chapéu; de secretário, preto e pedante também, o filho Absalão. Este se aproximava, contando os passos feito um coroinha, e entregava a peça: o morteiro que ocupava todo um gomo de bambu, a vara do rabo comprida de uma braça. Seu Benedito soprava o tiçãozinho, acendia o rastilho, esticava o braço: chovendo brasa e chiando, lá se ia, céus acima, estourar no alto o foguetão. E mais molecada surgia de todo canto, na desabalada carreira atrás das varas fumegantes que caíam — risalhada e vaia quando uma delas achava de desabar sobre a cabeça de algum basbaque distraído. Abrindo o corso propriamente dito, de puxa-fila, a banda de música do circo — banda particular, fardada de azul e vermelho, capacete de penacho, o amarelo polido dos instrumentos a espelhar o sol. Seu Giordano Cavaliére e seu Oto da Câmara pensavam mesmo em tudo — seu Valico Ribeiro se admirava. A banda, ao se aproximar do largo, calou metais, dando-se apenas ao bumbo e aos tambores — a introdução conhecida, local, do dobrado Crepúsculo do Sobradinho, de autoria do professor Anatólio, diretor do Grupo. E se tal não bastasse, eis que seu Anatólio, não resistindo ao entusiasmo, corre à casa, busca o instrumento, e se atira à frente da banda — cabeleira em redemunhos, requinta à boca, tocando, e marchando, e regendo ao mesmo tempo! Bem em frente à esquina, na calçada do j ardim, Zito do Adão e o Miliano assistiam também ao corso. Conservavam-se, entretanto, à sombra da folhagem dos canteiros, o chapéu a ocultar-lhes o rosto, principalmente de quem se encontrasse em plano mais alto, nos telhados e nas árvores, nas j anelas das casas do largo. Ao lado do Zito, um cabo de polícia, do destacamento de Sobradinho, informava, mas sem fitar em ninguém, cochichando entre dentes: — Reparou bem? O velho que "tá na j anela, segurando na perna do menino... De par com ele, é o cunhado, sô Gumercindo, o da chác"ra pertinha do matadouro... Zito do Adão, quando olhava para as j anelas da casa de dona Quituca, fazia-o como que por acaso, ou parecendo interessado no tiroteio dos foguetes. E a voz lhe saía tênue, tal e qual a fumacinha do cigarro: — Sei.. . "tou vendo... O de paletó abotoado, amarelo... "tá batendo palma, agora... Será que José de Arimateia alcançara o Bugre, são e salvo, lá onde morava seu Torquato? Andaria ele ainda escondido por ali, ou continuara a viagem para Santana do Boqueirão? E seu Persilva, teria o capataz do Tonho Inácio voltado ao Curral de Esteio para especular de novo e apertar com mais insistência seu Eulálio, agora que o velho ficara sozinho na fazenda? — de todas essas preocupações daqueles últimos dias se esquecia completamente seu Valico Ribeiro. Pudera: um festão a passeata organizada por seu Giordano Cavaliére e seu Oto Fiscal ! Lá apontavam eles, atrás da banda de música, no primeiro carro de praça, o do Manuel do Beco — a dupla dos cavalos pretos ornados de dálias brancas e vermelhas nas correias da cabeçada, os varais enfeitados de fitas de toda cor, a capota descida. Na almofada traseira, e sós os dois: seu Oto exibindo apenas uma palheta nova e a cara lustrosa, feliz; mas, seu Giordano, esse desfilava de uniforme: cartola e túnica azul-marinho, militar — fechada a botões dourados na frente, cintada, e despontada e rasgada em cauda de casaca. E de botas até os j oelhos, o bigode de pontas para cima, chicote de domador na mão. Corre-corre, empurrões, cotoveladas -um frenesi assalta agora o pessoal amontoado às j anelas da casa de dona Quituca, se alastra por todo o largo. Eram elas, as artistas! — tia Rita puxou, da j anela, a saraivada de palmas. Vinham no carro de praça do Torpedo — o de éguas alvaçãs, baixeirinho de lã verde por debaixo das coalheiras, as crinas cacheadas a papelote. As flores das focinheiras eram rosas e cravos, e suspiros, e sempre-vivas; os varais caprichosamente vestidos de meu-bem-chega-Iogo, dinheiro-em- penca, bambuzinho; o próprio Torpedo, de parelho completo e chapéu-coco, usava também enorme botãozinho de cravo roxo na lapela. E, por sobre a sanfona da capota arriada, linda toalha de renda forrava o assento para dona Nena Cavaliére e as duas filhas. Trapezistas as três, e o mesmo cabelo
louro à la homem — os mesmos olhos azuis, o mesmo corpo maneiro, gracioso, espremido no corpetezinho de malha de meia — o saiote rodado, de tarlatana, deixando ver o calçãozinho de cetim celeste, muito esticado, muito j ustozinho. De assanhamento a regateirismo geral: tanto, que até pessoas de respeito saíam do sério. O comentário, por exemplo, de seu Tobias da Farmácia, homem j á de muita idade, conceituado, de quem nunca se poderia esperar tal proceder : o dito meio pesadote que escapou ao seu Tobias, em voz alta, foi escutado por tia Rita, por siá Domingas e tia Vicência também — pelas mulheres apinhadas nas j anelas e o povo amontoado na esquina do largo, por quem quis e quem não quis: — Nessa trinca eu entro até de cabra-cega, que não tem apartação! Mais outro carro aberto, agora o cabriolé cedido pelo dr. Otacílio, o de um cavalo só. Único na almofada do veículo, o Deolindo da Conceição — ator de pantomima, o que fazia de Antônio Conselheiro em A Guerra de Canudos e de nosso senhor Jesus Cristo no drama Vida, Paixão e Morte. Preto, representava sempre a poder de muito alvaiade na cara e nas mãos, fazendo papel apenas de gente branca, que de negro não aceitava — o maj or Virgilinho ia explicando ao Valico Ribeiro e ao mano Gumercindo. Quando apareceu no cabriolé, nem o dono do carro, o dr. Otacílio, para saber assentar-se assim, com mais pose. O artista vinha preto mesmo, de nascença, de terno cento-e-vinte engomado, a gravata de laço, amarela, de pompom. Quase rui o largo, de tanta vibração, e viva, e palma! E tinha razão o povo do Sobradinho, que desta vez, o Grande Circo Cavaliére trazia todo o elenco, sem falta de ninguém. A passeata ia tomando o Largo da Igrej a, a banda de música contornando o j ardim. Nos outros carros, em charretes, até em carroças forradas de atoalhados e colchas, os demais artistas: a moça da bola, a índia da machadinha, o alemão do canhão, as gêmeas ciclistas, a troupe dos anões acrobatas, as mocinhas dos pôneis, os barristas, malabaristas de garrafa, o tocador de serrote. Num tablado armado num carroção, aquilo — verde, viscosa e cidrenta de lantej oulas e miçangas, a cabeça metida com braço e tudo por entre as pernas, a mole coisa se mexendo — se arrastando e saltitando: o Homem-Rã! A banda voltava a tocar, mais outra repetição ainda, o dobrado do professor Anatólio. A espaços certos, bem calculados pelo filho Absalão, os roj ões de seu Benedito Fogueteiro, a espocar e enfumaçar o céu de Sobradinho. O cabo de polícia, depois de mostrar seu Valico Ribeiro ao Zito do Adão e o mano Miliano, afastou-se da calçada do j ardim para cruzar o largo pelas bandas da porta da igrej a. Os dois irmãos continuaram, porém, à sombra do canteiro, misturados ao magote de gente que assistia à passagem dos bichos que se seguiam ao desfile dos artistas. O Tonico, da casa de dona Quituca, não se contentando em ficar debruçado à j anela, esse havia se aloj ado de pé, e há que tempo, no peitoril; seguro pelo pai, nada perdia do espetáculo. De mesmo, a Floripes e a Celeste, vigiadas pela mãe e tia Rita, por siá Vicência também. Outra novidade faz o Tonico sapatear de tão entusiasmadozinho: "Os elefantes, papai !" E dois, da Índia — o menino viu logo que eram, pois lá estavam, sentados de perna cruzada no cocuruto do cangote deles, os hindus de turbante na cabeça, tanga nas virilhas, torrados de sol e quase que pelados de tudo. Puxavam, os animalões, o desfile dos bichos. Nada, para isso, melhor que elefante: compassados, caminhavam eles, as orelhas de metro em ininterrupto abano, a lerda gangorra da caudazinha a marcar a cadência do cortej o. As mãos da frente, mais altas que as pernas traseiras, as ancas escorridas — postura de quem j á estava por fazer alto e se sentar, caso precisasse — semelhava. E marchavam — aqueles mastodontes — delicadas e silenciosas patas de borracha por sobre o empedrado do largo! O camelo, a zebra — o Tonico só faltava engarupar-se agora nos ombros do pai. O terno irmão dos pôneis — pampas, mil-flores os três, arminados de pés e mãos. Os carroções de burro com as j aulas: o leão, a leoa, o tigre-de-bengala, a pantera, as hienas. Os macacos, os cãezinhos amestrados, o urso de argola na venta — esse livre de j aula, andando que nem pessoa pelo meio da rua, levado a cabresto. O ar se empestava de fedor de esterco e carniça, mas ninguém se incomodava com tal. Pelo contrário: o borbotão de povo crescia, mais altas a zoeira e a gritalhada que se levantavam do largo. Por fim, fechando a passeata, a sensação: — É de brau-brau-brau! E a multidão, o alucinado cardume de empregada e menino, a roceirama, o pessoal das j anelas do largo: — Caçamba de pau! Puxada pelo Tôni vestido de pierrô, a eguinha magricela, conformada. Montado nela, de cara pra trás, o palhaço Mindoim. — Planta bananeira, ô Mindoim! E ele plantava, tirando a cartolinha para mostrar o ovo da careca e aj eitá-lo em seguida na anca da pichorra, pernas para cima abrindo e fechando tesoura, as calças escorridas por si mesmas, mostrando a ceroula de grandes riscas vermelhas. — Cai da égua, Mindoim! E o palhaço caía, escorregando-se pelo traseiro da eguinha, se agarrando à cauda e por ela subindo novamente, feito macaco em cipó. — Arreia as calça", Mindoim! E o Mindoim arriava!... Quando ouvia os gritos, as vaias e os assobios, é que então se virava, cara de bobo, espantada, para um lado, para o outro, fingindo ignorar a razão de tal baderna. Nas j anelas, siá Domingas, tia Rita, a mulherada dava acesso, chorava de tanta risada. O Mindoim, aí, desconfiava: levava depressinha as mãos aos fundilhos descobertos, apalpava aquilo, sungava correndo as calças, por causa dos dois rombos enormes, um em cada popa — ele então se dava conta — que havia na ceroula. O que mais matava de rir, porém, tia Rita e siá Vicência era a especiezinha de calça de mulher, de renda, que aparecia através dos buracos das ceroulas do Mindoim. E não ficava só nisso: tão envergonhado e vendido ele se fingia, que recolhia a cabeça colarinho de meio metro adentro, o peito estufado que nem peru. Então, se desequilibrava, se despencava, outra vez, égua abaixo. O sino da igrej a repicava, insistente, no chamado para a procissão de santa Bárbara. Mas a molecada, a mulherzada, o povaréu afogueado prosseguia atrás do palhaço Mindoim: — É de brau- brau-brau! — Caçamba de pau! — Olha a negra no portão! — "tá com cara de tição! — Olha a negra na j anela! — "tá com cara de panela! — Hoj e tem espetác"lo? — Tem sim senhor ! Depois que se esvaziaram as j anelas da casa de dona Quituca e que seu Valico Ribeiro, seguido
da mulher e filhos, deixou o Largo da Igrej a em companhia do Gumercindo e mais parentes, o Zito do Adão e o Miliano saíram da calçada do j ardim. Mas evitavam andar sozinhos. O povo corria para concentrar-se em frente à igrej a, engrossando a procissão que j á começava a desfilar, e foi por entre um apressado bolo de gente que os dois j agunços se enfiaram, logologo entreverados e sumidos no meio de tanta confusão.
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INIMIGO DE ÚLTIMA HORA e afobação, seu Valico Ribeiro chegou cedo, com a família, para a estreia do Grande Circo Cavaliére. Fora, no limpo fronteiro às bilheterias e ao portão de entrada, j á se tinham armado os tabuleiros de quitanda e doce, cada um com seu lampião de carbureto — chiadorzinho, vertendo espuma, catinguentozinho, mas de boa luz, forte de doer na vista. A banda de música, essa não parava, instalada em local adequado, no palanque que cobria o corredor da entrada. Tocava de instrumentos virados para fora do circo, a lona lateral, ali naquele ponto, preparada para funcionar de bem imaginada cortina. Até ao toque do segundo sinal, permaneceria assim a banda, cortina de lona aberta, à vista, e a divertir o povo que se ia aglomerando na frente do circo, para assistir à chegada das famílias, ver as moças descerem dos carros de praça, cuidadosas com a barra do vestido e os sapatinhos, por causa do terreno ainda não bem apisoado e livre de poeira. Mais logo, minutos antes do espetáculo, é que se fechava a lona lateral, e os músicos destrocavam de posição, virados para o picadeiro. Mesmo agora, entretanto, cedo ainda, seu Valico Ribeiro j á sabia que a estreia ia ser enchente. Bastava uma vista-d"olhos pelo interior do circo, pelo sortimento de colchas e toalhas — panos em quantidades, bordados e de toda cor, que se estendiam sobre os degraus das arquibancadas, cada um deles colocado ali para reserva de lugar. Seu Valico entrou pelo portão com a família: siá Domingas, tia Rita, a mana Vicência, o Gumercindo; o rapazinho fardado de aluno do colégio dos padres e as duas meninas de saia marrom de uniforme, também — o Tonico, a Floripes e a Celeste. Não careciam de comprar entrada, o lugar de todos j á garantido com antecedência pelo maj or Virgilinho. O Tonico foi quem viu primeiro: lá estava o tio maj or, assentado bem no meio da colcha de casal, de crochê, que ocupava sozinha três degraus da arquibancada. Esperaram bastante até que se ouvisse o primeiro sinal. Um repique de sino, demorado, no pedaço de trilho dependurado lá por dentro dos reservados do circo. "Nossa mãe, é o leão!", tia Rita deixou escapar o susto, quando, vindo lá dos fundos, reboou um urro. Relinchos de pônei, alarido dos macacos, a latição aflitazinha dos cachorros ensinados. Zito do Adão viu quando seu Valico Ribeiro chegou, acompanhado da mulher e dos meninos, de seu Gumercindo da Chácara e as outras pessoas da família. O Miliano também viu, de outro ponto bem retirado de onde postava o irmão. O cabo de polícia viu. Mas nem se olharam uns para os outros, aqueles três: continuaram, cada qual em seu lugar, apreciando o movimento que crescia, ali do lado de fora do circo. Mais e mais tabuleiros, fogueirinhas acesas dos vendedores de quentão, café e chocolate. A preta escarrapachada num pedaço de cobertor esticado no chão, as três latas de querosene furadas, a servir de fogareiro: amendoim torrado, amendoim de açúcar, amendoim com cravo — broas, biscoitos, pé de moleque, velas, puxa-puxa, rebuçados, cartuchos de amendoim. Empregadas, meninos entrando e saindo, levando lenços e guardanapos abarrotados para as famílias j á em seus lugares. A banda de música. Mais carros de praça, mais povo de a-pé. Um começo de briga logo apartado por uma arara de farda. O moleque com os dois gatos, um debaixo de cada braço, querendo saber quem é que era, ali no circo, que trocava aquilo por entrada.
Zito do Adão esperou que desse o segundo sinal — demorado e repicado tal qual o primeiro — para entrar também. Era o momento de mais aperto no corredor, o porteiro mal bastando para receber as entradas, rasgá-las e enfiá-las pela racha do caixote estreito e alto colocado ao lado do portão. Lá estava seu Valico — num instante o Zito localizou o fazendeiro. Na quinta tábua, a contar de baixo para cima, a costura da lona lateral descendo bem atrás das costas do seu Gumercindo da Chácara. Por enquanto, bastava observar aquilo — o Zito do Adão deu-se por satisfeito, e foi procurar lugar no lado oposto das arquibancadas. Pouco a pouco ocupavam-se os camarotes, as filas das cadeiras numeradas, os degraus das altas bancadas laterais, seu Valico Ribeiro conhecia todo o povo do Sobradinho: o j uiz de direito da comarca, sediado em Açaflor, mas que viera com a família para a festa de santa Bárbara; o agente executivo, o coronel Osmundo — seu Mundo, para todos — o Pindó Juiz de Paz, o delegado, o agente dos Correios, o Louzadinha Coletor, o sargento comandante do destacamento. As famílias do Largo da Igrej a. O dr. Otacílio, professor Anatólio do Grupo, seu Raimundinho do Hotel — as senhoras, a criançada mais crescida. Tia Rita, siá Domingas e tia Vicência não paravam de cochichar. Chegava a Maria Augusta — o circo j á lotado, a fim de chamar mais ainda atenção — de chapéu e toalete de tule rosa, decotadíssima, seguida de mais duas companheiras de pensão e folia. Lá entravam, vestidas no mesmo trinque: a Julinha do Maj or, a Jovita, a Zoraide, a Violeta do dr. Carmelo. E — ahm, então era aquela? ! — a tal de Mariinha, a chapadense de quinze anos e cara de indiazinha, que o dr. Otacílio tinha botado por conta, na casa nova da Fiúca... Vistos — j á se comentava — a passear de cabriolé, os dois, ela e o doutor, horas mortas pelo centro da cidade... O maj or Virgilinho cutucou com o cotovelo o Gumercindo quando entrava seu Nicola Verdureiro, de tamancos, o cinturão sem mais j eito de segurar a pança que se derramava. Mal o calabrês apontou, começaram os psius, os sinais, os convites. Seu Nicola não precisava de marcar lugar —todo mundo disputando a primazia de sua vizinhança. Olhou, mirou bem lado e outro, resolveu-se por fim: abrindo demorado caminho poleiro acima um patão gordo, de desaj eitado e difícil — lá se foi ele encarapitar-se na última tábua, pegado ao seu Magela do Corte. A dupla! E muita gente principiava j á a rir, por antecipação. Subiam mais famílias: velhos, moças, a rapaziadinha. — Baleeeiro!... "mindoiiim! O terceiro e último sinal. Uma pancada só. A ouverture executada pela banda de música j á agora virada para dentro do circo. Somente então foi que seu Oto da Câmara ocupou a cadeira reservada para ele no camarote de seu Mundo, o agente executivo. A entrada dos araras, a parte do espetáculo que mais recomendava um bom circo-de-cavalinho — achava seu Oto. E também a apresentação do diretor. Seu Giordano Cavaliére, esse era um mestre — como sabia entrar num picadeiro, o ladrão do carcamano! — a túnica de fila dourada de botões, as botas até os j oelhos, cartola, chicote. No centro do picadeiro, abriu os braços, tacões muito j untos, o bigode de pontas reluzindo à luz do carbureto. A banda parou. — Signori, signore, signorine! E em outra reverência descoberta, cartola e chicote nas mãos em pontas de cruz — dobrado ao
meio, impecável: — Rispettabile pubblico! Seu Oto da Câmara deflagrou os aplausos que se alastraram, educados, pelos camarotes do j uiz de direito e mais autoridades do município, cresceram com os das filas das cadeiras, engrossaram, estrondaram, reboaram — lado e outro das torrinhas entupidas — em demorado trovão de palmas. E, enquanto a ovação não terminou, não se aprumou a rígida mesura de seu Giordano. Até que pôde prosseguir : — La impresa, molto emozionata, saluta e ringrazia... Mas teve de interromper-se, respirar fundo, cerrar os olhos para que não os vissem úmidos, tudo tão claro da luz branca dos lampiões, como de dia. Seu Giordano refez-se logo, porém. Depressa, antes que o empolgasse outro acesso de emoção, rodou em meia-volta marcial, empertigado na ponta das botas, cartola apontada para as cortinas da entrada dos artistas. E com um estalo — longo, flexível — do chicote: — I Fratelli Sangiovanni, equilibristi ! Onze horas, quando se deu o intervalo. Novamente os três sinais batidos no trilho, espaçados. Outra vez seu Giordano, para anunciar a pantomima. Pôde, então, fazer o pequeno discurso de agradecimento, e apresentar, no final, a peça da noite: — Amore e Sangue, com Nena Cavaliére e Deolindo de la Concezione! Foi aí que o Zito do Adão trocou de lugar. Dirigiu-se para a outra metade das torrinhas, à esquerda da banda de música, onde se encontravam seu Valico Ribeiro, a família e os parentes. Mas não subiu: caminhou, vagaroso, para a ponta do fim das arquibancadas, j unto à entrada dos artistas. Dali, mal-mal se avistava a cena e, por isso mesmo, local vazio sempre — Zito do Adão j á havia reparado, desde que começara o espetáculo. Sentou-se então, bem na ponta da primeira tábua — pequenino, despercebido. O irmão, o Miliano, esse ficara lá por fora, e o cabo da polícia no portão de entrada do circo, que essa era mesmo sua obrigação. A pantomima, Zito do Adão j á tinha toda na cabeça. Não fora à toa que correra, uma a uma, as pensões de mulher, na noite da véspera, procurando prosa com um daqueles empregados do circo que batiam perna pelas casas da raparigada, barracas de j ogo e cabaré. Encontrara um, um carroceiro de j aula, muito dado e conversador. Os dois começaram j ogando buzo, foram tomar cervej a depois. E o tal — de nome Evaristo — dava o que tinha com a língua, soltava tudo: como era aquela vidinha de circo, quanto seu Giordano pagava os empregados, os truques dos artistas, do domador... Se havia vaga? Ah, isso sempre havia! E, se o novato mostrasse queda, ganhava também por serviço em cena, fazendo papel de figurante, sem falar nada — só para entrar e sair, entregar as coisas, ficar parado. Ou de mata- cachorro: mudar cenário, carregar tapete, cadeira e mesa... O drama de mais sucesso, iam levar na noite da estreia: Amor e Sangue. Se aparecia briga, luta, combate? Nossa, barbaridade! O Evaristo havia contado então toda a peça, desde o começo. Era uma bonita e movimentada história de amor : a paixão de um príncipe — o príncipe Filippo — por uma espiã. Todo o primeiro ato passava-se na sala do trono: a entrada da espiã Margarida, conduzida por um marquês que era também marechal-de-campo. A acusação — Margarida fora surpreendida a fazer sinais, numa praia, para um pirata, terrível inimigo do príncipe — a Corte reunida a pedir, aos gritos, a morte da moça. O príncipe vacilava, não escondendo o que sentia no íntimo, apaixonado pela beleza da prisioneira caída nos degraus do trono, o vestido rasgado, quase nua. Eis quando,
desabalado, surge um soldado, rompendo pela sala e gritando: "Alteza! Alteza! A artilharia de Costa pôs a pique o bergantim pirata! Bartolomeu, o Corsário, "Capturado, a ferros!" O tal Bartolomeu era o pai de Margarida. E o ato termina, então, com um grito da linda espiã que desmaia, tombada, como se estivesse morta, aos pés do príncipe Filippo. A cena do segundo ato tinha lugar na saleta privada do príncipe, anexa à alcova do castelo. Apenas uma luzinha de vela, o resto sumido na escuridão. Abre-se uma porta e entram por ela, pé ante pé, o Bobo e Margarida. O príncipe ordena ao anão que se retire, que vá montar guarda na escadaria do túnel que liga a alcova aos porões da torre. Margarida, ainda com os cabelos desalinhados e o vestido parecia que mais curto, decerto encolhido pela água do mar, aj oelha-se aos pés do soberano. O príncipe Filippo ordena: — Falai, ó traidora! Acedi em receber-vos, em consideração ao meu dedicado Bobo Piccolino; que tendes a dizer? Chorando, Margarida permanece aj oelhada: — Perdoai, ó príncipe Filippo! Revogai vossa sentença! Condenai-me a mim, mas poupai a vida do meu velho pai ! Esquecida de si própria, o colo se abrindo mais, chave e tanto de perna j á de fora, e acima dos j oelhos, a espiã repete: — Perdoai, ó príncipe, perdoai ! Desvencilhando-se da tentação, mãos à cabeça, o soberano passeia largos passos pela saleta. Margarida, então, levanta-se, as pernas arcadas, afastadas, a cabeça para trás, o peito saliente, o resto devassado pelos rasgões da roupa, tudo palpitante e oferecedor : — Perdoai, alteza, perdoai a Bartolomeu, o Corsário! E vinde, ó príncipe, que serei vossa! São os ouvidos que o príncipe procura, agora, tapar com os punhos cerrados. E é assim que cruza e recruza pela saleta da alcova. Até que estaca, frente para o público, dirige os olhos para o alto, as mãos, e brada: — Ó céus! Quem, quem poderia resistir? A resposta veio também de cima, da última grimpa do galinheiro, lá de j unto de seu Magela do Corte, onde se havia empoleirado o seu Nicola. E também gritada — cabeluda, calabresa: — Dio cane! Solo se fosse un" cappone! Deu upa para que o Deolindo se resolvesse a voltar ao picadeiro. Em toda a sua carreira de artista — ele chegava a chorar, o coitado! — nunca, nunca tinha recebido tamanha desfeita por parte de uma plateia. Com que cara iria, agora, recomeçar a cena?! O bandido do verdureiro arruinara por completo o drama! Dona Nena, também, a pobrezinha, que vissem o estado em que ela se encontrava! De fato, sobrava razão ao Deolindo. A risalhada fora tanta que por um triz não viera abaixo o circo, com mastro e lona e tudo! Onde j á se vira inconveniência igual ! Verdade que aquilo j á era costume antigo de seu Nicola Verdureiro, coisa que ninguém evitava; mas caçoadas sem importância, sem ofensa, normais em circo-de-cavalinho — brincadeiras que até aj udavam a animar o espetáculo. A daquela noite, porém, que santa barbaridade! — o próprio seu Oto Fiscal, habituado com os disparates do seu Nicola, reconhecia. O j uiz de direito havia ficado fulo — virado numa fera. Mandara, e mandara prender mesmo o seu Nicola, sem admitir que viessem interceder pelo italiano. E quase que segue j unto também seu Magela do Corte, companheiro em obscenidades e chalaças de
baixo calão. Hominho de cabelo-na-venta, o dr. Celestino! Seu Oto da Câmara, enquanto durava a tempestade no camarote do j uiz de direito, buscava amainar a outra armada lá pela barraca do Deolindo. O camarim do artista estava atulhado: seu Giordano, dona Nena, as filhas, os outros todos. Seu Oto aconselhava muita calma, muita ponderação. Ele — o fiscal municipal falava — conhecia circo melhor do que ninguém, seu Giordano que desculpasse... Se artista fosse ligar, se se fosse dar por achado, então pior. Que se recordassem do caso da equilibrista de arame do Circo Irmãos Suarez, passagem acontecida ali mesmo no Sobradinho. Ah, não conheciam, ninguém havia contado ainda?! Pois que escutassem. A aramista era boa profissional, e antiga, acostumada com público de cidade de interior... O diabo, porém, é que ela j á andava meia eradazinha, meia passadota... — coisa que aborrece mesmo qualquer mulher, ainda mais uma artista... Nesse dia, ao apresentar-se para o número, antes ainda de subir ao arame com a sombrinha, o seu Nicola — sim senhores, o seu Nicola Verdureiro, de novo!... — seu Nicola despacha o berro: "Joga esta véquia pro leone!" Isso é, as palavras gritadas em carcamano, lá na língua dele. Aí, a boba — ahm, era Zazá, mademoiselle Zazá, o nome dela! — a Zazá, então, em vez de fingir que não tinha ouvido, ficou mas foi tiririca da vida e se retirou do picadeiro. Pronto! No dia seguinte, quando quis voltar com o número, aí foi o circo inteirinho, parecia até que todo mundo combinado: "Joga pro leão! Joga pro leão!" O seu Deolindo que não caísse na besteira de bancar a mademoiselle Zazá: entregasse pra Deus, fizesse de conta que achara graça também no seu Nicola... Outra bobagem, ruindade muito grande — isso seu Oto da Câmara declarou em particular ao seu Giordano — tinha sido o j uiz de direito, no auge da brabeza, mandar prender o seu Nicola. O coitado era pessoa tão estimada, o de maior freguesia de verdura na cidade... Tinha aquele fraco, tinha... Mas descer o poleiro assim escoltado que nem ladrão ou criminoso... Seu Giordano bem que podia, com bons modos, interceder, falar depois do circo com o dr. Celestino. Ficava bem: seu Giordano, o prej udicado, a ir pedir pelo patrício... Afinal, o Deolindo cedeu, que as torrinhas começavam a barulhar. Seu Oto da Câmara dava entretanto outros conselhos: — Mas me pulem o quadro, me pulem aquele quadro! "cês vigiem bem: na hora em que o príncipe se virar, abrir de novo os braços, e perguntar "quem resiste?", o povo vai lembrar-se do seu Nicola, e cai na gargalhazada outra vez! E o senhor, seu Giordano, me faça o seguinte: aparece o senhor primeiro, faz outra saudação, outra reverência caprichada, agradece... Em minutos, Deolindo da Conceição e Nena Cavaliére estavam novamente prontos para reentrar em cena. Seu Oto da Câmara ainda instruía seu Giordano: — Pelo que eu pude ver do ato, a continuação vai ser o Olindo carregar com dona Nena, quer dizer, a Margarida, para o quarto dele. Pois então: que os dois me entrem logo, fechem a porta, e me toquem esta pantomima para a frente! Passado o perigo de terem de suspender, naquele ponto, a pantomima, devido à brincadeira do italiano verdureiro, Zito do Adão não se impacientava mais. Dali, da ponta das arquibancadas, não se via direito o drama, mas Zito do Adão podia acompanhá-lo perfeitamente bem, apenas pelo que ouvia dos artistas em cena. Tudo o que vinha sucedendo na pantomima era mesmo tal qual o carroceiro de j aula explicara; e o que estava por acontecer deveria ser também exatamente como o Evaristo havia adiantado. Zito do Adão seguia a história sem perder palavra. Depois que viraram amantes, o príncipe mais a Margarida, filha do pirata, é que começava o mais importante — bem que dissera o Evaristo Carroceiro. O marquês acabara por saber de tudo... O Bobo odiava o príncipe porque este j udiava demais do pobre coitado, humilhava, e por causa disso é que traía o príncipe com o marquês... sabia que os dois amantes se encontravam secretamente toda noite, dormiam juntos na alcova até quando começava a clarear o dia. O Piccolino é que ia buscar a
moça, levar ela de volta para a prisão, passando pelo subterrâneo do castelo; carregava, escondido, a comida para ela, também, na torre. Dominado pela espiã, o príncipe vinha deixando no mais-hoj e- mais-amanhã a execução do Bartolomeu, o pirata, j á condenado a morrer no pátio do castelo, a machado, num cepo de pau. O Bobo fingia amizade com a prisioneira, arrancava os segredos, levava tudo quentinho para o marquês: o príncipe prometera livrar o pai, ia mandar uma serrinha e uma lima dentro de um pão, e uma corda de seda enrolada e enfiada pela boca de uma bilha d"água, mo"de o Bartolomeu serrar a grade e fugir... Aí, quando tomou ciência desse proceder do príncipe, o marquês começou a combinar com os outros nobres: preparar a revolta, assaltar o castelo, matar o príncipe e ficar com a coroa... Ahm! O marquês quisera conquistar também a Margarida, tinha-lhe proposto liberdade a troco d"ela ficar com ele, isso antes de entregar ela para o príncipe; mas a prisioneira não cedeu, declarou que preferia a morte! Então, foi que o ódio do marquês aumentou, quando soube que os dois andavam de etcétera, e de bóbis, sem ser à força... j á até que a Margarida apaixonada... — havia declarado o Bobo Piccolino. Pena que o companheiro não ficasse no Sobradinho mais uma noite!... — havia falado, muito sentido, o Evaristo Carroceiro. Mas, se ficasse, devia de ir assistir à pantomima; botasse sentido na hora do assalto ao castelo: ele, Evaristo, ia fazer de soldado — soldado do marquês; era dos primeiros a pular, bacamarte na mão, pela j anela da sala do trono... Será que dava para o Evaristo reconhecer, ali no meio daquele aj untamento de povo, o companheiro de buzo e cervej a da noite passada? — se perguntava Zito do Adão, encolhido no cantinho escondido do fim das arquibancadas. Difícil... Mas, mesmo que divulgasse, conhecesse, a coisa não ia ter tanta importância não... Lá pelo meio do terceiro ato — o último do drama — logo após a cena do cárcere, quando Bartolomeu, o Corsário, recebe o pão e a bilha d"água, e descobre a serra e a lima, e a corda de seda mandadas pelo príncipe - armou-se o quadro novamente na sala do trono do castelo. O príncipe, de coroa e túnica. A Corte, o capelão, o Bufão Piccolino. O Bobo dava cambalhotas, fazia suas piruetas, a Corte se divertia. Quando, então, abre-se violentamente a porta da sala e surge, mão ao peito, ziguezagueante, um seteiro das muralhas. Atinge, aos cambaleios, o degrau do trono, tomba ante o príncipe j á erguido e de fisionomia convulsa: — Traição, traição, alteza! A ponte! A ponte levadiça!... O marquês de Aj áccio!... — e se repuxa todo, o infeliz, e se inteiriça, e morre. O príncipe Filippo vocifera as ordens: — Guarda! Às armas! Vinde a mim! E desembainhando a espada: — Para as muralhas! O torreão! Mas j á saltava por uma das j anelas da sala do trono o marquês de Aj áccio, o marechal-de- campo, sabre nu e pistola em punho! A porta estremecia, se sacudia, ruía com grande estrondo: — Abri, abri ! Viva o príncipe! Ouviu- se então, enxofrando a cena, o primeiro disparo — um canhonaço! — da pistola do marquês. Chegara, afinal, o momento. Zito do Adão deslizou-se — um camundongo, de pequenininho e arisco — enfiou-se, de fasto, pelo vazio j unto à cortina da entrada dos artistas, num átimo se sumiu na sombra de debaixo das torrinhas. Colado à lona, correu até a costura que descia desde o topo do mastro ao chão. Era por perto, na quinta tábua... — ele sabia. Buscou então, com os olhinhos ligeiros, localizar o velho. Ali ! — avistou as calças azuis do uniforme do rapazinho, as duas saiazinhas marrons, as perninhas de meia curta das duas meninas; a calça de brim amarelo, as meias brancas, a botina-de- mateiro de sô Gumercindo; as botinas pretas, de pelica e botão, do maj or Virgílio, as três mulheres. E seu Valico Ribeiro: botina de elástico também, a calça de casimira, o lenço aparecendo pela algibeira de trás. Os tiros, saídos de todos os cantos do picadeiro; a catinga de pólvora seca, a
gritaria dos artistas. Zito do Adão levantou a garrucha — pretona, enorme, de dois canos — armou um cão, armou o outro, encostou a boca gêmea, filipe, da ferramenta às costas de seu Valico, bem à alturinha dos rins. E puxou, de uma vezada só, os dois gatilhos. Um morteiro, que clareou o porão das torrinhas, a fumaceira. Ao mesmo tempo o ruído conhecido de pano rasgado, da lona aberta a faca pelo Miliano — um talho de mais de braça, alto a baixo, desbeiçando a lona, facilitando a escapada para o irmão. Continuavam os tiros, o entrevero — o pandemônio da cena final do drama Amor e Sangue. Minutos mais tarde, lá fora, j unto aos tabuleiros de quitanda e à correria do povo, o cabo de polícia berrava, impondo ordem, comandando: — Por ali, por ali ! Vi o homem: um pretão corpulento, de manga de camisa, correndo de revólver na mão! Ali, por aquela banda! Arrodeiem o Grupo, a taipa do recreio! No outro barranco do córrego que passava nos fundos do terreno onde se armara o circo, j á amontados nos animais escondidos na escuridão da macega, Zito do Adão e o mano Miliano tomavam rumo bem diferente, a fim de ganharem a saída da cidade, cruzando pelo pasto do matadouro — lá onde atravessava a boiadeira que vinha do Porto da Passagem. Se apertassem o passo — Zito do Adão calculava — chegariam à fazenda de seu Valico Ribeiro lá pelo meio do dia, o Damastor pelo retiro, inocente de tudo, ou senão saído para algum campeio por perto, com certeza que sozinho... O Damastor haveria de contar, e bem contado — dúvida alguma tinha quanto a isso o Zito do Adão — o rumo seguido pelo companheiro, o tal de José de Arimateia.
Santana do Boqueirão 1º quadro
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OS CAVALEIROS QUE chegavam, atraídos pela fama de Santana do Boqueirão, concordavam de pronto em que a cidade realmente a merecia. A começar pela praça principal, o Largo das Mercês: as palmeiras quase que tão altas como a torre da Matriz, os cobradores da Câmara e do Fórum — os mais sobrados e palacetes das famílias abastadas do lugar. Era, entretanto, muito acanhado ainda o largo para conter toda a importância de Santana do Boqueirão. A cidade crescia, transbordando do centro e subindo as ladeiras que levavam aos altos, descia de lá outra vez para ocupar, pouco a pouco, os terrenos vagos e esquecidos. Da escadaria da Matriz à plataforma da estação de trem de ferro, era um quilômetro exato — diziam; ao Largo do Colégio, outro tanto, se não mais; e ao Cachimbo. Cemitério Novo, Boa Vida e Santo Eustáquio regulava também a distância, que o centro de Santana do Boqueirão parecia cavado a compasso pela natureza, redonda concha por igual. E tudo com adiantado princípio de ruas calçadas e paralelepípedo, os passeios de laj es de pedra rej untada. E água encanada, esgoto, luz elétrica. O recém-chegado se admirava em ver tanta prosperidade e movimento, arranj ara logologo fácil e esperançoso meio de vida — em geral ficava. Se de profissão mais elevada ou de dinheiro à mostra, o clube e a política então o recebiam — as casas de negócio davam .prazo, aparecia nas colunas do j ornal. Se de ocupação mais corriqueira, havia para ele outras formas de diversão e vantagens: aos sábados de noite e nas tardes de domingo, banda de música no Largo das Mercês, o coreto rodeado da sombra dos manacás e magnólias, os caramanchões de rosinha-trepadeira, j asmim-do-império e bogarim. Já se anunciava também o cinema — o barracão de zinco quase pronto, a máquina encomendada e por chegar. E mais: escola pública, de graça, e seminário para os meninos de devota inclinação. Não que fosse completo paraíso para todos; mas, para certa espécie de gente, Santana do Boqueirão quase chegava a ser : o bicho funcionando livremente, as casas de j ogo bancado e carteado abertas dia e noite, cabaré e pensão-de-mulher em quantidade. O que mais apreciavam, porém, os santanhenses e arribadiços de vida airada, era o bom gênio da polícia — acomodada, desintrometida e pouca. Em Santana do Boqueirão mandavam os Barbosas — família de tronco muito antigo, descendente do maj or Eustórgio, desbravador do Sertão do Bugre e fundador da cidade. Gente numerosa e de ricas posses, seu orgulho maior era, entretanto, o de não terem ainda perdido, em tempo algum, o domínio do lugar — tampouco a influência nas cidades vizinhas, resultado do difundido parentesco com as outras grandes famílias da região. Ao sertanista maj or Eustórgio sucedera o barão do Bugre, e a este o coronel Tancredo, pai do Américo Barbosa — mais conhecido por coronel Americão — que, fiel à moda da família, j á se
preparava para legar a chefia da situação municipal ao filho, o dr. Tancredo, formado de pouco em bacharel. A oposição se arregimentava, mas parecia que sem futuro nenhum. O que se ouvia, geral, em todas as rodas de Santana do Boqueirão, era que a situação acabaria por impor ao município ainda mais esse Barbosa. E sem demasiado trabalho e despesa, que o Tancredinho aj udava — ativo e manhoso, e persistente: outra vez o pai.
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ESBOFADO DA CARREIRA, pois a notícia que lhe foram dar era de fato uma importante notícia, Joaquim Lopes — o Quincota — chegou ao Largo das Mercês. Metediço, magricelo, varou logo o aj untamento, e buscou ao seu Vilaça do Cinema, posição boa de ver e prosa bem informada. Puxou, entre dentes: — Então, veio mesmo a Captura... — Pois é... E j á estão de conferência... — o Vilaça precisou, cochichando por igual. — Chegou primeiro o j uiz de direito, logo em seguida o seu Valério mais o dr. Tancredinho. E indagou, por sua vez: — "cê não "tava no Sassafrás? E seu Americão, veio tam"ém? — Deixei o velho na fazenda; ele ainda estava inocente de tudo, de madrugadinha, na hora que eu saí: "tava indo ver um gado no retiro... Mas eu não vim pela beira do rio, não: vim pela Siriema; por isso é que não cruzei com positivo nenhum. Uma hora dessas, porém, a notícia deve de estar chegando no Sassafrás... Em frente ao fórum, o destacamento: quatorze cavalos ao todo — contou o Quincota — quartudos, castanhões, espalhados pelos postes de luz da praça, e pelas palmeiras e magnólias do j ardim. No paralelepípedo do calçamento, os mosquetões desencapados, o aço reluzente de óleo — porçãozinha de tripés armados mira com mira, parecidos com mariquitas de cozinha, dessas de fazer comida em comitiva. Cuidando das montarias — escovando — , afrouxando
barrigueiras , acertando estribos — os cavalarianos: talabarte apertado, cinturão com máuser, sabre curto e cantil. — E o capitão, é mesmo o tal de capitão Eucaristo? — seguia especulando o Quincota. — Tem certeza? — Tenho certeza sim. É o capitão Eucaristo, ele mesmo, ouvi o Juca Meirinho declarar. O Juca veio buscar açúcar na confeitaria para fazer café pra eles lá dentro, e j á espalhou... — E o ordenança? Não é um pretão reforçado, bexigoso, boca de ouro, sargento, de nome sargento Mernegildo? — O nome dele eu não sei — respondeu o Vilaça. — Mas é preto, tem dente de ouro na boca e assim de divisa no braço; sargento ou brigada, não contei elas direito; deve de ser... Está lá dentro do fórum também, subiu mais o capitão. "cê conhece ele? — Vi ele uma vez, mas de longe. Era do destacamento de Vau-d"Antas, isso antes de entrar para a Captura, j á tem bem uns três anos. Fez um horror de destrago por lá... Não entrou mais ninguém, seu Vilaça? Só o seu Valério mais o dr. Tancredinho? Só-só? — Que eu visse, foi só. Conversinha sem mais proveito, a do seu Vilaça do Cinema, sem mais nenhum rendimento — concluiu logo o Quincota. Mas para alguma coisa servira: o capitão era mesmo o capitão Eucaristo Rosa, tal qual seu Clodulfo garantira; e, de gente graúda no fórum, só haviam chegado o j uiz, seu Valério e o dr. Tancredinho. O Quincota foi ficando por ali, ao lado de seu Vilaça, pois não divulgava, por perto, outro informante melhor. Tinha precisão de ficar : mal apeado em casa, chegante do Sassafrás, encontrara a novidade, e, de a-pé mesmo, viera de-toada para o largo, passando muito rápido pelo chalé do seu Clodulfo, recebido mal-mal as ordens; conhecia, porém, as manias do gerente — adivinhava o que
ele, de-deveras, ia de querer saber. Tirante os donos e empregados dos cartórios, ninguém mais entrava no fórum. Na praça é que se j untava muita gente — hora de depois do almoço, o pessoal do comércio voltando de casa, as moças da Escola Normal. O Largo das Mercês movimentava-se, e j á-j á coisa ou outra havia de acontecer — palpitava o Quincota. Não queria voltar ao seu Clodulfo de capanga vazia, sem lhe levar, ao de menos, noticiazinha de monta; conhecia de sobra o pendor de seu Clodulfo, aquilo que mais lhe aprazia saber : não somente o nome das pessoas que entravam no fórum para falar com o capitão e o j uiz de direito — quem foi, quem não foi — principalmente aquelas da facção contrária, gente do coronel Eusébio ou do dr. Filó; o importante era o tempo gasto nas conversas e, mais que tudo, o estado da cara do fulano depois de sair do particular com as duas autoridades — se de feição alegre ou desconsolada por completo. De tal verdadeiro e bem contado romaneio, é que seu Clodulfo ia poder refletir, tirar conclusão competente. Mais rapaziadinha do colégio dos frades, mais mocinha da Escola Normal. Um ou outro roceiro saliente se arriscava até os cavalos, admirava o porte deles, puxava assunto com os soldados. E nada de acabar a entoj ada conferência lá no sobrado do fórum! Nas sacadas do Clube Eldorado, o pessoal da rodinha do truco j á se reunia, os parceiros do trinta-e-um, os fazedores de paciência também. Ali sim — calculou então o Quincota — o ponto de novidade maior. Talvez até que, das j anelas altas do clube e através das outras do andar de cima do fórum, se enxergasse o que andava passando lá por dentro do gabinete do j uiz! Joaquim Lopes deixou então o seu Vilaça do Cinema e se foi. A meio caminho, apertou o passo: lá envinha, descendo pelo passeio da Força e Luz, abanando muito as mãos — falando sozinho, e vermelho e suado — atrás da cervej a preta do clube e da prosa de todo dia, o novidadeiro cônego Tristão. Mas o Quincota não chegou a subir as escadas do Eldorado. O zunzunzum que correu pelo largo fê-lo volver a cabeça e espiar de novo para a porta do fórum. Lá estava, bradando com uma praça do destacamento — pito ou ordem enérgica, certamente — o capitão Eucaristo Rosa. Rente dele, lustroso de preto e encapotado, o sargento Mernegildo. Acabava, por fim, a conferência — concluía o Quincota. Mas não haviam saído ainda do sobrado o dr. Tancredinho e o seu Valério, mais e mais gente se acumulava no Largo das Mercês, e a Captura começava a movimentar-se, recolhendo os mosquetões enfileirados no calçamento. Ele também é que não arredaria pé do largo! — o Quincota decidiu-se. E se aj eitou no degrau favorável da porta do clube, resolvido a não perder um nadinha do que pudesse ainda acontecer. Quando — isso, ali pelas dez, dez e pouco da manhã — o dr. Tancredo Barbosa, acompanhado do sogro — seu Valério Garcia, delegado de polícia do município — entrou na saleta do j uiz de direito, no segundo andar do fórum, j á lá se encontravam o dr. Damasceno Soares e o capitão Eucaristo. Conferência de porta trancada — viram logo os dois recém-chegados: no começo do corredor, onde desembocava a escadaria do sobrado, postava-se o ordenança — a cara preta
escarvada de bexiga, mão no punho da espada que carregava na cintura em vez de sabre — certamente com ordens de só deixar passar as pessoas mandadas chamar pelo j uiz de direito e o capitão. Tanto o dr. Tancredinho como o sogro estavam prevenidos, sabedores da qualidade da conversa que ia sair daquele encontro, e do mau gênio e nervosia que costumavam atacar o dr. Damasceno Soares, o j uiz de direito nomeado, fazia pouco tempo, para a Comarca de Santana do Boqueirão. Fora do cargo, homem até que de certo trato, não muito difícil de se lidar com ele; nas obrigações do fórum, porém, exigente e neurastênico, sempre inclinado a condenar todo mundo, obcecado na ideia fixa de querer moralizar a cidade. Ademais, pessoa fraca do peito, doente de bronquite e asma; nas audiências e sumários, se os acessos o pegavam, havia de se estar de pé atrás com ele — coisa j á notória na cidade — pois, então, o dr. Damasceno se exaltava e se desatinava completamente. Doutor Damasceno apresentou o oficial — capitão Eucaristo Rosa, comandante do Segundo Destacamento Especial de Capturas do Estado — e principiou: — Pensei que o coronel Calixtrato Barbosa também nos desse o prazer... Mandamos avisá-lo em casa... Bem preparado de antemão para enfrentar o j uiz, o dr. Tancredinho aparou com j eito aquela primeira ferroada: — Meu tio pediu para dizer que está às ordens do capitão, na Câmara ou na casa dele, e a qualquer hora... E que tem muito gosto em conhecer o capitão, em colaborar com a Captura... O senhor está pensando em se aloj ar na cidade, capitão Eucaristo? Hotel para o senhor, acomodação e comida para o destacamento, pasto para a tropa... tudo isso está ao seu dispor. É só determinar... — Agradecido — o capitão respondeu, seco, do sofá de palhinha da saleta. — Já acertei as providências com o doutor j uiz de direito: as praças do Destacamento e a tropa, tudo vai ficar acampado aqui mesmo, no pátio do fórum, que é próprio estadual; eu e o meu ordenança j á temos quarto reservado no hotel, por nossa conta. Se precisar de mais alguma coisa, requisito. O silêncio que se fez levou o j uiz de direito a explicar : — Como o senhor vê, dr. Tancredo, a Captura é força especial... deve agir com muita independência... Espero que o senhor esclareça seu tio sobre isso, o coronel Calixtrato... e também ao seu pai, o coronel Américo Barbosa. Estou certo de que eles não levarão a mal... — Não vej o em que a gente possa tomar isso como agravo... — falava agora, muito pensado e pausado, seu Valério Garcia. — Sou delegado municipal j á faz anos, e entendo bem do assunto. O coronel Calixtrato é também pessoa concordada, fácil de se levar. Por detrás da paciência que procurava manter, o dr. Damasceno j á sentia, porém, ganas de desabafar. Ora quem, o seu Valério! Mentiroso e hipócrita, cocorador de tudo o que era mau elemento, falsificador e consumidor de processo! Desde o começo, quando ele, j uiz de direito, novato em Santana do Boqueirão, assumira a comarca, seu Valério vinha com a mesma manha, bancando santidade... E não se emendava, repetindo sempre a pantomima! Mas se acalmava: — Seu capitão está chegando de viagem, como os senhores estão vendo, e com bastante providência para tomar. Vou, portanto, entrar logo no principal, com a licença de todos. Dr. Damasceno tomou fôlego e se acomodou melhor na cadeira. Começou a rodar no dedo o anel de grau, sestro que adotava nos interrogatórios e demais audiências no fórum, e quando presidia sessão de j úri. Prosseguiu, voltando a escolher as palavras: — Desde que aqui cheguei, vi que as denúncias levadas ao presidente do estado sobre a presença nesta cidade de numerosos elementos processados e procurados pela Justiça... verifiquei logo que quase todas tinham procedência... para não falar que todas... Somente de precatórias paradas, sem andamento, encontrei mais de dúzia —
afora uma quantidade enorme de ofícios de outras comarcas pedindo informações sobre criminosos de morte. Os senhores são testemunhas de que minha primeira providência foi procurar a administração do município, dar conhecimento da irregularidade e pedir colaborasse com a disposição do presidente de sanear o estado, limpá-lo da corj a de bandidos impronunciados, imunes e foragidos que infestam as cidades do interior... Infelizmente, porém, nada pôde ser feito até hoj e, e reconheço que os meios atuais da delegacia de Santana do Boqueirão são muito precários, sobretudo no que se refere ao destacamento local... Com a chegada do Segundo Destacamento de Capturas, porém... Dr. Tancredinho ouvia o discurso, se lembrava do pai e do Clodulfo. O velho, arteiro e escondedor de leite, esse nunca que botava o pé na peia, esperando sempre pela hora adequada de dar sinal de si; o Clodulfo, mais precavido ainda, reservado e observador. Pouco antes de saírem para aquele encontro no fórum, o Clodulfo ponderara: "Cuidado com o dr. Damasceno, olho nele! Batedor-no-peito, acompanhador-de-procissão, mas falso que nem um j udas! Joguem seguro com ele: saiam sempre de figura, um dois quando muito, deixem as manilhas para a mão final !" Por causa de tais conselhos do Clodulfo é que o dr. Tancredinho j á tinha contado até dez, na hora de apartear : — Estou inteiramente de acordo... Mas o senhor há de convir : Santana do Boqueirão é centro de grande movimento de gado, passagem forçada das comitivas do sertão, praça de muito negócio e dinheiro... lugar frequentado por gente de toda laia; um ou outro forasteiro indesej ável, corrido de outras bandas, acha às vezes de se arranchar por aqui... E o senhor concorda que o destacamento da delegacia, um cabo e três soldados apenas, quase que sem munição... — Se fosse um ou outro apenas, como o senhor afirma, o fato era explicável, não chamava tanto a atenção — observou o j uiz. — Mas o diabo é que eles estão se tornando dia a dia mais numerosos! Santana do Boqueirão transforma-se numa espécie de valhacouto de j agunçada... Não foi isso o que denunciou o senador Pires, no discurso que pronunciou, comentando a pastoral do senhor bispo de Acaj uí? Não lhe mostrei o j ornal? O senhor viu as referências, algumas até que bem desairosas, aos chefes políticos de Santana... Exagero ou não do senador Pires, o fato é que o discurso dele alcançou muita repercussão; hoj e em dia, outra coisa não faço, aqui nesta cidade, a não ser abrir carta e telegrama reclamando prisão de criminoso... O dr. Damasceno soltava as suas indiretas, passava o seu sabão... mas de leve, com certo tato — o dr. Tancredo Barbosa era forçado a concordar. Com o capitão Eucaristo ali do lado, posto pelo governo à disposição da comarca, a demonstração de prestígio que, com isso, o presidente do estado dava ao j uiz... com um trunfo assim nas mãos, e entretanto o homem se comportava... Devia de estar com a saúde melhor, menos achacado do peito... Sim, naquela manhã, o dr. Damasceno acordara de bom gênio — parecia. O que convinha era deixá-lo falar, deixá-lo prosseguir, ver até onde queria ele chegar com tanto rodeio e palavreado... —... e depois — continuava o dr. Damasceno — o presidente do estado, o dr. Figueiredo de Mendonça, é homem devoto, religioso. Quer acabar com a j ogatina, inclusive. Fechar o bicho, as casas de j ogo bancado... Nesse outro ponto, ele vai também contar comigo, que não escondo minha fé e os meus princípios. Em Santana do Boqueirão, não preciso lhes dizer : é chalé-de-bicho por todo canto, dois cabarés com roleta e outras roubalheiras funcionando às barbas das autoridades — sim senhores, em pleno Largo das Mercês, em frente ao fórum! — pensão-de-mulher se abrindo uma atrás de outra. As famílias reclamam, a cidade vai ganhando nome cada vez pior; o frade-mestre do colégio veio outro dia a mim para se queixar, e coberto de razão: uma noite dessas foram pegar dois rapazolas fugidos do dormitório do internato... o senhor sabe onde, meu caro dr. Tancredo Barbosa? Um deles, tomando cervej a no bordel de uma tal Ambrosina, o outro rondando mesa de j ogo no cabaré da Carvalhosa!
Dr. Damasceno falava, o dr. Tancredinho pouco ouvia, ocupado em pensar no pai. Acabar com o bicho, fechar o j ogo bancado, atrapalhar a vida das donas de pensão e raparigada... — o velho podia morrer, que não cedia a nada disso! Tampouco em abrir mão dos seus capangas de estima, muitos deles j á empregados do Sassafrás antes d"ele, Tancredinho, ter nascido... Gente de confiança, fiel, dispostos até a morte pelo chefe... Os outros chefes de Santana do Boqueirão, esses também não concordariam, nem por sombra, com aquelas exigências do j uiz de direito: o que rendia dinheiro para custear as eleições eram aqueles homens que o pai mantinha com tanta despesa e que, agora, o santarrão do dr. Damasceno Soares resolvera perseguir ! Ganhar política com quem? Com as freiras do orfanato? Com as filhas-de-maria do cônego Tristão, com os frades do colégio que nem votar podiam? E com que pagar as contas — comida, transporte, qualificação, as viagens... — sustentar os cabos eleitorais e suas famílias... — com discurso? Falar bonito como o dr. Filó falava, o qu"e que valia aquilo, o qu"e que adiantava? Mais eleição havia, mais porrete levava o doutor com toda a oratória empolada dele... Se o dr. Damasceno fosse um j uiz recruta, inexperiente... vá lá! Mas homem de idade, burro j á calej ado, passado e repassado por tantas outras comarcas, conhecedor de política municipal... — uma zebra dessas a vir bancar moralidade, e j ustamente em Santana do Boqueirão! Tão distraído estava o dr. Tancredinho com tais pensamentos, que não pôde mais evitar : o idiota do sogro, a anta de seu Valério entornava o caldo: —... depois, doutor, essa gente não é tão ruim como parece, muitos até que j á andam procurando serviço na cidade e nas fazendas, arrependidos do passado... — argumentava seu Valério, engazopado com certeza pelo palavreado do dr. Damasceno —... e o j ogo traz lucro pro município, é dinheiro de fora que entra para o comércio, movimento... de especial a boiadeirama, povo que não faz questã" de gastar, apaixonados por essas coisas... Justamente nessa hora em que seu Valério se intrometia, entrava o Juca Meirinho com a bandej a de café e água com gelo, ladeado pelo sargento Hermenegildo. O j uiz de direito se serviu, serviu-se também o capitão, seu Valério Garcia, o Tancredinho... e a besta-quadrada do sogro nem para se aproveitar da pausa e parar com as desculpas esfarrapadas, sem vantagem e sem propósito!... — o genro se afligia. O simplório do seu Valério insistia, porém: —... a presença da Captura, isso j á vai servir de lição. E a gente aperta mais um pouco na delegacia, vai corrigindo eles pouco a pouco, torcendo mais nas cravelhas... Pela primeira vez, desde que se encontravam na saleta, o dr. Tancredinho viu um riso na carranca do capitão Eucaristo. Mas um risinho tal de deboche, que o advogado se encolheu, desacorçoado. — Mas, seu Valério... — recomeçava o j uiz de direito, acabando de tomar o café. De repente, porém, lá veio o acesso de tosse, provocado certamente por um pingo desencaminhado para o goto, um beij uzinho de açúcar... talvez pelo cigarro que, inadvertidamente, o dr. Tancredo acendera, esquecido do horror que tinha por fumaça o j uiz de direito... E o homem, sem poder parar de tossir, acabou por perder as estribeiras, explodindo como naqueles esbregues do Fórum: — Ora-ora, seu Valério Garcia! O senhor a querer me engrolar com esta conversa fiada de "aperta mais um pouco", "corrige pouco a pouco"!... O que vej o aqui é pouco caso, pouca responsabilidade, pouca vergonha! Tenha a santa paciência! Jagunço regenerado, procurando serviço honesto?! Bom ladrão, que eu conheça, ladrão arrependido, só existe na História Sagrada! Outro acesso de tosse, ainda mais forte, fê-lo interromper-se. Mas para que nenhum dos presentes pudesse aproveitar-se da pausa, o dr. Damasceno estendia os braços, sacudia-os, de palmas abertas e dedos inteiriçados, exigindo silêncio. Mal amainou a tosse, prosseguiu no destampatório: —... E também a tentar-me convencer que o j ogo do bicho, explorado por banqueiros de fora, de Acaj uí e
Vau-d"Antas, que essa imoralidade é fonte de renda para o comércio de Santana do Boqueirão! O senhor então acha que cocorar bandido e j ogador profissional é papel de delegado de polícia, e que essa é a única colaboração que o senhor me pode prestar? Pelo que estou entendendo, eu, o j uiz de direito da comarca, e o capitão Eucaristo, comandante do Destacamento de Capturas, nosso papel que deve ser somente o de brincar de assombração, fingir susto em j agunço e assassino, implorar com bons modos que eles mudem de vida?! E o soco na mesa, e mais outro, e ainda outro: — Me responda, seu Valério Garcia! Me responda! E toda essa descalçadeira gritada sem reservas, o sargento Hermenegildo, o Juca Meirinho ainda na porta com a bandej a de café... os dois ouvindo tudo... e a j anela que dava para o Largo das Mercês escancarada... A asma! A excomungada da asma! — via o dr. Tancredinho, ouvia ele a chiadeira que escapava do peito do dr. Damasceno Soares. O homem bufava, demudado de feições, o suor lhe escorrendo pela cara... A exaltação vencia porém a doença: fora de si, anel de grau em riste, o j uiz desabafava — pintava e bordava! Se se havia contido, deixado passar sem o devido troco a desfeita do coronel Calixtrato — o atrevido a recusar-se a comparecer ao fórum, convidado pela primeira autoridade da comarca, e a mandar recado, pondo-se à disposição do capitão Eucaristo! E ele, o j uiz de direito, que apito tocava, afinal de contas? Se havia suportado o desaforo do coronelão casca-grossa, era porque desej ava mostrar ao comandante da Captura, deixar bem à vista a maneira como se tratavam, em Santana do Boqueirão, as autoridades do estado! Agora, porém, j á era ousadia demasiada: o próprio delegado de polícia do município a confessar cinicamente a conivência com os banqueiros de j ogo, a escandalosa proteção aos maus elementos da cidade! Mais coisas não dizia o dr. Damasceno, mas estavam elas frescas na cabeça dele, aj udando-o a carregar a mão na descompostura que passava no dr. Tancredo, filho do coronel Américo Barbosa, e no outro graudão de Santana, o seu Valério Garcia. Na capital, onde recentemente estivera, o dr. Damasceno havia-se informado de tudo: das idas do dr. Tancredinho ao palácio para pedir ao presidente do estado a nomeação de outro j uiz para a comarca, das intrigas que o advogadozinho de roça havia procurado urdir e semear. Desta vez, porém, a súcia de Santana do Boqueirão encontrava fôrma para o pé! O coronel Americão Barbosa era sabidamente pessoa do dr. Ataulfo Machado, caído em desgraça com o governo do estado, e o dr. Figueiredo de Mendonça não poupava adversário. A história da tal caderneta preta, onde o presidente costumava apontar as velhacadas e perfídias que se praticavam contra ele, a tão falada caderneta servia agora de bíblia de cabeceira do dr. Figueiredo; e — contavam os que privavam com o presidente — o nome mais anotado no tal livrinho de capa preta era o nome do dr. Ataulfo Machado. A derrubada da atual política de Santana do Boqueirão, comprometida pela amizade com o dr. Ataulfo, constituía, pois, assunto dos que mais podiam agradar ao dr. Figueiredo — voltara para sua comarca, assim convencido, o dr. Damasceno Soares. Se dúvida persistisse, ali estava, para desmanchá-la, o capitão Eucaristo Rosa, comandante do Segundo Destacamento; lá fora, no Largo das Mercês, a Captura — a tropa mais famosa do estado — e metade dela só, o resto decerto que espalhado e escondido por perto, aguardando apenas o toque de reunir. Sim, chamavam-no de carola, comedor de hóstia, carregador de andor... Escarneciam, troçavam dele à socapa, debochavam a valer Arremedavam-lhe a bronquite, o chiado da asma, as faltas de ar, o destempero dos soluços... — o dr. Damasceno sabia. Seu Valério Garcia, esse só faltava rir-lhe na cara: todo fim de mês, saía afrontosamente a recolher as boladas
das casas de j ogo bancado, dos cabarés, dos antros de víspora e carteado, e — comentava-se abertamente — até dos bordéis que lotavam, de ponta a ponta, o Beco da Boa Vida! Tudo isso o capitão Eucaristo precisava de ouvir, para ter ideia do que era Santana do Boqueirão, do mato em que viera lenhar : a irresponsabilidade, pouca-vergonha, a sem-cerimônia de autoridades como aquele droga de seu Valério Garcia, assentado ali em frente, as mãos entre os j oelhos, a cabeça baixa, todo ele ressumando inocência... Outra bisca também, o dr. Tancredo Barbosa: filhinho de papai, adulado e paj eado por todos, j á dando cartas no município, principiando a botar a cabecinha de fora... O dr. Tancredinho escutava o sermão, mas não piava — desfeito de ódio, pálido, mudo entretanto. Refletia: ele, filho do homem mais poderoso de Santana do Boqueirão, bacharel, casado e j á em vésperas de ser pai, a levar carão de forasteiro, e na frente de soldado, ainda mais! O Juca Meirinho, esse felizmente já havia saído da saleta, mas o sargentão preto seguia ouvindo tudo pela porta do corredor... A cidade em peso a ficar sabendo — o dr. Filó, o pessoal da oposição, a malta do Clube Eldorado! Se, no clube, o bando sem-que-fazer matava o tempo se divertindo em inventar os piores diz-ques da cidade, que prato para eles, quando soubessem do que se passava ali no gabinete do fórum! As risadas do seu Gaudério da Alfaiataria Século X, do Bento da Joalheria, do seu Costinha da Força e Luz, do impossível cônego Tristão! Antes de caída a tarde, a notícia j á andaria velha pelos altos da cidade, espalhada pelos cacifeiros e empregados do clube, virada assunto de cocheiro de charrete e carro de praça, cambista de bicho e rapariga de bordel !... E ele, dr. Tancredo Barbosa, sem poder protestar, esboçar a mais pequena reação! Vontade não lhe faltava de obrigar aquele tuberculoso de j uiz a calar a boca, quebrar-lhe os dentes e o afetado pincenê, montá-lo em pelo numa égua lazarenta, bem bicharada, de cara pra trás... Botá-lo para fora da cidade a poder de vaia e roj ão, com acompanhamento de banda de música e molecada da rua... Uma vez — ele, Tancredinho, não era nascido ainda — contavam que o pai fizera isso com um outro j uiz intrometedor e desaforado, da marca do dr. Damasceno, um tal de dr. Suasivo. Espetáculo de graça, num domingo de festa de igrej a, Santana do Boqueirão apinhada de povo nas ruas, lotada de romeiro e gente de fora! Mas o dr. Tancredo Barbosa não se erguia para quebrar a cara e o presumido pincenê escuro do j uiz de direito, fazê-lo engolir seus despropósitos. É que as palavras do Clodulfo não lhe saíam da cabeça: "Não provoquem, não discutam, não deem pé-de-briga, pelo amor de Deus! O que o dr. Damasceno vai querer é isso, o mesmo também que desej a o capitão Eucaristo! Em Vau-d"Antas, foi tal qual: a Captura chegou, e os bobos de lá acharam de reagir antes da hora, sem nada preparado... Vocês sabem o que aconteceu: agente executivo, delegado, j uiz de paz, quase tudo o que era autoridade — escapou somente quem conseguiu fugir a tempo — o povo mais importante da cidade obrigado a baldear lata-d"água na cabeça, lavar a cavalhada do destacamento na pracinha em frente à cadeia, capinar rua com soldado vigiando e caçoando, e, isso, no auge do movimento de Vau-d"Antas! Pegado à cadeia é o Grupo Escolar, e, na hora do recreio, a meninada disparava para assistir à barbaridade, apontar os infelizes com o dedo, assobiar..." Era por demais verdadeira e conhecida a história do capitão Eucaristo em Vau-d"Antas para que o dr. Tancredinho se arriscasse. O dr. Damasceno sabia dela também e estava armando desgraceira parecida... Quem cometera a malvadeza estava ali presente, empertigado e duro no sofá de palhinha da saleta, balançando as pernas e chocalhando as esporas. No corredor, o outro, o sargento Hermenegildo: vez ou outra, se escutava o escarrado grosso dele, o arrastado da espada pelo assoalho de tábuas — celerado pior que o capitão, muito mais carrasco!
O dr. Damasceno não parava mais: —... ainda hoj e, de manhã cedo, quando fui à farmácia, topei com o tal de Hirondino, montado num burrão branco, lenço no pescoço, o cano do revólver aparecendo por debaixo do paletó, descendo a passo, sossegadão, plena rua do Comércio! O Lico da Isoldina anda também por aí, e j á de chalé-de-bicho montado; não faz muito tempo, foi a Campo Raso matar o pobre de um médico, desavindo com os mandões de lá — e foi, e voltou, e continua lampeiro da vida, como se nada de mais houvesse acontecido! O descarado do Chico Doido, esse outro facínora, é um que não perde coreto no largo, e, cada noite, aparece de braço com rapariga diferente! E j á matou tanta gente, e continua matando tanta, que nem ele mesmo deve de saber mais a conta certa! E os outros? A lista que estou levantando... Havia mais: — Prostituição às escâncaras, o crime a campear, infrene e avassaladoramente! A bebida a j orrar de forma nunca vista! O maldito álcool ! Mas vou acabar com isto tudo: os senhores não me conhecem, não me conhecem!... Até que finalmente o dr. Damasceno não pôde mais continuar, afogado pelos guinchos da asma, sacudido pelos solavancos de um enxurrilho de soluços. Arriou-se à escrivaninha, esfalfado e espumoso, mas insistindo — os braços esticados — em não permitir que lhe viessem interromper ou socorrer. Assim quedou por algum tempo, lutando contra a prostração e o acesso. Quando se sentiu menos afrontado, aproveitou-se para ditar a sentença contra seu Valério: — E o senhor, seu Valério Garcia, saiba que, de hoj e em diante, em matéria de precatórias e denúncias de crimes de morte... nas ações também de meretrício e j ogos proibidos, vou passar a entender-me diretamente com o capitão Eucaristo Rosa, que j á me apresentou suas credenciais de delegado especial militar... e para toda a comarca... Era a pá de cal, a completa desmoralização, não apenas do delegado municipal de polícia, mas de toda a política situacionista de Santana do Boqueirão. Humilhado por humilhado, perdido por perdido, o dr. Tancredo Barbosa dispôs-se, entretanto, a apelar para o derradeiro recurso; tentar ganhar tempo: — O senhor se acalme, de. Damasceno. Vamos procurar acertar da melhor maneira tudo isso. Já mandei chamar papai na fazenda, e ele j á deve de estar a caminho; o senhor sabe: o tio Calixtrato é o agente executivo, mas gosta sempre de ouvir primeiro o velho... O j uiz virou-se para o capitão, esperando que este decidisse: — Não entendo de política, moço — o capitão Eucaristo levantou-se do sofá, aj eitando o cinturão. — Sou militar e cumpro ordens. O telegrama que recebi foi para deslocar imediatamente o meu destacamento para esta cidade, apresentar-me incontinenti ao doutor j uiz de direito da comarca, e agir sem perder tempo com mais nada. Os senhores me dão licença. E saiu da sala, sem estender a mão a ninguém — o peso e a força das passadas no assoalho do corredor parecendo que iam fazer desabar o sobrado. Dr. Tancredinho e o sogro quiseram levantar-se e deixar também o gabinete, mas o j uiz de direito os reteve com um gesto frouxo de desânimo — um soprozinho de voz: — Os senhores estão vendo... Bem que avisei... Tirou os óculos para limpá-los das manchas de suor — aquele modelo pedante de pincenê sem aro, de vidro muito escuro, que o j uiz em instante algum deixava de usar. — Deve ter sido a água gelada... talvez um pouco de café que me entrou na laringe... — parecia que choramingava o dr. Damasceno, amarelo feito j uá bem maduro, as mãos descoradas e trêmulas mal podendo desembaciar os vidros do pincenê. Um traste derreado na cadeira, um pulha — olhava o dr. Tancredinho, nauseado pelo ar patife do
juiz de direito — agora que não mais se encontrava na saleta o capitão Eucaristo Rosa, tampouco no corredor o sargento Hermenegildo. Sopitou, porém, a vontade de cuspir, e ergueu-se: — Vamos embora, seu Valério — chamou, áspero. Foi então que o dr. Tancredo pôde observar direito, quando o dr. Damasceno ia colocando novamente os óculos: além de
pesteado de tanta tosse de cachorro, o porqueira era caolho ainda por cima, zerê por completo de uma vista!
19
NA CASA DE SEU Américo Barbosa — o vistoso sobradão cor-de-tij olo da rua Monsenhor Prata — os outros chefes e membros do diretório, reunidos com o coronel Calixtrato Barbosa, presidente da Câmara e agente executivo de Santana do Boqueirão, esperavam pela volta do dr. Tancredo e do sogro, mandados de embaixada ao fórum. Antes, porém, mal-mal apeara no Largo das Mercês o Destacamento de Captura, seu Clodulfo havia despachado um peão de casa, o Florentino, com bilhete ao seu Americão Barbosa. Florentino ia no burro laranj o do próprio seu Clodulfo — animal de primeira, enxuto e vaqueano — e, em menos de três horas, estaria na fazenda. Seu Americão, homem disposto e pisador em brasa, esse também não gastaria mais que isso, do Sassafrás à cidade. Cinco, cinco e pouco da tarde, quando muito, e romperia ele, de besta e tudo, pelo portão dos fundos do sobrado. Clodulfo do Nascimento, ali na sala de visitas do sobradão, era o mais calado. De cabeça quente — aprendera ele, j á de há muito — não se podia pensar direito; por isso, evitava entrar na discussão, deixando que os outros batessem boca à vontade, dissessem o ror de criancices e bobagens em que eram mestres. Conhecia a todos muito bem, um por um: o coronel Calixtrato, irmão de seu Américo Barbosa, depois então de feito presidente da Câmara e agente executivo, somente crescera em emproo e malcriação, seguindo cada vez mais oco por dentro, incapaz de ideia que prestasse; o dr. Joj oca, do j ornal — o dr. João Crisóstomo — também uma cavalgadura, farofa pura... Os mais — maj or Hipólito, seu Desidério Barbosa, o Joaquinzinho da Xanda... — uns pândegos: se andavam pelo cabresto de seu Americão, cobravam caro a baj ulice: lá estavam refestelados nas duas coletorias e nos três cartórios, as filhas de cadeira na Escola Normal... Escapava o Josué Malaquias, escapava o seu Sizino, o coronel Ludgero Alves também — exato os que, como ele, Clodulfo, permaneciam por fora da conversalhada sem proveito. "Viagem de boca não faz despesa..." — seu Americão gostava muito de repetir, e com inteira razão. E os dois não vinham! Já quase duas horas que seu Valério mais o Tancredinho continuavam fechados lá dentro do fórum com o dr. Damasceno e o capitão Eucaristo Rosa! E acabariam por voltar de mãos abanando, o rabo entre as pernas — pressentia o Clodulfo. E o coronel Calixtrato a querer ir também, para, além de dar parte de fraco, soltar os seus coices, agravar mais ainda as dificuldades! Felizmente, depois de muito conselho, o homem havia-se convencido afinal de que era o agente executivo de Santana, autoridade principal que deveria, por obrigação, se dar importância e respeito. Agora, ali na sala — quanta paciência precisava-se ter para suportar as asneiras do coronel Calixtrato Barbosa! — voltava ele de novo com a arrotação: telegrafar para o presidente do estado, romper de imediato com o governo, botar a j agunçada de carabina nas j anelas da Câmara... Aguardavam, discutiam, fumavam. De improviso, sem que ninguém esperasse por aquilo — nem meio-dia e meia era ainda — surgiu a Alicinha, sala dentro, com a notícia: — Seu Americão está acabando de chegar ! Ele mais seu Clodoaldo do Retiro e o Florentino... Devem de ter cruzado com o recado no caminho... Nem lhe deram prazo para mudar de roupa, limpar as mãos e o rosto do suor empoeirado. Antes mesmo de poder descalçar as botinas, desafivelar o cinto e se espichar no sofazão da sala de visitas — só assim se sentia a cômodo, capaz de assentar melhor as ideias — seu Americão Barbosa se
inteirara de tudo o que sucedia em Santana do Boqueirão. A passagem da Captura pelo Porto do Sucuri, dessa ele soubera por acaso. É que lhe viera a vontade de ir ver a bezerrada fêmea do ano, desmamada de dias e apartada no retiro do Fervedor — assistir à primeira dada de sal. O Clodoaldo, o retireiro, viera à sede informar que a novilhada estava fechada no pasto da porta, e seu Americão se fora com ele na madrugada seguinte. No caminho, j á perto do retiro, toparam com o menino mais velho do Ponciano, voltando às carreiras do porto; tinha saído de casa para ir buscar remédio para a mãe na venda do Zé Elias, que a pobre se acabava de tanta febre e vomitação, mas não chegara a descer até o barranco do rio. Do topo do espigãozinho fronteiro ao Porto do Sucuri j á se podia enxergar a novidade: a balsa do Zé Elias se encostando, lotada de soldado e cavalaria. O rapaz, engasgado ainda de medo, informava: "Divulguei aquilo e, emantes que pudessem me avistar, voltei pra trás, para alertar o pai... Devia de ser uns trinta, seu Americão!" Dali mesmo — o retiro do Fervedor ficava na beira do aparado, perto das divisas do Sassafrás — seu Americão e o Clodoaldo tocaram pra Santana, descendo pelo atalho da serra. Foram encontrar-se com o Florentino j á lá embaixo, na estrada mestra da fazenda, com o bilhete mandado pelo Clodulfo. Agora, em casa, seu Americão Barbosa tomava ciência do resto: os soldados na porta do fórum, a tropa ainda arreada e amarrada ali pelo Largo das Mercês, o armamento à mostra no calçamento da praça, a conferência que ainda estavam tendo, com o j uiz de direito mais o capitão Eucaristo, o filho e seu Valério. Do mais — as valentias e bobageiras do mano Calixtrato, e também das palhaçadas do dr. Joj oca — dessa desorientação e falta de j uízo seu Americão nenhum conhecimento tomava. Ia esperar, primeiro, a chegada do Tancredinho e do sogro; veria, depois, como resolver a situação — depois que os dois lhe houvessem contado, e bem contada, a conversa do fórum. Acomodado, afinal, no sofá da sala de visitas apinhada de gente — os pés descalçados das botinas, a cintura e a braguilha desabotoadas por completo — seu Americão ouvia o Tancredinho trocar em miúdo toda a demorada conversa com o j uiz de direito e o capitão Eucaristo. Se, às vezes, interrompia o filho, era apenas para esclarecimento de pormenor mais importante: — Quer dizer que nenhum aviso o dr. Damasceno deu, antes da chegada da Captura? Quem respondeu foi o coronel Calixtrato: — O cachorro só me mandou chamar depois que o destacamento j á estava no Largo das Mercês, depois d"a cidade inteira saber. O Juca Meirinho trouxe o recado, dizendo que era coisa urgente, e que o dr. Damasceno pedia para eu ir logo para o fórum; e disse também que ia passar aqui pela sua casa — queria saber se "ocê estava na cidade ou na fazenda... Eu disse ao Juca que eu ia... mas, quando estava vestindo a roupa, chegou Valério mais o Clodulfo; foi então que achamos melhor mandar o Tancredinho no meu lugar, representando "ocê também... — "tá certo — foi só o que disse ao irmão o coronel Américo Barbosa. — E depois, Tancredinho? — Como eu estava lhe contando — o rapaz continuou — tanto o dr. Damasceno como o capitão parece que não gostaram muito quando eu disse que o tio Calixtrato estava à disposição deles, mas na Câmara Municipal ou em sua casa... — E o qu"e que eles queriam? — aparteou o dr. Joj oca. — Que a gente levasse banda de música também? — Vamos discutir depois — cortou logo seu Americão. — Por enquanto, deixem que só o Tancredinho fale. E daí, meu filho? — Mas fui logo oferecendo os préstimos do município: o que o capitão quisesse... Mas ele recusou, e disse que requisitava o que precisasse... que tinha ordens do governo para não depender de nada que não fosse do estado...
— Mau... — disse o velho. — E depois? — Depois, o dr. Damasceno tomou a palavra e começou com aquela história que o senhor j á conhece... Precatória sem andamento, j agunço solto na rua, falta de policiamento local etc. etc. Que fora obrigado a dirigir-se ao presidente do estado, e que o dr. Figueiredo não só atendera, como determinara também o fechamento imediato do j ogo do bicho e do j ogo bancado... — É... é isso mesmo que esse engraçadinho quer, para agradar os padres... Mas me acusou, acusou seu tio, mencionou algum de nós de estar por detrás do j ogo? Falou no quanto recebe a delegacia e o diretório dos cassinos e dos chalés? — insistiu seu Americão. — Bom... Soltou muita indireta... — o dr. Tancredinho achava melhor ocultar, por enquanto, a descompostura do j uiz de direito. E seguiu assim, escolhendo apenas o que podia divulgar sem maior prej uízo, sobretudo para não desorientar mais ainda os outros ali reunidos. O resto, as ofensas mais pesadas do dr. Damasceno — isso ficaria para mais tarde, na hora em que pudesse estar a sós com o velho. Acabado o relato do dr. Tancredinho, falado também quem queria falar, seu Americão deu, afinal, seu parecer : — Quero pensar mais um pouco em tudo isso. Dirigindo-se ao Clodulfo, perguntou: — Todo mundo foi avisado a tempo? Não ficou ninguém na cidade? — Não senhor — respondeu o Clodulfo. -Logo que vi a Captura passar pela rua do Rego, rabisquei correndo o bilhete e mandei o Florentino pro Sassafrás. Depois, fui eu mesmo procurar o pessoal mais visado: o Lico da Isoldina j á estava de besta arreada e pé no estribo... — me disse onde é que vai ficar escondido, esperando aviso da gente; seu Hirondino, conforme o dr. Tancredinho contou, foi visto pelo dr. Damasceno hoj e cedo, na hora que j á saía para Água Branca, mas o j uiz parece que não percebeu que ele estava de viagem... Mesmo assim, topei com o menino dele, expliquei, e o rapaz j á riscou atrás do pai; o Chico Doido, esse parece até que adivinhou: j á tem mais de dois dias que me anda sumido... nem a mulher dele sabe pra onde foi... O Sudário, o Tonho Coco, o Isé da Viola, o Paulistinha... ah, o seu Sancho também... — esses estão todos fora, de viagem. — Então não tem mais perigo — seu Americão disse, erguendo-se do sofá. — mas "ocês aí, avisem também quem acharem que deve... Que eles me fiquem, porém, em lugar fácil de voltar depressa, na hora precisa. Seu Americão j á estava aflito, incomodado por tanta zoada de gente e tanta fumaça de cigarro: — "cês podem ir almoçar, e façam de conta que não estão ligando importância. E não vão inventar mais nenhuma reunião de gente assim, aqui em casa... Eu vou chamando, se houver necessidade... A Alice do Tancredinho veio avisar que a banheira estava cheia, a água querendo j á amornar, e isso apressou a saída dos que ainda queriam insistir, arrancar mais alguma palavra de seu Americão Barbosa. Mas, positiva, só uma o velho soltou: — "ocê fica, Clodulfo, almoça comigo. Temos que acertar as contas do Severino, que chegou ontem na fazenda com aquela vacada que eu comprei no Indaiazal.
20
A CONFUSÃO da manhã — o choque da má notícia, a viagem às pressas do Sassafrás à cidade, a aborrecida e demorada reunião do Diretório... — e nenhuma solução ainda à vista! — meditava o coronel Américo Barbosa. Contudo, chegava-se, pelo menos, onde era preciso chegar : à conversa, de cabeça fria e descansada, com o filho Tancredinho e o Clodulfo. E ali à sombra do pé-de-ingá do quintal, longe da falação e despautérios do bando apavorado e desarvorado do diretório. Tantos anos de domínio em Santana do Boqueirão, a vida inteira naquela luta sem parada, desde menino a brigar ao lado do pai e dos tios, a fim de poder sustentar a posição da família e dos amigos! E, agora, a reviravolta: a ameaça do desprestígio, a perda do mando político da cidade — a derrocada. Havia principiado a má sorte no momento em que se empossara no governo do estado o dr. Figueiredo de Mendonça. O homem, nem bem esquentara lugar, j á dava início à vingança contra os amigos do dr. Ataulfo Machado — os que se tinham oposto, na convenção do partido, à aprovação do nome do dr. Figueiredo como candidato ao governo. Vau-d"Antas, Abadia do Cerro, Brej o Largo, São Pedro da Ponte, Cerradinho... — a zona do pobre do dr. Ataulfo ia sendo destroçada pouco a pouco. Com os demais presidentes e chefões do partido, podia suceder tudo, antes da escolha do candidato: brigas, ameaças de cisão, até duelo saía... Mas, na hora em que se dava a eleição e o presidente subia, o partido se acalmava novamente e voltava a harmonizar-se. O dr. Figueiredo de Mendonça, porém, punha empenho em mostrar o que sempre fora: manhoso mas embirrado, e intransigente e perverso quando serrando de cima — olhador para trás, vingativo. De nada adiantara — o coronel Américo Barbosa via agora — o tanto de viagens do Tancredinho à capital, as explicações, a pilha de telegramas de parabéns e apoio ao novo presidente do estado! Na cabeça do dr. Figueiredo de Mendonça, a ideia fixa persistia: o medo do prestígio e da sombra do dr. Ataulfo Machado, a preocupação de liquidá-lo definitivamente. A conhecida amizade dos chefes da zona do Bugre com o dr. Ataulfo, principalmente os de maior eleitorado, como os de Santana do Boqueirão — essa ligação tão antiga e proveitosa era difícil de desmanchar; e o j eito, então, era acabar sem contemplação com eles! Assim pensava o dr. Figueiredo de Mendonça; pouco se lhe dava ir por água abaixo o partido no Distrito do Bugre, desprezados todos aqueles anos de trabalheira, despesa e malquerenças! — O senhor se lembra do que eu lhe disse, coronel, depois do resultado da eleição? — era a voz do Clodulfo. De novo, o Clodulfo com a adivinhação, o espiritismo dele, lendo sempre o pensamento alheio! — pensou seu Americão Barbosa virando-se para o guarda-livros. — O senhor se recorda? — insistia o Clodulfo. — Quando lhe pedi para redigirmos outra ata, era porque eu previa: tanta votação assim da oposição, tanto voto contrário ao dr. Figueiredo de Mendonça... isso ia acabar mas era servindo de arma contra nós, j ustamente os que quebramos lança pelo homem, os que votamos nele... O assunto não agradava ao coronel: — Mas, ganhamos ou não ganhamos a eleição? Quem venceu em Santana, não foi o dr. Figueiredo de Mendonça? — retrucou, irritado. — Que necessidade havia de falsificação de mais ata? Apenas para reduzir os votos dos adversários?
— Lhe falei, coronel, lhe falei... Agora, acham que traímos... que não fizemos empenho nenhum, que deixamos o coronel Eusébio mais o dr. Filogônio trabalharem livres e desimpedidos... Política, coronel Americão, é como o senhor mesmo sempre diz: é voto na urna... demonstração de força e prestígio... Uma das qualidades que o coronel Américo mais apreciava no Clodulfo era dizer o que sentia — delicado, respeitoso, mas dizendo... — E, entretanto, permitimos que os outros apresentassem votação grande daquele j eito... A mesa era nossa, a gente carecia de ter diminuído os eleitores deles... — a metade, pelo menos, do modo que sempre fizemos em Santana. Em Acaj uí, o senhor viu: o dr. Figueiredo perdeu — burrice sem desculpa da companheirada de lá... E nossa amizade com o dr. Ataulfo Machado é por demais sabida. Vão dizer que cruzamos os braços a conselho dele. — É... Mas isso agora não adianta, não refresca mais, que é água que j á rodou — o coronel Américo pôs fim a um princípio de discussão sem necessidade. — O que interessa, no momento, é a maneira d"a gente sair deste embrulho. "cês tem alguma ideia? O Clodulfo mordia, mas soprava: — Por oras, fazer o que o senhor está fazendo, e continuar procedendo assim. Não dar mostras de ofendido, nem tocar chocalho antes da hora, que nem cascavel. O senhor foi quem me ensinou: cobra mortal, mas barulhenta, batedeira de caixa; por isso é que, as mais das vezes, ela própria avisa, alerta quem passa por perto... A gente escapa então, e quem acaba morrendo é ela... — Mas disfarçar de ficar quieto é bom quando se tem tempo — o coronel disse. — "ocê "tá esquecido da Captura e do capitão Eucaristo, desse povo j á arranchado aqui em Santana do Boqueirão? — Pois é não dar pretexto para eles... Evitar aj untamento, proibir as conversinhas, avisar ao pessoal do j ogo para ir-se preparando pr"um descanso. Enquanto isso, mandar o Tancredinho, correndo, falar com o dr. Figueiredo de Mendonça, pôr as cartas na mesa logo de saída; prometer o que ele quiser, assinar em cruz o que ele determinar, aj oelhar nos pés dele se for preciso... — Isso não resolve, Clodulfo — o Tancredinho aparteou. — Ele é capaz de nem me receber. — "cê "tá muito enganado! Recebe sim, Tancredinho, recebe... É ir falar primeiro com o dr. Azevedão, que está na Justiça, e que foi posto ali de propósito, pois é o concorrente do dr. Ataulfo Machado em Acaj uí. Vive sonhando em ocupar o lugar do dr. Ataulfo, entrar para a Executiva, em ser deputado, "ocê sabe que ele anda atrás das indicações da zona para a convenção do fim do ano... "ocê vai, promete Santana, garante as assinaturas do resto da zona do Bugre que ainda não aderiu, pode até levar uma carta do coronel Américo, de garantia... — Isso é que nunca! — bradou seu Américo Barbosa. — Isso é uma patifagem, uma senvergonheira, seu Clodulfo do Nascimento! Nem que me matem, mas não pratico uma indignidade, uma indecência dessas! Mas o Clodulfo estava acostumado com os repentes do velho. Recomeçou, macio: — Coronel Américo, o senhor mesmo é quem vive dizendo que não se pode deixar a raiva escurecer o j uízo. Isso é por oras, seu Americão... O próprio dr. Ataulfo vai entender, vai aprovar, achar favorável para o encolho em que é forçado a permanecer agora, até que passe essa maré de azar, limpe o mau tempo. A hora em que eles virem que o pobre está liquidado, aí então se esquecem dele, largam as amizades dele em paz. Mais tarde, a gente se reúne novamente, recupera... E o dr. Azevedão, recruta que é, doidinho de vontade de subir logologo no poleiro, vai cair que nem um pato! Já estou até avistando a cara dele — a alegria, o risadão, os rapapés, os abraços e os tapas nas costas do Tancredinho...
— Não pode, não pode, isso não pode ser de j eito nenhum, Clodulfo! — negava seu Américo. — Nunca fui j udas na minha vida, nem por fingimento e precisão! E não é agora, na minha idade, que eu vou virar. A gente tem que descobrir outro modo. O Clodulfo conhecia de sobra o velho: seu Americão podia ter as baldas que tivesse: teimoso, violento, explodidor... — mas burro e sem j uízo ele não era não. Já-j á amansava, caía em si... Tampouco o Tancredinho, precoce até que por demais da conta — j á deixando apontar nos olhos muito espertos um risinho compreensivo. O guarda-livros martelava: — Aposto com o senhor, coronel, como o dr. Azevedão j á está esperando, uma hora dessas, a chegada do Tancredinho. Isso tudo é artimanha, obra dele, coronel, estumado e protegido pelo dr. Figueiredo de Mendonça... Quer ver, o senhor vigia: primeiro, o j uiz de direito, logo em seguida a Captura com o capitão Eucaristo para uma demonstração mais forte. Depende mas é da gente entender... Lembrara-se o Clodulfo de outra observação importante: — Ah! E vej a o senhor, se eu estou ou não estou mesmo certo: o dr. Damasceno ainda nem a família trouxe... "tá de solteiro, mal acomodado naquele quartinho do fórum, e comendo de hotel... O dr. Damasceno está provisório em Santana, de passagem, seu Americão! Esperando só resolver este assunto da gente, o rompimento com o dr. Ataulfo Machado! — Então "ocê acha que tudo isso é raspado de garganta, rasto de onça, ô Clodulfo? — seu Americão perguntou. — Mas rasto de onça pra valer. Se a gente se faz de desentendido e endurece, aí empregam a violência como em Vau-d"Antas, e acabam com tudo: vem a intervenção no Diretório, a entrega do partido para o coronel Eusébio mais o dr. Filogônio. Já não lhe contei, Tancredinho, que o dr. Filó foi visto saindo da casa do dr. Azevedão, em Acaj uí no fim do ano — faz isso uns quatro, cinco meses — no dia do Natal? Se a gente bambeia, porém... Os dois, seu Americão e o filho Tancredinho, ouviam sem interromper. — E há outra coisa, coronel Américo, em que se tem de estar pensando sempre. É nisso de cada um achar que importante é só a gente; que o inimigo perde o sono, não dorme, preocupado só em acabar com a gente... O senhor é importante sim, é dos chefes mais respeitados que o partido tem no interior, mas há outras raivas maiores do dr. Figueiredo, e quem é o visado é o dr. Ataulfo e não nós. Se o senhor vira, aí o senhor aj uda o dr. Figueiredo a liquidar com o dr. Ataulfo, o governo vai até agradecer... E o dr. Figueiredo sabe que, aqui no Bugre, quem manobra a política é o senhor : homem para arregaçar as mangas, gastar, pegar no rabo do foguete — pessoa assim é só o senhor, coronel Americão! O dr. Figueiredo pode concordar em trocar de chefe aqui em Santana do Boqueirão, mas se for obrigado, se não houver outra maneira... Lhe pergunto, coronel Américo, lhe pergunto, Tancredinho: "cês, se fossem o dr. Figueiredo, entregavam a política do Bugre nas mãos do coronel Eusébio, nas mãos do dr. Filó? — De fato... — concordava o coronel Américo Barbosa. — O Eusébio é um animal de rabo... O Filó, mulatinho muito droga, muito ordinário... Aquilo é capaz de vender a mãe, e até o pai também, se soubesse direito quem é que é o pai dele! Ora, que ideia, a política de Santana do Boqueirão nas mãos do dr. Filó! — Pois então, coronel Américo! O senhor vai empurrar, com seus próprios braços, o dr. Filó para a chefia da situação local? Entregar o partido para ele mais o coronel Eusébio, dar o mando do Bugre para os dois? Mas seu Americão não se resolvia, obrigando o guarda-livros a apresentar mais argumentos, repisar os j á lembrados: — Os exemplos estão aí: em Vau-d"Antas, o pessoal quis brincar de valentes, reagiram, e foi aquela desgraceira. Em Abadia, também... Já em São Pedro da Ponte e no Cerradinho, Captura mal-mal apontou, o partido correu atrás do dr. Azevedão, se acertou com ele, garantiu apoio na convenção; e a Captura voltou sem prender, sem desmoralizar ninguém. Jogo de bicho, carteado, cabaré? Raparigagem, j agunço, matação de gente? Tudo isso que o j uiz de direito reclama? Em São Pedro da Ponte não tem mas é nenhuma porta vaga mais, tudo ocupado com cambista; no Cerradinho, a roleta do Argemiro só para, hora ou outra, só descansa para botarem óleo nela, passarem uma vassoura na tocaria de cigarro acumulada no chão... Foi quando o Tancredinho, notando o pai pensativo, entrou na conversa. Até aquela sabedoria de esperar que o próprio ponto de vista amadurecesse primeiro na cabeça dos outros, para então se sair com ele — até essa outra velhacadazinha o danado do rapaz j á estava aprendendo — observou o Clodulfo. O dr. Tancredinho opinava: — O Clodulfo está com a razão, papai. Eu posso ir ainda hoj e, pelo trem das onze e meia. Aproveito, e levo a Alicinha comigo, que ela j á anda me pedindo para ir comprar enxoval de criança. Chego lá, calço a cara, converso com o dr. Azevedão, converso com o dr. Figueiredo de Mendonça, rasgo o j ogo... Agora, é sair desta enrascada, tirar daqui, o mais breve possível, esse maldito capitão e esse porcaria desse caolho do j uiz de direito. Não quebrei a cara dele, hoj e, porque medi as consequências. O senhor precisava de ver, papai, as desculpas, o medo dele depois que o capitão Eucaristo saiu da sala, depois que ele ficou sozinho comigo mais seu Valério! Seu Americão ouvia, o Clodulfo, ouvia o filho, refletia. Decisão importante demais para que fossem dar passo em falso. Todo mundo conhecia e comentava os processos traiçoeiros do dr. Figueiredo de Mendonça, as rasteiras que dava naqueles que se metiam a lhe atrapalhar a ambição sem tamanho. O Tancredinho viaj ava, ia falar com ele, rompia com o dr. Ataulfo... Espalhava-se a notícia, os j ornais da capital publicavam, faziam um escarcéu dos diabos... Depois, então, bem que poderia o dr. Figueiredo aplicar um daqueles seus golpes medonhos: descer o porrete em quem j á havia cantado de galinha! Aí, j á não era mais apenas o desprestígio e a perca do Diretório: era a desmoralização total, o deboche, a risalhada — a humilhação sem j eito de se levantar nunca mais a cabeça, a desgraça sem mais salvação! Mas, e ir parar na delegacia, até mesmo na cadeia, como o pessoal de Vau-d"Antas? Lavar a cavalhada do destacamento, carregar lata d"água, capinar e varrer rua... Clodulfo do Nascimento e o dr. Tancredo Barbosa esperavam pela deliberação do coronel Américo. Afinal, o velho começou a baquear : — Sei lá, Clodulfo... Sei lá, Tancredinho... O dr. Ataulfo vai sofrer a maior desilusão da vida dele... — Sofre não, papai. Me encarrego de ir imediatamente atrás dele, explicar tudo... Fazer as coisas malfeitas era, porém, o que o coronel Américo Barbosa j amais admitia. Principalmente quando sabia de antemão que estavam erradas: — Explicar o quê? "ocê está doido, Tancredinho? Aí é que não, Deus me livre... aí é que tudo ficaria muito mais pior ! Se é para se topar essa cachorrada com o dr. Ataulfo, então que, pelo menos, a gente saiba fazer ela como se deve: é romper publicamente com o dr. Ataulfo, e deixar ele na ilusão de que abandonamos ele mesmo... — Agora quem não está entendendo sou eu! — disse o Tancredinho. — Ora, menino! Se "ocê delatar o nosso truque para o dr. Ataulfo, ele vai compreender e aceitar; e não vai se queixar, capaz até de querer sair desculpando a posição difícil da gente... Aí é que o dr. Figueiredo de Mendonça não acredita mesmo, descobre tudo. O bom é comprar a briga com o dr. Ataulfo, obrigar ele a xingar bastante, romper com a gente, dizer muito desaforo... o Clodulfo aprovava com a cabeça, contente por verificar que o coronel não iria cometer mais outra besteira como aquela de recusar falsificar outra ata na eleição. Finalmente, o coronel Américo Barbosa se resolveu: — Nessas condições, eu concordo. Contrariado, muito contrariado, mas concordo. Vencida a primeira parte — a mais difícil — o Clodulfo lembrou outra providência: — E aqui, coronel, aqui em Santana, enquanto o Tancredinho estiver fora, é preciso ir amaciando o capitão, passando a mão de leve, coçando o fio do lombo dele... Como o senhor não ignora, esse povo ganha pouco, não enj eita agrado... Mas tem que ser bolada grossa, e dada por parcela, para ele ir se acostumando com renda certa, e ficar preso com a gente, até que aj udando a botar mais fogo na j ogatina. Podia ser assim uma espécie de porcentagem... — Nisso é que eu j á envinha pensando — disse seu Américo. — Você, que é danado de artimanhoso, podia procurar o capitão Eucaristo, sondar o espírito dele. A gente se reunia, fazia um caixa, chamava o pessoal do j ogo... dava uma quantia por semana... Mas o Clodulfo era mais ladino ainda do que j ulgava o coronel Américo Barbosa: — Mais melhor para essa primeira visita ao capitão Eucaristo Rosa havera de ser o seu Valério. Já conhece o oficial... Depois, seu Valério é o delegado, bem prático em lidar com esse povo da polícia... Tem mais convivência com eles... Discutiram o assunto, trocaram-no em miúdo, fizeram as contas. Entretanto, não se esgotara a veia do Clodulfo do Nascimento: — E algum criminoso, desses que ainda não estão lá muito garantidos, pessoal que não está firme ainda, alguns deles a gente entrega para a Captura. Tem, por exemplo, o Belisarinho, aquele goiano que matou o Brás em Brej o Largo; a precatória dele j á chegou, que eu sei, e o Quincota j á me descobriu onde é que ele anda. Tem também o Minervino, que até me procurou outro dia, atrás de serviço — aquele do rolo com a mulher do seleiro em Acaj uí... o tal que matou ela, matou o marido, e ainda deu um tiro num outro, na hora de fugir. Outro bom para a gente botar a mão nele havia de ser o Boliviano... O dr. Tancredo interrompeu para indagar : — Não tem um tal de Ivo, ou Ito, Ico... não sei bem... um compridão, corpulento, que "ocê um dia me mostrou, perto do coreto do largo? — "ocê lembrou bem: é o Ico! — aprovou o Clodulfo. — Está de empreiteiro de cerca com o seu Pimenta, no Corgo da Pata Choca. Diz que teve um arranco medonho com o destacamento de São Pedro, e acabou matando um anspeçada. Um presentão para a Captura! : degola a facão, na certa... Tipo e tanto, destorcido, me pareceu: uma pena, mas podemos entregar ele sim. Ah! E tem também o Divino, do cabaré, um bailarinozinho de tango, de cabelo envaselinado... um que anda, agora, meio de gigolô com a Carvalhosa... — E os nossos? Estão mesmo seguros? — seu Américo Barbosa perguntou. — Se não fizerem nenhuma besteira, estão, sim senhor. Não deixei de avisar ninguém, conforme já lhe disse. É só eles continuarem sumidos, e ir esperando que tudo se acalme de novo.
O coronel Américo Barbosa espiava a fumaça do cigarro de palha, pensativo, distraído. Não ouvia mais a conversa do Clodulfo com o Tancredinho — agora combinando, aqueles dois, a maneira melhor de se chegar a um acordo com o dr. Azevedão. Tinha de arriscar-se, dar a derradeira cartada, pois não podia cair, como um pantola, nas mãos dos adversários que, uma hora dessas, deviam j á de estar reunidos com o Eusébio e o dr. Filó. E escolhendo o novo presidente do Diretório de Santana do Boqueirão, distribuindo, lá entre eles, os cargos de delegado, promotor, diretor da Escola Normal e do Centro de Saúde... Na hora em que ele, coronel Américo Barbosa, caísse, quem, dos amigos que, fazia pouco, tinham ido correr em busca de proteção e conselho, quem continuaria leal, firme com ele? Se não quisesse sofrer vexame e desilusão, era mudar da cidade, ir morar no Sassafrás, apodrecer por lá até morrer. E Santana do Boqueirão tudo devia a ele! A casa nova da Câmara, os dois grupos escolares, o serviço de água, a reforma do Largo das Mercês... A parte central da cidade quase que toda calçada, o Centro de Saúde, telégrafo, a luz elétrica... Lá estava, no morro do Cemitério Novo, o colégio dos frades, o terreno — uma chácara! — dado de graça por ele, a lei da Câmara que mandava aj udar o colégio todo ano; e o outro pavilhão da Escola Normal, o serviço de esgoto tão adiantado... E o Tancredinho: se não estivesse se formando no ano da eleição, estava ele de agente executivo de Santana, tal qual o pai, os tios, o avô — em vez do mano Calixtrato, que piorava dia a dia em lugar de progredir... E o menino tirara diploma, era ativo, agradador e serviçal, boa cabecinha para a política Largar tudo aquilo para Eusébio, para o mestiço do Fi 1ó? O Clodulfo e o Tancredinho tinham razão; mas era preciso agir, e agir correndo: — O trem das seis, o misto, talvez até que fosse melhor... E, ô Tancredinho, me larga dessa bobagem de querer carregar com a Alicinha: mulher só serve para inzonar mais as coisas, ainda mais gordona do j eito que ela está, na hora quase de desocupar. Pode ir escrever a carta pro dr. Azevedão, pode, que eu assino; a outra também para o dr. Figueiredo de Mendonça. Faz as duas do modo que "ocê e o Clodulfo acharem que convém... A conversa não terminava entretanto. O próprio coronel Américo esticava-a: — Uma outra coisa, Clodulfo "ocê não acha meio perigoso a gente ficar aqui desprotegido, o nosso pessoal assim espalhado, fora de mão? E se carecer de reunir eles, meio de repentemente? Foi uma ideia que me deu agora... — Coronel Américo — o Clodulfo principiou a explicar — enfrentar a Captura é suicídio; um soldado daqueles vale por dez homens dos nossos — é gente sanguinária, bandidos, j agunçada escolhida no meio dos mais piores, que a polícia treinou e armou até os dentes... São doze, afora o capitão e o sargento — doze, não: dezesseis, que tem ainda o cabo e os três soldados do destacamento daqui de Santana do Boqueirão. Isso, na cidade, fardados, nas vistas. Mas a Captura é de mais de trinta, que todo mundo sabe; o resto deve de estar
amoitado por aí, capaz até de terem chegado na frente, disfarçados de boiadeiro ou condutor de gado... Já sube que anda aparecendo muito forasteiro, gente de cara estranha... Mesmo que a gente resistisse agora... e depois?! Brigar com o resto da polícia do estado? Fazer revolução? — É... — concordou seu Americão Barbosa. — É poupar mesmo a companheirada, por enquanto... Outra dúvida ainda do coronel: — Me diga uma coisa, ô Clodulfo, me diga "ocê também, ô Tancredinho: "cês não "tão estranhando o j uiz de direito não ter tocado ainda, des" que chegou aqui em
Santana, no nome do José de Arimateia? Reclama do Hirondino, do Lico, do Chico Doido, dos outros... O mais perigoso deles porém... — Eu tenho notado sim, seu Américo — respondeu o Clodulfo. — E não me esqueço de um dia — acho que j á lhe contei — um dia, eu esperava uma guia de gado na coletoria, quando o Isé de Arimateia passou no largo, montado na besta dele. O dr. Damasceno estava na porta, conversando, e então viu o cavaleiro. Decerto j á sabia quem o Isé era, alguém j á tinha mostrado ele antes, porque o dr. Damasceno ficou olhando muito, acompanhando com a vista o rapaz, até que o Isé dobrasse a esquina. O homem ficou branco de repente — eu percebi, seu Americão — nem disfarçar direito ele pôde. O incômodo era tanto, devia até de ser ódio, que o j uiz tremia... — Mas "ocê viu se o doutor comentou, perguntou alguma coisa pr"alguém? — perguntou o coronel Américo. — Não senhor. Olhou, olhou, tremeu... porém não abriu a boca. Mas que o dr. Damasceno ficou meio perturbado, isso ele ficou. — Pode ser de medo... O dr. Damasceno só arrota grosso perto de soldado — disse o Tancredinho. — E o José de Arimateia, hem Clodulfo, ele não foi avisado... não está sabendo da Captura!... Pode chegar em Santana de uma hora para outra. — Mas é fácil avisar — falou seu Americão. — A gente manda logo um recado pro seu Arcanj o. Ademais, até que o José de Arimateia volte da viagem dele, isso leva ainda tempo. Seu Clodulfo esteve por revelar a ideia que lhe surgira naquele momento. Mas calou-se, que vinha vindo dona Alicinha: — Quem está lá na sala, seu Américo, é o dr. Joj oca mais seu Joaquinzinho da Xanda. Estão querendo falar com o senhor. O coronel levantou-se: — "ocê vai se arrumar, Tancredinho. Mas "ocê, "cê fique ainda, Clodulfo. Vou lá na sala ver o que é, mas j á volto. — Ah! — lembrou-se o Clodulfo. — Hoj e é sexta, e o j ornal sai depois de amanhã, no domingo. Será que não valia a pena o dr. Joj oca dar uma notícia boa da Captura? Elogiando o dr. Figueiredo de Mendonça, o dr. Damasceno, o capitão Eucaristo? Aproveita, seu Americão, e fala com o dr. Joj oca... Ele j á está lá dentro mesmo... E para o Tancredinho que j á se ia com o pai para o sobrado, para arrumar as malas: — Domingo é treze, treze de maio. O ano passado foi a chuva; queira Deus que, neste ano, não sej a a Captura que me venha estragar com a congada dos pretos! Somente o coronel Américo Barbosa e o Clodulfo haviam ido ao embarque do dr. Tancredo. A resolução da viagem não fora ainda comunicada a ninguém, a fim de se evitar aj untamento na estação — coisa que poderia parecer despi que e até mesmo agravo ao j uiz de direito e ao capitão Eucaristo. Apesar do palpite em contrário do sogro, dona Alicinha viaj ava com o marido. Chegava o misto das seis horas, quando o Clodulfo apertou o braço do coronel Américo, disfarçadamente: — Olhe quem está lá, acabadinho de entrar na plataforma, com as malas... De costas, entregando o bilhete no portão... a mulher dele também... O dr. Filogônio, o Filó! — avistou então o coronel Américo Barbosa. Dr. Tancredinho e dona Alicinha também viram:
— Vão no misto... que viagem mais sem graça de tudo! — ela disse. O Filó corria também atrás do Azevedão! — o dr. Tancredo não tinha dúvida a respeito. E, quando espiou para a cara humilde mas sempre velhaca do guarda-livros, não pôde deixar de reconhecer que o Clodulfo enxergava longe, o danado! Não. Não haveria o aborrecimento e incômodo de viaj arem perto um do outro, o Filó e ele — verificou o dr. Tancredo quando o outro foi acomodar a mulherzinha e as malas num banco traseiro do vagão. Dona Alicinha respirou, aliviada. Ao despedir-se do coronel Américo Barbosa, Tancredinho tranquilizou-o: — Pode ficar descansado, papai. Chego, passo de passagem no hotel, deixo lá a Alicinha. Nem paro para trocar de roupa: toco, empoeirado mesmo da viagem, sigo direto para a casa do dr. Azevedão. Desciam os dois, a pé, a Ladeira da Estação. Acendiam-se as luzes de Santana, o comércio começava a cerrar as portas. — Bem. Até agora, parece que nada de grave, ainda... — falava o coronel Américo Barbosa. — E penso que nem vai haver, pelo menos por hoj e, por esta noite... — afirmou o Clodulfo. — O Quincota me contou, na hora em que eu saía de casa, que o capitão ainda estava dormindo, trancado no quarto do hotel. Chegou, almoçou, e foi logo caçando cama. — E o resto da soldadesca, a Captura? — O sargento ficou igualmente no hotel, num quarto em frente ao capitão, no fim do corredor. O destacamento continua abarracado no pátio do fórum. Até a comida — o Quincota dis"que viu — eles estão cozinhando por lá mesmo, de bivaque.
21
O CORONEL AMÉRICO BARBOSA e o Clodulfo, ao regressarem ao sobrado da rua Monsenhor Prata, encontraram-no novamente cheio de visitas. Seu Americão havia recomendado aos companheiros de Diretório que evitassem aquelas reuniões, mormente em casa dele, o que serviria apenas para alarmar ainda mais a cidade, mais lenha deitar à fogueira que ardia desde a manhã; mas os outros, apavorados com as nuvens penduradas sobre Santana do Boqueirão, somente se encontravam seguros — parecia — debaixo do teto do coronel, o único entre eles a saber impor autoridade e disciplina em horas de confusão e perigo. Murmúrios, fuxicos, provocações — farto falatório fiado. Nada, entretanto, além de suposições e diz-que-diz-que, porque providência de importância não se sabia ter sido tomada pelo j uiz de direito ou pelo comandante da Captura. O dr. Damasceno Soares passara o dia no fórum, e a única pessoa a entrar e sair pela porta do quartinho dele, no andar de cima, era o Perpétuo, escrivão do crime. Subindo e descendo escada, de cara emburrada e resmunguento, só se via o Perpétuo a baldear pastas de processo, precatórias, citações — a velha e fornida pilha dos maços encostados j á de há muito, os embrulhos dos processos arquivados também. O dr. Damasceno punha em dia o papelório do crime: afiava a faca, o ladrão do j uiz! — todos percebiam. O capitão Eucaristo sumira-se, trancado no hotel, dormindo. O destacamento, afora outra exibição de ida-e-volta pela rua do Comércio — caminho do córrego dos Frades, onde se lavavam os animais dos carros de praça e carroças da cidade — recolhera-se outra vez ao pátio do fórum, os cavalões limpos e refrescados do banho, baixeiros e selas, tudo como novo. Mas o aparato continuava: praças apertadas na porta do Hotel da Prudenciana, no portão e na esquina do fórum. Ar tenso, tempo abafadiço, atmosfera carregada — via o Clodulfo, via seu Americão Barbosa. Mas os dois limitavam-se a ouvir o que diziam os outros, as notícias que traziam. — Passei a tarde toda no Clube Eldorado — relatava o dr. João Crisóstomo, o dr. Joj oca. — Muita curiosidade, muito veneno, mas ninguém diz coisa com coisa... — Na Câmara, a novidade que notei foi o movimento mais reduzido, o pessoal parece que descabriado... — informava o coronel Calixtrato Barbosa, o agente executivo. — E na delegacia? — perguntou o coronel Américo Barbosa. — O j uiz de direito não lhe mandou nenhum recado, hem Valério? — Nenhum. Achei mas foi o cabo do destacamento meio assombrado... Passaram o dia, ele mais as praças, limpando fuzil, areando os sabres e fivelas dos talabartes. Engraxando botinas e perneiras... Tal ausência de notícia grave acabou por dispersar, pouco a pouco, o Diretório. O coronel Ludgero Alves, um dos últimos a sair, quis um particular com seu Américo Barbosa: — Isso tudo está me cheirando mal, Americão. Acho que, desta vez, a gente não escapa... "cê não deve dormir aqui no sobrado, nem mais esta noite; se lembre do que a Captura vem fazendo por aí... E "ocê é o principal de nós todos... Logo que a gente acabar de ir embora, "cê sai também, mas escoteiro, pelos fundos, e vai lá pra casa, pra chác"ra... Dorme lá comigo... Não tem lugar melhor pra uma escorregada de improviso... O Ludgero era um dos poucos a quem o coronel Américo dava atenção e respeito. Não o
interrompia. — E outra coisa, Americão: não me fique ouvindo muito o Clodulfo; pessoa inteligente, seguro... Mas muito confiado na própria cabeça, habituado que está a achar saída para tudo. Descansado demais da conta, eu "tou achando. O Josué não veio, mas me pediu pra lhe falar que pensa tal e qualzinho que nem eu. A opinião dele é pr"ocê ficar prevenido, de cavalo selado e rédea na mão... o coronel Ludgero e o Josué Malaquias, os que mais bem sabiam, exceto o Clodulfo, enxergar no escuro, atilados de j uízo e apurados de faro — reconhecia seu Americão. Por isso não discutiu: — Lhe agradeço, Ludgero. Mas hoj e, ainda não tem perigo não, vou ficando por aqui. O Tancredinho, amanhã cedo, j á deve de estar agindo. Vai me telegrafar pela estrada de ferro, que é mais ligeiro. Se for preciso, Ludgero, é "ocê que eu procuro, antes de mais ninguém. Não dispenso sua amizade não. Os outros proseavam, o Clodulfo meditava. Havia passado a tarde argumentando com o coronel Américo e o Tancredinho, agora aj udava a tranquilizar os demais, esforçando-se por manter-se calmo, afirmando que tudo se resolveria bem com a ida do rapaz à capital do estado. Procurava inculcar em todos tal certeza, temeroso de precipitações, sobretudo de uma falta de j uízo fora de hora de seu Americão — irremediável desastre. Não que fosse viagem perdida, pois algum resultado haveria o Tancredinho de alcançar. Inteligente, fino de trato, conseguiria talvez amaneirar, lá por cima, a mão do capitão Eucaristo, aparar as asas do dr. Damasceno... Mas andava longe de se sentir inteiramente sossegado, o Clodulfo: várias ideiazinhas fermentavam e cresciam na cabeça dele, entre elas, mais teimoso, um pressentimento de que, ali mesmo em Santana, é que se encontrava a saída para situação tão penosa. Despedida a última visita, quando pôde afinal ficar a sós com seu Americão, o guarda-livros tentou explicar o que lhe ruminava a cachola: — Estou aqui, seu Americão, estou querendo lhe perguntar... — começou o Clodulfo com muita cautela — saber do senhor se, quem sabe, não valia a pena uma conversa sua com o dr. Damasceno Soares... uma conversa muito franca, em particular... Pegado assim de supetão, o velho se espantou: — Conversa minha com aquela peste?! Que mais outra inventação de moda é essa, ô Clodulfo? — Sei lá, seu Americão... É um palpite que me veio, no meio desse vai-não-vai, dessa pasmaceira toda... O homem é orgulhoso, sensitivo... gosta de ser chaleirado, costume de tudo o que é autoridade... O senhor, com macieza, podia ir abrandando ele, explicar que o Tancredinho viaj ou para acertar a questão política com o dr. Azevedão mais o dr. Figueiredo de Mendonça... Pedia para influir no capitão, estudava com os dois essa dúvida do j ogo, entrava num acordo... O negócio dos nossos homens também... Em vez do repente de nervosia — o Clodulfo, acostumado com os acessos do velho, esperava por um deles —, em vez de se alterar, seu Americão dava mas era corda: — Fala mais claro, Clodulfo, deixe de rodear toco... O qu"e que lhe passa no bestunto? — Para lhe ser franco, coronel, nem eu não sei direito... Mas uma coisa me diz que esse j uiz está de mão atrás... Não tenho certeza do que é; entretanto... — E o qu"e que ia adiantar minha conversa com ele? Me humilhar para quê? — Talvez ele se abrisse, fizesse alguma proposta... O senhor vigia: essa maneira d"o capitão Eucaristo agir "tá muito estranha; ele sempre chega e j á vai começando... No entanto, aqui em Santana, o capitão foi pro hotel, se fechou no quarto...
— Mas, antes disso, conversou com o Tancredinho mais o Valério... — Não abriu a boca, seu Americão — o senhor "viu o Tancredinho contar. O dr. Damasceno é que falou o tempo todo e, assim mesmo, não disse novidade nenhuma: só passou carão, ameaçou... Até agora, nenhuma ordem nova deram, nem ele nem o capitão. Se o senhor procurasse o j uiz de direito... — Mas tratar o que com ele, ô Clodulfo? O homem evita a gente... "ocê presenciou: ele apareceu, sem a família, e eu logo me prontifiquei. Pus o Hotel da Prudenciana à disposição, até uns dias aqui no sobrado, enquanto ele não arranjasse acomodação melhor, eu ofereci; o mano Calixtrato fez o mesmo, seu Sizino — seu Sizino mais a mãe, os dois que nem duas coruj as naquele casarão mal- assombrado de tão grande e vazio... Mas o dr. Damasceno recusou, mandou arrumar mal-mal o quartinho do fórum, dar uma caiação na privada... Banho, é de bacia — o Juca Meirinho foi quem emprestou, é ele quem manda a lata de água morna, o cafezinho da manhã... o doutor j á veio prevenido contra a gente, parece até que contra a cidade inteira: não quer saber de mistura não... — É... de fato... Mas com o povo da outra banda foi a mesma coisa: recusou obséquio deles todos. Pessoa pirrônica, enfezada. Mas, coronel Américo Barbosa: nós sabemos que todo mundo tem seu fraco, tem seu lado de montar... — Esse é bagual de tudo, sem arrumação. Conversar com esse suj eito mais o quê? Pedir pelo amor de Deus? Depois, Clodulfo, o capitão Eucaristo não respeita j uiz de direito nenhum, age por conta própria, garantido de cima. Se adiantasse, eu falava, me curvava, me agachava, que "tou vendo as coisas mal paradas; minha fé nessa viagem do Tancredinho é quase nenhuma... aliás não escondi: falei c"ocês, confessei meu desânimo... Agora, "ocê "magina: eu vou, falo com o j uiz de direito, me rebaixo... ele, sem voz-ativa j unto ao capitão, me enrola... as coisas ficam na mesma... Me desmoralizo sem precisão... O Clodulfo, quando assim preocupado, se encolhia na cadeira, a cabeça baixa, olhando para as mãos que esfregava e apertava entre os j oelhos. A hora era mesmo de franqueza, e ele não tinha outro remédio senão desabafar o que sentia: — Eu arriscava mais esse passo, coronel Américo: ia ao fórum, amanhã bem cedinho, antes do movimento no largo, acordava o dr. Damasceno, me fechava dentro do quarto com ele, lhe pedia para usar de clareza, pôr os pingos nos is. Quer o j ogo fechado? — a gente fecha! Quer a prisão do povo caçado pela Justiça? — a gente pega eles e entrega! Quer mais isso, mais aquilo? — a gente promete, faz o possível para cumprir... Que se arrebentem os bicheiros, que liquidem com os nossos melhores homens — que se está para fazer? ! -mas que se salve o senhor, coronel, que se salve o Diretório, o partido... O coronel Américo Barbosa j amais vira o Clodulfo assim tão amedrontado, tão patife: — Uai !... Que bicho foi que te mordeu, ô homem? "tou te desconhecendo, te estranhando por completo! O que "ocê "tá me propondo, "cê me desculpe, mas se fosse outra pessoa, eu j á considerava traição... Só "tá faltando "ocê me aconselhar a ir me confessar, me acusar de acoitador de assassino, mandante de todas essas mortes que os adversários gostam de pôr na minha conta! Se é para ir parar na cadeia, prefiro o cemitério, mas de carabina na mão, o corpo esfuracado de bala... — O senhor está exagerando, coronel. Nem a coisa vai chegar a esse ponto, Deus há de aj udar... Mas o senhor sempre teve horror de mentira, falsidade... Minha obrigação é revelar o que eu penso, e o senhor sabe que sempre procedi assim... — Pois então, desembucha! Que é que "ocê "tá me escondendo? — Coronel Américo, o senhor conheceu muito bem o seu Hermógenes, de Vau-d"Antas. Hoj e, o senhor não reconhece ele mais... Era o agente executivo, presidente da Câmara, presidente do partido... O senhor, depois da convenção, nunca mais esteve com ele, mas eu estive: dá pena... O
Hermógenes não toca no assunto, nem a gente pode perguntar, que chega a ser falta de respeito, até de caridade. Mas quem viu, quem assistiu tudo, está aí vivo, pra contar : o Ruivo, que esteve de soldado no destacamento de Vau-d"Antas, na ocasião do acontecido. O que todo mundo sabe não é exagero, não senhor : o Hermógenes chegou preso, e o capitão Eucaristo, a primeira coisa que fez foi reunir a Captura, botar eles todos na fila — o sargento Hermenegildo encabeçando. Mandou buscar uma lata, ordenou que o sargento urinasse dentro, que os outros, um a um, fossem vertendo também, até quase que encher a vasilha. Depois, pegou um litro de azeite, uma colherada de sal amargo, o punhado de toco de cigarro varrido do chão da cadeia — tudo em cima da mesa da delegacia, j á de prontidão, esperando. Misturou a porcariada e obrigou o seu Hermógenes a beber um copo... A poder de tapa na cara e ponta de refle, mas o infeliz do seu Hermógenes teve que beber... E o capitão ainda ameaçou: "O resto fica guardado, pra outro copo mais de tarde... O tempo vai passando, mais encorpado e cheiroso o licor de mij o vai ficando..." — Sei de tudo — cortou, ríspido, gasturado, seu Americão. — Mas "ocê "tá querendo me comparar com o Hermógenes de Vau-d"Antas? — Ora, seu Américo... "tou comparando não... Mas, se "tou lhe lembrando essa malvadeza, é para lhe mostrar quem é o capitão Eucaristo. E não foi só o Hermógenes que bebeu mij o do soldado não: seu Remígio delegado bebeu, seu Coriolano, o j uiz de paz, bebeu também... Teve muito mais gente graúda que provou da beberagem... O coronel Américo Barbosa levantou-se do sofá, foi ver quem passava àquelas horas, pela rua, conversando alto; ouviu a música que vinha do Largo das Mercês, o batuque dos negros que ensaiavam congada nos altos da cidade. O apito entrecortado, fino, do trem de ferro. Voltou-se para o Clodulfo: — O passageiro que está chegando... — Onze e meia j á? — assustou-se com a hora o Clodulfo do Nascimento. — O senhor "tá ouvindo a música? Não mexeram ainda com os cabarés... Acomodado novamente no sofazão da sala, seu Americão continuava com a conversa: — Me diga uma coisa Clodulfo: "cê então acha que a Captura vai repetir essa desgraçalhada toda aqui em Santana do Boqueirão? — Coronel, o senhor me pediu para abrir o coração, e eu vou abrir, nem que o senhor fique mal- satisfeito comigo. Se a gente não fizer um acordo com o j uiz de direito e com o capitão Eucaristo, pode ser que a Captura faça até pior... — Mas por quê, ô Clodulfo? Hoj e, de tarde, "ocê "tava tão animado... Uma hora "ocê acha que sim, outra hora j á acha que não... — Seu Américo, o senhor pensa bem: isso é de pôr a gente desnorteado! Quando eu me lembro de Vau-d"Antas, de Abadia do Cerro... O senhor precisava de ouvir o Ruivo contar, com as palavras dele! E, depois, seu Americão, o senhor é muito mais importante, Santana do Boqueirão pesa muito mais na balança que Vau-d"Antas e essas outras corrutelas do Bugre; a onda contra nós j á não é só do coronel Eusébio e do dr. Filó, ataques apenas da oposição de Santana... Já foi parar na Assembleia, tem a pastoral do bispo de Acaj uí... — E o qu"e que eles estão esperando, então? Por que é que j á não começaram? — Isso eu não sei lhe responder. Devem estar aj untando mais provas, talvez... O Perpétuo do Crime passou o dia escrafunchando nos armários, desembrulhando tudo o que é processo, levando pro j uiz de direito... Agora, de noite, é que fui caindo em mim: pode ser que essa demora sej a até mais uma manobra do dr. Damasceno e do capitão: vão dizer que não respeitamos a autoridade deles, que desacatamos... E não deixa de ser verdade: tem a ordem dele, e velha, por escrito, do dr.
Damasceno, ao seu Valério, mandando fechar o j ogo do bicho e o j ogo bancado... Hoj e, no Fórum, ele tornou a repisar... o senhor ouviu o Tancredinho dizer... E ninguém obedeceu, seu Americão... Clodulfo fez pausa, esperando pelo estouro. Mas o coronel queria ouvir mais: — "cê pode continuar... "tou escutando... — Os nossos homens também: o José de Arimateia, o Hirondino, o Lico... os outros... j á "tão conhecidos por demais da conta... Gente assim, onde passa a Captura, não fica ninguém... Ou morre, ou some de uma vez... De novo o silêncio na sala de visitas, a música do largo que entrava pela j anela aberta do sobrado, o zabumbo da negralhada. Outro apito, curto, repetido — um trem de carga que partia. Cigarro aceso, a fumaça forte — o coronel Américo Barbosa então falou. Aquele j eito de pensar alto, a ideia firme, as palavras cada uma em seu lugar — tudo limpo de rodeios, de manha, de velhacada. Um coronel Américo Barbosa que somente de raro em raro se mostrava — muito, muito poucas vezes o Clodulfo pudera vê-lo assim. A voz também diferente, descansada: — Escute aqui, Clodulfo do Nascimento. Tudo isso que "ocê "tá falando, minha boca podia falar também, que é a pura verdade. Mas política é, foi e sempre há-de ser assim. E se eu sou o chefe d"ocês, se "ocês me acompanham, se "ocês não pensaram ainda em me trocar por outro, é porque sei pilotar a canoa, obedeço às regras, não fuj o do certo. Agora, não adianta mais a gente ficar remoendo o passado, querendo consertar o que nem eu nem ninguém pode mais consertar — o que está sem arrumação. Erro, nós cometemos, e muito grande: um só, mas que foi o suficiente para liquidar com tudo. Foi não adivinhar que o dr. Ataulfo Machado ia perder na convenção, que ia ganhar o dr. Figueiredo de Mendonça. O dr. Ataulfo, com aquele convencimento dele — e com muita mentirada também: "... fulano "tá comigo, sicrano tam"ém "tá, beltrano..." acabou mas foi j ogando a gente no buraco. Nos atrapalhamos nas contas, Clodulfo, demos apoio errado... Se a gente tivesse ficado com o dr. Figueiredo, votado nele, não tinha volante nenhuma, nenhum j uiz de direito metido a rigoroso e sério, vestido de santo, a vir dificultar a vida da gente aqui em Santana do Boqueirão... Seu Americão Barbosa olhou para o Clodulfo, esperou que ele dissesse alguma palavra. Mas o guarda-livros aprovava com a cabeça, sem nenhum desej o de interromper o coronel. Seu Americão continuou: — Eu, se às vezes falo certas coisas, falo da boca pra fora, por conveniência; mas sei guardar cá comigo as minhas cismas, os meus pressentimentos também, sei entender quando é que a sorte vai virar. O Ludugero me disse, ele e o Joaquinzinho da Xanda — e eles dois enxergam que nem eu e "ocê —j á "tão dando este caso por perdido. Desde que eu sube pelo menino do Ponciano que a Captura tinha atravessado o Porto do Sucuri, e que tinha parado aqui em Santana — desde então o que eu faço é contar as horas, os minutos... Aceitei opinião sua e do Tancredinho de ir tentar acordo com o dr. Azevedão, porque é muita gente que vai sofrer, queira Deus que não corra muito sangue também... E eu não quero guardar remorso de outro erro, muito mais pior, ficar sendo o culpado do que vai acontecer, por não aplicar conselho dos outros. Daí, porém, eu não passo. E não é por valentia, é por precisão: se eu bambear, roda todo mundo... Se eu tenho culpa no cartório, "ocê tem também, o Calixtrato tem, o Valério, o Desidério, o Sizino, maj or Hipólito... — todo mundo tem. Mas eu, Clodulfo, não sou homem de beber mij o não... — Não, nisso eu não acredito... — aparteou, sem sentir, o Clodulfo. —... de beber mij o, nem de me aj oelhar nos pés dum outro bandido mais ordinário ainda que o capitão Eucaristo, esse carola do dr. Damasceno... "ocê conhece o passado dele? O Tancredinho não lhe contou? Pois foi, ele j á foi j uiz em Açaflor, foi j uiz no Campanário . É j uiz curtido, do tempo do dr. Asdrúbal, do tempo do dr. Pessoa, do tempo do dr. Tenório... Foi contra o j ogo, contra rapariga, contra j agunço nesses lugares todos? Moralizou alguma cidade dessas? O que ele vem fazendo não é
bancar o pau-mandado de governo? Vir falar que Santana do Boqueirão é foco de banditismo?! "cê conhece a política do Campanário, pois j á morou por perto, zona donde "ocê veio... "ocê não teve um cunhado que assassinaram lá, dentro dum circo, a mando dos Inácios e dos Gusmões? E quem é que está dominando ainda no Campanário — não são ainda eles mesmos, ainda até hoj e? E mandam a poder de quê? Não é de j agunço, a poder da polícia que o governo deixa eles manobrarem à vontade? E esse fingido desse j uiz de direito, esse dr. Damasceno, não prestigiou sempre eles? E em Açaflor : os Araúj os, os Cunhas, os Silvas? Ah! Então era aquilo! Campanário, os Inácios, os Gusmões! — a ideia rompera, clara agora, na cabeça do Clodulfo. — Seu Americão, seu Americão! — o guarda-livros quis interromper o coronel. Mas o velho não parava: — Entregar minha gente, ficar desarmado nas mãos dessa corj a? Amanhã, vou mas é mandar o Clodoaldo reunir a peonada da fazenda... mandar recado pra todos os outros que se esconderam... Se ainda estou aqui, é porque sei que eles vão assustar mais um ou dois dias, vão provocar primeiro, forçar a gente a cometer um desatino... Depois, pode ser que o Tancredinho consiga alguma coisa... Mas, na hora precisa, "ocê vai ver : escapulo, reúno os homens, arroto grosso tam"ém... — Seu Americão, me escute, por favor... Agora é que "tou enxergando tudo!... Descobri, seu Americão, descobri !... — Hem? — o coronel finalmente ouvia. — Descobriu? Descobriu o que, Clodulfo? — O dr. Damasceno!... E nem o senhor nem eu, ninguém para desconfiar ! Escute, seu Americão: ou o dr. Damasceno é parente do Tonho Inácio, ou tem dinheiro graúdo rolando por trás dessa mexida... O senhor sabe, eu sei também, que o Isé de Arimateia não descansa enquanto não matar o Tonho Inácio, por causa do Valico. Agora, a ocasião chegou: aproveitaram a briga do dr. Ataulfo Machado com o dr. Figueiredo de Mendonça, teceram os pauzinhos, cavaram a vinda do dr. Damasceno como j uiz de Santana do Boqueirão... E o desgramado veio, e inventou, e futricou, e tanto fez que conseguiu a Captura do capitão Eucaristo! Tem um j eito, tem um j eito sim, coronel Americão! Rápido, voltava seu Américo a ser o outro coronel Americão Barbosa de todo dia, os olhos irrequietos, acesos: — Não me diga, Clodulfo! Não me fale... Será?! — O senhor não está recordado daquela proposta que o Tonho Inácio mandou lhe fazer? Entregasse o José de Arimateia e botasse preço? — Mas ouviu a resposta que eu despachei de volta! Ai, ai, ai... "pera aí, menino! E tem aquele caso que "ocê contou, Clodulfo, da porta do fórum... o José de Arimateia passando pelo largo, o dr. Damasceno a olhar muito e a tremer... É isso, Clodulfo! É capaz mesmo de ser isso sim! Mal bastou, o restante daquela noite, para que o coronel Américo Barbosa e o Clodulfo do Nascimento terminassem a conversa da sala de visitas. Cantavam os galos, as carrocinhas de pão e de leite j á rodavam, barulhentazinhas, pelo paralelepípedo do centro de Santana do Boqueirão — madrugava, quando o Clodulfo se retirou do sobrado, e se pôs a caminhar, naquele passo reduzido e sorna, rumo ao chalé da rua do Rego, onde vivia.
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NO DIA SEGUINTE, sábado, Joaquim Lopes — o Quincota — levantouse mais cedo do que o costumado. Nem acordou a mulher, tal a aflição de ganhar logo a rua e conhecer das novidades. Ia tomar o café de seu Cabrera, vizinho quase que de parede-meia -àquela hora ainda de pé, despachando a carrocinha de pão. A carrocinha saía quando chegou o Quincota. Comprou meio pão crioulo, pagou o vintém ao seu Diego, foi-se barafustando padaria dentro até a cozinha. Na pia, a Tiana do seu Cabrera, de torneira aberta j á há que tempo, lavava louça. Na chapa do fogão, a cafeteira pronta. Seu Joaquim deu bom-dia, encheu a canequinha de folha, e perguntou, mastigando o pão-crioulo: — Qu"é de o gringo? — "tá c"os galos — a mulata respondeu. Quincota repetiu o café, desceu para o quintal. Foi topar com seu Cabrera no puxado do galinheiro, lamparina acesa, misturando canjica de milho, quirera e farelinho de arroz com sangue coalhado, do matadouro; preparava a ração da galaria de briga e da pintalhada, enquanto esperava acabar de amanhecer. Costume antigo do Quincota, estando na cidade: antes de descer para o centro, ir ver primeiro o espanhol. O padeiro estranhou porém a madrugada do vizinho: — Uai... O senhor não tinha vindo ontem da fazenda? Está saindo de novo, todavia? — Não, vou ficando por aqui. A cidade "tá meia quente... prenderam alguém esta noite, seu Cabrera? Mas o padeiro de nada sabia. Sempre assim, o seu Cabrera: ou ficava a par, antes de todos ali do Alto do Cachimbo, das novidades de Santana do Boqueirão, ou tomava conhecimento delas por último, em derradeiro lugar. Com aquela vida de trocar o dia pela noite, apenas depois que ele se levantava para pegar no serviço é que lhe chegavam as notícias; às vezes, até que de manhã do outro dia, contadas pela freguesia do balcão ou pelo irmão Diego, de volta com a carrocinha; mas se algo acontecia a desoras, seu Cabrera e seu Diego da Padaria Isabel, a amassarem farinha a noite toda — o resto do Alto do Cachimbo recolhido e dormido — eram os primeiros a saber da nova e a distribuí-la de mistura com o pão da madrugada, pela carrocinha que percorria, rápida de fora a fora, os quatro cantos da cidade. O Quincota não perdeu mais tempo, não esperou que o seu Cabrera desse início à divertida escorva dos galos de briga, o banho em cada um deles depois do rij o exercício, a lavagem das gaiolas e a dada de ração. Voltou à cozinha, para admirar novamente a empregada e a sorte do espanhol: a sacudida da Tiana do seu Cabrera ganhava por mês — e cozinhava, e lavava, e passava, e servia no balcão da padaria, e ainda achava tempo para ir, depois do almoço, fazer sesta na cama do patrão! Mas pouco se demorou o Quincota bebendo mais café: alcançando logo a rua, lá se foi ele à cata de informação que pudesse levar ao seu Clodulfo. Passou pela venda do Mamede — fechada; pelo corte de carne de porco de dona Sota — de porta corrida também: pela esquina da pracinha do Carmo — não havia estacionado ainda o carro de praça de seu Augusto Cocheiro! Povinho descansado... — resmungou consigo o Quincota. O j eito era ir até o Mercado, às bancas de carne e verdura — e foi o que ele se dispôs a fazer, apertando o passo, ladeira abaixo, rumo ao centro da cidade.
Seu Joaquim Lopes cruzou com dona Guiomar, que subia para a missa das cinco, cruzou com dona Carlota do seu Amadeu, com dona Nenê mais as duas filhas encruadas — as três de preto, de mantilha. Viu atravessar, na esquina da tabacaria, a carroça de leite com sineta, da chácara do Beléu; e quase que tropeça, esquina do Barbazul Folheiro, em seu Eponino do Segundo Ofício, que, muito coladinho à parede, gola do paletó levantada e passinho estugado, vinha vindo dos lados do Largo do Colégio. Da casa de dona Adelaide — que dúvida! — viu logo o Quincota. O povo sabia, Santana do Boqueirão inteirinha estava velha de saber do rolo antigo de seu Eponino do Segundo Ofício com a cunhada dele, largada do marido; mas aquilo era assunto particular, e seu Joaquim Lopes fingiu que não havia reconhecido seu Eponino, e seu Eponino fez de conta que não reconhecera o seu Joaquim. Santana do Boqueirão amanhecia. Mais gente, agora, pelas ruas, outras carrocinhas de pão, de leite, de verdura — os donos de bancas, os primeiros fregueses do Mercado. Ui ! — avistara o Quincota, finalmente: o Salomé! Lá se vinha o cabritinho, enorme balaio em cada mão, acompanhado do fila de coleira de pregos e orelha cortada. O Salomé, nem que caído do céu — o copeiro do Hotel da Prudenciana, onde haviam se hospedado o capitão Eucaristo Rosa e o sargento Mernegildo! Os hóspedes do hotel que se levantavam mais cedo — havia um trem que partia às cinco em ponto — j á encontraram a sala de j antar de luz acendida, e siá Prudenciana, em pessoa, a servir o café da manhã ao capitão Eucaristo e o sargento Hermenegildo. Bastavam a posição e arranj o da mesa — afastada das duas grandes do centro e da meia dúzia das outras menores colocadas j unto às paredes da sala, o atoalhado novo, de xadrezinho, e o vaso de flor — para se saber, de antemão, que passara a ser mesa reservada de ora em diante. Siá Prudenciana, antiga no ofício e mulher de expediente, soubera escolher o lugar para o delegado especial militar melhor do que ele próprio: o canto onde um guarda-louça escondia e fechava totalmente a primeira j anela da rua, as costas do capitão rente à parede divisória com a cozinha. De tal adequada posição, podia o oficial passear a vista por toda a sala de j antar, vigiar-lhe a entrada — descansado da retaguarda constituída pela divisão de um tij olo, que era como se usava naquelas primeiras e exageradas construções da cidade de Santana do Boqueirão. De costas resguardadas também pelo guarda-louça, o sargento Hermenegildo, à direita do capitão, tinha pela frente as boas quatro braças de largura da sala e, ao fundo, dando para o pátio do hotel, a parede de j anelas de guilhotina — arriadas e abertas apenas pela metade de cima, por onde . somente o ar e a luz do sol passavam. Livres de ouvidos próximos, sentados bem j untos um do outro, os dois militares da mesa reservada conversavam. Em voz baixa, mas animadamente: —...ficar de olho no telégrafo e na estrada de ferro... — Sim senhor. Já vi isso ontem: falei com o agente dos Correios e com o chefe da estação. Qualquer telegrama mais duvidoso, mandam me avisar. — E as saídas? — Vigiadas, sim senhor. Des"a meia-noite. Mas sem busca, nem apreensão de armas, por enquanto, conforme o senhor determinou.
— O j uiz de direito, os outros graudões? — Tem sempre um praça rondando, à paisana, por perto das casas deles. O doutor não saiu do fórum; ficou de luz acesa até quase as duas da madrugada. Não recebeu visita de ninguém, não senhor. O agente executivo, o seu Calixtrato, saiu de casa depois da j anta, "teve também na reunião que eu j á referi pro senhor. Saiu e voltou pra casa dele, podia ser umas dez e meia. — Me repete aquele encontro do sobrado, depois da reunião com os outros. — Sim senhor. O tal Clodulfo, o homem do Sobradinho, demorou na casa do coronel até às quatro e quinze da manhã. A sala de visita ficou de luz a noite inteirinha, de j anela aberta tam"ém. — E saiu depois, sozinho... — Foi sim senhor. Saiu. — O praça foi visto por ele? — Não senhor, informou que não. — Quem é que entra agora na Estação? — O Piedade. Vai render o Cordeiro, que ficou sendo o de de-noite. — Cabaré, pensão da zona, casa de j ogo... — Tudo percorrido, sim senhor. Mas ninguém da lista não, não senhor. — E as intimações? Quem que ficou encarregado? — Me indicaram um rapaz dum cartório: um tal Telésfro. Ele me disse que conhece o povinho todo, um por um... O capitão serviu-se de mais uma fatia de queij o, demorou-se em descascá-la, passou mais manteiga no pão: — Falta alguém do destacamento? — Não senhor. Já estão todos na cidade, um em cada pensão. No Hotel da Estação continuam aqueles dois de antes... Siá Prudenciana aproximou-se da mesa, e perguntou ao capitão se j á podia apagar a luz — a manhã clara, de sol j á metade de fora. Nisso, entrou pela sala de j antar o Joaquim Lopes — o Quincota — assentando-se, muito desembaraçado, familiar, a uma das mesas menores, vaga. Siá Prudenciana foi servi-lo. — Esse suj eitinho j á não me andou por aqui ontem, na hora do almoço, rondando? — o capitão Eucaristo resmoneou, sem olhar para o Quincota. — Não vi, não senhor. Mas posso averiguar... — Não carece não. Escuta: então "tá provado que o principal, o chave mesmo, é esse guarda- livros, o Clodulfo do Sobradinho? — É o que todo o mundo relata, capitão. É a pessoa que lida com os homens, distribui o serviço, recebe e paga... negoceia os empreitos... — O delegado daqui, o paisano, "tá avisado? O escrivão? — Sim senhor. Já devem de estar esperando na delegacia. Um arrastar brusco de cadeiras — duas, empurradas para trás pelo repentino movimento que o capitão mais o sargento fizeram, erguendo-se da mesa ao mesmo tempo — tal barulho assustou o Quincota que, sem querer, olhou instantâneo para a porta da sala de j antar, como para um perigo surgido ali de surpresa. Não, não era nada. O par deixava a sala: o capitão na frente, reafivelando o cinturão, relho ao punho, de palito no canto da boca. O Quincota pode então vê-los bem de perto, que passaram quase que encostados nele. O capitão Eucaristo, sem dispensar o palito, chupava o dente, repuxado de boca que lhe deixava à mostra a dentadura de caranha. Quase uma braça de alto, a cinta mal podia com a carnadura maciça, de visíveis saliências. O
sargento Mernegildo, seu tantinho ainda mais crescido que o oficial, também mais reforçado de corpo — o pescoço e a cabeça emendados numa peça só, inteiriça, preta e rugosa, de pau encarvoado. À porta, o ordenança levantou um dos braços para colocar o boné. Ai ! — se lembrou o Quincota, e um frio correu-lhe do uropígio à nuca: pobre de povo de Vau-d"Antas, de Abadia do Cerro! Coitado do seu Remígio, desgraçado do seu Higino Delegado! Um murraço daquele colherão-de-pau... Não, não era mão de gente: era uma figa de madeira, vez e meia maior que a mão mais grandalhona que j amais havia visto o Quincota em toda sua vida! As outras partes do corpo, o resto... como é que deveria de ser o animalão daquele negro... — foi a extravagante vontade que relampeou na mente do Quincota: ver o sargento Mernegildo, e preto e nu — anum de tudo, pelado! Os dois desciam agora o degrau da porta do hotel. Na sala de j antar ainda ficou porém um restinho de rangido do assoalho e de cincerro das esporas, e uns longes de tinta de seleiro, suor de animal de sela muito viaj ado, e zinabre de instrumento de latão, corneta — notou a engraçada da siá Prudenciana. Apesar de ter trabalhado até a que horas — havia ficado ainda muito tempo se revirando na cama sem poder pegar no sono — o dr. Damasceno Soares j á estava de pé quando o Juca Meirinho mais o filho apareceram com a lata d"água do banho, o bule de café com leite, e o pão j á besuntado de manteiga. Seu Juca trazia também um recado: — O coronel Américo Barbosa mandou lá em casa me pedir para avisar ao senhor que j á chegou da fazenda, e quer saber a hora que o senhor pode receber ele mais o coronel Calixtrato. Se dá para ser hoj e, agora de manhã... Esperasse ou não pelo pedido, o j uiz de direito foi pronto na resposta: — Seu Americão? Diga a ele que venha com o coronel Calixtrato às oito, oito e meia... Que vou à missa, primeiro. E, antes de sair o Juca Meirinho: — O senhor me venha também, seu Juca. Abre o cafezinho lá embaixo. O Dr. Damasceno Soares foi à missa das sete, rezada pelo cônego Tristão, na igrej a do Largo das Mercês, fronteira ao fórum. Missa ligeira, pois muito antes do prazo marcado j á o j uiz esperava pelas visitas. Fazia hora, pondo mais ordem no quarto, arrumando a mesa atravancada de maços de autos — processos recentes e também os desentranhados dos armários do Cartório do Crime. O dr. Damasceno gostava que o vissem assim no desconforto, mal-acomodado — a cama de solteiro, os ternos de sair poucos e à vista nos cabides das paredes, a mala de roupa de dentro a um canto, o baú; e os livros — muito livro e papel esparramados por toda parte. Coronel Américo Barbosa chegou acompanhado do irmão, o coronel Calixtrato Barbosa, agente executivo. E também do Clodulfo do Nascimento — secretário do Diretório, seu Americão explicou ao j uiz de direito. Refeito pelo banho, a missa e a travessia pelo j ardim do largo — eram um ensolarado morno aquelas manhãs de maio — reanimado e bem disposto foi que o dr. Damasceno Soares recebeu os visitantes. Primava em atenções: — Os senhores vão desculpar, mas é o aperto, a desarrumação aqui do quarto... Mas nem tempo se tem para um arranj o melhor... Quem sabe se não podíamos ficar na minha saleta, no outro lado do corredor... Tem mais cadeiras, deve de estar mais arej ado... Havia na saleta a mesa do j uiz, o sofá, cadeiras para todos. Antes de sentar-se, porém, o dr.
Damasceno pediu licença e foi até o meio do corredor : — Seu Juca! — gritou. No andar de baixo, no vão da escada, o Juca Meirinho abrira j á sua porta -o abonozinho que lhe davam a quitanda e o café, a féria mais movimentada por ocasião de j úri. O Juca respondeu, ouvindo então a ordem do doutor : — Se alguém aparecer me procurando, diga que estou com amigos, muito atarefado! — isso em voz alta, escutada pelas visitas. A perda de tempo inicial, inevitável. Os motivos pelos quais não haviam aparecido antes: é que chegara tarde da fazenda, encontrando a casa cheia de pessoas — j ustificou seu Americão; uma dor de estômago danada que o havia crucificado o dia todo — o coronel Calixtrato desculpou-se de não ter podido atender ao chamado do dia anterior. E, ambos, concordes na censura amistosa: que o doutor tivesse paciência, mas aquilo não era vida: teimar em permanecer tão mal aloj ado assim, parecia até que estudante... Já lhe haviam oferecido antes, insistido... agora, lhes surgia uma outra ideia: eles tinham uma prima, senhora sem filhos, viúva e j á de bastante idade, sozinha numa casa grande e sossegada, com j ardim e um quintalão; rua quase que sem movimento, de barulho nenhum... ele, o doutor, ocupado só em escritas e leituras, afadigando tanto o cérebro, carecido de despreocupação e de silêncio... forçado — imaginem! — a sair, quem sabe se até com chuva, para comer no hotel !... E casa pertinha do fórum, logo ali no Beco do Cotovelo A... prima, a Zulmira do Tati, cuidaria do doutor como dum irmão, dum filho... Dr. Damasceno agradeceu. Mas, enquanto não pudesse vir a família, a biblioteca, preferia ficar ali mesmo no fórum: à testa do serviço — muito papel ainda em atraso — tendo de colocar aquela barafunda em ordem... Até que o coronel Americão principiou a entrar no assunto: — Meu filho, o dr. Tancredo, me pôs a par da entrevista que teve, ele mais seu Valério Garcia, com o senhor e o capitão comandante da Captura, aqui no fórum... — De fato... O dr. Tancredo disse-me que havia mandado chamá-lo na fazenda, e que lhe daria ciência da conversa que mantivemos — concordou o dr. Damasceno Soares. E observou: — Soube que o dr. Tancredo viaj ou ontem para a capital com a senhora... — É... A Alicinha foi consultar... — seu Américo informou. — Ela anda sentindo umas novidades, j á faz dias... O senhor sabe: o primeiro filho... o médico pediu que ela se apresentasse este mês, para uns exames... E o Tancredinho aproveitou, vai acompanhar também uns assuntos do município... o Calixtrato tem lá umas coisinhas meio paradas... O j uiz de direito, rodava no dedo o anel de grau, ouvia de fisionomia amável: — Pois eu fico muito satisfeito, coronel Américo, com esta visita do senhor e do coronel Calixtrato Barbosa, do senhor Clodulfo... — Pois é... — animava-se o coronel. — Acho que agora, à vista do que o senhor conversou com o Tancredinho mais seu Valério, chegou a hora d"a gente resolver nossas dúvidas, acertar alguns mal- entendidos que lavram por aí... O senhor j á está bem a par da situação do município — j uiz tão experimentado em outras comarcas, conhecedor da política... — Realmente... — disse o dr. Damasceno. — O senhor não imagina como estou contente mesmo, ao encontrar os senhores assim desej osos de colaborar com a Justiça e com o j uiz que o governo do estado houve por bem designar para esta comarca... O Clodulfo, mudo — um perdigueiro, em pleno amarre, de tão tenso — não sabia ainda se a coisa começava bem ou mal. Mas, que o homem se mostrava mui senhor de si, disso dúvida nenhuma tinha ele. Prosseguia o dr. Damasceno: — Aliás, se tivesse havido essa compreensão desde o início, logo por ocasião de minha chegada a Santana, quando procurei as autoridades do município para expor o
pensamento e as intenções do senhor presidente do estado, no tocante ao decoro e à ordem pública... acredito que, hoj e, essas dúvidas, a que o senhor se refere, coronel Américo, estariam desde logo dirimidas. O senhor há de convir que uma cidade da importância de Santana do Boqueirão precisa de libertar-se de certa fama que j á está a transpor fronteiras... Os senhores é porque são daqui, e a verdade é que nunca se vê com exatidão o que ocorre muito de perto. Mas vou-lhes narrar um fato, apenas como ilustração, e peço-lhes que não considerem a menção como indelicadeza minha... — Ora, doutor, o senhor estej a a gosto... — achou de apartear o coronel Calixtrato. — Pois bem. Quando fui nomeado para esta comarca, não foi um, não foram dois... foram dezenas de amigos que me procuraram para dar-me pêsames! Repito: quero que os senhores não interpretem... confidencio-lhes isso, apenas para demonstrar como se propala o mau nome de Santana do Boqueirão por aí afora... O coronel Calixtrato Barbosa sentiu-se no dever, como agente executivo do município, de dar uma explicação: — É para o senhor ver... a maldade... Sabemos disso, não é segredo não o que o senhor está contando. Mas o doutor sabe por quê? Paixão, despeito... É os adversários que vivem difamando assim a gente... — Pois se chegaram a esparramar que o doutor não trouxe a família por causa da cidade, do povo daqui... — aproveitou-se da deixa do irmão o coronel Américo Barbosa. — A oposição, aqui, é tremenda, doutor ! O dr. Damasceno Soares mostrou um sorriso: — Sei perfeitamente bem que adversário não perde vaza... Sou antigo na magistratura, coronel Américo, e tenho passado por comarcas difíceis... O coronel Calixtrato Barbosa falou em paixão... paixão política!... Nada tão nefasto para uma comunidade como essa disputa encarniçada pelo domínio local ! Compreendo a luta dos senhores, compreendo sim. E vou além: aqui, em Santana do Boqueirão, mais realista ainda busco ser. Imagino como devem sentir-se os outros: desde a fundação da cidade, uma família apenas a manter a hegemonia, a responsabilizar-se, sozinha, pelos destinos de todo um município! Conheço a história do maj or Eustórgio, o Desbravador do Bugre... A crônica de coragem e tenacidade do barão do Bugre — o primeiro Américo Barbosa, seu avô e homônimo, meu coronel ! Sei quem foi o coronel Tancredo Barbosa, seu pai... E, por fim, estou também a par do que o senhor, coronel Américo, realizou como agente executivo, e em três gestões, em prol do progresso de Santana do Boqueirão... Só um cego para não ver : a luz elétrica, o telégrafo, os serviços de água e esgoto, o calçamento... E a ampliação da Escola Normal, o lindo edifício da Câmara... Passos a subir a escada, a se aproximarem pelo corredor. Era o Juca Meirinho com o café. Mas o dr. Damasceno não parava: — O j ardim, a feição moderna do centro da cidade... Procurei informar-me de tudo, logo o presidente do estado me honrou com a promoção para esta entrância... Somente depois que se haviam servido os demais foi que o dr. Damasceno aceitou o café. Bebeu vagarosamente, soprando gole por gole. Nenhum dos visitantes quis se aproveitar da pausa, e o dr. Damasceno recomeçou então: — Mas desviei-me do que queria lhes dizer. Era sobre a paixão política. Os homens mais preeminentes de uma coletividade acabam deixando-se absorver por ela. Vêm as eleições, a competição, a luta, cada qual desej oso de não ser vencido pelo outro... a vaidade da vitória! É a hora das concessões, dos olhos fechados, das tolerâncias... Vence quem tem mais voto, quem mais eleitores conquista, quem mais fiéis companheiros congrega em torno de si. E, então, se chega a este quadro desolador que é a realidade em nossos municípios: o número se sobrepondo à qualidade, a massa esmagando a elite! O coronel Américo Barbosa mal podia ouvir o discurso; a custo sustinha a cabeça a prumo e os
olhos abertos. Depois de um dia como o da véspera, a noite toda sem dormir !... E o tempo passava, passava... Os três ali, para uma conversa séria, tão importante, e o j uiz de direito a engambelá-los, engazopá-los com palavreado difícil e a encheção de linguiça sem mais fim! E a Captura em Santana do Boqueirão — dali da saleta se podia ouvir o patear dos cavalos no chão duro do pátio do fórum, uma ou outra risada alta da soldadesca... E o capitão Eucaristo, o demônio, a começar com o brinquedo de gato e rato... E o j uiz a não permitir que ninguém o interrompesse. E não parava... — ...O eleitor ! Ah, o eleitor ! Esse, o favorecido, o baj ulado, o imune... — o "nosso eleitor"! Vagabundo, interesseiro, aproveitador, desordeiro? — pouco importa... Jogador? Ladrão? Assassino? — defeitinho de somenos... Vota no partido, não vota? — Então: é o que influi !... E aí está o resultado, coronel Américo Barbosa, coronel Calixtrato Barbosa, senhor Ataulfo! — Um momento, doutor : Clodulfo... — o guarda-livros procurou consertar depressa, com um risinho desbotado. Já lá envinha a maldita rima a fazer o j uiz confundi-lo com o dr. Ataulfo, o maior inimigo do presidente do estado! O dr. Damasceno não pôde deixar de sorrir também: — O senhor desculpe, senhor Clodulfo... — E continuou: — Aí está a situação: o j ogo é proibido pelas leis, mas aqui em Santana do Boqueirão é livre, campeia desbragado! Pronto. Ia começar o sermão! — viram os três. Mas, preparados para o que desse e viesse, mantiveram-se impassíveis. — E o j ogo, meus amigos, quer dizer desregramento, corrupção, meretrício! Aqui em Santana do Boqueirão — tenho em minha mesa a estatística, tenho os números! — nada menos de vinte e duas pensões-de-mulheres! Vinte e dois lupanares! E me refiro apenas às casas conhecidas, relacionadas e j á registradas em livro próprio que mandei organizar, com Termo de Abertura, rubricado! E quantas outras não haverá, disseminadas pelas pontas de rua dos altos? Eis o exemplo do que eu lhes falava há pouco: os frutos da disputa, da paixão política! Resultado do receio de punir, da necessidade de não desagradar... Dr. Damasceno interrompeu-se para beber o copo d"água que o Juca Meirinho havia deixado sobre a mesa. Virou-se para olhar através da j anela aberta para o Largo das Mercês — a Matriz em frente: a torre nova muito alta e branca, bem destacada do azul da manhã. Seguia, porém, falando assim de costas, aproveitando-se para tirá-lo, limpar o pincenê: — E os cabarés... — O dr. Damasceno tinha a voz embargada. — Aqui em plena praça, à sombra da Igrej a de Nossa Senhora das Mercês! Quantos crimes cometidos dentro desses covis! Quantos em consequência das desavenças e disputas nascidas em suas salas de dança e de j ogo... E a bebida, a maldição do álcool ! — fonte de todos os desregramentos e licenciosidades! Não sei onde andam os legisladores deste país, que ainda não aboliram de vez, com as mais severas penas para os transgressores, o tráfego e o comércio, e o uso de toda essa perniciosa fartura de aguardentes, e conhaques, e cervej as, e sei lá mais de quanta risana diabólica inventada por aí !... A j uventude... meninos ainda a se viciarem irremediavelmente... E novamente dirigindo-se para as três visitas: — Antros de vício e perdição! Daqui do meu quarto, do meu trabalho, do meu estudo, ouço as obscenidades, os gritos, as gargalhadas... Muita vez, ao sair pela manhã, para a minha missa diária, encontro ainda abertas as portas do cabaré! Mulheres bêbedas, cenas as mais degradantes de despudor ! E as famílias passando para a igrej a, senhoras, moças, crianças... E toda essa imoralidade e devassidão, aqui no Largo das Mercês! Aqui, sim senhores, aqui pegado ao fórum — a Casa da Lei e da Justiça de Santana do Boqueirão! Aquela visita ao dr. Damasceno Soares havia sido muito bem meditada, pesada e discutida por seu Americão e o Clodulfo, durante a noite passada em claro no sobrado do coronel. E seu Americão
não se descuidara de instruir pacientemente o mano Calixtrato, chamado para tal fim pouco depois de ter-se retirado o Clodulfo. Bem treinados portanto para enfrentar o j uiz de direito, os três comportavam-se como exigiam as circunstâncias. Ouviam, calados, a arenga do j uiz, dispostos até a mais ainda, desde que, com isso, se evitasse desgraça maior. Finalmente, o dr. Damasceno Soares decidiu encerrar a lição de moral, e provocou, sem mais rodeios, o assunto que — sabia — levara ao fórum as três visitas: — Imagino que o dr. Tancredo tenha transmitido ao senhor, coronel Américo, toda a conversa que tivemos, aqui nesta mesma sala, com a presença de seu Valério Garcia e do capitão Eucaristo Rosa... O combinado anteriormente era que somente deveria falar o coronel Americão: — Relatou tudo, dr. Damasceno. — Sobre o j ogo do bicho, o j ogo bancado, os cabarés? Um melhor controle do meretrício? Os criminosos com precatórias j á encaminhadas a esta comarca? — o j uiz fez a pergunta com serenidade, mas empregando todas as palavras e letras. — Bom... — o coronel negaceou —... nós viemos aqui exatamente para que o senhor pusesse as coisas mais fáceis d"a gente entender e também para que o senhor nos aj udasse, nos aconselhasse como agir... — Mais fáceis de entender? ! — o dr. Damasceno perguntou com um sorriso surpreendido. — Mais claras? Olhe, coronel Américo, vamos falar francamente... Ainda ontem à noite, o capitão comandante do Destacamento de Capturas mandou saber de mim se o dr. Tancredo tinha estado comigo antes de viaj ar... Se o senhor, que j á havia chegado da fazenda, tinha-se manifestado também... E eu sou obrigado a lhes confessar que fiquei em dificuldades para j ustificar este lapso dos senhores... Ele mesmo, logo em seguida à informação que lhe mandei pelo ordenança, veio até aqui, e... bem...deu trabalho para que eu o acalmasse!... — Mas... — Coronel Américo, o senhor j á deve ter ouvido falar no capitão... E as ordens que ele trouxe — eu as vi... ele as exibiu... — são peremptórias. São muito severas... — Bom... Mas que ordens são essas, dr. Damasceno, o qu"é que o capitão Eucaristo vai querer executar? O que pode ser para j á, o que pode ficar para um pouco mais tarde... O senhor... — Coronel Américo, eu lhe peço que compreenda: eu sou o j uiz de direito, um magistrado... A parte policial cabe ao capitão Eucaristo Rosa, investido das funções de delegado especial militar... — Mas, dr. Damasceno, o senhor bem que podia nos dar uma palavra... orientar a gente... — pedia, com humildade, o coronel Americão. O j uiz de direito guardou silêncio por instantes, demonstrando na fisionomia um convincente ar de luta interior — dos prós e contras que deveriam estar se entrechocando em seu íntimo. Mas o apelo do coronel acabou por vencer as susceptibilidades: — É em consideração à sua pessoa, coronel, e também à posição do coronel Calixtrato, agente executivo do município, que desço a um plano a que minha condição de magistrado não deveria descer... Espero que o senhor... o senhor... — Clodulfo, doutor, Clodulfo do Nascimento — acudiu, imediatamente, o guarda-livros, vendo que o j uiz lhe ia trocar novamente o nome. —... que o senhor Clodulfo, testemunha deste encontro, guarde a devida discrição... — Ora, doutor, lhe dou a minha palavra... — Pois bem — falou então o dr. Damasceno. -Vamos por partes. A questão do j ogo... a ordem é para fechamento imediato: o bicho, o j ogo bancado; o que se conhece como "j ogo carteado", o capitão Eucaristo declarou-me que vai regulamentá-lo, com permissão apenas para alguns clubes, dentro de certas condições e exigências... — Mas, doutor... — quase que protesta com mais veemência o coronel Américo. — Em todas as cidades que eu conheço... O j uiz de direito, porém, atalhou cerce a tentativa de diálogo sobre o tema. E não havia mais amenidades no rosto e na voz: — Coronel Américo Barbosa, eu não discuto o assunto, j á lhe disse. Estou violentando a minha consciência somente em dar-lhe as informações que o senhor pediu. — O senhor me desculpe, doutor... — submeteu-se o coronel. — O capitão Eucaristo j á deve, uma hora dessas, ter intimado a todos os exploradores de j ogo e as pessoas ligadas a essas atividades ilegais para lhes dar conhecimento da proibição. Agora, com relação aos criminosos, j á que a parte da prostituição e baixo meretrício não deve interessar tanto assim aos senhores... Nada, nem um pio — o j uiz observou; seguiu, então, com a palavra: — Estou com os processos em mão; todas as precatórias, ofícios, documentos vários com relação a esses criminosos — tudo o que me foi solicitado para que o Cartório do Crime passasse às mãos do delegado especial militar. O escrivão competente vai encaminhar os expedientes ainda hoj e. E nem poder conversar sobre o assunto ele podia! — o coronel Américo Barbosa se agoniava. Não, tinha de tentar, nem que o dr. Damasceno o pusesse para fora da sala! A noite sem dormir, a manhã j á adiantada... — o comprido sermão, os pitos, a humilhação — a primeira em sua vida! — tanto vexame sem render ao menos uma ideia, uma esperança por mínima que fosse? ! — Dr. Damasceno: lhe peço que compreenda... a gente podia aj udar também a Captura... Somos daqui, conhecemos melhor o povo... entrar num acordo com o senhor... A descompostura, os desaforos, a tempestade estiveram por explodir — o coronel Américo, o coronel Calixtrato, o Clodulfo, os três viram o furacão sombrear e sacudir as feições do dr. Damasceno Soares, estremecer-lhe as vidraças escuras do pincenê. Escaparam, porém, por um triz: eram os passos do Juca Meirinho, a subir correndo a escada, atravessar a metade do corredor e entrar na saleta: — O sargento-ordenança está aí embaixo, doutor j uiz de direito. Pede para avisar ao senhor que o capitão Eucaristo quer falar urgente com o senhor. Agora, o sargento me disse. O dr. Damasceno levantou-se, dirigindo-se ao coronel Américo Barbosa: — O senhor se entenda com o comandante do Destacamento de Capturas. E me deem licença, que preciso atender agora ao capitão. Frias, as mãos que o dr. Damasceno Soares teve de apertar, ao despachar aqueles três — aterrorizados, parecia, com um possível encontro com o capitão Eucaristo Rosa pela escada do fórum, pois desceram-na com indisfarçada toda pressa.
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OS DESTACAMENTOS Especiais de Captura do Estado gozavam de muita independência — como j á afirmara o dr. Damasceno Soares —, subordinados diretamente à Secretaria do Interior e Justiça. Rompidos pelas cidades, quase sempre de surpresa, agiam com rapidez, prevenidos contra protelações e artimanhas outras, benéficas apenas aos maus elementos caçados pela tropa volante: ladrões de cavalo e gado, desordeiros, matadores profissionais. Tais destacamentos organizavam-se à base de homens de provada valentia, muitos deles antigos criminosos também. Jagunço temível — se capturado com vida e revelador de astúcia e sangue-frio capazes de causar admiração aos comandantes —, o cuj o sentava praça, recebia farda, armamento e montaria; e ainda o perdão das façanhas pregressas, se disposto ao disciplinado exercício das futuras — de então por diante a serviço e sob a proteção da lei. Até bonita carreira esse regenerados delinquentes logravam fazer, se de corpo fechado ou muita sorte, escapos aos perigos de vida assim tão arriscada. O capitão Eucaristo Rosa comandava o Segundo Destacamento — o mais famoso e respeitado — composto de gente recrutada a dedo: trinta e três soldados ao todo, repartidos em três Grupos de Combate de onze cavalarianos armados de sabre, máuser e mosquetão. Trinta e cinco, se na conta se incluíssem o comandante e a ordenança — esse um, uma espécie de subcomandante, guarda-costas e confidente, o falado sargento Hermenegildo. Muito raramente, porém, agia o Segundo Destacamento com efetivo completo em uma especial e mesma diligência. Quase sempre, os Grupos de Combate deslocavam-se separadamente, ocupados em distintas missões. Mas o comando, esse permanecia rigorosamente nas mãos do capitão Eucaristo Rosa, senhor dos movimentos de sua tropa, pondo e dispondo como muito bem entendia, sem repartir autoridade com outro oficial, responsabilidades tampouco. De graduados, no Segundo Destacamento, apenas um sargento — o ordenança — e três cabos, cada um deles no comando de um Grupo de Combate. Tal organização era o que assegurava tão rij a disciplina e a terrível eficiência da volante comandada pelo capitão Eucaristo Rosa. As pessoas que conheciam, por ver ou ouvir dizer, a maneira de agir do capitão Eucaristo, estariam estranhando por certo a tática adotada por ele em Santana do Boqueirão: o destacamento abivacado no fórum e a falta de uma espetacular demonstração de sua chegada e obj etivos; sobretudo as idas e vindas do capitão ao gabinete do j uiz de direito — desusado respeito à autoridade da Comarca. É que se ignoravam os preparativos e os primeiros desenvolvimentos da ação a ter lugar na cidade de Santana, e, outrossim, desestimavam a importância da caça grossa visada pelo capitão. As alarmadas informações fornecidas à capital pelo dr. Damasceno Soares, havia pouco que empossado na j udicatura da comarca, as repetidas denúncias encaminhadas ao governo do estado, e a espionagem do capitão Eucaristo — alguns elementos seus, menos conhecidos e de mais confiança, disfarçados em cometas, negociantes e condutores de gado, aloj ados com antecedência nos hotéis e pensões mais frequentadas da cidade — tudo isso, somado, veio confirmar o j á notório: Santana do Boqueirão transformara-se em perigoso foco de banditismo: valhacouto de sanguinários assassinos — conforme textual expressão contida na pastoral do senhor bispo de Acaj uí, lida e comentada no estrondoso discurso do senador Alfredo Pires, em sessão solene de abertura dos trabalhos parlamentares do ano. Cansado j á do inútil emprego apenas de meios menos violentos, moveu-se então o Governo — era presidente do estado, na ocasião, o de. Figueiredo de Mendonça — disposto a pôr fim a tal estado de coisas. Parentes, amigos e admiradores do coronel Américo Barbosa, chefe político de Santana do Boqueirão — seu Americão, como o chamavam — alguns vivos ainda, avançados de idade mas de conservada memória, buscam j ustificar os fatos como decorrência de uma luta municipal antiga de muitos anos, eleição a eleição mais importante e renhida. Os cabos eleitorais, de costumeiros cumpridores de obrigações normais — qualificação, transporte e encaminhamento de eleitores, alimentação e vigilância nos quartéis, proselitismo e fiscalização das urnas etc. — acabaram convocados a tarefas menos rotineiras; os de fraco pendor para tal ofício substituídos por outros de mais inclinação e coragem — dedo desenvolto e irrepreensível pontaria. Os Barbosas primavam em sua escolha, pagando mais merecidamente -descuido dos oposicionistas que, incompetentes e fechados de bolso, nunca levariam mesmo a palma nas eleições municipais. Mão de obra muito cara, porém. Montava em tão avantaj ada despesa, que as porcentagens cobradas ao j ogo do bicho, j ogo bancado e carteado, cabarés e de até aos bordéis que, dia a dia, mais aumentavam e prosperavam — a receita assim auferida pelo partido se tornava insuficiente. E renda até que bem apreciável, pois Santana do Boqueirão era o maior centro de negócios da zona do Bugre — quiçá do interior do estado. Mercado comprador de boiadas magras, sertanej as, e vendedor do boi gordo, invernado em suas furnas pretas e úmidas o ano todo, nas quais o pasto não secava nunca — verde e farto e sustancioso o ano inteiro. Centro boiadeiro, rico, onde o j ogo precisava mesmo de ser franco; e com vida noturna movimentada, cabaré, mulher às pampas. Por essa lembrada época, apareceu em Santana do Boqueirão um moço de fora, vindo da tombada oposta do Chapadão do Bugre. Labioso, inteligente, buscou logo abeirar-se dos graúdos da cidade, oferecendo os préstimos. Ágil em números, boa letra, expedito — seus primeiros serviços agradaram em pleno. Operações de j uros capitalizados, redação de documentos de dívida e hipotecas, contas por acertar de demoradas comitivas boiadeiras — a aptidão abriu-lhe a oportunidade de um emprego fixo na Câmara Municipal, onde governava, de presidente e agente executivo, pela segunda vez, o coronel Américo Barbosa. Poucos meses bastaram para que o Clodulfo chegasse a homem de confiança do coronel Americão. Costumado a lidar com confianças, foi o Clodulfo do Nascimento quem, um dia, aventou a ideia ao coronel, arrazoando-a com muita lógica. As eleições realizavam-se de quatro em quatro anos e requeriam, apenas por pequeno prazo, os cabos eleitorais do partido. Terminado o pleito, atas lavradas e consumada a vitória, o que fazer com aquela gente sem mais trabalho durante o meio- tempo a decorrer até que outra eleição se ferisse? O partido — e isso j á constituía um dos seus mais aborrecidos problemas — via-se então frente à obrigação de estar arranj ando mais empregos na Câmara Municipal e repartições do estado, gastando na instalação e abonando aluguéis de chalé-de- bicho e loteria, acomodando mal-e-mal a vida de cada um desses apaniguados. Casos e mais casos: ciumeiras entre eles, rendimento nulo nos serviços públicos do município — o coronel Américo Barbosa em plena fase de reformas e melhoramentos por que passava Santana do Boqueirão! —, rixas, desordens e tiroteios diários no Alto da Boa Vida, cansativa preocupação agravada com o rombo cada vez mais fundo no caixa do partido. Em resumo, esses os prej uízos causados pela mantença dos cabos indispensáveis em épocas de eleição, mas onerosos fora delas. Afastá-los da cidade, arranj ar-lhe serviço em outra parte, enquanto durava o intervalo? Oferecer-lhes trabalho nas fazendas — empreitadas de cerca, roçadas e outras ocupações parecidas? Impossível, que habituados a um modo de vida mais aventuroso, somente nele dando-se bem, tal providência seria o mesmo que despachá-los em definitivo, forçando-os a ir caçar patrão em outras bandas. Por que, pois então, não aproveitá-los na tarefa de gosto, tê-los sempre à mão, sem necessidade do corre-corre atrás de desconhecidos, na hora do aperto? Seu Americão — o Clodulfo do Nascimento lembrara-se de um argumento em verdade muito forte — não vivia emprestando seus homens para correligionários de outros municípios? Não crescia, mais e mais, o número de pedidos para que cedesse fulano por uns dias, sicrano para discreta empreitadazinha, beltrano para aj udar em decisiva mão-de-onze? Então! Era fazer disso, de agora em diante, coisa bem organizada, capaz de transformar-se em mais uma fontezinha de renda extra para o partido! Assunto muito lá entre os dois, reservadíssimo, deve de ter sido esse particular do Clodulfo do Nascimento com o coronel Américo Barbosa — o que dificulta sua fiel reprodução. Pode-se todavia adivinhar : os pontos de vista do guarda-livros, a preliminar e espantada desaprovação do coronel, novo arrazoado e novos contras, a apresentação do impossível orçamento de receita e despesa do partido... Discute que discute, o fato é que o coronel Américo Barbosa teve de render-se à proposta apresentada pelo funcionário da Câmara, pois era ela a solução de todas as dificuldades financeiras do partido. E não apenas aceitou a ideia, como encarregou o próprio Clodulfo da organização do negócio. Coisa de somenos, de semanas: em pouco tempo, começaram a ter trabalho condizente, e muito variado, os cabos eleitorais do partido — selecionados com o correr dos anos, crescidos em número com aquisição ou outra de mais valia. Quando da posse do novo j uiz de direito da comarca de Santana do Boqueirão, constituíam eles o mais temido bando de empreiteiros de morte de que se tinha notícia, sob as ordens do coronel Americão Barbosa, um dos mais simpáticos e prestigiosos chefes da política interiorana do estado. O capitão Eucaristo Rosa, sempre que chegado assim de novo, gostava de mostrar-se, escolhendo, para fazer ponto, lugar de movimento — o mais central que houvesse: confeitaria, um bar de esquina, geralmente. Enquanto permanecesse na cidade, não quebraria o hábito: muito cedo, e j á aparecia ele, ordenança ao lado, para ocupar a mesa que melhor se prestasse para a observação dos frequentadores e também da rua. Como era pessoa que só falava com quem quisesse, sem abrir exceção, podia então dali mesmo — comodamente e sem que o perturbassem — dar o expediente: receber praça ou outra com essa ou aquela informação, mandar o ordenança transmitir as ordens — o grosso da tropa a rondar pelas imediações, à mão para qualquer súbita emergência. Em Santana do Boqueirão, nenhum local mais indicado que a Confeitaria do Cucute. Ocupava ela o andar de baixo do Clube Eldorado, bem na esquina do Largo das Mercês com a rua do Comércio. Logo à entrada, o balcão dos cigarros, café em pé, aperitivos, comedoria miúda, salgada e doce; sala de muitas mesinhas onde de tudo se servia, nos fundos o bilhar. Entra-e-sai continuado, que, além do ponto tão central, era o Cucute excelente e estimadíssima pessoa. As mesas ocupadas sempre e sempre, o salão de bilhar repleto o dia todo. Mas, naquela manhã de sábado, o capitão Eucaristo Rosa foi primeiro à cadeia, onde funcionava a delegacia de polícia de Santana do Boqueirão. Ia receber aquilo, até então sob as ordens de seu Valério Garcia, delegado municipal. E passar uma vista-d"olhos pela repartição — conhecer o escrivão de polícia, o carcereiro, a guarda; examinar também os dois cômodos das prisões, o xadrez dos homens e o das mulheres, lado e outro do corredorzinho apertado e escuro. A conversa com seu Valério Garcia, que j á esperava no prédio da cadeia pelo novo delegado especial militar, resumiu-se em uma ordem só, dada à vista do escrivão e dos três soldados da guarda; e alta, para que a ouvissem o carcereiro e os presos lá de dentro: — O senhor deixa todo o expediente com o escrivão. E não me saia da cidade, que posso precisar de lhe chamar. E ao escrivão de polícia, o seu Elpídio: — O senhor me acompanhe, faz favor. O capitão Eucaristo entrou no corredor, seguido do sargento Hermenegildo e seu Elpídio; o carcereiro esperava ali, as chaves no correão da cintura. O delegado militar, sem entrar na cela, contou os oito presos cabeludos, a metade sem camisa e pés no chão. Ciganos, ladrões de animal — o escrivão explicou. Mas o capitão Eucaristo continuava inspecionando a j anela gradeada, o forro alto e de tábuas largas, as duas latas de querosene que serviam de sentina, o pote com água de beber. — Aonde é que se j oga fora essa porcariada? — perguntou apontando com o palito do canto da boca as duas latas encostadas no ângulo mais sombrio do xadrez. — Tem uma barrica lá fora... serve também para a outra lata do corpo da guarda... — o carcereiro foi quem respondeu. — Mas aqui não tem esgoto? — perguntou o capitão. — Ainda não senhor. Mas as manilhas j á vêm vindo perto; o senhor deve de ter visto a buraqueira na rua... — Sei. Mas, e a barrica, quem é que recolhe ela? — A carrocinha da Câmara; quando enche, eu aviso. Aí, ela traz uma outra, vazia... A gente troca... A prisão das mulheres. Uma presa apenas, velha e imunda, a roupa em trapos. — É uma bêbada muito escandalosa — informou seu Elpídio. — Tem o apelido de Corneta... — acrescentou, querendo fazer graça, o carcereiro. O capitão Eucaristo olhou-o, porém, de cima a baixo, continuando com suas perguntas: — E a solitária? Respondeu seu Elpídio: — Não tem, não senhor. Tinha mas era um poço de cimento, fundo, pegado à guarda. Mas seu Valério mandou entupir. O capitão passou pelo cabo da guarda e os outros três soldados, os quatro perfilados, a farda remendada onde podia, botinas e perneiras recendendo a tinta e graxa. As camas estendidas, a capa dobrada a servir de cobertor, o chão manchado de escarro e queimado de toco de cigarro. Os quatro fuzis encostados à parede, os pentes de munição. Num canto, disfarçada debaixo do único tamborete, a lata de querosene. Da guarda, o capitão Eucaristo seguiu para o pátio: — Aquele puxado no fundo, quem é que mora ali? — É eu, capitão — o carcereiro respondeu. — Sozinho, sou solteiro... O capitão viu a barrica de tampa, e olhou para o ordenança. Mas a pergunta, dirigiu-a ao carcereiro: — "tá cheia, ou j á trocaram de barrica? — O dia de trocar vai ser lá pela terça, quarta-feira. Mas posso avisar a carrocinha hoj e, se o senhor acha... — Não. Não troca hoj e não. Deixa ela aí. Vou resolver isso de outro j eito. Mas não me mexe nela sem minha ordem, "tá escutando? — Sim senhor. — Qual é que é o seu nome? — Pedro Segundo de Oliveira, capitão. — "tá bem. Pode ir cuidar da sua obrigação. Voltado à sala, foram rápidas as outras ordens dadas pelo delegado militar a seu Elpídio, antes de deixar a cadeia: — Vou mandar outro cabo mais antigo para comandar a guarda. Talvez até que reforce ela... O senhor me mande passar um pano molhado no assoalho, limpar esta j anela, dar uma arrumação melhor nesta minha sala. Manda comprar também uma bacia e um j arro... o senhor sabe: desses que vêm numa armação de ferro, com lugar também pro sabonete; quero isso j á com água ali naquele canto na hora que eu voltar, depois do almoço. Tira do dinheiro da carceragem: deve de estar com seu Valério — ele manda pagar. Ao meio-dia, um pouco antes, o senhor me estej a aqui, que vou começar a ouvir muita gente... — Sim senhor. — O cabo que vem para substituir esse outro, ele sabe onde é que eu estou; é pessoa de minha confiança — o senhor põe ele a par do que for se passando na minha ausência. Dispensei o delegado municipal, o senhor assistiu. Se ele voltar por aqui, diga que só me apareça quando for chamado. — Sim senhor, capitão — seu Elpídio, paisano a vida inteira, acabara perfilando-se também. Nem meia hora gasta naquela primeira visita à delegacia de polícia. Outro tanto a andar os dois, o capitão Eucaristo mais o sargento Hermenegildo, vindos pelo meio da rua, parando aqui e ali, examinando as casas, observando tudo. Quando chegaram ao Largo das Mercês, as loj as principiavam a abrir as portas, os carros de praça a se alinharem no ponto, gente a movimentar-se. Na Confeitaria do Cucute, as mesinhas j á quase que todas tomadas; mas a de perto da porta da esquina, a mesa principal, essa estava vazia, com as cadeiras inclinadas e encostadas a ela — reservada. No passeio, um praça apertado de talabarte, cinturão com cartucheira e máuser; na calçada fronteira, um outro cavalariano, tal e qual. O capitão Eucaristo Rosa sentou-se, depois de percorrer os olhos pela confeitaria. Em uma das mesas próximas, atrás da sua, vizinha, reconheceu o ocupante — sozinho com o copo de refresco avermelhado. O sargento também reconheceu, mas imitou o capitão, dando meias costas ao miúdo suj eitinho. Era o Joaquim Lopes — o Quincota — que tudo espiava e futricava, que de tudo sabia ali em Santana do Boqueirão. Até da vinda de um cavalariano da volante à Confeitaria do Cucute para reservar aquela mesa para o delegado militar e o ordenança. Como o Quincota se tinha na conta de pessoa de muito expediente, tratara então, mal chegado do Hotel da Prudenciana, de tomar, logologo, a mesinha mais próxima, antes que algum outro abelhudo se aproximasse do lugar. O Cucute deixou o balcão e veio, em pessoa, servir capitão e ordenança. Os dois queriam apenas água mineral e um cafezinho. E por ali ficaram, costas viradas para os fregueses da confeitaria, vistoriando o Largo das Mercês e o povo que transitava. O Quincota, tão de perto, não perdia um gesto, um olhar mais interessado deles — ambos meio de perfil, calados. O capitão tirara do bolsinho da túnica o palito — um ainda não usado — trazido do Hotel da Prudenciana, e trocara-o pelo outro que cuspiu no chão. O Quincota viu, então, admirado, que o capitão Eucaristo fazia o palito correr, sem auxílio das mãos, de um canto a outro da boca, por entre os lábios cerrados! O sargento Mernegildo, mais preto parecia que se apresentava, a cara esfuracadazinha de bexiga, a boca sem poder fechar-se direito, devido ao tanto de dentes que se mostravam — tudo de ouro, de fora a fora, geral. E a nuca, o cachação troncudo dele, empelotado de rugas que subiam até o boné, o suor a merej ar por entre elas. As costas do ordenança, apertadas na
farda muito j usta, principiavam a molhar-se também — em tudo o Quincota reparava. E meditava. Cidade boa de morar, Santana do Boqueirão! Gente, movimento, comércio forte, atacadista; e melhoramentos, um atrás do outro — j á-j á até o cinema do seu Vilaça! E o clima: fresco durante a noite, de ter de dormir com cobertor, decerto por causa da passagem, alta, dos ventos do Chapadão. De dia, quente, aquele calor j á assim de manhã cedo... Mas um calor que só trazia lucro, ver as boiadas de Santana, invernadas naquelas furnas da subida da serra. "Calor e sal à vontade: o boi bebe mais água, incha mais..." — seu Clodulfo é quem dizia. Um pensamento leva a outro: o calor de Santana do Boqueirão, j á assim de manhã cedo, o suor na nuca, nas costas do sargento Mernegildo... a vontade de tomar mais um refresco. E o Quincota chamou, então, o empregado, repinicando a colherinha no copo, pedindo mais uma dose de picolé, com bastante gelo. O sargento virou-se, mirou novamente o vizinho de mesa que quase sorriu, quase se arriscou a um oferecimento... Hora especial para um puxado de prosa, para pôr-se em préstimos, se aproximar... — por pouco que não se adianta o Quincota. Mas a tal hora boa passou, que o olhar do sargento foi de fugida duração, sem dar a vaza. Nisso, foi que o Quincota viu o patrão descer o Largo das Mercês, pelo passeio da Câmara: seu Clodulfo, com o coronel Calixtrato, com seu Americão! Seu Clodulfo de casimira, tal qual os outros dois, de chapéu! Desciam, paravam à porta do fórum, entravam!... Não, ninguém para ser mais aproveitador de ocasião do que ele — estufou-se o Quincota. Que ideia ter tomado conta da mesa, ali coladinha com o capitão Eucaristo mais o sargento Mernegildo! E o dia começava prometendo: seu Americão e o coronel Calixtrato — seu Clodulfo também! — a entrar no fórum, decerto para irem conversar com o j uiz de direito... Eta sábado de movimento que ia ser !... — nunca lhe parecera tão saboroso o picolé, achou o Quincota, aquele da segunda dose que tomava, geladinho de doer. Mais certeza teve o Joaquim Lopes do seu palpite, quando pegou a troca de olhar entre os dois da mesa ao lado, o franzir de sobrancelhas do capitão Eucaristo — o palitinho a trançar, por entre os lábios cerrados. O delegado vira também seu Americão, o coronel Calixtrato, seu Clodulfo... Vira os três entrando no fórum, e decerto não havia gostado — calculou a cabecinha, danada de imaginativa, do Quincota, por causa da cara trancada do capitão. O tempo corria. Na mesa da Confeitaria do Cucute, o capitão Eucaristo Rosa podia avistar o sol j á bem por cima das palmeiras da praça, j á mais alto que a torre da Matriz. Mais um dia a passar — meditava o capitão — e o destacamento parado, naquele chove-não- molha que se tornava insuportável. Ele, o delegado especial militar, a nada poder fazer ainda, tendo de esperar pelo prazo combinado! O nome da cidade, a importância das pessoas envolvidas, a repercussão... — só isso o que sabia repetir o j uiz de direito, a vir com seus sinapismos, a querer aguardar mais um pouco... E achar, o inocente do doutor, que apenas com a presença da Captura, o coronel Américo Barbosa ia acabar entregando os pontos, mandando que os j agunços fizessem fila e fossem se apresentando, um a um, cabecinha baixa, ao Destacamento de Capturas! Evitar violências, o escândalo... não dar asas à oposição, não comprometer o presidente... Depois, a posição dele, o j uiz de direito da comarca! A carreira dele, o que não iriam dizer no tribunal... O pior de tudo era que o homem não saía da capital do estado, e convencia o chefe de polícia, o secretário, convencia o próprio presidente do estado! Queria acabar com o j aguncismo de Santana do Boqueirão — isso vivia declarando que queria — mas procurando evitar a repetição do acontecido em Vau-d"Antas, em Abadia do Cerro, em tantas outras cidades entregues apenas à ação do destacamento. Santana do Boqueirão era Santana do Boqueirão, comarca j á de segunda entrância, nas vésperas de terceira... Afinal, concordara com a proposta do dr. Azevedão: tentar mais uma vez, com bons modos, o desbaratamento do bando de Santana — gente que, ainda por cima, fazia oposição ao governo, ligada à política de Acaj uí, ataulfistas! — experimentar, dar outra oportunidade a eles. Mas com a Captura presente, acampada na cidade, pronta para qualquer emergência — o secretário fora muito claro; e o Segundo Destacamento completo, a tropa volante toda sob o comando do capitão Eucaristo Rosa! E mais: com o capitão de delegado especial militar... Se os chefes de Santana do Boqueirão concordassem, entregassem pelo menos os bandidos principais, facilitassem as prisões, colaborassem com o capitão Eucaristo... aí, nessa hipótese, a ação do governo poderia ser mais branda. Caso contrário, porém, o dr. Damasceno Soares que tivesse paciência: deixasse o assunto por conta do delegado militar, e só por conta dele. Que a comarca não se metesse mais, não interferisse! Tudo claro, combinado, na reunião com o secretário do Interior e Justiça — com a presença do chefe de polícia, o coronel Corifeu, do dr. Damasceno e dele, o Comandante do Segundo destacamento. E todos haviam assumido o compromisso: o coronel Corifeu, de prestigiar o destacamento e fornecer o material requisitado; o j uiz de direito, esse, de não voltar com mais propostas — fechar os olhos também, depois de esgotado o prazo para a tal ação persuasória, como o doutor gostava de dizer. Um, dois dias no máximo, a contar da chegada da volante a Santana do Boqueirão — esse o último prazo proposto pelo secretário, e aceito por todos, finalmente! Um dia j á correra, começava o outro. O dr. Damasceno agia — j ustiça lhe fosse feita. Tinha dito o diabo ao delegado municipal, ao advogadozinho que se metera a representar o pai e o tio, o soberbo coronelão Calixtrato, agente executivo. E demitido o delegado, desmoralizado o tal de seu Valério Garcia, sogro do mocinho... E mandara desarquivar tudo o que era processo, passara a noite em claro examinando a papelada. Agora, ali no fórum, dava o último aperto com certeza... Mas e a ida do dr. Tancredo à capital? — o capitão passara a preocupar-se com a viagem do filho do coronel Américo Barbosa. E se o dr. Azevedão cedesse à lábia do advogado? Ele, capitão Eucaristo Rosa, não se envolvia com política, mas sabia muito bem o que era aquilo: sempre surgia um acordo na última hora, uma acomodação lá entre os graúdos do governo, a história de garantir entrada em chapa, comprometer votação... De repente, um telegrama do secretário, mandando sustar tudo de novo, recolher a tropa, dispersá-la por outros pontos do estado... Ah, se o j uiz de direito abrisse mão daquele resto de prazo!... O destacamento prontinho para dar começo à coisa, a relação de todos os bandidos j á no bolso, as pistas j á levantadas de quase todos eles, os mandões encurralados na cidade... Dois, três dias... — uma semana quando muito! Os grupos bem distribuídos na batida da j agunçada... A limpeza geral: cinco ou seis dos mais falados e perigosos bastavam; o restante que sumisse, atravessasse a fronteira, abandonasse o estado. Com os chefes desmoralizados, processados, os outros mortos ou trancados no xadrez da capital, ninguém ia pensar em voltar tão cedo... O capitão Eucaristo Rosa bebia, vagaroso, sua água mineral, tomava outra xícara de café, brincava com o palito por entre os lábios — pensava. Pegar, primeiro, o homem-chave, o principal, dar-lhe o vomitório... Em seguida, uma ou duas desmoralizações públicas, bem escolhida entre os mandões da cidade, uns exemplos de que ninguém
se esquecesse fácil... Foi quando o homem de chapéu de aba larga e terno de brim amarelo — o paletó aberto mostrava um cinturão de guaiaca muito largo, furadinho de ilhós — parou na esquina da confeitaria, postando- se bem à vista do capitão Eucaristo Rosa e do sargento Hermenegildo. O ordenança então se levantou, sem alarde, foi até a porta, demorou-se por lá uns momentos antes de voltar à mesa e comunicar ao capitão: — O senhor me dá licença... Vou até ali, no mitório. E se foi pelo salão de bilhar adentro. O tal homem de chapéu de aba larga e guaiaca de ilhós entrou pela outra porta — o Quincota nada de nada perdia de todo aquele movimento... — o homem entrou e meteu-se também pelo bilhar. Coisa rápida, porém, pois o sargento Mernegildo voltou logo, sentando-se calmamente à mesa, fazendo tempo antes de entregar o papelzinho esverdeado ao capitão Eucaristo. Um telegrama! — viu o Quincota, disfarçando-se por detrás do copo, muito misterioso também, bebendo sem beber o restozinho de capilé com gelo. O capitão Eucaristo leu o telegrama, guardou-o num dos bolsos da túnica e levantou-se da mesa: — Vamos embora! — ordenou arrastando a cadeira para trás, saindo para o Largo das Mercês, seguido do sargento. Mas o Joaquim Lopes ainda ficou sentado à mesa da Confeitaria do Cucute. Assistiu a tudo: o sargento Mernegildo atravessar o largo e entrar no fórum, o capitão Eucaristo ficar esperando por ele na esquina, o sargento se demorar um instante apenas, voltar logo em seguida. O Quincota viu também quando, pouco tempo depois, seu Americão, o coronel Calixtrato e seu Clodulfo saíam pela mesma porta e subiam a praça; e o capitão Eucaristo deixar, então, a esquina da confeitaria, cruzar bem pelo meio do calçamento, e entrar, por sua vez, no sobradão. Toques e sinais vários e diferentes marcavam as onze horas no centro de Santana do Boqueirão; o relógio da torre da matriz, a sineta da Escola Normal e, mais recentemente, a estridente e demorada campainha elétrica do cinema de seu Vilaça, na rua do Comércio — ainda não inaugurado mas j á se anunciando, sempre que podia, para muito em breve. O apito também a vapor — esse no Alto da Estação, ouvido entretanto na cidade inteira — da pontual serraria-carpintaria do seu Costinha da Força e Luz. Cerravam-se então as portas das loj as e demais estabelecimentos. O Largo das Mercês e as ruas que ali desembocavam enchiam-se de mais movimento. Correiçãozinha bulhenta das normalistas de aula terminada, os donos e empregados do comércio, funcionários da Câmara e do Correio, povinho desocupado e rueiro — tudo se escoando para o almoço em casa. Justamente nessa hora assomava à porta do fórum o capitão Eucaristo Rosa, descido da conferência com o j uiz de direito da comarca. Abençoado telegrama! — podia ser que não se adivinhasse o motivo da alegria, mas ela se mostrava nos olhos do capitão. Afinal, o dr. Damasceno Soares reconhecia ser inútil tratar aquela gente com luvas de pelica, tantas atenções e nove-horas! Mais um pobre coitado: e desta vez, o "acatado chefe político e abastado comerciante do distrito de Santa Fé, coronel Americano Lobo" — rezava o telegrama passado pelo delegado municipal de São Pedro da Ponte — "... assassinado covardemente por um fuão Sudário de Tal, criminoso costumaz e notoriamente homiziado nesta cidade". O Sudário! Meeiro de leite e capado, o tomador-de-conta da chácara do coronel Ludgero, outro dos graudões de Santana do Boqueirão! Ausente da cidade fazia mais ou menos uma semana... — os olheiros do Destacamento j á haviam notado o sumiço do Sudário... O j uiz de direito branqueara quando lera o telegrama, parecendo que ia ter outro acesso daqueles, cangulê de raiva e asma misturadas... Porém o doutor ouvira: que prestasse atenção, que não ficasse dando trela àqueles chefões de Santana... acabasse com tal demora, pois podiam até dizer que o próprio j uiz de direito andava impedindo a ação da polícia... O capitão Eucaristo Rosa chegava à esquina da Confeitaria do Cucute quando a campainha elétrica parou de tocar, também o apito do Alto da Estação. Onze, onze horas, hora boa de dar início... — pôs-se o capitão a pensar. Mas o calor do largo estava por demais, o sol a ricochetear nos paralelepípedos do calçamento: — Vamos tomar mais uma água mineral gelada — disse ao ordenança. Reservada ainda a mesa da porta, inclinadas novamente as cadeiras para que ninguém se sentasse ali. Veio, correndo, o Cucute para aprumá-las, limpar a pedra-mármore. Quando se afastava o dono da confeitaria, o capitão começou com a ordem, tirando o quepe, o lenço do bolso traseiro do culote — se abanando, enxugando o suor da testa: — "cê me mande dois homens buscar o... Lembrou-se, porém do suj eitinho que o vinha espionando desde a manhã — não, desde a véspera, quando se recolhera ao hotel com o ordenança! — do tipinho metido a esperto. O capitão voltou-se então, brusco, para mandar que o espoleta se escafedesse, desinfetasse o lugar. Mas Joaquim Lopes — o Quincota — entendeu mai o gesto do capitão Eucaristo, pensou que aquilo fosse até uma atenção do comandante da Captura — virar-se assim, olhar para ele... E não querendo perder mais essa oportunidade, abriu a boca, ligeiríssimo, antes que o capitão abrisse a própria. — Que calor, hem chefe?! — soltou o Quincota, de risinho xereta. — Hem?! — foi quase um latido o meio-berro do capitão. — O calor, capitão... — o Quincota não tinha mais como parar. A desgraça nunca vem mesmo sozinha. Justamente naquele desventurado instante, entrava pela porta da esquina o seu Filipe, carroceiro da confeitaria, de pedra de gelo às costas — compridona, vermelha de pó de serra, pesada de uns trinta quilos. O capitão tinha, às vezes, seus repentezinhos de humor : — Calor, hem! E, virando-se para o carroceiro que passava rente à mesa: — Pode me deixar este gelo aqui mesmo! — Como? — seu Filipe não entendia. — Desce a pedra! — outro berro que fez calar as bolas de bilhar lá de dentro, e esvaziarem-se, num pisco, todas as outras mesas da Confeitaria do Cucute. O Cucute fizera rápida meia-volta e vinha, afoito, aj udar seu Filipe que, arcado do peso, saco de linhagem a proteger-lhe mas também a tapar-lhe a cabeça, ainda não atinava com a confusão. O praça apertado que guardava a esquina j á cobria uma porta, o companheiro da calçada em frente cobria outra, dois outros tipos de chapéu, surgidos misteriosa e repentinamente, protegiam a retaguarda do capitão Eucaristo, ambos de mão direita metida por dentro do paletó, em decidida posição.
— Onde, comandante? — perguntou o sargento Hermenegildo, j á de Quincota pendurado pela gola. — Ali, no meio do largo, naquela árvore! — Com as calça" ou sem as calça"? — ainda se lembrou de perguntar o sargento. O capitão Eucaristo relance ou os olhos pelo Largo das Mercês, viu as moças da Escola Normal — assustado bandinho delas — a atravessar correndo. — Sem elas, sem nada! Um soldado bastou para arrastar o Quincota, enquanto seu Filipe — agora ciente do sucedido — se oferecia para levar até a árvore, ele mesmo, as duas arrobas de gelo. Hora e pouco mais tarde — o capitão Eucaristo havia dado ordens para que lhe levassem o suj eito logo depois do almoço — o Clodulfo do Nascimento descia pelo meio do Largo das Mercês, agora coalhado de gente. Vinha de casimira, sem chapéu, ladeado por dois volantes da Captura — preso, escoltado. Os praças fizeram questão de abrir caminho por entre as risadas dos moleques e do poviléu, passar com o guarda-livros bem próximo ao espetáculo, a fim de que o Clodulfo visse, se divertisse também: amarrado pela cintura ao pé da magnólia, pelado de calças e ceroulas, sentado na pedra de gelo, lá estava o Joaquim Lopes — o Quincota — perninhas encolhidas, sapiroquentas da friagem, tal e qual coxinhas de nhambu na muda.
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O TELÉSFORO, ESCREVENTE do Primeiro Ofício, não deixara ninguém sem aviso. Começara a executar as ordens do sargento Hermenegildo de manhãzinha muito cedo — pondo uns para fora de cama, indo em busca de outros ainda agarrados ao baralho — intimando um por um os banqueiros de bicho, j ogo bancado e carteado de Santana do Boqueirão, a que comp arecessem, meio-dia em ponto, à delegacia de polícia. Não eram ainda as dez horas, e o escrevente entregava a seu Elpídio, escrivão de polícia, a lista de todas as pessoas citadas. Bastante gente de Santana explorava o negócio, que a relação fornecida pelo Telésforo, enchia duas páginas inteirinhas de uma folha grande, de papel almaço. — Uai !... — estranhou o escrivão. — Até o dr. Joj oca, presidente do clube? — Está aqui: dr. João Crisóstomo de Albuquerque... — A bicharada toda... Desta vez, é de miúdo a graúdo, da rapa à escuma do tacho... O carteado, porém, vai poder continuar no clube e em recinto fechado, de freguesia seleta — o Telésforo explicou, muito cônscio de si. — Seu sargento-ordenança me comunicou que seu capitão disse que vai cobrar uma taxa, fazer um regulamento. Bem antes da hora marcada j á compareciam eles. Quando, meio-dia em ponto, surgiu o capitão acompanhado do sargento Hermenegildo, a delegacia estava repleta. O capitão Eucaristo Rosa passou pela cambada sem cumprimentar ninguém, e entrou na saleta, sentando-se à mesa. Correu-lhe os olhos pelo tampo, inspecionou o assoalho, as paredes, os vidros da j anela — tudo espanado e varrido, limpo a pano molhado. Viu também a bacia e o j arro de ferro esmaltado cheio de água, o sabonete. — Não deu pra caprichar mais, que o prazo foi meio curto... — seu Elpídio desculpou-se. E, mostrando o lavatório novo, requisitado pelo capitão: — Era assim que o senhor queria? — Isso mesmo. É... Melhorou bem, agora. O povo, "tá todo mundo aí? — Só conferindo na lista. O senhor quer fazer chamada? O capitão pegou da folha, examinou-a da primeira à última linha. Dispensou a providência: — Não, não precisa. O senhor j á me pôs, como devia, cada pessoa em uma linha. Antes d"eles irem saindo, o senhor manda que assinem adiante do nome de cada um... O senhor me entende? Um de- acordo, um ciente... — Sim senhor. Calculei mesmo, por isso foi que passei a limpo... — Bom, pode chamar esse povo... Não, espere: lá fora está mais folgado. Logo à entrada da cadeia havia uma espécie de saguão com o cômodo da guarda à esquerda, a saleta do delegado à direita, no centro a porta de grade do corredor das duas prisões. Foi ali que o capitão Eucaristo mandou que os presentes abrissem roda. — Intimei os senhores — ele principiou a falar — para lhes avisar que, a partir de hoj e, de agora, está terminantemente proibido o j ogo nesta cidade. Nem bicho, nem j ogo bancado de qualquer espécie. O carteado pode continuar nos clubes e em recinto fechado, mas só com alvará assinado por mim. Enquanto eu não der a licença, fica tudo suspenso também. E hoj e não tem mais expediente; somente na segunda-feira, depois do meio-dia, é que os interessados podem me procurar... Neste instante, chegava o Clodulfo do Nascimento escoltado pelas duas praças da Captura. Ninguém, dos que se encontravam na delegacia, sabia ainda da detenção do guarda-livros,
conhecedores apenas da história do Quincota, amarrado ao pé de magnólia do Largo das Mercês e sentado na pedra de gelo. Aquilo de ser preso o Clodulfo, e vir com os praças apertados pelo meio da rua feito ladrão de galinha — só faltava o papelão com o letreiro às costas! — tal fato definia, de vez, a seriedade da situação: o Clodulfo do Nascimento, a pessoa de mais confiança, mais do peito do coronel Americão Barbosa! Quando a escolta parou à porta da cadeia, a ordem do delegado militar foi então o tiro de misericórdia no moribundo restinho de esperanças: — No xadrez! j unto co"a ciganada! Não havia mais nada a dizer, além do j á dito aos j ogadores de Santana do Boqueirão. Num segundo, o capitão Eucaristo Rosa arrematava: — Segunda-feira, depois do almoço. O pessoal do carteado, bem entendido... Agora, os senhores vão me pôr o ciente lá com o escrivão-do-crime. Um dos intimados, porém, o que explorava a mesa de j ogo de escopão e cunca no bordel da Ambrosina — seu Paca, de Açaflor — parecia não ter entendido direito, ou perguntou só pelo vezo de perguntar : — Quer dizer, seu capitão, que, segunda-feira, nós pode"... — Tu é surdo?! — bradou o capitão, o sargento Hermenegildo j á erguendo, automático, o punho do relho, a guarda, instantânea, levando a mão aos refles do talabarte. — Avancem, que tenho mais do que cuidar ! E entrou na frente, para ir assistir, na saleta, às assinaturas, com certeza para decorar melhor cara por cara daquelas caras sem cor, apavoradas. Seu Elpídio aj udava a procurar as linhas, molhava a caneta, oferecia-a. Mas nem ele, tampouco ninguém mais, se aventurava a piar. Lá pelo meio da segunda página do papel almaço, um rapazote bem traj ado, cabeludozinho, untadozinho de alfinete de mola com um coração de ouro dependurado, prendendo as pontas do colarinho titubeou, chegada sua vez. Não havia senão consultar, em voz baixa, seu Elpídio sobre uma dificuldade surgida. O escrivão, não sabendo decidir, teve de socorrer-se do capitão Eucaristo que se encostara à j anela, braços cruzados e palito novamente à boca. Bastou a interrupção, o olhar interrogativo de seu Elpídio, para que o delegado militar se aproximasse da mesa: — O que é que há? — Com licença, seu capitão... Boa tarde... O senhor sabe: sou do Eldorado, da diretoria... Diretor Social... O dr. João Crisóstomo é o presidente. Mandou-lhe pedir muitas desculpas mas anda meio perrengue, de enxaqueca... Ele é o diretor do j ornal, também, e está assim de prova para a revisão; ficou trabalhando em casa, coitado... Me pediu para representar ele, falar em nome do clube... Seu Elpídio esperou, o sargento Hermenegildo, os outros esperaram por um outro esbregue do capitão. Mas o que houve foi apenas um vermelhão que aflorou, passageiro, às feições do oficial, um leve tremor de mãos. — Como? Ah, sim!... Enxaqueca... Está bem, não tem nada não: o senhor, da diretoria, pode assinar sim, pode assinar pelo doutor. É apenas um ciente... O pelintra agradeceu, risonhozinho, e assinou o próprio nome em seguida ao nome do dr. Joj oca. Esse, o breve incidente, sem mais consequências, até que todos acabassem de apor as assinaturas na folha de papel almaço, e se retirassem do prédio da cadeia. Esvaziadas as dependências da delegacia, sem mais pessoa alheia à rotina da repartição, o capitão Eucaristo Rosa chamou o cabo Salvador, o novo comandante da guarda: — Recebeu a ordem
que lhe mandei? Providenciou a corda, arrumou a carretilha? — Sim senhor. Tinha tudo aqui mesmo: seu Pedro Segundo desencavou a carretilha velha, a da solitária, do poço de cimento que tinha antes aqui... — "tava guardada com ele... — Olhou a laranj eira-da-terra? O galho "tá na altura suficiente? Aguenta? — "guenta, sim senhor. Já "tá tudo preparado, capitão comandante. — Me feche então o portãozinho da frente. Avisa ao sentinela para informar que "tamos de faxina, e que ninguém de fora pode entrar mais hoj e, até nova ordem. — Sim senhor. O capitão Eucaristo gritou ao carcereiro: — Solte todos os presos! A cachaceira também, a Corneta. Bote tudo na fila, leve eles pro pátio! E, dirigindo-se ao ordenança: — Forma a guarda! Reforça ela com os dois da escolta! Virando-se para o escrivão, o delegado militar ultimou as providências: — E o senhor me pegue papel e caneta. Ahm!... e uma coisa dura qualquer, um desses livros de partes, pro senhor poder escrever em cima. Me traz também estas duas cadeiras. Vamos proceder a uma inquirição lá fora. Os presos desfilavam pela porta de grade do corredor, o Clodulfo do Nascimento em penúltimo. Na culatra de todos a Corneta — molambenta, fétida. — Testemunha a gente tem de sobra... — o capitão Eucaristo comentou com o escrivão. Isso, dito porém de feições tão rígidas, que seu Elpídio ficou sem saber se o delegado especial militar falava sério ou se apenas caçoava. Eram altos os muros do pátio — muros de cadeia — ouriçados, na cumeeira, de cacos de vidro de garrafa cimentados muito rentes — afiados, rebrilhantes do sol a pino. A guarda, de armas embaladas, horizontais, ocupava os cantos e fechava todas as saídas. Nas duas cadeiras próximas à laranj eira-da-terra, o capitão Eucaristo Rosa e seu Elpídio escrivão — este de alentada costaneira ao colo, a servir de apoio para as folhas ainda em branco do depoimento. Os oito ciganos e a Corneta sentavam-se no chão, de mãos cruzadas por detrás. O único preso a permanecer de pé, ladeado pelo sargento-ordenança, era o Clodulfo — bem defronte ao capitão. A laranj eira-da-terra, de carretilha amarrada em alto e encorpado galho lateral, a corda j á no devido lugar. Bem por debaixo da carretilha, as duas pontas da corda descansavam no centro da tampa da barrica. O capitão Eucaristo Rosa, sem nenhuma pressa, tirou o palito do canto da boca, rolou-o em uma das mangas para enxugá-lo, guardou-o no bolsinho da túnica. Onde lhe haviam posto a cadeira chegava a sombra da árvore, e ele pôde tirar o boné. — Então, o senhor é o senhor Clodulfo do Nascimento, do Sobradinho... — o delegado militar começou. O guarda-livros de seu Americão Barbosa mantinha-se mudo, de cabeça baixa. —... filho de Eleutéria de Tal e pai ignorado... Recolhido por caridade em casa alheia... O Clodulfo ergueu um pouco a cabeça e quis esclarecer : — Meu pai... Ai ! Um bofetão acertou-lhe bem na tábua do pescoço, alcançando a orelha, fazendo o preso cambalear.
— Só me abra o bico quando chegar sua hora! — bufou o negro, a mão erguida, meio aberta em concha, j á de bote rearmado. O capitão Eucaristo prosseguia: — Foragido da cidade por desfalque e outras pequenas suj eirinhas... Confere? A dor e a zoada no ouvido não deixavam, entretanto, que o Clodulfo escutasse, entendesse a pergunta. — Responde, cabra à-toa! Seu capitão "tá lhe perguntado! — e, agora, foram uma, e duas, e três bofetadas cruzadas, estalantes, de palma e costa de mão, lado e outro da cara do Clodulfo! O preso não caía porque o sargento Hermenegildo, muito prático naquilo, segurava-lhe o braço com uma das mãos enquanto batia com a outra. — E, aqui em Santana do Boqueirão, hoj e em dia, metido na alta, político, um dos manda-chuvas do lugar, e bandido, e empreiteiro de morte... Se abrisse a boca, apanhava; se não abrisse, apanhava também... — o Clodulfo se via perdido sem apelo. — Onde está sua j agunçada? Pode começar a ditar os nomes para o escrivão. Os nomes, onde foi que se esconderam... O agudo da dor passava, mas alteava o zumbido dos ouvidos, se acelerava o latej o na nuca, crescia a ardida comichão nas orelhas — um fogo se alastrava por toda a cara. Vau-d"Antas, seu Hermógenes, a copada de mij o misturado com azeite e sal amargo e toco de cigarro; a barrica fedida ali atrás dele, debaixo do pé de laranj a, carretilha e corda... — tudo tumultuava na mente do Clodulfo do Nascimento. Não, não fazia ideia da serventia, ali naquela hora, da maldita barrica e dos outros apetrechos, mas j á a vira, muitas vezes, conduzida pelo carroceiro da Câmara, sabia o que levava dentro, a utilidade dela na cadeia. Apesar de fechada, o fedor escapava pelas gretas da tampa, tomava conta do pátio... O capitão Eucaristo havia ordenado ao sargento Hermenegildo, com um gesto, que não espancasse mais o preso, e alguns instantes de calculada espera decorriam. Atordoado, porém, o Clodulfo não via passar aqueles curtos momentos de contemplação. Viu-se mas foi, de golpe, dobrado para a frente, empurrado pela nuca — a testa, o queixo, o osso do nariz esmagados e esfregados contra o cascalhinho áspero do pátio. — Cabo Salvador ! — o sargento Hermenegildo passara então a dar as ordens, aj oelhado com todas suas arrobas sobre as costas do desgraçado estendido no chão. — Amarra as mãos, arrocha bem, aqui nas costas... Agora, os pés... Isso... Toma, toma conta, cuida dele! Outro soldado aproximou-se para destampar a barrica, fazer alçar voo um enxame azul-preto de mosca-varej eira. O capitão teve de levar, com rapidez, o lenço ao nariz, seu Elpídio também. Facilitado pela carretilha, levantar o corpo retaco do Clodulfo, pelos pés, tal o maneiro serviço que o cabo executou em segundos. E assim o manteve — a prumo, de cabeça para baixo, os cabelos a pouco mais de um palmo do centro exato da boca da barrica quase cheia. — Desce! — comandou o capitão Eucaristo, a voz enrouquecida pelo lenço que a tampava. Lento, como se se desvelasse em atenções para não causar dano ao corpo pendurado, o cabo Salvador bambeava a corda; meio palmo, um palmo, palmo e pouco... — Para! Para! — uivava o Clodulfo. — Paaara! Eu conto! Eu conto tudo, eu... Mas o vômito, as golfadas não deixavam mais o Clodulfo gritar. Falta de fôlego, ele se sacudia, se estorcia e debatia — o almoço a lhe esguichar pelo nariz, a se empoçar nas cavas dos olhos. O lanço a escorrer, empelotado e grudento, pelas orelhas, a testa, cabelos abaixo. O homem ia acabar morrendo, afogado no próprio aloj o — viu então o delegado especial militar :
— Levanta! — gritou. Enquanto o cabo Salvador manobrava a carretilha, içava a carga empestada de varej as, o carcereiro Pedro Segundo corria ao puxado dos fundos do pátio, mandado às pressas pelo sargento Hermenegildo, a fim de ir buscar uma lata d"água com que fazer voltar a si o Clodulfo do Nascimento — mole, parado de estrebuchar, frouxos os braços amarrados por detrás das costas — desfalecido certamente. Começava a escurecer — j á entrava pela porta e j anelas abertas da delegacia o ventozinho frio, costumeiro — e o capitão Eucaristo Rosa seguia ocupado com o Clodulfo do Nascimento. O delegado especial militar usava de métodos pessoais, muito particulares, e não gostava de pedir aj uda a estranhos. O escrivão de polícia — o ingênuo do seu Elpídio a acreditar que havia caído no goto do capitão! — o próprio escrivão fora mandado embora quando o Clodulfo, voltado a si a poder de água fria na cabeça, se declarara disposto a tudo confessar. Seu Elpídio havia sido dispensado, e com pouca explicação: — Este depoimento é especial, e eu mesmo me encarrego dele. O senhor pode se retirar, por hoj e. Mas me fique em casa, à minha disposição. Os presos reconduzidos ao xadrez, a barrica novamente tampada e carregada para o lugar do costume, no canto do pátio, carretilha e corda recolhidas pelo cabo da guarda. O carcereiro Pedro Segundo, esse recebera ordens de permanecer no puxado dos fundos da cadeia, até que o fossem chamar, mais tarde. Não havia sido um ato de rotina a designação do cabo Salvador para comandante da guarda. O cavalariano do Segundo Destacamento de Capturas possuía curso primário completo, letra ligeira e redonda, grande e bem legível, e muita prática em lavrar, a gosto do capitão comandante, os porventura carecidos termos de depoimento e confissão. Somente os quatro na saleta da delegacia: o capitão Eucaristo Rosa, o sargento-ordenança Hermenegildo, o cabo Salvador e o Clodulfo do Nascimento. Toda uma comprida história foi então contada, passada para o papel almaço, datada e assinada, rubricada, alto e baixo por alto e baixo de página, pelo funcionário da Câmara Municipal e homem de confiança do coronel Américo Barbosa. Como se organizara o bando de j agunços, a completa relação de todos eles, os crimes cometidos, as vítimas, os executores e os mandantes, a quantia recebida pelo empreito, o quanto pago, o quanto gasto — o saldo; e onde, naquele momento, se escondiam os criminosos, a maneira mais adequada e rápida de poder cercá-los e capturá-los de surpresa; os que estavam de viagem, quando e como e por onde chegariam... — tudo, tudo que lhe fora perguntado, a tudo o Clodulfo do Nascimento respondera. E nada deixara de anotar, em paciencioso cursivo, o competente cabo Salvador. Após o depoimento, a segunda parte: demorada, esmiuçada também, a conversa de cartas na mesa — conforme havia se exprimido o delegado militar — as providências delas decorrentes resumidas nas últimas instruções do capitão Eucaristo Rosa, j á de pé, dando por terminada a afanosa tarde passada na delegacia de polícia de Santana do Boqueirão: — Então, ficamos assim: seguem com o Clodulfo o cabo Apolinário e mais os praças Carolino e Zuza. Animal de sela e comida pra viagem, o cabo Apolinário providencia — ele j á deve de estar me esperando lá no hotel. E é para me despacharem isso correndo, saírem de Santana do Boqueirão o quanto antes. Vou espalhar na cidade que "ocê, seu Clodulfo, foi removido para o Sobradinho, a fim de prestar declarações. Isso fica por
minha conta. Já à porta, de quepe na cabeça, o capitão Eucaristo Rosa dirigiu ao preso taxativo e derradeiro aviso: — "ocê j á aprendeu, j á sabe com quem está lidando. Se me trastej ar, tu é" homem morto. Ninguém ainda, até hoj e, ninguém escapou de mim, quando eu cismo de liquidar com uma pessoa. O senhor duvida? Não, o Clodulfo não duvidava: — O senhor fique descansado, capitão. Lhe trago o homem vivo, como o senhor mandou. Só mesmo por um acaso, um atrapalho qualquer... Mas uma coisa eu lhe garanto, capitão: se não vier vivo, morto o José de Arimateia vem; ou ele ou eu... — Me traga o homem... Quem vai lucrar com isso é "ocê mesmo — o capitão disse, batendo com o chicotinho no bolso largo da túnica, estufado das folhas e mais folhas de papel almaço — do depoimento rubricado, datado e assinado pelo preso. — O capitão Eucaristo Rosa deixou a sala da delegacia acompanhado do sargento Hermenegildo, largando o Clodulfo do Nascimento por conta do cabo Salvador e do corpo da guarda, agora reforçado com mais quatro homens, todos eles cavalarianos da Captura.
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A MELHOR CASA do Beco da Boa Vida — não apenas do beco mas de todo o Alto — era a Pensão da Carvalhosa. Frente ampla, com j ardim, bela fachada de tij olinho vermelho, de platibanda. Avarandada, de muitas salas e quartos -dois banheiros, cozinha de espaçoso fogão com forno e serpentina de água quente. E quintal com coberta para lenha, galinheiro fechado, horta de couve, tanque de lavar e chiqueirinho. Ventiladores no forro, cortinas nas j anelas, luz de cor no j ardim e até pelas árvores do quintal — que era ali, por debaixo delas, que, não raro e quase sempre à noite, se churrasqueava. Nos fundos, dando para a Travessa da Liberdade, discreto portãozinho para uso em escuras e arteiras emergências. Casa farta: comida a qualquer hora, geladeira permanentemente abastecida de gelo em pedra, as bebidas amontoadas de alto a baixo. E animada, muito alegre. Vivia lá, de cama e mesa, o Treze. Ele quase que não saía, a folga dada à sanfona apenas o prazozinho de ir atender a um corte de unha aqui num quarto, calo olho-de-peixe ou unha encravada ali em outro, aj udar num penteado, em aperto de espartilho — que era também o Treze, além de acordeonista de primeira, manicuro e pedicuro — o único na cidade a fazer um pé com perfeição — e entendido em cabelos e vestidos, em elegâncias de mulher. E havia o Zuzu, com o violino, havia o Jesuíno Canhoto com o violão; e esses dois cantavam, além do mais. Comia-se bem, bebia-se do mais fino, dançava-se — divertia-se. E muito se j ogava, desde depois do almoço até bem tarde, lá pelas onze horas, meia-noite, quando então desciam todos para o cabaré — também da Carvalhosa — que funcionava na esquina em frente à Câmara Municipal, no Largo das Mercês. Estabelecimento sempre lotado, e de selecionada clientela, a Pensão da Carvalhosa. E administrado a primor, que a dona-da-casa, em pessoa, era quem gerenciava. Atenciosa com os frequentadores, zelosa das pensionistas, prestativa, boa conselheira — uma mãe, as moças sempre elogiavam. Mas severa em matéria de respeito e bons costumes, muito moralista, a Carvalhosa — enérgica que só ela, quando precisava. Noite fria, mas quase todo mundo fora de casa, a praça e as ruas cheias. De povo, curiosidade e expectativa: a volante do capitão Eucaristo em plena movimentação, o entra-e-sai pelo portão do fórum — grupos de dois, de três, às vezes até de mais cavalarianos, montados em novos animais surgidos não se adivinhava como, partindo para misteriosas diligências. Santana do Boqueirão podia, agora, avaliar o efetivo do Segundo Destacamento de Capturas acampado na cidade. Na cadeia, a guarda reforçada — j á se tinha disso ciência; nas entradas e saídas dos altos, pelo menos meia dúzia de praças a fazer parar cavaleiros, desde a madrugada, vistoriar, especular — sabia-se também; a Estação da Estrada de Ferro vigiada, o Correio, o Hotel da Prudenciana, o Largo das Mercês, o Alto da Boa Vida, os pontos de maior aglomeração de gente.
E sobravam soldados no portão do fórum, cavalos ainda de prontidão lá dentro! Setenta, oitenta homens! — chegavam a anunciar alguns exagerados santanhenses; cinquenta, no mínimo, j á calculavam os menos alarmistas. Muito soldado, porém, era o reconhecido em geral: exatamente o que o capitão Eucaristo Rosa desej ava fosse acreditado na cidade, mestre que era ele em baralhar de propósito as contas, useiro na tática de fazer sair e fazer entrar soldado no bivaque, mandar que as patrulhas rompessem por aqui, por ali, voltassem a aparecer... Montar, desmontar, montar de novo... — nequícias fáceis de atordoar os próprios entendidos em tal militar manej o, quanto mais o ordeiro e paisano povo de Santana do Boqueirão! Que sábado! Primeiro a cena do Quincota a morrer de frio e tanto espirro, amarrado ao pé de magnólia do Largo das Mercês, nu do umbigo para baixo e sentado no gelo até que a pedra se derretesse por completo. A detenção, quase que ao mesmo tempo, do seu Clodulfo Guarda-Livros; logo em seguida, o fechamento do j ogo do bicho e das bancas de roleta, campista e bacará, do víspora; a suspensão, até nova ordem, do carteado nos clubes e recintos reservados... tanta novidade assim em tão reduzido prazo! E isso, em cidade de j ogo franco, como sempre fora Santana do Boqueirão, desacostumada de policiamentos, sem nunca ter conhecido de perto um delegado especial militar, j amais ter visto além dos três ou quatro soldados de guarda na cadeia! O episódio da barrica, esse por ora o povo ignorava. Terminada a função no pátio da cadeia, antes de dispensar o carcereiro e seu Elpídio, o escrivão de polícia, rezara-lhes o capitão Eucaristo curto mas convincente sermão: "E não me piem. Se se souber, aí por fora, na cidade, antes da hora que eu permitir, do sucedido aqui dentro, o conversador fiado entra também no brinquedo. A barrica vai ficar ainda por aí uns dias... vai-se enchendo..." Mesma advertência fez o cabo Salvador aos soldados da antiga guarda local. De cadeia trancada para estranhos, os presos — os ciganos e a Corneta — esses é que nada mesmo poderiam delatar. Os comentários, porém, fervilhavam. Santana do Boqueirão assanhava-se, alvoroçada e boateira, esperando pelo que acreditava inevitável acontecer ainda naquela noite de sábado: preso, seu Clodulfo havia certamente confessado tudo, e o capitão Eucaristo soltara então a Captura na informada batida dos homens do coronel Americão Barbosa!... Este ou aquele, cedo ou tarde, acabaria por surgir : atado de pés e mãos, amarrado ao
arreio da montaria, ou emborcado e sangrando feito caça na garupa de um cavalariano do destacamento, picado de bala e j á sem vida. O Clube Eldorado, de sócios às sacadas — as mesinhas de j ogo, lá por dentro, vazias dos parceiros, até os de paciência e crapô; nos cabarés, as salas de j ogo bancado abandonadas, lençóis cobrindo o pano verde. Todo, todo o povo na rua, nenhum banco vago no j ardim da praça, a banda de música do coreto a tocar para a mais apinhada assistência que j amais lhe enxameara o derredor. E os pretos, o treze-de-maio — os bumbos, os tamborins, os apitos — o coro dos ternos de congada, no último e completo ensaio geral, a reboar pelos altos da cidade: o batuque a começar, a prosseguir noite adentro até a apresentação na manhã seguinte às autoridades e ao povo concentrado em frente à Câmara Municipal: o apreciado espetáculo; reis e rainhas, príncipes e princesas, duques, marqueses, generais e paj ens — coroas, espadas, seda, colares e guizos, cabeleiras de trança, penachos coloridos: o Moçambique, o Zumbo! No sobradão da rua Monsenhor Prata, o diretório quase que totalmente reunido — dos importantes faltavam apenas o Clodulfo e o dr. João Crisóstomo, este ocupado lá pelo j ornal — acuados eles todos, sem ninguém a se animar a pôr os pés na rua, uns j á dando tudo por perdido, outros agarrados ainda à esperança que restava: o telegrama prometido pelo Tancredinho, logo se avistasse com o dr. Azevedão, na capital do estado. Mas sabia mesmo ser chefe, o coronel Américo Barbosa: desdormido, a barba crescida, impaciente — muito desinquieto, se via — entretanto o
menos desorientado, o de cabeça mais assentada no lugar entre todos aqueles aterrorizados manda- chuvas de Santana do Boqueirão. O fórum fechado — portas e j anelas. O j uiz de direito almoçara e j antara lá pelo quarto dele, pois seu Juca Meirinho fora visto a entrar, por duas vezes, levando pratos envolvidos em guardanapos, copos e talheres, garrafa de água mineral. Às oito em ponto, no auge do movimento no Largo das Mercês, apontou o capitão Eucaristo Rosa, de ordenança à esquerda — ambos encapados que j á fazia muito frio. Lotada, a Confeitaria do Cucute; mas a mesa de perto da porta da esquina seguia reservada — as cadeiras reclinadas em mesurosa marca de lugar. Sentaram-se os dois, frente para a praça, costas como sempre voltadas, desdenhosas de perigo, para a frequentada porta do bilhar e as outras mesinhas do salão. O sargento Hermenegildo, de espadão à mostra, apresilhado à cinta, com a máuser e duas gordas cartucheiras — tudo pelo lado de fora do capotão. Por dentro da capa usada pelo capitão Eucaristo — comprida e folgada, sem cintura, presa apenas na gola por bonita correntezinha de metal — algo volumoso, e perigoso também, se adivinhava. Carabina — conheceram pela taluda ponta do cano, pela massa de mira, uns entendidos vizinhos de mesa do delegado militar, uma hora em que o bico da arma apareceu por um descuido do capote rodado, pendurada assim de cabeça para baixo, de certo que em um daqueles muitos ganchinhos do cinturão. Justamente a essa mesma hora, às oito, acabava o dr. João Crisóstomo de Albuquerque — o dr. Joj oca — de rever a prova do artigo de fundo do j ornal. Achara bem "Moral e Ordem" para o título que encabeçava as três colunas inteiras da exata metade da primeira página. Desde o presidente do estado, o dr. Figueiredo de Mendonça, até o delegado municipal de polícia, seu Valério Garcia, todas as autoridades estaduais e do município eram citadas — com especial relevo o doutor j uiz de direito da comarca e o comandante do Segundo Destacamento Especial de Capturas do estado — empenhadas, sem exceção, no esforço comum pela moralização dos costumes e manutenção da ordem pública. Se o presidente se dispunha à empreitada de tal magnitude, não seriam os correligionários, amigos e admiradores de Santana do Boqueirão, que se iriam omitir ! Santana do Boqueirão, mais governista do que nunca, ali se formava, coesa, para receber, de braços abertos e j ustificada alegria, os garbosos cavalarianos do Segundo Destacamento, e hospedar, com orgulho e reconhecimento, a simpática e enérgica figura do capitão Eucaristo Rosa, em tão inspirada hora escolhido para delegado especial militar da extensa e adiantada circunscrição do Bugre. Onde, porém, mais carregava nas tintas o dr. Joj oca, era nos substanciosos parágrafos dedicados à moral e ao decoro públicos. Urgia regulamentar-se o meretrício — e que se felicitasse, desde j á, o meritíssimo j uiz de direito da comarca, dr. Damasceno Soares, pela iniciativa de abrir, em cartório, o Livro Próprio de Registro de Lupanares e Casas de Tolerância — disciplinar a prostituição, fechar ou, pelo menos, policiar eficazmente certos locais de diversão que a estimulavam! Se recursos minguavam ao município para o combate ao grave problema, agora, no entanto, vinha o estado pôr cobro a isso. Ali estavam as autoridades locais — e a sociedade e as associações religiosas e a elite intelectual de Santana do Boqueirão — a não regatear ao governo os mais calorosos aplausos, e a
oferecer-lhe dedicada e irrestrita solidariedade, colaboração entusiástica! E por aí — nunca o dr. Joj oca fora tão eloquente e vigoroso em seu ardor moral e cívico — continuava o articulista. Quanto à j ogatina, nada — que era passar recibo à oposição. Tampouco ao j aguncismo: bastava a leve referência aos "contumazes desordeiros", menção que em nada prej udicaria o bom nome da cidade. Não ia ser o próprio semanário situacionista de Santana do Boqueirão, de difundida circulação por toda a zona, que iria aj udar — ora-ora! — tão lesiva propaganda, reconhecer de público, oficializar as propaladas infâmias do dr. Filó! Nem uma linha sobre a história do Quincota sentado no gelo, tampouco uma palavra a respeito da prisão do Clodulfo do Nascimento. Não era hora de gracinhas e provocações — o dr. João Crisóstomo sabia pesar a delicadeza do momento. O dr. Joj oca leu, releu a prova, gritou pelo Jerominho, de j ornal j á paginado na máquina, esperando apenas pela ordem de rodar : — Que tal? Durozinho, hem? O Jerominho foi sincero: — Como este, doutor, o senhor ainda não fez... E, me desculpe, mas vai ser custoso escrever outro igual. Está simplesmente formidável ! Um tiro! Tinha lá, as suas letras, o Jerominho, e bastante tarimba de imprensa, por isso que prevalecia tanto sua opinião. — A velha história, meu caro... — disse o dr. João Crisóstomo levantando-se. — O que muita vez a espada não vence, vence o intelecto, vence a pena... E, trancando a gaveta, arrumando mal-mal o confuso tampo da escrivaninha, abotoando o sobretudo — olho no relógio da parede: — Vai me chamar, ali na esquina, o Augusto Cocheiro. Mas ô seu gambá duma figa, vej a se não me comece a beber pelo caminho... Toca primeiro o j ornal, me termine a expedição. Ah! Aumente um pouco a tiragem da venda avulsa: isto, amanhã, no largo, vai- se vender, vai-se vender... Depois, então, me feche a casa e se encharque como quiser. Nosso dia, seu Jerônimo do Espírito Santo, parece que j á o ganhamos! O dr. João Crisóstomo apeou do carro de praça de seu Augusto um pouco antes da esquina da Travessa da Liberdade. Marcou a hora para que o cocheiro viesse buscá-lo, no mesmo local: — Bem, hoj e é sábado... Meia-noite, seu Augusto, meia-noite e pouco... Ah! E me passe em casa, avise à Abadia que não se preocupe: estou pelo j ornal, pelo clube, estou pela casa do coronel Americão... estou zanzando por aí... Você me invente lá a desculpa. Apertou as voltas do cachenê, levantou a gola do sobretudo, escondeu as mãos nos bolsos — o friozinho ali no Alto da Boa Vida não era brincadeira não! — meteu-se pela escuridão e mau cheiro da travessa. Caminhando pelo trilho costumado, aberto por entre o crescido mamonal, chegou ao portãozinho. Enfiou-lhe a mão por entre a grade de ripas, achou logo a tramela e entrou pelo quintal da Carvalhosa. A escada dos fundos dava para o meio corredor que ia à sala de j antar. Mas o dr. João Crisóstomo parou à porta da cozinha para catar os carrapichos da calça. — Qu"é de Carvalhosa? Tem muita gente j á aí? — "tá entupido, doutor... O Treze foi à sala, voltou com a dona da casa: — Criatura do céu, que horas! Pensei até que o senhor não viesse mais! A Iracema nem saiu do quarto, lhe esperando j á há que tempo... Ela "tá hoj e num estado,
coitadinha!... — E esse povão aí na sala? — Não, pode passar sem susto. Gente de fora, só um boiadeiro de Despenhado, rapaz muito agradável... "tá de prosa com o seu Astolfo da Charqueada, seu Raul e o Pompeu do Bazar. Coraçãozinho de ouro, a Iracema... tão sensitiva!... O senhor carecia de ver o pranto... pode perguntar pro Treze. Chorou tanto depois que o senhor saiu, hoj e de tarde!... — Mas que bobagem... Por que, santo Deus? — Ora... ciúme.... Aquelas brincadeiras do senhor com a Joaninha do seu Gaudério... Amorzinho-próprio... mando uma clicozinha para as pazes? — Manda, manda sim. O dr. Joj oca não tinha tanta pressa porém. Catava mais carrapicho e picão na barra do sobretudo: — Se soube de mais alguma novidade? Prenderam mais alguém? — Acho que não; não ouvi nada... E o j ogo, hem dr. Joj oca?! Vou ter que fechar o cabaré: aquilo sem a roleta não aguenta. Mas, não digo só por mim: tanta gente desempregada, tanto pai de família... Imagine o senhor : até o carteado! — Mas isso é por oras, isso passa, Carvalhosa. O Tancredinho j á-j á rompe por aí, de uma hora para outra chega um telegrama... Estamos agindo, não estamos dormindo não. Mas, bico caladinho, hem! — É, Deus queira que esta coisa não ature muito... Judiação fizeram mas foi com o seu Joaquim, o pobre do seu Quincota! Pessoa tão serviçal, tão sem maldade... Diz" que não está nada bem: teve de ir pra cama... pneumonia!... E seu Clodulfo?! Mas esse — lhe conto muito reservadamente, diz" que é por causa de rolo antigo, umas trapalhadas velhas lá pela terra dele... Seu Pompeu do Bazar estava j ustinho contando lá na mesa, quando o senhor chegou, que j á levaram ele escoltado pro Sobradinho. Mas a história dos podres do seu Clodulfo eu sube por outra fonte... Lhe digo depois... — É sempre assim, Carvalhosa: uns têm que pagar. Pegam sempre alguém pra cristo... Mas isso passa. " cês vão ver o artigo de amanhã... Já à porta da sala de j antar, o dr. Joj oca se lembrou, num arrepio de frio: — "tá mas é aumentando essa friagem... Olha, me vej a antes um conhaque. Dose, não: manda logo uma garrafa, aquele francês de ontem — o novo, de lacre vermelho. A Iracema gostou tanto... Antes de entrar na sala, o doutor ainda procurou animar a Carvalhosa: — Não fique desanimada não. Depois, boba, se "ocê perde por um lado, ganha pro outro: o movimento, aqui da casa, vai dobrar. Qu"e que o pessoal de Santana vai ficar fazendo de noite? E "ocê manda buscar mais mulher, aumenta as mesas do carteado, melhora a orquestra... A sala de j antar de mesinhas espalhadas pelos cantos, quente de fumaça de cigarro e de tanta luz acesa. O dr. João Crisóstomo cumprimentou com a cabeça os conhecidos, parou j unto ao seu Gaudério da Alfaiataria Século XX, seu Gaudério da Joaninha. Ficou ouvindo, em pé mesmo, o resto de modinha que solfej ava, olhos fechados, violão ao peito, o Jesuíno Canhoto. Quando o Jesuíno parou de cantar, o dr. Joj oca cochichou ao ouvido do Gaudério: — Leia o artigo de amanhã. O editorial. Está uma bomba! O perigo passou, seu moço... Salvei a situação em cima da hora... Deu um beliscãozinho no queixo da Joaninha, tomou-lhe o copo das mãos e procurou, contra a luz — muito exagerado, para que todos vissem — a marca vermelha deixada pela bocazinha pintada da rapariga; bebeu ali, lambendo os beiços depois, estralando-os, gaiato. E ainda fingiu que queria roubar um beij o de verdade à Joaninha, mexendo com os dois, brincando com os ciúmes do Gaudério. Enfiou-se pelo corredor, o outro que dava para os quartos de frente. Mas presença que perdurava,
o dr. Joj oca: por muito tempo ainda, ficariam pela sala de j antar a simpatia e o rasto perfumado dele. — Alma boa, uma criança grande... — a Carvalhosa comentou de outra mesa, a de seu Horizontino do Curtume. — E que saúde! — se admirava o seu Horizontino, frequentador dos mais assíduos da pensão, sabedor de quantas vezes por dia entrava o dr. João Crisóstomo com a Iracema para o quarto, o tempo que ficavam os dois lá dentro. O dr. Joj oca demorou-se um pouco antes de abrir a porta do quarto, penteando com as mãos a cabeleira, concertando a laçada do cachenê de seda. Olhou as unhas, para ver se não estavam manchadas de tinta da tipografia, examinou também o solado dos sapatos por causa das suj as liberdades que não paravam de fazer em pleno trilho escuro da travessa. Deixou, por último, aparecer mais um pedaço de lenço branco no bolsinho do sobretudo, de onde o fino cheiro adocicado recendia. Empurrou a porta do quarto e entrou, então. A luzinha verde da cabeceira realçava mais ainda o lindo dourado dos cabelos da moça deitadinha de bruços, o rosto enfiado nos travesseiros, encolhida por debaixo do acolchoado de cetim. Emburradazinha, com certeza — o doutor se enterneceu. Fechou a chave, bem de manso, a porta do quarto. E, pé ante pé — podia ser também que ela estivesse dormindo — o dr. Joj oca aproximou-se da cama, feliz da vida. Aj oelhou-se e buscou, por entre os travesseiros, e os cabelos, e o cetim da colcha, o pedacinho de orelha onde pousar, cosquento do bigode, um beij o — acordar sem assustá-la, prometer não brincar mais com as outras meninas da pensão, consolar a bobazinha, a ciumentazinha da Iracema. O rapaz agradável, boiadeiro no Despenhado — o que conversava com seu Astolfo da Charqueada, seu Raul e seu Pompeu do Bazar — variava o assunto com os mais da mesa: —... diz" que é frigorífico para muito boi, capital estrangeiro, inglês. E vai ser um estrago aqui para a nossa zona: o gado deixa de vir pelo Chapadão, arrodeia por baixo, vai invernar lá pelo Carmo, pela Estrela... Seu Astolfo concordava: — E a gente, aqui, a ficar sem boi magro mais nenhum. O movimento de Santana do Boqueirão vai decair muito, isto vai rodar... Estou de acordo com o senhor, seu Machado, inteiramente de acordo... Seu Pompeu, sempre que podia, expunha seus pontos de vista: — É o que eu sempre digo: se os boiadeiros, os invernistas, os comerciantes todos se reunissem, levantava-se o capital por aqui mesmo, se organizava esse bendito Frigorífico de Santana do Boqueirão. É caminhar para a indústria, sair da rotina, abrir outros campos! Já cansei de falar, de pregar, de pedir a esse tranca do Joj oca para começar com a campanha, escrever uma série de artigos... Mas "ocês viram... : o bilontra, é de manhã, é de tarde, é de noite... só pensa nisso, só quer saber de mulher ! — Mulher e política... — acrescentou o seu Raul, o que quase não falava. — Mas, de mim, "ocê dobre a língua, seu Pompeu; de mim ninguém pode ter queixa — disse o seu Astolfo. — olhem aí a Charqueada... Brincando, brincando, o dinheirão que eu empatei ! Se emprestasse a j uro, só aí... O pândego do Astolfo! — teve vontade, o seu Pompeu, de baixar a crista do cínico. Dinheiro do sogro, ideia também do velho Tofico, que era, ali na Charqueada, quem dava o duro, trabalhava... o pilantra do Astolfo sabendo apenas esbanj ar com j ogo e rapariga!... E a vir com exibição perto do forasteiro, arrotar o "dinheirão empatado"! Genro... — ora-ora, que vantagem! Abeirava-se porém a Carvalhosa com duas novatas: — "cês me dão licença. Quero apresentar a Mirtes e a Dalva. Vieram hoj e, de trem... O Raul levantou-se, seu Pompeu, os outros dois ofereceram lugar. Mas j á acudia o Divino, o
bailarino de tango, o que comia e dormia de graça na pensão, o amigo da Carvalhosa, xodó do dia. Ele trouxe as cadeiras, distribuiu-as pela mesa, e a roda ampliou-se então, compondo-se, alegrando- se mais. — A senhorita toma... ? — seu Pompeu do Bazar perguntou à de gola e mangas de pele, de narizinho vermelho, resfriado, os lábios besuntadozinhos de creme de cacau. A menina olhou para a companheira, fez um arzinho de luxo antes de decidir : — Um madeira... A senhora tem limão, dona Carvalhosa? — Um pouco de açúcar também, queimado — seu Raul receitou. Havia limão sim, podia-se mandar queimar o açúcar. A outra — morenona, cheia de corpo, de cabelos muito pretos entornados pela blusa rosa de tricô angorá — a Mirtes aceitou também um madeira. Mas sem limão, puro. Por causa da azia — ela explicou à Carvalhosa. Seu Machado fez ainda um pouco de hora e levantou-se: — A prosa "tá muito boa, mas as senhoritas me dão licença, que tenho de ir andando... Meu capataz deve de estar j á cansado de me esperar lá no hotel. Vamos sair bem de madrugadinha... Seu Astolfo protestou: — Mas que é isso! Um momentinho mais, seu Machado! Justo agora que vai chegando o Zuzu com o violino! Na hora de começar a música, animar... Entrava de fato o Zuzu — magro e preto, um espeto — cachecol branco no pescoço, caixa do instrumento ao ombro. — Infelizmente não posso... Estou mas j á é atrasado demais da conta: numa altura dessas era para estar chegando perto do pantanal... — disse seu Machado. Chamou a Carvalhosa, j á abancada à outra mesa: — A senhora me faz favor... a conta das senhoritas tam"ém... — o boiadeiro do Despenhado levou a mão à algibeira de dentro do paletó. — Ora, deixa disso, tinha graça! — foi a vez de intervir seu Pompeu. — Não senhor, absolutamente! — Mas assim não fica bem... — insistia seu Machado começando a abrir a carteira. — O senhor nos deu mas foi muita satisfação, não vai querer agravar a gente, assim na hora de sair... — seu Pompeu ordenava, com a cabeça, que a Carvalhosa não se aproximasse, não viesse apresentar a conta. — Na sua volta, seu Machado, o senhor j á sabe: nosso ponto, toda noite, é por aqui. Mas passe pelo bazar, vai conhecer nossa loj a, tomar um café lá com a gente... Seu Machado despediu-se, apertando as mãos das duas moças e daqueles novos e tão amáveis amigos de Santana do Boqueirão. — Pois muito obrigado... Muito prazer... Fico então devendo a despesa... Mas eu volto um dia, vamos ter outra prosa boa, mais demorada... — Isso! — fez seu Pompeu. — O senhor vem com a boiada, vende ela aqui para o nosso amigo Raul, que é invernista, e forte, e chama a gente depois, para aj udar a gastar a dinheirama... A Carvalhosa atravessou com seu Machado a sala de j antar, levou-o, atenciosamente como sempre, até a porta que dava para o j ardim da frente: — Foi uma pena... A Mirtes simpatizou tanto com o senhor... Foi ela que me pediu para lhe apresentar... Seu Raul j á se apossara das mãos da Mirtes — a morena enxutona de corpo e blusa rosa de angorá. Seu Astolfo explicava para a Dalva que o resfriado era coisinha à toa, passageira: o frio, a brisazinha de toda noite, ali em Santana do Boqueirão. — Mas j á-j á "ocê habitua, meu bem. Seu Pompeu do Bazar, com aquelas cortesias de não deixar a visita pagar a despesa, distraíra-se e acabara ficando a pé de mulher. Mas a Carvalhosa tomava expediente: — Espera só mais um tiquinho, seu Pompeu. — E baixo, soprado ao ouvido dele: — O senhor ainda não conhece a
companheira, a outra que veio também, a Abigail, a Bebê. Lorinha, de olhos grandes, nem muito magra nem muito gorda, do j eito que o senhor apreceia... A Bebê "tá com o seu Didico, mas não vai demorar mais muito não... — Chiii... o Didico! Então eu vou mas é acabar ficando no sereno! — o escandaloso do seu Pompeu reclamou, alto, sem se importar que a Dalva e a Mirtes escutassem. — Até que o Didico esquente primeiro os pés! Leva, leva um tij olo quente lá para ele, ô Carvalhosa! E pode falar que fui eu que mandei... A Carvalhosa riu — seu Pompeu do Bazar era mesmo das arábias, um pagode! — as meninas riram, todos da mesa e de por perto acharam muita graça. Mas, antes que a Carvalhosa fosse atender aos outros fregueses da pensão, seu Pompeu ainda quis saber, garantir lugar com a Abigail, a Bebê, a tal lourinha de corpo nem magro nem gordo chegada de trem aquele dia: — Mocinha ainda? Quantos anos? — O senhor espera, vej a com os próprios olhos... Depois, então, o senhor me conta... — e piscou, velhaca, a Carvalhosa. E lá se foi ela, atenta a tudo o que sucedia, limpar a mesa que vagara, mandar recolher copos, esvaziar cinzeiros, virar pelo avesso a toalha; os dois, a Joaninha mais seu Gaudério, j á se tinham sumido pelo corredor da frente, rumo ao quarto maior, de cortinado, o mais perto do banheiro — privilégio da Joaninha, por ser ela, na ocasião, a mais comportada e também a mais antiga da casa.
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NÃO HAVIAM BATIDO as nove — hora em que a banda de música parava de tocar no coreto do j ardim — e o Largo das Mercês, esquinas e ruas que ali desembocavam, tudo regurgitava, apesar da noite fria. O capitão Eucaristo Rosa e o sargento Hermenegildo permaneciam sentados à mesa da Confeitaria do Cucute. Nas mesas vizinhas aos dois — o Cucute havia dado j eito de arredá-las, distanciá-las o mais que pôde da mesa reservada — por ali os ocupantes paravam pouco, revezando- se ligeiros, recordados do Quincota. A confeitaria seguia porém de casa cheia — balcão, o amplo cômodo da frente, salão de bilhar com o outro tanto de mesinhas que ainda havia lá por dentro. Até o mictório: entra e sai de olheiro de formiga, continuada e afoita correição. Impassível, destemido, mesmo cercado assim de gente estranha, e em cidade de tão mal-afamado nome, o delegado especial militar aproveitava a mesa e a luz da confeitaria para refazer e conferir suas contas. O ordenança, rente ao capitão, ninguém por perto logrando colher uma palavra do que segredavam os dois, muito menos entender as letras e números que o capitão Eucaristo anotava na caderneta de papel quadriculado. Contava nos dedos o sargento, falava o capitão: — Tiramos da guarda da cadeia o Salvador e os outros três, os nossos — ficaram só os do destacamento antigo da cidade; com a gente, aqui na confeitaria, três. Na estação, o Cordeiro; na zona, o Machadinho à paisana e os três montados; na escolta do Clodulfo, viaj ando para o Chapadão, o Apolinário mais o Carolino e o Zuza; no Porto do Sucuri, esperando a passagem do Sudário, estão por lá o Lindo e o irmão... Quantos "ocê j á tem, aí? — Treze — o sargento Hermenegildo respondeu com exatidão. — Bem. E o resto: na Lajinha, atrás do Hirondino, três; na Pedreira, em cima do Chico Doido, tem o Isé Inácio acompanhado de dois; atrás do Lico da Isoldina, "tão o Zeca Branco e mais dois... Agora, os que ficaram na cidade, além dos que j á marcamos na lista: no fórum, onze, um grupo completo... E só... É, acho que inteirou. Deu quanto, aí na sua conta? — Trinta e três. Interou, sim senhor — confirmou o sargento Hermenegildo. — Mas o senhor pode aumentar ainda de mais cinco: aceitei os que vieram se oferecer, aqueles que foram lá no hotel, na hora do j antar... pessoal conhecido do Salvador e do Apolinário... — Estão armados? Aonde foi que "ocê destacou eles? — "tão tudo aqui, coladinhos comigo. Dois no bilhar, dois nas portas, um ali na esquina... aquele de fita de fumo no chapéu... : e esse um até que coisa muito especial, capitão. Conheço ele do meu tempo de Vau-d"Antas. Trocou de nome: em antes era Sarafim; se chama Alaor, hoj e em dia. — Sei. O que "ocê pôs vigiando o jornal... — Foi, sim senhor. Ficou, até ainda pouco tempo, lá na calçada da tipografia, mas j á voltou. Me fez a senha do braço cruzado... j á lhe contei... — E as armas desses paisanos? — Já tinham as deles: revólver e faca, punhal. Conferi elas: pra pouco tempo, servem sim senhor. Nove horas, o último dobrado da banda de música no coreto, o magotezinho de gente — coisa reduzida — principiando a deixar o Largo das Mercês, escoando-se pelas ruas vizinhas. Quando a banda parou, foi que se pôde ouvir direito o batuque, a cantoria. Festão ia ser aquele
treze-de-maio em Santana do Boqueirão! — fazia crer o derradeiro e animado ensaio dos pretos nos altos todos da cidade. Nisso, entrou na Confeitaria do Cucute o seu Machado, o boiadeiro do Despenhado que chegava naquele instante da Pensão da Carvalhosa. — O Machadinho... — sussurrou, quase que apenas para si mesmo, o capitão Eucaristo Rosa. O suj eito entrou, pediu licença por ter de passar tão rente à mesa, caminhou direito para o bilhar. Uns minutos, e a costumeira desculpa do sargento Hermenegildo: — Com sua ordem, capitão. Vou até ali no mitório. Pouco demorou, porém, a voltar o ordenança, e a sentar-se novamente. Reapareceu também o Machadinho, indo postar-se a uma vaga do balcão, pedir que lhe servissem uma xícara grande de café. O arrastado de cadeiras, o Cucute a correr para ir acompanhar o capitão até a porta, a expectativa a reacender o olhar de todos os fregueses da confeitaria. O povo abriu caminho para o capitão e o sargento, que atravessaram pelo meio da praça e se foram reunir ao grupo aquartelado no fórum. A ordem, o capitão Eucaristo esperou para dar, lá dentro do pátio, ao cabo Salvador — o de escola primária completa, de escrita cursiva, redonda — retirado do corpo da guarda da cadeia, e reconduzido ao comando do seu Grupo de Combate: — Vai me buscar o homem. Ele "tá de novo no bordel, de rapariga no quarto. — Quantas praças, Comandante? — Leva só umas quatro. Lá no alto, patrulhando o beco, tem mais três, montados. "cês ficam sendo em oito, dá de sobra. — E o Machadinho? — o cabo Salvador se lembrou. — Já desceu. Anda, me despacha isto logo! — A gente vem pelo centro? — era importante a pergunta, e o cabo Salvador teve de arriscar-se, não obstante a pressa do capitão. — É sim. Vou ficar esperando aqui na porta do fórum. Raspe logo! O cabo Salvador chamou, pelo nome, os quatro que escolhera para companhia, e passou o comando dos restantes ao soldadinho de feia cicatriz no queixo e orelha acabanada, o que se chamava Batista. Fez continência, montou, levou outra vez a mão à pala do quepe, e deixou o pátio. Lá fora, obrigando o povo a correr para dar atropelada passagem, j á de meio-galope repicando castanhola pelo paralelepípedo, foi que a patrulha dos cinco volantes da Captura subiu o Largo das Mercês — passando pela porta da Matriz e ganhando logo a comprida rua da Palha, a que ia morrer na esquina de mais movimento do alto, ali no começo do Beco da Boa Vida. Pelo meio da praça, tocando novamente, descia a banda de música, terminada a retreta no coreto do j ardim. Ia quebrar pela esquina da confeitaria, seguir pela rua do Comércio, até que se apagasse e dispersasse, lá pelos lados do Grupo Novo, onde morava o maestro e se guardavam os instrumentos. Mas a ideia chegou à cabeça do capitão Eucaristo mais rápida que a banda de música à esquina da Confeitaria do Cucute. Ele ordenou então ao sargento Hermenegildo: — Mande a banda fazer alto.
Me traga aqui o maestro. Quando parou a música e o homenzinho se apresentou — encabuladozinho, assustado, de bombardino ainda em posição, enfiado pelo braço — o capitão perguntou: — O senhor não se incomoda de continuar tocando mais um pouco aqui na calçada do fórum? O bombardino, aliviado — se via pela cor que lhe voltava à cara — acedeu aos desejos do delegado militar : — Muito às ordens, meu capitão! O tempo que o senhor carecer ! Aí então foi que mais gente se reuniu na esquina do fórum, ao redor da banda formada no passeio do sobrado. E mais alto, e mais vibrante, era o bonito dobrado escolhido para homenagear o Segundo Destacamento: de muito tambor e muito prato, os pistons virados em cornetas, o bumbo a disparar tirázios de canhão — a peça marcial, de lavra própria, que o maestro tivera a delicada lembrança de ir, primeiramente, anunciar e oferecer ao capitão Eucaristo Rosa. As pessoas que se encontravam no salão de j antar da Pensão da Carvalhosa — e eram muitas naquele sábado de casa cheia, de quartos todos ocupados — tais testemunhas narravam como havia sido o cerco, a invasão, e a prisão do homem. Jardim, varandas, o quintal — de relance tudo aquilo foi tomado. Quando se deu fé, j á era o cabo Salvador a romper, pistola engatilhada, sozinho, sala dentro — o companheiro quedado à porta que dava para o j ardim, de arma apontada para a outra saída do corredor da cozinha. — Ninguém me alói ! — o cabo bradou. — A casa está cercada! E à dona da pensão, a Carvalhosa, branca de pavor : — Me acompanhe! Me mostre o quarto da Iracema! O que então se seguiu foi instantâneo também: a pezada, de sola e salto de bota, na porta do quarto, as folhas escancaradas com fragor, quase que arrancadas das dobradiças, e ambos — a Iracema e o dr. João Crisóstomo, de luzinha verde acesa, em pelado e estúrdio flagrante, caído pelos pés da cama de casal o acolchoado de cetim. — Seus senvergonha" ! Seu porco! — o cabo Salvador esteve por chamar toda a sala, as negras da cozinha, o bordel inteirinho da Carvalhosa para vir presenciar o quadro. Mas o dr. Jojoca desenroscava-se, ligeiro, da maçaroca de braços, pernas e cabeças — da arrevesada inventação-de-moda que os dois haviam arrumado ali na cama — caía em si, tratando de tapar-se com um travesseiro, a Iracema procurando também encolher-se atrás do outro. — Se levante, seu safado! Vista as calça" ! — gritava o cabo à porta do quarto, vibrante de esporas, brandindo o parabelum, vigiando a sala e os fundos do corredor. Coisa alguma, entretanto se moveu, porta alguma de todos aqueles quartos ocupados se entreabriu. Continuavam os berros, a se ouvirem do beco: — Não senhor ! Só co"as calça" ! Passe em frente! Quando o dr. João Crisóstomo cruzou pela sala repleta, uma cera de tão amarelo, e nu da cintura para cima, ninguém — gesto ou palavra — nada de nada aconteceu. O mesmo quando chegou ele ao portãozinho da rua, atravessou por debaixo das j anelas tampadas de mulherio, varou por entre a extasiada aglomeração da esquina, crescida àquela j usta da negralhada ali do Alto da Boa Vida — o terno de congada do Joãozinho Crioulo, o mais completo e
animado de Santana do Boqueirão. Foi assim que o dr. João Crisóstomo de Albuquerque deixou, naquela noite fria, a Pensão da Carvalhosa. De a-pé, calças de braguilhas mal-e-mal abotoadas, os suspensórios alçados nos ombros murchos, lisos de — e chumbadinhos de sarda, os sapatos desamarrados e sem as meias, despenteada cabeleira — assim desceu ele a Ladeira da Palha e o demorado e povoado resto da rua. E ladeado e seguro por dois soldados e mais seis outros cavalarianos, montados e de mosquetão às costas, completando a escolta. Mais se aproximavam do Largo das Mercês, mais povo se aj untava ao acompanhamento, mais menino. À porta da Matriz, aquilo até que parecia procissão — perdão de Deus! — na hora de recolher-se à igrej a. Só faltava mesmo o repicar dos sinos: e procissão de São Sebastião, padroeiro militar, por causa do tanto de soldados que vinham à testa do cortejo. A multidão, a banda de música que o capitão Eucaristo não permitia parasse de tocar. Os dois — ele e o sargento Hermenegildo — encapotados, os demais ao derredor : a meia dúzia das praças apertadas e embaladas do destacamento, os à paisana, então àquela hora não mais preocupados em disfarçar-se, paletós abertos e largos cinturões à vista. Seu Machado — o Machadinho — j untara-se também aos companheiros de Captura. Tudo pensado, arquitetado, preparado pelo capitão e o ordenança, enquanto decorria o interrogatório do Clodulfo do Nascimento e durante o j antar no hotel — desde que caíra, o dr. João Crisóstomo, na asneira de não comparecer à delegacia, intimado como fora, na qualidade de presidente do Eldorado — de mandar o fedelhozinho envaselinado do clube em seu lugar. Inventar enxaqueca — enxaqueca! —, o trabalho do jornal, a história de ter de ficar em casa, revendo as provas na cama; e esquecer-se da desculpa, da mentira — ir, de sol quente, para o bordel da Carvalhosa, trancar-se no quarto com a Iracema a tarde toda... E ainda voltar, meter-se de novo no quarto da rapariguinha, e de conhaques e champanhas ! Agora, a desmoralização. Primeiro, a descompostura; a surra de refle, logo em seguida, e pública também, presenciada pelas abarrotadas sacadas do Clube Eldorado, ali onde era presidente o safardana do doutor ! E, para arrematar, nova passeata, e puxada a banda de música, para chamar mais atenção ainda; umas voltas pelas ruas do centro: espetáculo para os mais velhos, as crianças — o povinho que não saíra de casa. Por fim, largar o preso na cadeia... Ah! — chisparam com mais outra ideia os olhos j á acesos do capitão Eucaristo — ah!... o homem era mulherengo, bordelista, roxo por um rabinho de saia!... Com aquele frio, o gelo que devia estar a prisão... A Corneta — a mendiga, a bêbeda escandalosa — sozinha de tudo, desesperada, louca por achar alguém, nem que fosse um cachorro, um bicho vivo e quente em que pudesse ao menos se encostar... Sim. Jogar umas latas de água pelo chão de cimento, aumentar a friagem, trancafiar os dois j untinhos lá dentro do xadrez! O capitão Eucaristo Rosa esperou que a patrulha do cabo Salvador se aproximasse mais ainda, parasse bem em frente ao fórum, se pudesse à plena luz do poste ali da esquina. Tirou o palito da boca, guardou-o, e cruzou os braços, não se importando que, solta, a capa rodada mostrasse a carabina pendurada, de bico para baixo, à cinta do boldrié. O sargento Hermenegildo descera j á o degrau da calçada, e postava-se rente ao preso bem seguro pela j unta dos dois soldados, a curto alcance das negras e forçudas mãos de pau. O silêncio: — fundo, geral, terrível. — Então, vosm"cê... — era assim que tratava o capitão Eucaristo Rosa as pessoas de mais importância —... pois então, vosm"cê de enxaqueca de en-xa-que-ca! — acamado e tão assoberbado de serviço... Ah! Somente se baixassem, em legião, os anjos todos — São Jorge à frente — espadas de fogo a
se despej arem do Alto! Somente se desabasse o céu, o chão se fendesse em abismo — terremoto, cataclismo, o fim do mundo, o Juízo Final acontecesse! O sargento Hermenegildo levantava a mão esquerda — a mais pesada —, o Batista, o soldadinho de cicatriz no queixo e orelha acabanada, sacava j á do refle; fuzilavam os olhos gateados do capitão Eucaristo Rosa... Sim. Somente um milagre para estuporar a mão do preto, paralisar o sabre curto do cavalariano, calar a voz, empedrar a boca do capitão... — salvar o dr. Joj oca... E o impossível, o milagre aconteceu, naquela noite de sábado, em pleno centro da cidade de Santana do Boqueirão! E perto, a poucas quadras do Largo das Mercês, lá pelos lados da ponte da rua do Comércio. Um, dois, três — a saraivada dos estampidos rápidos da pistola máuser — um primeiro, um outro, e outro mais, dos conhecidos tiros altos, grossos, de assobiinho e eco: tiros de mosquetão! O capitão Eucaristo Rosa foi o primeiro a arrancar-se, carabina em punho, capa esvoaçante, na direção do tiroteio. O sargento Hermenegildo, o Grupo de Combate em treinada formação, os mais soldados à paisana — todo o efetivo da Captura que se encontrava ali na esquina do fórum e dentro do pátio, todos eles dispararam como um desabrido pé de vendaval pela rua do Comércio abaixo. E o povo — borbotão que não se acabava — embolado e frenético, correndo, correndo atrás. O cabo Salvador — nem chegara ele a desamontar quando os tiros começaram — foi topar com o cabo Zeca Branco ainda engarupado no muro de pedra da Câmara Velha, na horinha de pular para o quintal. — O Lico da Isoldina! — o cabo Zeca Branco quase que nem falar podia. E sem explicar mais nada — ele vira vir correndo pelo meio da rua o capitão Eucaristo — o cabo Zeca Branco despejou-se pelo outro lado do muro, para cair dentro do fundo tufo de sujo matagal que eram os barrancos do córrego. O capitão chegava, vermelho e quase j á sem fôlego. Estourou quando soube do acontecido: — E o bandido, ele escapou?! Filhos da mãe, cambada de vagabundos, relaxo de povo à-toa! Cadê esse xibungo do Zeca Branco? — "tá atrás do homem, capitão... — o cabo Salvador gaguej ou. O sargento Hermenegildo distribuía porém as ordens. O Grupo de Combate repartiu-se então, uns voltando em desabalado galope pela rua do Comércio, para ir contornar mais acima, outros j á virando pela esquina do Registro Civil — buscando todos fechar urgente cerco em torno do quarteirão cortado pelo córrego. Era o Lico da Isoldina um dos mais antigos homens do coronel Américo Barbosa. Competente e de toda confiança, seu Americão e mais companheiros de política não o dispensavam em épocas de eleição — naquele tempo j á tido e havido como o melhor de todos os cabos do partido. Quando o Clodulfo do Nascimento principiou a selecionar pessoal para pôr em prática a ideia por ele imaginada, nem precisou de ser lembrado o Lico: veio o próprio empregado da fazenda, espontâneo, oferecer-se, e com tanta vontade e disposição, que outro j eito não teve o coronel Américo a não ser o de concordar com tal desej o e insistência. Perdeu a Fazenda do Sassafrás um retireiro e tanto; mas, por outro lado, ganhou o negócio organizado pelo guarda-livros da Câmara um elemento de primeira ordem, dos mais eficientes e rendosos. Ah, o Lico da Isoldina! Quem se dispusesse a passar boas e divertidas horas, e em muitos par"- de-dias, escutando o Arcanj o da Barra Limpa, ouvindo o ror de casos que sabia também contar o João da Preta, o balseiro velho do Porto do Paiol Queimado; quem competência tivesse, e vocação, para tomar apontamento, escrever e passar adiante depois, em grosso e movimentado livro, a completa e verdadeira história do Lico da Isoldina — rico, e famoso, e invej ado esse um até que
ficaria! Vinte? Trinta? Cinquenta? Menos, mais que isso? Não, ninguém acertava com quantas mortes carregava o Lico na memória, que muitas não constavam do serrilhado de piquezinho na madrepérola do revólver — em antes de genuíno e longo cano, reduzido depois ao meio, que mais cômodo e ligeiro e mais mortal ficara; nem no cabo da garrucha imensa — essa sim, de comprido, negro e duplo cano —, tampouco na coronha de pau-de-amendoim da papo-amarelo de oito tiros legítimos; e também no chifre de agudo e cortante punhal-faca de duas chaves de aço. E quantas balas j á lhe haviam vazado a rij a corpulência? Quanto chumbo se guardava lá por dentro da carnadura, fato e seus vazios, por entre espinha e costelas e mais ossos? Corpo fechado? Oração das Sete Forças? Comprometido de alma, vendido a Belzebu, ao Negro, ao Cão? Protegido, apadrinhado do Cuj o? Já agora, porém, precisado de descanso. Uma das mais recentes encomendas feitas ao coronel Américo Barbosa — um doutorzinho de Campo Raso a incomodar o situacionismo de lá, e, ainda por cima, mexedor com mulher alheia — tal serviço, esse o patrão mandou ao Lico da Isoldina que fizesse; mas ia ser o derradeiro — seu Americão determinara. Executada a tarefa, que encostasse, de uma vez para sempre, revólver, punhal-faca, a carabina. Fosse cuidar de mais maneira ocupação, sossegar de vida. As pessoas chegavam a certa idade — seu Americão explicava — tinham de reconhecer : o coração baqueava, a vista nunca que seguia sendo a mesma, até os ouvidos, o próprio faro principiava a lerdear. Se retirasse enquanto era tempo — o patrão aconselhara muito — se aposentasse. E, logo havia o Lico regressado de Campo Raso, depois de ter acabado com o tal doutor j urado pelos mandões do lugar — seu Americão cumprira o prometido: a casa boa onde a família do empregado sempre havia morado de graça — a escritura dela mandada passar em cartório por seu Americão j á em nome dos filhos do Lico da Isoldina; e determinara também o patrão que entregassem ao Lico um dos melhores pontos de Santana do Boqueirão — o chalé-de-bicho e loteria da esquina do Correio. Assim, reconhecido e estimado pelo patrão, de casa própria e família criada — as meninas casadas, os filhos independentes, o caçula na horinha de tirar diploma no Colégio dos Frades, mas j á de emprego efetivo na Câmara Municipal — a folgada e certa mesada que lhe dava o chalé, a pontinha de gado no Sassafrás sem pagar pasto nem renda, o dinheirinho a j uro com o próprio seu Americão... — assim ia tocando o Lico da Isoldina, depois de tão longos e aproveitados anos. E dono ainda de mais importante cabedal: um nome grande, admirado. Não. Ninguém ousaria, j amais, negar-lhe o devido respeito, sequer diminuí-lo. E isso, dos sopés aos araxás da Serra Grande, pelas cem léguas daquelas alturas e lonj uras do Sertão do Bugre. Pelo menos até ao dia em que Deus viesse para cobrar-lhe a vida. Lico da Isoldina acordou com o desesperado acuo e latição de cachorro. Vozes, movimento de gente do lado de fora do
rancho, e a praga: — Peste, diabo! E, agora que o cachorro atrapalhara tudo, não adiantando mais quererem eles entrar no
rancho de surpresa: — Se entregue, bandido! "tá tudo cercado, a besta "tá na unha! Aqui fala a Captura! Santa Bárbara! Traição de alguém, só podia ser ! — o Lico se ergueu, num salto, de cima dos baixeiros do
arreio, revólver j á engatilhado na mão. — Jogue as armas! Sai de costas, mãos pra riba! E um tiro que fez calar, num uivo agoniado, o cachorro preto, invisível na fria escuridão da boca da noite sem lua — amostra pra quem ainda duvidasse da falada pontaria do cabo Zeca Branco. Maldita hora em que fora se meter naquele
rancho, excomungado vento frio que o levara a tal lerdeza e falta de j uízo! — vacilava ainda o Lico da Isoldina.
— Anda, caboclo à-toa! Suj o, macutena, ladrão!... Beldroega! Pinoia! Era assim que eles gostavam de fazer — o Lico bem sabia. Xingavam, ofendiam, provocavam, quando viam a pessoa sem mais poder reagir, sem j eito de se defender ou de escapar. E se o bobo se fosse enj erizar, se esquentasse a ideia... — Anda! Vamo" logo! De costas! E continuaram com os xingos: a honra dele, da mãe, a honra da mulher... Lico da Isoldina atirou fora o revólver de cano serrado, apanhou o punhal-faca e ia atirá-lo também quando teve então a lembrança: enterrou-o, com cabo e tudo, num dos suadouros do
arreioque ficara pelo chão a servir de travesseiro, bem por debaixo da cabeça do santantônio. A bainha, ele a escondeu por entre dois paus apertados da parede do
rancho. E gritou, sem mais remédio: — Já lá em vou! Me entrego! Dois soldados da Captura agarraram-no por detrás, o cabo Zeca Branco. trouxe a corda de sedenho e amarrou-lhe os punhos um ao outro em acochado nó — passou-lhe pela cintura a volta do laço de oito pernas, de flexível mas resistente couro de veado. O Lico sentiu a ponta de um refle ferir-lhe os rins, o fôlego faltar na garganta afogada por um traseiro e duro abraço — nem que fosse uma forquilha de pau! — a dor fina de escurecer as vistas quando o cabo lhe esmagou as partes com aguçado pontapé. Sofreu tudo aquilo, mas não reagiu — nem quando o Zeca Branco lhe esmurrou a cara até fazer correr o sangue do nariz. Matavam-no por ali mesmo, amarrado como se encontrava, se não se entregasse por completo — não se iludia o Lico da Isoldina. Entraram no
rancho, de facho de capim aceso, revistaram tudo. Mas trouxeram lá de dentro apenas o
arreio, baixeiros e pelego, a capanguinha do mantimento e a capa. A bainha ficara por lá, entre os dois paus da parede, esquecida... — de tal se certificou o Lico da Isoldina quando os soldados começaram a arrear a besta, sem vir perguntar por coisa mais nenhuma. Mas fuçaram pelos bolsos da baldrana, apalparam ali por baixo das abas da corona... O punhal- faca, entretanto, continuou enterrado no suadouro, a cabecinha última do cabo mal apontada por fora do recheio de capim, rente à armação de ferro, bem encostada ao volteado do
arção da sela. Fizeram-no montar, marchar à frente da escolta. Dura e espinhenta era a maneia que lhe cortava os punhos, apertado o laço que quase não o deixava respirar direito, a ponta atada à sela do cabo Zeca Branco, que viaj ava em segundo, logo atrás. Mas não estava perdida de todo a esperança, que nunca havia o Lico da Isoldina desdenhado da proteção de São Silvestre e de São Marcos — de muitos outros santos e santas de sua preferida e reservada devoção. Começou com Santa Catarina, clara e digna, a que passou pela porta de Abraão, pela porta dos mil homens, todos bravios que nem leão: "Abrandai o coração dos meus inimigos. Se tiverem p ernas, contra mim não caminharão; se tiverem braços, p ara mim não ap ontarão; se tiverem olhos, p ara mim não olharão... " Não era longa a viagem até a cidade — menos de duas horas, se se deixasse à vontade a mula ruça. Mas o Lico da Isoldina não a apertava muito, mantendo a marcha estradeira comum, de todo burro. E o cabo Zeca Branco parecia também não ter lá muita pressa, que hora nenhuma reclamou. Punhos amarrados, mas de mãos e dedos livres, o Lico da Isoldina pouca dificuldade teve em alcançar a cabecinha do cabo do punhal-faca; fácil também arrancá-lo do suadouro e enfiá-lo por entre as pernas. As mãos agiam, continuava rezando o coração: "... e abranda esses maus esp íritos,
traga-os p astando como cavalinhos no camp o redondo... p or debaixo da sola do meu p é esquerdo e da minha mão direita... " O sedenho, primeiro: somente assim, de pulsos livres, é que poderia cortar, depois, o laço ali bem j unto ao umbigo, segurar as duas pontas para que o cabo nada percebesse, esperar pela hora de saltar... "São Silvestre tem três camisas... todas três ele é quem veste... Me valha, meu São Silvestre, três anj os, mais trinta e sete. " E o Lico da Isoldina agarrava a faca pelo cabo, roçava o corte pelo nó do sedenho... Não, não podia cortar tudo de uma vez: bambear apenas a maneia, folgar um pouco as mãos, por enquanto... Os soldados viaj avam j untos, atrás do preso que ia só, à frente. Conversavam, riam alto. Vez em vez, o cabo Zeca Branco puxava o laço para desequilibrar o Lico da Isoldina, fazê-lo estacar a besta, num soco aflito de rédeas. O balanceado da marcha, os ombros e os braços a se sacudirem, tendo mesmo de acompanhar o galeio da toada do animal... Não, o cabo de nada suspeitava, tampouco os outros dois... O laço de oito pernas do bom couro de mateiro, agora. A faca cortando de baixo para cima, a ponta bem metida por entre a laçada e o paletó. Devagar, devagarinho... "... Santa Bárb "ra levantou, se vestiu e se calçou, seus caminhos caminhou... Onde vai-te, ó minha santa? Me indica, que eu tam "ém vou!... " A chácara do maj or Elviro, os trilhos do trem de ferro, a primeira luz — o farol, alto e não muito distante, do sinaleiro da estrada. Os
ranchos, a primeira casa de telha, a colônia dos empregados da Linha — os montes compridos, esquadrej ados, certos, da lenha empilhada lado e outro dos trilhos, os vagões velhos, de chaminé instalada, a servir de moradia. Já se escutava o fuzuê, a cantoria — os bumbos e apitos do terno de congada do Alto da Estação. Desceram a ladeira, entraram pela rua da Chave, quebraram mão ali na esquina e foram sair bem em frente ao j ardinzinho de escumilhas e pés de sabugueiro. Escuro, o Curtume perto, o córrego, o pasto dos Espíritas... Mas havia ainda três pernas do laço a serem cortadas — o Lico da Isoldina contou com a ponta dos dedos, sem parar de rezar um só instante. O começo da rua do Comércio. Muito em cima, mas j á dando para se ver a igrej a — alta e branca, sobranceira às palmeiras do Largo das Mercês — a torre nova, do relógio. Deus te salve, casa santa Onde Deus f ez a morada. Onde está o bento Cálice Dentro, a Hóstia consagrada — rezava, rezava sem parar, o Lico da Isoldina.
Plena rua do Comércio — clara, calçada, central. Os postes de luz, os postes do telégrafo — gente a chegar às j anelas, parar pelos passeios, acompanhar a escolta. Foi quando se aproximaram da ponte. A mula ruça do Lico da Isoldina entrou na frente, mais à direita que à esquerda — o córrego, de pouca água naquele mês, a se escorrer ali embaixo. A maneia cortada por total, as pontas do sedenho seguras nos punhos apertados firmemente um ao outro, o cabo do punhal-faca agarrado por dentro das mãos São João se foi a lavar, lá no rio do Jordão. "Seus inimigos j á envêm; foge, foge, meu São João!" O talho certeiro da faca, agora de mãos libertas e sem mais disfarces, na presença do cabo Zeca Branco e dos dois outros soldados da Captura, da porção de gente que se acumulava à saída da ponte — o golpe que acabou de cortar, de uma vezada, o pouco que faltava do laço. Mãos de novo à cabeça do
arreio para ali se apoiarem, e o salto — o lindo salto de pernas para o ar ! — o corpo livre a voar por sobre o parapeito da ponte e a cair, de em-pé, bem no meio da águinha rasa do corguinho... "Corre, corre, João Batista! Seus inimigos j á envêm! Foge, foge, João Batista!" Os tiros de máuser, os tiros de mosquetão... — não, nada daquilo o alcançaria mais, que era muito alto o mamonal, muito praguej ado de rabo de foguete o quintal da Câmara Velha. E — que esperança! — não seriam aqueles soldadinhos da Captura, povinho miúdo demais para querer se medir, poder com São Silvestre e São João Batista! Ainda mais com São Marcos, cuj a oração principal, a de maior força e valência, havia o Lico da Isoldina deixado por último, que só devia ser usada, sob pena de castigo, em hora de mais apertada precisão: "Fechai, ó São Marcos, fechai este corpo com as sete escamas de bronze do Dragão, me vesti com as sete penas cortadas da asa do Maldito, sopra; em meu coração os sete sopros de fogo do Arcanj o Gabriel..." De quintal em quintal, atravessou o Lico da Isoldina todo o quarteirão, e alcançou a outra rua exatamente quando o tropel da patrulha virava pela esquina de cima e descia para fechar o cerco. O tempo só de cruzar por debaixo da outra ponte — uma pinguelinha de nada, muito estreita — e se enfiar pela moita de cana da chác"ra de leite do Beléu: mal se sumia por ali, passavam os soldados pela rua e paravam logo adiante. Cercavam o quarteirão da Câmara Velha — percebeu o Lico da Isoldina. Iam ficar ocupados em revirar um por um daqueles quintais, dar-lhe tempo de continuar subindo pelas beiradas do córrego, ganhar os pastos da Charqueada, a linha da estrada de ferro... Já era a terceira ou quarta vez que repetia a Oração Terrível. Agora, porém, podia parar de rezar, que não se devia abusar de sua força — o Lico da Isoldina se lembrou então, ao alcançar os trilhos. Não, não carecia mais dela, pois j á ficaria muito longe o próprio batuque dos ternos de congada — o bumbo-zabumbo e a cantoria que ainda iam seguir pela noite fora. Como fora parar, desabalado cozinha adentro, na casa de seu Sander Reloj oeiro, tal façanha j amais poderia o dr. João Crisóstomo explicar. Lembrava-se apenas de ter-se enfiado pelo portãozinho de uma loj a da rua do Comércio — o golfo de gente a correr tinha-o carregado até o meio da ladeira — varado um pátio atulhado de caixotes e garrafas vazias, um muro de taipa, outro, a cerca de rachas de taboca. E o quintal forrado de j abuticabeiras e pés de carambola, servido de cisterna tampada, com bomba de mão e caixa-d"água. — Imagina só se o senhor me fosse sair na cozinha do maj or Cesário! — achava ainda de brincar
o seu Sander, depois de mais acalmado o doutor. — Com aquela penca de filha-mulher que o maj or tem em casa... Ou senão no Zé da Vó, na Candinha do Damião!... Dona Nhá, a mulher de seu Sander Reloj oeiro, arrumara para o dr. Joj oca a camisa, um par de meias do marido, a blusa de mangas, de tricô. — Estou aflito mas só é por causa da Abadia, das meninas... — Agora mesmo dou um pulo até lá, aviso... E trago roupa... — prontificou-se seu Sander. — Deus do céu! E o j ornal?! — lembrou-se então, num repente, o dr. Joj oca. — Depois do que esse bandido do capitão me fez!... O artigo de amanhã, o editorial... elogiando ele! Uma hora dessas j á deve de estar tudo no Correio... Se o senhor pudesse ainda acudir, falar com o Jerominho... Mas seu Sander pensava com mais assentado j uízo: — Agora, doutor, não "dianta mais... Avisar dona Abadia, "tá certo, que é preciso mesmo consolar a pobre... Depois, ela não vai contar pra ninguém... Mas, falar com o Jerominho, acho que não convém não: acabam descobrindo onde é que o senhor está... Não, não havia, àquela altura da noite, como impedir a distribuição do j ornal. Com tanto soldado na rua, o j eito era mesmo ficar escondido ali no quartinho da oficina de seu Sander Reloj oeiro, e calado, sem mais ninguém saber... E torcer — conformava-se o dr. Joj oca —, rezar para que a Captura não inventasse de vir revistar casa por casa daquele quarteirão! A garoa dos pés da serra virava chuva — fininha e fria, que atravessava a roupa de casimira e lhe escorria pelo pescoço e as mãos. E era um estirão de muitas léguas ainda — a noite toda sem um alto — até a Barra Limpa, onde vivia o Arcanj o! E naquela incômoda sela de estribo curto, naquele maldito trote socado do burro cabeçudo e pequetito, certamente o pior entre os outros três tomados de empréstimo com alguém pelo cabo Apolinário! Estaria j á de volta, parado pelo
rancho do Arcanjo, o José de Arimateia? Teria j á saído de lá? — se perguntava o Clodulfo do Nascimento, apavorado com a ideia de uma viagem fracassada. Com o cabo Apolinário de puxa-fila, subiam os cavaleiros. Distante ainda, entretanto, o alto da serra. E, mais alto avançavam eles, mais gelada se fazia a chuvinha de vento do Chapadão.
Cavaleiro e montada 2° quadro
27
NOITE DE NOVO fechada quando Camurça venceu o derradeiro lance da subida, e pôde sentir a carga pender para o meio certo do lombo. Espiou o céu: não se via ainda a lua minguante, mas o Cruzeiro se destacava, principiando a pôr-se a prumo; até que se empinasse de todo, e depois começasse a descair para o outro lado, seria ainda chão e isso, antes dos primeiros sinais da madrugada. Um inferno, os caracóis da serra! Duas paradas tivera Camurça de fazer para o reajuste da
barrigueira, que o peitoral de nada adiantava contra o peso do cavaleiro a escorregar-se para trás, forçado pelo declive do caminho. Quando isso sucedia, quando sentia a sela frouxa e o cavaleiro a recuar, Camurça de pronto estacava, ainda que sabedora do penoso reaperto do cilhão. Em tais horas, porém, aprendera a encher o peito de ar bastante, e retesar os músculos: roubava assim um furo a mais no arrocho da
barrigueira — tico só de folgazinha, mas importante lasseio para o vai-e-vem do fôlego. Só não podia evitar era que o couro da barriga se ensanfonasse em muitas dobras — dolorida mordeção de rugas a j untar-se ao sacrifício do lançante a pique. Mas Camurça suportava com resignação àqueles sacrifícios. Era um animal agradecido: se acostumara com o dono, gostava dele, reconhecia a bondade, a estima dele para com ela. Se, às vezes, se lembrava dos primeiros e duros tempos de ensino — da apertada disciplina e até mesmo de uma ou outra j udiação — Camurça não se esquecia porém dos agrados que recebia: depois dos primeiros acertos, o patrão vinha prosear com ela, olhava-lhe os calos de sangue do freio, curava-lhe as dores do lombo e a queimação das virilhas. Ele, homem seco com os outros, reservado no falar, com ela até que demudava: quando lhe tosava a crina ou lhe escovava o pelo, era sempre conversando. O Chapadão. Já em antes, desde a fazenda de seu Valério Garcia, no Engenho do Pinhé, o vento campeava pelas croas e socavãos da serra, apertando mais e mais à medida que aqueles dois subiam. Bem que José de Arimateia procurava defender Camurça da friagem, deixando a espaçosa capa de lã cobrir os quartos do animal. Dos tufões que vinham malhar, ora a traseira, ora o peito de Camurça, que até por entre as pernas se lhe intrometiam, o cavaleiro a resguardava — rédea solta, para que ela buscasse, por si mesma, melhor posição e equilíbrio. Besta mestre: quando o vento a tangia por detrás, ela dava de chanfrar as popas, encolhendo as pernas; quando os roj ões a pegavam de banda, Camurça lhes dava a frente, e retraía o queixo, cabeçuda, mãos enfincadas no chão. O Chapadão do Bugre. As marchas de escuro a escuro, e olhe que naquele rendoso passo cheio viageiro — meio-galope quase — um só batido de gemada... Camurça nem de olhar adiante precisava: os cascos não tropicavam mais em pedregulhos, nem se afundavam no fofo de certos trechos de mato. Chão sempre igual agora: tabatinga atij olada ao sol, resseca pelo vento, a se chapar toda a vida por aqueles ermos fora. Bons tempos, antigamente? Dias e dias a engordar ronceira no marmelada viçoso do melhor pastinho da fazenda? O patrão sempre envolvido no trabalho, desinclinado de navegar assim pelas estradas? Talvez até que não: talvez que preferisse as correrias de atualmente: seu Isé a vir buscá-la no pasto fora de horas, o arrear afoito para escapes de surpresa — o sem-destino daquelas noites dilatadas.
O recorte das Três Cruzes surgiu quase de brusco, pois José de Arimateia cavalgava meio fronteiro ao vento, aba do chapéu forçada para baixo a taparlhe os olhos. Nem precisou do cutucão de rédea para que Camurça estacasse e, j á educada, rodasse nos pés para proteger o desmonte do cavaleiro. Este apeou, foi certo à correia do cilhão, e desapertou-a. Caminhou ligeiro, todo encurvado à ventania, e parou j unto à mais alta das três cruzes. Aj oelhou-se e, apesar do frio, se demorou assim por algum tempo, antes de depor a esmola por entre as gretas das pedras empilhadas ao pé do esteio. Voltou à montada, acertou os
arreios, e afivelou — num arrocho comedido agora — a
barrigueira de tucum torcido. Do surrãozinho de sola tirou o meio litro e gol ou um trago grande do café pingado. Montou novamente, forrando com a roda da capa as ancas de Camurça, que, despachada de natureza, j á se desvirava por conta própria. E tocou. Não era a primeira vez que ele passava pela estradinha das Três Cruzes. Acontecia até que, sem precisão de ser, largava a boiadeira para vir ali cumprir com a devoção. Quando conhecera o lugar, foi em companhia de um camarada muito amigo — o Arcanj o da Barra Limpa — que lhe contara a história daquele pasmado alto — exagero de cupim — e dos três cruzeiros de pau. História de cortar : o homem endoidado de repente, o menino doentinho, a pobre da eguinha j á nas últimas... Pagava a pena a gente ficar escutando o Arcanj o, sempre de caso novo, nunca esquecido de um caso antigo. Esses, até que negro ia encorpando de reconto a reconto, acrescentando de improviso novidades. Logo que José de Arimateia veio para debaixo das ordens de seu Americão, novato na Fazenda do Sassafrás, se tomara de simpatia pelo Arcanj o. Além de paciente e serviçal, o outro contava histórias, muitas: a do Jerominho Sem Barba, Rei Saul, o Moinho do Inferno, o caso do capitão Quirino com a moça do seu Joca Alves — umas verdadeiras, outras até que passadas com ele j unto, mas também um ror de lendas de mentira. A história das Três Cruzes era das acontecidas de verdade. Vinha gente do chapadão, gente lá dos pés da serra, romaria de gente acostumada a trazer esmola para as almas dos infelizes enterrados naquele triste. De tempos em tempos, aparecia o padre velho da Chapada para recolher o montico de cobres para as missas que ia rezar depois na cidade. Bom seria uma capela, pintadinha de branco e azul, no lugar das cruzes, ali quase na beira do aparado, fácil de se ver dos longes lá de baixo, e com dia certo para missa e reza. Se o Arcanj o não andasse ultimamente, como andava, tão perrengue e tão caseiro, só de sair contando a história das Três Cruzes havia de arranj ar recurso para a construção da capelinha — José de Arimateia imaginava. O Arcanj o começava os seus casos bem do comecinho, dilatava quando valia dilatar, nenhum trecho esquecia sem explicação competente. Ele relatava, a gente ia divulgando os personagens, gostando de uns, tomando birra de outros. José de Arimateia achava até que o Arcanj o escolhia as pessoas boas das histórias dele ao j eito de certos viventes conhecidos, amigos de quem todo mundo agradava. As ruins, ele inventava iguais às ordinárias mesmo, odiadas por geral. E não deixava ninguém sem nome. Na história das Três Cruzes, o infeliz do pai era o seu Cassiano, Cianim o doentinho; a égua renga atendia por Sabina, e chamava- se Tereso o peão morador no Barro Branco. O curandeiro era um tal de seu Severo, pessoa abalizada
em raízes e mandracas, mas muito emproado e convencido, e que tinha por costume viaj ar de encosto em comitivas boiadeiras. Pelo dito do Arcanj o, devia de ser uma noite assim, pior quem sabe: noite de ventania mais acelerada, o frio mais carrasco. Meados de j ulho, com certeza... José de Arimateia bebeu mais uma tragada boa do café misturado com a pinga do João da Preta. O vento furiava: era como se a mula tivesse desembestado por um capoeirão proibido, muçungo de unha-de-gato e tataj uba — miles de espinhos a navalhar-lhe mãos e rosto, enfiando pelas carnes dentro. Coitado do seu Cassiano da história das Três Cruzes! Ele, José de Arimateia, montado na Camurça, besta esperta e mocetona — de capa gaúcha e bota de cano alto, pelego de sete palmos no
arreio e chapéu sombreiro na cabeça, e, entretanto martirizado daquele j eito pela ventania! E seu Cassiano então, sem agasalho nenhum, sem animal ao menos que prestasse!... O pobre morava num covo raso do Chapadão — o Arcanj o principiava assim — e j á vinha vindo, fazia tempo, de luta com o filhinho doente e desrecursado de tudo, piorando dia a dia. Então foi que teve notícia do seu Severo, o curador, engaj ado numa comitiva de falha no Barro Branco, por causa de um lote de reses arribadas. Esperançado da fama do remedista, e com tenção de trazer o homem para olhar o filho, seu Cassiano viaj ou para lá, escanchado em pelo no único animal que possuía — a Sabina, uma pichorrinha manca, j á ruinzinha a não poder, aparecida lá pelo covo, sem dono e sem destino — e varou naquele sacrifício a légua e meia que ia do
rancho dele ao Barro Branco. Mas seu Severo somente receitava ali no pouso, e não houve j eito de querer acompanhar a criatura: que trouxessem o doente... Seu Cassiano implorou, rogou pelo amor de Deus: uma leguinha e pouco só... sobrava tanto animal descansado na comitiva... o derradeiro recurso era a caridade de um remédio... Que o quê! Até destratar o desgraçado, contava o Arcanj o que o seu Severo destratou. Isso, j á pelas tantas do dia, quase mais sem prazo para seu Cassiano voltar à taperinha, apanhar o Cianim e retornar. E lá se foi de novo a Sabina velha, manquitando, manquitando, aguada sem mais préstimo. Tão sem serventia a coitadinha da égua que, quando chegaram ao
rancho, a noite j á tinha caído e o furacão-de-vento despencado. Seu Cassiano embrulhou mal-mal o Cianim, e riscou outra vez para o Barro Branco, nessa altura j á decerto enfraquecido da ideia por completo, que nem direito mais a passo a Sabina caminhava, cisquinho à toa à mercê da ventania. Nisso, aparece a salvação: o Tereso, vaqueiro da comitiva, num burro pelo-de-rato ainda novo, isto de bem amontado e agasalhado! Seu Cassiano grita o Tereso e mostra o doentinho, e pede ao peão que leve o coitadinho para que o curador olhasse ele. Ah, celerado, mandado do demônio! Pois não é que o barrabás do Tereso desculpa com o atraso com que j á vem de viagem, com a canseira do burrão novo e marchador, e larga seu Cassiano mais a criança no meio do vento e do frio?! O vento, esse então toureava — bando de lobisomens esturrando e galopando nos limpos do chapadão. Seu Cassiano vê que avançar é perder tempo, e que voltar não adianta mais. A Sabina, coitada, essa nem mais levantar-se dos j oelhos levantava... Cianim, nas últimas, destampa num chorinho minguado, tal e qual pintinho de perdiz esquecido no chuvisco. Aí então é que seu Cassiano vira orates de uma vez, e sai buscando pau, pedra, buraco — nem que fosse um buraco de tatu — onde pudesse abrigar, enfiar o filho. A esperança estava no pasmado alto de uma braça, e redondão — o tucuruzão crescido ali na beira do caminho. Porém nem faca o desgraçado trazia, tampouco um graveto de pau se encontrava naquele chão limpo de terra seca — nada, nada que pudesse aj udar o desinfeliz a furar um oco no cupinzeiro... Engraçado, o Arcanj o! -José de Arimateia se lembrava. — Desacismado como ninguém, homem dos mais homens, e, no entanto se amolecia todo quando contava aquela história. E não só ele não: a peonada do Sassafrás, seu Americão Barbosa, até o próprio Lico da Isoldina, seu Clodulfo, todo
mundo se compadecia. Ele, José de Arimateia, só de se lembrar daquela passagem, até os olhos dele merej avam... Parecia que estava vendo: o menino Cianim largado ao tempo, e o pai dele — doido de tudo! — a querer escavoucar com as unhas o reboque vidrado da casa de cupim. Só no dia seguinte seu Cassiano foi encontrado por uns peões da comitiva que voltavam ao pouso com as reses alongadas. Abraçado ao tacuru, tal qual tamanduá, lá estava ele morto de antigo, j á curtido pelo vento gelado do chapadão — as unhas no sabugo, esbagaçadas de tanto querer furar o maldito cupinzeiro. O Cianim, coitadinho, esse foi encontrado mais adiante, desenrolado dos fiapos da baeta, anunzinho por completo e azulzinho de tão roxo — um casal de mamangaba j á zunzunando ao derredor do defuntinho dele. E a Sabina, a égua renga, os peões foram topar com ela na beira do aparado, revirada de costas e de pés para cima, falecida também. Cada vez mais impossível o mau tempo. Diabo de tanta volta, tanto atalho! A boiadeira sim, que essa se esticava em reta, sem cabeceiras para rodear nem outros desguios a fazer. E os ventos encanavam-se na mesma direção da estrada, chegando a obrigar a montaria para a frente, aj udando a render viagem. Mas seu Americão queria porque queria, e o remédio era obedecer à rota traçada por ele, desguaritar-se pelos trilheiros escondidos, afastado sempre do estradão real. Que vida! Mas agora não adiantava reclamar, querer voltar ao antigo. Depois que se principia a despencar ladeira abaixo, é seguir rolando que não há mais modos de se ganhar de novo o assente do espigão. Era tocar — José de Arimateia j á se conformara — era corresponder à proteção de seu Americão Barbosa, punir pela amizade dele. Com tanta volta assim, umas quatro léguas decerto, até o outro pouso! Lá chegado, ter de acordar o Nego da Castorina, esconder-se no
rancho dele, esperar novamente a noite. Do Nego ao seu Arcanj o, umas cinco; do Arcanj o ao seu Torquato, umas suas boas sete... Costurada no suadouro do
arreio, seguia a carta de seu Americão Barbosa para seu Torquato. Seu Americão escrevia de mão alheia, nem assinar assinava. Seu Clodulfo era quem passava as ordens, cada qual em seu envelope separado, tudo muito bem urdido. Nada disso carecia, essas dificuldades todas, não fosse andar o nome dele, José de Arimateia, divulgado por demais. E trocar de nome não adiantava: ali pelas redondezas não havia quem não o reconhecesse logo, não o apontasse no meio de quanto povo j unto se reunisse. Disfarçar de que j eito — corpulento como era, o castanho ondeado do cabelo, o sinal fundo de tiro bem em cima da sobrancelha? Na hora da decisão da viagem — e havia sido uma labuta para que seu Americão concordasse com ela! — seu Clodulfo viera com opinião de mudar o nome de José de Arimateia, pintar de preto a cabeleira dele, e de berganhar por um burrão queimado a besta douradilha. A tinta, seu Clodulfo havia trazido da cidade, muito entusiasmado, feito experiência no cabelo branco de seu Aniceto Benzedor : dava certo, apesar de ser o preto da tinta um preto seco e meio puxado pra azul; somente que o disfarce se descobria, passando uns doze, quinze dias... — o cabelo ia crescendo de novo e, na raiz dele, a cor vinha como antes, natural. Mas isso se remediava — seu Clodulfo queria porque queria — pois se podia carregar o vidrinho, ir passando a tinta durante a viagem. Seu Americão ouvia muito seu Clodulfo, capaz até de concordar com aqueles despropósitos. Mas, na vez do tal burrão queimado, nisso, ele, José de Arimateia, bateu pé: ""A Camurça, essa não, seu Clodulfo! Sem ela, o senhor não arrepare, mas sem a minha besta eu não viaj o não!" Fosse outro a alterar-se assim, e seu Americão teria subido a serra, raivado feio. Ele não tolerava prosa alta de empregado, ainda mais na frente dos outros. Mas não zangou, pelo contrário, deu razão: elogiou muito a Camurça, e botou porção de defeitos no burro; e a história da tal tinta, explicou para seu Clodulfo que, se tingissem o cabelo da cabeça, tinham também de pintar as sobrancelhas, a penugem das costas das mãos — e a pessoa haverá de fazer a barba todo santo dia. Se não — seu Americão era homem por demais sistemático — ia a
desandar por aí afora o seu José de Arimateia, ele disse, todo atavanado e chitado de rosilho numas partes, mouro de preto em outras, coisa que não assentava bem a um peão do Sassafrás! Toda essa atrapalhação, aqueles cuidados todos — tudo aquilo principalmente por causa das notícias que chegavam a Santana do Boqueirão. A volante, o capitão Eucaristo, o sargento Hermenegildo... Seu Americão às vezes falava que não acreditava muito nesses diz-ques — achava decerto que o governo não iria meter-se com sua vida, homem de prestígio que ele era. Outras horas, porém, dava de ficar cismado — se via. Mas não facilitava: de uns tempos para cá, então, começara ele a agir com mais cautela, a dobrar nas recomendações. Sobretudo quando o camarada saía em viagem mais delongada, obrigado a cruzar o Chapadão do Bugre. Desta feita, o velho até que relutara: não queria porque não queria. Assunto particular, lá dele, José de Arimateia, mas seu Americão achou de proibir, fincar pé. Acabou por ceder, acabou, mas foi porque seu Clodulfo havia entrado com muito j eito, ponderando, dando razão ao empregado: cinco anos j á, e era aquela a primeira liberdade que o rapaz pedia... Depois, o recado que seu Eulálio mandara podia mesmo ser para assunto de importância... Talvez o Tonico, siá Domingas... O Tancredinho aj udou também, insistiu tanto que, por fim, seu Americão teve de se dobrar. Mas ainda quis agourar, rogar praga: "Tem um trem me contando, seu Isé, que "ocê "tá caminhando mas é pra morte... O dono da sua vida porém não sou eu: que vá, j á que "ocês "tão teimando tanto... Mas não me botem a culpa depois!..." Coitado do velho: geniava, zangava, mas depois amansava e vinha dar conselhos: durma hoj e por lá, pouse acolá no fulano, amanhã: só me pare, em seguida, no sicrano..."E não me viaj e de dia, só me viaj e escoteiro!" E seu Americão Barbosa parecia que tinha mesmo muita fé, muita confiança no seu Torquato: "Depois que "ocê chegar no Torquato, se entregue a ele, obedeça a ele sem trastej o ou teimação!" Sim, era acatar as ordens de seu Americão Barbosa — José e Arimateia sabia que precisava de ser assim. E assim regia: a primeira noite, o trechozinho de serra do Porto do Paiol Queimado até a fazendinha do Pinhé, onde havia passado o dia com seu Valério Delegado; na outra noite — aquela em que estava viaj ando agora — que chegasse com tempo ao retiro do Nego da Castorina, pousasse, assuntasse, ficasse por lá até que anoitecesse outra vez... o mesmo com o seu Arcanj o, na Barra Limpa; depois, só depois então, é que vinha o seu Torquato... Camurça viaj ava, por sua vez, ocupada com muitos pensamentos. Mas não despregava os olhos da escuridão, entesourando orelhas sem descanso, atenta aos imprevistos do caminho. Em noites sem ventania — e noites assim eram difíceis no Chapadão do Bugre — davam de suceder mais novidades ao correr das viagens. Um calango surdo, ameaçado de repente pelas ferraduras, e a cruzar de instantâneo a estrada; uma coral enrodilhada no meio do trilheiro, fugida ao orvalho do capim sem nome; coruj inhas disparadas de supetão — ô susto! — embaixou voo flechado; manadas de vaga- lumes — brasinhas desinquietas a lusluzir rasteiras..., acende-apaga, apaga-acende, decerto que caçando coisas pelo chão. Mas naquela noite de vento estabanado, e um gelo de tão fria, nem ema, nem tatu, nem j aratataca, tampouco bichinho nenhum de menor porte saía em vadiação. Nos tucurus dos cupins barriga-mole, tudo fechado e escuro: nem uma luzinha acesa — eles que
gostam tanto de casa iluminada, mestrinhos em fazer serão! Sim, tudo sumido e deserto: vento e frio, apenas frio e vento. Camurça trotej ava vigilante. Deixou que corresse mais um bom eito da noite, levantou então os olhos grandes, procurou as cinco estrelas do Cruzeiro. Lá estavam elas, à esquerda agora, descendo em regiro preguiçoso. Longe, muito longe ainda os primeiros azuis da madrugada! Mas Camurça era um animal brioso. Soprou fora o desconsolo num suspiro fundo, e baixou de novo os olhos para o chão, voltando resignada à marcha viageira — penoso rompe-rompe pelos escuros daquela noite sem mais fim.
28
OS FUNDOS DO quintalzinho do
rancho davam para um navalhal brejoso, mal encapoeirado de chochas sangras-d"água e buritis. Nego da Castorina levara para aquele improviso de devesa a mula recém-chegada de viagem, escondendo-a, de embornal e peia, no suj o caponete. Água salobra e parada, milho miúdo e carunchado na capanga metida no focinho, amarrilho de couro nas mãos - aquele o pago que lhe davam! E mais: mutucas -as malditas mutucas listradinhas de verde e preto, nativas do Chapadão. Desde a madrugada, esquecida ali naquele purgatório, sem nem poder descansar dos sofrimentos da custosa marcha! Se deitasse, os ferrões passariam a puar no mole dos vazios, lá onde a vassourinha do rabo não lograva atingir devido ao estorvo das folhagens. Metiam-se por entre as setas do capim-navalha, sorrateiras: agulhadas que se encravavam fundo, fundo. E como sabiam voar silenciosas! Ela, Camurça, que podia ouvir um relincho a léguas de distância, e captar nas conchas das orelhas remotíssimo tropel — ela era incapaz de perceber o voej o delas, impotente para prevenir o pousar daqueles espinhozinhos venenosos. E amarrada, de embornal na cara, e de maneia nas mãos, ainda mais! Culpa de quem, se às vezes sofria tanto assim — do patrão, do Nego da Castorina, dela mesma? — Camurça se indagava. Não, seu Isé não tinha culpa, nem o Nego, tampouco ela. Mas, se fosse hoj e, talvez que a desgraça não houvesse acontecido — o patrão alertado a tempo, com prazo de fugir daquele povo traiçoeiro da fazenda de seu Tonho Inácio, e ir recomeçar a vida em outra parte. Os dois: ele e ela, que o destino de ambos havia mesmo de ser sempre um igual destino. Ah, se naquela época ela conhecesse o mundo como conhecia no presente — se tivesse a experiência de agora, a malícia aprendida no correr dos anos! A convivência com os peões da fazenda de seu Americão Barbosa valera-lhe muito — sempre j unto deles, viaj ando em sua companhia, escutando- lhes a conversa. Ela, Camurça, não falava, mas via e ouvia — bem que tudo percebia e em tudo reparava... Noites e noites j á passara de ronda pelos pousos, atenta ao primeiro assobio do patrão, mas de olho na camaradagem, orelhando o proseio da peonada. Perto de seu Isé eram só agrados, cortesias; longe dele, porém... Sim, Camurça se instruíra: sabia agora distinguir pessoas — as verdadeiras das fingidas, os amigos leais dos invej osos. E ela avisava ao patrão, ele entendia. Somente ele, mais ninguém, capaz de perceber o maneiro empinado de cabeça, e o leve coriscar de orelhas quando algum duvidoso se abeirava. E seu Isé de Arimateia nunca se punha à toa de resguardo, j ogava sempre certo naqueles desconfios... Ah, se pudesse ela voltar àqueles outros tempos, mas voltar com a sabedoria e a maldade que a vida lhe ensinara! Enxames de mutucões. Dos furozinhos deixados na pele pelos agulhões envenenados minavam gotas de sangue que logo se coalhavam ao mormaço entancado no paradeiro da devesa. Bastava o cheiro que recendia das picadas: todo o Chapadão, àquela hora, j á sabia da presença, ali no capãozinho do retiro do Nego da Castorina, da mula gorda, bem tratada, que correm logo tais
notícias, ainda mais se levadas por despachados bichinhos voadores. Abicavam bandos: muruanhas, cabo-verdes, marij oanas... — estas últimas as pequetitas, as de galante manchinha branca na ponta das asinhas pretas, mas de estilete mais doído que a sovela do vespão-cavalo. E maluquinhas pelo sangue das orelhas, que era onde as veias mais se salientavam, parecia até que por pirraça! E Camurça sem poder saltar, sem j eito de ir esfregar-se nos feixes de taboas, espoj ar-se nas socas de capim, meter-se de uma vez no brej o podre só com um restinho de ventas para fora! Camurça sabia que logo adiante, num pezinho solteiro de sarã, o inimigo vigiava. Ela j á tinha percebido um balançado melindroso de touceira, como se a delicadeza de uma aragem houvesse passado de passagem por ali. Vira o galeio manso do sarandi, ouvira também o segundo aviso: um assobiozinho gorj eado, finurinha de sopro mui sutil, distraída cantiguinha de urutu. A besta que brabeasse, perdesse o j uízo, se entregasse aos desatinos que as mutucas provocavam... Mas não: havia perigo não: Camurça conhecia as regras: olhar primeiro antes de ir avançando mãos, nada de bisbilhotices em moitas duvidosas, j amais andar de fasto; e, sobretudo, evitar estripulias, que é proceder que cobra mais odeia. Urutu-cruzeiro!...: morte sem remédio, o ofendido a se acabar em sangue pelos olhos, e nariz, e ouvidos. Mas vivente até que muito paciencioso e respeitador, quando não se inventa de ir mexer com a vida dele, agravar-lhe o gênio, atrapalhar o sono e os sossegos dele. Camurça estava com a razão. Tivesse em outros tempos a atual experiência, e talvez que nada acontecesse com seu Isé de Arimateia na fazenda de café do velho Tonho Inácio. Do patrão pouco conhecia, antes dessa época: um caso ou outro só, ouvido em reduzidas conversas dele com seu Arcanj o, nas viagens que os dois costumavam fazer j untos — isso nos primeiros tempos de serviço com seu Americão Barbosa. E, depois, se seu Isé j á era homem fechado por natureza, de conversa vasqueira, e inimigo de muita explicação, o raro que ele confidenciava perdera-se na memória de Camurça por representar passagens de somenos. Capinador de enxada, peão quintaleiro de fazenda, dentista andej o — esse o passado antigo dele. Sempre no trabalho — hoj e aqui, amanhã ali — vidinha aguada, sem sal, sem merecidas lembranças. Camurça viera a conhecê-lo nas terras de seu Tonho Inácio, aonde ela fora parar de cambulha com outros animais de tropa, tangida por mascate. Seu Isé de Arimateia negociara-a com o tangerino, desmadrinhando-a imediato da tropa viageira, e soltando-a na invernada da fazenda. E havia curado a dolorida postema na mão, arrancado o estrepe... Lembrava-se bem de tudo: da primeira noite no novo pouso, a fartura dos brotos macios do capim-provisório, dos outros animais do pasto. Muitos dias passara assim, num começo de boa vida, enquanto a mão sarava: à toa, solta o dia inteiro, ocupada só em comer, dormir, encher a vista de tanta novidade. A invernada era numa meia furna, ladeada de muitos morros, por onde subiam e desciam magotes de gente a pé e os grandes carroções puxados a animal. Se dúvidas surgiam — acabaria ela também assim, igual aos outros companheiros de pasto, acorrentada como eles àqueles carroções enormes? Chegar de volta, à noitinha, suada e ferida como eles, desconsolada e de cabeça baixa, desiludida de tudo também? — se tais cismas vinham às vezes tormentá-la, o bem-bom porém continuava, e o capim macio e adocicado refazia-a dos maus-tratos e canseiras da custosa viagem com o mascate. O patrão hora ou outra aparecia. Moço novo, seu Isé de Arimateia — um tipão avantaj ado, o castanho da cabeleira sempre desmanchado em ondas e topetes. O nome dela — Camurça — a mulinha ouviu então pela primeira vez numa dessas idas dele ao pasto. Caminhava no rumo dela, as pernas muito grandes, o corpo gingando desaj eitado, a voz grossa chamando repetido: "Camurça, "murça, "murça..." Boba e sem nenhum preceito que ela era: o que soube foi disparar a galope, feito
doida, pela invernada fora! Poucos dias depois voltou ele ao pasto — seu Isé mais seu Persilva, o amansador do burrame dos carroções, lidador de toda a animalada da fazenda. Os dois vinham montados, e foram-se achegando a trote, seu Persilva de laço pronto na mão. Nesse dia o patrão não esperdiçou tempo nem gastou fala, sentido ainda decerto com o papelão da mulinha — o fiasco da tal carreira sem propósito quando seu Isé se abeirava dela chamando-a pelo nome, com bons modos. Camurça ainda tentou o galope, mas o couro certeiro laçou-a em cheio no pescoço, num chascão que a fez empinar, rodar nos cascos, e pranchear de chapa no chão do pasto. Nem bem se levantara, e j á o seu Persilva, desamontado e do outro lado do arame, volteava o laço num esticador da cerca. A outra corda — um sedenho preto, dos que espinhavam e queimavam mais que taturana — essa o patrão arrochou-a nas pernas, bem na altura do osso da canela, j untando as duas numa perna só. A pobre ficara assim que nem trempe mal equilibrada, e um tranco apenas do patrão derrubou-a de novo... Não, nem de se lembrar daquilo Camurça não gostava. Reagira, sim, reagira... — mas para experimentar o agudo da dor de um cabo de relho calcado no macio das virilhas, o ardume das lambadas no bico das orelhas, a torquês dos dedos de ferro de seu Persilva a lhe esmagar e a torcer a batata do focinho... — tudo isso enquanto o patrão martelava-lhe os dentes por sobre os beiços com o duro catiguá de alecrim que, a partir daquele dia, e por outros, muitos outros dias, ele nunca esquecia de carregar dependurado no
arção da sela... Tivera ódio do patrão, tivera. Mas um ódio sem rancor, ligeiro, passageiro. Ah, de seu Persilva, porém! Não, nunca mais o vira, depois que haviam, o patrão e ela, saído da Fazenda do Capão do Cedro. Mas o ódio que ela, Camurça, guardava do malvado capataz, esse é que nunca, j amais, haveria de passar. Paradeiro, mormaço. Nem uma aragem, da mais leve, vinha bulir com as folhas desconsoladas do buritizal — inúteis contra o sol que passava por elas como se não existissem. Apenas o calor mexia — mole, gordurento. E a sede apertava, a água do brej o mostrando-se logo adiante. Três, talvez até que dois saltos de mão maneada dessem para alcançar a primeira poçazinha que espelhava por detrás de um touço de samambaião... Enfiar a cabeça na água até que se encobrissem os olhos, o embornal se enchesse bem... Camurça pensava, pensava. Dois, três pulos até a poça d"água... — mas, e a cobra? Apesar do inferno das mutucas, a besta não se esquecia de continuar vigiando a moita de sarã. Se, primeiro, o balanço das varinhas a alertara do vindouro solerte e vagaroso, e logo em seguida o assobiozinho distraído lhe contara o nome dele, agora era uma disfarçada abertura em leque que os raminhos figuravam — sinal de que o urutu resolvera armar no meio da touceira a rodilha de três voltas. Cobra venenosa? Matadeira? Até que pelos modos, não: sempre assim num quase-sono, a cabeça em descanso na última laçada, o pescoço em leve dobra displicente... Mas — ah! — fosse alguém acreditar naquela santidade! Aqueles olhos não se fecham nunca: apertam-se apenas em frincha maliciosa, por detrás da qual tocaia um coração de pedra. E aquela postura descansada — a tal rodilha de três laços — aquilo é peça inteiriça de cipó dos mais rebeldes, enroscado em espiral e a custo refreado por uma paciência mais teimosa ainda. Mola vergada ao fim, relâmpago mal seguro.
Ah, se cutucassem, bulissem ali, se roçassem, ao menos, pela sombra do pezinho de sarã! Seu Isé de Arimateia demorava. Dormia ainda com certeza, coitado, no
paiolzinho do retiro — mal aj eitado nos pelegos atirados sobre os caroços das espigas de milho — viveiro de ratos e morcegos. Ignorava decerto a j udiação do Nego da Castorina, o
pesteado capãozinho-de-mato para onde o retireiro fora levar a besta companheira. Mas j á-j á o patrão acordava, vinha vê-la, haveria de tirá-la da devesa amaldiçoada. Tirava sim, capaz até de desfeitear o Nego da Castorina, logo visse o encalombado das marij oanas, os rabiscos de sangue que porej avam das feridas sem mais conta. O — todo marcado — j ustamente o — tão cuidado pelo cavaleiro luxento, pelas próprias mãos dele limpo e escovado todo dia! Amigo como ninguém, o patrão — e pensar que j á o odiara tanto, tanta maldição e praga j á rogara contra ele! Mas, pudera... : durara semanas, meses, a terrível provação da quebra e do costeio. O barbicacho de couro retorcido, a rédea em boca mal curada... Hoj e, passados j á aqueles desgraçados tempos, hoj e Camurça reconhecia que, em vez de ruindades para com a burrinha ignorante, ele tinha tido mas era muita bondade e paciência. Fosse o carrasco do seu Persilva! Esse j á vinha de bridão, e taca, e espora — e logo no começo do repasse! Ela, Camurça, vira muito disso na fazenda do seu Tonho Inácio, um desalme sem perdão — assim de animal novo e de futuro estragado para o resto da vida, sem préstimo mais nenhum até para as correntes e varais dos carroções e carga. Camurça lembrava-se muito bem daquela primeira vez no pasto, o tal dia em que seu Isé a derrubara depois de laçada e peada pelos pés... Ela tivera de passar a noite toda de cabeção e focinheira, o sedenho roendo-lhe as canelas, cabresto amarrado curto no esticador da cerca... Mas ela lembrava-se também quando, no outro dia, o patrão voltou sozinho e de a-pé. Abeirou-se naquele andar descansado e pernalongo, levou-lhe uma das mãos à altura do focinho, firmou nos enraivados olhos dela os olhos mansos dele. E chamou-a outra vez pelo nome... Fora um quebranto a cantiga repetida, quente: "Camurça, "murça... "murça...". E ela não resistira, se entregara. Um trino de tiziu saltitou, contentezinho, no ar parado da devesa. Orelhas em chifre de veado novo — duas pontas a prumo, muito tesas — Camurça reabriu os olhos, prendendo a respiração. O chirrio vinha da moita de sarandi — sim, o trinado era ele, o urutu. Decerto divagava também, sabe lá Deus em que muitos pensamentos... — sossegou Camurça, depois de ver os raminhos da planta abertos ainda em disfarçada volta, mostra de que o enrosco de três laços continuava armado na touceira. A cobra cantigou, cantigou, mas não demorou muito em calar-se novamente. Tudo, tudo silencioso como em antes. Só o mormaço a espreguiçar-se vagarento, e os mudos, os malditos ferrões de fogo das mutucas do Chapadão.
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O
rancho DE PAU-A-PIQUE e o
paiolzinho de madeira branca, isso a simplória sede do retiro onde morava o Nego da Castorina. E um piquete de arame e pau-candeia em que se recolhia, ao esfriar da tarde, o minguado gadinho leiteiro, desconsolo e magreza de dúzia e pouco de vaquinhas cabeludas. Sentado na ponta de um cocho de aroeira — aonde fora o Nego buscar a riqueza daquele pau impossível nos campos do Chapadão, vasqueiro até mesmo nas manchas de terra boa da Serra Grande? — sentado no cocho, e ocupado no servicinho de separar cabeços de palha fina no balaio de espigas que catara no
paiol, José de Arimateia esperava o escurecer. Dali podia vigiar os limpos que se alargavam pela planura, com bastante tempo para esconder-se, caso apontasse nos longes da estradinha algum chegante de improviso. Nego da Castorina terminara a apartação dos bezerros e viera cocorar-se de par com o companheiro. — O senhor deve de conhecer sim: o atalho que passa pelas Primas... Tem uma errada, mas é só no corredor; a porteira certa é a
tronqueirinha de arame liso — o senhor pega por ela, arrodeia a cabeceira de um resfriado de buriti, e vai sair nos currais da fazendinha. Descarece até de entrar : a gente segue pelo esquisito que renteia a cerca do pasto até dar num esticador encarvoado de fogo, e ali torce à direita. Logo adiante é o corgo... O retireiro explicava, explicava, o outro ouvia sem ouvir a lenga-lenga. Cansado de conhecer aqueles caminhos todos do Chapadão, José de Arimateia pedira entretanto ao Nego da Castorina — só para não ficar de todo sem desculpa — para lhe ensinar a estradinha do Carmo da Chapada — um arraial distante, j á na vertente de águas do Ribeirão da Corda, no lado oposto do espigão. Se o Nego da Castorina duvidava do rumo perguntado — tão mais fácil de seguir o cavaleiro pelo galho da boiadeira que rodeava a serra! —, acreditasse ou não, o certo é que nem de leve demonstrava: — A
tronqueirinha de arame liso. Se pegar a de vara, o senhor vai mas é parar no seu Arcanj o... — o Nego falou, e só não riu devido à cara séria do viaj ante. Ali havia coisa, havia — banzava o Nego da Castorina. Chegado assim tão fora de horas — a noite braba de frio e vento... — seu Isé de Arimateia, antes mesmo de entrar no
rancho, j á perguntava por um recanto retirado onde esconder a besta... E só aceitara como pouso o
paiol de pau corrido, assim mesmo depois que ele, Nego da Castorina, lhe garantira estar sozinho — somente ele mais a Sinhoca — no paradeiro do retiro. E, enquanto esperava a velha preparar cachaça quente com canela e açúcar preto, seu Isé ainda achara de completar a desculpa: "... um recado urgente de seu Americão para um conhecido dele, lá no arraial do Carmo..." Ora, se a coisa urgia assim, a ponto de ter o positivo enfrentado o mau tempo do Chapadão, por que aquele dilate da viagem, parado e à toa a tarde inteira no retiro? Homem despachado, cumpridor de obrigação, o seu Isé... — e, entretanto, fazendo hora sem precisão... Pura mitragem dele, mitragem de seu Americão Barbosa... Mas a regra era aquela mesmo — o Nego da Castorina sabia, empregado antigo que sempre fora de seu Americão. Batido de cangalha para burro entender... Se um dia alguém viesse especular, querer saber para onde tinha ido o José de Arimateia naquela viagem, a resposta j á ficava guardada de prontidão: o arraial do Carmo da Chapada, a umas boas cinquenta léguas ali do retiro da Barra
Limpa... No barro seco do curral, o corpo lustroso do urutu-cruzeiro. Cabeça rasgada de fora pelo tiro, a cobra só servia agora, espichada ali no chão, para atrair o bandinho de varej eiras que vinham desovar no sangue coalhado da ferida. Nego da Castorina prosseguia na falação, mas tão sem importância era a conversa dele, que José de Arimateia interrompeu: — Quase que fico hoj e sem a Camurça... De braça de comprido assim, este é o primeiro urutu que eu vej o... — Pois na queimada do outro ano matei a foice uma ninhadona de quase vinte crias... — o Nego retrucou. — A mãe era pra ter pra mais de palmo que este aí. Das pretas... Um tiro só: o preceito do Arcanj o — voltou-lhe o preto velho novamente à cabeça. "Quem ficar na fiúza de segundo tiro, quase sempre nem chega a puxar de novo o gatilho..." o Arcanj o falava. E não negava ensino de pontaria a quem lhe fosse pedir explicação. Pacienciava: "Agora, seu Isé, me feche os olhos... Me aponte com o dedo o tamborete... a porta... o
arreio dependurado... a Nossa Senhora da folhinha da parede..." Isso, para o principiante andar sempre de prevenção, observar, treinar e guardar na memória as coisas que fosse vendo. Difícil era manter o cotovelo preso ao vazio da barriga, o corpo imóvel, apenas a mão movimentando-se, rápida, na direção mandada. Engraçado como a cabeça, por si só, guardava o rumo certo das coisas esquecidas por detrás das costas! Primeiro com a mão direita, a mão esquerda depois. Só mais tarde, quando ele, José de Arimateia, desenvolvera a agilidade, foi que o Arcanj o deixou que ele apontasse de olho aberto, e atirasse verdadeiro. Mas sempre de cotovelo preso, as pernas afastadas e firmes no chão, a mão ziguezagueando que nem corisco: "Ali, a moitinha de gabiroba! O esteio, agora!... a tábua de baixo da porteira!..." E ainda havia mais: atirar deitado, atirar agachado, atirar correndo... de a-pé e de a- cavalo... Por fim, o Arcanj o é que atirava, para o principiante ver. Pontaria assim, tal rapidez e tal certeza no tiro, aquilo só podia ser milagre, efeito de caborj e ou benzeção! Era o treino, rara a semana em que o negro não aguçava ainda mais o golpe de vista, torando cabeças de periquitinho disfarçadas no verde alto das copas de coqueiro, arrombando fundos de casa de j oão-de-barro sem que a bala ao menos rabiscasse na portinhola de entrada. E ainda divertia o povo da fazenda com seus ditos: "O que cura ferrugem é fumaça" respondia o Arcanj o, quando alguém achava de reclamar desperdício tamanho de munição. Negro e tanto! Companheiro igual assim, só se nascesse outro Arcanj o da Barra Limpa! Sol ainda mais de meia braça de fora, e o frio j á chegava. O vento também: as pontas e pés-de- palha que sobravam do corte caprichoso das mortalhas escolhidas por José de Arimateia j á se espalhavam pelo chão do curralzinho. Os bezerros se espremiam em roda, preparando-se para o tormento da noite que vizinhava. E punham, os coitadinhos, mais tristeza ainda nos soluços dos berros espaçados. Não fossem as ordens de seu Americão e, há que tempo, estaria j á na Barra Limpa, matando as saudades do amigo Arcanj o — José de Arimateia começava a impacientar-se. Passar primeiro pelo seu Valério, passar depois pelo retiro do Nego... dar tanta volta, só para satisfazer ao capricho do patrão! Camurça, essa, então, j á teria se fartado no canavial, se enchido de milho e rapadura... Siá
Tuta ia matar capado, fritar torresmo, ia temperar do j eito que só ela sabia o franguinho-caboclo, o molho de manteiga-de-leite, muita salsa e cebolinha-verde, assim de pimenta-cumari... A santa da siá Tuta cuidava dele como de um filho, olhava-lhe a roupa, remendava, pregava botão nas camisas dele... E que farturão em casa! Rego d"água e monj olo, gado de criar até que mestiçado, muita galinha, e pato, e angola no terreiro, o chiqueirinho cheio, horta de couve, fruta à vontade no quintal... Nego da Castorina conversava. Queria saber notícias do povo da fazenda de seu Americão Barbosa, especulava novidades. Em uma ou outra pergunta José de Arimateia atentava; mas muitas delas nem ouvir ouvia, distraído, ausente. Voltara a espiar a urutu, sozinha agora no chão, corrido dali pelo vento frio o bando de varej as botadeiras. Um tiro só, de trinta-e-oito! Cano curto, de dois dedos, serrado pelo Sancler Reloj oeiro, de mira na ponta só para não enfeiar a arma — que outro préstimo a tal pecinha não tinha mesmo nenhum. "Cano longo é luxo, papiata; revólver bom de atravesso, mas tiro sem confiança" — ensinava o Lico da Isoldina. E dizia porque: "Quanto mais comprido o cano, mais raiado o cuj o é. A bala corta veloz, rodopiando tal qual piorra. Em tiro de garrucha ou cano curto, o chumbo sai meio solto, bêbado de tudo, e fica saracoteando por dentro do corpo de quem recebe..." Palavras do Lico da Isoldina, palavras também do cônego Trindade, padre e doutor formado, que assistia no comércio da Laj inha. Esse nem abrir barriga de gente baleada abria, quando lhe contavam que espécie de arma de fogo fizera o estrago. Cônego Trindade era homem positivo: "Se é serviço de garrucha, o mais que posso fazer é encomendar a alma..." Pena que o Arcanj o não tivesse visto: tiro de trinta-e-oito, o cotovelo calcado na virilha — tudo de acordo com os preceitos dele. Os olhos firmes nos olhos do urutu, a mão sozinha puxando fogo, a cabeça da cobra pinchando, num salto, para trás, a beleza do rodeiro se derretendo... Diziam que era o veneno que ficava vivo assim — peste ruim de bicho amaldiçoado! —, o corpo estrebuchando em desgovernos. Na fazenda, quando chegava dia de matação de porco, era o Florentino, peão de casa de seu Clodulfo, que gostava de vir com a brincadeira. Arranj ava um pedação comprido de tripa, dava nó numa das pontas, e soprava, e soprava, até que aquilo virasse uma linguiça grossa. Fechava então a outra ponta, e com fumaça de lamparina, pretej ava o canudo cheio, deixando de propósito umas partes sem pintura. De noite, quando a peonada se reunia na cozinha, o serelepe, escondido atrás da porta, furava o estrupício com alfinete, e j ogava a coisa no chão. Jogava e berrava: "Olha a cobra!" Havia sempre gente novata na fazenda, e os antigos aj udavam na fingição. Até em tesoura de telhado muito peão subia, a cobrona j aguanês chiando pelo furinho do alfinete, de onde o ar escapava. E aos botes, aos corcovei os, a danada, tal qual j araracuçu-do-papo-branco! A mulher trouxe a cachaça e o bule de café quente, e avisou que a paçoca de carne-seca j á estava pronta na capanga. José de Arimateia misturou o roxo-forte e bebeu uma cuiada cheia. Olhou o tempo: o sol, inteirinho de fora, clareava ainda todo o chapadão. Dava prazo mais um cigarro antes de arrear Camurça — calculou. E sem nenhuma pressa, começou a grosar a palha com a folha do canivete. Nego da Castorina teimava em puxar assunto: — Estou aqui, estou pensando... O senhor se recorda do Tonico Cascavel? — Tonico Cascavel?! Hm-hm: alembro não... Camarada da fazenda, em antes de eu chegar? — Ah, é mesmo... Quando o senhor apareceu no Sassafrás, ele j á tinha deixado o serviço. Outro dia, me deram notícia dele mascateando fumo pelos lados de São Domingos... Toda vez que vej o cobra, me alembro do seu Tonico...
José de Arimateia bateu a binga-de-fuzil e acendeu, pachorrento, o cigarro. Tragou fundo a fumaça, e perguntou: — Por quê? Homem assim valente? — Valente? Escuta só... O nome dele, naquela época, era Toniquinho Leva-e-Traz. Era uma espécie de recadeiro de seu Americão, pessoa sem serviço certo. Um dia, voltou de Santana do Boqueirão todo entusiasmado, trazendo um viaj ante de remédio — um homão alemoado, de cabelo rapado rente, e óculo num olho só. E que gostava de mexer com cobra, trocando as bichas vivas por inj eção. Aceitava de tudo: coral, capitão-do-mato, capitão-do-campo, j araraca... até aranha- caranguej eira, lacraia e escorpião. Só cobra muito perigosa, esses outros unzinhos venenosos também. Apreciava, porém, mais de primazia, as matadeiras: urutu, j araracuçu, cascavel... — Já me falaram — disse José de Arimateia. — Diz" que preparam inj eção com o veneno delas... — Isso. Seu Americão deu pouso pro homem, e arreuniu, de noite, a peonada no alpendre da fazenda, para escutar o alemão. Ele trazia muito reclame na mala, porção de retratos de cobra, tudo colorido e em ponto grande. E ensinou como é que a gente deve de fazer para pegar elas vivas. E, depois, como pôr elas num caixote de buraquinho, despachar de trem de ferro. Lá, eles recebem as cobras, preparam o remédio com elas, mandam pra gente a inj eção... — Mas, como é que o tal homem pegava as cobras, vivas? — Facinho, seu Isé... Vista a bicha, é só mexer com ela, obrigar ela a dar bote em seco, chuchando a rodilha com um pau comprido. Até que a cobra desanima de tanto investir no pau, e começa a fugir de rasto. Aí, a gente prende a cabeça dela no chão... — o senhor sabe: o pau tem uma forquilhinha na ponta... — Mas com urutu a toda é diferente... — atalhou José de Arimateia. — Isso aí — e apontou com o queixo para a cobra estirada no curralzinho — isso aí é onça fêmea no vício... Quando dá de achatar o corpo, e roncar, não tem alemão que chegue perto. A gente nem enxerga: é bote um atrás do outro, mais pior do que tiú... Costumam até se suicidar, ofendendo por engano o rabo delas... — na raiva, ferram as presas em tudo o que atravessa na frente! — Pois o alemão explicou diferente: qualquer um pode chegar até bem perto, que o bote não passa do tamanho da cobra... — Ora, seu Nego da Castorina... Que conversa mais boba! Já me vieram também com esta lereia... E caninana? O senhor decerto j á viu: dispara atrás da gente, que chega a voar mais de palmo acima do chão! — Mas caninana é cobra à-toa, sem veneno, seu Isé... O alemão, o seu Ermute — ah, j á andava doido para me lembrar do nome dele! — o seu Ermute ensinava que quanto mais mortal a cobra, mais sossegada ela é. O que não se pode é bulir com ela. O senhor não vê cascavel? Em trilho de gado acontece muito: o gado vai passando, vai passando, e a cobra quieta... Encolhida no enrosco, mexendo só com o rabo, sacudindo o chocalho. Sacudindo e avisando... Até que, uma hora, ela enj eriza, acaba perdendo a paciência, e lá se vai uma rês... Caninana, não. Braba daquele j eito, investideira, mas só presta para comer as outras. Tem pessoas que amansam elas, e criam aquela noj eira em casa, por via de rato e gambá. Aqui mesmo, na chapada, tem um moreiro, o seu Restivo, que ensinou uma dessas a mamar em peito inflamado de rês. É muita gente que j á viu a caninana esgotando vaca de leite no curral... Se o outro deixasse, Nego da Castorina não parava mais — animado decerto pelas cuias de roxo- forte, e também pela atenção do companheiro. José de Arimateia cortou-lhe, porém, a falação: — Mas, e o tal Tonico Cascavel? — Ah! Esse não largava o viaj ante. Seu Americão gostou tanto do cometa que segurou ele por muitos dias na fazenda. Misturado com os retratos das cobras, seu Ermute tinha um saco grande,
cheio de outros saquinhos de papel, tudo semente de horta. E deu um pouquinho de cada uma pro seu Americão, ensinou também como é que plantava... não vê que até menino ele batizou no Sassafrás? O senhor deve de conhecer... "tá rapazinho hoj e... o filho do seu Aniceto... Seu Aniceto Benzedor... — O Chernovites? — Pois foi. Seu Ermute é o padrinho dele... — Mas, e o tal Tonico Cascavel, seu Nego? — Já lhe conto. Homem fino, baseado... Lá na fazenda tinha um nelore de umbigo perdido, e o seu Ermute resolveu fazer uma operação no boi — e pois não é que o marruás escapou?! Homem engraçado... carregava de tudo na valisa: navalha, tesourinha de unha, agulha e carretel, remédio... até uma maquininha de aparar cabelo! Tomava banho quente todo dia, na baciona de seu Americão, e botava perfume na água. Andava sempre desbarbeado, cheiroso... O Tonico embelengou com o viaj ante — enrabichou — sempre de par com o alemãozão, paj eando ele. Pois o senhor não acredita que um dia pediu de emprestado a água da bacia, depois que o seu Ermute tomou banho, e o seu Ermute emprestou? ! E então toda noite o Toniquinho aproveitava, e aparecia num extrato que dava gosto! A peonada foi que caiu em cima: tinha um, o seu Tonho Cateto... — Esse eu conheci. Mas, e o Tonico Cascavel, seu Nego? — Não lhe conto nada não, seu Isé... Pois um dia — o caso se deu muito tempo depois que o seu Ermute foi-se embora — um peão de gado veio avisar pro seu Americão que devia de ter alguma cobra no pastinho dos bezerros, pois j á era a segunda rês ofendida que falecia no pasto. E o sobressaído do Tonico Leva-e-Traz apresentou-se imediato: "Deixe essa por minha conta!" E, muito assanhado, foi torar um pau de goiabeira, caprichar na forquilha... E bateu pro pasto. Isso foi na horinha do almoço, coisa assim das nove, nove e pouco... De tarde foi que deram pela falta dele. Seu Americão se lembrou da história da cobra, e gritou o povo. Tocamos todo o mundo pro pastinho... Nego da Castorina calou-se para pedir fogo ao companheiro. José de Arimateia passou-lhe a binga, e estumou: — E o senhor? Estava j unto? — Eu fui também. O senhor conhece a invernadinha da Saracura: é aquele j araguazinho que beiradeia o corgo do fundo da casa. Chegando no pasto, a peonada abriu: uns renteando a cerca, outros por dentro do capinzal, seu Americão mais eu pelo suj o da beirada do corgo... Não demorou muito, e um peão ecou: "Olha o homem! Corre aqui, pessoal !" Foi um pampeiro, seu Isé. Seu Americão correu, eu corri também, e chegamos no átimo. Ah, não lhe conto mais nada! Sentado no chão, num carreirinho de gado, o Tonico estava que só gemia... De olho arregalado, a boca aberta, e a língua botada de fora... — Ofendido da cobra... — Vai escutando: até hoj e, quando me alembro desse caso, me arrepeio. O senhor, se um dia topar com ele, vai ver : o Tonico é hominho xibiu, magricelo... e o braço dele, esticado, não gasta nem dois palmos do meu. O lugar era uma cabeceira de resfriado, perto duma mancha de embaúba. Fui chegando e fui vendo. E pois não é que até pensei que fosse j iboia, sucuri, quando enxerguei o Tonico de rolo com a cobra? Quando escutei o chocalho do rabo tinindo alto foi que compreendi: o rapaz "tava mas era atracado com um baita de cascavel ! Da grossura daquele pau-candeia ali... e j á puxando pra preto, de tão erado! Nisso, o resto do povo chegou na carreira, e o Teixeirão gritou: "A bicha "tá no garfo! Olha a mão do Tonico lá na garganta dela!" — Pega a unha, a cascavel? ! — Pro senhor ver... Mas vai escutando, seu Isé. O Toniquinho "tava mesmo grudado no pescoço da cobra, e a monstra babava, de bocão escancarado, escorrendo espuma... Cada presa de dente que
era isto de mais de chave! — Ixe! Também assim é demais, seu Nego! Criada assim, nem unha de bandeira! — E lavadinhas de brancas, seu Isé, a dentama relampeando... O linguão de palmo, aquilo sacudia tal qual rabo de cachorrinho de estima quando vê a gente! O Tonico, de braço espichado e pescoço torto, nem mais olhar para a banda da cabeça da cascavel ele olhava... de tanto de bafo
pesteado que a lazarenta soprava nele! — Então, deve de ter ficado sardento de tudo! E o chocalho, era grande também? — Grande? Bota grande nisso, seu Isé! Tinha para mais de vinte contas-de-guizo! O senhor conheceu o defunto Teixeirão, aquele vaqueiro de cabeça pelada... Pois então o senhor deve de estar recordado: o guizo andou de simpatia, por muito tempo, na corrente de um bingueiro de prata que ele usava. Aquilo, vivo no rabo da cobra, era uma cigarra no pino do calor... José de Arimateia vigiava o sol. Quase todo de fora ainda — só um chanfradinho de nada cortado pela quina longe do espigão — e entretanto o frio j á acinzentava a tarde. O vento zumbia alto, j udiando da chorosa ciranda dos bezerrinhos embolados no lado de fora da cerca. — Está na minha hora, seu Nego. Vou mas é tratar de arrear minha besta... Mas, e daí? E o tal de Tonico? — José de Arimateia perguntou, levantando-se do cocho. Nego da Castorina desacocorou-se também, e acompanhou o outro. Continuava a história: — Aquilo que eu lhe falei: os olhos, de fora dos buracos, fincados na gente; a boca aberta, e uma gemeção de cortar... O pescoço, esse decerto j á estuporado de tão torcido, mo"de o bafo da cascavel. O Teixeirão foi quem acabou com aquela agonia: avançou o corpo, levou a mão zona dele em cima da munhequinha do Tonico Leva-e-Traz, abarcou ela mais o pesçoço da cobra, e arrastou Tonico com cascavel e tudo até firmar a cabeça da bicha no tronco da embaúba. Aí, o Teixeirão acabou de matar a excomungada... — A pau? — Que mané-pau nada! A faca! Com a mão direita agarrada na munheca do Tonico e no pescoço da cascavel, o Teixeirão enfiou, com a mão canhota, a ponta do j acaré bem dentro da goela da cobra, e espetou a cabeça no pau da embaubeira. Ei bicho Herodes, seu Isé! O senhor carecia de ver a campanha que deu pro Teixeirão ficar livre do enrosco caquela cobra! Depois de morta, o facão enterrado até quase que o esse da cabeça dela, e a desgranhenta ainda laçava os braços e o pescoço do peão, e o chocalho aí que disparou de toada! E a estrumelinha aj udava a relhar a cara do vaqueiro, cada lambada de deixar vergão! — Mas como é que esse tal de Tonico foi acabar daquele j eito, envolvido com essa tal de cobra? — Pois o importante "tá aí ! Tivemos de levar ele carregado para a fazenda, que o desinfeliz "tava inutilizado sem mais arrumação. O mais pior era o mau hal"to que exalava dele: tinha suj ado na roupa, e catingava pior que j aratataca... Ficou de resguardo um par grande de dias, curtindo um febrão. O senhor sabe como é essa raça de cascavel-de-quatro-ventas: até o vapor é venenoso! Pois o rapaz ficou muito tempo de cama, e depois foi que contou. Disse que bateu a invernadinha toda atrás da cobra — campeou que campeou — até que foi topar com ela amoitada na touceira de j araguá. Ali que ela ficava de tocaia, esperando o gado vir beber. De goiabeira na mão, o Tonico cutucou a rodeira, e a bicha boteou no pau, certinho como o seu Ermute Alemão tinha ensinado. Depois enj erizou ela bem, e quando a cascavel ia fugindo de rasto, aí o Leva-e-Traz fincou a forquilha por cima da cabeça da bicha. Foi facinho... — ele contou. Feito isso, levou a munheca no cangote dela... — até que o rapazinho teve coragem, hem seu Isé? — levou a mão, abotoou, e soltou de banda a forquilha... — Nossa!
— Pois então! O senhor j á "maginou?! Mesmo que querer "guentar marruás no laço, em curral sem pau de esteio. A cascavel, enroscada no bracinho do Tonico, tinha hora que inchava o pescoço, estufava, estufava... e depois esmagrecia de repentino, caçando j eito de escapulir... outras horas, era encolhendo o corpo, engruvinhando — assim que nem mandruvá — para ver se forçava e dobrava o braço dele, doidinha pra dar ao menos uma raspadinha de dente... O senhor conhece força de cobra... E depois, o corpo delas não firma direito, estica e desestica, remolgueia... Mas o Tonico "guentava. Só não podia, coitado, era largar mais a cobra, e nem voltar pra fazenda... — Veio a maleita, decerto... — Dis" ele que veio. E que deu cãibra tam"ém, e tremedeira e fraqueza nas pernas. Falou que foi o bafo da cascavel que enj oou o estômago e desarranj ou o intestino. E é um bafo fedido e venenoso mesmo, seu Isé, pois o Toniquinho ficou por completo sem pestana, coalhado de sapiroca nas vistas, e de sobrancelha amarela nas ponta"... — Mas por que não gritou, não chamou gente? — perguntou José de Arimateia. — Ora, seu Isé... Nessas horas... Depois, o senhor não viu que o pobre entrevou? Só gemia... José de Arimateia acabara de arrear a Camurça. A Sinhoca j á esperava por ele, na portinha do
rancho — nas mãos a capanga da matula e mais o meio litro do café pingado. O viaj ante puxou a mula pelo cabresto, e entrou com ela no piquete. Pendurou o surrãozinho de sola no
arção da sela, pendurou também a capanga, e começou a vestir a capa gaúcha, de roda. E segurava ainda um risinho espremido quando cuspinhou, virando-se depois para o Nego da Castorina: — Seu Tonico Cascavel !... Assim pelo rompante do sobrenome, até eu mesmo pensei que o porquerinha fosse coisa que prestasse... Barreou perna abaixo, é? Destemperou? Escuro j á de todo quando José de Arimateia alcançou o corredor da estrada boiadeira. Mais tarde de que na véspera — e mais desbotada ainda — é que se iria acender a minguante, branca aparazinha renquém. "—... passando pelas Primas o senhor atalha..." — achara ainda de explicar o Nego da Castorina. Como se ele, José de Arimateia, não conhecesse os palmos todos daquele chão. Logo mais adiante, por exemplo, viriam os restos de um
rancho de pouso antigo: apenas o cocho furado dentro do curralzinho j á quase que todo no chão, e um só esteio de peroba. Aquele cocho e aquele esteio, e os restos j á podres da cerca: os últimos sobej os da morada de seu Merêncio. Podia-se adivinhar como aquilo se fora acabando, depois que o velho adoecera do sangue: a coberta de capim, as paredes de madeira branca, os demais esteios da tapera em derradeiro... — tudo virado em lenha, queimado aos poucos pelo fogão tropeiro das comitivas que ainda teimavam em falhar por ali. O vento acabara com o mais, carregando com as cinzas das fogueiras e o estrume do gado, de ano a ano mais raros. Coitado do seu Merêncio: só o cocho e o grosso atoa de peroba — no topo desse, decerto, o graúdo e preto, e enseboso papo de barro da caixa de abelha-arapuá. José de Arimateia passou pelo acabado ponto de pouso de seu Merêncio, passou pela
tronqueirinha de arame liso. Só aí foi que Camurça apertou de repente o trote — a bichinha se lembrava do caminho! — para estacar poucas braças mais adiante, orelhas espetadas e cola satisfeita a varrer na escuridão. O cavaleiro apeou, correu os varej ões de pau, e deixou a besta atravessar sozinha. Somente montou de novo depois de reencaixar as varas nos moirões, e golar, sem pressa, um trago ainda quente da garrafa que foi tirar do surrãozinho de sola.
Naquele furta-passo, largo e bem disposto, Camurça alcançaria a sede da Barra Limpa antes de mear de todo a noite. Ia pegar de surpresa o Arcanj o! Os dois; siá Tuta e o preto velho... Sem nenhuma preguiça de enfrentar a gelada noite de cinco léguas, foi que José de Arimateia enterrou o queixo na gola erguida da capa, e endureceu um sorriso nos olhos castigados da ventania.
30
— ESSES DOIS — se ria siá Tuta, contentezinha também ao ver a cara boa do marido e de José de Arimateia, a perguntação de um pelas novidades do Sassafrás, a especulação do outro pela vidinha ali da Barra Limpa. Prosão — siá Tuta sabia — assunto de durar resto de noite adentro, madrugada e dia afora. E conversa de cozinha acesa, o espeto gordo de carne de sol pingando manteiga nas brasas, a mesinha coalhada de queij o, quitanda e doce. O rabo do fogão — ali no Bugre costumavam espichá- lo assim por causa do frio — tomava o comprimento restante da parede, e era em cima dele que os dois amigos se acocoravam, pratos ao colo, quentando fogo e comendo. A notícia de mais interesse eram os boatos da Captura: — Agora, "tão dizendo que o aperto vai ser mas é aqui no Bugre — José de Arimateia relatava. — Veio para Santana do Boqueirão um j uiz de direito novo... "cê j á deve de saber... Vive desencravando processo, ameaçando levar todo mundo a j úri, querendo pôr a gente na cadeia... — E seu Americão? — perguntou o Arcanj o. — No começo não ligou. Mas anda meio assustado ultimamente. Não queria, nem ver, deixar que eu realizasse esta viagem. "ocê carecia de escutar os conselhos dele, o medo d"a volante me pegar pelo caminho... Enquanto falava, José de Arimateia prestava atenção na cozinha, admirava o capricho de siá Tuta. O fogão de forno com as beiradas forradas de folha de lata, areadas ver um espelho; panelas, pratos, talheres — tudo relumiando também, alinhado em seus lugares, as prateleiras forradas de pano de saco branco, embainhado, uns até que com linha de bordar, de diversa cor. O chão de cupim socado, varrido, sem um suj inho sequer. As cabeças de palha, os sabugos — a lenha do dia seguinte j á picada e empilhada, se secando ao calor do fogo. E a fartura: as latas de banha e farinha — as rapaduras; o balaio de ovo, toucinho e linguiça pendurados na corda de cima do fogão. Os cachos de banana. Pote d"água tampado, a caneca de folha dente de piranha — a de tirar a água do pote —, a canequinha de beber, pendurada pela asa, de boca para baixo. Tivera sorte, o danado do Arcanj o: arranj ar mulher que nem siá Tuta! E ainda sacudidona: a pele, as pernas lisas — o cabelo bem espichado, atado atrás, saia de cintura apertada, a alpercatinha prequeté. Trabalhadeira, zelosa: de tardezinha, mal escurecia, j á lá ia siá Tuta, na catação pelo terreiro, recolhendo a pintalhada miúda, os patinhos novinhos, as angolinhas. Botava as manadinhas no avental, esquentava um saco, forrava com ele um canto da cozinha; embolava os pintinhos ali, cobria eles com outro pano passado no calor do fogo... E levantadeira com a primeira cantiga de galo, e deitadeira só depois de arrumada e varrida a cozinha, o feij ão j á na panela, cozinhando pro outro dia — o banho diário, de bacia, j á tomado. O velho Arcanj o, outro muito cumpridor também. Mas até que bem mais folgado de vida. Quantas vacas de criar? Umas cento e poucas, quando muito... E metade delas — talvez até que passando da metade — por conta do Nego da Castorina, no retiro. Gado de leite, só mesmo pro gasto da casa — um ternozinho de vacas, sobrando ainda muito soro de queij o para a leitoama. Que trabalho que dava? Correr, de vez em vez, o pasto das paridas, olhar bezerro — curar bicheirinha de boca ou de embigo. Apartar as moj adas, desatolar, na seca, vaquinha mais magra e desacismada de brejo.
Poucas braças de cerca para vigiar, reduzida lavoura de milho e feij ão e abobra — tudo entremeado num mesmo eito de roça — o arroz que mal ocupava meia quarta de chão. Porca ou outra para castrar, capado ou outro para abrir — fritar banha, torresmo. Lá um belo dia, quando a vontade apertava, uma novilhona enxuta para a churrascada... O resto do tempo: caçar ninho de galinha andej a, ninho de pato e de angola, pôr os ovos a chocar; dar milho pros porcos, quirera-de-monj olo pros pintos; e catar palha no
paiol, picar fumo, cigarrar... — esperando vaca parir, pintinho novo nascer, trabalhar o monj olo, dar ponto o sabão de barrigada, queij o acabar de dessorar. Quentar sol, pensar na vida. E dormir a noite toda com a conservada e asseada da siá Tuta. Para completar o sossego, o nenhum medo do futuro. Enquanto vivesse seu Americão, havia o emprego: o de-comer, o de-vestir, remédio — recurso não faltava. Na hora em que Deus levasse o patrão, ficava o Tancredinho: exigente que nem o pai, mas também serviçal e caridoso para com empregado de bem e merecedor. Não, lá no Sassafrás, ninguém podia se queixar : clamava somente quem não sabia reconhecer, camarada descompreendido de tudo. Quem duvidasse, fosse perguntar ao João da Preta — de ordenado no Porto do Paiol Queimado, fornecido do que carecia pela fazenda; viesse ver seu Arcanj o da Barra Limpa, o próprio Nego da Castorina — esse até que bondade esperdiçada, que lambão e encostador. E o Lico da Isoldina? Ah, o que nadava! Casa grande, particular, de escritura passada; o chalé-de-bicho e loteria, vacadinha nos pastos do Sassafrás — touro, sal, empregado por conta do patrão... Dinheiro a j uro, a família acomodada, os filhos colocados. — "tou achando, seu Arcanj o, que na minha volta, vou me arretirar... falar com seu Americão... — Vai ! — o preto se admirou. — E fazer depois o que, seu Isé? — Sei inda não... Mas "tou querendo largar dessa vida. Tão melhor ficar assim como "ocê "tá: recanteado, sem tanta correria... — Bobagem... "tou é velho, acabado, sem serventia mais nenhuma... Todos eles — o Arcanj o conhecia aquela história muito bem — sempre achavam um dia pra vir com tal conversa: mudar de vida, se afastar... Como se pudessem! Ele também, Arcanj o, antigamente acontecia de ficar assim desanimado, pensando em trocar de serviço, ir para outro lugar bem distante, recomeçar tudo de novo. Mas quando seu Americão o obrigara a vir para a Barra Limpa a fim de tomar conta da fazenda, bem que não gostara... E o patrão estava certo: ele, Arcanj o, j á passava da idade, a saúde fraquej ando; e muito, muito conhecido, visado por demais. Viera para a Barra Limpa, viera. Ali estava ele agora, com siá Tuta, mandando e desmandando na fazenda, regendo como se fora no seu, sem nada lhe faltar; preferia porém voltar ao que era antes — o seu Arcanj o falado, o que fazia os outros pararem de prosear quando ele se aproximava, todo o mundo se virar quando passava pelas ruas de Santana do Boqueirão e das muitas cidades e arraiais ali do Bugre. Coisa passageira, aquele desânimo de seu Isé. Novo como ele era, a vender saúde... E, agora, com a saída do Lico da Isoldina, subia o rapaz para o lugar mais importante, passava a dono do principal respeito. Sim, fraqueza à toa: decerto, aquela vida de moço solteiro, desacompanhado de mulher... — "cé anda precisando mas é de arranj ar um encosto, moça boa pra zelar d"océ... — disse o Arcanj o. — Esquecer o passado, seu Isé. "océ pensa: mais pior se o que aconteceu naquela ocasião fosse depois d"océs dois casados, j á com filho... E "océ lavou sua honra, j á purgou tanto tempo... — Lavei ainda não, seu Arcanj o. Falta ela, falta o bandido daquele velho excomungado. "cé acha
que eu posso viver em paz, me esquecer do seu Valico, do Damastor? E aquela cadelinha, enquanto eu não acabar de acertar minhas contas com ela, j urei não me encostar em mulher nenhuma — "cés dois "tão cansados de saber. — "cé descobriu aonde ela está, depois que se mudou de Conceição do Carmo? — foi siá Tuta que perguntou. — Descobri sim. Voltou pro Campanário, tem j á quase um ano; "tá fazendo a vida lá. Uma hora dessas... Mas, primeiro, tem de ser o velho, que ele "tá mais perto de morrer; pode se ir de um momento para outro, e sem ser pela minha mão. Aí, então, depois que eu pegar seu Tonho, vou cuidar da ordinarinha... Falar em sossegar, se retirar, mudar de vida!... — pensou consigo o Arcanj o. Mas o preto velho não disse esta boca é minha, para não esquentar ainda mais a cabeça do pobre do José de Arimateia. Já madurava a manhã, mas José de Arimateia não conseguia dormir. O quarto era sossegado — via ele — macia a cama — arrumadinha como todas as coisas ali na Barra Limpa. Asseada porém demais — cheirosa de patchuli, malva e manj ericão, ervas que siá Tuta tinha a mania de botar no meio de tudo o que fosse roupa da fazenda, que impregnava o lençol, a colcha e o travesseiro. O mesmo aroma que recendia dos vestidinhos de Maria do Carmo, desde quando, ainda no gabinete do dentista, lá na casa de seu Osorião Feitor, ela aprendia a largar de ser menina e a encorpar de moça, mulher. O negro Arcanj o sabia de tudo pelas muitas confidências que lhe havia feito José de Arimateia. Das pessoas envolvidas, entretanto, conhecia apenas umas poucas: seu Isé — o principal —, seu Eulálio, pai do Damastor, o Zito do Adão e o irmão deste, o Miliano. As demais o Arcanj o somente podia imaginar : seu Valico Ribeiro, siá Domingas, o Tonico — os outros parentes de seu Clodulfo que moravam em Sobradinho. E ainda guardava na memória muitos dos nomes referidos por José de Arimateia: seu Gervásio, sogro do Damastor, seu Persilva, seu Osorião Feitor... Recordava-se muito bem da ocasião em que ficara conhecendo José de Arimateia. Fora no Sassafrás, o moço e mais um homem de idade — o velho Eulálio — aparecidos por lá, na companhia de seu Clodulfo, para explicar o caso deles e pedir a proteção de seu Americão Barbosa. Estava o Arcanj o de folga na fazenda, e seu Americão mandou então chamá-lo para escutar, do começo ao fim, a repetição de tudo o que j á haviam contado ao patrão. Para escutar, e, também, cuidar do caso. Foi quando o Arcanj o ouviu, pela primeira vez, a história toda. Como José de Arimateia conhecera a moça, a Maria do Carmo, na Fazenda do Capão do Cedro, e acabara noivo dela; a viagem fracassada ao seu Valico Ribeiro, a volta a meio do caminho, o encontro com a fulaninha mais o filho do patrão, o crime; a fuga pelas beiras do rio, a chegada ao retiro de seu Gervásio, a aj uda prestada por seu Valico e siá Domingas — todos os mais da fazenda; o encontro com seu Gumercindo, no Sobradinho, depois no alto do chapadão com seu Torquato, e a caridade deste último, dando pouso ao fugitivo e ainda mandando dois camaradas da fazenda acompanhá-lo e protegê-lo até Santana do Boqueirão. Seu Eulálio completara o que faltava da história, relatando sua parte: como havia aparecido, pela Fazenda do Curral de Esteio, o capataz-de-tropa de seu Tonho Inácio, o seu Persilva, acompanhado de dois peões para dar notícia do crime, e pedir o auxílio de seu Valico na prisão do criminoso; seu
Persilva cismava que era ali na Fazenda do Curral de Esteio que seu Isé acabaria batendo, devido à amizade do rapaz com o fazendeiro, pai de criação dele, por assim dizer; a chegada de seu Isé ao retiro da fazenda, logo depois da saída de seu Persilva da sede; a resolução tomada por seu Valico de fornecer recurso para que o fugitivo pudesse seguir viagem — isso, em vez de prendê-lo e entregá-lo ao seu Tonho Inácio — e ir procurar seu Gumercindo, no Sobradinho: a viagem até lá feita por seu Isé e o Damastor, e a volta do filho à fazenda, depois de ter deixado o companheiro j á de partida para o Chapadão. Seu Eulálio falava, falava. Seu Americão, pessoa meticulosa, hora ou outra pedia um esclarecimento: — Quando seu filho Damastor chegou de volta à fazenda, seu Valico Ribeiro ainda estava lá? — Estava sim senhor. Apressou a viagem ao Sobradinho, mas foi por causa de um conselho que o cunhado dele, o seu Gumercindo, lhe mandou pelo Damastor : que não ficasse na fazenda naquela quadra desfavorável, depois do acontecido... ainda mais assim sozinho... Seu Tonho era homem muito rico, poderoso na política, vingativo; bem que podia descobrir que seu Isé tinha sido acoitado e aj udado, em lugar de ser entregue, como seu Tonho Inácio achava que devia. Depois, seu Valico tinha de ir mesmo, mo"de os meninos, tirar eles do colégio. Que abreviasse a viagem... — Imaginem só... — disse o Clodulfo. — O bem-intencionado do Gumercindo a querer evitar, e acabou mas foi precipitando... — Talvez que sim, talvez que não... — continuou seu Eulálio. — Os dois j agunços estiveram no Curral de Esteio antes de irem até no Sobradinho: chegaram na fazenda logo depois que seu Valico viaj ou mais siá Domingas. Os dois... E disfarçaram tão bem, que eu acreditei que eram mesmo mascates de zebu; falaram muito no Dedé, um comprador de garrote que todo ano fica com os tourinhos da fazenda; falaram no seu Astromiro, um fazendeiro conhecido que mora lá pelos lados do Caramuj o... falaram no seu Bem, da Casa Francana, lá do Campanário, amigo de seu Vali co.. . Minha obrigação, na ausência do dono, era tratar bem, mandar que eles pousassem, mostrar as bezerras no outro dia... Foi o que eu fiz: ficaram então conhecendo o Damastor, pois eu mandei chamar ele no retiro para vir aj udar na apartação do gado... Agora, o senhor vigia, seu Clodulfo: de homem ali na sede do Curral de Esteio, só morava eu mais seu Valico... Se seu Valico "tivesse lá nesse dia... — O senhor tinha embarcado também... — completou, muito sem seca, seu Americão. — Ninguém escapa assim de assassino de tenção feita, povo que só age de traição... Mas, aí, o senhor, quando soube do acontecido com seu filho, o Damastor... — Pois é. Eu achando que tudo tinha saído tão certo! Seu Isé viaj ando para vir se apresentar ao seu Clodulfo, o coitado do seu Valico j á lá pelo Sobradinho com seu Gumercindo, o Damastor de novo no retiro, cuidando da ocupação dele... Quando, foi, me aparece na sede, que nem uma louca, a siá Geroma! — O retireiro, o sogro do Damastor, não estava no retiro? — perguntou seu Americão. — "tava não senhor. Tinha ido correr uma cerca, vedar um arrombado de briga de boi. Também, o qu"e que ia adiantar o seu Gervásio? Pegaram o menino no pasto das leiteiras, amarraram ele por lá mesmo, acabaram com ele do j eito que eu j á contei... Primeiro, picaram de faca, até o coitadinho delatar o destino do seu Isé; depois, degolaram... Seu Americão esperou que o velho Eulálio enxugasse os olhos. Comentou então: — A sogra decerto estranhou a demora do Damastor no pasto... pensou que fosse alguma cobra, rodada de
cavalo, talvez... — A Zilda foi que começou a ficar desinquieta, me disse depois que teve um pressentimento ruim, uma espécie de aviso... Mas a pobre "tá nos dias de descansar, pesada por demais, por isso a mãe é que foi averiguar... O Arcanj o pediu licença a seu Americão para fazer uma pergunta: — Mas como é que foi que o senhor soube que o rapaz delatou o destino do companheiro? — Certeza, certeza eu não tinha até chegar no seu Torquato. Mas depois que ele me contou que os homens cruzaram por lá, que andaram até especulando uns empregados dele, querendo saber se não tinham visto passar um cavaleiro, moço novo, amontado numa besta assim-assim... Seu Americão voltou com o interrogatório: — O senhor com o filho morto... Que hora foi que chegou a outra má notícia do Sobradinho? — Logo em seguida. Não tive remédio senão enterrar o Damastor no mesmo dia, e bater então pro Sobradinho... — O senhor quer repetir como é que foi que "ocês descobriram os criminosos? A conversa do tal empregado do circo... — pediu seu Americão. Seu Eulálio atendeu: — Pois foi a conversa do carroceiro que clareou tudo. O homem apareceu na chác"ra do seu Gumercindo, e contou que tinha ficado conhecendo, numa casa de j ogo na zona de mulher da cidade, um hominho muito especula, dizendo que tinha vontade de trabalhar em circo, doido que era, principalmente, por drama de pantomima; conversaram que conversaram, e o carroceiro — seu Evaristo é o nome dele — acabou contando a história inteirinha do teatro que iam passar na noite da estreia, no outro dia. O tal disse pro seu Evaristo que era uma pena não poder falhar mais um dia no Sobradinho para poder assistir o drama. Pois bem: na noite seguinte, o homenzinho "tava na arquibancada, logo que começou a pantomima, sentado bem embaixo... — seu Evaristo referiu que avistou ele. Isso, a primeira vez... Depois, quando esperava para entrar no palco — seu Evaristo fazia papel também, papel de soldado — aí viu ele outra vez, mas na horinha que o cuj o se enfiava por debaixo do poleiro... Então, depois que se deu o crime, seu Evaristo ficou pensando naquilo, matutando... pessoa gostadeira de teatro, mais ainda quando havia muito tiro... Ficou pensando e se lembrando da conversa na casa de j ogo: o talzinho não parava de perguntar se o tiroteio ia ser espaçado ou tiroteio cerrado... a hora que ia estourar a revolução no castelo... Pois bem: a briga nem bem tinha começado, mal-mal o fogo principiava a pipocar, e a criatura a escapulir da arquibancada!... Depois, escolher o pior lugar que havia, de onde não se podia ver direito a pantomima... Na ponta das torrinhas... — Pessoa ativa, inteligente, esse tal de carroceiro... — seu Americão Barbosa observou. — Homem até que me servia... — Pois é. Pelo sim, pelo não — seu Evaristo falou então pro seu Gumercindo — era que ele vinha delatar, por descargo de consciência. E deu os sinais do fulaninho: o j eito estúrdio do colarinho sem gravata, abotoado muito por cima da gola do paletó, quase que chegando no queixo... a voz rouca, assoprada... E piruá de porte, mulato escuro... Mas seu Gumercindo, que nunca tinha visto o Zito do Adão antes, ficou no veremos. E depois, era muita gente que j urava ter visto um negrão de revólver, correndo, de manga de camisa... Só quando eu cheguei no Sobradinho, no dia seguinte do enterro do seu Valico, foi que fiquei sabendo da tal conversa do seu Evaristo, referida pelo seu Gumerindo mais tia Rita... — Aí o senhor foi atrás do carroceiro, tirar a limpo a prosa dele... — Fui sim senhor, eu mais seu Gumercindo. Tudo então trovou: o Zito do Adão é que era o mascate que tinha estado no Curral de Esteio com o irmão dele, os dois de nome trocado! Eu tinha
contado pra eles que seu Valico mais siá Domingas tinham viaj ado pro Sobradinho, e a dupla bateu atrás!... Novamente o Arcanj o quis saber : — Que o homem era o mesmo, aí acabou a dúvida: o do circo e o mascatinho de zebu. Mas como é que o senhor descobriu o nome dele? Soube que era esse Zito do Adão? — Pois foi só correr o eco no Sobradinho... o colarinho abotoado do homem visto pelo Evaristo Carroceiro, o modo de falar fanhoso... E logologo apareceu um tropeiro de burro do Campanário, com mais outra importante informação: o Zito do Adão e o irmão dele, o Miliano, tinham estado no Sobradinho no dia da passeata do circo. O tropeiro tinha visto eles, no j ardim da igrej a, j unto com o cabo de polícia do destacamento... O soldado — falou ainda o tropeiro — tinha servido no Campanário uma temporada grande... — E, ainda por cima, esse ordinário do cabo a desnortear o povo, inventar o negro do revólver... Não era ele que gritava na porta do circo, despistando, hem, seu Eulálio? — seu Americão mostrava que havia compreendido muito bem toda a artimanha. — Ah! Desse pedaço eu não sabia... — comentou o Arcanj o. Mas o negro deu-se por satisfeito e nenhuma pergunta mais fez a seu Eulálio. Tampouco seu Americão Barbosa, j á decidido a dar a proteção que o Clodulfo do Nascimento apadrinhara. E não perdeu tempo para ditar a seu homem de confiança: — Escute aqui, Clodulfo; "cês me levem o Arcanj o c"ocês — ele se encarrega desse serviço. Se carecer de mais um, "cês peguem o Estevãozão que "tá roçando pasto lá no seu Sizino. O rapaz anda louquinho pr"um empreito, vive me rodeando, me implorando... É, "ocês experimentem dessa vez o Estevãozão... Deixavam todos a sala de visita da fazenda. Seu Americão completou então a ordem: — E não tem despesa nenhuma: isso fica sendo coisa minha; o homem era seu parente, Clodulfo, e depois eu não nego favor ao seu Torquato... O coronel Américo Barbosa não se esqueceu de uma palavra de ânimo e conforto para com o pobre do seu Eulálio: — E tem o senhor, seu Eulálio: sou pai também, e sei avaliar o qu"e que o senhor "tá sofrendo... De mais a mais, apreceio muito ver empregado, assim como o senhor, agir com lealdade, punir pelo patrão... O senhor pode, pode ir em descanso: se esse tal de Zito do Adão e o irmão dele andarem aqui por Santana do Boqueirão, o senhor vai voltar com o Valico Ribeiro e seu filho Damastor vingados. Nesta minha porta, graças a Deus, ninguém ainda bateu até hoj e que não ficasse servido. Se era o Hotel da Prudenciana o de mais selecionada frequência — boiadeiros, cometas de casa atacadista, pessoa ou outra de mais considerada representação —, vivia, por seu turno, o Hotel da Estação permanentemente cheio: ali paravam os capatazes de comitivas, viaj antes outros de toda sorte, a peonada. Perto da Estação da Estrada de Ferro, no forte do comércio varej ista, sortido e barateiro; e dispunha o hotel até de pastinho aos fundos, para animal de sela — valimento de grande comodidade e serventia. E o carteado: truco, escopão, sete-e-meio e trinta-e-um — movimento que só parava nas horas de almoço e j anta, o salão do refeitório com as mesas sempre lotadas de parceiros.
O primeiro passo dado pelo Clodulfo do Nascimento, ao voltar, com seu Eulálio e José de Arimateia, da Fazenda do Sassafrás, foi mandar chamar o Isaltino, dono do Hotel da Estação, pessoa do partido. E ter um particular com ele: — Quero que "ocê me descubra dois forasteiros chegados por esses poucos dias: um deles, um cabritinho franzino, de voz defeituosa; anda sempre de colarinho fechado, bem saliente do paletó... O outro, mais cheio de corpo, mas pequerrucho também... O Isaltino do Hotel nem precisou de que o Clodulfo terminasse de descrever os dois irmãos: — O senhor não carece de campear muito não; eles "tão lá comigo... Seu Elpídio, o do colarinho, e seu Realberto... "tão esperando por um sócio deles a fim de seguir viagem... me falaram. — Ahm!... Quantos dias j á faz isso? — "pera aí .. , deixe ver : uns quatro, uns cinco dias... vieram de a-cavalo, disseram que do Chapadão, do Carmo... Por quê? Gente duvidosa? — "tou informado que é povo contratado pelo coronel Eusébio... — Ah! "tou entendendo... Se o senhor quer, eu boto o dedo na garganta deles... Apuro tudinho, e depois venho lhe contar... — Não, não carece, não convém não. É ficar de olho, mas sem puxar prosa; fingir falta de interesse... E me comunicar se aparecer algum outro, se alguém daqui procurar por eles. Os dois têm saído muito? — Têm saído, mas só para trançar pela cidade, fazer compra. Hora de almoço e j anta, "tão diário no hotel. O Clodulfo recomendou mais uma vez ao Isaltino que continuasse a tratar os tais hóspedes como dantes. Nada de se aproximar, especular, despertar suspeitas — tampouco conversar no assunto com mais alguém. Vigiar, apenas, e avisar se alguma alteração houvesse na maneira reservada e sossegada de proceder do seu Elpídio e o companheiro, o seu Realberto. E, se pedissem eles a conta, que o seu Isaltino desse j eito, antes de despachá-los, de pô-lo, a ele, Clodulfo, ciente logologo de tal fato. Acertaram também, o Clodulfo e seu Isaltino, outra precaução de bom conselho e cabimento — lembrara o guarda-livros: a ida do Arcanj o ao hotel, para conhecer os homens, marcar-lhes bem as feições, coisa de utilidade em futura e possível precisão. Que o Isaltino encontrasse um modo para esse desempenho do Arcanj o, sem que de tal ninguém do hotel maldasse, menos ainda seu Elpídio e o companheiro . Assim se combinou e assim se fez, nessa mesma tarde, na hora do j antar. Sentado em mesinha que lhe escolhera seu Isaltino, próxima à ocupada pelos dois viaj antes j á identificados, o Arcanj o j antou no Hotel da Estação, o que lhe deu sobej o tempo para conhecê-los e estudá-los bem de perto. Salão de refeições movimentado, quase todo tomado pela freguesia do hotel. Zito do Adão e o Miliano, os dois, ocupavam mesinha recanteada, encostada à parede que dava para o pátio — tudo claro, de j anela aberta. Pegada aos dois, a outra mesa à qual se haviam assentado o Arcanj o e o Estevãozão. Tão natural aquilo, que pouca importância se deu à presença do Arcanj o ali àquela hora, a almoçar com outro empregado da Fazenda do Sassafrás. O próprio Isaltino, sabedor das dúvidas do partido com respeito aos forasteiros,. apenas podia imaginar voltasse o Arcanj o ao hotel, trazendo consigo o Estevãozão, isso somente para mostrar os dois hóspedes suspeitos ao companheiro incumbido, decerto, da vigilância deles. Coisa costumeira de acontecer ali no hotel, esses cuidados com elemento assim estranho, principalmente em épocas de eleição à vista — seu Americão e seu
Clodulfo desconfiados sempre da movimentação do coronel Eusébio e do dr. Filó. Quando José de Arimateia surgiu à porta do salão, vindo do corredor de entrada, o tanto de mesinhas cheias de gente baralhou-lhe a vista, átimo de tempo que o Miliano — o primeiro dos dois irmãos e avistar o dentista — aproveitou para levar disfarçadamente a mão por dentro do paletó e cochichar : — Abra o olho, Zito... Se não "tou enganado, é o rapaz... "tá chegando... Ali na porta do corredor... Zito do Adão pousou o garfo, a faca, olhou para a porta: — É ele sim — assoprou também. — Parece que "tá caçando alguém aqui no hotel... Vigia: "tá reparando agora em nós... Muito calmamente, sem parar de mastigar, o Zito do Adão abaixou a mão esquerda ao colo: — Uai.. . "tá caminhando pro nosso lado... O bandido de colarinho abotoado alto, o irmão dele — os dois! Perto, na outra mesa, o Arcanj o e o Estevãozão... — José de Arimateia havia visto. "Caminhe em rumo, olhando firme, e atire! Descarregue o tambor..." eram as palavras do Arcanj o a latej ar-lhe na cabeça. Avançou então, e levou, rápido, a mão à cinta. Mas o Zito do Adão foi mais ligeiro ao derrubar a cadeira e, nem bem agachado de todo no chão, sacar e disparar a arma na direção do chegante. Ao mesmo tempo — parecia até que eram ecos, reboo dos tiros desfechados pelo suj eitinho — a descarga sorrateira, meio por debaixo da mesa, rente a ponto de acender fagulhas, em volta dos buracos, no brim das costas do Zito do Adão, entrincheirado j usto aos pés do negro Arcanj o; e os dois, três tiros, de muito estrondo e fumaça, do exagerado quarenta-e-quatro niquelado do Estevãozão, um deles acertado em plena nuca do Miliano. Branco, parado, revólver intacto e frio mal pendurado por um dedo, José de Arimateia somente acordou do estupor quando o seguravam para que não caísse. Foi então que sentiu a terrível dor no encontro do ombro, e viu o sangue a minar de dentro da manga do braço inutilizado, adormecido — e a pingotar, visgoso e morno, no assoalhado da sala.
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DEPOIS DE IR TIRAR O leite j á bem minguado naquele começo de seca, fora o Arcanj o matar a leitoa para o almoço. Enquanto a despelava na tacha de água quente, rememorava o negro as primeiras passagens da vida de José de Arimateia chegado de recém a Santana do Boqueirão. Aconteciam, aconteciam sim aqueles maus sucessos — se lembrava o Arcanj o da história do Hotel da Estação e, também, de outras parecidas. Havia o caso do Florivaldo, o cão da garrucha dele a picar uma espoleta chocha; falhar o tiro, e o demônio do homem a saltar-lhe na gargoela — seu Rogeado, do Despenhado — de mango e punhal nas mãos. E adeus Florivaldo! Um saco podre, de esfuracado e mal-fedido, assim é que foram encontrá-lo na tocaia! Havia também o próprio Estevãozão, caso esse acontecido tempos depois de ter ele matado, tão corretamente, o Miliano na sala de j anta do hotel de seu Isaltino. Chegador e disposto, mas rapaz novo, amante de elogios e se-mostração, intimador, principalmente depois da fama que começou a correr de sua rapidez e pontaria. Coisa passada na Confeitaria do Cucute, o suj eito sozinho, a um canto do bilhar, bebendo, e o Estevãozão, com o rompante dele — pura vis agem, por causa do abarroto de gente que se encontrava no bilhar — a só puxar da arma depois de interpelar, desfeitear o cuj o... Ele, Arcanj o, bem que havia avisado ao Estevãozão que se cuidasse: o tal era um acertador de tropa muito falado j á na época — sô Protásio, se chamava — o mais velho e desaforado de toda uma sortida irmandade duns Salvinos, raça ruim, cafubá de cabelo e hosco de feições. Levar a mão ao cinturão, sacar revólver e disparar — isso gastou tempo, por mais esperto que se gabasse de ser o Estevãozão; sô Protásio fora-o mais: a copada de cervej a na cara do rapaz, a garrafada, os quatro tiros de em seguida... E mais casos, mais histórias que sabia o Arcanj o, nunca esmorecido de refrescar, com elas, a esquentada cabeça dos novatos do Sassafrás. Zelar da arma, o principal — lhes ensinava o negro: sempre limpa e bem untada, a munição guardada em lugar seco, experimentada antes do serviço. Quando de perto, revólver, se de longe, carabina; nada de ochas, uchas, uchos — mochas, garruchas e cartuchos — nada de fogo central, dois canos, fulminante: tudo tralha de recurso reduzido e duvidosa garantia. E, sempre que pudessem, carregar sobressalente, para não se repetir o sucedido com ele próprio, Arcanj o: o tambor da arma estrondado, logo no primeiro tiro. E chegar, e atirar. Conversa nenhuma, muito menos floreados e gracinhas. Com o José de Arimateia, lá no Hotel da Estação, devia de ter sido o atraso no puxar do revólver, a capa da cinta decerto que muito j usta, talvez o paletó que estorvara. Muita coragem e disposição, mas falta de prática, o coitado. Culpa também de seu Clodulfo, por não ter ouvido a ele, o Arcanj o: deixassem o Zito do Adão mais o Miliano somente por conta dele mais do Estevãozão, conforme havia determinado seu Americão Barbosa... — o negro bem que havia ponderado. José de Arimateia, porém, rogara muito, implorara: seu Valico era como se fosse pai, o Damastor o mesmo que um irmão; aceitava a aj uda dos homens de seu Americão Barbosa, aceitava, que não era descabeceado nem soberbo, mas ele, seu Isé, é que tinha, por direito e obrigação, de enfrentar a dupla do Campanário ! E seu Clodulfo fora amolecer com a pedição de seu Isé, acabar deixando... Mas tivera de escutar, depois, o sermão — a descompostura que passou no gerente seu Américo Barbosa, por avançamento, falta de respeito
a decreto de patrão. Mais de mês ficou José de Arimateia sem poder mover o braço, a bala do Zito do Adão desencravada da j unta do ombro — rombo que tiveram de abrir, na farmácia, para retirar o chumbo achatado e serrotado feito tampinha de cervej a — bala cortada em cruz na ponta, viram então. Seu Américo Barbosa, passada a raiva do adiantamento de seu Clodulfo, se penalizara; e era pessoa que, quando começava a proteger, gostava de ir até o fim: foi na Fazenda do Sassafrás que o dentistinha do Capão do Cedro completou resguardo — ali amparado contra qualquer outro mal-intencionado expediente de seu Tonho Inácio. Lá na Fazenda do Sassafrás, enquanto curava o braço, José de Arimateia pensava muito na vida, ia tomando decisão. Se pegara de amizade com o Arcanj o e a mulher dele, a siá Tuta, abria o coração com eles. O outro lado do Bugre havia-se fechado para sempre — o rapaz reconhecia. E não se iludia mais: para o futuro, continuaria a perseguição sem piedade, e, por lá, a única pessoa capaz de lhe fornecer socorro, seu Valico Ribeiro, morrera assassinada, a mando de seu Tonho Inácio. E não seria apenas com o carrasco do velho a não descansar enquanto não vingasse o filho; os dois irmãos do Inacinho também, seu lrineu e seu Isidoro, e aquele povo rancoroso do Campanário, os Gusmões, parentes de seu Tonho e dona Dosolina. E mais: os empregados da Fazenda do Capão do Cedro, os fornecedores do Engenho, as amizades do fazendeiro importante espalhadas pelo vale do Araraúna e as cidades da Mata dos Mineiros — Campanário, Sobradinho, Chapada de Santo Inácio, Açaflor... A polícia, tudo o que fosse soldado... Seu Eulálio e seu Gervásio, uns coitados: decerto até que acabariam por se mudar do Curral de Esteio — a pobre de siá Domingas obrigada a vender a fazenda e ir-se recantear na cidade a fim de cuidar da educação do Tonico e das meninas. Havia seu Custodinho, havia. Mas o dentista morava agora em Açaflor, parado de viaj ar, tocando a vidinha dele sabia lá Deus como... Depois, pessoa tão boa, tão amiga... : seria, com toda certeza, alcançado também pela vingança de seu Tonho e dona Dosolina, fosse ele proteger criminoso, tal qualmente acontecera com seu Valico Ribeiro e o Damastor... Sobrava o seu Clodulfo, irmão de criação de siá Domingas. Esse se prontificava: ficasse José de Arimateia por ali mesmo, em Santana do Boqueirão. Já-j á poderia o rapaz recomeçar a vida, dar-se- ia um j eito de arrumar de novo o gabinete de viagem, sairia ele de ambulante pelas fazendas do Bugre — gente conhecida, companheirada de política, amigos de seu Americão Barbosa. Enquanto permanecesse assim sob a proteção do coronel Américo, j agunço algum se iria meter, ainda mais depois do acontecido com o Zito do Adão e o Miliano. E o tempo curava as más lembranças: com o correr dos anos, pouco a pouco vinha o esquecimento... Havia entretanto, seu Tonho Inácio, havia a Maria do Carmo. Era muito pouco o sangue do Zito do Adão e do irmão dele, o Miliano, para ficarem saldadas de vez aquelas contas. E ele, José de Arimateia, tinha j urado: o pai do Inacinho e a cadelinha da noiva — esses dois é que teriam de pagar pela morte à traição de seu Valico e o inocente do Damastor, degolado a faca que nem bicho... Na casa do Arcanj o, onde seu Americão mandara ficar José de Arimateia, ali no Sassafrás, no meio dos empregados da fazenda, ninguém procurava tirar da cabeça do rapaz tais ruins ideias de vingança, outros conselhos ninguém dava. Pelo contrário: mais passavam os dias, mais fogo punham no ódio j á inflamado e fácil de crescer.
Até que um dia, José de Arimateia procurou seu Américo Barbosa, e se abriu com o velho. Queria ficar no Sassafrás, esquecer e abandonar a arte, passar a empregado da fazenda. Seu Americio livrara-o da morte — José de Arimateia declarou — vingara seu Valico Ribeiro e o amigo Damastor, e ele desej ava mostrar, de ora em diante, o quanto reconhecia: haveria de pagar, com lealdade e até com a vida, o benefício recebido por ele e também por seu Eulálio. Pedia em troca apenas um favor, e favor para mais tarde, quando seu Americão achasse que podia: liberdade para ir, então, j ustar contas com seu Tonho Inácio e a desavergonhada da Maria do Carmo, a principal culpada de todas aquelas desgraças. Até que chegasse o dia, seu Americão que dispusesse dele com confiança. E não poupasse, não escolhesse serviço: fizesse a experiência, para ver. Seu Americão deixou que José de Arimateia lavasse a alma, falasse o quanto desej ava. Ouvia de cara boa, mas calado, o desabafo do rapaz. E não se decidiu, tampouco se comprometeu: — O senhor vai ficando, vai acabando de me sarar esse braço. Vou pensar no que o senhor "tá propondo, e, uma hora dessas, lhe chamo para dar resposta. Já sei que o senhor "tá exercitando a mão, trançando laço e sedenho, remendando
arreio... Isso: vai-me fazendo servicinho ou outro mais leviano, passando o tempo, sentando mais o j uízo... O Arcanj o acabou de despelar a leitoa no tacho de água quente, raspoua a faca com caprichosa paciência, e foi lavá-la na bica do monj olo. Siá Tuta preparava j á o molho: muita cebolinha-verde, salsa, pimenta-de-cheiro, o limão-galego em quantidade. Nem que fosse o próprio seu Americão a chegar de repente para almoçar na Barra Limpa! — se riu o preto velho dos cuidados e corre-corre de siá Tuta. Pôde então ir buscar o cavalo na manga do curral, arreá-lo para a volta que dava diariamente pelo pasto da vacada de bezerro novo. Antes, porém, de sair para o campo, foi até o
rancho, desencostar a porta do quartinho onde pousava o amigo: — Benza Deus! — foi o que o Arcanj o se lembrou de exclamar consigo mesmo, quando viu José de Arimateia agarrado ao travesseiro, dormindo um sono fundo e sossegado, tal qual uma criança. Ribeirãozinho à-toa, corguinho de nada, que mal-mal escorria por causa dos plainos sem mudança do chapadão. Água muito clara quando se alargava pelas rasouras de areia branca, chitada aqui e ali de mimoso cascalhinho de toda cor; e verde — transparente e fundo verde-azul — quando se espremia ou se empoçava pelos golfos e pilões do leito caprichoso. Vau por toda parte: o gado e a tropa da fazenda, de tanto cruzar e recruzar de borda a borda, muitos cascos assim acabavam por desgastar a tabatinga dos barrancos; aflorava então a areia: espessa e fofa, soprada todas as noites pelo vento, apurada pelo fogo dos dias plenos de sol. Camurça havia reservado para si aquela praiazinha escondida do trilheiro mais batido. Quanto tempo j á que não podia espoj ar-se assim, de orelha à cola, deixar o sol da manhã coçar-lhe, demoroso, a barriga e o peito. Esfregar-se na fina areia solta, preguiçar... Pena que seu Isé de Arimateia não ia falhar por muito tempo na Barra Limpa. Talvez aquele dia apenas. Mais que isso não haveria de ser, que, nesse caso, seu Arcanj o não a teria deixado no canavial, e sim à larga, no campo, de permeio com o gado de criar. Fosse, porém, somente um dia: aquilo bastava: as pontas doces de cana, a aguinha fresca do córrego, a ração de milho e farelinho que, mais cedo ou mais tarde, certamente haveria de lhe trazer o patrão... O dia claro, um começo de calor lombeiro, o arrastar-se do ribeirãozinho. Camurça não se fartava de ir beber ali, apreciar também a divertida esperteza dos lambaris do poço: mal chegava o queixo à água, os diabinhos formigavam, estabanados atrás de sobra de comida, os mais afoitos se arriscando até a vir mordiscar-lhe os beiços... Que alegria do molecote mais audacioso — j á de pinta vermelha no rabo, j á grandote — a remergulhar em disparada, dono de um torrãozinho de rapadura, esquecido e entalado entre dois dentes! Mas fias cavam também: se da árvore da margem pingava, vez ou outra, barriguda lagartinha descuidada, gorava a correria quando o que se
despregava era um mirrado galhinho chocho... ou titica de tiziu... ou um bij u de reboco escapado dos ombros de algum cupim engenheiro, um dos muitos que acabavam de rematar comprido tunelzinho de barro que serpeava por um galho de dedal por sobre o córrego. Passos ao longe, um gemido de porteira, a pancadinha do pau no esteio — tudo muito apagado e distante, mas rumores que não escapavam aos ouvidos de Camurça. Ela ergueu as orelhas, a cabeça, olhos grandes atentos na direção do cavaleiro. Seu Arcanj o que voltava do pasto — ela avistou, desfitando então orelhas, pendendo e descansando a cabeça sem mais curiosidade. E assim continuou, à sombra das árvores beira corgo, distraída com a cantiga da água, a esganação da lambarizadinha, o atarefado sobe-e- desce dos cupins pelo tronco do pé-de-dedal — a porçãozinha de mil outras coisas divertidas que se passavam por ali. Sentados na mesa do carretão de boi arriado à sombra da santa-bárbara pej adinha e j á cheirosa de flor, somente depois do almoço foi que José de Arimateia contou ao Arcanj o o motivo da viagem. Siá Tuta ficara pela bica d" água, na lavação dos pratos e panelas. O positivo chegou no Sassafrás com a carta. — José de Arimateia — falava —; mas seu Torquato não explicou direito o qu"e que seu Eulálio quer comigo. Dis" que o velho vai ficar de pouso na fazenda até domingo, e que, se eu pudesse ir, que fosse até lá para ver ele. — Negócio de gado, talvez que tropa... e aproveitou para ver "ocê de novo... Ou "ocê "tá achando que j á é alguma outra arte do Tonho Inácio? — Sei lá... O velho parece que sossegou ultimamente, depois daquele tiro que me deram lá em Santana e do recado que ele recebeu de seu Americão... E isso j á "tá com mais de ano. Enquanto porém aquela peste não morrer... — Mas ninguém pode j urar se foi ele ou se não foi ele que mandou — disse o Arcanj o. — Se nós tivesse" pego o homem, o puxador, botado a mão na goela dele... E "ocê j á andava, des" aquela época, marcado por demais da conta, seu Isé... Tem muita gente atrás de beber seu sangue... — Sei que tem. Mas aquele tiro, só pode ter sido coisa do seu Tonho Inácio; "ocê lembra: foi logo antes da proposta que ele mandou fazer pro seu Americão... José de Arimateia calou-se, pondo-se a cismar. Tinha de ser o velho Tonho Inácio; e j agunço destemido, certeiro de pontaria... atirar daquele j eito, em plena rua do Rego, acabadinho de anoitecer, as ruas cheias de gente... E ali bem na porta da casa de seu Clodulfo! Outra vez a Camurça a salvar-lhe a vida... — José de Arimateia não se esquecia da besta quando recordava aquela azarada noite. Já no instante de apear à porta do chalezinho, j á levantado o pé do estribo, e o espiritado esquisito, fora de hora, que Camurça deu, j usto quando o tiro saía por detrás da cerca do quintal em frente; não fosse o ariscado, o adivinho da mula, parecia até que feiticeira... Um rabisquinho de nada, um fio de cabelo de diferença, o tiro escapou de acertar em cheio, na cabeça... Sim, o bandido do velho Tonho Inácio de novamente, quem mais que havera de ser? E, dessa ocasião, com bala até que preparada, decerto que de furozinho entupido com cera misturada com veneno de urutu, pois levara meses a sarar a gangrena braba que lhe ia comendo o osso da testa, deixado aquele rebaixo fundo no lugar da sobrancelha. Não passara muito, chegava o viaj ante do Sobradinho com o recado do Tonho Inácio para seu Americão Barbosa: "... o coronel Américo botasse preço para entregar, vivo, o assassino do filho..." Ah, se fosse mesmo, como acabava de lembrar o amigo Arcanj o, outra arte de seu Tonho Inácio!... — O diabo é que aquele excomungado não arreda nunca da fazenda... — continuou José de Arimateia, como que pensando alto. — Não tem carta de tia Rita para seu Clodulfo que não venha com notícia do Capão do Cedro: nunca mais, depois do negócio do Inacinho, seu Tonho Inácio aluiu,
botou o pé fora da fazenda; até a barba, tia Rita conta que o velho não apara mais... Na última eleição do Campanário, nem votar ele foi. E é o que "tá salvando ele; mas, um dia desses, o senhor vai escutando, seu Arcanj o, ainda perco a cabeça e vou matar aquela cobra, e lá bem dentro do ninho... arrancar ele mais a outra desgraçada daquela velha de por debaixo da cama... — Não será algum descabeceamento do Tonico? — invencionava o Arcanj o. — Não, acho que não... O menino é muito aj uizado, ambicioneiro... só quer saber de enricar... A fazenda, diz tia Rita, "tá que "tá um brinco, depois que o Tonico passou a tomar conta... A Celeste casou, "cê sabe; e o rapaz, um primo, contraparente deles, filho do maj or Virgilinho, esse diz" que é muito agarrador também, e j á abriu um lavourão nas beiradas do rio... "tão morando, ele mais a Celeste, no retiro, onde mataram o Damastor... Se chama Zé Geraldo, e j á montou engenho-de-cana, fez outra casa nova, curral de madeira serrada... — Que coisa... O Tonico j á crescido... E "ocê nunca mais pôde voltar lá... — Pois é pro senhor ver... Mas seu Americão é que não deixa. Pra vir, agora, no seu Torquato, "ocê viu luta, te contei... Daquela vez do maquinista de arroz do Sobradinho, "teve pro seu Americão me mandar, que os homens de lá queriam porque queriam que fosse eu pra executar o serviço. Mas, na última hora, seu Americão arrependeu, despachou o Tonho Coco no meu lugar... É sempre a mesma lereia de "tem uma coisa me contando que daqueles lados "ocê não volta mais..." — Amizade dele, seu Isé... Seu Americão te estima muito... "ce lembra do sabão que ele passou no viaj ante do Sobradinho que trouxe o recado de seu Tonho Inácio... O tanto de desaforo que o hominho levou de volta... — E, por derradeiro, achou de inventar também a volante, o capitão... — "ocê releve... zelo dele... Mas, e agora, se for mesmo levantação de cabeça do seu Tonho Inácio... algum rolo do Tonico com ele... "ocê vai ver o que é que é? Vai desobedecer seu Americão? — perguntou o Arcanj o. José de Arimateia não vacilou em responder : — Ara se vou... "cê ainda pergunta... Depois, não é desobediência não... tenho meu trato com seu Americão, te contei, no mesmo dia, minha conversa com ele, quando resolvi ficar de empregado no Sassafrás. Essa liberdade ele aceitou de me dar; e, se o Tonico "tiver perigando, siá Domingas, o Zé Geraldo, as meninas... vou ensinar outra vez pr"aquele povo lazarento quem sou eu... — É... Mas tome muito cuidado... No meu parecer "cê não deve se precipitar; e siá Tuta pensa que nem eu: "ocê devia mas era de acabar primeiro com a do-Carmo, mo"de o j uramento bobo que "ocê fez... Um homem, seu Isé, não merece ficar assim sem mulher, desgarrado de família. Depois, moço novo como "ocê... tanta moça boa decerto que lhe querendo tanto bem... — Qual... Quero mexer com esse bicho mais não, seu Arcanj o... a gente passa muito bem sem elas, remedeia... Vez em quando, bem que a cabeça anuveia, o corpo pede... Mas a gente esforça, pensa noutra coisa... Chegava siá Tuta com a bandej inha de café forrada do panozinho bordado, o bule alumiando de tão areado. Mulher, somente se um dia tivesse a sorte de topar alguma da marca de siá Tuta... — José de Arimateia pensou. Bebeu porém o café sem dizer palavra, sem mais tocar no assunto. Nem bem escurecera de todo e José de Arimateia j á se despedia do Arcanj o e de siá Tuta. — "cê "tá afadigado demais... — o Arcanj o tentava ainda segurar o amigo. — Seu Eulálio decerto espera mais um ou dois dias...
José de Arimateia estava entretanto aflito de verdade: — Domingo é amanhã, seu Arcanj o... Pode ser que seu Eulálio me espere mais um dia, mas pode ser também que não. E ele ia fazer essa caminhada, subir a serra à toa. E eu não fico sossegado enquanto não for ver o velho Eulálio, saber o qu"e que ele quer de mim. Mas se for coisa sem importância, te prometo: volto logo, e tiro então uma folga boa aqui c"ocês...
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FICAVA A FAZENDA DO Bugre bem na forquilha da boiadeira que cruzava o Chapadão. Ali, a estrada se esgalhava em dois rumos principais, opostos um ao outro: o braço que ia ao Porto do Paiol Queimado, e o que demandava a vertente do rio Araraúna. Ligavam-se assim à boiadeira Santana do Boqueirão e Campanário, as duas mais importantes cidades do oeste do estado. A princípio, dificultoso trilheiro aberto a casco de burro e boi — transformado, com o correr dos anos, em rota salineira, por onde trafegava seca-e-verde o pesado transporte do sal grosso, indispensável nas fazendas de criação. E, na cola das então frequentes e lotadas comitivas, o enxurrilho: gente de boa e ruim espécie — uns a se sumirem de uma vez por aqueles mundos, outros a escolher morada ali pela chapada mesmo, à beira do caminho. Todo um sertão sem fundo e sem tamanho desembocava no Bugre. Viaj ante nenhum, naquelas épocas, terá deixado de dormir, uma noite pelo menos, em rede armada num dos
ranchos de indaiá e pau-candeia que arruavam um começo de arraial à volta do casarão de adobo e telha, e do curral de pedras destinado ao gado viageiro. Ponto de pouso, de encontros, de negócios. E do abastecimento também de todo o Chapadão — sortida venda a socorrer de mantimento, roupa e mais necessidades, o espalhado povo que vivia ao derredor. No casarão morava seu Torquato. Ali nascido, dali j amais saído — diziam que nem mesmo para o casamento. E antigo como a estrada boiadeira, e enxuto, e são — ver um daqueles esteios de candeia. Rij o, curtido em frio e ventania. Lá estava ele, sentado no rabo do fogão, j unto aos tições acesos e à caneca de pinga requeimada com casca de limão e açúcar preto. Acocorados também ao fogo, seu Eulálio e José de Arimateia. Não amanhecera ainda, a cozinha fechada e vazia de movimento, e os três podiam conversar sem medo: —... a velha vinha piorando dia a dia... — contava seu Eulálio. — Quando passou no Porto, num carroção de burro, a Zilda viu: deve de ter quebrado mesmo a bacia, que as pernas "tavam sem governo mais nenhum... — Um daqueles acessos dela? — José de Arimateia perguntou. — Diz" que foi; que sentiu mal quando ia descendo pro j ardim; aí, veio o ataque, e ela então rolou na escada. — Se só desconj untou os quartos, pode ser que sare... — falou, do rabo do fogão, seu Torquato. — Mas se quebrou... com a idade dela... mulher j á bem passada dos sessenta, deve ser... — Se não for até bem mais — José de Arimateia disse. — No meu tempo, dona Dosolina j á "tava com a dona Rosária com uma penca boa de filho, tudo crescido, casada de velho... Depois, dona Dosolina sempre foi pessoa fraca de saúde, aperrengada por demais... Mas o senhor contava, seu Eulálio... Seu Eulálio precisava, às vezes, de largar o fio mestre da meada, lembrado da ausência, fazia tantos anos, de José de Arimateia. E explicar : — A Zilda depois que enviuvou do Damastor, casou com o Evangelista, filho do seu Turíbio da Balsa... — Disso eu j á sabia; tia Rita do seu Gumercindo carteia sempre com seu Clodulfo... — Pois é. A Zilda mora agora no Porto da Passagem, montaram pensão lá. Ela é que me conta, quando eu vou no porto, as novidades do Capão do Cedro; tudo o que é carreiro e carroceiro do
engenho e peão da fazenda param na pensão... E então eles referem... — Mas o senhor me falava... — José de Arimateia estava aflito por saber do principal. — Dona Dosolina então levou um tombo na escada da casa da sede... — Pois foi. Aí, conduziram ela por Campanário, internaram na casa de saúde nova... O Zé Geraldo da Celeste "tava na cidade no dia que a velha chegou, mais seu Tonho Inácio. E soube que dona Dosolina vai ficar de aparelho no corpo, uma temporada... — O senhor "tá achando então... o velho desprevenido lá no Campanário... — José de Arimateia adiantou-se. — Seu Gervásio foi quem veio me sondar... — E o Tonico, o Zé Geraldo? — Não mexi com eles ainda. Queria conversar c"ocê primeiro. Tirar também opinião com seu Torquato. O dono da casa, que até então nada dissera, mas de orelha em pé ao que proseavam os outros dois, falou do canto do fogão: — Já dei meu parecer : chamar seu Isé, como foi feito, e deixar que ele resolva. Melhor hora "ocês não acham mais... — É o que eu penso também. Por isso foi que inventei a precisão de tropa, e "tou aqui... — seu Eulálio disse. — E siá Domingas? — José de Arimateia perguntou. — Essa, coitada, tem mais é de ficar alheia — respondeu seu Eulálio. — Só fala em entregar o caso pra Deus... Mulher pacata, depois exagerada de religiosa... "ocês precisavam de ver : pegou no retrato do finado seu Valico, fez um altar com ele no quarto de dormir, e é dia e noite de vela acesa, rezando... — O senhor conhece a casa de saúde? Já "tive no Campanário, mas isso j á faz muitos anos, no tempo que eu trabalhava ainda com seu Valico. Fui lá com seu Custodinho para comprar minha tralha de dentista... Não me lembro de mais nada não... — Conheço sim — seu Eulálio respondeu. — É numa pracinha, nem muito longe nem muito perto do centro. Na esquina, tem uma rua que vai dar no cemitério, j á no corredor da boiadeira que vai pra Conceição do Carmo. E luz, é quase que só nas casas... isto é, tem uma lâmpada sim, um poste perto... José de Arimateia, pessoa reservada de natureza, mais trancado se tornava à medida que crescia em convivência com seu Americão Barbosa, aprendendo com o patrão do Sassafrás a pensar muito, antes de dizer sim ou não. Já se havia resolvido a ir ao Campanário, que a hora não podia mesmo ser mais favorável, conforme falara seu Torquato. Mas levou tempo, antes de declarar : — Pois eu vou dar uma chegadinha no Campanário. Acabo, logo de uma vez, com essa cisma antiga. — Eu vou também — completou seu Eulálio. — Nem que sej a para te mostrar a casa, ficar segurando a besta... Seu Torquato, porém, acabou com o entusiasmo do capataz: — O senhor vai mas é voltar pro Curral de Esteio. Se tem pessoa que não pode aparecer agora é o senhor, seu Eulálio. Isso é serviço pro seu Isé, só pra ele. Senão, é trazer mais dificuldade para a pobre da siá Domingas e a família... A barba branca, fechada de cobrir toda a cara de seu Torquato, o s olhinhos redondinhos tal qual duas bolinhas de vidro azul lumientas ao fogo dos tições, o velho determinava: — O senhor me volta pro Curral de Esteio, e quanto mais cedo melhor. Vai sozinho, e nada de abrir a boca com siá Domingas, com ninguém... nem mesmo com o seu
Gervásio. Seu Isé descansa da viagem, e j á pode riscar ainda hoj e, quando principiar a escurecer. Mando um camarada meu, acompanhando. Lá no Campanário tenho também gente minha. — O senhor acha que é preciso? — José de Arimateia perguntou. — Precisa sim. Isso é serviço demorado, e "ocê vai carecer de companheiro. E, virando-se para seu Eulálio, seu Torquato indagou: — O senhor sabe se o Tonho Inácio "tá também na casa de saúde, fazendo companhia pra mulher? — Foi o que o Zé Geraldo me falou — seu Eulálio respondeu. — E os filhos? Não veio nenhum pra ficar com a mãe? — Isso eu não sei, não senhor. Seu Torquato ficou pensativo por instantes, antes de dizer : — É... Lá no Campanário "ocê tem que ver como vai agir, seu Isé. E se lembrando sempre que "ocê "tá enfiado mesmo dentro do ninho das cobras: a parentada de seu Tonho é grande, o povo mais graúdo da cidade... Se descobrirem que "ocê chegou por lá... — Mas não vão descobrir não, seu Torquato — disse José de Arimateia. — O senhor me garantindo uma casa de confiança onde eu fique escondido... se tiver alguém para me ir aj udando na pombeação... Uma hora, o seu Tonho distrai, e eu, aí, aproveito... Já se ouvia, fora, movimento de gente, de animal — passarinhada, a pintalhada, os galos. Seu Torquato desagachou-se, fácil como um gato, de perto do borralho; tomou, de um gole, todo o resto do quentão sobrado na caneca: — Então, "tá tudo certo. Vou ver quem é que eu mando com o senhor nesta viagem, pensar também na pessoa pra lhe receber, lá no Campanário. E, agora, o senhor vem comigo, seu Isé; vou mostrar sua cama, ali no quarto do seu Eulálio. A besta, o senhor pode deixar, que eu zelo dela. Apesar da voz morteira, sem nenhum rompante, o danado do velho impunha mesmo respeito. Tanto, que seu Eulálio não abriu mais a boca, e José de Arimateia, levantando-se, acompanhou seu Torquato feito um menino comportado. Depois da conversa na cozinha, na presença de seu Torquato, o capataz do Curral de Esteio voltou para o quarto e, ali, podia então dar as outras notícias que sabia de interesse: —... a do-Carmo, essa, depois de quebrar cabeça, mais a mãe, caçando serviço em Conceição, voltou pro Campanário. As duas seguem morando j untas no Largo do Mercado; a casa é amarela, com barrado cor-de-telha... —... uma casinha arretirada, com uma parreira de uva na frente, um caramanchão que vai do portãozinho até na porta do chalé... — completou José de Arimateia. — Ué, quem te contou? — Acompanho os passos daquela desgraçada... Seu Sancho, do Sassafrás, "teve, no mês passado, no Campanário, e eu pedi pr"ele averiguar se ela não tinha mudado outra vez... — Pois eu passei também na porta do chalezinho. Quem foi comigo, "ocê deve de conhecer : o João da Cruz, um que foi colono no Capão do Cedro; me disse que se alembra muito d"ocê... — João da Cruz? "tou recordado não... — Ele "tá agora morando no Campanário, de carrocinha de garapa. Faz ponto em frente ao colégio do seu Alceu... Mas, eu te contava, fui com ele e avistei então a do-Carmo mais a mãe, as
duas de prosa no portão da rua com outra mulher, decerto alguma vizinha... O João da Cruz não gosta de seu Tonho Inácio, me explicou que foi por causa de um prej uízo que o velho deu nele, num acerto de conta... — Ahm! Acho que agora j á sei quem é... Um cabritão criado, de dentadura, mas de dente miudinho demais, muito descombinado com a cara dele... — É isso mesmo. Do aparelho de dentadura não "tou lembrado direito, mas é um mulato escuro, sacudido... Me explicou que não gosta do seu Tonho, e que ficou muito penalizado com o acontecido c"ocê ... A história do seu Inacinho com a do-Carmo, ele referiu que j á era rolo antigo dos dois, sabido por muita gente da fazenda... Aquilo do rapaz ir rufiar com ela, altas horas, no quintal de siá Gorgota, ele mesmo, o João da Cruz, me falou que tinha visto uma vez, numa noite que esperava paca, mais o filho, numa ceva de milho que eles tinham feito na cabeceira do corguinho da chác"ra. Presenciaram seu Inacinho chegar, pelo pasto dos animais-de-carroça, atravessar a cerca de arame e a pinguela, demorar um tem pão pelo quintal... — João da Cruz... — ruminava alto José de Arimateia. — Isso... Vê se "ocê não esquece o nome dele... : garapeiro, sempre na esquina do colégio do seu Alceu... Uma casa comprida, perto da igrej a, com uma porção de j anelas... tem uma placa na entrada, verdona, grande... — Sei, não esqueço não. — E o Tonico, e o Zé Geraldo, sempre que vão no Campanário, me dão notícia. A do-Carmo faz a vida, mas fingindo de amigada, e só com gente que pode: boiadeiro, doutor... Virou porcaria mesmo... — E siá Gorgota? Continua de passadeira de terno? — Foi o que o João da Cruz me contou: a velha disfarça também, pegando terno de linho para lavar e engomar... terno branco, cento-e-vinte... Iria longe a conversa dos dois — tantos anos j á que não se viam, tanta novidade lá pelo Curral de Esteio, Capão do Cedro, Sobradinho... Mas o impaciente de seu Torquato veio interrompê-la: — Seu animal "tá arreado, seu Eulálio. E "ocê, seu Isé, vej a se descansa... Se o senhor quiser fazer a viagem em duas marchas, vai ter que sair de tardezinha, antes ainda de escurecer...
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AQUELE MÊS ERA pequeno o movimento ali no Bugre. Não havia chegado ainda a quadra das boiadas, e as comitivas que demandavam o sertão j á tinham acabado de passar pelo ponto de pouso de seu Torquato. O velho, depois da partida de seu Eulálio, ocupava-se em cuidar da viagem de José de Arimateia, preocupado com o que nela poderia suceder, buscando arrumar na atilada cabeça branca os prós e contras de empreitada tão difícil, parafusando sobre as ideias que lhe vinham desde o primeiro dia em que apeara na fazenda o capataz do Curral de Esteio. Já fazia temporada que não surgia serviço assim. E mais que precisado seu Torquato achava —, pois fora uma barbaridade sem tamanho o crime cometido pelo Tonho Inácio: o pobre do Valico Ribeiro, homem j á avançado de idade, pessoa custosa de se achar outra igual: pai de família amoroso, amigo de toda hora, nunca faltoso quando lhe batiam à porta. E ruindade sem razão nem precisão, obra de povo prepotente, costumado a tratar os outros a poder de abusos e arrogância — malignos, amantes apenas de perseguição e de ameaças. Conhecimento antigo, muito antigo, desde os tempos de seu Valico peão de gado, um dos primeiros a abrir a estrada do Chapadão, talvez o que a tivesse por mais vezes percorrido. Amizade conservada por dilatados anos — de peão a capataz, de capataz a comissário, de comissário a boiadeiro. Mal começavam a findar as chuvas, apontava ele, com a peonada e a tropa — gente e burrame dos melhores de tais épocas —, cargueiros atulhados de encomenda; e também presentes, agrados para os amigos da beira do caminho — bagagem que nunca se esquecia de trazer. Seu Valico Ribeiro passava, pousava, meses depois repontava: agora, com a boiada, nunca menos dos seus mil, seus mil e tantos pantaneiros, tudo boi catado a capricho nas lonj uras do sertão. E então se demorava, dias e dias, na fazenda, em descansar comitiva e o gado que tangia. Mesmo depois de afazendado na beira do rio, raro o ano em que não vinha ele — hoj e atrás de tropa nova, amanhã para apartar, adiantado dos demais invernistas dos pés da serra, a cabeceira das boiadas que chegavam e estadiavam nos currais de pedra ali no Bugre. Correto como poucos nos compromissos, nos prazos que marcava. E morto assim que nem bicho na espera, ao lado da mulher e das crianças, inocente de tudo, se divertindo no circo!... E por quê? Apenas por proteger um infeliz que recolhera em menino largado pelo mundo, criara como filho, e a quem dera profissão de mais futuro; um coitadinho, iludido com elogios e falsezas, destinado — como o Tonho Inácio e a mulher queriam — ao papelão de encobridor das mirongagens do filho seduzidor das mocinhas-donzelas da fazenda. E o povaréu do lugar, a mulherada, a peonada, todos se rindo à socapa, debochando — como seu Eulálio contava, e também mais gente que conhecia a história —, achando que o manso tinha mas era se vendido por dez-réis de mel coado, ciente da sem-vergonhagem e a fingir de santo .. O outro, o Damastor, esse até que mais pior ainda a j udiaria: degolado a faca, depois de riscado e esfuracado pelo corpo, forçado a denunciar o rumo do companheiro; pagar de tão medonha maneira pela culpa de aj udar amigo e obedecer aos mandados do patrão! Esperava pelo dia em que ficara de vir José de Arimateia — ele, seu Torquato, também desej oso de vingança, de saber liquidado, e da mesma forma que seu Valico Ribeiro, o perverso dono do
Capão do Cedro. Depois da primeira vez em que se apresentara no Bugre, foragido e desarvorado de dar pena, tornara o moço a aparecer, em outra ocasião, nessa altura homem j á do Sassafrás, do Americão Barbosa. E nem um pouco esquecido do j uramento: logo tudo se amornasse com o correr do tempo, haveria de voltar, de repentino. É que, mais cedo ou mais tarde — seu Isé dizia — seu Tonho Inácio acabaria por facilitar, sair da fazenda onde vivia rodeado de camaradagem e capangada; e, nessa hora então, se resolveria aquela diferença. E ali estava seu Isé, descansando num quarto da fazenda. E disposto a ir ao Campanário, aproveitar a presença, lá, do Tonho Inácio. Perigoso enfiar-se assim bem no meio dos Inácios, dos Gusmões, da parentada toda... mas, pelo menos, um j eito qualquer haveria de se aproximar do homem... Pego o velho de improviso, bastava um tiro à queima-bucha, quando muito uns dois... : no entrevero da hora, seria fácil fugir, a besta sadia e bem treinada à espera ali por perto. Até que caíssem em si, arranj assem animal, arreassem, batessem atrás... O rio, esse descia a légua e pouco da cidade; no outro barranco, subia a serra — no topo dela, o Chapadão... O diabo era ter de ficar escondido ali no Campanário, acompanhar, desapercebido, os movimentos de seu Tonho Inácio, agir no momento favorável. Conhecido como era, não faltaria decerto um desocupado qualquer para reconhecer José de Arimateia, a besta tão falada dele... — espalhar a notícia, dar o alarma. Aí, então, adeus... Seu Torquato pensava, inventava tudo o que era meio, todo o possível j eito a ser adotado por José de Arimateia. Se recordava de mais casos conhecidos, até se imaginar na pessoa do outro, para melhor idear um plano, ele se imaginava. Assim é que fazia hora, esperando que o rapaz acordasse e viesse para a cozinha atrás do almoço — o prato guardado na chapa do fogão. E j á passava do meio do dia, sô Carício j á ciente da viagem, as duas bestas prontas no piquete, lavadas e escovadas — os
arreios, a ferragem dos cascos, tudo vistoriado pelo olho ativo do peão. Ainda precisavam conversar, e muito — o velho se inquietava com a espera ali no banco da cozinha. Até que se levantou, desceu para o quintal, e mandou que fossem chamar sô Carício, o camarada da fazenda escolhido, após muita ponderação, para acompanhar José de Arimateia na viagem ao Campanário. Eram os três, agora, a conversar no quarto de porta trancada e j anela alta, sobranceira às copas do quintal. Mesmo assim isolados, proseavam baixo, sentados muito j untos na beirada do catre onde dormira José de Arimateia. —... O mais principal é a casa onde "ocê tem de ficar, no Campanário explicava seu Torquato. — "tou pensando muito nisso... Tenho bastante gente por lá, mas só vej o, no momento, uma pessoa capaz de agir como é preciso: seu Cirilo, irmão aqui do sô Carício... — Quer dizer que nada de mexer então com o tal de João da Cruz... — José de Arimateia interrompeu o velho. — No meu pensar, "cê tem mas é de fugir de conhecido. Ainda mais suj eito assim conversador... Depois, o Tonho Inácio é homem muito rico, e "ocê não é... Muito capaz mas é d"esse garapeiro te engambelar com prosa à toa e prometeção, pra, nem bem vire "ocê as costas, ir correndo atrás do
Tonho Inácio ou dos parentes dele... te vender por qualquer vinte mil-réis... O homem, seu Isé, pra lhe socorrer nesse serviço, só tem um no Campanário: é o seu Cirilo Charreteiro. José de Arimateia ouviu com atenção o que lhe dizia seu Torquato. Tal e qual seu Americão Barbosa: desconfiado de todo mundo, acreditando apenas em quem conhecia j á de há muito; e até que mais prevenido ainda que seu Torquato: mesmo lidando com gente de confiança, seu Americão dava sempre j eito de ficar com um pé atrás... Seu Torquato prosseguia: — Agora, seu Isé, o caso é diferente: "cê não está agindo a mando de ninguém, mas porém por conta própria. Capaz até d"o Americão não gostar nada desse feito seu: te repreender, te despachar do Sassafrás... — Mas ele bem que está desconfiado, seu Torquato: deu upa, mas acabou e deixando vir... Depois, prometeu me conceder essa liberdade logo aparecesse a ocasião... — Sei, sei .. "ocê entretanto se prepare para ouvir... principalmente se botarem a culpa nele, todo mundo sabendo para quem "ocê trabalha... Mas isso passa: mando falar com ele, concerto depois, se for preciso... Eu te dizia porém: não tem pessoa nenhuma graúda a te garantir nesse caso; a aj uda que eu vou te dar também não é lá essas coisas... mas "tou disposto, desde que "ocê me prometa agir conforme eu te determinar... — Ora, seu Torquato... O senhor sabe que eu não sou capaz de lhe causar nenhum desgosto. — Pois então escute: "ocê viaj a hoj e com sô Carício, e podem sair logo de tardinha. O pouso vai ser no Chalé Assombrado, na fazenda velha dos Peixotos. Sô Carício sabe a hora de deixar a boiadeira e pegar o trilho que vai dar na casa. Lá não mora mais ninguém, e "ocês podem passar o dia de amanhã
amoitados numa restinga de mato que tem lá... — Lugar mais apropriado não conheço, seu Isé... — falou sô Carício. — E pasto é o que não falta: pura grama e catingueiro... — Pois é — continuou seu Torquato. — "ocês me saindo de tardezinha, como eu disse, bem antes de clarear o dia j á devem de "tar chegando no Chalé. Quando anoitecer de novo, "cês toquem então. Se não "tiver ventando muito, ou se a neblina não inventar de baixar, "cês vão acabar de descer a serra e atravessar o rio no golfo lá pelas duas, três horas da madrugada; e vai ser no escuro que vão acordar seu Cirilo na chac"rinha... — E se o tempo azangar ou surgir outro atrapalho, a gente para na gruta no Caburé... — lembrou sô Carício. — Na gruta, ou senão na Água-Santa, mais no meio da descida da serra... — atalhou seu Torquato. — Mas, aí, é "tar bem prevenido de milho pras duas bestas... Falar nisso, "cê encheu bem o embornal? — "tá tudo pronto — respondeu sô Carício. — Milho que dá pra mais de uma semana... E muita matula pra gente, também. — Bom. Agora lá no Campanário — seu Torquato baixou mais ainda a voz. — "ocê, seu Isé, se entregue pro seu Cirilo, se feche na chac"rinha dele, deixe sô Carício mais o irmão agirem na cidade. Fique esperando em casa o aviso deles. E j á sabe: besta arreada, bebida e de barriga cheia, preparada para qualquer de repente e precisão... — Pode deixar, seu Torquato — concordava com tudo José de Arimateia. — E o senhor, sô Carício, é tratar de descobrir, com cautela e sem muita perguntação, se o Tonho Inácio "tá dormindo na casa de saúde, com a mulher, ou em algum parente... O senhor j á me disse que não conhece o Tonho, mas que o Cirilo deve de saber... — O compadre Cirilo é impossível que não saiba... Charreteiro, costumado a carregar todo mundo, o dia inteiro na rua...
Durou ainda bastante tempo a conversa ali no quarto. Tudo o que pôde aconselhar, tudo o que lhe acudia de cismas e até de impertinências, seu Torquato não escondia, agradasse ou não agradasse a José de Arimateia. Mas o rapaz aceitava as exigências do velho, e prometia cumpri-las a rigor. Quando deixaram o quarto, esfriava a tarde, e um bando de pássaro preto j á começava na algazarrinha deles, brigando pelas grimpas, boas de gangorrar, do bambuzal da entrada do curral de pedras. — Se eu fosse " ocês) cuidava mas era de comer alguma coisa, e riscar o quanto antes... Hoj e é domingo, e a estrada deve de estar bem mais vazia... — disse seu Torquato, depois de demorar, pelos lados do sol que descaía, os olhos pequeninos, duas estrelinhas de foguinho azul. Noite braba, de muito frio e ventania, era também o que acabava de ler José de Arimateia no paradeiro e brancura do céu do Chapadão. Seu Torquato havia escolhido companheiro e tanto para viaj ar com José de Arimateia: sô Carício, homem j á maduro, mas disposto e pisador. E montado em besta nova e bem zelada, até que parecida com Camurça, irmã no porte e na era, de pelagem quase igual. Criada porém em zona plaina de chão, sem as vantagens do enfurnado e do escorrido — se via pelo entorto das mãos, disfarçado a poder de grosa e até torquês nos cascos. E mais crescida de orelhas, mais queixuda. A viagem rendia, sô Carício vaqueano dos atalhos e rodeios da boiadeira, desvios preferidos pelos dois cavaleiros a fim de não serem notados nas fazendas e em outros pontos de pouso — j á agora menos espaçados à medida que avançavam. Falando somente o carecido, respondendo apenas quando perguntado, sô Carício deixava que o companheiro se ocupasse, a sós, com suas cismas — coisa muito lá do costume e aprazimento de seu Isé. Assim calados é que rompiam o Chapadão do Bugre. E larga, e rendosa, era a toada que as duas montarias sustentavam. Meava a segunda noite da viagem quando, j á descida a serra, atravessaram o Araraúna na Ponte do Golfo. Lado e outro, os
ranchos: mas fechados, sem sinal de vida. José de Arimateia não tirava da cabeça as palavras de seu Eulálio: "A do-Carmo virou coisinha muito à-toa..." E a opinião do Arcanj o mais siá Tuta; "... mais pior se fosse depois d"ocês dois casados, com filho... "ocê j á lavou sua honra... j á purgou..." Como se ele, José de Arimateia, pudesse se esquecer de seu Valico e o Damastor, pudesse seguir vivendo, com a vagabunda a se exibir no Campanário!... Não havia pessoa conhecida que não viesse com novidades da do Carmo; hoj e com fulano, amanhã com beltrano, faltando apenas entrar logo num bordel, viver de j anela a chamar todo homem que passasse... De que adiantava aquela fama de j agunço, e o mais temido, do coronel Americão Barbosa? Matador dos mais arroj ados, mas com o pensamento apenas no dinheiro que lhe davam pelas mortes — decerto era isso o que diziam... Incapaz de punir por si mesmo, pessoa sem sentimento nenhum... Bom para um serviço, mas serviço de tocaia, as costas quentes, protegido pela companheirada do Sassafrás... Sim, tinham razão no que falavam: quem merecia morrer continuava vivo: seu Tonho Inácio, a ficar, dia a dia, mais rico e decerto mais abusador também... Maria do Carmo, essa virada em mulher-da-rua... Nem no nome dela havia tocado seu Torquato, certamente para que ele, José de Arimateia, resolvesse de per si. Ah, se tivesse um j eito de pegar, de uma vezada só, aqueles dois! Subiram o lançante da beira do rio, ganharam o campo novamente. Nem bem madrugava ainda, quando avistaram a primeira luz do Campanário. Logologo a Caixa-d"Água, a encruzilhada com a outra boiadeira, a que vinha beiradeando o rio desde as cabeceiras da Serra do Macuco, e recebia, perto do Porto da Passagem, a estrada do Sobradinho.
Começavam a surgir as primeiras casas, muito rareadas ainda, à beira do corredor. Chácaras de leite, pousos de gado, o povinho miúdo da cidade. Justo depois de duas copudas gameleiras foi que só Carício parou a besta e avisou: — O senhor presta atenção nas gameleiras. O caminho é por aqui: o compadre Cirilo mora logo embaixo, na beirada do corguinho... Torceram à direita e desceram então pela bitolinha cortada na macega do pasto que margeava a estrada boiadeira. Não tiveram de andar muito: logo um cachorro latiu, e a casa de telhado de zinco apontou. Antes de apear, José de Arimateia examinou, o quanto lhe permitia o céu de pouca lua, as redondezas: nenhuma casa por perto, morador nenhum. E o quintal sombreado de arvoredo — ele notou — da chac"rinha de seu Cirilo Charreteiro. Desamontou então, imitando o companheiro que atravessava, puxando pela montaria, a cancela da cerca. O cachorro parou de rosnar, vindo cheirar, rabo abanando, alegrezinho, a barra da calça do chegante conhecido. Seu Cirilo veio abrir a porta, lamparina na mão. Reconheceu logo a besta cor-de-gema-de-ovo e o cavaleiro que j á laçava a ponta do cabresto num palanque do estendedor de roupa: — Ué... Gente, o compadre Carício!... Bem mais erado que o irmão, ruço de cabeça, a camisa-de-meia no peito magricelo... — ia observando José de Arimateia. — Um amigo do seu Torquato... "cê não conhece ainda... — foi como sô Carício apresentou ao irmão o companheiro de viagem. — Seu Isé, "cê pode chamar ele assim... — Pois "cês entrem... ora-ora... chegar com a gente assim desprevenido... "tão de passagem, ou vão pousar? — Não resolvemos ainda — falou sô Carício. — Temos de conversar c" ocê primeiro... — Ahm! Então entrem, entrem logo. Me deixe" fechar essa porta...
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CAMPANÁRIO, CIDADE movimentada e de muito nome, não tinha entretanto, nem de longe, a vida noturna de Santana do Boqueirão. As ruas esvaziavam-se cedo, e o povo dado à pagodeira recanteava-se em um ponto só: o Alto do Lobo, zona do mulherio, onde apenas um cabaré com j ogo funcionava. Talvez que o motivo de tal paradeiro à noite fosse a luz elétrica: pouca e ruim, mesmo no Largo do Cruzeiro e trechos de rua que compunham o centro. O resto, então, pior ainda: luz somente nas casas — acabada e vasqueira lampadazinha em um ou outro poste. Deficiências do motor a óleo, antiquado e mal previsto, instalado certamente em quadra de finança curta ou de pequena fé no futuro da cidade. Podia ser, também, o clima: lugar mais altaneiro e descampado que Santana do Boqueirão, mais castigado das cordas de vento que se despej avam dos cumes da serrania. E atacado de neblina, além de tudo — o rio logo perto. Provavelmente, outra razão ainda: a influência do vigário, o padre Pena: esse, além de curador das almas, manobrava, com zelo igual e pulso firme, a política do distrito — o que vale dizer : mandava e desmandava. Mulher à-toa, e cabaré, roleta e bicho — tais pândegas e tafularias não prosperavam ali no Campanário. Toleradas, mas contidas em limite razoável, nada abusivo ou afrontador. Em compensação, havia toda sorte de divertimentos outros, nem de leve nocivos ou ruinosos. Jogava-se, em casa, muita dama, cruzeta, o dominó; cartas, moderada e reservadamente. E organizavam-se animados piqueniques, ia-se à perdiz e ao macuco, pescava-se, tomava-se banho no rio Araraúna. Raro o mês sem bonita festa de igrej a, com barraquinhas, quadrilhas e disputadíssimo leilão. E muito sarau familiar, muito baile, onde se podiam mostrar as cobiçadas moças do Campanário, as mais chiques de toda aquela zona — se dizia, e com razão. E um bem-feito j ornal, hebdomadário; e o Grêmio, e o Silogeu — esse, iniciativa e menina-dos-olhos do padre Pena, frequentada sociedade patrocinadora de torneios de recitativos e charadas. Ah! E a flauta do Bastião Brás, a clarineta do Osório Maia, as valsas do Loreto — as serenatas! A primeira noite que passou no Campanário, José de Arimateia aproveitou-a bem. Seguido de sô Carício — os dois enchapelados e encapados, protegidos do frio e de algum noturno curioso e linguarudo — correu ele todo o centro; e decorava o que investigava com atenção, indo e voltando pelas ruas que levavam às saídas da cidade. Tal pernada sarava-o, pouco a pouco, do desânimo que lhe haviam causado as informações de seu Cirilo. O charreteiro trouxera-as na hora do almoço, j á sabedor então do que tinham vindo fazer no Campanário o irmão e o companheiro de viagem. Pouca coisa do que dissera seu Eulálio
concordava: seu Tonho Inácio encontrava-se de fato na cidade, mas não na casa de saúde a fazer companhia a dona Dosolina. Os dois se hospedavam mas era na casa de dona Maria Rosa, sogra de seu Tonho, onde vivia seu Joãozinho, o filho mais velho dela, o solteirão. O tombo tivera gravidade, sem necessidade entretanto de operação ou aparelho: feio destroncado de cadeiras, a exigir apenas o carinho da família e repouso por boa temporada. Isso, as primeiras notícias dadas pelo Cirilo Charreteiro. Outras vieram depois, à noitinha, quando ele voltara para a chácara, então para recolher a charrete: passara pela rua das Flores suas quatro ou cinco vezes, e pudera ver o alpendre do sobrado cada vez mais cheio; não saíam de lá o padre Pena, o dr. Teixeira, os Inácios todos, a Gusmãozada — um entra-e-sai que não parava. Nem ver — seu Cirilo havia declarado. Pura falta de j uízo mexer agora com o velho Tonho Inácio. Má vontade, medo de envolver-se em tão encrencado e perigoso assunto? — chegara a pensar José de Arimateia, duvidoso da prontidão em que se pusera, a princípio, seu Cirilo. Mas tais suspeitas logo desapareceram, à vista do que aconselhava e oferecia o charreteiro: fossem ficando pela chácara até diminuir o movimento do sobrado... Ali ninguém inventaria de ir bisbilhotar : casa sem criança, siá Bárbara nem um nadinha se-metedeira com os negócios do marido, calada, de reduzidas amizades com o povinho espalhado lá pelo Alto da Caixa-d"Água... Era apenas não se mostrarem pela cidade, terem um pouco de paciência. Uma hora, quando menos se esperasse, surgiria a ocasião. E seu Cirilo nada comentara que pudesse parecer contrariedade, quando sô Carício deu a ideia daquele giro pelo centro, no adiantado da noite, para que ele, José de Arimateia, aprendesse onde ficava o sobrado de dona Maria Rosa, examinasse a travessazinha dos fundos e as ruas que iam desembocar nas saídas da cidade. Era o que fazia agora, acompanhado de sô Carício, José de Arimateia, curado j á do desacorçoo provocado pelas informações de seu Cirilo Charreteiro. Haveria de se achar um modo, haveria sim... — ele se animava. Ficar de quarentena na chacrinha, esperar que o sobrado esvaziasse... Como se tal pudesse acontecer ali no Campanário, com tanto parente assim de seu Tonho e dona Dosolina! Ideia de pessoa mesmo simplória, como o assustado do seu Cirilo... Não: quanto mais arriscado o serviço é que mais macheza demonstrava o homem — seu Americão Barbosa vivia repetindo. E, quanto mais destemido, mais parecia que aj udava a sorte... Ah, seu Americão! Desta vez era que o patrão, seu Clodulfo, seu Arcanj o, seu Torquato... a companheirada do Sassafrás, o povo todo do Bugre iria ver ! Pararam pela esquina do Largo do Cruzeiro, a pouco mais de meia quadra do sobrado dos Gusmões. José de Arimateia se decidia, e namorava a casa grande — a luzinha do poste a alumiar- lhe mal-mal o óleo verde-escuro da parede — as sacadas de grade nos j anelões da frente, o alpendrão que dava para os lados do largo. — Vamos dar uma passada bem em frente... — José de Arimateia pediu a sô Cirilo. Janelas fechadas, mas havia luz lá dentro — viram pela claridade fosca da bandeira de vidro de um dos cômodos altos do sobrado. Decerto o quarto de dormir dos dois, seu Tonho e dona Dosolina... — José de Arimateia imaginava. E refletia, lembrado das palavras de seu Cirilo Charreteiro. Lá estava, no sobradão, seu Tonho Inácio naquele sim-senhor de fazendeiro rico, chaleirado pela graudagem! O tal de dr. Teixeira, o agente executivo de Campanário e também médico da família — seu Cirilo havia explicado — esse era o dia inteiro no sobrado, cocorando dona Dosolina, largando as outras ocupações dele para cuidar somente da velhota. O padre, sem se despregar dela também... E os comerciantes ricos, boiadeiros, a fazendeirama... — tudo o que era gente importante do lugar. Entretanto, um bandido da marca de seu Tonho Inácio,
capaz de barbaridade como a feita com seu Valico Ribeiro e o coitadinho do Damastor !... Quantas outras não teria ele cometido, quanto crime... — Vamos andando, seu Isé... — se incomodava sô Carício. — Vamos sim, vamos — José de Arimateia obedeceu. — Mas me deixa dar primeiro uma olhada naquela ruazinha dos fundos outra vez... Um ermo total a noite que avançava. Se alguém cruzava pelas ruas, era a passo aligeirado, mãos no bolsos da calça, gola da capa ou paletó erguida, chapéu enterrado na cabeça — cuidando apenas de alcançar o seu destino, sem mexericar com o que reinariam aqueles homens de bota e chapéu tropeiro, mais parecidos com dois cavaleiros acabados de chegar, ou na hora de sair. Sô Carício se preocupava: — Vamos embora, seu Isé... Alguém ainda desconfia da gente... vão maldar... José de Arimateia tinha, porém, outros propósitos: — A Praça do Mercado fica longe? — Larga mão disso, seu Isé. Deixe por ora a rapariguinha em paz... — Quero só ver a casa... guardar ela bem guardada na cabeça... E se foram, rua das Flores abaixo — um, dois quarteirões, contava José de Arimateia — até a ponte de madeira de um ribeirãozinho. Do outro lado, um começo de ladeira, e a travessa, à direita — escura de não se enxergar um palmo adiante, sem mais poste algum de luz. Logo em seguida, outra pinguela — o mesmo córrego que dava aquela volta, explicou sô Carício — e, mais umas cinquenta braças de beco, a pracinha. Os três chalés emendados fizeram José de Arimateia lembrar-se da oficina da estrada de ferro de Santana do Boqueirão: — Aquilo é que é o mercado? — É sim. "Quase que numa esquina..." José de Arimateia se recordava das palavras de seu Sancho do Sassafrás, repetidas, na fazenda de seu Torquato, pelo seu Eulálio: "... uma casinha amarela, de barrado cor-de-telha... tem uma parreira de uva na frente, um caramanchão..." Viraram novamente à direita — José de Arimateia preferiu assim, para não confundir, em outra vez, a direção — e seguiram caminhando pela praça, fugindo da lâmpadazinha acesa na porta do meio do mercado. Sô Carício foi quem avistou, primeiro: — Olhe aquela falha de terreno ali bem na nossa frente... Pra mim, é lá... Não se aproximaram muito, entretanto, ao reconhecerem a casa. E pouco tempo também parou José de Arimateia para examinar o chalezinho retirado, com o caramanchão de parreira que começava no portão da rua: — É... Tal e qual seu Eulálio mais seu Sancho me falaram... — foi apenas o que comentou José de Arimateia. — Podemos voltar, ir embora... Uns passos mais adiante, perguntou: — Daqui a gente j á pode seguir para a caixa-d"água, ou temos de passar ainda pelo centro? — Não, não carece não — respondeu sô Carício. — O senhor presta atenção, seu Isé: vamos voltando de novo para a rua das Flores. Quando a gente chegar na ponte de madeira, é seguir subindo a rua... Em cima, é o Barro Preto... — E não tem nenhum outro j eito, sem ser preciso voltar até na ponte? — Tem, mas dá volta... A cabeceira do ribeirão é danada de comprida... Mas, se o senhor quiser, eu posso lhe ensinar outro caminho... Um galo cantou. Longe, no trecho central da cidade, uma carroça matraqueou, ligeirinha, no pé de
moleque do calçamento. Carrocinha de leite ou de padeiro — conheceu José de Arimateia. — Não, vamos pra chác"ra. Talvez que amanhã a gente volte pra dar mais outra espiada boa...
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JOSÉ DE ARIMATEIA gastou as duas noites seguintes, de quarta e quinta-feira, em guardar na memória — rua por rua, esquina por esquina, quase que casa por casa — a parte da cidade compreendida entre o Largo do Cruzeiro e o Alto da Caixa-d"Água, a zona chamada de Barro Preto. Os dois ele e sô Carício — esperavam morrer o movimento em Campanário, e somente então é que desciam, a pé, da chácara de seu Cirilo Charreteiro. Mas, na sexta-feira, deixaram a chácara montados, e bem mais cedo oito horas da noite quando muito. E por caminho j á conhecido, estudado de antemão. Percorrido o trechozinho que ia da casa de seu Cirilo até o corredor, tomaram, ali j unto às duas gameleiras, o rumo esquerdo, o da Caixa-d"Água. Quem os visse, suporia estivessem eles de viagem, na hora j á de pegar a boiadeira que demandava as cabeceiras da Serra do Macuco, ou a outra, a que subia para o Chapadão. Antes da encruzilhada, porém, pararam as montarias, e sô Carício apeou para soltar o arame da cerca, cortado de véspera e reesticado em bem disfarçada emenda. Puxou da besta, fazendo-a passar pela abertura, esperou que o companheiro atravessasse também, e, num instante, recolocou os fios no lugar. Quando ia montar, José de Arimateia perguntou: — Será que não descobriram o outro corte? — Acho que não. Mas não custa ir ver. Sô Carício entregou as rédeas ao companheiro, e foi até o outro braço da cerca do corredor. Olhou que olhou, voltando em seguida: — Mexeram não. "tá tal e qual eu deixei ontem. Boa ideia, a de sô Carício — José de Arimateia achava-a cada vez melhor. Todo mundo, na hora de bater atrás deles, iria mas era seguir pela Ponte do Golfo, pelo trecho-mestre da subida da serra. Ninguém haveria de se lembrar do tal vau da Lagartixa, mais de légua rio abaixo. E lugar de passagem perigosa, só mesmo para cavaleiro e animal de talento... A serra, ali naquele ponto — só Carício havia explicado — era puro palmital, mato de lei, morada de tudo o que era bicho... Se não descobrissem os rastos das duas bestas ali na beira do corredor, os dois cortados de arame... Só Carício montou, e os dois tocaram. Muito suj o, praguej ado de lobeiras, em pouco o pasto os encobria. Não andaram muito pelo suj o do pastinho: ganharam logo um trilheiro de gado, seguiram por ele, e foram dar em outra cerca, desta vez servida de um colchete de arame. Sem precisar de descer da besta, só Carício soltou-o da alça, largando-o caído no chão. Chegavam à beira de uma cabeceirinha de córrego, aguada de estreito vau. Deixaram que os animais bebessem o tanto que queriam, e tocaram de novo, a passo e mais calados ainda, pois se abeiravam do muro de pedras da rua do Cemitério, j á bem perto da pracinha do Barro Preto. Por um quebrado do muro, velho e esbarrondado por toda parte, alcançaram a rua. Poucas braças depois, entravam na praça. Alguma gente pelas portas e j anelas das casas, manadazinha de menino a correr em torno de um poste de luz, os três suj eitos parados na esquina da rua das Flores -José de Arimateia ia observando, enquanto atravessava com só Carício pelo meio do largo, as bestas emparelhadas, em meio-passo viageiro. Pouco movimento, casa ou outra j á de luz apagada, de moradores recolhidos — ele via. Desceram a ladeira de pedra-sabão, atravessaram a ponte de madeira do ribeirãozinho, e
entraram à esquerda, no beco escuro que levava à Praça do Mercado. Ninguém, ali entre a ponte e a pinguela — os dois cavaleiros repararam com cuidado. Desamontaram então. Aquele, o esconderij o onde haviam combinado deixar os animais: viçoso são-j osé que encobria as beiras do ribeirão, e tudo uma espécie de buraco úmido, povoado apenas de grilo e muito sapo — se via pela cantoria e gemeção que andavam por ali e reboavam cabeceira acima. José de Arimateia e sô Carício fizeram as montarias descer o barranco, entraram com elas no matagal brej oso até a touceira fechada de cana-de-macaco. Tiraram as capas e amarraram-nas na garupa do
arreio. — Então, "tamos combinados. O senhor vai na frente... — falou José de Arimateia. Sô Carício não disse uma palavra. Voltou ligeiro ao barranco, subiu por ali, e desapareceu no pretume do beco. José de Arimateia, enquanto esperava correr o prazo calculado, reapertava o
arreio de Camurça e reconferia, de memória, as coisas importantes: nos bolsos, nada, nada... — ele se apalpou mais uma vez. Na guaiaca, o dinheiro, as balas nos gomos da cartucheira, enfileirados por toda a volta da cintura — os dois revólveres e o punhal. Na garupa do
arreio, a capa bem amarrada, o surrão de sola com o pouco de roupa, a latinha com mais munição e uns cravos de ferradura, o canivetão cabo de chifre, o rolete de fumo, cabeças de palha, vela e fósforo, o esporão de veado contra mordida de cobra. Na capanguinha de brim, a lata de paçoca de carne-seca e a garrafa, ainda quente, de café com cachaça. O outro meio saco com milho e mais a rapadura e a saco linha de farinha de mandioca. Reafivelou a
barrigueira da outra besta, experimentou o amarrilho da capa de sô Carício, apalpou também o surrão e a capanga, os mais petrechos do companheiro. Tudo, tudo em ordem — verificou, sem nada esquecer, José de Arimateia. Mas ainda esperou por algum tempo, na beira do córrego, antes de subir o barranco e ganhar a esquina do beco. Parou j unto à ponte e, como uma pessoa vinda da Praça do Mercado, cuidadoso com a roupa, desenfiou dos canos da bota as pernas da calça, passando-as para fora e desamarrotando-as com as mãos. Abotoou o paletó, baixou a aba do chapéu, acendeu um cigarro. Era no outro passeio o sobrado de dona Maria Rosa — ele sabia. Atravessou então a rua e começou a caminhar pela calçada, os passos largos e balanceados, firmes. A casa baixota, engraçada, de duas portas gêmeas, o muro comprido de taipa encascalhada, a outra casa compridona, de barrado liso, que imitava madeira envernizada... — ele ia se lembrando do que vira antes e guardara de cor. A esquina, a venda ainda com uma porta aberta, a luzinha amarelenta, o cheiro de cebola, pinga e querosene, os dois homens de costas, debruçados no balcão. Do outro lado da rua, o sobradinho estreito e muito alto, com mastro de bandeira na sacada de cima, a parede tampada de andaime do prédio novo que acabavam de construir bem em frente ao sobrado dos Gusmões... José de Arimateia avistou, diminuindo o passo. — Diabo de sô Carício!... — principiava a resmungar, quando viu o companheiro que caminhava, cabeça baixa, vindo ao seu encontro, pela mesma calçada.
— Favor do fogo... — pediu, alto, José de Arimateia, quando se cruzaram. Sô Carício j á estava de binga nas mãos, e tremia um pouco quando bateu o fuzil na pedra. Soprava o picumã, e informava, depressa: — O portãozinho "tá aberto... "tão tudo na sala de frente... as j anelas de lado... a porta que dá pro alpendre também "tá aberta... — Algum soldado na esquina? — Vi nenhum não... Mas tem ainda um pouco de gente no largo... Sô Carício guardou a binga, e salvou, tocando no chapéu, antes de caminhar de novo: — Deus te protej a, seu Isé... José de Arimateia tirou uma baforada só, funda, forte, que quase o fez tossir, e j ogou fora o meio cigarro. Pôs novamente a mão esquerda no bolso do paletó, onde j á havia guardado o revólver grosso, retaco, de cano serrado. Apertou contra o coração o escapulário pendurado no pescoço, e se persignou em seguida, completo, com a mão direita — na testa, na boca e no peito. Nem parou j unto ao portãozinho de grade de ferro. Tampouco vacilou um segundo ao atravessá- lo, subir a escada de degraus de ladrilho lustroso de tão lavado. Vazio, o alpendre. José de Arimateia chegou à porta aberta da sala da frente, e viu, num golpe só de vista, a sala cheia: o padre, encostado a uma j anela, com a xícara nas mãos; seu Eduardo conversando alto, mais gente sentada, outros de pé; a empregada gorda, mulata, de avental e bandej a. Na cadeira de balanço, o velho barbado, de roupa preta: estava meio curvado, na hora de beber o café, a xícara em uma das mãos, o pires em outra. — Cachorro! — ganiu José de Arimateia, enquanto fazia fogo, o cotovelo apertado à cintura, os olhos acesos fitos nos olhos espantados de seu Tonho Inácio. E a meia-volta para trás, a descida atropelada pela escada de ladrilhos, o tranco que não pode evitar de dar no portãozinho de ferro, a corrida pelo meio da rua, rua das Flores abaixo. Atrás dele, ninguém. Nem um tiro, tropel nenhum de gente a correr em perseguição. Na venda, os dois tipos haviam chegado à porta, mas sem saber do que se passava. Perto da ponte, foi que uma j anela se abriu, se abriu uma outra, para surgirem pessoas — José de Arimateia não tinha tempo para distinguir se caras de homem ou de mulher. Na boca da ponte, sô Carício esperava, j á montado, segurando Camurça pelas rédeas. Foi a galope — aquele galope desengonçado, parecido que frouxo, mas resistente e rendoso de besta sadia e bem costeada — que José de Arimateia e sô Carício subiram a ladeira de pedra-sabão, e atravessaram a pracinha do Barro Preto. Certeza que, por ali, não tinham ouvido os tiros, pois a meninadinha continuava, como antes, a brincar em roda do poste de luz, quando os cavaleiros passaram de volta, e se sumiram pela rua do Cemitério — erma de tudo àquelas horas, apagada na escuridão.
Santana do Boqueirão 2° quadro
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POUCO ANTES DA meia-noite, principiou a descer a garoa, virada logo em fino e frio chuvisco. Chuva das flores -assim a chamavam ali em Santana do Boqueirão. Raro o mês de maio que a não trouxesse. O Largo das Mercês j á se esvaziara. Abertos, apenas o portão do fórum e a Confeitaria do Cucute — essa j á quase que sem mais fregueses no salão da frente, mas de mesas todas ocupadas no bilhar. Mudo, o ódio a endurecer-lhe mais ainda os olhos gateados, o capitão Eucaristo Rosa não abandonava a mesa reservada. Ao lado, rente, um cão de fila, o sargento Hermenegildo. Quase todo o destacamento se dispersara, ocupado nas diligências fora da cidade e no cerco pelas saídas dos altos e esquinas próximas ao quarteirão do córrego por onde se havia escapulido o Lico da Isoldina. No pátio do fórum, meia-dúzia apenas de volantes encapotados e embalados, de prontidão. O capitão olhava a chuva e se remoía. Mal-mal clareasse a manhã j urava ele a si próprio — haveria de revirar casa por casa daquela maldita cidade, até encontrar o j agunço foragido. O outro, também: o doutorzinho do j ornal, sumido na correria e confusão do tiroteio. Santana do Boqueirão iria ver com quem brincava... E nenhuma notícia, até aquelas horas, dos outros bandidos da quadrilha do coronel Americão Barbosa! Ninguém, tirante os que se encontravam viaj ando, se fora para tão longe assim — havia delatado o Clodulfo do Nascimento. E o guarda-livros, não somente havia revelado os esconderij os deles, como prestara também todas as informações de que precisavam as patrulhas do destacamento. Andava a corj a ali por perto mesmo, nas redondezas de Santana do Boqueirão... Todavia os soldados não voltavam! E a peste da negralhada vadia a batucar pelas pontas de rua dos altos da cidade, batucar e cantar sem parada, parecia até que mais animados ainda com o frio e a chuvinha que caía! — Amanhã não vai ter treze-de-maio nenhum... — rosnou para o sargento Hermenegildo o capitão Eucaristo Rosa. — Ninguém vai ficar pulando e gritando, enquanto eu não pegar essa cachorrada fugida. Às minhas custas é que não vão se divertir, não senhor... Ainda mais essa cambada... O capitão lembrou-se, porém, de que o sargento-ordenança era preto também — e da raça dos mais pretos — e engoliu o resto, para não ofender sem precisão o companheiro. Aquilo de permanecer funcionando, dia e noite, a fim de acompanhar o movimento dos trens pelas estações da linha, é que proporcionava ao telégrafo da estrada de ferro tal rapidez de serviço. Por isso que, não apenas o público, mas o próprio governo do estado preferia usar a estrada para seus despachos mais urgentes. Conforme as ordens dadas pelo delegado especial militar, cópia do que a estação recebia de importante, ou dirigido às pessoas relacionadas por ele, lhe era mandada incontinenti, fosse a hora que fosse. O praça Cordeiro, destacado na estrada de ferro, e encarregado desse expediente, encontrou o capitão Eucaristo ainda na Confeitaria do Cucute: — Acabaram de chegar esses dois, capitão comandante. O telegrafista me disse que "tão com taxa de urgente...
O capitão Eucaristo Rosa abriu primeiro o telegrama destinado ao dr. Damasceno Soares, j uiz de direito da comarca: SOLI CI TO VOSSENCIA VINDA ESTA CAPI TAL PRIMEIRO TREM SE POSSI VEL AFIM TRATAR ASS UNTOS INTERESSE ESSA COMARCA PT CORDIAIS SA UDACOES PT DOUTOR PI TAGORAS AZE VEDO SECRETARI O INTERI OR J USTI CA. — Ah! — O fogo j á se alastrava pelas orelhas do capitão. — Obra do dr. Tancredinho, algum acerto combinado com o dr. Azevedão... O outro telegrama, dirigido ao coronel Américo Barbosa, só podia ser dele, do filho-da-mãe do advogadozinho... E para cantar vitória — previa o capitão, abrindo o envelope, sôfrego: CHEGAM OS BEM PT ALI CINHA FELIZMENTE OTIMA SA UDE PT VAI APROVEI TAR FAZER NOVOS EXAMES SEGUNDA FEIRA PT ESTAM OS M UI TO CONTENTES PT ABRACOS DO FILHO LHE PEDE BENCAO TANCREDO. Pronto a confirmação do que desconfiava! Os exames de segunda-feira, decerto que novo encontro com o secretário, o chefe de polícia e, agora, mais o dr. Damasceno Soares, chamado às pressas à capital... — entendeu facilmente o capitão. E contentezinho, o rapaz, muito contente... O capitão acabou de ler e virou-se, ríspido, para o soldado à paisana que esperava, perfilado: — E para mim, não veio nada? Perguntou, a cara j á todinha manchada de placas vermelhas — o terrível sinal que todos do destacamento conheciam tão bem. — Não senhor, capitão comandante — informou o cavalariano. — Só me entregaram esses dois, meu capitão... E eu vim correndo... — Então volte pro seu posto. Se vier mais alguma coisa, me procure no hotel. Já vou indo pra lá. Releu os dois telegramas, guardou-os no bolsinho da túnica, e levantou-se: — Vamos embora! — chamou pelo ordenança. Na esquina da calçada, capote a escorrer da chuva, o cabo Salvador se enquadrou, esperando as ordens: — Mande me comunicar no hotel, logo chegue a primeira patrulha. Qualquer alteração... Ouviu-se, então, bem destacado dos bumbos da congada, o tropel troteado de ferraduras a entrar pelo começo de paralelepípedo da rua da Palha. O capitão calou-se, e os três avançaram até o meio da praça. — Daqueles lados, só pode ser o Lindo... ou, então, o Isé Inácio... — palpitou o sargento Hermenegildo. E, quando a patrulha apontou na esquina de cima, perto da Matriz: — É o Isé Inácio sim, capitão! E trouxeram o homem... O senhor repara: olha lá o burro dele, bem na frente... Vai ! E tem mais um... o do cavalinho baio... O Zé Inácio, soldado j á velhusco, era um dos mais antigos do Destacamento de Capturas. Conhecia dos gostos e também das birras do capitão, e, por isso mesmo, nada escondia do sucedido, contando a verdade sem rodeios: — Não teve outro j eito não, capitão comandante. O homem,
primeiro, resistiu: atirou até acabar a munição. Aí, quis fugir pelos fundos da casa... — Quem acertou nele? — Foi no mesmo tempo, capitão... O Zoz"mo e eu. Se ele vazasse a cerca, aí, então, caía no mundo... O senhor carece de ver a pirambeira que tem lá nas beirada" do rio. E tudo mata-virge"... — E esse horror de tiro... O homem "tá com mais duns doze... desperdício danado... — observou, carrancudo, o capitão Eucaristo. — Pois é... Ele ficou engastalhado na cerca de pau-em-pé, entalado, e nós, no escuro, não via" direito... A gente atirava e o bicho não caía... Seu Elpídio, o escrivão de polícia, chamado em casa, esperava pela ordem de lavrar o depoimento do preso. O capitão, porém não se apressava: — E o rapaz, prenderam ele por quê? — perguntou ao soldado. — Aj udou a resistir... É irmão da mulher do Chico Doido... O Isé Inácio continuava, respondendo agora às outras perguntas do sargento Hermenegildo: — O senhor calcula: a gente passou por lá, mais para tomar informação, como o senhor determinou... E, quando vimo", antes ainda de apear na casa, ele começaram com o banzé, lá de dentro... Mas o moço, depois que viu o cunhado morto, aj oelhou e veio vindo assim com as mãos por cima da cabeça, gritando que se entregava... Um, pelo menos, j á tinha sido liquidado — refletia o capitão, enquanto o soldado falava. E o restante não haveria também de escapar. Bastava que o dr. Azevedão desse mais um pouco de prazo. Esquisito era não ter chegado telegrama nenhum, sustando a ação do destacamento! Talvez que não soubessem ainda, lá na capital, que a coisa j á havia começado... ou esperassem pelo j uiz de direito... a reunião de segunda-feira... — "cê me faz o seguinte, Zé Inácio — o capitão Eucaristo interrompeu a conversa do sargento Hermenegildo com o cavalariano. — "cê me fique aí, e aj uda no depoimento do preso. E o senhor, seu Elpídio, não me passe nada pro livro, por enquanto. Faz só um rascunho, a lápis mesmo, num papel separado; quero ver isso primeiro, de manhã. E não me ausente da delegacia, até que eu volte. E saiu, mais o ordenança, sem sequer olhar para o defunto. Esticado no chão da entrada da delegacia, descalço, a cabeça aos cacos — os miolos, os ossos, a roupa, tudo encharcado da chuva e preto da sangueira — o corpo do Chico Doido. Aradas por aquilo — ainda mais de luz acesa! — as moscas se aj untavam, musicando, alegrezinhas. Tantas, que parecia o inteiro enxame — as varej as todas da barrica do pátio, depósito das porcariadas da cadeia. No quarto do hotel foi que o capitão Eucaristo Rosa mostrou os telegramas ao sargento Hermenegildo. Esperou que o ordenança lesse, vagaroso, soletrando com os lábios palavra por palavra: — Qu"ê que "ocê acha disso? O sargento custava a responder, e o capitão Eucaristo revelou então o que pensava: — Pra mim, esse telegrama pro j uiz de direito, chamando ele, é para acertarem lá na secretaria, outra manobra qualquer, "cê presta atenção: está de acordo com o outro telegrama do dr. Tancredo. Essa história do médico é código que ele mais o pai combinaram... "tá na vista... E o rapaz tão satisfeito assim... — O senhor acha então... — "cê vai escutando: segunda-feira de noite, ou terça de manhã, a gente recebe ordem para
evacuar a cidade. O sargento Hermenegildo acabou por entender tudo rapidamente: — É... O destacamento tem de agir depressa... A história de não ter ele recebido nenhuma comunicação do secretário é que ainda encabulava o delegado especial militar : — Pode ser também que tapearam o doutorzinho, e mandaram chamar o dr. Damasceno a fim de me deixarem com liberdade completa... O dr. Azevedão é pessoa amante dessas tretas... — E o senhor "tá dentro da combinação: correu o prazo, não chegou contraordem nenhuma... O sargento Hermenegildo estava com sono, precisado de dormir nem que fosse aquele resto de noite — o capitão percebeu, e lembrou-se do tanto de serviço que iria o ordenança ter no outro dia. Despachou-o então: — Vai descansar um pouco, sargento. O Zé Inácio cuida da cadeia e o Salvador controla a cidade. Se vierem me chamar, lhe aviso. O capitão Eucaristo Rosa, antes de deitar-se, examinou o trinco da j anela, e escorou a porta com a cadeira especada entre a maçaneta e o chão do quarto. Tirou a túnica e as botas, colocou a carabina e a máuser no assoalho, bem ao alcance das mãos, e se estirou, sem desfazer a cama, cobrindo-se com a capa. Mas não dormiu de pronto, apesar do dia tão longo e movimentado: teimavam em lhe tirar o sossego os telegramas passados pelo dr. Azevedão e o dr. Tancredinho Barbosa. Um dos bandidos, pelo menos, e dos mais perigosos, a Captura havia pego: o Chico Doido — o capitão aproveitava a insônia e fazia o balanço do ocorrido até aquela hora. A confissão completa do Clodulfo do Nascimento ali no bolso da túnica, o plano bem imaginado pelo guarda-livros para apanhar, vivo ou morto, o José de Arimateia... os outros j agunços localizados... Fracasso, um só: a escapada do Lico da Isoldina, devido à pixotagem do cabo Zeca Branco. O droga do dr. João Crisóstomo, esse, mesmo que se sumisse, j á havia recebido a lição... Azar eram aqueles telegramas, a reunião de segunda-feira, o espicha-encolhe do governo, a mania do j uiz de direito — o bobo- alegre, a querer resolver tudo com bons modos... Até que a canseira foi mais forte que as preocupações. E tão pesado dormia o capitão Eucaristo Rosa que não podia ouvir mais o tropel, no calçamento do centro da cidade de Santana do Boqueirão, das outras patrulhas que chegavam na madrugada.
37
O DR. DAMASCENO SOARES passara aquele sábado trancado no fórum. Mas sem perder nada do que ocorria em Santana do Boqueirão: via,pelas frestas das venezianas da saleta, todo o movimento no Largo das Mercês, e ouvia chegarem e saírem, no pátio, embaixo, as patrulhas do destacamento. O que escapava ao doutor, trazia-lhe o Juca Meirinho, oficial de j ustiça da comarca. O capitão Eucaristo Rosa, depois de ir ao gabinete do j uiz de direito para exibir o telegrama recebido de São Pedro da Ponte — o assassinato cometido pelo Sudário, em Santa Fé — voltara apenas mais uma vez, à noite. O delegado especial militar agia — e agia agora a seu talante, desforrando-se do tempo que esperara. O dr. Damasceno estava a par de tudo. Oculto pelas j anelas cerradas, assistira à cena do homenzinho amarrado à árvore, sentado no gelo, a multidão de gente ali postada até que a pedra se derretesse. Não deixava de ter sua graça, aquilo: pequetito, de chapéu e gravata, as perninhas encolhidas. Cada espirro que o tipinho dava era a assobiação, a risalhada — a vaia. Um pobre-diabo, muito popular em Santana do Boqueirão, sem serviço certo: um Joaquim Lopes, mais conhecido por Quincota — o Juca Meirinho havia dito —, espécie de mandalete, recadeiro do Clodulfo do Nascimento, o guarda-livros da Câmara Municipal e também da Fazenda do Sassafrás. Pessoa muito chegada ao coronel Américo Barbosa, o seu Clodulfo — esclarecera ainda o Juca. Como se ele, dr. Damasceno, não conhecesse a bisca — cérebro e gerente da quadrilha! Fingira que não, quando ele estivera, de manhã, no fórum, em companhia do coronel Americão Barbosa e do agente-executivo, o coronel Calixtrato, para não dar importância ao suj eitinho. O guarda-livros — secretário do diretório, ainda por cima, o patifão! — era o que mais apavorado se mostrava. Boa, muito boa... — o j uiz de direito se lembrava — a brincadeira de trocar-lhe o nome. "Seu Ataulfo..." e quase que se borra todo, o droga do Clodulfo, ali no sofá da sala, apenas com ouvir o nome do adversário do governo! Logo depois, a prisão do cuj o, a confissão arrancada na cadeia pública, lá pelos escabrosos domínios do capitão, a viagem da patrulha guiada pelo preso ao Chapadão do Bugre, atrás do bandido José de Arimateia. Dessa providência — a única entre tantas outras tomadas pelo delegado militar — dignara-se, afinal, cientificá-lo o capitão, declarando ainda estar de posse de depoimento completo assinado pelo guarda-livros. Por último, o espetáculo da prisão do dr. João Crisóstomo — o ridículo dr. Joj oca —, o tiroteio, a fuga do tal Lico da Isoldina em pleno trecho central da rua do Comércio, a patrulha chegada, debaixo de chuva, com o morto emborcado sobre a sela. E as outras escoltas com mais presos — todas elas passavam ali pelo Largo das Mercês — isso quando j á ia adiantada a noite. Até que tudo ali no largo se quietou, e o j uiz de direito recolheu-se à cama de solteiro, na solidão e frio do quartinho improvisado. Mas o dr. Damasceno Soares não dormia. Na madrugada continuava a chuvinha gelada e preguiçosa, e o batuque — agora mais crescido e gemebundo — a baixar dos altos da cidade.
Levantou-se novamente, que o frio aumentava, afastando mais ainda o sono. Nem precisou de acender a luz para ir buscar a garrafa que j á havia guardado na mala, por baixo da roupa branca. Escondidas no fundo do baú dos livros, havia outra, cinco pelo menos — contou, de memória, o dr. Damasceno Soares — o restante da dúzia que trouxera quando da última viagem à capital. Achou também, no escuro, o copo deixado sobre a mesa. O dr. Damasceno calculou bem a dose, pois o copo se encheu, pesado, sem nada derramar. Felizmente, o dia que estava por amanhecer era um domingo — lembrou-se ele — e o Juca Meirinho só viria mais tarde, com a lata-d"água do banho e o café. Umas boas cinco horas teria ainda de sono, levantando-se com tempo de assistir à missa das dez, na Igrej a da Matriz. Deitou-se, então, garrafa e copo ao seu alcance, pousados no assoalho. Já havia bebido alguns tragos, depois que o Juca Meirinho se fora e enquanto vigiava, das venezianas da saleta, o Largo das Mercês. Agora, entretanto, com mais aquela meia-copada, tomada de uma vez, é que os pés se aqueciam e uma tonturazinha chegava para azonzar-lhe a cabeça. Assim deitado, parecia que balançava, lenta e silenciosa, a escuridão do quarto. Aqueles idiotas de Santana do Boqueirão! Acostumados a lidar com autoridades frouxas e vendidas, engazopando-as com elogios e agrados... O outro, o que se aposentara e abrira a vaga da comarca, o infeliz era uma lástima: comprado pela tutameia do aluguel de casa e lugar de graça no colégio para a filharada. E o mantimento vindo do Sassafrás — ridicularias de arroz e feij ão, banha, açúcar preto e café —, bandazinha de carne de porco hoj e, sua duziazinha de ovos, um queij o, um requeij ãozinho amanhã... Contavam que o dr. Vasconcelos, o crápula do j uiz, chegava a mandar avisar ao coronel Americão quando o estoque da despensa ia-se minguando... Por isso que durara tantos anos na comarca, e pudera comprar, com o dinheirinho ali aj untado, a casinhola na capital, onde, hoj e, apodrecia de velho e desmoralizado. Com ele, dr. Damasceno, bem que haviam tentado fazer o mesmo. A casa pronta, mobiliada; se não servisse a que o dr. Vasconcelos ocupara, havia outras: casais idosos que se propunham cuidar dele, enquanto não trouxesse a família para Santana do Boqueirão. Insistiam: ainda de manhãzinha, voltaram os dois coronelões, o Americão Barbosa e o Calixtrato, a tocar no assunto. Desta vez para lembrar uma prima, viúva, e muito devota também, a Zulmira do Tati — o j uiz guardara o nome da mulher — disposta a zelar ele como de um irmão, como se fora um filho. Zulmira do Tati... — tinha graça! Outra golada, que acabou de esvaziar o copo à espera no assoalho. Pinga velha, curtida em tonel de cabriúva — lhe garantira o desembargador Pimenta ao indicar o armazém que a engarrafava. Doze garrafas, doze... Pena era que, em pouco tempo — menos de vinte dias — j á se ia a sétima!... E o burro do médico, o especialista da capital, a recomendar que abolisse por completo o álcool... O imbecil: nada como o álcool, isso sim, para esquentar o peito, descongestioná-lo, melhorar a asma! O último acesso fora o que lhe viera na saleta, no dia da chegada do capitão Eucaristo Rosa com seu Segundo Destacamento. A maldita fumaça do cigarro que se atrevera a acender o desaforado do dr. Tancredo... O pilantra... Que andaria arrumando, lá pela capital, o baronetezinho de Santana do Boqueirão? Não, não ia arranj ar nada, que nem tempo mais havia... o capitão Eucaristo j á entrara em
ação: um dos j agunços da Barbosada havia passado, pouco antes, ali pelo Largo das Mercês — um bicho inerte e ensanguentado — pernas e braços pendurados lado e outro da montaria, balançando... E os outros, em seguida, amarrados e puxados a laços pelos volantes da Captura... Sim, as coisas corriam melhor do que o esperado. Todos haviam caído, um por um, como pantolas... o dr. Figueiredo de Mendonça, o dr. Azevedão — esse louquinho pelo lugar do dr. Ataulfo na chapa de deputados e na Executiva —, o facínora do capitão Eucaristo, insaciável de truculência e sangue... Bonita manobra: algumas cartas, umas poucas viagens à capital, a intriga bem alinhavada... E ninguém desconfiara! Mais algumas horas, e tudo se acabava. Das mãos do capitão Eucaristo é que o José de Arimateia j amais escaparia: j á lá estavam, no Chapadão do Bugre, os cavalarianos da Captura, levados pelo pústula do Clodulfo. O capitão soubera escolher o j udas: o guarda-livros traíra logo por atacado: do coronel Américo Barbosa — seu patrão e protetor — ao último do bando, a quadrilha inteirinha que o pulha, ele mesmo, havia organizado... O dr. Damasceno encheu de novo o copo e bebeu outra golada boa. Pouco depois, era ele próprio, a cama, o quarto — tudo que rodava. Teve, porém, de erguer-se, apoiado ao travesseiro, para respirar melhor e livrar-se da ânsia que o atacava sempre que bebia assim deitado. Nessa nova posição, logologo o mal-estar passou. Livre, livre Santana do Boqueirão do coronel Americão Barbosa e sua j agunçada, livre de José de Arimateia! — como que declamava, a meia-voz, os braços estendidos, as mãos veementes. Livre a cidade, livre o caminho para que, finalmente, ela pudesse vir ! Sim, morto José de Arimateia, nada mais impediria que Maria do Carmo viesse para j unto dele! Por pouco que o dr. Damasceno não desata a rir, a gargalhar, a cantar de esperança e alegria. Um relampej o de lucidez lembrou-lhe, porém, que era o j uiz de direito da comarca, e que, lá embaixo, no pátio do fórum, poderiam ouvi-lo os cavalarianos que rondavam. Por isso que o atraía a solidão do quartinho lá de cima. Não apenas se isolava da convivência inútil com as pessoas do lugar, como podia beber demorada e tranquilamente, sem prej uízo de sua reputação e autoridade. Beber e sonhar : recordar-se, como gostava de fazer : ordenando os dias, recapitulando, um por um, do primeiro ao último, seus encontros com Maria do Carmo. E tanto se acostumara a revivê-los, que nada deixava de ressurgir — palavra ou pormenor nenhum — daqueles derradeiros meses vividos em Campanário. Tudo nítido como se presente — real como se ela estivesse ali ao lado. Ele a invocava, Maria do Carmo vinha. E, então, o escuro se acendia, acabava o frio, o silêncio se alegrava: era ela, contentezinha como sempre, conversando e rindo enquanto o deixava despi-la devagar e amorosamente. Tirar-lhe peça por peça da roupa perfumada, os sapatinhos brancos, a fita dos cabelos... Como havia começado? Ah! Ele se lembrava de tudo, os minutos todos daquela tarde em Campanário. Ela a aparecer, pequenina e risonhazinha, o terno branco no braço: "Mamãe caiu de cama, e então me mandou trazer a roupa... Estava, coitada, toda hora se lembrando que o senhor carecia do terno hoj e, para a festa..." E entrou, para colocar a roupa engomada na cadeira. A casa vazia, grande, escura. Principiava a anoitecer, e as luzes da cidade não haviam acendido ainda. Ele, ali sozinho, curtindo o isolamento a que o forçava a condição de j uiz — a mulher, os filhos fora. Pensava j á em sair, passar no hotel para o j antar, ir em seguida à caceteação do Silogeu, onde tinha de discursar, convidado pelo padre Pena — a tal posse da diretoria nova. Maria do Carmo desdobrava a calça, estendendo-a nas costas da cadeira de balanço, pendurava, cuidadosa com as mangas e a gola, o paletó duro e brilhante de tanta goma. "A noite parece que refrescou... vou
assim de casimira mesmo... não precisava tanto incômodo...", falara ele, enternecido pela presença da criaturinha atenciosa tão bem cuidadazinha. "Siá Gorgota me contou que tinha uma filha; mas não que fosse tão bonita assim...". Quando viu, j á tinha dito a galanteza. Ela sorriu, o moreno do rosto ganhou mais frescura ainda, os olhos saltitaram, alegrezinhos: "Bondade do senhor...", a moça gorj eou, abrindo mais o riso cor-de-romã, de dentes miudinhos, muito brancos, as duas pintinhas de ouro bem na frente. "Você se chama?...", ele perguntou. "Maria do Carmo..." a vozinha cantada respondeu. Olhou-lhe as mãos: pequenas também, as unhas bem tratadas, os pulsos finos. Olhou-lhe os braços, o pescoço, o redondo do rosto, o pretume dos olhos e dos cabelos. Adivinhou-lhe os seios madurozinhos, crescidos, o viço e o desassossego que o vestido apertado a custo disfarçava. Maria do Carmo parecia perturbada também: "Bom, j á vou indo, doutor... Mamãe, é só melhorar, dis" que vem..." Ah, abençoada coragem que chegou, então! Antes, nunca teria sido capaz de tal desembaraço — as palavras fáceis, a naturalidade da lembrança e da maneira como insinuou: "Sua mãe, quando me traz a roupa, se demora conversando, faz café..." E ela, muito pronta, brej eira: "Ah, é? Mas o senhor não está na hora de sair? " Foi na cozinha, quando Maria do Carmo se curvou para atiçar o fogo, que ele a abraçou por detrás, segurando-lhe as mãos, beij ando-a nos cabelos. "Que é isso, doutor?! Não faça assim!" ela molemente relutava. "Não, doutor, me larga... Me deixa ir embora..." Carregou-a para o quarto, deixou-a ali enquanto ia fechar as portas da rua e da cozinha. Quando voltou, Maria do Carmo j á estava deitada, de bruços, a cabeça escondida nos travesseiros. Alguns dias depois, chegava o telegrama chamando-o à capital. Era a confirmação da vaga de Santana do Boqueirão, aberta com a esperada aposentadoria do dr. Vasconcelos, o convite do dr. Figueiredo de Mendonça para ir ocupá-la, a disposição do presidente de acabar com o banditismo que campeava pelo Bugre. Aceitara o oferecimento — significava promoção, um estágio de pouco tempo na nova comarca, a capital logo em seguida — e, j á de precaução, advertira a família da transitoriedade da mudança. Iria só, sem a mulher e os filhos; mas levaria com ele Maria do Carmo e a mãe. De volta a Campanário, conversou com as duas. Fácil o arranj o — ele propusera. Siá Gorgota apareceria como empregada antiga, de toda confiança; ficariam, ela e a filha, morando com ele, cuidando da casa — da roupa, da comida... Foi, então, que elas lhe contaram ser em Santana do Boqueirão que vivia José de Arimateia. Antes, Maria do Carmo j á lhe havia explicado como se perdera — a história acontecida no Capão do Cedro, o sucedido com o filho do fazendeiro, o noivado com o dentista, a combinação da mãe com seu Tonho Inácio para evitarem as complicações, o crime... Tanto Maria do Carmo como siá Gorgota — a velha estava a par de tudo o que se dava entre ele e a filha, era ela quem passara a trazer a moça, vigiando a casa e esperando pelos dois o tempo que quisessem... — sim, ambas tinham razão: impossível mudarem-se com ele para Santana, pelo menos enquanto vivesse por lá o antigo noivo, j á então virado em bandido, e dos mais terríveis.
Não, não suportava mais viver sem Maria do Carmo — o dr. Damasceno bebia e delirava, despercebido do claror azul-cinza que vazava pelas venezianas do quarto. Madrugada, e ele nem via — longe dali, afundado na paixão daqueles últimos dias passados em Campanário. Siá Gorgota acedera em ir ficar morando na casa, depois que ele voltara da capital: aj udar na arrumação dos livros, preparar a mudança das coisas para Santana do Boqueirão. Maria do Carmo entrava e saía com a mãe, naturalmente, e ninguém, ali em Campanário, teria o que dizer. Se falavam — e era bem possível que j á andassem reparando, murmurando — pouco se lhe dava. Importava-lhe, isso sim, mas era passar as noites inteiras com Maria do Carmo, a casa fechada, com siá Gorgota dentro para salvar as aparências. A velha tinha o cuidado de deixar acesa a luz do escritório, as vidraças descidas, como se ele estivesse ocupado no trabalho. E ficava pela sala de j antar, cantando e passando roupa, para que a vissem bem as poucas pessoas que passavam pela rua. Maria do Carmo gostava de beber também, e ia, aos poucos, ganhando intimidade, perdendo o acanhamento. Deixava que ele lhe tirasse toda a roupa, se demorasse namorando-a assim, a acarinhasse como bem quisesse. Quando apagavam a luz e se deitavam, aí, então, era que mais desembaraçada e sem-secazinha se mostrava, ela é que vinha procurá-lo, que queria. Nem precisava mais ele ensinar, pedir. Ah, como Maria do Carmo sabia compreendê-lo! Como sabia provocá-lo, passear-lhe pelo corpo a escovazinha macia dos cabelos, as mãos mexeriqueiras... a bocazinha ágil e j á tão sabidazinha... O dr. Damasceno levantou-se, que tais recordações j á o desesperavam. Foi ao baú, inseguro de passos, trêmulo, tateou-o, abriu-o, buscou, entre os livros e as garrafas, até achar a coisazinha fofa, de cetim, enrolada e bem escondida no fundo. "Bobagem, meu bem... Te dou uma outra, sem usar ainda... "ocê leva..." Maria do Carmo dissera, meio espantada com a esquisitice do pedido. Acabou, porém, por rir muito, e deixar que ele lhe tomasse a peçazinha de roupa e que a trouxesse consigo. Nada mais faltava — o dr. Damasceno deitou-se novamente. Tenro e terno, assim como o cetim que ele beij ava, apertado entre as mãos, era o corpo pequenino de Maria do Carmo — e doce, e perfumado. Sim. Maria do Carmo estava ali ao lado, no quarto ainda escuro, deitada na cama estreita. E também j á impaciente, mortazinha de desej o. Quando tudo acabou, Maria do Carmo então se foi. Mas o dr. Damasceno não a viu sair : adormecia afinal, esgotado e arfante.
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MAS O DR. DAMASCENO SOARES não pôde aproveitar aquele domingo para ficar na cama até mais tarde. Seu Juca Meirinho bateu-lhe cedo à porta: — O senhor desculpe, doutor. Mas chegou um telegrama... O rapaz da estrada foi me levar ele lá em casa... Disse que é urgente... O j uiz de direito levantou-se. Escondeu, rapidamente, a garrafa vazia no baú dos livros, e enfiou, por debaixo dos cobertores, a peçazinha amarrotada de cetim — cor-de-creme, rendadazinha nas pernas. Derramou no copo a dose do remédio — a poção recendia pelo sobrado inteiro do fórum — e bebeu o gole amargo, enj oativo. — Um momento, seu Juca... — gritou para o oficial de j ustiça, enquanto punha o pincenê, compunha o pij ama, e vistoriava a cama e o quarto. Pobre do doutor ! — observou consigo seu Juca Meirinho, ao deparar o j uiz tão abatido, de largas e fundas olheiras como que a aumentarem os vidros enfumaçados do pincenê. Outra crise da asma, e das mais brabas, coitado! — certificou-se o Juca, então, quando o envolveu a fortidão do odor do remédio. O empregado da estrada de ferro j á lhe havia revelado o teor do telegrama, e o oficial de j ustiça, sabendo da viagem do doutor, se adiantara: trouxera-lhe também o café com leite, o pão amanteigado e o j ornal local, dos domingos. Acompanhava-o o filho, com a lata de água quente para o banho. — Achei que devia acordar o doutor... podia ser coisa importante... O dr. Damasceno Soares leu o telegrama, mas não permitiu, o pincenê negro a lhe nublar mais ainda o rosto, que o oficial de j ustiça descobrisse se eram boas ou más as notícias. Leu, releu e indagou: — Hoj e não é dia daquele outro misto que faz baldeação em Pedreiras? O das onze e cinquenta? — O trenzinho dum carro só? É, sim senhor : ele passa às terças, quintas e domingos. — Então, o senhor me faz o favor : avise na estação que eu quero um lugar. — Pro senhor mesmo? — o Juca Meirinho fez-se de surpreendido, não traindo, assim, a indiscrição do funcionário da estrada de ferro. — Mas aquele mistinho é uma lesma, doutor... — Sei. Mas, em Pedreiras, pego o expresso, e chego mais cedo à capital. Seu Juca, vendo que o dr. Damasceno não lhe adiantava mais que isso, acabou encontrando a maneira adequada de mostrar zelo e interesse: — Alguma doença na família? — Não, não... Graças a Deus não é nada não. Assunto de serviço... O homenzinho gastava tempo em temperar a água e despej ar o banho na bacia, e o dr. Damasceno adivinhou que havia novidade escondida por trás daquela manhosa demora. Mas não queria se confessar curioso: — Esta noite, quase que não dormi direito... ou, melhor, passei-a toda em claro... Além da sufocação, essa barulhada aí no pátio... Não pararam um minuto... — disse o j uiz de direito, espremendo o dentifrício na escova. — Ontem j á era tarde quando deixei o senhor aqui no fórum, e fui então para casa — começou o Juca Meirinho. — Mas, agora cedo, eu j á sube de tudo; pegaram o Chico Doido... Fez pausa, esperando por um comentário do j uiz de direito. Como o doutor se mantinha calado, prosseguiu então: — Ele "tava escondido num sitiozinho dum cunhado; tiroteou com a Captura, e
mataram ele... O corpo chegou de madrugada e "tá lá na delegacia... E prenderam, no porto do Sucuri, o Sudário do coronel Ludgero... Prenderam também o Hirondino, na Laj inha... — Ah, foi? — o dr. Damasceno se decidiu a estimular um pouco o oficiai de j ustiça. — Mas o Lico da Isoldina, esse não acharam ele ainda não, não senhor, "tá tudo cercado, aqui no centro da cidade... Me disseram que j á começaram a revistar as casas, uma por uma... E a levar quem eles desconfiam que "tá escondendo alguma coisa. O dr. Joj oca, quer dizer, o dr. João Crisóstomo, esse, também, não descobriram ele mais não... O j uiz de direito havia entrado no banheiro, mas largara entreaberta a porta, sinal de que podia seu Juca Meirinho continuar falando, agora em voz alta, para ser ouvido lá de dentro: — O capitão proibiu o treze-de-maio, a congada dos pretos. Prenderam também o Joãozão Crioulo, que quis discutir com a patrulha... Pegaram e bateram muito nele... Enquanto tomava banho, o dr. Damasceno deixava que o Juca Meirinho contasse tudo o que sabia. Até que, acabado o que havia de importante, chegava a hora de se lhe cortar a falação. Mandou, da bacia: — Sei, sei... Mas convém ir reservar logo minha poltrona, que esse trem viaj a sempre danado de cheio. Fale diretamente com o chefe da estação... Ah, escute: me passe também no Hotel da Prudenciana — vai primeiro lá — vej a se o capitão ainda está no quarto. Se não, olhe na cadeia, aí na confeitaria, me descubra o homem... Avise que eu viaj o hoj e, e que eu queria falar, antes, com ele. Se pudesse, agora de manhã... Seu Juca Meirinho e o filho j á desciam as escadas do sobrado, quando o doutor berrou: — Antes da missa das dez, se o capitão me faz o favor, "viu, seu Juca? Vá depressa, me pegue um carro de praça... E não me esqueça de deixar a porta aí de baixo aberta... O dr. Damasceno Soares esperou um pouco antes de soltar a risada. E cantarolar, apesar de lhe baterem os queixos de tanto frio — não importava mais que pudessem ouvi-lo — enquanto se desentorpecia, esfregando-se com a toalha. O dr. Damasceno Soares, depois de tomar o café, voltou à cama com o j ornal. Deu logo com o artigo de fundo que, semana ou outra, redigia o dr. João Crisóstomo, e pôs-se a lê-lo com atenção. Claro que escrito antes do espetáculo no Largo das Mercês, bem ali embaixo das j anelas do fórum! Se ria, com gosto, o dr. Damasceno. A badalação ao presidente do estado, a ele, o j uiz de direito da comarca, ao capitão Eucaristo Rosa!... Pregar tanta moral, o Joj oca, conhecido como o mais depravado de toda aquela corj a de Santana do Boqueirão, encontradiço dia e noite na zona do mulherio, volta e meia trocando de rapariga... Falavam horrores do Joj oca, nem um pouco recatado, alardeador, isso sim, de suas mais abj etas bandalheiras... — e o libidinoso, o cínico, a vir pontificar sobre moral, deitar sermão! Ele, dr. Damasceno, assistira à cena toda, espiando, de luzes apagadas, pelas venezianas da saletinha do fórum: a chegada da escolta ao largo, o pândego apenas de calças e suspensórios, ladeado de soldadesca... E o discurso que começava a fazer o capitão Eucaristo Rosa — a banda de música, a praça apinhada de povo, como em um comício?! Contara, depois, o Juca Meirinho, que era um princípio de descompostura, e que a coisa parecia ir ainda acabar em surra... Ah, de que boa lição haviam livrado o patife aqueles tiros fora de hora na ponte da rua do Comércio!
E a cena do bordel da tal Carvalhosa, o soldado a arrombar a porta do quarto e a pegá-los em flagrante: os dois — a rapariga e ele — pelados na cama, em plena postura tão escandalosa! — contara também o Juca, muito por alto, acanhado e sem j eito, o que a cidade inteira j á sabia. "Moral e Ordem" — o j uiz relia, agora, o editorial, caindo em novo acesso de riso: "Simpática e enérgica figura do capitão Eucaristo Rosa...", os "garbosos cavalarianos do Segundo Destacamento..." Pena mesmo que o Lico da Isoldina viesse estragar com o melhor da festa!... Que delícia: o suj eito levar a sova e, no dia seguinte, ainda de salmoura, vir pelo j ornal a elogiar a energia e o garbo do delegado militar e dos soldados! Faltava só gabar, também, a musculatura deles e a rij eza afiada de seus refles!... Parecia anedota! — gozava, ali na cama, j ornal nas mãos, o dr. Damasceno Soares. Sim. A coisa finalmente terminava. Lá estava, encurralado em seu palacete, o coronelão analfabeto e presunçoso, o tiranete do lugar. Juntamente com ele, os outros graudões de Santana: a cavalgadura do coronel Calixtrato a exibir o estúpido bengalão encaroçado e a perna da ceroula amarrada j unto ao botinão de elástico; o vigarista do Valério Garcia, metido a rábula, arvorado em conselheiro da comarca, compadre e íntimo de tudo o que era vendido de j uiz que aparecia por ali... Não. Nunca vira gente tão acovardada — se lembrava o dr. Damasceno da visita da véspera — tão humilhados e lamuriosos, que até davam noj o... Chegava, na hora exata, nem cedo nem tarde, o telegrama do secretário. Nem cedo, porque ficaria ausente da cidade, enquanto o capitão praticava as suas barbaridades, sem participação nenhuma dele, o j uiz, em tais violências... Nem tarde, porque ainda haveria tempo de impedir qualquer afrouxamento do governo, pelo menos enquanto não liquidassem com o José de Arimateia... Lá pela capital, o Tancredinho certamente que se mexera, acabando por assinar alguma declaração de rompimento com o dr. Ataulfo Machado e de adesão ao malandro do Azevedão... Os j ornais publicariam... Concordaria, sem mais dúvidas, o coronel Américo Barbosa, em entregar à Captura os bandidos mais em evidência, esparramando com o restante... Em troca, bambeariam as correias: o presidente mandaria que ele, o j uiz de direito, sustasse a pressão do fórum, pusesse uma pedra em cima dos processos... Sim, chegaria a tempo, porém, de evitar um perdão completo do dr. Figueiredo: todos podiam escapar, menos o José de Arimateia... A uma hora daquelas — o dr. Damasceno Soares pousara o j ornal no assoalho do quarto e cerrara os olhos — o Clodulfo estaria diligenciando a melhor maneira de fazer o bandido cair nas mãos da patrulha que seguira para o Chapadão do Bugre. O facínora, logo se visse traído e cercado pelos volantes, haveria de tentar reagir, como fizera o Chico Doido... Mas, como o companheiro, terminaria também por desfilar, pelas ruas da cidade, crivado de balas e a escorrer miolo e sangue, de borco na sela da montaria. E Maria do Carmo, e siá Gorgota — as duas poderiam vir então. Alugava-se a casa, a velha ficaria logo conhecida como a empregada antiga, de confiança, trazida de fora... E nada de visitas, de intimidades com o povo de Santana do Boqueirão: que corresse, mais espalhada ainda, a fama de que o j uiz de direito era pessoa neurastênica, homem adoentado e nervoso, sempre fechado com os livros, no escritório, a trabalhar, a estudar... Juca Meirinho subia as escadas do sobrado, e o dr. Damasceno foi abrir-lhe a porta. — O capitão foi pra diligência... a batida que "tão dando no Lico da Isoldina... — o oficial de j ustiça informou. — O cabo que estava aí embaixo me disse, mas j á mandaram atrás dele, do capitão ou do ordenança, com o recado do senhor... — E a passagem do trem de ferro?
— "tá tudo arranj ado. Seu Polinésio, quando eu disse que era o senhor que viaj ava, falou que vai mandar ligar um vagãozinho da fiscalização, e que o senhor pode ir nele. Dis"que tem uma mesa, até um j eito d"o senhor viaj ar deitado, se quiser... — explicava o Juca Meirinho, sem, entretanto revelar que a ideia do vagão reservado fora lembrança dele mesmo, e que tudo havia dado assim tão certo. O pobre do doutor j uiz de direito merecia. Trabalhar daquela forma, e, ainda por cima, sempre aperrengado, atacado de tão rebelde puxamento de peito, sem poder dormir de noite! — era no que pensava, condoído, ao descer para a porta do fórum, o excelente do Juca Meirinho, à cata de mais alguma notícia da Captura. Depois da missa das dez, na Igrej a de Nossa Senhora das Mercês — aos domingos, a essa é que assistia o j uiz de direito, a mais bem frequentada de Santana do Boqueirão, missa com sermão e coro do seminário —, voltou o dr. Damasceno Soares ao fórum para acabar de arrumar a mala. Trancou a chave o baú dos livros — j á havia escondido ali, j unto às garrafas da pinga velha, a lembrançazinha rendada que lhe dera Maria do Carmo — e recomendou ao Juca Meirinho que chegava com o carro de praça: — O capitão me pediu, hoj e, o salão de j úri para uma reunião que quer fazer com as autoridades municipais. Ali é mais amplo, e ele disse que convocou muita gente. Mas meu quarto fica fechado; a chave vai comigo. Está cheio de livros, de autos, de processos... o senhor me fique sempre por perto... Na estação da estrada de ferro, j á quase na hora de partir o misto das onze e cinquenta, o dr. Damasceno lembrou-se ainda de encomendar ao oficial de j ustiça: — Minha demora é rápida. Não sei se trago ou não, desta vez, a família — lá é que vou resolver. De qualquer maneira, o senhor vai- me olhando uma residência boa, afastada do centro, sossegada... Vizinhança ordeira, acomodada, nada de pensões, casas suspeitas... — Zona assim é o Santo Eustáquio... — o Juca Meirinho prestava muita atenção nas recomendações do doutor. -Antiga, tudo casa de quintal grande, com bastante fruta, e só famílias de respeito. Depois, para o senhor, vai ficar até que muito à mão: a Igrej a do Rosário logo ali mesmo, com missa das sete todo dia... A campainha da plataforma soou, apitou a máquina, e o dr. Damasceno Soares despediu-se então, com um abraço, do seu Juca Meirinho. O chefe da estação acompanhou o j uiz de direito até o carro da fiscalização, reservado e ligado à rabeira do trenzinho. Quando j á ia distante o misto — apontava de novo ao passar pela torre alta, embandeirada de sinais e faróis de cor — foi que seu Juca comentou com o chefe da estação, o seu Polinésio: — Tenho servido com muito j uiz nesta cidade. Mas pessoa correta assim, cumpridor e direito, nunca vi... Pena que tão doente, atacado do peito, coitado... E tão religioso, praticante... Um santo!
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A MORTE DO CHICO DOIDO e a prisão dos dois — o Sudário e o Hirondino — pareciam ter abrandado o mau gênio e os ímpetos de violência do capitão Eucaristo Rosa. Se fracassara uma das patrulhas, a chefiada pelo cabo Zeca Branco, as outras, entretanto, haviam logrado completo êxito. O movimento na delegacia — remoção do defunto para o cemitério, os depoimentos, as novas pistas surgidas com as revelações dos bandidos presos — toda a azáfama das primeiras horas da manhã distraía e ocupava o delegado especial militar, acordado muito cedo e saído do Hotel da Prudenciana ainda com a cidade de luzes acendidas. O resto da j agunçada em breve estaria em suas mãos — ele meditava, agora a fiscalizar, montado em luzido cavalão estrelo, e em companhia do sargento Hermenegildo, o cerco estabelecido em torno do quarteirão da Câmara Velha. Houvesse ou não logrado atravessar a outra rua e subir corregozinho acima até a cabeceira e as saídas da cidade — e tanto o capitão como o ordenança começaram a desconfiar de tal façanha do Lico da Isoldina — tivesse ou não escapado antes do cerco, em breve, porém, acabaria o destacamento por recapturar o fugitivo. Havia outros recursos, e o capitão Eucaristo j á imaginava qual entre seus muitos e particulares métodos iria então escolher e adotar. Foi quando lhe veio a ideia da reunião no fórum com os chefões políticos de Santana do Boqueirão, o delegado municipal e as outras autoridades menores. As cartas na mesa: o Clodulfo do Nascimento preso, a longa, minuciosa e incontestável confissão assinada e rubricada por ele; a prisão do Hirondino e do Sudário, o resultado do combate do Chico Doido com a patrulha... — tudo isso acontecido nos locais revelados pelo guarda-livros. E a proposta: colaborassem todos com o delegado especial militar e seu destacamento, sem mentiras ou negaças, na prisão do Lico da Isoldina e dos bandidos que faltavam; havia muitos: o José de Arimateia — esse, se até a hora da reunião não viesse notícia da diligência do Chapadão do Bugre —, o Tonho Coco, Paulistinha, José da Viola, o Sancho... E mais criminosos ainda: os que, sem fazerem parte do bando, viviam entretanto acobertados e protegidos pela política de Santana do Boqueirão. Capturados os j agunços, o Segundo Destacamento deixaria a cidade — ele, o capitão Eucaristo Rosa, prometia... O presidente, o secretário do Interior e Justiça, as altas autoridades que deliberassem sobre o restante das providências... Que pensassem, o coronel Américo Barbosa e sua companheirada, no que lhe era oferecido; caso não o aceitassem, a Captura permaneceria em Santana do Boqueirão. E, então, se preparassem para o que desse e viesse! O capitão Eucaristo Rosa virou-se para o ordenança: — Estou com vontade de reunir esse povo amanhã... Vou pedir ao j uiz de direito que me ceda o fórum, na ausência dele. E resolvo tudo j á-j á, só com a prosa que vou ter com essa cambada... — Do modo que o senhor fez no rio Limpo e em Perobal... — disse o sargento Hermenegildo. — Sim, do mesmo j eito... Tal e qual, sem tirar nem pôr... Chegava, porém, a galope, um cavalariano. O capitão interrompeu-se para ouvir o que lhe mandava dizer o cabo do dia, de serviço no acampamento do fórum. Era o recado do dr. Damasceno
Soares: a comunicação da viagem e o pedido para uma conversa antes da partida do trem misto, às onze e cinquenta. — A que horas é a missa dele? "ocê parece que me falou que é às dez horas? — perguntou ao volante o capitão Eucaristo. — Foi o que o cabo do dia disse, capitão comandante. — "tá bem. Fale com o cabo para avisar ao doutor que eu j á vou indo. — O homem está mesmo com pressa... vai pegar o primeiro trem, de acordo com o telegrama... — comentou o capitão Eucaristo com o sargento Hermenegildo, depois que o cavalariano se foi. — Vamos subindo para o largo... — É sargento... Vou conversar com os pândegos... Falo, agora, com esse j uizinho de borra, e j á peço, de uma vez, o fórum dele emprestado... O capitão Eucaristo Rosa e o sargento Hermenegildo mal acabavam de sentar-se à mesinha reservada do canto, quando surgiu à porta da sala de j antar do hotel o praça Cordeiro. Alguma notícia, com certeza a ordem de se retirar com o destacamento — calculou, num começo de irritação, o capitão Eucaristo, fazendo sinal para que o cavalariano se aproximasse. Era, com efeito, um telegrama; e urgente, dirigido a ele, o delegado militar : ACABAM OS RECEBER COM UNI CACAO BARBARO CRIME OCORRIDO CIDADE CAMPANARI O VG SENDO VI TIMADO CORONEL ANTONI O J OSEH INACI O VG FORTE FAZENDEIRO CAPI TALISTA AQUELE M UNI CIPI O VG CHEFE N UMEROSA PRESTI GI OSA FAMILIA L OCAL PT ASSASSINO IDENTIFI CADO COM O CONHECIDO FACINORA J OSEH ARIMATEIA QUE TOM OU DIRECAO CHAPADAO B UGRE VG TUDO INDI CANDO OBJETI VO AL CANCAR SANTANA DO BOQUEIRAO ONDE SE HOMIZIA HABI TUALMENTE PT GOVERNO ESTADO DETERMINA PROVIDENCIAS ENERGI CAS VOS SENHORIA PT SDS PT CORONEL CORIFE U AZEREDO CHEFE POLI CIA. O capitão Eucaristo não pôde esconder a comoção: na palidez do rosto instalaram-se, incontinenti, as placas de sangue, e as mãos lhe tremiam ao passar o telegrama ao ordenança. Despachou, porém, sem aspereza e em voz baixa, o soldado que esperava, perfilado: — Volte pro posto. E olho no que vier pelo telégrafo esta noite. As coisas mudavam inteiramente de figura! — raciocinava, rápido, o capitão Eucaristo Rosa. Sim, era o que ele imaginara antes: pura tapeação do secretário a reunião do dia seguinte, na capital ! Chamavam o j uiz de direito, retiravam-no da comarca a fim de que o destacamento pudesse agir sem embaraços... Ou, talvez, as coisas se tivessem precipitado com a chegada da notícia do crime em Campanário: o morto, chefe político importante, certamente da situação... Velhaco, pensando apenas em tirar proveito de tudo, o dr. Azevedão pusera na balança os dois interesses: a promessa do coronel Américo Barbosa, ataulfista declarado, em quem não se pode confiar muito, e a força da política do Campanário — gente, sem dúvida, bem melhor que a de Santana do Boqueirão... É, não havia mais apelo para o Americão Barbosa — o capitão Eucaristo se certificava da queda final do
coronelão de Santana. O governo do estado, o que desej ava agora era ação, e ação imediata! A ordem estava ali em suas mãos: o telegrama do chefe de polícia... E a quadrilha de Santana do Boqueirão desafiava a Captura! Dois, dois crimes j á haviam sido cometidos durante a estada do destacamento na cidade: o de São Pedro da Ponte — felizmente o Sudário j á estava no laço, bem-amarrado e vigiado na cadeia — e, agora, o do tal Antonio José Inácio, capitalista em Campanário. Os assassinos, ambos homens do coronel Americão... E ele, o capitão Eucaristo Rosa, o falado e temido comandante do Segundo Destacamento, a ter de ficar esperando, tal e qual um delegadozinho de polícia, que a sorte aj udasse — que os bandidos aparecessem, se fossem denunciando uns aos outros, para, então, poderem sair as patrulhas em diligência... Ou a bater perna — e era o que acabaria por acontecer — de informação em informação, de esconderij o em esconderij o, atrás dos que escapassem... Arriscar-se a mais fracassos como o da fuga do Lico da Isoldina, uma hora dessas certamente escondido na casa de um daqueles safados coronéis, se rindo e se intimando do bonito que fizera com a escolta do cabo Zeca Branco! Havia o depoimento do Clodulfo, havia também as confissões do Sudário e do Hirondino. Homens valentes, destemidos... pois sim! Nem fora preciso torcer muito o arame nas partes deles, apertar nos cocos a torquês rombuda, de aparar casco de tropa... Foram contando tudo, tintim por tintim... Chegara a cansar a mão, de tanto escrever, o cabo Salvador ! Sim, a quadrilha desafiava a Captura. O coronel Americão declarara ao Clodulfo que iria reunir os empregados do Sassafrás, armá-los, resistir, dar combate ao destacamento... — o guarda-livros confessara, assinara o depoimento. E a cidade andava cheia dos boatos: o dr. Tancredinho telegrafara, conseguira arrancar o j uiz de direito de Santana do Boqueirão, o governo prometera retirar também a Captura... Quem acabaria ficando desmoralizado era o destacamento... Tão fácil liquidar com tudo aquilo de uma vez... — o capitão Eucaristo Rosa pensava, pensava. E em plena reunião, pegar aqueles graudões reunidos, mostrar-lhes como é que mereciam ser tratados bandidos daquela marca. O governo não determinava providências enérgicas? Pois o presidente do estado, o secretário, o chefe de polícia as teriam. Não desej ava o dr. Figueiredo de Mendonça livrar o estado da j agunçada, principalmente acabar com aquele foco perigoso e tão mal-afamado que era Santana do Boqueirão? Pois, então, não iria esperar muito o presidente: em breve receberia a notícia. Não se chamasse ele, o delegado especial militar, capitão Eucaristo Rosa! Não fosse a sua tropa de volantes o Segundo Destacamento Especial de Capturas do estado! Não, por enquanto, não veria mais telegrama nenhum. A reunião na capital ia ser na segunda- feira, no outro dia... o dr. Azevedão mais o dr. Tancredinho e o dr. Damasceno... — a certeza desse encontro não saía da cabeça do capitão Eucaristo Rosa. Se o governo resolvesse a retirada do destacamento, mandariam a ordem, mas somente no dia seguinte, de tardezinha ou de noite... O sargento Hermenegildo acabou de ler o telegrama e devolveu-o ao capitão, sem arriscar entretanto comentários. Quando aquelas placas de sangue, vermelhonas, começavam a manchar assim a cara do comandante, o melhor era calar-se — o ordenança sabia muito bem. Siá Prudenciana abeirava-se com os pratos, e o capitão Eucaristo guardou o papel, com o envelope, no bolsinho da túnica. Somente depois que a dona do hotel se afastou, foi que ele disse ao sargento: — Vou modificar a reunião de amanhã cedo. Quero conversar mas é só com o Americão Barbosa e mais uns quantos... Depois, lá no meu quarto, eu te dou os nomes. E nada mais falou, durante o j antar. Mas roía-lhe o íntimo algum terrível mau pensamento, que, vez ou outra, os olhos fuzilavam, e as placas sanguíneas do rosto, em lugar de se sumirem, mais e mais cresciam e avermelhavam. Quando saíram, siá Prudenciana disse consigo mesma: "Nunca vi pessoa tão transtornada de feição... recebeu decerto alguma má notícia... Ali no quarto poderia conversar livremente, longe dos hóspedes do hotel. A lista das pessoas que deveriam comparecer à reunião convocada para às oito horas da manhã do dia seguinte, segunda- feira, no fórum, o capitão tinha-a j á na cabeça, meditada e preparada enquanto j antava em silêncio: — Você anota aí, sargento: o coronel Américo Barbosa, o coronel Calixtrato, seu Valério Garcia... Isso. Agora, ponha mais: coronel Ludgero Alves, seu Josué Malaquias, o maj or Hipólito... Pronto. — Seis... — contou o ordenança. — Pena que o dr. Tancredinho foi inventar de viaj ar... Quer dizer que os outros, o resto da primeira lista... ? — "tão dispensados. "ocê faz o seguinte: "cê me vai, mais um praça, na casa dos que foram avisados antes e que não precisam mais de camparecer amanhã no fórum. E explica... Pode falar que só estou chamando os chefes do diretório... Depois, me dá uma repassada completa nesses seis, um por um... "ocê j á sabe: anima eles... diz que recebi um telegrama do secretário com novas ordens... que não é bem uma intimação, coisa de delegacia, mas uma conversa comigo, no fórum... — Sim senhor. O sargento j á se retirava do quarto quando se lembrou: — Ah! Os três que vão fazer a ronda do hotel j á estão na esquina: o Bineco, o Tonho Careca e o Jeromão... O senhor quer mais alguma coisa? — Por enquanto é só. Me dê uma passada pelo fórum, olhe aquilo por lá: o destacamento de prontidão, as patrulhas, as rondas, o pessoal à paisana... Quando "ocê chegar e a luz estiver apagada, é que j á "tou dormindo... "ocê então vai pro seu quarto, se encosta um pouco também... — Sim senhor. O sargento Hermenegildo se foi, e o capitão Eucaristo Rosa, depois de verificar os trincos da j anela, a fechadura da porta, e de escorar, como de hábito, a cadeira por baixo da maçaneta, deitou- se. Nem tirou a túnica, cobrindo-se com a capa ampla, rodada. À cabeceira, no assoalho, a carabina e a pistola máuser. Passava o capitão Eucaristo Rosa por aquele lusco-fusco de sono — nem bem acordado nem adormecido de todo — quando ouviu o rangido de cama no quarto em frente, uns passos apagados no assoalho, a cantigazinha de lingueta em fechadura, a dobradiça, e, logo em seguida, o arranhado na porta. Ergueu-se rapidamente e em silêncio, e esperou que se repetisse o sinal. Quando tornou a ouvi-lo — o raspado de unhas mais parecia um camundongo a roer passagenzinha em alguma tábua — chegou-se à porta do quarto e sussurrou: — Sargento? — Eu... — a voz, do outro lado, era também um murmúrio, soprada e rouca. No escuro, cauteloso para não fazer rumor algum, o capitão achou o quepe, e desencostou a cadeira da maçaneta da porta. Guardou a máuser na capa do cinturão e pendurou num dos ganchinhos da correia a carabina. Abriu, então, a porta, e j untou-se ao sargento Hermenegildo. Atravessaram o corredor, pé ante pé, atravessaram a sala de j antar e a saletazinha de entrada do
hotel. A porta da rua dormia apenas encostada, e nenhum ruído fizeram ao descer para o passeio. De um canto de portão, no outro lado da rua, destacaram-se as três praças — encapotadas, armadas de mosquetão. Mas conservaram-se a distância. — Quantas horas? — o capitão Eucaristo perguntou ao ordenança. — Uma e pouco. — A confeitaria j á fechou? — O Bineco dis" que j á. Tem mais ninguém na praça, não senhor. — Então vamos. Não era longe do hotel ao Largo das Mercês. Havia cessado a chuvinha, caída o dia inteiro, mas continuava a garoa — as luzes dos postes esmorecidas, quase que diluídas na cerração espessa. Mesmo assim, os cinco homens caminhavam separadamente, um atrás do outro, colados aos muros e paredes. Chegaram, rápidos, ao largo. — A chave ficou com quem? — indagou o capitão do ordenança. — Com o Salvador. Ele j á deve de estar esperando lá dentro. A porta da frente do fórum estava de fato aberta, apenas mal cerrada, e por ali se enfiaram, sem perda de tempo, o capitão Eucaristo e o sargento Hermenegildo. Os três cavalarianos que os haviam acompanhado desde o hotel, esses também logo se apagaram por entre as sombras das folhagens do j ardim. Molhado de garoa, entorpecido, imóvel, era tudo ali no Largo das Mercês — as esquinas, árvores e casas, o j ardim, a praça. E tão silencioso que a sentinela do portão do fórum se admirava de poder ouvir, lá da torre sumida na neblina, o respirar rilhento do relógio da Matriz.
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ACOSTUMADO A levantar-se cedo e ir logo ao fórum, seu Juca Meirinho ali chegou pouco antes das sete horas da manhã, malgrado o frio e a ausência do j uiz de direito. Sabia da reunião marcada para as oito horas — entregara, na véspera, por ordem do dr. Damasceno, a chave da porta de entrada do sobrado ao sargento-ordenança — e desej ava, agora, pôr-se à disposição do delegado militar. Abriria o café do vão da escada e, vez ou outra, acharia desculpa para ir até o andar de cima, conforme recomendara o doutor, a fim de verificar se não tentavam fuçar pelo quartinho fechado, cheio de roupas e outras coisas particulares, além de tanto livro e papelada. A porta aberta, de sentinela embalada. Mais velho que o sobrado — era o Juca Meirinho varredor e cafeteiro no antigo fórum, e j á rapazote e j á taludo, quando da construção e instalação do novo — o prédio acabou como por ser casa, coisa sua, e o oficial de j ustiça foi entrando, distraído pensando no café do capitão e das outras pessoas por chegar. — Alto! — o cavalariano atravessou-lhe o passo. Assustado com o berro, a feia catadura e a declarada má inclinação da sentinela — a fera estava armada de máuser, sabre e mosquetão, as cartucheiras pesadas de tanta bala — mal pôde o Juca Meirinho gaguej ar : — Mas eu sou o oficial de j ustiça. O doutor... O doutor j uiz de direito... — Aqui não tem j uiz de direito nenhum! O fórum "tá requisitado. Se arretire! O j eito era afastar-se, como ordenava o soldado, e foi o que fez o Juca, sem abrir mais a boca, cruzando a praça e indo postar-se na esquina da confeitaria. Quando aparecesse o capitão e reclamasse o café, que viessem ali chamá-lo... E, se o homem azedasse, paciência!, o volantezinho malcriado da porta do fórum, então, que ouvisse... Erguia-se a manhã, ainda fria e nevoenta, e principiava a encher-se o Largo das Mercês. Abriam- se as portas da Confeitaria do Cucute, as das loj as e outras casas de negócio — abriam-se as j anelas dos sobrados que davam para a praça. Iam e vinham as normalistas — descia dos altos o povo do comércio, subiam os que voltavam do mercado. Encostava-se ao ponto o primeiro carro de praça, quando o relógio da Matriz deu as sete horas, e começou a apitar a serraria-carpintaria do seu Costinha da Força e Luz, lá no Alto da Estação. Mais um dia! — pensava o Juca Meirinho, de pé na esquina, curtindo a mágoa causada pelos gritos da sentinela. Felizmente, porém, o governo j á havia mandado chamar, com urgência, o doutor... Seu Polinésio da estação falara, muito em segredo, na véspera, depois que partira o dr. Damasceno, sobre um telegrama do dr. Tancredinho para o pai, o coronel Americão: as coisas, na capital, corriam bem, pois o rapaz se declarava muito satisfeito... Decerto a viagem do dr. Damasceno Soares era para fecharem, por lá, algum acordo, acertarem tudo com o coronel Americão, mandarem embora o capitão Eucaristo e a soldadesca dele... Sim — concordava com seu Polinésio da Estação o Juca Meirinho — o dr. Damasceno, pessoa tão religiosa, não podia estar apoiando, no íntimo, as barbaridades da Captura: o dr. Joj oca, coitado — criatura tão alegre, um mão-aberta, brincalhão... O inofensivo do Quincota, esse, o mal dele era somente aquela mania de futricar, meter a colherzinha torta onde não devia... Que limpassem a cidade do banditismo, que se pusesse um freio aos abusos do coronel Americão Barbosa... — havia mesmo
necessidade de um pouco mais de energia por parte do governo; mas sem tanta malvadeza e violência! Prenderem o Clodulfo era merecido: culpado de tudo, o alma negra de Santana do Boqueirão, o espírito mau que atuava na sombra... Sim. Precisavam de acabar com tanto crime, tanta j agunçada: não passava uma semana sem nova façanha da quadrilha do Clodulfo: a última — Santana do Boqueirão inteirinha j á sabia dela — a história do José de Arimateia em Campanário... Passou pela esquina o Xico das Moças — murchozinho, as mãos cruzadas nas costas, olhando pro chão, parecia até que falando sozinho. Oito filhas mulheres, o azarado! E todas solteiras ainda... Decerto nem dormir ele não podia mais, com o fechamento da lotérica... Viver, agora, de que o pobre do seu Xico? Sustentar de que maneira a mulherada em casa, se a única ocupação que sabia ele desempenhar era vender bilhete e encher talão de bicho?! Chegou à esquina seu Lamartine da Farmácia, o Brasilino da Tinturaria, o Aracífico da Gráfica. De charrete, passou o Zé da V ó, carregado de menino, vindo da chácara, com certeza. Outro que perdera a minazinha, o Zé da Vó: o ponto mais movimentado do centro da cidade, o invej ado Elefante de Ouro, com mais de vinte cambistas... Além do bicho, o víspora, e mais o buzo e o j aburu nos fundos... Deus havia de aj udar porém — suspirou o Juca Meirinho. O dr. Damasceno acharia j eito de normalizar, na capital, a ruim situação, deixar, pelo menos, aberto o j ogo... Ali estava ele — sim, ele também, seu Juca Meirinho do Fórum — com um rombo danado na feriazinha... Brincando, brincando, eram lá os seus oitenta, os seus cem mil-réis o que rendia, em comissão, e todo mês, o talãozinho dos advogados e do pessoal dos cartórios — j usto o que pagava do aluguel de casa. Os primeiros a chegar — passava pouco das sete e meia — foram o capitão Eucaristo Rosa e o sargento Hermenegildo. De passo descansado atravessaram pelo meio do largo sem se deterem na esquina ou na confeitaria, e entraram logo no fórum. A notícia da reunião correra pela cidade, e começava a j untar mais gente na praça, nas portas das casas de comércio, nas j anelas. Próximos do fórum, na calçada, a porção de cavalarianos do Destacamento de Capturas, armados e municiados fartamente — se via pelas cartucheiras estufadas, pendentes dos cinturões. Demonstração de força — era o comentário geral. Maneira d"o capitão Eucaristo obrigar o coronel Americão a ceder a tudo, suj eitar-se por completo às imposições, entregar à Captura os j agunços que faltavam. Todos j á estavam a par das boas notícias mandadas ao pai pelo Dr. Tancredinho, e do telegrama, também, chamando o j uiz de direito. Não demoraria a ordem para que a Captura se retirasse de Santana do Boqueirão. E o capitão Eucaristo aproveitava o pouco tempo que lhe restava: iria embora, iria, mas depois de dobrar a arrogância do coronel Americão, deixar o chefão de Santana humilhado, desmoralizado por completo... Cederia o coronel? Afinaria frente ao aparato da Captura e as ameaças do capitão? — perguntavam, a si mesmos e uns aos outros, os santanhenses reunidos no Largo das Mercês, parados de curiosidade e expectativa.
Não eram ainda as oito horas quando apontaram na esquina do alto da praça — certamente que vindos da casa do coronel Américo Barbosa, concentrados ali, primeiramente — os chefes do diretório convocados pelo capitão Eucaristo Rosa. Quase todos, ausente do grupo apenas seu Valério Garcia, o delegado municipal. Na frente, os principais: o coronel Americão e o coronel Calixtrato, este de bengala e chapéu-panamá, emproadão e pedante como sempre. Atrás, os outros três: o maj or Hipólito, seu Josué Malaquias e o coronel Ludgero Alves. Desciam o largo pela calçada da Força e Luz, atravessaram-no j unto ao ponto dos carros de praça, passaram pelos soldados espalhados nas imediações do fórum. Entraram no sobrado como se em um daqueles dias de eleição, na hora de encerrá-la, lavrarem as atas e combinarem o foguetório, a passeata... — alguém se lembrou. Sim, apenas os chefes do diretório do coronel Américo Barbosa podiam, nessas ocasiões, entrar no edifício guardado pelos j agunços de carabina: a oposição que esperasse do lado de fora, se estrebuchando de raiva, ciente j á do resultado... À porta do sobrado, a sentinela; dentro, no saguão dos cartórios e ao pé da escada, outro volante — um cabo, embalado também. Ninguém mais. — Podem subir... — o cabo Zeca Branco disse. — O capitão j á "tá esperando lá em cima. Subiram os dois lances da escadaria. No topo, à porta do salão de j úri, o sargento Hermenegildo: — Os senhores entrem... Vou avisar o capitão comandante... Mas, "tá faltando um... — Seu Valério Garcia j á deve de "tar chegando — o coronel Americão disse. — Mandou me avisar que vinha direto pr"aqui... Ele mora logo em frente, na esquina da igrej a... Os cinco assentaram-se em torno da mesinha onde o j uiz de direito costumava presidir às audiências e ouvir as testemunhas. O sargento apressou-se em vir avisar o capitão da chegada do coronel e companheiros. O delegado especial militar estava no gabinete reservado, do doutor j uiz de direito — o sargento Hermenegildo explicara, antes de deixar o salão. Demorou-se, porém, muito pouco, voltando com a ordem do capitão Eucaristo: — O capitão comandante quer falar primeiro com o coronel Américo Barbosa... Em particular... Vazio o corredor, apenas mais outra sentinela — um praçazinho miúdo, preto tal qual o sargento Hermenegildo —, essa colocada j unto à porta fechada do gabinete do j uiz — o coronel Américo Barbosa observou, enquanto caminhava seguido do ordenança. O soldadinho entreabriu a porta, esperou que o coronel entrasse, espremido, por ela, e fechou-a novamente. O sargento voltou ao salão de j úri. Correram alguns minutos. A sentinela foi então quem veio chamar : — É para ir também o coronel Calixtrato. — Me acompanhe! — ríspido, feio, o sargento Hermenegildo ordenou. Lá se foi também, chapéu-panamá e bengalão nas mãos, escoltado pelo ordenança, o coronel Calixtrato Barbosa. A sentinela abriu-lhe meia porta — repetiu a cerimônia — e o agente executivo de Santana do Boqueirão entrou na saleta do fundo do corredor. Nesse meio-tempo, o coronel Ludgero Alves, incomodado com a demora do Valério Garcia — j á havia dado as oito horas o relógio da Matriz — levantara-se e fora até uma das j anelas do sobrado para olhar o largo. Espiou, primeiro, para o relógio — cinco minutos j á de atraso! — e avistou, em seguida, o Valério que cruzava o j ardim, apressado, pelos lados do coreto. — O coronel Ludgero! — chamou, alto, da porta do salão, o sargento Hermenegildo, depois de receber outro recado da sentinela. — Me acompanhe!
Tratados que nem menino de escola!... — mal se continha, remoendo o ódio, o velho coronel Ludgero Alves. Fazendo chamada, o atrevidaço do capitão, e por um crioulão boçal daqueles... Mas deixou a j anela e acompanhou o ordenança pelo corredor. Chegados à porta fechada do gabinete do j uiz de direito, a sentinela levou a mão à maçaneta. Foi quando o coronel Ludgero Alves viu então: debaixo da porta, infiltrando-se pela fresta rente ao assoalho, a coisa começava a escorrer sobre as tábuas — larga e grossa, e vermelha bicazinha... Sangue! — o velho, de instantâneo, tudo percebeu: o Americão, o Calixtrato!... num arranco inesperado para trás, conseguiu esgueirar-se por entre o sargento e a sentinela, e tropegar rumo à escadaria: — "tão matando a gente! "tão matando! — o coronel Ludgero disparou a gritar que nem um alucinado. Mas não conseguiu alcançar nem o fim do primeiro lance da escada, lento de pernas, idoso demais para vencer os degraus estreitos e quase a pique. Alcançado pela linda pontaria do sargento Hermenegildo, caiu por ali mesmo, picado pela raj ada seca dos terríveis tiros curtos, de aço, de pistola máuser. Logo ao primeiro grito do coronel Ludgero Alves, muitas portas, até então fechadas, se escancararam, ali por dentro do casarão do fórum. Do gabinete reservado, onde haviam sido massacrados, os coronéis Americão e Calixtrato, saíram três cavalarianos, mascarados de sangue, machadinha em punho — um deles o cabo Salvador, o que, trepado na cadeira colocada atrás da porta fora incumbido de golpear, em primeiro e na cabeça, à medida que entravam os condenados ao abate, conduzidos um por um pelo sargento Hermenegildo. O capitão Eucaristo Rosa, esse rompeu, carabina engatilhada, do banheiro pegado ao quarto de dormir do j uiz de direito, na outra ponta do corredor. Da saleta dos advogados, vizinha ao salão do j úri, do cômodo ao lado da escadaria — depósito da papelada velha dos cartórios — das sentinas do andar de baixo, do café de seu Juca Meirinho... — de todos os cantos e desvãos saltaram os volantes da Captura, açulados mais ainda pelos tiros da pistola do ordenança. Encantoados no salão, restava ao maj or Hipólito e ao Josué Malaquias apenas a j anela aberta pelo coronel Ludgero, na hora em que fora ele olhar as horas e a praça, preocupado com o atraso de seu Valério. Para ela arremeteram-se os dois. Das sacadas dos outros sobrados da praça, das esquinas e calçadas, viram-nos tentar a escapada... a desesperada proeza de quererem galgar o peitoril, montá-lo, atirarem-se j anela abaixo. Os pobres: velhos, encarangados de j untas... Muita gente assistiu aos dois como que a lutar um com o outro, se atrapalharem, se espremerem... enquanto, de dentro do sobradão, recomeçavam os tiros, rápidos, repetidos. Sim, venceram o parapeito da j anela, galgaram-no sim, o Josué Malaquias e o maj or Hipólito: transpuseram-no, precipitaram-se daquela altura... mas alçados e empurrados, depois de fuzilados pelas costas, arroj ados fora pelos soldados lá de cima, para virem espatifar-se na calçada de pedra do Largo das Mercês. Seu Valério Garcia tudo presenciou, parado no meio do largo, estupidificado, como que estuporado da cabeça aos pés. Somente se mexeu para cair, derrubado por um balaço vindo dos altos do fórum — um coice de burro, de veloz, certeiro e rij o — que o atingiu na boca do estômago, quase que no centro exato da cintura. Ocupar toda a praça fronteira ao fórum, guarnecer os cantos do j ardim, as esquinas do largo, evacuar completamente as imediações do fórum, isso foi obra de instantes para o treinado e ágil
Segundo Destacamento do capitão Eucaristo Rosa. Quando o oficial desceu o degrau de entrada do sobrado, acompanhado do sargento Hermenegildo, muitos santanhenses lograram vê-lo, uns através de frestas de j anelas, outros por debaixo das mesas ou
amoitados atrás do balcão da Confeitaria do Cucute. E ouvi-lo berrar para alguns volantes da Captura que se abeiravam dos corpos estendidos no paralelepípedo e laj es da calçada: — Se afastem! Entrem em forma! Os parentes que tomem conta! Muitos, muitos anos depois, e seu Valério Garcia ainda contava, para quem quisesse ouvir, como escapara à chacina de catorze de maio, em Santana do Boqueirão: — Foi seu Genésio, atacadista de pinga e rapadura, quem me segurou em casa, desde manhã cedo, fecha-não-fecha a compra da safra do Pinhé daquele ano. Se aproveitava, o velhaco, de minha pressa, mo" de a reunião... Me atrasou, acabou levando um vantaj ão no negócio, mas me salvou a vida, o seu Genésio... E também mostrava, para quem quisesse ver, o relógio de algibeira — um patacão de ouro, pateque, redondão e grosso — com a bala de carabina, de chumbo, encravada bem no centro: — Parece até milagre, mas o soldado chegou a me enfiar o pé por debaixo do pescoço... Eu "tava de bruço", e ele ia começando a me desviar, no chão, a ponta de bota... Na horinha em que o capitão Eucaristo gritou aquela abençoada ordem!
Cavaleiro e montada 3° quadro
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NA ESTRADA BOIADElRA — ampla e quase toda em reta — rendia bem a marcha, apesar da noite escura e molhada da chuvinha que caía pelo chapadão. Alcançado que fosse o Pouso do Calango, seria apenas um desvio de pouco mais de légua, e chegariam à Barra Limpa antes ainda de o dia amanhecer. Estaria por lá o José de Arimateia, j á de volta da fazenda do Torquato? Que viera fazer, ali no Bugre, o velho Eulálio, tão desej oso de encontrar-se com o rapaz? Algum chamado de siá Domingas, do Tonico? Tais perguntas voej avam, insistentes, na cabeça do Clodulfo do Nascimento desde que saíra de Santana do Boqueirão, acompanhado pela escolta do cabo Apolinário. Agora, depois que prometera entregar José de Arimateia ao Destacamento de Capturas, é que avaliava as dificuldades da empreitada: não estaria o José de Arimateia viaj ando, uma hora dessas, de regresso a Santana do Boqueirão, cruzando por aqueles trilheiros complicados, fugido sempre da boiadeira e dos pousos e moradas à beira do caminho? O Clodulfo fazia as contas, logicava. José de Arimateia saíra de Santana do Boqueirão na quarta- feira de tardezinha, e, obediente como sempre fora às ordens de seu Americão Barbosa, teria viaj ado como recomendara o velho: pousado e passado o dia de quinta-feira no Engenho do Pinhé, no Valério Garcia; o dia de sexta, no Nego da Castorina... sábado, na Barra Limpa, chegado ao Bugre na madrugada de domingo. Uma semana exata, portanto, o tempo que decorrera desde a chegada dele ao seu Torquato até então: suficiente para ter ido com seu Eulálio ao Curral de Esteio e de lá regressado — se tivesse sido mesmo esse o seu destino. Se José de Arimateia j á não se encontrasse lá pelo Arcanj o da Barra Limpa, amanhã ou quando muito depois, estaria ele no
rancho do preto voltando para Santana do Boqueirão. Tudo, tudo muito bem urdido e combinado com o capitão Eucaristo, o sargento Hermenegildo e o cabo Salvador, na saleta da delegacia. Chegar, cercar o
rancho do Arcanjo, gritar voz de prisão. Andasse José de Arimateia pelo
rancho, finda estaria a parte dele, Clodulfo; caso lá não estivesse, aí era prender o Arcanj o e siá Tuta, ameaçá-los ou convencê-los, a troco de liberdade, a auxiliar a patrulha na emboscada que então combinariam para capturar o rapaz quando surgisse. Sim, o Arcanj o haveria de compreender, aj udaria... Velho, doente, encostado, acomodado ali na fazendinha pelo resto da vida... Um bom aperto nele, um aperto na mulher... Não. Nem o Arcanj o, muito menos siá Tuta, iriam negacear, brincar com os três cavalarianos da Captura... Tomaram, ao frontear o Pouso do Calango, o trilheiro que quebrava à esquerda. Meia hora, talvez nem isso, haviam cavalgado, quando o Clodulfo estacou o burro pequetito e cabeçudo e mostrou ao cabo Apolinário o vulto do capão-de-mato que a estradinha, em volta disfarçada, rodeava. — O tal capão é aqui. O ribeirão "tá logo adiante.
— Então, apeia. Vamos caçar passagem. Não foi difícil, apesar da meia escuridão, achar caminho por entre o samambaial e o entrançado de marmelas e cipós da manchazinha de mato crescida na terra branca e ruim do chapadão. Seguiram, ali por dentro, puxando as montarias pelas rédeas, até encontrarem a margem chacosa do corricho, tapada de ramalhal. O cabo riscou um fósforo, protegendo, entre as mãos a chamazinha: — Amarrem os animais — ordenou aos dois soldados. Abriu, com os pés, espaço entre a folhagem encharcada de chuva, escolheu o lugar mais firme, j unto a um tronco de buriti: — O senhor não arrepare — disse o cabo ao Clodulfo — mas vou ter de amarrar o senhor também, até que a gente volte... O preso sabia que o papel dele era esperar no capãozinhode-mato, j untamente com a tropa, enquanto a patrulha vistoriasse o
rancho. Ignorava, porém, aquela malvadeza sem precisão: — O senhor sabe que eu não vou tentar fugir, seu cabo... — São orde"s — retrucou, inflexível, o cabo Apolinário, acendendo outro pau de fósforo. Um dos soldados foi buscar o laço de couro trançado, o companheiro trouxe a rodilha de sedenho. Não adiantava implorar, tampouco discutir — compreendeu o Clodulfo, deixando que os dois volantes lhe passassem as mãos lado e outro do tronco, atassem-nas atrás, laçassem-no pela cintura, e o amarrassem ao coqueiro, com muitas voltas apertadas. — Tire as botinas dele — continuou o cabo Apolinário. O soldado aj oelhou-se — era o Zuza, o de cabelo comprido muito preto e muito liso, as mãos gorduchas e pequenas — e o Clodulfo ergueu, conformado, um pé, depois o outro, para que, com dois fáceis puxões, o praça o descalçasse, largando-o só de meias. — A gente não dilata não... Já-j á "tamos de volta — disse o cabo Apolinário. — O
rancho, o senhor falou, "tá então logo depois da tal aguadinha de cascalho, da barrinha... — "tá sim. O rancho e o
paiol com dois puxados: um pro carro... o outro, do chiqueiro... — o Clodulfo compreendeu que obedecer, sem relutar, era o mais conveniente. Já lhe subia a friagem pelas pernas, comichando e picando tal e qual arada procissão de formiguinhas; queimavam-lhe as mãos e as orelhas, sem j eito de evitá-los, os acesos e doídos borrachudos, o miúdo enxame dos mosquitos-pólvora, o terrível pernilongo-berimbau — curtozinho, raj adinho, músico — morador de sombra e podridão. Conteve-se até que se afastasse a escolta — os três soldados da Captura a abrir novo caminho, agora a cano de mosquetão, por entre o escuro e a ramaria. Abundante e solta, venceu então a necessidade de chorar : e muitas, muitas lágrimas derramou o Clodulfo do Nascimento, naquela sofrida madrugada. Sim, amanhecia, que, lá no terreiro da morada do negro Arcanj o, um galo bateu palmas e cantou. A cachorradinha do terreiro somente foi dar fé de gente estranha, quando os três soldados, quase que de rastos pelo chão, cercavam j á, e a curtos passos, o
rancho de pau-a-pique coberto de capim. Os berros do cabo Apolinário eram mais altos que a latição destemperada dos cachorros, e o par de coices da coronha do mosquetão nos dois mais assanhados e atrevidos aumentou a cachoeira de
uivos, latidos e ganidos. Lá de dentro do
rancho gritou logo o morador : — Quem é? Que latomia é essa? — Abre a porta! -bradou o cabo, entricheirado na rebaixa do carro de boi, a umas poucas braças de distância. — É a Captura! "tá tudo cerca:do somo" em dez! O cabo Apolinário vigiava a frente do
rancho, os praças Carolino e Zuza os fundos da cozinha e a j anela pequetita do oitão que dava para dentro do curral. — Anda logo! Abre a porta, pinche fora as armas! Vão saindo de costas, mãos pra riba! A lamparina acendeu-se, clareando as frestas das paredes mal vedadas, de lascas de madeira e barro. Mas a porta custava a abrir-se. Continuava a latição da cachorrada. — Primeiro Grupo, fogo! — comandou o cabo, disparando o mosquetão, ao mesmo tempo que os outros dois volantes; os três tiros sibilaram, longos, no capim do
rancho. A porta da frente abriu-se, e o revólver do Arcanj o, a carabina, foram cair no chão enlameado. O negro apareceu então, de costas, as mãos ao alto, bem iluminado pela lamparina que ficara na salinha. — "tou sozinho! Só eu mais a mulher ! Tem mais ninguém, capitão! Pelo amor de Deus! — Continuem o cerco! Vem andando de fasto! Pro meu lado, no
paiol... O Arcanj o obedeceu. — Os outros agora! A mulher primeiro! Saiu siá Tuta, mãos erguidas também, de costas, o cabelo desmanchado, os pés descalços. — Tem não, capitão... Só a velha e eu... — explicava ainda o Arcanj o, j á próximo do
paiol. — Me avance um da patrulha! O resto mantenha posição! — seguia bradando, alto, firme, o cabo Apolinário. Surgiu, correndo, o Carolino. — Vai co"a mulher ! Entra co"e 1a! Varej e a casa! — ordenava o cabo. — "tou só eu mais ela... Tem pena de nós, capitão... — tremia, quase que chorava o negro Arcanj o. Fuzil mosquetão às costas da mulher, o Carolino mandou que ela entrasse de novo: — Alumeia a casa! Vai na frente! Nada — viu logo o praça Carolino, depois de espiar por debaixo dos catres do quarto de dormir do casal e do outro quartinho pegado. Não, ninguém dormira ali naquela cama de solteiro, verificou pela colcha esticada e o travesseiro cheio, arrumadinho no lugar. Olhou ainda, por olhar, a meiágua da cozinha, e voltou à porta: — Tem estranho nenhum não, comandante! Só eles dois!
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LEVANTARA-SE MUITO tarde a lua. A chuva se tinha ido, desde a véspera, deixando um céu alto e limpo, carregadinho de estrelas -a tabatinga branca e recozida do chapadão a espalhar o frio meio-claror da madrugada. Cavalgavam em dois, silenciosos: José de Arimateia e o preto Arcanj o da Barra Limpa. Bateado e largo, o furta-passo das montarias, donas do rumo conhecido e fácil. Caminho de casa, a volta ao Sassafrás, depois da fugida quase que sem descanso, serra acima e chapada afora — eram os pensamentos de José de Arimateia. Atrás dele, certamente um batalhão de cavaleiros a bater-lhe os rastros, armar tocaias pelo sem-fim de trilhos, pousos e aguadas, tentando fechar-lhe a escapada a todo custo. Nem passar no Bugre pudera: falar com seu Torquato, agradecer- lhe a aj uda e a leal companhia de sô Carício, contar ao velho o que acontecera lá em Campanário; dar à Camurça o repouso merecido, lavar-lhe o — salitrado, descansá-la de tanta fome e sede, tanto freio e espora... O perigo maior j á havia passado, porém. Logo em frente, a serra de novo, mas agora descambando para os lados do Pinhé, do Porto do Paiol Queimado: terras onde regia o patrão amigo, onde o esperavam, afinal, proteção e segurança. Pena não ter podido acabar de vez com toda a história! — José de Arimateia voltava a recapitular o acontecido em Campanário. Ah, não fosse a pouca prática, a afobação de sô Carício! Tão fácil: passar pelo Largo do Mercado, depois de pego o velho, varar chalezinho adentro, liquidar com a vagabunda. Ela, a mãe, quem mais ali estivesse na sem-vergonhagem com a rapariguinha descarada... Sim, tudo findaria, não fosse o apavorado do sô Carício a fadiga que bateu no pobre... Restaria, então, apenas dona Dosolina. Essa, porém, até que seria bom vivesse mais um pouco: decerto que desquartej ada das cadeiras para sempre, aleij ada em cima de uma cama, pagando por tanto orgulho e malvadeza... — Olha a restinga de fava... — o Arcanj o cortou as divagações do companheiro de viagem. — O aparado "tá por pouco... — É... "tamos chegando... — foi apenas o que José de Arimateia soprou, por entre a gola levantada da capa. Voltou aos pensamentos. O coitado do preto velho: tristonho, parecendo mesmo que na hora de morrer, conforme ele vivia declarando. Uma tristeza, desta feita, o
ranchozinho da Barra Limpa, com a queixação dos dois, principalmente da pobre da siá Tuta. Outro repiquete no coração do negro — os dois então contaram — as palpitações, a canseira, as faltas de ar : a recaída que viera na mesma noite em que ele, José de Arimateia, havia deixado a fazendinha, de viagem para o seu Torquato. Encontrara, porém, de volta do Campanário, o Arcanj o bem melhor, graças a Deus. As tonteiras tinham desaparecido, os pés haviam desinchado, pusera-se duro e disposto como em antes. Tal qual um pai, resolvido a todo sacrifício: ""cê não vai sem eu, de j eito nenhum, seu Isé... Quando "ocê saiu de viagem pro seu Torquato, fiz promessa pr"as almas de seu Cassiano e o Cianim... Se fosse mesmo o que a gente "tava pensando, se "ocê tivesse de ir topar com o Tonho Inácio... Se "ôce voltasse escapo, seu Isé, eu então te acompanhava até as Três Cruzes... rezar dois terços lá: um meu, outro da Tuta..."
Negro leal. E assim doente, precisado mas era de remédio e de sossego... Fazer viagem tão penosa... E aflito, toda hora se levantando, enquanto ele José de Arimateia, engolia correndo a comidinha, feita às pressas por siá Tuta. O Arcanj o não parava quieto, indo lá fora a todo instante, incomodado, atento à vigiação e desconfios da cachorradinha. E apressava, num insofrimento de dar dó: "Anda co "isso, Tuta Abreveia, seu Isé, vamo" logo... Esse povo do Campanário pode chegar num supete, cercar a casa..." O Arcanj o perdia-se em outros e tristes pensamentos. O infeliz de seu Clodulfo: amarrado ao pau, sem as botinas... — as mãos, as orelhas, e os olhos, a cara roxa e inchada que nem morfético. Quase que o come, vivo, a mosquitada ali do fedido brej o do capãozinhode-mato... Nem falar direito o pobre não podia, de tanto que tremia de frio e se esfregava: "É pr"ocê ver, seu Arcanj o... "tá todo mundo preso: eu, seu Hirondino, o Lico, o Sudário, o Chico Doido... Seu Americão e o pessoal do partido, esses "tão também vigiados, sob palavra... Dos empregados, faltam poucos... o José de Arimateia é um deles..." Vinha à Barra Limpa a mando do capitão Eucaristo e de seu Americão Barbosa também: "Seu Americão lhe mandou essa ordem, seu Arcanj o. Ois" que "ocê havera de compreender... Fez um acordo com o capitão: prometeu entregar o pessoal para que todo mundo fosse a j úri... O j uiz de direito garantiu..." E o soldado, o cabo que comandava a patrulha: ""ocê obedece, facilita o homem, e a gente, aí, esquece "ocê... O capitão comandante é pessoa de palavra, e seu Clodulfo, aqui, pode provar o que ele mandou te referir..." Queriam esperar pelo José de Arimateia ali mesmo na Barra Limpa. Pegar seu Isé quando ele apeasse e entrasse no
rancho... Como se o rapaz fosse se entregando assim sem mais nem menos! Ia mas era resistir enquanto lhe sobrasse tiro. E o pior era que descobriria então que tinha sido traído por ele, Arcanj o, e por siá Tuta... O velhaco do cabozinho: "Se for de dia, e a gente não reparar quando ele vier, talvez que pelos fundos, aí "cês fazem um sinal de fumaça... botam lenha molhada e ramo no fogão... Se for de noite, "ocê ou sua mulher vão então no
paiol, de lamparina acesa, com desculpa de catar sabugo e palha..." Ele, Arcanj o, porém, tivera a ideia: seu Isé de Arimateia podia passar, de volta, pela Barra Limpa, mas podia ser também que não passasse; o mais certo era atalhar, seguir direto para a descida da serra, nas Três Cruzes explicara aos soldados da Captura. O seguro era esperarem por ele lá: seu Isé era incapaz de descer a serra sem ir primeiro rezar ali nos três cruzeiros; e sempre apeava, se aj oelhava, decerto fechava os olhos... Não fora fácil, que o cabo Apolinário era desconfiado por demais. Mas acabou por resolver, cismado de que o José de Arimateia lhe escapasse: "Então "tá certo assim como "ocê falou. "ocê é quem sabe da sua vida... A gente pode ir, ficar esperando nesse tal lugar, um, até uns dois dias... Mas, se o homem não aparecer, e a gente descobrir que ele passou por aqui e que "ocê traiu... Ninguém escapa da Captura não, ô Arcanj o, e a velha e "ocê vão aprender então como é que a gente trata quem falseia... : primeiro cega a ponta de faca, fura os ouvidos, corta a língua... Depois, sangra na veia no pescoço..." Os soldados se foram. Apagaram os rastos das botinas no barro do terreirinho em frente à casa,
revistaram o
rancho. Tomaram a caixa de balas do revólver, o punhado das outras, de carabina, deixando apenas uma carga no revólver, para que o José de Arimateia não o visse vazio e, então, desconfiasse. Siá Tuta teve de fazer comida, encher de farofa de ovo e carne os embornais... Na hora de sair, o cabo Apolinário determinara: "Caso ele passe por aqui, "ocê, Arcanj o, me vai j unto. E aj uda nós, lá nas Três Cruzes, se ele tentar fugir na hora d"a gente romper da tocaia. Atira também... Senão, "ocê j á sabe..." Seu Isé não ia poder resistir à patrulha, ali na descida das Três Cruzes, na hora em que desapeasse. Não o matariam, porém, depois de preso — o cabo Apolinário havia prometido. A ordem do capitão Eucaristo era para agarrarem vivo o rapaz, levá-lo a j úri; a Captura matava, mas quando o preso reagia ou tentava fugir da escolta — tanto o cabo como o Clodulfo haviam declarado. E o Arcanj o compreendera o que não podia falar a boca vigiada de seu Clodulfo, o que diziam os olhos mordidos e vermelhos dele: seu Americão nem a j úri acabaria indo, e, com as amizades e o prestígio que gozava, tiraria todos da cadeia: ele, o Clodulfo, o resto da companheirada — de primazia José de Arimateia, o mais estimado do Sassafrás, e quem mais apreciava seu Americão Barbosa... Talvez fosse melhor assim: aj udava a entregar seu Isé, aj udava; livrava-o de ser caçado a tiros pelo chapadão cercado de todos os lados, não apenas pelo povo do Campanário como pela Captura também. Não escaparia à perseguição. A hora em que a soldadesca começasse a varej ar o Chapadão do Bugre, ia ser casa por casa, grota por grota. Ninguém teria coragem de esconder o foragido, sabendo como agia o destacamento com acoitador de criminoso. Depois, ali naquele descampado de terra ruim, sem mato e com tão pouca água, de raras saídas pelas vertentes — quase que tudo um barranco só, de pedra, e a pique... Fosse em outros tempos, talvez que não entregasse o amigo. Agora, porém, sem ânimo para fugir, quanto mais para enfrentar soldado: o coração imprestável daquele j eito, os pés se inchando por qualquer extravagância... E a velha, a inocente da siá Tuta... — era da mulher que o Arcanj o agora se lembrava. Camurça via aproximar-se a descida da Serra Grande. Lá ao longe, a tira escura, onde brilhava a unhazinha à-toa de lua e as estrelas se afundavam, era o vazio, o fim do chapadão, o esquisito pedregoso por dentro da mataria. Logologo, o Pinhé — a grama fresca das beiradas do córrego, o canavial do engenho, o farelinho de munho cheiroso e doce... O patrão, lá chegado, haveria de lavá- la, passar-lhe a escova no — , curar-lhe o ardume do lombo e das virilhas. Ah, espoj ar-se, de barriga cheia, no espraiado de areia do ribeirão farto do Pinhé, cochilar escutando a cantiga da água encachoeirada e as pancadas do monj olo!... Sim, era a terceira noite que j á findara, e o patrão sem poder tirar-lhe os
arreios, folgar-lhe ao menos as duras e apertadas correias de tucum, livrá-la do excomungado freio que mais pesava e mais crescia, que lhe pisava e cortava a boca intumescida. E o frio, aquele vento a arear-lhe os olhos doloridos... As estrelas desmaiavam. Nascia, bem em frente, no escuro dos pés-da-serra, a barra azulega da madrugada. O chão branco se alongava, a vista divulgava mais distâncias. O baixio pegaj oso de barro amarelento, as poças d"água de chuva. Pararam por ali. Camurça bebeu a aguinha transparente de tão limpa, gelada de tão fria, esperou que o burrão — -de-rato do negro Arcanj o acabasse de beber também. Tocaram então de novo.
O fim do Chapadão do Bugre, a porçãozinha de trilheiros que se abriam no capim orvalhado ali perto das Três Cruzes. A madrugada j á floria de vermelho, tingindo as grimpas do matagal que se estendia lá por baixo. Como que chupado pelo abismo, o vento se encanava, mudado de rumo, se despenhando das alturas. Camurça nada via além do chão batido e ralo de capim, os montes de pedra empilhada ao pé das cruzes, o céu fundo, de menos estrelas agora. Nada ouvia a não ser os assobios do vento que se precipitava pelas quebradas da serra, as próprias ferraduras e as do burro companheiro a pipocar na crosta socada do caminho. Faro nenhum, também — apenas o suor salgado dos baixeiros, o cheiro conhecido das botas e da capa do patrão, o recendor do chão e do capim molhado. De repente, porém, percebeu perigo — semover de folha, ar de lua em aço bem polido, um vapor, talvez, de gente estranha — pressentiu desgraça oculta por entre os ramos e pedras do começo da descida. Estacar de brusco, rodopiar nos pés, furtar o corpo, se arrancar... -tudo instantâneo, um corisco a endiabrada da Camurça! — Besta! -gritou, instintivo, José de Arimateia, colhido pelo espiritado e rapidez da mula, agarrando-se às rédeas e calcando os j oelhos sob as abas do
arreio para não ser cuspido ao chão. Desta vez, porém, Camurça não teve tempo de fugir com o cavaleiro, desviar os tiros que foram três, e foram seis, e foram mais, e muito mais. — Cadelo! — o Arcanj o avistou o Clodulfo erguer-se por detrás dos clarões que estralej avam. O negro quis ainda levar a mão à cintura, por dentro da capa, mas os relâmpagos eram também ferrões de fogo que se vinham cravar em seus ombros, no peito, no pescoço. Nem sentiu quando o burrão — -de-rato, fuzilado por igual, tropeçou, amoleceu, caiu. Camurça, essa ainda mal-mal enxergava, por entre a escura cerração que lhe esfriava os olhos, os quatro homens saídos por detrás das pedras do aparado e que se aproximavam das Três Cruzes. Um deles, ela j á de há muito conhecia, desde os tempos de mulinha nova: pessoa tão amiga de seu Isé, a primeira que o patrão havia procurado em Santana do Boqueirão, chegado da Fazenda do Capão do Cedro. Camurça o conhecia sim, e muito bem: o andar pequeno e macioso, a voz pouca e sempre calma, criatura sem risos e sem gestos. Viu-o aj oelhar-se ao pé da mais alta das três cruzes, viu quando os três outros vultos, parados atrás, esticavam o braço, como que mostrando, apontando para as costas dele. Mas Camurça não pôde ouvir os tiros, a raj adazinha derradeira, assistir ao fim. De súbito, sumiu- se a barra da manhã, e uma noite sem lua e sem estrelas — negra, terrivelmente negra — acabou por tudo apagar e emudecer.
Fazenda São José do Cangalha, Mato Grosso: agosto de 1964 a abril de 1965.