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O CORONEL E O LOBISOMEM

José Cândido de Carvalho
Deixados do Oficial Superior da Guarda Nacional, Ponciano de Azeredo Furtado, natural da Praça de São Salvador de Campos dos Goytacazes 

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A  bem  dizer  sou  Ponciano  de  Azeredo  Furtado,  coronel  de  patente,  do  que  tenho  honra  e faço  alarde. Herdei  do meu  avô  Simeão terras  de muitas medidas, gado  do mais gordo, pasto do mais fino. Leio no corrente da vista e até uns latins arranhei em tempos verdes da infância, com uns padres-mestres a dez tostões por mês. Digo, modéstia de lado, que já discuti e joguei no  assoalho  do Foro mais  de um  doutor  formado. Mas  disso não  faço  glória, pois  sou  sujeito lavado  de  vaidade,  mimoso  no  trato,  de  palavra  educada.  Já  morreu  o  antigamente  em  que Ponciano mandava saber nos ermos se havia um caso de lobisomem a sanar ou pronta justiça a ministrar.  Só de uma regalia não abri mão nesses anos todos de pasto e vento: a de falar alto, sem  freio  nos  dentes,  sem  medir  consideração,  seja  em  compartimento  do  governo,  seja  em sala de desembargador. Trato as partes no macio, em jeito de moça. Se não recebo cortesia de igual porte, abro o peito:    
  — Seu filho de égua, que pensa que é?    
  Nos  currais  do  Sobradinho,  no  debaixo  do  capotão  de  meu  avô,  passei  os  anos  de pequenice,  que  pai  e  mãe  perdi  no  gosto  do  primeiro  leite.  Como  fosse  dado  a  fazer garatujações  e  desabusado  de  boca,  lá  num  inverno  dos  antigos,  Simeão  coçou  a  cabeça  e estipulou que o neto devia ser doutor de lei:    
  — Esse menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e linguarudo.   
   Então, para aprimorar tais inclinações de nascença, caí nas garras da prima  Sinhá Azeredo, parenta encalhada na prateleira, uma vez que casamento não achou por ser magricela e devota. Morava  em  nação  de  chuva  —  um  oco  de  coruja  chamado  Sossego,  onde  só  dava  presença bicho penado. De noite, era aquela algazarra de lobisomem, pio de coruja, asa de caburé, fora outros  atrasos  dos  ermos.  Metida  nos  livros  de  devoção,  Sinhá  Azeredo  não  tinha  outra aptidão do que ensinar ao parente sabedoria ligada aos anjos do céu.  Saía da prima um cheiro de vela, um bafo de coisa de oratório. De tardinha, sumia no quarto das devoções enquanto eu ficava  na  soletração  da  cartilha.  Sinhá  conhecia  toda  a  raça  de  ventos  e  para  cortar  as maldades  e  miasmas  deles  possuía  reza  da  maior  força.  Por  mal  dos  meus  pecados,  o  que  a prima  mais  apreciava  era  conversa  de  assombração,  de  meninos  desbatizados  que  morriam sem  o  benefício  da  água  benta  ou  de  herege  esquentado  em  fogueira  de  frade.  Lambia  os beiços de cera e ameaçava:   
   — Criança sem religião acaba no fogo dos hereges. Meus  dias  no  Sossego  findaram  quando  fui  pegado  em  delito  de  sem-vergonhismo  em campo  de pitangueiras. A parda vasquinha  dessa  intimidade  de mato  ganhou  dúzia  e meia  de bolos e eu recriminação de  fazer um  frade de pedra verter lágrima.  Simeão,  sujeito  severoso, veio  do  Sobradinho  aquilatar  o  grau  de  safadeza  do  neto.  Levei  solavanco  de  orelha,  fui comparado  aos  cachorros  dos  currais  e por  dois  dias bem  contados  fiquei  em  galé  de  quarto escuro. No rabo dessa justiça, meu avô deliberou que eu devia tomar rumo da cidade:   
  — Na mão dos padres eu corto os deboches desse desmazelado.    Atrás da  saia da prima  Sinhá, lá uma tarde, viajei para o meu novo viver. Como  era tempo de  chuva,  dormi  no  balanço  do  trem.  Quando  dei  conta  do  andado, já  a  cidade  apresentava suas  casas  e um povinho  apressado  corria  no  debaixo  dos  guarda-chuvas.  O homenzinho  das passagens, aparecido na porta do vagão, avisou:    
  — Campos! Campos dos Goitacazes!    
  Anos passei no bem-bom da rua da Jaca, em chácara de fruteira e casa avarandada. A prima na devoção dos oratórios e eu na vadiagem, com enganos de que esmerava no aprendizado das letras  e  o  que  menos  Ponciano  fazia  era  aparecer  na  escola  dos  frades.  Passava  semanas  em velhacaria  de pular muro  atrás  dos bicos-de-lacre  e  coleirinhos.  O  avô  Simeão,  enterrado no sem-fim  dos  pastos,  não  podia  acompanhar  as  capetagens  do  neto.  De  mês  em  mês,  assim mesmo  na  época  das  águas,  é  que  pisava  calçada  da  rua  da  Jaca.  Sem  tirar  a  espora,  vinha saber  dos  meus  adiantamentos  no  ensino  dos  padres.  Mostrava  a  Simeão  as  obrigações  de leitura. Ele, quebrado da vista, balangava a cabeça e dizia folheando a livrarada:    
  — Muita instrução, muita instrução.  Nesse entrementes, eu já graúdo de quinze anos, uma tosse comprida jogou a prima Sinhá na cama, do qual sofrimento nunca mais teve modos de sair. Deu de andar encafuada em cobertor, só  nariz  de  fora.  Afinou  ainda  mais  e  num  agosto  de  chuva  foi  embora  na  asa  de  um  vento encanado. Uma quinzena vencida, já a parenta bem enterrada e melhor encomendada em missa de muito  altar,  ouvi  o  seu tossir  doente no  quarto  do  oratório.  De  castiçal  em punho,  apareci para  saber,  se  fosse  o  caso,  das  necessidades  da  falecida.  Capaz  que  precisasse  de  um carneiro mais aparatoso ou um par de ladainhas em reforço ao seu bem-estar no céu. Inquiri a visão por duas vezes, como manda a lei dessas ostentações da noite:    
  — Que penar é esse de tão tardias horas?  Não  colhendo  resposta,  voltei  ao  gozo  dos  cobertores  e  deixei  que  o  tossir  continuasse. Depressinha  o  acontecido pulou  o muro  e  a vizinhança  ficou  sabedora  de  que  Sinhá  aparecia no oratório dos Azeredos Furtados da rua da Jaca. Agregado nenhum, a par da penitência, teve mais  ânimo  de  perambular  pelos  corredores  passada  a  ave-maria.  Até  que  apareceu  a  velha Francisquinha,  mandada  dos  confins  de  Mata-Cavalo,  a  herança  mais  pasto  adentro  de  meu avô.  Não  sei  que  reza  de  rebite  apresentou  Francisquinha  no  recinto  da  assombração.  De pronto,  os  lamentos  perderam  as  forças  e  a  penitência  deixou  de  existir,  mesmo  em  noite trevosa  de  sexta-feira.  Eu,  que  sou  perdido  da  cabeça  por  uma  brincadeira  de  deboche, sempre  relembrava,  em  presença  de  alguma  tosse,  que  Francisquinha  possuía  remédio  de grande valimento em incômodo do peito:    
  — É um porrete. Melhor do que poção de doutor formado.    Simeão  deu  todo  poder  de  mando  a  Francisquinha,  negra  de  confiança,  vinda  dos  tempos apagados de meu avô rapazola. Pois digo que essa amizade calhava a contento. A velha  sabia dar  ordem  na  cozinha,  governar  sala  e  saleta.  Morava  no  meio  de  um  bando  de  negrinhas  e afilhadas.  Conhecedora  da  minha  fama  de  maluco  por  perna  de  moça,  no  dobrar  das  nove horas  trancava  todas  elas  nos  compartimentos  mais protegidos  de  tramela.  Lacrava  as portas com esta ponderação severista:    
  — Cuidado com o menino!    O  menino  era  eu,  molecote  aparentado  de  palmeira,  altão,  grosso  de  braço,  comprido  de perna,  conhecido  das  arruaças  e  rabos  de  arraia  da  rua  das  Cabeças,  tanto  que  cursava  a patente de alferes por imposição de meu avô, que desejava abrandar meu gênio estouvado:    
  — Na tropa de linha ele perde os desaforos, toma tino de gente.    Engano  de  Simeão.  Era  ele  desaparecer  de  volta  aos  ermos  e  o  neto  cair  na  pândega  dos circos  de  cavalinhos  e  portas  dos  Moulin-Rouge.  De  letra  eu  nem  queria  sentir  o  cheiro.  O trabalho que Ponciano mais apreciava era o andar na poeira de um bom rabo de  saia,  serviço que ainda hoje é de minha especial inclinação. Assim, por causa de um par de tranças de uma tal de dona Branca dos Anjos, apareci em Gargaú, cidadezinha criada e amamentada no areal da   costa.  Era  preciso  ter  tutano   e  preparo   de   coragem  para  pisar   em   escondido  tão distanciado. Um capitão, meu amigo de vadiagem, garantiu que só pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo eu voltava vivo de lá:    
  — É a terra mais de bugre que já vi. Pelas  prendas  e  esmerada  guarnição  traseira  da  menina  Branca  dos  Anjos  lá  cheguei  em trenzinho  de  ferro  e  lombo  de  canoa.  Vi  que  o  amigo  capitão  não  foi  exagerado  no  parecer. Gargaú  era  bicho  do  mato,  sem  nenhuma  aptidão  para  a  cortesia.  Fechei  a  cara  e  procurei  a moça  do  meu  bem-querer.  A  beleza  dela  morava  em  casa  avarandada,  com  um  jardim  de bogari que ainda hoje, tantos anos passados e rolados, remexe em minhas lembranças. Mas foi o pai  saber que o neto de  Simeão estava na praça, para arrumar ligeirinho o baú e esconder a donzelice de dona Branca no fundo do sertão restinguento. Levou a filha e deixou aviso:    
  — Esse Ponciano de Azeredo Furtado é ladrão de moça solteira. Fogo nele.    Gargaú  trancou  a  porta  na  minha  cara.  De  noite,  por  desgraça,  o  luar  da  varanda  de  dona Branca dos Anjos liberou tudo que foi cheiro de bogari. Sabia eu que não tinha mais trança de moça  no  detrás  daquelas  paredes,  que  também  olho  meu  podia  dizer  adeus  para  sempre  ao andar  de  cobra  da  menina.  De  coração  caído,  deliberei  bater  em  retirada.  Na  despedida, já dentro  da  canoa,  fiz umas  galhardias  e  grandezas.  Garanti  que  a  ofensa  não  ia  ficar  no barro sem resposta:    
  — Vou roubar dona Branca no mês que vem, quando não for mais tempo de lua.    E, na voz dessa ameaça, retornei em prancha de rio e trem de lesma ao meu viver da cidade. Por  dias  e  dias  não  pude  ouvir  apito  de  máquina,  que  logo  a  moça  das  tranças  pulava inteirinha  dentro  do  meu  peito.  E  foi  para  debelar  tristeza  que  num  sábado  dei  entrada  em circo de cavalinhos de muita fama e escama armado no largo do Rossio. Não havia quem não falasse dessa palhaçada e do que de principal existia nela: um sujeitão dos diabos que fazia e desfazia  de  todo  mundo.  Como  desafio  para  um  arranca-rabo,  pregaram  o  retratão  do orgulhoso  em parede  e porta vadia —  cara  feita  a  formão, busto  largo  e  cintura  afunilada  de macaco.  Pagavam um  samburá  de  dinheiro  a  quem  ficasse  em  tempo  de  cinco minutos  diante do  malvado  sem  levar  a  mão  de  pilão  pelo  chifre.  Um  agregado  do  circo  apregoava  nas esquinas e praças a bruteza dele:    
  — Suspende um boi pelo cangote e destorce ferro como se barbante fosse. Querendo  ver  de  perto  tanta  ignorância,  comprei  entrada,  salvei  um  ou  dois  conhecidos  e em  canto  de  paz  fui  abrigar  o  assento.  Veio  o  palhaço,  de  colarinho  largo,  munido  de  um navalhão   de  pau.   Contou  valentia   como   é   do   serviço   deles.  Arma   aberta,   garantiu   o pantominista  que  ninguém  tirava  farinha  de  sua  pessoa,  et  cetera  e  tal.  Dava  prêmio  de vantagem ao desinfeliz que tivesse o desplante de aparecer no picadeiro. Logo um carcundinha pintado de alvaiade aceitou a briga e esfarinhou a brabeza do palhaço a poder de bofetada: 
   — Toma, sem-vergonha. Toma, descarado!    Ri  da peripécia, bati palmas  a  favor  do  carcunda.  O  que não  apreciei  foi  a pantomima  que veio  em  seguimento,  coisa triste  que não  calhava no meu  ânimo  abalado. Um  galante, metido em roupa  de  fraque  e  cartola  de político,  devastou na bengala uma pobrinha  que  aparecia  de filho  desmolambado  no  colo.  O  tal  galante,  conde  não  sei  o  que,  depois  de  usar  a  moça  em tarefa  de  manceba,  largou  a pobre  na  rua,  sem  telha  onde  morar.  Já  vinha  eu  de  uma  tristeza sem  conta.  Chegava  na  rua  da  Jaca,  vestia  panos  de  trato,  avaselinava  o  cabelo,  pagava entrada no circo de cavalinhos e no fim era obrigado a ver uma judiação daquele porte:    
  — Desaforo!  Pois mal acabou a pantomima do tal galante de cabelo repartido no meio, apareceu, na boca do pano, o  sujeitão que desafiava para uma briga de  exterminação qualquer vivente, bicho ou homem.  Andou  em  passo  grosso  até  bem  no  centro  do  picadeiro.  E  de  lá,  peito  de  vela  ao vento,  mostrou  o  bração  de  arroba  —  uma  peça  vistosa  e  pesadona.  Um  amarelinho  de  fala embrulhada,  de  fraque  de  duas  pontas  e  cartola  na  mão,  era  a  língua  por  onde  o  ignorantão deitava  ameaça.  Pagava  tanto  e  mais  tanto  a  quem  quisesse  aguentar  com  ele,  que  no  mundo ninguém venceu:    
  — Quem quer, quem quer? Qual o valente que aceita descer ao picadeiro?    Fiquei quieto. Não mudei de roupa e paguei entrada para travar briga de encomenda. Como ninguém  deliberasse  pegar  o  desafio,  largaram  no  recinto  da  palhaçada  um  boizinho  barroso que  em pronto  momento  teve  o pescoço  destorcido  no punho  do  ignorantão.  Alisei  o  queixo, aporrinhado .  Fazer  uma  judiaria  de  tal  grandeza  com  um  boizinho  tão  bonito!  Falei  de Ponciano para Ponciano:    
  — Sujeito assim só castrando.    Não  satisfeito  de  quebrar  o boi barroso,  ainda  latiu meia  dúzia  de  ameaças na  direção  dos circunstantes.  Depressa  trouxeram  uma  barra  de  ferro  que  num  voar  de  beija-flor  o  sujeitão submeteu aos maiores vexames. O vergalhão acabou cipó retorcido. Já começava a achar tudo isso uma  falta  de  respeito,  vir um  figurão  lá  de  fora  fazer pouco  do povo  da  terra,  quando  o valente,  largando  o  ferro  de  sua  façanha,  afinou  o  bigode  e  investiu  contra  um  pessoal  que apreciava a pantomima rente ao picadeiro. Foi um espalhar de perna sem medida. E de novo o homenzinho  do  fraque  veio  dizer  que  a  distinta  diretoria  do  circo  dobrava  os  estipêndios  de quem quisesse enfrentar o vaca-braba:    
  — Quem quer enricar, quem quer enricar?  Um crioulo, que vivia de carregar manta de carne no comércio da rua do Rosário, precisado de pecúnia, pegou o desafio pelo pé. Caiu no picadeiro e nem teve tempo de dizer quem era. O herege enrolou a pessoa dele, meteu o braço do crioulo no por onde costuma trabalhar a perna, apertou, amassou, fez nó de marinheiro e varejou a mercadoria fora. Lá desabou o pobre todo embrulhado  que  foi uma  labuta para  desfazer  o  tal  nó  de perna  e braço. Ninguém  apreciou  a malvadeza,  e  muita  dama,  arreliada  de  ver  tanta  ostentação,  deixou  o  assento,  o  que  picou  a raiva do desabusado. Bateu no peito, deu urro de onça, quis arrancar da cadeira um sujeitinho por motivo de não apreciar a cara dele. Aí dei meu parecer em voz baixa, a meio pau:   
 — Esse Satanás está maluco, doido varrido da cabeça. Um  pardavasco,  apossado  da  minha  ponderação,  gritou  que  eu  estava  debochando  do valente, pelo  que  logo um bolão  de povo,  em  azoada  de vivas  e mais vivas,  agarrou  a minha pessoa  e  com  ela  caminhou  até  o  centro  do  picadeiro.  O  gigantão,  amarrado  em  dúzias  de braços, escumava ódio. Berrou, escarvou o chão com as patas. O sujeitinho do fraque, cartola na  ponta  dos  dedos,  pedia  ordem,  do  que  ninguém  fez  caso.  Mesmo  embaraçado  no  cipó  de muitos  braços,  o  vaca-braba  queria  investir  contra  mim,  o  que  requereu  nova  remessa  de reforço  em  seu  derredor.  Quedei  no  meio  do  povo,  em  canto  afastado,  com  todo  mundo  de queixo  caído diante de minha galhardia.  O pardavasco  causador da desavença  era quem mais agitava o recinto. Corria de um lado a outro em alegria de aluado. Avisei mordido de cobra:    
  — Esse safardana vai ver.    
  Pensaram que a ofensa era arremessada no focinho do valente e não tive mais modo de frear o povo dos cavalinhos. Uma trovoada de palmas e vivas  sacudiu os panos do circo e mais de um  chapéu voou  de passarinho por  cima  de mim.  Pedi  calma —  e  com  calma,  levantando  os dois metros de Ponciano de Azeredo Furtado, falei na melhor educação:    
  —  Só  não  desagravo  a  honra  da  seleta  assistência  por  ser  militar  e  carecer  da  licença especial advinda de patente superior. E, dentro dessa ponderação, fiz ver que não levava medo de cara enfarruscada. Mas, sendo alferes, não podia,  sem penas  e  agravos,  denegrir  as leis  e regulamentos  da guerra. Por  esses justos motivos é que não capava, pela raiz, os rompantes e exorbitâncias do abusado. E como arremate:    — Mas esse deseducado não perde por esperar ! Dito  isso, já  largava  o  assento  quando,  de  uma  cadeira,  vi  aquela  bengala  crescer  e  atrás dela  um  velhote  munido  da  necessária  licença  para  que  o  alferes  desagravasse  o  povo presente. Era coronel de linha, homem de poder e mando. Forrado de deferência, garantiu que a corporação dos militares fazia muita honra no desafio:    — Está o moço alferes autorizado.    O  circo  era  berro  puro.  Queriam  saber  meu  nome  de  nascença.  Uma  senhora  apresentou faniquito e outra mandou lembrança de cravo. Ainda quis questionar, dizer que ninguém devia dar confiança ao malcriado. Que esperança! A resposta foi o povaréu levantar Ponciano entre gritos e algazarra:    — Viva o alferes! Viva o alferes!    Digo,  sem  querer  mostrar  avantajados,  que  a  desavença  nem  teve  graça.  Acabou  nem bem era nascida. Montado em ódio de cobra velha, o gigantão avançou em salto traiçoeiro.  Sou de dobradiça  macia  e  ainda  agora,  tantos  anos  vividos,  boto  o  dedão  do  pé  bem  avizinhado  da barba, o que muito menino novo não faz. Com uma quebra de corpo, saí da marrada e lá seguiu o  valente  em  carreira  sem  governo.  Vi  que  era  chegada  a  hora  de  despachar  o  bichão. Espalhando uns  agregados do  circo que infestavam  o picadeiro, liberei  o meu rabo de  arraia, dos bem aprendidos no largo do Mercado. As botinas de Ponciano  subiram no ar e  sobreveio aquela  batida  seca  acompanhada  de  berro  descomunal.  Quando  abri  o  olho,  escurecido  pela cambalhota do rabo de arraia, o querelante, como galinha nas agonias, esperneava no chão do picadeiro. Mais de uma admiração rebentou na praça:    — Virgem Maria! O pé do alferes é pior do que coice de mula.    Não  é  preciso  dizer  que  o  circo  veio  abaixo.  Era  quem  mais  pulava  e  vivava  o  moço alferes. Fui levado em ombro aos confins da rua da Jaca. Meu avô, de  sono pregado, acordou na  algazarra  de tanta boca. Tive  de  explicar  ao velho  o  acontecido. Nem terminei  o relato — Simeão correu comigo varanda afora. Lampião no alto, gritou que eu era um perdido:    — Vosmecê só aprende o que não presta. Letra de padre mesmo não entra em sua cabeça. 
   Levei  reprimenda  grossa.  Mas  na  guerra  do  circo  de  cavalinhos,  com  elogios  e  cortesias, ganhei a patente de capitão, do que muito tive orgulho e fiz alarde. 
Então, anos de serenata e farreagem poliram a patente de Ponciano de Azeredo Furtado. Foi ocasião  em  que  montei  barba  na  cara.  Em  viagem  especial  cheguei  ao  Sobradinho  para requerer  consentimento  do  meu  avô.  Refestelado  na  cadeira  de  couro,  o  velho  despachou  o pedido do neto acompanhado de conselho:    — Saiba o capitãozinho que duas coisas de principal um homem deve ter. Barba escorrida e voz grossa.    Em  verdade  o  que  firmou  esse  meu  pertence  no  queixo  não  foi  a  licença  de  Simeão.  Foi Dadá Pereira, uma dona de pensão de moças desencaminhadas, que perdia hora sobre hora no cafuné da minha barba. Era babada em gozo que ela dizia:    — Homem que é homem deve ser como o capitão.    Sabia eu também ser piedoso de são Jorge, santo Antônio e são José. Em tarde de procissão era  o primeiro  a  aparecer, todo barba brilhosa, para puxar  andor. De peito  estofado, passava pela  rua  do  Sacramento  cantando  em  voz  cheia,  que  com  dificuldade  cabia  na  garganta,  as cantorias   dos   padres.   O   povo,   sempre   lembrado   da   façanha   do   circo   de   cavalinhos, cochichava em fala admirada:    — Lá nos paus dos andores vai Ponciano de Azeredo Furtado. É aquele barbudo de cabelo de fogo.    Saía dos compromissos das procissões e de imediato caía nas conversas de café e bilhar. O que valia  ao neto  de  Simeão  era  a bondade  de  Francisquinha,  que  em hora  de  Deus meu  avô arranjou  para  comandar  a  casa  da  rua  da  Jaca.  A  velha  ameaçava  delatar  o  que  eu  fazia  até madrugada   da   estrela-d’alva.   Sabidão,   eu   desgastava   as   birras   de   Francisquinha   em galhofismo:    — Diz nada. Amanhã boto em seu pescoço prenda de ouro.    Mas foi de supetão que dei baixa nesse viver descuidoso. Uma noite, estando na pagodeira, de   serenata   armada   em   varanda   de   moça   donzela,   apareceu,   esbaforido,   portador   do Sobradinho. Padre Malaquias de Azevedo, confessor de Simeão, mandava dizer, com palavras de muito pesar,  que Deus Nosso  Senhor havia posto  a mão misericordiosa na  doença  de meu avô —  curou  o velho  de uma vez  dos  seus  incômodos  do baço.  O recadeiro,  fusquinha bem- falante, ainda ajuntou seu pesar :    — Morte muito sentida, sim senhor, de verter muita lágrima, sim senhor.    Em  pé  de  vento  passei  pela  rua  da  Jaca  para  vestir  roupa  de  enterro.  Cortava  o  coração mais de pedra ver Francisquinha, no meio de suas agregadas, carpir a morte de Simeão. Ficou pregada na  cadeira  do  falecido  alisando  o  espaldar  como  se  ele  lá  estivesse  em  descanso  de domingo.  Não  aguentei  —  tive  um  repuxo  no  peito  e  desarvorado  deixei  atrás  o  choro  da velha, com promessa de voltar de imediato: 
   — Logo acabada a piedade do sétimo dia, no mais tardar.    No trem, em canto sozinho, chamei o morto às falas, coisa que não fazia nunca. Tanto tempo junto dele e tão distanciado de  sua pessoa. Nunca que eu apareci no  Sobradinho ou em Mata- Cavalo para um  ajutório  de neto, para misturar meus  gritos  de  goela nova nas  suas  ordens  de velho. O que consolava era  saber que  Simeão, nem por  sombra, queria que eu aparecesse nos pastos,  medroso  que  Ponciano  praticasse  uma  devastação  nos  compromissos  das  negrinhas dos  currais.  Ele  não  conhecia  o  capitão.  Do  que  eu  mais  apreciava  e  fazia  alarde  era  da convivência com os rabos de saia dos palcos. Conhecido como eu nos teatros e Moulin-Rouge não  existia  outro  igual.  As  moças  das  ribaltas,  vendo  minha  despresença,  perguntavam  de fogareiro aceso:    — Onde anda Ponciano Barbaça?    Logo corria moleque atrás da minha botina.  Simeão, desterrado nos ermos, longe estava de conhecer  o  progresso  do  neto  nos  terrenos  das  velhacarias.  Só  às  vezes,  num  repente  de suspeita, virando a barba como eu também gosto de fazer, é que inquiria em modos de sabido:    — Vosmecê não acha que está antigo para essas labutas de letras?    Convencia  Simeão  que  estudo  de  saber  era  assim  mesmo,  pedia  tempo.  Tomé  de  Azeredo Furtado,  meu  falecido  tio,  não  recebeu  canudo  de  doutor  da  Justiça  na  idade  dos  quarenta  e tantos?  Simeão resmungava, de novo retorcia a barba. E mais depois, no canto da madrugada, partia  para  sua  nação  de  boi.  Saía  o  velho  por  uma  porta  e  eu  por  outra,  que  mais  de  uma janela  de  moça  facilitada  esperava  meu  pulo.  No  rabo  das  despedidas,  Simeão  sempre estipulava:    — Já está em ano de vosmecê tomar responsabilidade nos pastos.    Ia  eu,  no  banco  de  viagem,  relembrando  esses  e  outros  acontecidos,  enquanto  o  trem,  por fora da janela, puxava os lonjais. Na curva de Santo Amaro a máquina apitou. Larguei no meio a conversa de meu avô, pois já via o povo do Sobradinho na estação. O padre, feição tristosa, caiu em meus braços:    — Que pesar, que pesar.    De noite, depois do enterro, que foi cerimônia de  ser vista e ouvida, jantei tristeza na mesa larga do  Sobradinho. E de pé, no  fundo da  sala, recebi o pesar dos currais. A morte do velho desencavou  gente  que  eu nunca vi  e  até  além  da meia-noite  a varanda  foi rebuliço  de  espora. Na saída da última visita, o padre Malaquias requisitou negra de lava-pé. Deram ao reverendo a  bacia  de  prata  dos  Azeredos  Furtados,  como  cabia  em  tal  ocasião.  O  batina  mergulhou suspiroso os dedos na água e nesse bem-estar entrou em sono largado. Fiquei de novo sozinho e  outra  vez  vieram  as  relembranças  do  meu  avô.  Como  fosse  noite  adentrada  e  uma  coruja viesse  fazer  agouro  na  varanda,  fiz  recolher  o  reverendo  ao  sossego  dos  lençóis  e  de  minha vez caí no travesseiro. Fui dormir em tristeza e esse acabrunhamento acompanhou meus passos o  resto  da  semana.  Rezada  missa  de  sétimo  dia,  deliberei  dar  balanço  nos  deixados  de Simeão. Era riqueza  de  avantajado porte, não  só  em terras  como  em benfeitorias  e  dinheiros. Diante de tanta escritura lavrada e papéis de valia, torci a barba e medi sala em passo militar. A  verdade  é  que  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  era  um  sujeito  enricado.  Pensei  com  meus botões:    — O capitão nasceu de vento em popa.    No arremate do inventário, que não teve embargo da Justiça, por ser eu herdeiro de herança limpa, mandei  levantar  carneiro  de muita religião  em  comemorativo  de meu  avô. Fiz  questão 
de municiar o túmulo dele com dois anjos de asa larga, coisa vistosa, de engrossar a fama do cemitério de  Santo Amaro. O tabelião Timóteo da Cunha, que cuidou da papelada de cartório, quando a obra ficou pronta teve esta admiração:    — Empombada!    Acabaram  meus  dias  de  vadiagem.  Tomei  respeito,  não  só  pela  herança  de  boi  e  pasto, como  pela  patente  de  coronel  que  em  seguimento  recebi.  Veio  comitiva  garbosa  trazer  a regalia.  A  casa  da  rua  da  Jaca,  do jardim  ao  pé  de  abricó,  ficou  pejada  de  gente.  Com  tanta glória à disposição, pensei em tomar estado, o que era do muito empenho do padre Malaquias. Além  do  mais,  andava  eu  na  casa  dos  trinta  e  tantos  e  meu  novo  viver  pedia  costela.  Uma prima,  filha  do  sepultado  tio  Tomé  de  Azeredo,  ficou  toda  ensabonetada  para  meu  lado. Morava longe, mas ao sentir cheiro de casamento voou em trem de ferro e veio desabar na rua da Jaca. Não chegou a entrar em cogitação. Queria moça de bacia larga, onde eu metesse raiz de  sujeito  respeitoso,  com  criação  de  muitos  meninos.  A  prima  não  servia  —  um  bambu vestido  era  mais  encorpado  do  que  ela.  Juca  Azeredo,  meu  parente  do  Morro  do  Coco, estando em passadio de semana comigo, desaconselhou:    — Aquilo é tábua de passar roupa. Moça para o primo tem que ter coxão fornido, capaz de aguentar os repuxos.    Concordei.  A prima,  desconsolada  de  ver  meu  desinteresse, pronto  voltou para  a  sua  vida murcha. Nessa ocasião, fechei as portas da rua da Jaca, com justificativa de que o Sobradinho precisava de mim:    — Melhor engorda do boi é o olho do dono.    No leme da casa do sertão joguei dona Francisquinha, que gostou de ver lacrada a chácara, uma  vez  que  nos  currais  seu  reinado  era  mais  vistoso,  bem  aparelhado  de  negras  e  mulatas, fora a miudagem dos moleques. Quando os negócios pediam que eu ficasse na cidade, tomava compartimento  em  qualquer  estalagem  do  largo  da  Quitanda.  Serenados  os  trabalhos  da mudança, estudei, ajudado pelo dr. Pernambuco Nogueira, uma raposa da Justiça, as heranças de Simeão. Na companhia de quatro campeiros percorri as posses todas, da cauda ao pescoço, sem  deixar  de vasculhar  o mais  desimportante pé  de pau. Nos  currais  de Mata-Cavalo  gastei semana  e  meia  em  vistoria.  Conferi  as  medidas  das  escrituras  e  vi  que  em  muita  parte,  pela velhice  de  meu  avô,  vizinhos  de  mau  caráter  tinham  adentrado  mourões  e  aramados  em prejuízo  do  que  era  meu.  Dei  a  conhecer  aos  ladrões  o  seu  abuso.  Não  agi  na  força  dos rompantes,  em  desmandos  e  desavenças.  Remeti  a  cada  um  bilhete  educado.  Antão  Pereira, boiadeiro  do  Sobradinho,  gago  de  nascença,  achou  graça  do  meu  proceder  mimoso.  Na  sua língua tropeçada, avisou que povo de pasto nunca que ia entender carta rendilhada, com o qual parecer concordou Saturnino Barba de Gato, outro campeiro meu dos tempos de Simeão:    — Bom entendimento tem o compadre Pereira. Ladrão de pasto não sabe lidar com letra de educação.    De   fato,   os   desabusados   fizeram   ouvidos   de   surdo,  de  nenhum  mandar  resposta  de contestação. Não  perdi  vaza  —  chamei  os  bichos  na  chincha.  Mandei  que  o  dr.  Pernambuco Nogueira  abrisse  questão  na  Justiça  e  nessa  labuta  de  botar  em  ordem  a  herança  de  Simeão empreguei meio ano. Vivia enterrado na papelada do Foro e nas escrituras. Lia mais  sentença de  desembargador  que um  escrivão  de  ofício,  a ponto  de  Pernambuco Nogueira  afiançar  que eu era capaz de entupir a sabedoria de muito doutor formado:    — O coronel mete no bolso muito mocinho de anel no dedo. 
   Bondade  dele,  emboramente  tivesse  eu  inclinações  pelas  rixas  da  Justiça.  Em  dias  dos antigos  cheguei  a  trabalhar  em  cartório  e  mais  de  uma  escritura  lavrei  dentro  da  lei  e  da pragmática. De gado é que eu pouco alcançava pelos motivos de meu avô não querer o neto na vadiagem  dos  currais.  Desse  desconhecimento  nunca  dei  o  braço  a  torcer.  Gente  que  tem mando  não  pode  dar  parte  de  fraco  no  lidar  com  o  povo  dos  ermos.  Tomei  conta  do Sobradinho numa segunda-feira e no mesmo dia fiz sentir as imposições de dono. Queria isso, queria   aquilo.   Por   felicidade,   enquanto   brigava   na   guerra   dos   mourões,   apareceu   no Sobradinho um tal de Juquinha Quintanilha, que em época de moço serviu debaixo da rédea de Simeão.  Senti  na primeira  fala  do  mulato  que  era preparado  em  sertão,  entendido  em  gado  e suas  mazelas.  Discuti  de  fogo  aceso  a  respeito  das  bondades  do  capim-melado.  Quem  visse Ponciano  de  palavra  solta  ia  cuidar  que  estava  diante  de  um  mestre  de  invernada.  Pois  digo que  no  corpo  da  discussão  inventei  uma  raça  de  capim  que  no  conhecimento  de  ninguém  era chegada. Sustentei, em manha de advogado de lei, as prendas da tal forragem. Dei até nome:    — Capim-rabo-de-macaco.    Fiz isso por sabedoria, para que Juquinha Quintanilha não cuidasse estar na presença de um ignorantão.  Não  sou,  como  todo  mundo  sabe  e  conhece,  loroteiro  ou  espalhador  de  falsos. Mato  a  cobra  e  mostro  o  pau.  Sustentei  o  meu  capim-rabo-de-macaco  por  honra  da  firma. Juquinha,   rendido,   disse   que   não   conhecia   nem   dele   nunca   ouviu   falar,   ao   que   logo obtemperei:    — Pois devia saber, seu compadre. É o pasto mais corriqueiro do Piauí.    Simpatizei  com  ele,  com  o  seu  modo  cerimonioso  de  tratar  as partes.  Era  coronel para  lá, coronel  para  cá.  O  jantar  foi  servido  no  melhor  agrado  de  Francisquinha,  que  conheceu  o chegado   em  vida   de  meu   avô,   ainda  meninote,  na   força   dos   quinze   anos.   Despachei Quintanilha  para  a  herança  de  Mata-Cavalo  munido  de  carta  branca,  com  recomendação  de não tirar o olho dos mourões:    — Vou ensinar a esses sacanas a regra do bom viver. Meto tudo de rabo no banco dos réus.    O dente de ouro do mulato rebrilhou fora da boca. Riso sem prevenção, de sujeito simplão. Prometeu limpar Mata-Cavalo de todos os compromissos de berne e erva daninha. Conhecia a propriedade, dos dias de vida de meu avô:    — Como a palma da mão, coronel.                                                           * * *      
As  questionações  do  Foro,  a  lenga-lenga  dos  doutores  fizeram  de  Ponciano  um  andarilho. Andava de trem em modo de caixeiro-viajante ou salomão vendedor de panos e rendas. Nessa ciganagem de Foro e estrada de ferro contraí vício de gente política — dei de queimar charuto fino, de  fumaças ostentosas. Infestava os recintos por onde andava a poder de Flor de Ouro  e nem   compartimento   da   Justiça   escapava   desse  meu  proceder.  Fiz  nome  nos   cartórios, conhecido  por  demais  nos  corredores  do  Foro.  Com  esta  voz  grossa  que  Deus  engastou  na garganta do neto de  Simeão não havia desavença que eu não desmanchasse na força do berro. Travei rixa de palavra com mais de um rábula e até conselho espalhei em orelha de advogado. Um  barbadão  vermelhão  como  eu,  aparelhado  de  quase  dois  metros,  da  sola  da  botina  ao chapéu da cabeça, não era para ninguém desmerecer. Comparecia nas audiências da Justiça de charuto debruçado na varanda do beiço. Largava fumaça de trem maluco e minha barba, entre os filós do Flor de Ouro, mais feroz aparecia. Os meirinhos cochichavam: 
   —  Nem  por  uma  fortuna  de  nababo  eu  fazia  intimação  contra  o  coronel  Ponciano  de Azeredo Furtado.    Valeu a pena o trabalho. Pernambuco Nogueira, a poder de leis e artimanhas, não só limpou as  propriedades  de  agravos  e  roubalheiras,  como  adentrou  suas  leis  em  terra  que  não  era minha. Refuguei:    — Sou lá homem disso, doutor ! Quero só o que é meu.    Mas  um  aguardenteiro  de  nome  Cicarino  Dantas,  com  engenho  de  cachaça  em  Paus Amarelos, quis jogar a demanda no terreno do atrevimento. Avisaram a ele:    —  Esse  Ponciano  é  o  tal  que  em  dia  dos  antigos  estuporou  um  valentão  de  circo  de cavalinhos.    Deu  de  ombros. Não  levava medo  de homem,  coisa  que  acabou  desde  a  inventoria  do pau de  fogo.  Era  camarada  vingancista  e  garantiu  que  o  coronel  do  Sobradinho  não  pegava  o tempo  das  águas  com  vida  no  corpo.  Como  fosse  mês  de  agosto,  aproveitei  para  fazer ironização:    — Pois diga a esse boi de chocalho que ainda tenho mês e meio para rebentar o chifre dele.    Acertei no vinte, porque,  segundo vim  a  saber  depois,  a mulher  do  atrevido  sujava  o nome dos Dantas na cama de um doutor primo dela. Ao  saber do meu despacho, o ladrão jurou,  em porta de oratório, que ia passar na pólvora a minha língua ferina:    — Nem que careça de vender a camisa do meu vestir ou a cama do meu dormir.    Jura  feita,  jura  cumprida.  Uma  semana  não  era  decorrida,  estando  eu  na  compra  de  um cavalo  passarinheiro,  muito  do  meu  agrado  por  ser  possuído  de  estrela  na  testa,  chegou  à minha presença, pela boca de Dioguinho do Poço, um vizinho dos ermos, a notícia de que José Mateus, tocaieiro de tiro certo, rondava as porteiras do  Sobradinho. Com a fala grossa de sua natureza, Dioguinho alertou:    — É de proveito o coronel tomar prevenção.    Amansei os receios do vizinho e em modo de pouco-caso mandei Francisquinha reforçar os mantimentos da panela para que eu morresse de barriga cheia. Com esses e outros galhofismos dei a ameaça de Cicarino Dantas por acabada. E mão no ombro de Dioguinho:    — Seu compadre, bala que vai matar este coronel ainda está no fabrico.    Se passei, nos dias de depois, a andar de capanga no costado, não foi por medo, doença que nunca  tive  nem  vou  ter.  Foi  para  dar  contentamento  ao  pessoal  dos  meus  descampados  e desenferrujar  a  trabucada  do  Sobradinho.  Um  dono  de  pasto  vasqueiro,  de  nome  Sinhozinho Manco,  sem  saber  do  acontecido,  ficou  assustado  na  vista  de  tanta  arma  e  munição.  Pensava que o povo de Simeão estivesse de guerra feroz contra gente do governo. Falou fininho:    —   Nunca   vi   tanto   bacamarte,   seu   Ponciano.   Nunca   vi   tanto   moleque   tomado   de responsabilidade, seu Ponciano.    Muito  apreciava  a  amizade  de  Sinhozinho,  que  conheci  ainda  nos  outroras  do  Sossego, quando  aprendia  letra  de  ensino  na  escola  da  prima  Sinhá  Azeredo.  O  velho  foi  amigo  dos mais  carne  e unha de  Simeão  e  era dos poucos uns que tratavam meu  avô de igual para igual, sem rebaixamento ou cerimônia. Entrava no Sobradinho como se fosse posse sua, de dia ou de noite,  que  ninguém  era  maluco  de  estorvar  os  passos  dele.  Uma  coruja  não  agourava  tanto como  Sinhozinho.  Vislumbrava  tudo  em  olho  preto  —  curral  não  dava  mais  nada,  gado  era negócio  falecido.  Mas  ao  saber  de  um  padecimento,  lá  montava  seu  cavalinho  de  costela  de fora e saía, sempre resmungão, sempre aporrinhado , em auxílio do aflito. Muita vez, noite alta, 
nestes meus anos todos de pasto, tive de acompanhar  Sinhozinho em ajutório deste ou daquele precisado.  Certa  feita,  salvei,  a  rogo  dele,  uma  besteirinha  mal  saída  dos  cueiros  que  foi expelir urina  e perdeu  o  caminho  de  casa.  Estava  eu  no  sono  militar,  um  olho  aberto  e  outro fechado, quando a voz de Sinhozinho chamou já dentro do quarto:    — Ponciano! Ponciano!    Larguei a cama e caí nos ermos. Era de madrugadinha. O corisco alumiava no alto e na terra era  aquele  lençol  de  chuva  que  não  dava  permissão  de  ninguém  ver  uma  rês  ou  mesmo arvoredo  a  um  lance  de  cinco  braças  no  adiante  do  nariz.  A  viagem  toda  Sinhozinho  não  fez outro trabalho que não resmungar seus azedos contra os poderes do trovão:    — Tempo de sapo, seu Ponciano, de jacaré requerer agasalho, seu Ponciano.    De  uma  lapa,  que  a  diluviada  ameaçava  sorver,  retirei,  com  o  ajutório  de  Sinhozinho,  o desaparecido  —  foi  minha  mão  botar  o  traquinista  em  lugar  seguro  e  de  logo,  no  imediato, aquela manta  de  água  aparecer  e tudo  afundar.  E  enquanto  acamava  o  salvado no  debaixo  do meu capotão, dei o serviço por bem acabado:    —  A  bem  dizer,  Sinhozinho,  o  menino  nasceu  de  novo.  De  volta  ao  Sobradinho,  já  o desaparecido em poder da parentagem dele, o velho recaiu nos resmungos, que não aguentava mais tarefa de pasto, que andava apalavrado para servir na cidade em repartição do governo:    — Vou viver em lugar limpo, calçar minha botina, botar roupa de branco, seu Ponciano.    Era  assim  o  todo  de  Sinhozinho.  Língua  chorona,  vista  que  só  via  defeitura.  Mas  Deus Nosso  Senhor nunca  deu poder  de vivência  a um  sujeito  de tamanha bondade, tão  servido  de inocências. Pois  foi  saber por mim  da jura  de  Cicarino, para  o velho pular na perna manca  e dizer que ia quebrar o focinho dele:    — É coisa que nem dá trabalho, seu Ponciano.    Liberei os préstimos do amigo:    — O caso é meu, dele não abro mão. Graças a Deus as armas do  Sobradinho dão de  sobra para brigar com vinte Dantas quanto mais com um só.    De fato, meti carabina de munição completa no ombro de meia dúzia de campeiros. De dia, ficavam na  sentinela  dos mourões.  De noite, revezavam na vigília  das  armas pelos  cantos  do casarão.  Juquinha  Quintanilha,  que  de  coragem  era  desaparelhado,  não  aguentou  o  cheiro  da guerra, pelo que arranjou invenção de que a presença dele era requerida em Mata-Cavalo por motivo de uns arremates de paiol e capela:    — O reverendo Malaquias quer ver a obra pronta antes das águas.    Nessa  arruaça  de  armas,  lá uma tarde recebi  carta  lacrada  de  Totonho  Borges.  Conhecia  a pessoa dele de passagem, da cerimônia de bom-dia, como-vai-como-passou. Mesmo  sem raiz de  amizade,  Totonho  Borges  era  muito  festeiro  comigo,  muito  apreciador  da  minha  fama. Lavrava escrituras em livro de cartório e entre uma penada e outra prendia ladrão de cavalo e administrava  outras justiças  em nome  do  governo.  Tinha  casa  de prisão  e meganha  às  ordens em  São Gonçalo. Por mais de uma ocasião, a seu rogo, tive de repetir como dei encerramento à  valentia  do  gigantão  do  circo.  Totonho  ria  no  relembramento  do  caso  e jurava  que  ainda estava para nascer outro rabo de arraia daquele porte:    — Ainda está para nascer.    Na  carta  lacrada, trazida por meganha  de  confiança,  Totonho  dava  conta  que  seus  fardados tinham dado prisão e cacete a um pardinho de nome José Mateus, contratado para trabalho de tocaia contra o coronel Ponciano de Azeredo Furtado. No primeiro par de bolos o garrucheiro 
confessou tudo nos pormenores. O próprio meganha disse em jeito de orgulho:    — O birrento urinou de menino só de ver o tamanhão da palmatória.    Larguei  o papel  de  Totonho Borges já  aporrinhado e  foi  aporrinhado  que  segui,  em viagem de  guerra,  para  ver  o  tocaieiro  de  contrato. Não  apreciava judiação  dessa  ordem.  Era  muito coronel  de  chegar  em  São  Gonçalo  e  destratar  a  autoridade  de  Totonho  Borges.  Como  é  que um  cristão  batizado,  pai  de  filho,  podia  dependurar  outro  de  cabeça  para  baixo  e  gastar  a palmatória  nas  partes  fracas  do  cativo  até  tirar  dele  confissões  e  segredagens?  Sempre incriminei  barbaridade  e  covardismo.  Sou  homem  de  comer  vivinho  o  querelante.  Mas rompante passado,  de novo no meu natural,  Ponciano  até pulava  de  lado para não matar uma minhoca. Por isso, começava já a não querer justiçar o tocaieiro, enojado de ouvir, na viagem, as gabolices que  o meganha, na  esperança de ganhar minha  especial  consideração,  apregoava ter feito na pessoa do preso. Lá num avantajado maior, ordenei que calasse o bico:    — Vosmecê só sabe dizer asneiras. É escuro de nascença.    O meganha meteu a viola no  saco e outra valentia não arrotou o resto da caminhada. Entrei em  São  Gonçalo  como  em  praça  tomada.  Mais  de  dez  campeiros,  bem  fornidos  de  armas, guardavam   meu   costado.   Quase   tudo   cria   do   Sobradinho,   uma   remessa   de   moleques espevitados,  doidos  da  cabeça  por  coçar  o  gatilho.  Saturnino  Barba  de  Gato,  de  porte alentado,  bexigoso  de  cara,  seguia  no  meu  coice  e  mais  atrás,  a  dois  cavalos  de  distância, vinha Antão Pereira. De cambulhada com molecotes e cachorros, o meganha portador da carta lacrada, por minha imposição militar, fechava a rosca do batalhão. Totonho Borges, diante de tanta arma montada, botou a mão na cabeça:    — Pelo amor de Deus, coronel, não mate o homem.    Sem  prestar  atenção  ao  que  Totonho  pedia,  ordenei,  sem  sair  da  sela,  que  trouxesse  o matador  de  contrato. Na poeira  dos  cascos  de meus  cavalos  o varejo  de  São  Gonçalo  cerrou as  portas  como  em  dia  santificado.  Era  quem  mais  queria  ver  a  justiça  do  coronel  do Sobradinho.  Maquinavam  que  eu  ia  sangrar  o  matador  como  em  era  distante  fez  um  tal  de Zacarias  Valadão,  nababo  de  dez  fazendas,  sujeito  de  variadas  camas  e  muitos  dinheiros. Estava esse povinho do comércio enganado. Estipulei grosso:    — Quero ver esse valente de perto, seu Totonho Borges.    Trouxeram José Mateus amarrado em pau-de-porco. Os meganhas de  São Gonçalo jogaram o  fardo  nos  debaixos  do  meu  cavalo  em  risco  do  cativo  pegar  dois  coices  e  morte  certa. Enojado,  mandei  que  liberassem  o  suspeitante,  um  enfezadinho  sem  peso  de  gente,  todo tremido de maleita. Logo que ficou desembaraçado das embiras de Totonho Borges, implorou de todos os Azeredos e demais Furtados pronta misericórdia. Fiz com que  Saturnino desse ao cativo a mais vistosa arma da embaixada:    — Aquela de fogo-central.    Então, de peito aberto, mandei que José Mateus apertasse o gatilho:    — Atira, seu filho de uma égua, que a peça é de segurança.    O povo, em derredor, espalhou a perna no medo de pegar bala vadia e muito  sujeito correu para trás de porta. O enfezadinho, sem força nem para segurar a arma, veio cair junto da minha montaria  ajoelhado.  Contou  que  devia  uns  adiantados  a  Cicarino  e  o  aguardenteiro,  de  cima dessa prevalência, ameaçou trancar os restos de seus dias no fundo da cadeia. Visse eu que ele possuía ninhada de moleques e não sabia, desde mês, o que era gosto de gordura. E mostrou o peitinho afundado, onde aparecia o reco-reco das costelas: 
   — Tenha dó, coronel. Tenha pena deste sofredor.    Não  aguentei —  e  caso  José  Mateus relatasse nova remessa  de miséria  eu  era Azeredo  de dar  ao  necessitado  a  camisa  do  corpo  e  toda  a  pecúnia  do  bolso.  De  coração  compadecido, mas ainda em berro autoritário, mandei que ficasse de pé:    —  Não  sou  santo  de  altar,  são  Jorge  ou  santo  Onofre,  para  ninguém  cair  ajoelhado  na poeira.    Digo,  sem  ostentação,  que  Deus  não  cresceu  o  neto  de  meu  avô  na  beira  dos  dois  metros para  que  ele  desperdiçasse  essa  grandeza toda  em raiva  de  anão,  em  ódio  de  sujeito nascido para  caber  num  dedal  de  costureira.  Nunca  que  uma  desgraça  dessas  ia  acontecer  comigo. Sempre  apreciei  as  alturas  e  nas  alturas  vou  morrer.  Quando  o  povinho  espantado  de  São Gonçalo viu Ponciano  coçar  o bolso,  figurou  logo  faca  de ponta  ou  garrucha  de  segurança.  O que saiu do atrás das calças foi um bom par de notas na ordem de duzentos mil-réis que passei a José Mateus com a expressa estipulação de quitar a dívida em poder de Cicarino Dantas. E no fim da incumbência mandei este recado:    — Diga ao nojento que vosmecê está alforriado e que o coronel do Sobradinho em oportuna ocasião vai visitar Paus Amarelos.    Por  causa  dessa  ameaça,  Cicarino  demoveu  céu  e  terra  na  esperança  de  fazer  as  pazes comigo. Em carta de letra torneada, garantiu que tudo era inventoria de José Mateus, vingança de moleque safado. Acusou também Totonho Borges de não apreciar a sua pessoa, motivo pelo qual  “extraiu  confissão  descabida  de  um  vadio  que  atirei  fora  de  porteira  por  ser  ladrão contumaz”. A  carta, pelo visto, não  devia  ser  de  Cicarino,  aguardenteiro  de  curtas  letras,  que mal  sabia  assinar  escrituras  e  recibos  de  cachaça.  Algum  doutor  advogado,  a  par  da  minha fama de coronel demandista e instruído, rascunhou o preto no branco a troco de meia dúzia de tostões.  Fiquei  firme,  não  abri  os  braços  de  pronto.  Queria judiar  de  Cicarino,  dar  lição  de boa  vizinhagem  a  ele.  Juquinha  Quintanilha,  desejoso  de  ver  o  caso  apagado,  Dantas  na  boa convivência do Sobradinho, pedia que eu desse a desavença por desfeita:    — O homem está arrependido, de não comer nem dormir, coronel.    Mandava que Juquinha recolhesse os panos quentes:    — Tem tempo, seu compadre. Isso não é sangria desatada.    Mas  no  fim  do  ano,  pelos  bons  ofícios  do  tabelião  Pergentino  de  Araújo,  ensarilhei  as armas.  Mantinha  com  o  suplicante  Pergentino  relações  estreitosas,  meu  amigo  dos  Moulin- Rouge  e  outras  ribaltas.  Era  como  eu,  severão,  respeitosão  por  fora.  Dentro,  safadeza  maior não  havia.  A  pedido  dele,  assinei  documento  de  paz  em  benefício  de  Cicarino  Dantas,  que veio,  na  companhia  de  Pergentino,  prestar  vassalagem  ao  coronel  em  terras  do  Sobradinho. Rebati  a  cortesia  com morte  de  carneiro  e  outras  alegrias  de mesa.  O  tabelião,  que  deixou  o sossego  da  cidade  para  esse  trabalho  de  paz,  não  cabia  no  contentamento.  Era  um  tirar  de óculos  e  limpar  de  óculos  sem  descanso,  o  que  levantou risada  entre  o povo  do  Sobradinho. Além  do  mais,  Araújo  não  largava  a bengala  de  castão  de  ouro,  mesmo  em passeio  curto  no derredor  do  casarão,  nas  cacimbas  ou  na  sombra  das  casuarinas,  por  ser  muito  temente  de surucucu:    — Fui picado em menino e de cobra tomei birra.    O  jantar  foi  servido  em  toalha  nova  e  demorou  mais  de  hora,  do  cabrito  ao  café  do arremate. No charuto, deu entrada no  Sobradinho aquele luarão de cegar coruja. Admirado de tanta  ostentação,  Pergentino  foi  apreciar  a  claridade  e  se  não  fosse  um  pio  de  caburé,  que arrepiou  o  tabelião  todo,  era  homem  de  não  arredar  mais  o  pé  da  varanda.  Não  parava  de gabar os benefícios do luar :    — Que boniteza, que coisa salutar !    A  noite  afundou  e  a  gente  em  conversaria,  no  relembramento  do  antigamente,  das  arruaças em porta de teatro e em janela de serenata:    —  Tempo  bom,  Ponciano,  de  francesada  supimpa.  Mais  de  um  comerciante  de  secos  e molhados abriu falência nas pernonas das Zazás dos Moulin-Rouge.    Pergentino,  refestelado  na  cadeira  de  meu  avô,  quis  saber  pouco  mais  depois  o  nome  de uma mulatinha, de bojudo assento, encarregada do bule de café. Digo que meu olhar mulherista nunca encalhava em beleza do povo  subalterno do  Sobradinho. Araújo, nas ignorâncias dessa minha jurisprudência firmada, pediu que eu desse parecer sobre a pardinha. Por sorte, entrava ela nessa justa ocasião, com nova remessa de café e paçoca de milho. O tabelião logo ajeitou os  óculos no  gozo  da vistoria. De  fato,  a  agregada  do  Sobradinho tinha  lá  os  seus possuídos, no que avultava o bom roliço dos braços. Cicarino, de modo a não ficar atrás, gabou os rabos de saia do seu engenho:    — Tudo mulata limpa, beiço de travesseiro.    E avantajou as bondades delas, as libertinagens que tirava de  sua autoridade de patrão. Em tempo de água não tinha outro serviço. Era chuva no telhado e ele na farra de cobertor :    — É uma mulata por noite, trinta no fim do mês.    Quando  a  conversa  perdeu  a  força,  fui  levar  as  visitas  ao  compartimento  de  dormir.  Os lençóis  de  dona  Francisquinha  estalavam  de  asseio.  No  boa-noite,  avivando  a  lingueta  do lampião, brinquei com os amigos:    — Neste quarto dá presença uma assombração cheirosa. Foi moça teúda e manteúda de meu avô Simeão.    Cicarino,  por  causa  de  uma  venda  de  gado,  voltou  ainda  ao  Sobradinho  meia  dúzia  de vezes. Numa dessas vindas, como mostrasse desejo de passar no cobre suas posses em pasto e fabrico de aguardente, apalavrei a transação em nome de Juca Azeredo, meu parente do Morro do  Coco,  que  sempre  quis  propriedade  rente  de  mim.  Mal  recebeu  o  aviso,  veio  de  corrida meter o negócio em livro de tabelião. Por quarenta contos contados e mais outros quarenta em papel  de  compromissos,  ficou  o primo no mando  da melhor  fábrica  de  cachaça  que j á vi,  de metais  limpos,  turbina  areada,  produção  garantida  —  o  engenho  de  Paus  Amarelos.  A  rogo dele,  botei  em  seu  serviço,  por  quinzena  e  meia,  o  limpador  de  cavalo  Janj ão  Caramujo, cachacista  sem  remissão,  sempre  encorujado  pelos  cantos,  mas  gozando  da  madrinhagem  de Francisquinha por ter  servido  o velho  Simeão  desde tenra  infância.  Tirante  essa  defeitura,  de beber  feito  gambá  de  galinheiro,  era  Caramujo  de  bons  prestativos  num  embonecramento  de sela  ou  limpeza  de  um  lombo,  seu  principal  ofício  nos  seus  anos  muitos  de  Sobradinho. Despachado  o  pardavasco,  com  as  competentes  ressalvas  “Cuidado  com  as  garrafas  que Janj ão  suga  mais  que  morcego”),  fiz  chegar  às  porteiras  do  primo  outro  benefício  maior. Estipulei  que  Juquinha  Quintanilha  franqueasse  os  pastos  de  Mata-Cavalo  aos  cascos  do gadinho dele. Tudo era Azeredo Furtado. 
 Bem não tinha esquentado o assento na cadeira de meu avô veio o caso da onça-pintada. O zum-zum trazido pelo vento dos pastos dizia grandezas da aparecida, que era onça sem medida e sem cautela. Entrava nos currais de dia que fosse e seu dente carnicento escolhia, nas barbas do   dono,   a  rês   que  bem   quisesse.  Mandei   que  João  Ramalho,  marcador   de   gado   do Sobradinho,  sujeito  andeiro  e  de  muita  ponderação,  vasculhasse  a  verdade  e  dela  fizesse relato:    — Dou prazo de mês ou mais se quiser.    Esperei  nada  —  João  Ramalho,  num  sopro,  voltou  de  missão  desincumbida.  A  onça,  uma pintada  de  pata  grossa,  dava  carta  e  jogava  de  mão,  almoçando  e  jantando  garrote  e  mais garrote:    —  É  bicha  de  grande  porte,  daninha  como  os  capetas,  aparecida  nas  posses  do  major Badejo dos Santos.    Ao ouvir o nome do vizinho, cortei o relato na nascença:    — Seu Ramalho, já não está presente quem mandou pedir notícia da onça.    Como  sou de matar  cobra  e mostrar  o pau,  antes que  o marcador de rês  caísse  em  espanto, troquei  em  miúdo  os  porquês  da  medida.  Não  podia  eu,  sem  deslustrar  a  patente,  levar  a guerra  aos  pastos  de  Badejo  dos  Santos,  um  parceiro  de  armas,  muito  capaz  de  tomar  a providência  como  afronta  ao  seu  galão.  A  pintada,  em  matas  do  major,  fugia  ao  meu  tiro mortal. Descaí nos pormenores:    —  É  da  pragmática  militar,   seu  João  Ramalho.  É  dos  regulamentos  da  guerra,   seu compadre.    João Ramalho, em risco de ver seu serviço derrotado, ainda ponderou que o major não fazia caso  de  tão  alta  regalia,  no  primeiro  ronco  da  pintada  deixou  os  pastos  em  carro  de  boi,  na segurança  de vinte  capangas,  cada  qual mais  apetrechado  de  armas.  Que  eu podia passar por cima  da patente  dele,  sabido  que  o  major  dava  meia  boiada  ao  cristão  que  limpasse  os  seus ermos de tamanha imundície:    — É homem capaz de rezar missa e matar cabrito de louvor, meu patrão.    Fui  severo,  avivei  a  voz. Ninguém  (“Ninguém,  seu  João  Ramalho,  ninguém!”)  ensinava  ao neto de Simeão regra de bom proceder. Que ele fosse marcar rês, ofício que conhecia de cor e salteado. De regulamento e lei de guerra entendia eu. Não foi à toa que cursei escola de padre e em anos recuados pratiquei em cartório de tabelião. Muito doutor veio tirar consulta comigo quando  tive  pendência  na  Justiça.  Que  João  Ramalho  perguntasse  a  Pernambuco  Nogueira quem era eu, a azoada que fazia nos ouvidos dos desembargadores do Foro. Por isso, por  ser homem  de  instrução,  é  que  podia  dizer,  sem  medo  de  embargo,  que  a  onça  presente  era  da alçada do major Badejo dos Santos. E arrematativo: 
   — Dele e de mais ninguém!    Quintanilha,  chegado  no  mesmo  dia,  ficou  a  par  da  lição  ministrada  a  João  Ramalho  e  do impedimento que retirava do meu poder a exterminação da onça:    — Essa, e mais nenhuma, é a justa causa, seu Quintanilha.    Mostrando o dente de ouro e piscando o olho mateiro, o mulato ponderou:    — Em regulamento de guerra e lei do Foro não tem como o coronel.    Francisquinha,  que  andava  perto  na  limpeza  da  sala,  na  certeza  de  que  Juquinha  vinha  em missão da onça, soltou a língua. Como é que ele navegava tanto chão de pastos para vir trazer ao  Sobradinho  invencionice  dos  matos?  Um  milho  verde,  uma  partida  de  farinha,  uma  caça fresca nunca que ele trazia. Mas aligeirava a perna em viagem de diz que diz:    — Carece de tino, carece de cabeça.    Tive de pular em auxílio de Quintanilha — já o dedinho de graveto da velha raspava o nariz do  mulato.  Jurei  por  são  Jorge  e  são  José,  padroeiros  de  minha  devoção,  que  ninguém  no Sobradinho  ia  travar  arruaça  de  sangue  contra  a  onça,  que  Juquinha  sabia  do  meu  embaraço militar,  em  vista  da  maldosa  estar  debaixo  da  bandeira  de  Badejo  dos  Santos.  E  de  braço passado no ombrinho da velha:    — É o que salva a pintada, minha madrinha. É o que salva.    Ainda  espevitada,  sem  querer  acreditar,  Francisquinha  resmungou  que  o  menino  era  capaz de cair no cerrado e sem ajutório de ninguém desmontar a onça em pronta ocasião. Aquietei o receio da velha e reforcei a jura:    — Sou lá homem de quebrar promessa de são Jorge e são José!    No  esmorecer  da  tarde,  de  novo  nas  boas  graças  de  Francisquinha,  Quintanilha  voltou  a Mata-Cavalo.  Fez  curva  de  arco  de modo  a não roçar terra  de  onça. Ao ter  conhecimento  de tanta fartura de medo, ri de rebentar botão de calça:    — Vai ser amedrontado assim na Bahia.    Sumido  Juquinha,  não  fui  mais  coronel  de  ter  sossego,  de  fumar  meu  Flor  de  Ouro,  de apreciar um fundo de cadeira. Uma viração de leva e traz deu de correr entre o covil da onça e a varanda  do  Sobradinho. Um  comício  de boiadeiros  cheguei  a  esfarinhar no  grito, tão  cheio andava  de  valentia  de  onça, judiaria  de  onça,  safadeza  de  onça.  Cada  qual  dependurava  na papa-bezerro  avantajado  de  maior  porte.  No  fim, já  era  uma  exorbitância  de  dar  pinote  de cavalo  e mais  de um  garantiu  que  subia  em  arvoredo  como  aparentada  de macaco.  Quando  a voz  troncuda  de  Dioguinho  do  Poço  veio  dizer  no  Sobradinho  que  a  onça  deitava  fogo  pela goela, tive de falar sério:    — Que fogo, que nada, seu Dioguinho. Tenha respeito!    E na cara da campeirada exemplei o vizinho como gosto de exemplar. Que negócio era esse de  onça  cuspir  labareda?  Era  mesmo  o  que  faltava!  Dioguinho  do  Poço,  dono  de  invernada, pai  de  menina  já  em  ponto  de  tomar  responsabilidade,  de  carreira  arrepiada  na  frente  do gatão:    — É demais, seu Dioguinho. É demais!    E,  dentro  desse  severismo,  marchei  até  ver  o bom  vizinho  quebrado,  de  cara  no  assoalho. Então, abrindo os braços, amoleci a reprimenda:    —  Seu Dioguinho, onde é que alguém já viu palhaçada mais vistosa? Onça de lamparina no gargalo!    Diante  desse  meu jeito  cativoso,  o  vizinho  de  novo  ganhou  alento.  Sua  voz  de  atulhar  os 
recintos  mais  largos,  feita  de  todas  as  brutezas  dos  ermos,  saltou  em  defesa  do  fogareiro  da pintada.   Que   eu   desculpasse,   mas   que   muito   povo   do   sertão,   gente   sem   mentira   e invencionismo,  viu  o  alumiado,  isso  viu.  Era  um  pedação  de  onça  munida  dos  maiores desatinos:    — O compadre Badaró do Rosário verteu água só de sentir a catinga da monstrona.    Em  fala  de  amizade,  com  Dioguinho  em  passeio  pelos  arredores  das  casuarinas,  tirei  da ideia  dele  a  invenção  da  lamparina.  Era  bobagem,  carochinha  que  não  calhava  num  homem madurão e vivido. O que de fato largava fogo da goela era o artimanhoso do dragão, maldade desaparecida desde o dia que o milagroso são Jorge do cavalo branco andou pelo mundo:    — Esse e mais outro bicho nenhum, seu compadre.    Mas  digo  que  o  resto  do  mês  foi  só  onça.  O  primo  Juca  Azeredo,  dando  parte  de  muito entrado no serviço da moagem, mandou bilhete manhoso. Na última linha, numa intimidade de parente, perguntava quando  é que  eu ia meter pernil de onça na panela de Francisquinha, uma vez que a carne de pintada era por todos tida como de grande sustância:    — Maricas de uma figa!    Medroso mais que um coelho, Juca figurava valentia no branco do papel. Não passei recibo —  pelo  mesmo  estafeta,  em  letra  arredondada,  das  que  aprendi  no  ensino  dos  frades  e  nas tarefas  de  cartório,  mandei  dizer  ao  parente  de  Paus  Amarelos  que  o  povo  do  Sobradinho contava  de  pedra  e  cal  com  ele  para  dar  morte  ao  gato.  E  por  fora,  no  ouvido  do  portador, remeti este recado debochista:    —  Diga  ao  primo  que  a  gente  espera  a  espingarda  dele,  acompanhada  de  sua  pessoa,  na semana entrante.    O  bilhete  foi  em  perna  de  cavalo,  a  resposta  veio  em  andar  de jabuti.  Chegou  em  carta mofina  —  apresentava  o  parente,  como  motivo  de  não  pegar  encargo  na  rixa  da  onça,  uma inchação  aparecida  lá  no  baço  dele,  do  que  resultou  ter  de  mergulhar  a  parte  ofendida  em medicação  de  doutor.  Achei  graça  da  invencionice  de  Juca  Azeredo  e  foi  sacudindo  o  seu rabiscado que disse a Antão Pereira:    — Só de ouvir falar em onça o primo de Paus Amarelos baixou aos cobertores.                                                           * * *      Correu  o  tempo  de  um  mês,  choveu  nos  currais,  perdi  um  boi  de  canga  em  dente  de surucucu. Antão Pereira teve caxumba de um lado só. E por cima de tais desbenefícios a costa soprou  seus  ventos  brabos.  De  noite,  são  Bartolomeu,  padroeiro  deles,  estumava  aquela matilha  de  lobisomens  que  assobiava  e  fuçava portas  e janelas.  Enfastiado,  vesti  casacão  de inverno e fui tirar uns dias em Paus Amarelos, na mesa e na cama do meu primo Juca Azeredo. Era visita prometida e adiada desde longe. Pelo que chegava ao Sobradinho, o parente andava amofinado,   de   inchação   embutida   em   parte   velhaca.   Fui   chegando   e   requerendo   as pormenorizagens da tal moléstia que fazia e acontecia:    — É apanhada em rabo de saia ou é mazela de velhice?    Juca  Azeredo  gemia  a  um  canto  da  cama  larga  onde  Cicarino  Dantas,  antes  de  torrar  o engenho,  peneirava   suas   mulatas  na  receita   de  uma  por  noite.  Na  recordativa   dessas desregragens brinquei de novo com o primo Juca:    — Diga logo, seu Azeredo, onde pegou tamanha galiqueira?    Coitado  dele!  Tinha  contraído bicho-de-pé  e  caiu na  asneira  de  amamentar  a  gosturinha  da 
comichão  para  além  do  tempo  estipulado,  que  é  de  cinco  dias  no  mais  espichar.  Da exorbitância, resultou florir na ponta do dedo do primo aquele botão de rosa de mau caráter. A pedido de Juca Azeredo, a obrigação do mestre de alambique escarafunchou a parte ofendida. Esperava  criança  a  dita  madama,  barriga  na  casa  dos  sete  meses.  Seu  dedo  assim  pejado  só podia trazer desfavorecimento ao embaraço do parente. E foi o que sucedeu. Nem era morto o dia e já o primo via chegar a primeira remessa de maldade — a perna pegou peso de chumbo, um frio de maleita deu de vadiar pela espinha dele e como arremate sofreu vexame de barriga de não ter sossego:    — Desde semana que ando nessa quebrura.    Sem  pedir  licença,  retirei  os  panos  da  parte  encalacrada  de  modo  a  aquilatar  de  perto  se Juca fazia exageração do incômodo. Olhei e não gostei. Manga arregaçada, mandei que um par de molecotes  fosse no mato  catar  erva-de-bugre,  de boa  aceitação  em  casos tais. Na  cozinha, ordenei preparo de paçoca de  farinha  em  azeite quente, para um  alentado  sinapismo  capaz de resolver a maldade, chupar a peçonha e preparar o carnegão. Dois dias e duas noites passei na cabeceira  do  doente.  Vi  a  febre  crescer,  virar  fornalha.  Lá  a  horas  tantas  Juca  Azeredo desandou a dizer bobagens, valentia que nunca fez nem ia fazer. Até que uma tarde, vendo que o  inchamento requeria mão  de homem,  espremi  a postema,  estando Juca Azeredo na madorna da  febre.  Soltou  o  primo  berro  que  varou  a  cumeeira  de  telhavã  e  foi  bater  nos  metais  do alambique.  Correu  gente  espantada  —  um  cacho  de  olhos  e  cabeças  apareceu  na  porta  do quarto  para  ver  que  remédio  eu  tinha  ministrado  no  doente.  Mas  desde  essa  hora,  limpo  do carnegão, o primo começou a pegar formato de gente. Já de noite havia perdido os encovados dos olhos e o barro da cara. Caiu aguaceiro de madrugada. De manhã, quando entrei no quarto do padecente, Juca estava viçoso como planta nova, como  se a chuva tivesse regado  sua raiz. Gabou minha munheca:    — A mão do primo é mais valente que torquês.    Fui  ver  o  engenho  na  moagem  das  derradeiras  canas,  tarefa  que  não  havia  feito  por  ter ficado  preso  na  mazela  do  parente.  Na  bagaceira,  dei  com  Tude  Gomes,  o  mestre  de alambique  de  Paus  Amarelos,  meu  conhecido  de uma  ou  duas  visitas  ao  Sobradinho.  Era um brancarrão  sarará, macio  de trato. Acabava  de  chegar  de viagem  distanciada, tanto  que trazia ainda  as  poeiras  da  trafegação.  Veio  render  sua  vassalagem  assim  que  viu  este  coronel aligeirar  os  passos  na  direção  da  casa  do  alambique.  Quedou  respeitoso,  chapéu  no  peito, perguntando  pelo  meu  passadio,  que  do  patrão  ele  andava  a  par.  A  meio  dia  de  Paus Amarelos,  numa  venda  de  estrada  onde  parou  para  alegrar  a  garganta,  foi  sabedor  do  bom serviço de doutor que eu pratiquei no dedão do padecente. E brincativo:    — Corre até que o carnegão pulou como rolha de jinjibirra em viagem de quatro braças.    Ia rebater o exagero, mas o brancarrão pediu licença:    — Se o coronel não faz embargo, vou assuntar as melhorias do patrão.    Varejei  o  engenho,  um  brinco  de  fábrica,  cada  peça  mais  polida  do  que  outra.  Os  cobres cegavam  de  tão  asseados.  Salvei  uns  e  outros  tarefeiros  das  turbinas  e  afundei  a  vistoria  ao depósito  dos  vasilhames.  Foi  quando  vi,  numa  casa  de  varandinha  e  trepadeira,  aquele apanhado de moça em  serviço de retirar malas e baús. Era a mulher de Tude Gomes, chegada com  ele  em  carro  de  boi.  Andava  em  barriga  de  sete  meses,  com  os panos  do  vestido  muito esticados  em  risco  de  rebentar  as  costuras.  Mas  o  cabelo,  em  forma  de  trança,  ameninava  o seu porte  de moça  competente,  de  largos  tirocínios.  Esvaziada  de  criança  devia  ser  coisa  de 
grande contentamento, de muitos e variados préstimos embaixo de um cobertor. Em linda mão foi o sem-vergonha do primo Azeredo meter o seu bicho-de-pé…        Voltei  às rotinas  do  sobradinho.  E  lá um  domingo,  estando na  limpeza  das  armas, no paiol do sótão, ouvi uma algazarra de cachorros na sombra das casuarinas. Era Juquinha Quintanilha que chegava sem ser pedido ou chamado. Entregou a rédea a Janj ão Caramujo e nem parou na cozinha  onde  Francisquinha  apreciava  receber  cortesia  e  prendas  dos  viajantes.  De  dois  em dois degraus, ganhou o paiol e na porta requereu licença:    — Careço de falar com o coronel.    Não retirei o interesse do cão emperrado de uma garrucha que eu azeitava. Quintanilha, em presença das armas, disse que em boa hora tinha chegado:    — A incumbência que trago pede ajutório de trabuco.    Não fiz caso, por saber que o mulato vinha em missão da onça, que eu dava como da alçada do major Badejo dos  Santos e do qual parecer não arredava um palmo. Em verdade, Juquinha sabia trabalhar um pé de conversa e não perdia o ânimo diante de qualquer negaça. No macio, como era do  seu proceder, pediu notícias do primo Juca Azeredo e riu do carnegão que pulou de perereca na força do meu dedo:    — O coronel tem sabedoria de doutor formado.    Não  acompanhei  o  deboche  de  Juquinha,  uma  vez  que  não  via  graça  em  zombar  dos padecimentos  de  ninguém.  Diante  do  meu  desagrado,  o  mulato  mudou  de  toada,  cantou  outra cantiga. Relatou uma louvação que foi feita ao coronel do  Sobradinho numa festa de batizado, na precisa ocasião em que um marchante de boi, de nome José Feij ó, deu garantia de que eu só não sangrava a onça por estar preso a compromisso de moça ou a jura de santo:    — É militar de respeito, homem de instrução.    E na poeira  do  louvor  de José Feij ó  o mulato  contou  que um  certo  capitão Zuza Barbirato, portador  de  cem  mortes  de  onça,  dava  pronto  desaparecimento  à  maldosa  por  duzentos  mil- réis  pagos  em  cima  do  couro  da  pintada.  Pedia  Juquinha  licença  para  apalavrar  o  capitão, homem de muita fama e sem tempo de perder, que só trabalhava em caça de porte:    — Coisa pouca ele rejeita.    Não  disse  que  sim, não  disse  que não. Deixei  a  deliberação  em  suspenso, pois  o  caso não era  de  sangria  desatada.  Desenferrujado  o  cão  da  garrucha,  desci para  a  sala  de jantar,  onde Juquinha continuou no caso da onça:    — O capitão faz serviço limpo e bem arrematado.    Torci  a  barba,  acendi  charuto,  fui  ponderar  na janela.  Desde  que  eu,  pela  lei  militar,  não podia,  sem  desdouro  para  a  patente  de  Badej o  dos  Santos,  de  mão  própria  dar  arremate  de sangue  aos  despautérios  da  onça,  era  de  boa  ponderação  meter  na  guerra  espingarda  de contrato.  Com  essa  manobra  limpava  o  pasto  e  não  ofendia  o  vizinho.  Prometi  a  Juquinha deliberar para mais dentro da tarde:    — Vou pensar, vou pensar.    O jantar, comido na companhia de Quintanilha, não teve conversa de onça. A gente falou de tudo,  de  uma  ninhada  de jararaca  que  infestava  os  pastos  de  Mata-Cavalo  e  dos  entraves  do padre  Malaquias,  jogado  na  cama  com  uma  ferrugem  nas  juntas.  Na  hora  do  palito  é  que Juquinha,  voz  apagada  de  modo  a  não  vazar  além  da  mesa,  relembrou  que  eu,  no  caso  da pintada, não precisava de  ficar  cativo de jura nenhuma, desde que não  foi praticada  em nome 
de Nosso Senhor Jesus Cristo ou outro santo de igual poder :    — É o que todo mundo diz. Padece de valimento.    Respondi  de  imediato,  para  debelar  dúvidas  e  mal-entendidos,  que  no  concernente  a compromisso  de  santo  sempre  fui  católico  de  marca  maior.  E  severão  como  se  estivesse  em recinto de igreja:    — Promessa é promessa, coisa de ser respeitada.    Charuto  na  boca,  mãos  no  detrás  das  costas,  medi  a  sala  em  passo  militar.  E  nesse  medir botei Juquinha a par da minha condição de homem de Irmandade, com lugar certo nos paus dos andores. Não ia perder tamanha regalia por causa de uma bobagem de pele e dente:    — Pois digo, seu Juquinha, que não tem onça que pague estar de mal com a religião e o seu povo de batina.    O mulato ainda quis obtemperar. Obtemperei mais  forte do que  ele, dando uma palmada na mesa:    — Conheço o meu lugar. Na demanda da onça não tomo parte.    Em vista de tão justas ponderações, o feitor de Mata-Cavalo deu ganho de causa a mim, até louvou minha devoção:    — Coisa de altar tem de ser respeitada.    Abri os braços:    — Vosmecê tem tino, vosmecê falou bem.    E  já  que  tudo  estava  clareado,  não  havia  como  denegar  autorização  a  Juquinha  para contratar o tal capitão das cem mortes, dentro do estipulado de duzentos mil-réis:    — Com um porém, seu compadre. Só pago na pele da onça.    Quintanilha,  dente  de  ouro  do  lado  de  fora,  mostrou  contentamento.  Logo  afiancei  que  o melhor  tempo  de  dar  andamento  ao  caso  da  pintada  era  em  noite  de  lua  cheia,  quando  as carnicentas  estão  de  cio  aberto.  Fiz  recomendação,  desci  aos  pormenores,  às  manhas  e malícias das onças:    —  Seu  Quintanilha,  cuidado  com  o  vento.  Em  guerra  de  onça  o  vento  vale  tanto  como calibre da espingarda mais valente.    O   mulatão,   diante   de   tamanho   perigo   (“Cuidado   com   isso,   cuidado   com   aquilo”), encalistrou,  deu  de  encorujar.  E  eu  tome  onça.  A  certa  altura,  de  pintada  embaixo  do  braço, apresentei lição de deixar Juquinha  fora de tino. Mas de tudo isso,  soubesse  ele,  eu guardava um pesar :    — Não  entrar na briga,  seu  compadre.  Se  entro na  encrenca,  a  onça  era bicho para um tiro só.    Juquinha concordou e no pé da concordância requereu licença — tinha que dar um dedo de prosa  a Antão Pereira  a respeito de uma barrigada de  codorneiros, bicho de levantar  caça no breu da noite e no mais cerrado gravatá. Do fundo da sala fiz troça:    — Deixe de lado os cachorros e cuide da onça, homem de Deus.    Juquinha riu  amarelinho, descontentado.  Quando passou no  alcance do meu braço,  catuquei o ombro dele:    — Veja  que  despropósito!  Com uma peça  dessa brabeza na boca  de  espera  e  eu  amarrado talqualmente um aleijado.    Sosseguei  na  espreguiçadeira,  bem  comido  e  charutado,  barba  repousada  no  peito.  Uns pândegos  de uns  sanhaçus  farreavam nas  casuarinas  e um  chiado  de  carro  de boi  chegava  de lonjal  muito  entranhado.  Isso  amolengou  minha  vontade  e  caí  em  sonolência,  em  moleza  de barriga  bem jantada.  Desse  torpor  acordei  com  alguém  asseverando  que  o  tempo  estava  de rabo virado:    — Vem corisco do grosso. Já está chovendo nos Currais de Fora.    De  fato,  um  ventinho  candeeiro  de  água,  em  modos  de  sul,  varria  o  casarão,  o  que desentocou  da  cozinha  uma  penca  de  negrinhas  logo  derramada  em  pernas  e  braços  no trancamento  de  portas  e janelas.  No  calcanhar  da  criadagem  apareceu  um  cachorro  de  rabo encolhido,  adivinhador  de  temporal.  Ficou  murcho,  tristento  no  debaixo  do  sofá.  Só  mesmo ameaça  de  corisco  fazia  um  sem-vergonha  assim  sem  préstimos  enfrentar  a  presença  de Ponciano  de Azeredo  Furtado.  Em  dia  de rotina nenhum mastim, por mais  de raça  que  fosse, recebia autorização para ficar a menos de dez braças de onde eu estivesse. Ia mandar correr o cachorro  quando,  dos  fundos,  ouvi  a  zoada  daquele  comício  de rezadeiras.  Era  o povinho  de Francisquinha  reunido  em  louvor  de  santa  Bárbara,  que  é  padroeira  de  segurança  contra desmando de corisco. No embalo dessa devoção fechei olho e foi de charuto apagado no canto da  boca  que  entrei  em  nova  madorna.  Saí  dessa  dormência  sei  lá  que  horas.  A  noite  era fechada e a tormenta crescida. Juquinha, de novo na sala e sentado em distância respeitosa de mim,  esperava  que  eu  acabasse  o  descanso.  Espichei  o  pernão,  acendi  o  toco  de  charuto  e voltei ao caso da onça:    — E a pintada, seu compadre?    Achegando  a  cadeira  para junto  de  mim,  Juquinha  embonecou  a  brabeza  do  capitão  Zuza Barbirato. Tiro como o dele não existia em pasto de cem léguas, mesmo em terra mais farta de gato  brabo.  A  coronha  do  matador  levava  para  além  de  cem  riscos,  que  era  como  o  capitão contava os bichos vazados. O homem era de rompante, falava grosso nos modos de Dioguinho do Poço. As  artes  da  caça  ele tinha  aprendido  dos bugres, pelo  que  fazia  gosto ver  o  capitão Barbirato em faina de mato:    — O coronel vai apreciar o serviço dele.    Disse a Juquinha que encurtasse tanta vantagem:    — Quero ver esse capitão numa pendência de lobisomem.    O mulato, medroso de perder a cor, resmungou que em noite de corisco nem era de religião cuidar de visagem. Mal acabou Juquinha de ministrar esse conselho, do fundo da varanda uma coruja cortou mortalha. Ou vinha corrida do vento ou então, desmedrosa do temporal, rondava o  quarto  dos  santos,  atraída  pelo  azeite  das  devoções.  Embarquei  no  pio  da  agourenta  de maneira a espicaçar o medo do mulato. Falei queixoso:    — Não há mais respeito, não há mais nada.  Qualquer noite  a  gente tem  coruja  de talher na unha comendo na mesa de Simeão.    Juquinha apresentou logo suas providências:    — Não tenha cuidado, patrão. Vou contratar rezador.    Por molecagem, no que sou mestre, desfiz do tal espantador de coruja. Quintanilha pulou na defesa dele, que  o homem  era isso  e  aquilo, que possuía reza mortal  e um defumador de  erva do mato capaz de matar até um boi quanto mais asa de caburé:    — É simpatia de muito benefício, do maior valimento.    Garanti que isso não existia:    — Potocada, potocada. Lido com essa maldição a noite inteira.    E puxando fumaça, asseverei que reza de rezador sozinha não bastava. Porrete para peste de 
mocho,  soubesse  Juquinha  Quintanilha  de  uma  vez  por  todas,  era  dizer,  em  três  sextas-feiras seguidas, desde que havendo estrelas, o santo nome de Onofre:    — Não fica uma. Seca tudo no galho. Ninho, asa, bico, o diabo!    Já que andava com a mão na massa, e a hora era tardia, continuei na pantomima de escovar o medo de Quintanilha, ajudado pela noite trevosa. Lá fora o vento zunia e o trovão alumiava as vidraças da sala. Por sorte, por reforço de minha maquinação, da parte dos fundos, vez por outra  chegava  um  barulho  de  corrente  arrastada.  Mandei,  fingindo  espanto,  que  o  mulato apurasse o ouvido:    — Esquisito, hein, seu compadre? Parece corrente de negro cativo.    Quintanilha  disse  um  nome  de  santo  e  avivou,  com  a  sua  mão  boiadeira,  a  lingueta  do lampião  de  cobre.  O  arrastado  de  ferragem  no  assoalho  vinha  vindo  dos  compartimentos traseiros  do  Sobradinho.  Mal-assombrado  não  era,  que  esse povo  da  noite  nunca  aparece  na popa da tormenta.  Seguro de tal verdade, contada e recontada em dias de  sua vida pela prima Sinhá  Azeredo,  dei  mais  um  passo  na  judiação  de  Juquinha  Quintanilha.  Com  parte  de averiguar se as janelas aguentavam o roj ão do vento, desencovei um livro de são Cipriano que vivia  amedrontado  no  fundo  do  gavetão  dos  meus  charutos.  Cuidou  o  mulato  que  fosse  coisa de reza, milagre de domar os coriscos, devoção de  santa Bárbara ou outro  santo de temporal. Ri no íntimo e abri o livro em parte que eu conhecia: o caso de uma certa penitência levada da breca  que  em  tempo  dos  antigos  pintou  e  bordou  num  sobrado  de  sujeito  barão.  Coisa acontecida num longe antigamente, que nem o lobisomem era de existir mais de corpo inteiro. Nessa parte, Juquinha relembrou que não era hora de gente viva mexer em maldade da noite:    — Patrão, patrão! Não catuque essas penitências das trevas.    Passei de largo, de vela solta, pelos receios de Juquinha Quintanilha. Puxei o lobisomem do livro  de  são  Cipriano para  dentro  dos  ouvidos  dele. Uma  assombração  danada  de um  cristão lidar  com  ela.  Uivava  de  cortar  o  coração  mais  de  pedra.  Digo  que  fiz  chicana  de  doutor velho,  pois  não  segui  tim-tim  por  tim-tim  o  que  a  letra  de  forma  estipulava.  Pulei,  misturei, inventei  em  favor  do  lobisomem  maldade  de  arrepiar.  Juquinha  amarelou  e  no  fundo  da cadeira mais parecia um rato assustado. E eu no serviço do mal-assombrado. Quando, lá para as  tantas,  fiz  a  apresentação  do  amaldiçoado  em  tamanho  natural,  olho  em  brasa  e  dente cerrado,  o  parceiro  Juquinha  não  aguentou.  Pregou  na  testa  o  sinal  da  cruz  e  mergulhou  o corpanzil  no  corredor,  em  risco  de  encontrar  o  arrastador  de  corrente.  De  castiçal  na  mão ainda parou para dar conselho:    — Coronel, deixe de lado o povo da noite.    Esqueci de relatar que antes do acontecido do lobisomem eu já tinha azucrinado Quintanilha com a presença que meu avô, um par de meses antes, deu em noite de água e corisco. Apontei o lado de fora e garanti:    — Como esta, seu compadre. Como esta, sem tirar nem botar.    Quintanilha  estremeceu  na  raiz.  Desci  às  minudências.  Meu  avô,  graúdo  e  barbadão, apareceu  sentado  na  cadeirona  de  couro  (“Nessa  mesma  em  que  vosmecê,  seu  Quintanilha, está  abarcado”),  tendo  na  boca  o  seu  cigarrinho  de  palha.  Não  satisfeito,  só  depois  de embrulhar  Simeão nas mortalhas mais pesadas dos defuntos é que passei ao tal lobisomem do livro  de  são  Cipriano.  Por  isso  mesmo,  quando  Juquinha,  na boca  do  corredor,  aconselhou  a que eu não catucasse as maldições da noite, agradeci montado em deboche:    — Muito que bem, seu Quintanilha. Mas cuidado com o vento encanado. 
   Lá fora a noite engrossava em trovão e água. Ri feliz da pantomima que armei em derredor do bom  mulato  de  Mata-Cavalo.  E  como  a  hora  fosse  avançada,  apanhei  o  lampião para  ver em que nação andava meu chinelo. Estando eu nessa tarefa, meio embodocado no chão, escutei aquela remessa de lamentos muito de meu avô quando o sul apertava as dobradiças dele:    — Ai ! Ai ! Ai !    Pulei  de  lado,  que  ligeiro  sempre  fui  e  ainda  sou  neste  dobrar  da  vida,  em  pulo  tão avantajado  que  levei  na  frente  o  tal  cachorro  corrido  do  temporal.  Excomunguei  o bicho por embaraçar  meu  avanço,  mas  na porta  do  corredor  fiz pé  firme. Não  ia  ser  gemido  avulso  de fundo  de  casa  que  podia  mandar  o  neto  de  Simeão  aos  cobertores,  como  qualquer  Juquinha Quintanilha. Acalmado, inquiri:    —  Quem  tem  o  desplante  de brincar  a  estas  horas?  Se  é  gente  viva  que  apareça, pois  não faço reprimenda.  Se  é  coisa morta,  falecida  de  cemitério,  que vá  fazer penitência no  oratório do Sobradinho.    Resposta não tive. O tal cachorro excomungado, a um canto, todo embrulhado em modelo de farrapo,  olhava  o  seu  pavor  em  direitura  da  cadeira  de  Simeão.  Olhava  e  gemia  um  gemido comprido de  ser medido a metro. Foi quando vi, refestelado em  seu assento como em dias de sua vida, o avô  Simeão de Azeredo Furtado. Não trago medo, e o povo dos pastos, por léguas e léguas,  sabe do meu proceder. Mas digo que  senti uma pontada no espinhaço como em noite que  fui picado  de jararaca  estando  em vadiagem  de menino.  Diante  de  Simeão na  cadeira  de preguiça,  voltei  a  ser  possuído  do  mesmo  incômodo.  Nem  escutava  mais  os  desmandos  do vento,  nem  via  as  lacraias  de  fogo  do  trovão.  Fiquei  sem  poder  tirar  o  olho  do  meu  avô presente em forma de renda, todo velhinho, como em dias do cativeiro de sua doença. De uma feita,  certo  marcador  de  gado  pegou  Simeão, já  bem  morto  e  sacramentado,  em  trabalho  de pasto, às voltas com uns novilhos desgarrados. O campeiro ainda teve língua de dizer em voz assombrada:    — Se mal pergunto, que faz vosmecê por estas bandas da noite, meu patrão e padrinho?    Talqualmente fez comigo, resposta não deu Simeão ao boiadeiro. Sumiu, em viagem maluca, no seu cavalo branco de luar. Joelho em terra, pois era muito devocioneiro, o marcador de rês procedeu ao sinal da cruz e em reza forte caiu. No meio da oração de são Lifôncio, sempre de bom  rendimento  em  casos  de  assombrado,  ouviu  ele,  vindo  das  lonjuras  dos  ermos,  aquela penitência que parecia lamento de lobisomem:    — Ui ! Ui ! Ui !    Todos  esses passados remexia  eu na  cabeça  sem  tirar  as  vistas  do  filó  que representava  o avô  Azeredo.  Engraçado!  Se  fosse  o  capeta  ou  mesmo  uma  serpente  do  mar,  eu  era  muito Ponciano de bem esfarinhar a pantomima entre um trovão e outro. Mas assim, meu avô na  sua cadeira  de  couro,  eu  voltava  a  ser  o  menino  que  caía  em  tremedeira  ao  escutar  as  botas  de Simeão  na  soleira  da  porta.  Que  requeria  ele  de  mim?  Ladainhas,  dúzias  delas  mandava  eu rezar todo ano pelo bem-estar  e bom passadio das almas avulsas  e não avulsas dos Azeredos Furtados,  abarcando  mesmo  os  mais  distanciados,  os  falecidos  em  tempo  das  sesmarias  dos bugres.  Só  dava  conta  de  não  estar  em  pesadelo  pelo  motivo  de  sentir,  embaixo  do  sofá,  o choro  agoniado  do  cachorro  e  o  assobio  do  vento.  Tentei  chamar  Quintanilha —  a  voz  deste coronel respeitou  a presença  do velho, pelo  que  saiu  fraca,  quase voz  de  Sinhozinho  Manco. Ficava provado, para  todos  os  devidos  fins,  que  eu  só  sabia manobrar  assombração  de  fora. Diante  de uma visagem  de  família,  ficava  de pé  amarrado,  sem  força  de  dizer meia  dúzia  de 
desaforos  dos  que  bem  sei  dizer.  Não  tenho  feitio  de  contrariar  meu  íntimo  e  dentro  desse propósito tratei de bater em retirada. Pois digo que foi estender a mão em busca do candeeiro e  tudo  de  pronto  clarear  na  força  de  mil  lampiões  de  manga  larga.  Assustado,  recuei,  como coruja na luz do dia. Passado o espanto, de novo encarei o avô  Simeão e nesse encarar vi que ele estava de botina e espora. Então, sem mais delongas, abri em risadaria, despido de receios e considerações de parente. Chamei Quintanilha:    — Seu compadre, seu compadre!    Juquinha, escondido em cobertor, não atendeu a apelação. Queria que o medroso visse, com os  olhos  de  morrer,  a  invencionice  do  Sobradinho.  Que  mal-assombrado,  que  nada!  Matei  a charada num repente, por saber da leitura dos livros e das conversas da prima Sinhá Azeredo, que  visagem  anda  sem  pé  e  voa  sem  asa.  Nunca  que  Simeão  ia  aparecer  de  perna  inteira, quanto  mais  em  desplante  de  bota  e  espora!  Tudo  não  passava  de  bobagem,  enganamento, mentira da noite trevosa. E com essa certeza dormi em sossego.        Na  segurança  de  sete  chaves  guardei  o  oferecimento  de  Zuza  Barbirato.  Nisso,  enquanto Juquinha  Quintanilha  apalavrava  o  capitão,  aceitei  convite  de  Antão  Pereira  para  levantar capivara  de banhado, na  certeza  de  que  era peça taluda,  que  comportava  o  gasto  da munição. Ainda avisei:    — Veja lá, seu Antão! Não sou de tiro miúdo.    Saí  no  rastro  da  capivara.  Atrás,  de  trabucada  no  ombro,  bem  montada  e  em  distância regulamentar,  vinha  a  força  do  Sobradinho  na  pessoa  de  Antão  Pereira,  Saturnino  Barba  de Gato  e  João  Ramalho.  No  caminho,  a  menos  de  meia  hora  de  rédea  folgada,  a  garrucha  do curador de cobra Tutu Militão veio reforçar a armada dos Azeredos. Pediu licença, e jeitoso, correndo os dedos brilhosos de anel pelo ralinho da barba, perguntou se toda aquela grandeza de armas era para levantar capivara ou bicho de maior porte:    — Pelos vistos, a coisa é alentada.    Em voz de velório, como se estivesse em casa de defunto, matei a inquirição:    — Acertou vosmecê. A caça é outra, de mais sustância…    Senti  nas  costas,  como  pontada  de  vento,  os  medos  encanados  dos  boiadeiros,  que  logo pensaram  na  onça-pintada.  Destorci  a  conversa,  pedi  notícia  das  minhocas  de  Tutu  Militão. Quis saber como corria o comércio de limpar picada de surucucu:    — Consta que vosmecê está arrumado, com bons dinheiros no baú.    Rebateu o curador que em mais de mês não teve um caso de veneno:    — Se mal respondo, coronel, cobra não dá mais nada.    Militão, pardavasco  de  muito  anel  no  dedo,  vivia  de  sanar picada  de jararaca  e  caninana, do  que  era  bem  sortida  a  pastaria.  O povo  botava  de  quarentena  o  ofício  dele  e  a  criançada corria  de  urina  na  ponta  do  birro  ao  sentir  o  cheiro  da  mulinha  do  curador.  Ninguém acreditava que um  cristão batizado, não tendo parte  com  o Demônio, pudesse manobrar dente de cobra como Tutu fazia. Era fama vinda de longe, dos anos de Simeão, quando o pardavasco apanhou  surra  de  dois  dias  e  duas noites  em mão  de um meganha  das  forças  de  São  Gonçalo. Mal  saído do pau da palmatória, armou vingança. Noite alta, em cemitério baldio, viram Tutu alisar  a  cabeça  de jaca  de  uma  surucucu.  Não  só  alisou  como  falou  na  orelha  dela  coisas  e segredos próprios das serpentes. Com a ponta do dedo avivou o saco de peçonha da cobra que logo ficou tomada de raiva possessa. O assobio dela parecia o sopro da morte. E meia semana 
andada,  prazo  suficiente  para  a  viagem  da  surucucu,  o  meganha  da  surra  amanheceu  morto, duro  de  pedra,  roxo  de  defunto.  A  cobra  nem  respeitou  o  seu  dormir  e  por  um  buraco  da coberta  picou  o jurado  em  veia  mortal.  Logo  a  pastaria,  numa  só  garganta, jogou  a  morte  na conta do curador :    — Foi ele e outro alguém nenhum, que desses poderes do mato só Tutu tem a segredagem.    Nunca  dei  importância  a tais boatismos. Apreciava  a  educação  do  curador,  que  era mulato do  melhor  respeito  e  tratamento.  Não  pisava  terra  do  Sobradinho  sem  requerer  licença  de trafegação, no que copiava o velho Pires de Melo, meu vizinho de invernada. Das casuarinas, sem  sair  da  sela,  mandava  moleque  saber  se  podia  entrar,  se  o  coronel  dava  consentimento. Do alto da varanda muita vez fui de boca própria desembaraçar o curador :    — Tutu é de casa, não tem que pedir licença.    Era  sujeito de proceder mimoso, que  só  amamentava uma  soberba:  a de usar  anel no dedo, dois  ou  três  em  cada  mão.  Por  isso,  por  reconhecer  essas  bondades  de  Tutu,  é  que  vi  com alegria  a  chegada  dele  para  engrossar  a  comitiva  da  capivara.  Ordenei  que  ficasse  ao  meu lado:    — Da banda esquerda, seu compadre, para não embaraçar o retiro da carabina.    Foi  viagem  divertida  —  eu  falava  de  onça  e  Militão  de  cobra.  E  assim,  de  conversa  em conversa, veio o banhado da caça, um tremedal das maiores desavenças — mais de cem raças de cipó em guerra de exterminação contra tudo que fosse verdal, de não restar coisa de folha e raiz que não recebesse o abraço de tamanduá das embiras. Uma briga de pé de pau levada da breca, um emaranhado que nem o capeta, tão servido em manhas e gatimanhas, era capacitado de sair dele. Digo mais, o abusamento dos cipós era tão avantajado de fazer gato-sapato até de espinho roxo, que é rocinha de emparelhar, em danifícios e malquerenças, com o pior dente de jararacuçu. Pois muito admirei que num oco dessa bruteza, com o bafo do pântano boiando de algodão  em  rama  na  cumeeira  do  folhame,  crescesse  pé  de  capivara,  que  sempre  requereu mato  vivo,  de  boas  águas  e  melhores  sombras.  Sabedor  desses  prediletismos  e  regalias  da caça, larguei no vento minhas dúvidas e embargos:    — Seu Pereira, isso mais dá parecência com um ninho de mafagafe, seu Pereira!    Antão,  sem  coisa  a  responder,  soltou  o  faro  dos  seus  cachorros  pelos  escondidos,  de  não ficar caruru mais corriqueiro sem ser fuçado. E nada de capivara. Recriminei o boiadeiro:    —  Seu  Pereira,  seu  Pereira!  Como  é  que  tem  a  ousadia  de  tirar  da  cama  um  coronel  de patente para um rebate falso de capivara?    Acharam  graça  desse meu  dizer  desempenado,  do  que não tirei proveito para não rebaixar Antão  Pereira,  sujeito  sisudo,  de nunca mostrar  dente  de riso  a ninguém.  Logo  achei maneira de despejar a culpa no costado de Militão:    — Foi Tutu, compadre Pereira, o avisador da capivara.    O  pardavasco  não  refugou  a  brincadeira.  Que  eu  desculpasse  a  sua  pessoa,  mas  devia obrigação  de  amizade  à  capivara  de  Antão  Pereira,  pelo  qual  motivo,  hora  antes,  tinha mandado uma surucucu, com bilhete na boca, alertar a caça:    — A capivarinha acatou o conselho, que aquele bichinho tem astúcia de gente grande.    Matei  a  brincadeira  do  curador  com  brincadeira  mais  avantajada.  Fiz  caçoísmo  das jararacas  e mais  da  cabra  que um tal  Cazuza  do Rego,  compadre  de  Tutu,  criava  em honraria de  comadre,  porque  em  dias  atrasados  de  sua  vida  amamentou  um  menino  dele,  morto  já grandinho  em  vadiagem  de  cacimba.  Em  todo  lugar  que  Cazuza  aparecia  levava  a  cabra  em 
mulinha especial, fosse em batizado, fosse em casamento. E adiantei:    — Até em repartição do governo ele foi munido da cabra.    A  campeirada  ria  das  bobagens  de  Cazuza  do  Rego  e  mais  de  um  quase  engasgou  quando relatei que o cismático, numa  festa de cavalhada em  Santo Amaro, apareceu de cabra toda no cetim e lenço de moça no pescoço. Lá para as tantas, a bicha perdeu a compostura e desandou no pé. Atrás dela, embaralhado nas botinas e pernas do povo, Cazuza pedia:    — Comadre, tenha modo! Não seja birrenta, comadre!    Acabado o caso da cabra, apresentei, de repente, a questão da onça:    — Vosmecês todos, gentes de comprovada valentia, estão contratados para pegar a pintada.    Um danoso de um lobisomem,  se passasse no carrascal, não  fazia tanto  estrago na coragem dos meus agregados. Encarei de frente o medo da comitiva — era de escorrer do rosto igual a leite de mamão. Segurando esses receios pela gola, fingi aborrecimento:    — Isto é uma comitiva de caça ou acompanhamento de defunto?    Corri  as  vistas  de  um  lado  a  outro  como  se  buscasse  o  falecido  e  seu  caixão.  Quem  era? Que  nome  levava?  Ainda  dentro  do  fingimento,  judiei  dos  parceiros,  cheirei  o  vento  em costume de bugre para dizer, baixinho, meio encurvado na sela:    —  Estou  sentindo  bafo  de  caça  maior,  aí  pela  ordem  de  uma  onça  bem  mamada  e  melhor criada.    Outra vez aquele frio de lobisomem varreu o espinhaço da campeirada, de fazer sossego de cemitério. Uma raiz que brotasse, vinha à tona o seu barulho. Mão em forma de concha na asa da  orelha,  afiancei  que  em  derredor  de  meia  légua  pisava  bicho  de  porte.  E  desandei  a ministrar  manhas  de  guerra.  Se  a  pintada  atacasse  de  frente,  o  proceder  da  tropa  devia  ser assim e assado:    —  De  um  perigo  aviso.  Nunca  ficar  de  a  favor  do  vento,  que  é  o  mesmo  que  assinar sentença de morte.    Cada vez mais crescia o medo da campeirada e eu de aguilhão nas partes fracas de um e de outro:    — Digo,  seu Antão Pereira,  que  onça não  é para  qualquer um. Não  é  gato-do-mato  ou tatu que a gente futuca com vara curta.    Mas  de  supetão,  como  é  do  meu  feitio,  dei  fim  ao  deboche,  asseverando  que  tudo  não passava   de  pantomima.   O   que   eles   iam   matar  bem   morto   estava  na  panela   de   dona Francisquinha:    — É um cabrito especial.    Foi  mesmo  que  alforriar  negro  cativo.  A  alegria  entrou  de  vela  solta  no  peito  dos compadres.  Tutu,  livre  do  embaraço  da  onça,  logo  pediu  licença  —  rejeitava  o  convite  do cabrito por  estar  amarrado  em  corda de promessa, desconsentido de  comer  em tempo de uma quinzena:    —  Falando  com  pouca  instrução,  estou  ainda  dentro  de  lua  de  resguardo.  Não  posso quebrar a devoção.    Concordei:    — Faz muito bem. Muito aprecio o seu proceder. Promessa é promessa.    Sem  outra  tardança,  Tutu  Militão  tomou  a  estrada  de  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos,  onde  ia rezar quebranto de uma criação do dr. Caetano de Melo:    — Vou defumar um galinho de briga da maior estimação do doutor. 
   Sumido  o  curador  Tutu  Militão,  montei  nova  brincadeira,  uma  vez  que  sei  comandar  com mão  de  ferro  e  punho  doce,  conforme  a  obrigação  da  hora.  Sem  faltar  ao  devido  respeito,  a campeirada desencabulou as falas que o receio da onça havia encolhido. João Ramalho contou um  par  de  vantagens  e  Saturnino  Barba  de  Gato  uma  rixa  que  teve  com  um  casal  de jararacuçus  em  mato  brenhoso.  Matou  a  cobra  macho,  restou  a  cobra  fêmea,  que  andou  no calcanhar  dele  por  um  mês  afora.  Até  que  na  redondeza  de  um  lacrimal,  num  entardecer,  a cobra  armou bote traiçoeiro, mas tão  desinfeliz  que  seu  dente vingancista  só  encontrou  o  aço da espora e veia mortal nenhuma:    — Foi a valência, foi a salvação, coronel.    Sabia  que  tudo  não  passava  de  garganta,  saliva  de  curral.  Noite  adentro,  o  mais  rotineiro grito  de  bacurau  deixava  meu  povo  de  agasalho  na  orelha.  Para  debelar  essas  inventorias, cassei a palavra deles asseverando que era tempo de arrepiar carreira:    — Nada de parolagem. Tenho trabalho de queixa a levantar na mesa do Sobradinho.    A armada, de coronel na popa, largou carrascal afora, casco em rixa contra gravatá e pico- de-macaco.  Bem  uma  légua  derrotada,  deliberei,  por  desempenagem  de  mira,  passar  na munição  um  intrometido  bem-te-vi  que  desfazia  da  comitiva  num  palanque  de  aroeira.  Nem pena  do  pobre  ninguém  viu.  E  no  cheiro  da  pólvora,  enquanto  acamava  a  carabina,  deitei lambança:    — É o que digo. Não barganho esta minha pontaria por muita mira de menino novo.    Pois  foi Ponciano  arrotar vantagem  e  aparecer, na boca  de um taquaral,  aquele pedação  de onça  que  em  medida  de  olho  nu  ganhava  de  um  garrote  em  tamanho  e  peso.  João  Ramalho, braços no alto, gritou pelo santo nome de Nossa Senhora do Parto e sumiu na macega. Quando dei balancete na situação, vi que estava desprevenido de gente, sem atinar como um sujeito de porte, talqualmente  Saturnino Barba de Gato, achou abrigo  em mato tão ralinho, quase de não esconder  nem  preá.  Nunca  fui  desajuizado  de  enfrentar,  em  campo  aberto,  sem  maiores instruções  e  preparo  de  armas,  tanto  peso  de  onça.  Sem  outra  espingarda  que  não  a  minha, desguarnecido  de  costas, piquei  a navegação, um  cavalinho  de  lombo  educado  e boca macia. O bichinho, atingido na curva da virilha, relinchou, ficou nas patas do coice, deu meia-volta e levou  Ponciano  a  sítio  seguro  —  um  pantaneiro  de  água  choca,  onde  ninguém  nem  perto passava por ser covil de vermina e miasma. Se não sou expedito de sela, e não sei domar uma rédea,  o  tremedal  dava  cabo  dos  meus  dias,  pois  lama  sugadora  nunca  conheci  outra  de tamanha  ganância.  Cheguei  no  Sobradinho  mais  água  podre  do  que  gente,  numa  dianteira  de hora  sobre  os  assustados  da  onça.  Feita  a mudança  de roupa  e  lavagem  da barba,  a primeira deliberação que tomei foi sustar o cabrito:    — Sem-vergonha não come na minha mesa.    Em língua de urtiga recebi os medrosos. Vieram de rabo encolhido, vela murcha, sem vento e  sem  fala.  Larguei  de  lado  os  veludos  dos  frades,  as  boas  educações  do  Foro  e  foi  um arrazoado  de  vazar  a  sala,  entrar  no  corredor  e  sair  na  cozinha.  Recriminei  o  covardismo deles  todos  até  gerações passadas  e  por  passar.  Cada  torcida  da  barba  vinha  acapangada  de um vitupério:    — Gente desbriada! Se não sou homem de patente, com preparo de guerra, a onça fazia uma desgraça.    Na  proteção  de  dona  Francisquinha  um  bando  de  negras  veio  especular  o  motivo  da destemperança. Aproveitei a velha para garantir, a poder de soco na mesa, que Francisquinha, 
na beira  dos  oitenta,  aparentava  mais proceder  de  homem  que  muito  comedor  de  farinha  que vestia calça e usava barba. Pelo menos não ia correr na frente da pintada feito filho de égua:    — É o que digo. Fazia melhor figuração.    A  chegada  de  um  recadeiro  de  Santo  Amaro,  portador  de  bilhete  do  padre  Malaquias, sustou  minha  descompostura.  Respondida  a  indagação  do  reverendo,  que  perguntava  se  eu podia  apadrinhar  umas  obras  de  piedade,  retornei  aos  azedos.  Mas  nesse  ler  e  despachar  o recadeiro,  os  espavoridos  da  onça  afundaram  nos  ermos.  Só  peguei,  na  varanda,  a  poeira deles.    — Cachorrada!    Medindo  a  sala  em passo  de  coronel, remoí,  em  imitação  de boi,  a peripécia nas menores minudências. Filhos  de uma  égua! Deixar um  cristão  como  eu, portador  de patente, pejado  de responsabilidade, de sozinho no dente da pintada! Era de perder o gosto, do sujeito torrar tudo no martelo  (“Quem mais dá, quem mais dá”)  e  estabelecer  casa  em Niterói, no meio de gente instruída. Por essas e outras é que  Sinhozinho andava maluco das ideias para arrumar encargo no governo. O velho não cansava de prevenir :    — Seu Ponciano, pasto é lugar de lobisomem, terra de povo safado.    Veio a tarde, brotou a noite e eu de nó atravessado na garganta em vista do sucedido. E nem uma  chuva  de  lavoura,  que  sobrecaiu  no  fim  do jantar,  amainou  as jararacas  e  caninanas  do meu  ódio.  Destrocei  três  charutos  e  no  toco  do  quarto  é  que  o  sono  esfumaçou  meus  olhos. Para  vistoriar  a  cama,  que  isso  era penitência  de  toda  a  noite,  chegou  Francisquinha.  Queria ver os lençóis, se as fronhas do menino nadavam em cheiro de limpeza, se o quarto estava em ordem e a moringa abastecida. Liberei os zelos dela:    — Tudo de conforme, tudo de conforme, minha velha.    Agradeci os seus cuidados e na cantiga da chuva ninei meu dormir. É nessa fundura que dou vaza  aos  desregramentos  do  coronel. É  cada invenção  de nem  ser possível  existir  em  carne  e osso nas casas mais debochadas das meninas de vira  e mexe. Pois andava  eu na melhor parte do  sonho,  em  libertinagem  de  descascar  dona  Branca  dos  Anjos  dos  seus  panos  de  baixo, quando  tropecei  num  armário  que  ruiu  em jeito  estrondoso.  Acordei  para  logo  a  moça  sumir como renda levada no vento. Cocei a cabeça e obtemperei aporrinhado:    — Ora essa! Logo na hora do proveito é que fui acordar.    Depressinha  voltei  ao  travesseiro na  esperança  de pegar  ainda  a  dona  do  meu bem-querer num  recanto  de  corredor  ou  sofá  vadio.  Forcei  os  carneirinhos  da  sonolência  e já  aprontava outras  safadezas na precisa  ocasião  em  que rebentou, junto  do beiral  da janela,  aquele ronco dos  demônios.  Tive  de  largar  o  bem-bom  da  madorna  e  pular  de  cabrito  em  socorro  das trancas  e  tramelas.  Meu  primeiro  repente,  por  ser  possuído  de  gênio  estourado,  foi  abrir  a janela  e liquidar  o berro na  sua  fonte de nascença.  Só não dei  andamento  a  essa ideia porque novo ronco, dos mais alentados, cortou a noite trevosa. Pensei:    — É a onça.    E tanto era a onça que logo aquela pata começou a arranhar o lado de fora, esperançada de pegar o ponto fraco da tramela. Desplante maior nem em história das carochinhas, das eras em que  os bichos  falavam.  Como  estivesse por  assim  dizer  em  solidão,  com meia  dúzia  de  saias debaixo  de  telha,  resolvi  fazer  prudência,  o  que  não  é  da  lei  militar  nem  do  meu  feitio estourado,   mas   que   cabia   na   ocasião,   tanto   mais   que   eu   andava   cativo   de  jura   e compromissado  de  não  desbastar  a  onça  de  mão  própria.  Dentro  desse  proceder judicioso, 
recuei  em  ordem, na direção da  sala,  em tempo de reforçar portas  e  outras  aberturas da  casa. Para  maior  garantia,  retirei  do  armário um  trabuco  que  estava  sempre  de prontidão,  arma  de boca  larga  e bala  arrasadeira.  Tive  até pena  do  estrago  que  o  chumbo podia  fazer na pele  do gato  caso  eu  não  estivesse  entravado  em  juramento  de  santo.  Com  esse  pensar  na  cabeça, ponderei baixinho, de modo a não ser escutado lá fora:    — Era tiro tão danoso que nem a pele ia ser aproveitada.    Sabedora de que havia arte militar por trás das paredes do Sobradinho, a pintada passou ao galinheiro, pelo  que  até  hoje  está  voando  criação  de  Francisquinha  no  céu  de Nosso  Senhor. Não contente da matança, o gatão rodou o sobrado e veio estabelecer sua pessoa na varanda, a um  palmo  da  cadeira  do  falecido  Simeão.  Se  fumasse  charuto,  como  era  procedimento  dos bichos  do  arco  da  velha,  o  povo  ia  logo  espalhar  que  o  coronel  andava  desaparafusado  das ideias:    — Deu de mamar seu Flor de Ouro no rabo da madrugada.    Enquanto isso, pela vidraça, eu acompanhava na varanda as artimanhas da onça. Era vivente de grande porte. A cauda, sem falar no espanador, media para lá de uma surucucu das graúdas, de boa mamança, depois do que vinha o gatão, uma peça  soberba, com fogo de raiva no olho, tão alentada que o assoalho chegou a gemer em mais de uma tábua. Entre essa exorbitância dos matos  e  o  Sobradinho  só  existia  eu  e mais ninguém, que  o restante povo da  casa não  contava, por  ser  rabo  de  saia,  peso  morto,  afundado  no  travesseiro.  O  que  mais  podia  Francisquinha fazer  era  cair no  ora-pro-nobis  do  oratório,  acender vela  a  santo  Onofre  ou  são  Bento  e  sair em ladainha pelo corredor :    — Isso e outro ajutório nenhum.    Andava  eu nessas  figurações,  quando,  das  casuarinas, veio um pio  de  coruja  que  cortei no meio ao passar rente de mim:    — Desconjuro, desconjuro!    E aproveitei para dar um balanço no caso da pintada. Medi, ponderei e, ao perceber a pata da  nefasta  arranhar  a  janela,  tratei  de  ganhar  praça,  sempre  recuando  em  ordem,  como competia a quem levava aprendizado militar. Bem guarnecida andava a parte dos fundos, onde a velha Francisquinha dormia trancada com as suas agregadas. Onça por mais que fosse não ia chegar  a  recinto  tão  fechado.  Certo  dessa  segurança,  fui  pedir  asilo  ao  sótão  das  armas, compartimento  reforçado,  sortido  de  bacamartes  e  pólvora.  Talvez  que  a  carnicenta  tivesse intenção,  sei  lá  o  que  pensa  cabeça  de  onça,  de  pernoitar  na  cadeira  de  meu  descanso, agasalhada  de  chuva  e  vento.  Se  eu  não  tivesse  preparo  de  coragem,  talqualmente  um Saturnino ou João Ramalho,  saía no berro de acordar léguas de pasto.  Sem gabolismo, digo e provo  que  procedi  dentro  da  prudência  e  o  resto  da  noite  passei  na  vigília  das  armas. Madrugada  rompida,  canto  do  galo  de  fora,  onça  recolhida,  deixei  de  velar  a  segurança  do Sobradinho.  E,  no  abrir  do  café,  soltei  a  língua  viperina  no  lombo  de  todo  mundo,  tirante  a velha Francisquinha, de meu especial respeito. Que marca de gente era essa que comia de meu feij ão e bebia de minha água? Enfrentava eu dez braças de onça e ninguém para dizer coronel- estou-aqui.    — Ninguém!    Dito isso, fui medir, no barro mole, o tamanhão das patas do gato. E tanto barulho tirei que um salomão, Salim Nagibe, em trânsito pelo Sobradinho, onde vendia seu comércio de rendas, levou  bem  depressa  em  sua  caixa  de  miudeza  a  notícia  da  desavença  entre  a  pintada  e  o 
coronel. Não tinha  ele precisão  de  levar  esse  correio — nos  currais nenhum  segredo  aguenta ficar em boca ou gavetão em prazo de fazer bolor.  Sai no primeiro vento que  sopra, e quando não  sopra  o  vento  a  novidade  viaja  na  asa  dos  caburés  ou  gaturamos.  Digo  mais:  ninguém  é senhor de comer cabrito em mesa  sossegada ou bordejar casa de mulata  sem que no outro dia o mais  desimportante moleque  de  curral venha  a  ser  sabedor  do  acontecido,  se  o  cabrito  era de bom berro ou a mulata de boa peneira. Mesmo assim, caí em admiração ao ver  Sinhozinho Manco, no depois do almoço,  subir escada do  Sobradinho munido de todos os pormenores da visita  da pintada.  O velho nem  esperou  a minha  confirmação. De  dedo na  frente,  falou na  sua voz de menino:    —  Seu  Ponciano,  seu  Ponciano! Ninguém  de juízo  na  cabeça  sai  noite  cerrada  de  modo  a fazer pouco de onça!    Trafeguei o velho a um canto da sala, pois não queria que a visita da pintada espalhasse raiz no pasto. Fiz ver  a  Sinhozinho  como marombei  a  onça,  sempre  dentro  da melhor prudência  e arte militar. Isso de dizer que corri atrás do gato era despautério, tolice de povo que nunca viu pelo de onça. De uma verdade ficasse Sinhozinho sabedor :    — Não estuporei a danosa por causa que estou preso a jura de santo.    Levei  o  velho  ao  mirante  da  janela  para  averiguar  em  que  postura  ficou  a  papadora  de bezerro. Todas as vantagens da guerra estavam do meu lado. Era só trabucar a bichona no sítio que escolhesse, da rabeira ao peitilho. E dedo apontado para o assoalho:    — Veja  que  falta  de juízo! Ficar  ali  em risco  de  levar munição  completa no pé  do  ouvido, de chover miúdo de onça até no estrangeiro.    Sinhozinho,  perna  arrastada,  foi  medir  a  distância  que  separava  a  janela  do  pouso  da pintada.  Isso  acabado,  deu  razão  a  mim,  gabou  minha  perícia  em  acompanhar,  sem  alardes  e ajutório, o passeio da onça em tábuas do Sobradinho:    — Teve tino, teve tino.    Já o caso da pintada, na parte do sábado, tinha tomado vulto. O salomão Nagibe, chegado a Ponta  Grossa  dos  Fidalgos,  armou  comício  na  porta  do  dr.  Caetano  de  Melo,  espalhou  a desordem  existida  entre  o  coronel  e uma  onça  do mato brabo. Avantajou tanto  o mercador  de renda  a  minha  valentia  que  mais  de  um  teve  pena  da  fera,  dada  como  desfalecida  e  quase morta  na  desavença  que  teve  comigo.  O  vizinho  Pires  de  Melo  mandou  saber  se  eu  queria barganhar a pele da onça, do que achei graça e respondi galhofista:    — Dela não abro mão, por motivo de mandar fazer um capote.    Aproveitei  a  maré  para  remeter  indagação  a  Juquinha  Quintanilha  a  respeito  do  capitão Zuza  Barbirato.  Vinha  ou  não  vinha  o  homem  cumprir  o  prometido?  Se  tardasse,  ficava  eu desobrigado dos duzentos mil-réis e dava de tiro próprio fim ao gato:    — É o que digo. Acabo pegando o encargo.    De volta, o portador trouxe a deliberação final. O capitão, de arma embalada, ia ancorar no Sobradinho  no  raiar  do  sábado  entrante.  Contei  nos  dedos  —  segunda,  terça,  quarta,  quinta, sexta, sábado. Calhava em data de sete:    — Conta de mentiroso. Mas vá lá!    Antão  Pereira,  João  Ramalho  e  Saturnino  Barba  de  Gato,  sumidos  desde  o  vexame  do bambuzal, foram chamados às falas. Abancado na cabeceira da mesa, dei as normas da guerra. Não estipulei o dia:    — É segredo militar. 
   Já desarmado de raiva, pulei de um assunto a outro. Relembrei a corrida que a onça deu em todos  eles,  em risco  de  algum morrer  entalado numa ponta  de taquara  ou  afundado  em  charco de  pantanal.  Que  eles  vissem  o  perigo  que  passaram.  Se  não  fosse  eu  homem  calejado, entendido em traição de onça, nunca que podia garantir a segurança da comitiva:    — É o que digo. Não sei no que ia dar.    Para melhor entendimento das partes, representei na mesa, ainda coberta da louça do café, o covil  da  pintada.  O  taquaral  era  o  açucareiro  e  os  pedacinhos  de  tapioca  faziam  a  vez  dos boiadeiros:    — Aqui está Antão Pereira, mais distanciado vem Saturnino. E este é João Ramalho.    Com  as  pontas  dos  dedos  arrumei  nos  seus  devidos  lugares  os  pedacinhos  de  tapioca.  O bule era eu, o paliteiro a onça. Assim, armado o encenamento, intimei Antão Pereira a dizer se em algum dia de sua vida teve desavença com bicho de porte:    — Diga sem rodeio, fale de peito aberto.    Antão  afundou  a  cabeça  e  custou  a  preparar  a  resposta,  uma  vez  que  língua  de  gago  tem manha  que  nem  Deus  desembaraça.  E,  quando  desembuchou,  foi para pedir  que  eu  relevasse suas ignorâncias em sabedoria de guerra e artimanhas de onça. Esfreguei as mãos:    — Muito que bem. Gostei da franqueza.    Outra  vez,  dedo  na  massa,  provei  aos  campeiros  que  foi  uma  sorte  (“Vosmecês  todos nasceram de imbigo para o chão, para não dizer outra coisa”) a pintada não esfarinhar um por um. Bastava eu cruzar os braços, deixar que ela trabalhasse de pata livre. E avivando a voz:    — Vejam os perigos que vosmecês todos passaram.    E do alto de minha autoridade militar levantei o paliteiro que representava a onça e deixei a peça cair  em cima dos pedacinhos de mandioca. Era  a pintada  em rotina de comer o povo do Sobradinho. No primeiro bote desmanchava Antão, no segundo Saturnino e no derradeiro João Ramalho:    — Não ficava um, seus compadres. Não ficava ninguém.    De  crista  murcha,  meus  agregados  acompanharam  a  batalha  de  invenção  que  meu  punho figurava  na  tábua  da  mesa.  Ministrada  a  lição,  mastiguei  a ponta  de um  charuto  e pedi  lume. Foi quando Saturnino, no acender do fogo, contou a novidade:    — Patrão, deu onça na casa do Dioguinho do Poço.    Já  de  cara  desanuviada,  bem  plantado  na  cadeira,  pedi  as  miudezas  do  caso,  como  foi, como  não  foi.  E  entre  o  deboche  dos  boiadeiros  e  baforadas  de  tabaco,  fiquei  a  par  da palhaçada de Dioguinho em presença da onça. Não sendo ele homem de patente, não aguentou nem meia pataca do berro. Abriu a pintada a boca e Dioguinho pulou de gato em demanda do telhado, em perigo de contrair fraqueza mortal:    — Pegou chuva de caroço e vento a noite toda.    Tive de sustar o relato para uma ponderação:    — É no que dá não ter preparo de guerra. É no que dá.    Saturnino,  cada  vez  mais  afundado  no  sucedido,  trouxe  a  furo  outras  miudezas  de  arranca- rabo entre a onça e o medroso, peripécia de  soltar o riso do mais carrancudo carrasco. Lá na telha,  chuva  no  lombo,  Dioguinho  do  Poço  em  camisolão.  Cá  embaixo,  no  quentinho  do alpendre, a onça e seus desplantes. Nessa postura ficou ele de uma ponta a outra da noite:    — Só madrugada feita é que Dioguinho teve modos de sair dos caibros.    Meti de entremeio a minha colher de pau: 
   —  Seu  Saturnino,  pelo  sucedido,  a  gente  tem  de  mudar  o  nome  dele  para  Dioguinho  do Telhado.    Com  esse  aparte,  a  campeirada perdeu  as  estribeiras. Foi risada  de não  acabar mais.  João Ramalho,  mão  na  barriga,  garantiu  que  o  coronel  tinha  ideia,  que  não  havia  ninguém  para atarraxar um bom apelido no chifre de qualquer um como o coronel:    — Dioguinho do Telhado! Calha bem, calha bem.        Então,  chegou  sexta-feira,  véspera  do  dia  da  onça.  De  tardinha,  um  recadeiro  de  Mata- Cavalo  trouxe  a  confirmação  do  compromisso.  Juquinha  avisava  que  vinha  de  capitão  na frente,   que   o   coronel  providenciasse   as   forças   de   acompanhamento.  Estalei   os   dedos, encaracolei a barba e liberei o portador :    — Muito que bem, muito que bem.    Digo que até gostei de ver a chegada dos primeiros varejos da escuridão, asas de caburé e morcego sumidas do Sobradinho por causa da chuva e do vento. E foi montado em alegria que mandei vir da cozinha, onde conversava fiado com Francisquinha, o gago Antão Pereira, para um j oguinho  de  vintém,  honra  que  eu  não  dava  a  qualquer  um  agregado  meu.  E  preparava  o baralho para um sete e meio quando, no beiço da janela, Janjão Caramujo veio dizer que Tutu pedia  consentimento  de  trafegagem.  Ri  manhoso,  e  sem  deixar  as  cartas,  pessoalmente  fui despachar o pedido dele. Intimei que subisse:    — Não tem cachorro, seu Militão. Pode entrar.    O  curador,  chapéu  fora  da  cabeça,  disse  que  era  muito  agradecido  e penava  de  não poder aceitar a regalia, pois tinha variadas léguas de dormideira e areal a vencer entre o Sobradinho e Ponta Grossa dos Fidalgos:    — Se o coronel consente, volto na semana entrante.    Não consentia nada. Que subisse de imediato — o baralho esperava pela sua mestria:    — Quero desbastar sua riqueza no sete e meio, seu compadre.    Tutu  obtemperou  de  lá,  eu  obtemperei  de  cá.  Acabou  valendo  a  minha  obtemperação  e  o pardavasco desceu da mula. Janj ão Caramujo ajudou o viajante a retirar a caixa de cobras de que  Tutu  era  sempre  munido.  Deneguei  autorização  para  que  subisse  com  as  nojentas,  no receio de alguma escapulir das galés e picar tendão de perna vadia:    — A caixa não, seu Tutu. Fica nas sete chaves no porão.    Militão subiu fornido de cerimônia, limpa o pé aqui, limpa o pé ali, como se o assoalho de Francisquinha  fosse  espelho  lavado.  Mais  de um molecote,  escapado  da  cozinha, veio  espiar de  longe  a  pessoa  de  Tutu.  A  fama  do  curador  corria  léguas  na  frente  de  sua  mulinha estradeira. Andava ele num curral e, já em outro, em distância dilatada, era  sentido o assobio das suas jararacas. Enxotei os abelhudos — que fossem cuidar dos caburés e corujas:    — É maldição que não falta no Sobradinho.    Antão levantou acampamento. Já beirava o sono e ainda tinha de fazer uma vistoria em certa ninhada de cachorros. Além do mais, o coronel em boa parceirada ficava. Gaguejou ainda um par de desculpas, bateu no ombro de Tutu e a mim pediu as ordens. De plano armado, respondi que domingo era o dia de Deus, de um cristão descansar pele e osso:    — Vá em paz, seu Pereira. Na paz de são Jorge e são José.    Ganhei  de  Tutu  duas  mãos  de  sete  e  meio  e  ele  pediu  licença  para  ganhar  outras  tantas. Nesse vaivém de dar carta  senti o primeiro  safanão de  sono. Lá uma hora cuidei que o punho 
de  Militão  fosse  a  cabeça  de uma  cobra  que  avançava  e recuava  sobre  o baralho.  Era tempo de recolher. No canto do galo começava a guerra da onça:    —  Seu Tutu, tenho encargo grosso logo mais de madrugada, pelo que dou o sete e meio por sustado.    E  enquanto  acamava  o  baralho,  preparei  o  pardavasco  para  uma  conversa  a  respeito  da pintada. Fui longe, vim perto, enfeitei os préstimos dele, a  sua  sabedoria em manobrar perigo dos matos. Beneficiado com ponderação tão cativosa, Tutu alegrou a cara de ponta a ponta — tudo que era dente veio gozar o elogio. O pardavasco estava em ponto maduro. Dei o bote:    — Vosmecê, que é sujeito de valor, homem de anel no dedo, está aprazado para tomar parte na derrota da onça.    Militão  quase  desabou  da  cadeira.  Fingiu  procurar  qualquer  pertence  no  bolso  de  modo  a ganhar tempo  e preparar resposta  ardilosa.  Sabia  que  o  curador  de  cobra não  era  de natureza feita para  enfrentar  imposição  militar,  muito  menos  ordens  de  Ponciano  de  Azeredo  Furtado, coronel de poucos pedidos e nenhuma imposição. Animei o medroso:    — Não leve receio. Toda a vantagem da guerra está com a gente, homem!    Tutu, passando a mão de anel no queixo, como era de sua rotina, pediu a hora:    — Se mal pergunto, a demanda é de sol a pino ou de madrugada?    Fiz despistamento de caçador :    — Ainda não deliberei. Vá dormir em sossego.    Requereu  licença  para  recolher,  em  segurança,  no  paiol  do  milho,  a  caixa  de  cobras,  uma ninhada  de  surucucus  da  pior  mordida.  De  lá  mesmo  (“Se  vosmecê  não  bota  embargo”)  ele tomava  rumo  do  berço,  na  parte  subalterna  do  Sobradinho,  por  ser  bem  avançada  a  noite. Sempre aparelhado de cerimônias e educações, desceu em direitura da caixa de peçonha:    — Com licença, com licença.    Apoiado num suporte da varanda, embonequei o pavão:    — Vosmecê é dos meus. Não corre da rinha.    Fui  dormir  em paz, pois  em  derradeiro  instante tinha  chegado  o  caso  da  onça. Na porta  do quarto, lampião  avivado,  dei  a última  demão na rixa. De madrugada, já  em  andamento para  a guerra,  é  que  ia  convocar  as  tropas  do  Sobradinho.  De  supetão,  coronel  na janela,  ninguém podia  dar  parte  de  doente,  inventar  trabalho  ou  morte  de  parente.  E  foi  relembrando  essa astúcia que afiancei em conversa sozinha:    — O coronel tem muita cabeça, muita deliberação.    Como  o  sono não viesse,  contei  carneirinho  e  lá na  casa  dos trezentos, tudo branquinho  de nuvem,  o  quebranto  chegou.  Mal  caí  na  dormência,  o  galo  cantou  na  primeira  claridade  da manhã.  Vestido,  esperei na  sala  a  chegada  de  Juquinha  e  do  tal  capitão  das  cem mortes. Não tive  muito  que  esperar.  Na  frente  de  uns  latidos  de  cachorro  vi  subir  o  dentão  de  ouro  do compadre  Quintanilha.  Dedo no beiço,  fiz  sinal  de  cautela. Não  era  de  conveniência  acordar Francisquinha e seus lamentos. Que ele fosse tirar Tutu Militão do seu dormir remansoso:    — Quero o bichão armado e municiado.    O  mulato  foi,  andou,  virou  —  e  nada  de  Tutu.  A  cama  corria  limpa  como  se  lá  ninguém pernoitasse.  Juquinha  ainda  quis  dar  uma  rebusca  nos  por  perto  do  Sobradinho,  na  ideia  de que o curador estivesse na labuta de catar erva dos matos, como era de seu uso. Desconsenti:    — Deixe de lado a procura e traga à minha presença, como é de obrigação, esse tal de Zuza Barbirato. 
   Quintanilha,  sem  resposta,  quedou  parado  no  meio  da  sala.  De  novo  ordenei  que  fosse buscar o capitão das onças:    — Mande subir o homem. Quero ver a bizarria dele.    O  feitor  de  Mata-Cavalo  remancheou,  quis  relaxar  a  ordem,  no  que  não  consenti.  No terceiro   aperto   (“Vosmecê   está   de   orelha   avariada   ou   quer   brincar   comigo?”)   é   que desembuchou. Desculpasse eu, mas o capitão era sujeito cismático, recoberto de orgulhos:    — Não aprecia ninguém tomar confiança dele.    Torci  a  barba,  j á  arreliado,  de  gênio  ferido.  Repeli  a  soberba  do  capitão.  Ninguém  no Sobradinho  andava  atrás  de  tomar  confiança  com  ninguém nem  que  fosse  graúdo  da política, mandão  no  governo.  Ficasse  sabedor  Juquinha  Quintanilha  que  eu,  com  dois  berros,  botava Barbirato fora de sela, em posição de ordenança, como manda a lei militar :    — Diga a ele que tenho poder para tanto. É só querer.    O  pobre  Juquinha  correu  a  amaciar  o  meu  rolo  de  surucucus.  Disse  que  o  caso,  em  boa ponderação, não pedia tais providenciamentos.  Se o capitão, dentro do estipulado de duzentos mil-réis, desse morte pronta ao gato, estava tudo de conforme:    — É o que reza o contrato, coronel.    Bati carinhoso no ombro dele:    — Tem razão. Deixe lá embaixo o soberboso.    Desci. Em passo firme ganhei o último lance da escada, onde o estribo, na guarda de Janj ão Caramujo, esperava minha botina. Aj eitado a contento na sela, salvei o matador de onça:    — Bons-dias. Como vai, capitão?    O  bicho,  de  boa  largura  e  altura,  barbudão,  resmungou,  sem  um  muito-obrigado-coronel, que passava  como Deus  queria. Pouco  apreciei  esse responder, mas tive  que  dar  orelha  a um vendedor de farinha que trazia recado do Tutu Militão. Dava parte o curador que uma de  suas minhocas, por desgraça a surucucu-mestre, tinha escapulido da caixa de segurança. Madrugada ainda longe, teve de cair na poeira da peçonhenta, motivo pelo qual não podia tomar parte na exterminação da onça:    — É a desincumbência que Tutu deixou, patrãozinho.    O capitão Barbirato, na cara do farinheiro, caiu em deboche:    — Que cobra, que nada! O que ele carrega é um samburá de medo. Digo e provo.    Não  gostei  do  pouco-caso  de  Barbirato  —  ele,  pisador  de  outros  pastos,  não  podia aquilatar a valentia de ninguém. Mas, em consideração aos bons conselhos de Juquinha, deixei sem reprimenda  a  afronta  do  atrevido,  que  ainda  desfez  dos préstimos  de  Tutu  com  falsos  de que o curador nem em picada de mangangá dava conserto:    — Digo no focinho dele. Digo e provo.    O  homem  era  bem  preparado  de  peito,  garganta  de  correr  parelha  com  o  vozeirão  de Dioguinho do Poço. Aceitei a toada e puxei pelo capitão:    — Que acha vosmecê do topete da onça?    Ele  berrou  de  lá,  eu  berrei  de  cá,  pois  é  de  todo  pasto  sabido  que  não  dou  direito  de ninguém  falar  mais  alto  do  que  eu.  Na  frente  de  tanta  goela,  que  parecia  um  ajuntamento  de feira,  pulou  o  varejo  da  madrugada:  anuns,  bicos-de-lacre  e  até  uma  sociedade  de  quero- quero.  Limpeza  assim  no  osso  do  arvoredo  nem  fazia  formiga  carregadeira  em  viagem  de correição. Apertando o cinto largo, o capitão falou orgulhoso:    —  Tudo  corre  na  minha  frente.  Digo  e provo  que  até  o  mar  salgado  treme  na presença  de 
Barbirato.    Nesse  entrementes,  a  mando  meu,  de  porta  em  porta  Juquinha  retirava  dos  travesseiros  o pessoal  da  rixa,  Antão  Pereira,  Saturnino  Barba  de  Gato  e  João  Ramalho,  fora  Janj ão Caramujo  que  sempre viajava no bagaço  da  comitiva, por  ser  desimportante  e  cachacento. A chegada  dos  boiadeiros  era  tristeza  de  um  cristão  ver.  Cada  qual  mais  quebrado,  cabeça pendida,  como  em  obrigação  de  enterro.  A  bem  dizer,  meu  povo  mal  aguentava  o  peso  das ferragens. Apresentei Zuza Barbirato:    — É o capitão incumbido da onça.    Do alto da  sela,  soberbão, Barbirato nem deu confiança de  salvar os chegados. O mais que fez foi sacar de um facão de arrasto e decepar, na raiva, uma plantaçãozinha de melão-de-são- caetano que enfeitava uns paus de angico. Acabada a malvadez, enquanto acomodava o aço na bainha, jurou  o  capitão  que levava mais  fé naquela peça  de  corte  do  que  em gente  dos pastos ou mesmo tropa de linha:    — Digo e provo sem medo de engano.    Enrolei  a barba  em  modo  de  acalmar  meu  gênio  militar, já  em ponto  de  cair  em  ofensas  e agravos.  Juquinha  tossiu,  desvirou  o  assunto  para  negócios  de  boi  e  venda  de  rês,  ao  que Barbirato  rebateu  dizendo  que  em  presença  dele  não  consentia  levantar  bobagem  de  curral, que não ia denegrir a patente em palestra subalterna:    —  Digo  e  provo,  seu  Quintanilha,  que  essa  toada  de  boi  não  calha  bem  no  ouvido  de  um capitão.    Livre de freio, no adentrar do mato a arrogância do malcriado ganhou barriga. Era vantagem sobre vantagem, que fazia e acontecia, teteré-teté, que trabalhava por trabalhar, tereré-teté, que disso não carecia, teteré-teté, pois pai ricoso quem tinha mesmo era ele:    — De dar tiro em pintada faço vadiagem, que de dinheiros não careço.    Quando, mais adiante, cercado de deboches e risinhos, arrotou que a vinte dúzias de onças tinha ele dado falecimento, apresentei, em voz engrossada, o caso da assombração que debelei em outros, outroras, ainda meninote de estudo e peraltice:    — Penitência danada de feia, seu compadre.    O  capitão  estancou  para  indagar  da  marca  da  visagem:  se  era  de  porta  de  cemitério  ou campo  aberto.  E  ainda  teve  o  desplante  de  garantir  que  no  mundo  havia  de  dez  a  vinte qualidades de mal-assombrados:    — Digo e provo. Se não sabe, fica sabendo.    E  mais não  avantajou  o  capitão porque  era  chegado  o  mato  da  onça.  Dentro  do  estipulado de   duzentos    mil-réis,   findava    naquele    lonjal  a   minha    competência.     O   resto   era responsabilidade  de  Zuza  Barbirato,  dele  e  de  mais  ninguém.  E  foi  dando  o  troco  dos  seus deboches que fiz sentir que daquele doravante a ele cabia dar as regras:    — O mando é seu. Lavo as mãos.    Na  sombra  de um  ingazeiro  o  capitão  sofreou  o  cavalo.  E  lá  de  cima,  chapéu  descaído  na nuca,  deu  de  fazer  parte  de  bugre.  Cheirou  o  vento  em  busca  do  ranço  da  onça.  Três  vezes fungou  e  outras  três  mirou  o  céu.  Por  dentro,  eu  achava  graça  da  macacagem  do  sujeitão. Nunca que uma artimanhosa de uma pintada, bicho de andar de  sonho, ia consentir que orelha de  caçador  soubesse  do  seu  mato.  Deixei  o  capitão  entregue  a  essa  palhaçada  que  nem  era mais do uso dos bugres. Até gabei o proceder dele:    — O capitão tem prudência, quer assuntar o vento. 
   Em  distância  regulamentar,  meu  povo,  murcho  e  encardido,  esperava  a  decisão.  Com arrogância, Barbirato dispensou a tropa:    — Não careço de mij ão na rabeira.    E em  seguimento despejou afronta de mãe que  só não encontrou pronto endereço porque os boiadeiros, Juquinha na guia, já estavam ao desalcance de qualquer ofensa, de ninguém atinar como  sumiram  no  pasto  ralo.  Tive  que  dar  razão  ao  matador  de  gato.  E  larguei  um  par  de azedos  contra  Janj ão  Caramujo,  único  sujeito  restante  da  guarnição  do  Sobradinho.  Meio adernado  na  sela,  raiz  enterrada  na  cachaça,  o  tratador  de  cavalo  parecia  desfalecido.  Com dois berros  à  queima-roupa  sacudi Janjão  da  sonolência  e mandei  que  fosse  fazer  companhia aos outros desmazelados, que lugar deles era em casa de costureira e não em rixa de onça:    — Cambada de sem-vergonhas! Vou meter saia de donzela em um por um.    Sem  pressa,  cabeça  baixa,  Caramujo  pegou  chão  de  volta.  Disso  aproveitou  o  capitão Barbirato para recair na brincadeira e gabolice. Pediu que eu coçasse o bolso, uma vez que na lei dele dinheiro de onça era recebido na pele da morta:    — Digo e provo. Vou meter bala no entre olho por causa de não estragar o capote do gato.    Nesse andar, Zuza pregou chumbo na asa de um peito-ferido e deu o motivo:    — É pontaria de ajuste.    Por minha vez, pois não costumo  ficar  em  situação  subalternista, meti bala no portal de um j oão-de-barro.  Ele  fez  o  mesmo  no  concernente  a  uma  algazarra  de  anuns-carrapateiros.  Um trabalhador de  enxada, que morava na vizinhança, abriu a janela  e apareceu ainda no  sono da madrugada. Olhou, cuspiu e disse para o fundo da casa:    — É o coronel do Sobradinho. Coitada da onça!    Ia  a  gente  nesse pé  de  vadiagem,  eu já preparado para  deixar  o  capitão  desimpedido,  que era  esse  o  acertado,  quando,  meia  légua  no  mais  espichar,  sem  aviso  ou  ronco,  cresceu  em quatro patas a onça procurada. Berrou  suas ignorâncias bem na bochecha de Barbirato e logo um cheiro nefasto escapuliu da goela da atrevida. Pulei da sela e nesse trafegar escutei aquele relincho de cavalo agoniado — notícia do capitão não tive até a presente data. Outra vez,  em prazo  de pouco mais  de  quinzena,  encontrava  o  coronel  onça pela  frente.  Tudo pendia  contra mim, mas digo, sem desdouro, que nem a maldosa teve tempo de encarar o neto de Simeão. De repente,  vi  minha  pessoa  num  brejal,  a  cem  braças  do  recinto  da  onça,  nadando  em  minha infância nado de cachorrinho. E na  segurança de umas tábuas e paus-de-mangue, fui ancorar a barba,  espingarda  a  salvo para  o que desse  e viesse. Nem  onça nem  outro  olho mais  aguçado podia descobrir tão afundado paradeiro. E assim, nos encondidos, esperei as providências da soberbona  que  no  beiçal  do  brejo  farejava  terras  e  matos.  Empoleirados  nos  pés  de  pau,  na distância  pouca  de  um  bafo,  os  urubus  esperavam  o  resultado  da  guerra,  cada  qual  mais pescoçoso que outro, como se eu fosse carniça certa e contratada. No íntimo, desconjurei:    — Vai agourar a mãe!    Ainda  procedi  a  uma  vistoria  na  esperança  de  deitar  a  vista  em  armas  do  Sobradinho.  E andava eu nessas minudências, quando vi  sair, do atrás de um panelão de formiga, aquele tiro sem pai. A pintada, que não esperava chumbo, pulou em modos de voar de imediato e caiu nos estrebuchos  da  agonia.  Avivei  a  atenção  para  descobrir  Barbirato  e  quem  apareceu,  no encaracolado  da  fumaça,  foi  o  molecote  pegador  de  papa-capim  e  caboclinho  que  vez  por outra pernoitava no Sobradinho. Veio fagueiro, espingarda no ombro, sem medir consequência. Soltei do banhado meu grito de aviso: 
   — Afasta! Afasta!    E  em  dois pulos  larguei  a  água  em hora  de  correr  o moleque na ponta  da botina, tarefa  de que só abri mão ao ver o desmiolado em distância segura, sem risco de vida. Como arremate, parado junto de uns pés de guriri, ainda esbravejei:    — Sujeito sem tino! Cuida que onça é gato de borralho.    Então, voltando atrás, passei ao ouvido da pintada toda a munição do meu pau de  fogo que nem  a  água  do  brejo  teve  força  de  emperrar.  Quebrada  a jura  por  um,  quebrada  por  mil.  E, mais alto do que o estrondo do tiro, berrei eu:    — Conheceu, papuda!    Nisso,  como  minhoca  do  fundo  da  terra,  veio  brotando  um  a  um  a  campeirada  do Sobradinho.  João  Ramalho,  na  presença  da  defunta,  fez  o  sinal  da  cruz.  Juquinha,  depois  de medir a grandeza da pintada, deu parecer :    — Que imensidão!    Vejam o despropósito. Por uma traquinagem de moleque vadiento, pegador de bico-de-lacre e  sanhaçu,  perdia  eu  a  caça  mais  alentada  que  já  tive  em  mira  de  espingarda.  De  Zuza Barbirato  ninguém  nunca  mais  que  soube.  Em  cem  léguas  foi  procurado  e  em  outras  cem desencontrado. Ficou comigo a fama e a escama de ter dado exterminação ao gato. Por não ser de minha natureza vestir  glória  dos  alheios,  desmenti,  com ponderações  e melhores razões,  a façanha  do  banhado.  Pois  logo  espalharam  que  eu  apresentava  essas  modéstias  para  não  dar parte de sujeito quebrador de promessa. Diante disso, lavei as mãos. 
Anos de vento e chuva passaram por cima da morte da onça. Como lembrança do sucedido, mandei  espichar  na  sala  do  Sobradinho  a pele  curtida  do  gatão  e  mais  de  cem  vezes  tive  de contar e recontar o caso da pintada. Um doutor do governo, vindo aos currais no propósito de debelar uma vermina de gado, caiu em espanto sem conta ao pisar pelo tão sedoso:    — Que tiro! Que pontaria mortal !    Fez  empenho  em  levar  relato  do  acontecido.  Obtemperei  que  não  era  causa  disso,  que  em onça-pintada a gente dava exterminação o ano inteiro. E mostrando desimportância:    — É serviço das rotinas, que nem abre mais o apetite de meu gatilho.    O  doutor  das  verminas,  industriado  em  conversa  de  cocheira  pela  boca  de  Saturnino  ou Antão Pereira, piscou  o  olho.  Sabia  das minhas  encolhas,  do meu  feitio reservoso,  de  sujeito capaz de matar tigre e dizer que era jaguatirica:    — Estou ciente, estou ciente.    Deixei  correr  o marfim, que não  sou de meter mordaça  em boca de ninguém.  O resultado  é que o tal doutor do governo, tomado de admiração,  salgou a demanda. No fim do relato eu  só faltava  montar  a  onça  de  sela  e  arreio .  Como  o  exageramento  não  trouxesse  agravo  ao  meu brio militar,  dei  de  ombros.  Tempos  depois,  em viagem  de trem para um passadio  de  semana na rua da Jaca, um sujeitão falou no brinco da orelha de outro:    — Esse barbado é o tal Ponciano que fez da onça burro de sela.    A  verdade  é  que  durante  estes janeiros  todos  nunca  mais  tive  incômodo  de  onça.  Vez  por outra  aparecia  um  caso  desimportante  em  forma  de  cobra  ou  mula  sem  cabeça.  Nem  de pessoalmente  tratava  da  miudeza.  Mandava  um  campeiro  qualquer  desimpedir  o  aceiro  ou  a encruzilhada  ofendida.  De  onça  mesmo,  comedora  de  bezerro,  ficou  o  Sobradinho  sem  mais notícia. Tanto que por vadiagem, nas palestrinhas de varanda, eu sempre indagava se não tinha nos ermos uma tarefa de porte para o coronel desemperrar a pontaria:    — Assim como onça-pintada ou bicho de maior presença, mesmo um lobisomem.    O pessoal  do  Sobradinho, já  desesquecido  do  dente  da  onça, ria  dessas  e  outras pândegas que eu sabia arrumar. E assim foi o tempo vindo e indo pela mesma porta do meu avô Simeão. Vi Juquinha Quintanilha tomar estado em mês de cigarra. Chegou no  Sobradinho recoberto de cerimônia,    chapéu   rolado   nos    dedos,   botina   apertada,   roupa    de   loja.  Chamei   dona Francisquinha:    — Minha madrinha, venha ver o maior galante dos pastos.    Juquinha  Quintanilha,  sentado  na  ponta  da  cadeira,  mostrou  o  dente  de  ouro.  Mandei  que ficasse a gosto:    — O assento é de peroba, madeira que não bicha nem quebra.    De mão própria, apalpei os panos dele, gabei o tecido, a galhardia do corte: 
   — Sim senhor. Vosmecê até parece desembargador de Justiça.    Quebrada  a  cerimônia,  Quintanilha  relatou  que  tinha  vindo  pedir  licença  ao  coronel  por motivo de tomar estado:    — Se o patrão não bota embargo, mando correr a papelagem do governo.    Abracei o mulatão e quis, no imediato momento, saber quem era a felizona. Juquinha, mais à vontade, não retardou a resposta:    — Meu patrão não conhece. É moça de fora dos pastos.    Pouco  mais  depois,  padre  Malaquias,  confessor  dos  meus  pecados,  em  nó  de  igreja amarrava  na  vida  e  na  morte  Juquinha  e  dona  Alvarina  Quintanilha,  que  logo  apresentou barriga. Fiquei compadre deles — batizei o seu menino, morto de mazela do imbigo mal saído dos  cueiros.  Juquinha  contraiu  fundo  desgosto.  Andou  descaído,  cabeça  na  ponta  do  pé,  sem vontade. Tive de avivar o ânimo dele a safanão:    —  Seu  Quintanilha, um homem  é um homem, um  gato  é um  gato! Forma  que  faz um  faz um cento.    Era no  começo  das  águas.  Lá  fora  a  goteira não parava  de purgar. Por  cima  dessa tristeza, um vento de mau caráter mexeu em certa mazela de que sou portador, coisa contraída nos meus antigamentes de libertinagem, quando ainda não era sujeito respeitoso e graduado em coronel. A poder de cana-do-brejo e de uma penitência de não comer mesa carregada, como jacaré ou capivara, botei  em  ordem  a bexiga  e partes  em  derredor,  no  depois  do  que  voltei  ao  charuto bem  mamado,  de  modo  a  aguentar  tanto  sozinho  de  pasto.  Por  qualquer  somenos,  largava  no vento meus desabafos:    — Nação de boitatá, ninho de corisco e alma penada.    Numa  dessas  tardes  de  destempero,  vistoriando  a  barba  no  espelho  da  sala,  levantei  a primeira  moita  de  cabelo  arruinado  —  uma  touceira já  em  andamento  para  o  esbranquiçado sujo.  Minha  vaidade  gemeu.  Juca  Azeredo,  estando  em  pernoite  no  Sobradinho,  foi  logo chamado:    — Seu compadre, venha ver, venha ver !    E mais achegado ao espelho:    — Estou virando lobisomem.    O  primo,  que  gozava  o  palito  da  digestão  em  cadeira  preguiçosa,  sem  sair  dos  seus confortos, armou deboche. Que eu deixasse a barba de lado e cuidasse da barriga:    — É pança demais para um coronel só.    Num repente, sem querer, apalpei a parte denegrida pela mangação de Juca Azeredo e nesse apalpar tive um desgosto. De fato, a barriga dobrava, em jeito de beiço, por cima do cinturão largo.  Ia  ficar  talqualmente  o  velho  Pedro  Pita,  que  não  via  o  birro  desde  muitos  anos  para trás:    — Que desgraça! Pedro Pita sem tirar nem botar.    De noite, em conferência de travesseiro, deliberei tomar estado. Não ia deixar que a pança crescesse,  de  não  caber  em porta, para pedir  costela  de  moça,  que  nenhum pai  consentia  em tamanho  despautério.  O  melhor  era  apregoar  nos  pastos  que  o  coronel  Ponciano  de  Azeredo Furtado andava atrás de menina donzela que quisesse tomar conta do Sobradinho. Bem pensei, bem executei. Lá uma tarde mais ventosa, mandei chamar Juquinha Quintanilha, conhecedor de curral como ninguém. Que ele vasculhasse os ermos e desentocasse, em casa de família, moça aparelhada de todos os comprovantes, capaz de tomar estado comigo. E como ordem final: 
   —  Se  o  coronel  agradar da peça, mando limpar  os impedimentos  e  correr  os proclamas na Justiça.    O mulato coçou o queixo, mostrou o dente de ouro e despachou a incumbência:    — Dama do gosto do coronel não tem em cem léguas em derredor deste assoalho.    Perdi as estribeiras:    — Não tem?  Por  que não tem,  seu  Quintanilha?  Sou  capenga,  sou  ladrão  de  cavalo? Ando eu ou não ando em dia com os dízimos e impostos?    Juquinha  embuchou.  Um  par  de  semanas  depois,  numa  das  minhas  idas  a  Santo  Amaro, toquei  no  caso  de  modo  a  ouvir  o  parecer  de  Juju  Bezerra,  dono  da  Farmácia  Esperança  e major  com  dois  meganhas  às  ordens.  Era  autoridade  de  soltar  e  prender,  que  para  isso  tinha carta branca do governo. De processo e arrazoado da Justiça, Bezerra nem queria ouvir falar. Seu  assunto  de  predileto  era  rabo  de  saia,  no  que  podia  ostentar  anel  de  doutor  dos  mais formados. Vivia a par de todas as sem-vergonhices dos Moulin-Rouge e casas de pândega:    —  Coronel,  desembarcou  em  Campos  uma  francesada  de  amolecer  um  frade.  Tudo  de imbigo de fora.    Largava Juju as  suas responsabilidades de nomeado do governo e caía na primeira fila dos teatros. Ficou muito afeiçoado a mim pelo ajutório que dei a ele ao chegar a Santo Amaro para abrir  um  comércio  de  poções  e  sinapismos.  Estando  eu  presente,  ninguém  podia  contar  com Juju Bezerra que virava carrapato do meu paletó. Deixava de lado aviamento de receita  e até providência  de  prende  e  solta  para  gozar  da  minha  pessoa.  Quem  visse  a  gente  na  Farmácia Esperança, eu barbudão e ele rentoso no meu ouvido, ia cuidar que o assunto de principal era severista,  roubo  de  gado  ou  negócio  de  dinheiros.  Pois  o  que  mais  trafegava  na  cabeça  do major era canalhismo. O povo de  Santo Amaro falava de uma fazendola que Juju mantinha em lugar longe. Comigo, irmão da mesma opa, o major abria a caixa de guardados.  Só num retiro de Boa Vista, perto  do mar,  sustentava  de  anel no  dedo,  como  se  casado  fosse,  cinco mulatas de fina escolha:    — Tudo virou mulher na minha mão. Sou autor de todas elas.    Quando  levei  ao  conhecimento  de  Juju  a  determinância  de  tomar  estado,  o  major  deu  um pulo:    — Não faça uma desgraça dessas! Do que vosmecê carece é de uma boa teúda e manteúda.    E  em  segredo,  como  era  bem  do  seu  falar,  deu  a  conhecer  as  belezas  de  uma  certa  dona Alonsa  dos  Santos,  que  andava  de  passagem  por  São  Gonçalo.  Debruçado  no  balcão  da Farmácia  Esperança, ponta  da  língua  de  fora  e  lápis no  dedo,  Juju passou  a  figurar no  limpo do papel as frentes e partes subalternas da mulata:    —  É  assim,  coronel,  dentro  deste  conforme.  Cada  compartimento,  cada  repartição  de endoidar até desembargador jubilado.    O  libertino  de  meu  olho  não  perdia  um  riscado  do  major,  mas  como  afunilasse  demais  a cintura mandei que tivesse cuidado:    — Assim quebra, seu compadre! Nem tanajura tem esse porte.    Bezerra,  deixando  de  lado  o  lápis,  garantiu  que  dona Alonsa  dos  Santos  era  guarnecida  do mais vistoso par de popas que ele tinha deitado vista:    — Chega tremer de marola no debaixo dos cetins.    Com o peso do charuto e a pouca vergonha do major, meu beiço babava de gozo. Recostado no balcão, deliberei seguir o conselho de Juju: 
   — Negócio fechado, seu Bezerra. Vou ver essa dona Alonsa dos Santos.    Mas de novo no  Sobradinho, longe do canto de  sereia do major, dei meia-volta na decisão. Afinal   de   contas,   eu   era  homem   de   dinheiro,   sujeito   de   Irmandade,   com   assento  nas deliberações na  Santa  Casa  das  Misericórdias.  Que  ia  dizer  o povo  severão  do  Foro  quando soubesse   dos  meus   desmandos   em   colchão   de  moça   de   casa  montada?  Do  reverendo Malaquias  nem  era  bom  relembrar.  Arrumava  logo  bula  de  bispo  contra  mim.  Ia  proceder como procedeu  com  Juju  Bezerra,  que  não possuía  direito  nem  de pisar pedra  de  sua  igreja. Fez  o  reverendo  tudo  para  que  o  major  deixasse  o  caminho  da  negridão.  Deu  conselho, aprontou   sermão.   Pediu   até   que   eu,   graduado   de   patente   superior,   chamasse   Juju   à responsabilidade:    — É de sua alçada, é de sua alçada.    Ri,  nos  íntimos,  da  ideia.  Logo  quem  foi  o  padre  escolher !  Por  fora,  em  vista  da  minha barba graúda e meu falar grosso, eu aparentava figura recatosa. No forro de dentro, o coronel do  Sobradinho  era  atochado  de  safadeza, pior  cem vezes  que  o  tal bode  da  arca  do  Dilúvio, servido  tanto  tempo  por  uma  cabrita  só.  Recusei  a  incumbência.  Era  sujeito  de  dar  tudo: capela, imagem de santo, paramentos de altar e estipêndio para os necessitados, menos isso de apresentar conselhos a Juju Bezerra:    — Menos isso, meu bom reverendo.    Malaquias,  mão  internada  na  batina,  contou  as  pedras  da  sacristia.  E  foi  em  funda  tristeza que falou da vida trevosa que esperava Bezerra. Ia, sem apelo ou agravo, cair na labareda dos infernos:    — É o que espera quem vive na impiedade e no nojo.    Tremi nos  alicerces  figurando  o major  em trabalho  de brasa.  O padre  fez  o  sinal  da  cruz  e cheguei a  sentir em derredor aquele vento de coisa chamuscada. Tanto que disse de mim para mim:    — Juju está frito!    Pois não ia eu, por uma bobagem de teúda e manteúda, cair no mesmo dislate. O melhor era dar  uma  rebusca  nos  pastos,  ver  moça  educada  e  preparar  maridança.  Dentro  desse  pensar, comecei  a  inquirir  um  e  outro.  E  uma  tarde,  enquanto  presidia  um  aparte  de  gado,  catei conversa  de  Antão  Pereira  a  respeito  das  meninas  de  Pires  de  Melo,  que  uma  andava  em preparativo  de  noiva.  Em  bilhete,  pedi  que  Juquinha  desse  um  pulo  no  Sobradinho.  Sem tardança,  na  poeira  do  recadeiro,  apareceu  o  mulato.  Virei  e  mexi,  falei  de  uma  compra  de gado do Piauí já apalavrada e de um replantio de pasto que desejava fazer no findar das águas. Acabada  tal  conversa,  entrei  no  mérito  da  questão.  E  foi  torcendo  a  barba  que  indaguei  do paradeiro das meninas de Pires de Melo e se existia alguma madurinha em ponto de véu e flor de laranjeira:    — O compadre tem notícias delas?    Sem delonga, o mulato matou meu desejo. Uma estava compromissada com moço da cidade e a outrazinha, dona Beatriz de Melo, era ainda muito tenra:    — Não aguenta responsabilidade, coronel.    E  mais  não  disse  Juquinha,  que  em  verdade  não  era  boca  de  muito  dizer.  De  tarde,  bem comido  e palitado,  o  mulato  voltou  a  tempo  de  chegar  a  Mata-Cavalo  na primeira  estrela  da noite. Com Juquinha pelas costas larguei no fundo do baú a ideia de casamento. E só pensei no compadre  dois  domingos  adiante, por ter recebido  convite para  aparecer  em Mata-Cavalo no 
fim da semana, uma vez que dona Alvarina queria apresentar ao meu garfo leitão criado a bem dizer  em  regalia  de  filho.  Não  podia  de  negar  pedido  de  uma  senhora  das  bondades  da comadre. Agradeci:    — Diga aos compadres que macaco não rejeita banana.    Como fosse mês de inhambu, preparei espingarda de fogo delicado e no primeiro clarão do sábado  parti  para  satisfazer  o  compromisso  do  leitão.  No  caminho,  num  mato  de  boas madeiras, chamei inhambu no pio. Veio um, dois e três, e eu, fogo na barriga do freguês. Atirei como  quis  e  ainda  por  vadiagem  esbagacei  um  gaviãozinho  papa-pinto  que  vasculhava  o telhado  do  capoeirão.  Chegado  a  Paus  Amarelos,  atrasei  a  viagem  de  modo  a  não  aparecer adiantado na  mesa  de  Juquinha.  Aceitei  café  de  caneca  de uns  tropeiros  em  serviço  de  levar mantimentos  a  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos.  O  mestre  deles,  Nico  Ferreira,  às  vezes  dava entrada no  Sobradinho para refrescar o casco dos burros. Era muito ciumento da madrinha da tropa,  que  ele  tratava  como  se  fosse  moça,  dentro  de  todo  o  respeito  e  cuidado.  A  bichinha trazia  sineta de prata e lenço vermelho na pescoceira. Indaguei do passadio dela  e com pesar soube que andava derreada, comida de bicheira. De imediato aconselhei Nico a limpar a parte sofrida com fumo de rolo e cataplasma de alho e enxofre. E ajuntei:    — Fora um bom par de reza, que é o que mais garante a cura.    No bafo  do meio-dia,  sol  a pino, pisei  chão  de minha herança. Antes  de  adentrar  a pata  de cavalo  na  direção  da  casa  da  residência,  passei  a  vista  de  dono  pelos  pastos  e  benfeitorias, cada  melhoramento  mais  avantajado  do  que  o  outro.  Mesmo  as  várzeas  infestadas  de vassourinha,  que  sempre  foi  a praga  da terra  de mais raiz  e manha, logo pegaram, no trato  de Quintanilha,  viço  de  capim  novo,  capaz  de  aguentar,  em  meio  alqueire,  casco  de  inúmeros gados. Vistoriada a herança, tomei a vereda da casa dos compadres, onde entrei na traição. Do portal, escondido pela macega das trepadeiras, engrossei a fala:    — Onde anda um tal de Juquinha Quintanilha, compadre de um tal de Ponciano de Azeredo Furtado que só sabe montar onça-pintada?    A resposta apareceu em formato de moça vistosa, parada no alpendre, flor no cabelo e livro debaixo  do braço.  E  foi  assim  de  surpresa,  que  conheci  Isabel  Pimenta,  de variadas belezas, capaz de meter no  chinelo  as próprias meninas das ribaltas. Enxugando  as mãos no  avental,  a comadre Alvarina  correu do  fundo da  cozinha, toda  embargada pela minha presença.  Chamou a moça:    — Prima, venha conhecer o compadre.    Curvei,  como  bodoque  de  bugre,  os  dois  metros  do  coronel,  pois  quando  quero  nenhum galante  da  cidade pode  comigo  em mesura  e vassalagem. Não  arrematei  a  cortesia  em beija- mão porque sou de entender que em terra braba de pasto não calha tal etiqueta. A moça Isabel, que era de fino trato, rasgou seda:    — Muita honra, coronel.    Respondi no mesmo pé de educação:    — A honra é minha e dela não abro mão.    A  comadre,  já  alvoroçada,  pegou  meu  chapéu.  Que  eu  estivesse  em  casa,  que  tirasse palestra  na  companhia  da  prima  enquanto  mandava  chamar  Juquinha,  metido  em  obra  de cacimba,  a  um  grito  da  varanda.  Respeitoso,  arrumei  comodidade  —  ela  na  cadeira  de balanço e eu em canto de sofá. Por mal dos pecados, ao cruzar a perna reparei nos estragos da botina. Rapidinho recolhi as avarias no debaixo do assento. Era de  sem pressa e macia a fala 
da moça Isabel, modo que ligeiro cativou a minha natureza educada. Disse que muito conhecia o coronel de nome, das cartas e palestras de Alvarina:    — A prima não fala em outra coisa.    De novo, como compete a sujeito ilustrado, curvei o cangote. Com pouco mais, navegava eu nas  intimidades  da  menina.  Ministrava  aula  em  escola  da  cidade,  no  Caju.  Mas  afetada  de tosse comprida, veio tirar as convalescenças em Mata-Cavalo:    — Cheguei no começo da semana e já ganhei dois quilos.    Não perdi vaza:    —  Disponha,  dona  Isabel,  dos  meus  poucos  préstimos.  Conheço  uma  beberagem  de garrafada que é um coice em tais incômodos.    A mestra de letras apresentou aquele riso de moça nova e juro que senti seu bafo de flor na sala  toda.  Agradeceu,  como  dama  educada  sabe  agradecer.  Já  andava  no  fim  da  doença, debelada em receita de doutor. E na brincadeira:    — Fica para a próxima, coronel.    Do  caso  da  tosse  comprida  pulou  para  assunto  mais  fino.  Era  muito  inclinada  a  cuidar  de jardim e estava de namoro com uma plantação de cravo atrás da casa:    — Está uma beleza. Quero que o coronel veja.    E apontou, virando o busto, o vaso de barro onde um par de cravos farreava na comparsaria de uma folhagem de jardim. Com essa manobra, fiquei livre para averiguar todas as bondades de nascença de dona Isabel — um morenão puxado a canela, olho de água e beiço de colchão. Se  eu  caísse  nessas  benfeitorias  e  recurvados  nunca  mais  ninguém  ia  ter  notícia  do  coronel Ponciano  de  Azeredo  Furtado.  Nunca  mais!  Lambi  a  boca  diante  de  tanta  organização  de beleza  e  logo  figurei  a  minha  pessoa  no  altar  de  Santo  Amaro,  sermão  no  ouvido  e  a  cama larga do Sobradinho esperando por mim e pelos acompanhamentos de dona Isabel Pimenta. De pronto  fui  arrancado  dessas  boas  invenções  porque  era  aparecido  Juquinha  Quintanilha.  O dente de ouro do compadre era contentamento puro:    — Coronel, arreleve a demora.    Veio  abraço,  veio  assunto  de boi.  Logo  arrumou  Quintanilha  meios  e  modos  de  desfazer  o meu conforto. Queria que eu vistoriasse umas obras de carapinagem, um celeiro de milho já no último  prego.  A  contragosto  fui  espiar  o  melhoramento.  Da  varanda,  ao  lado  da  mestra  de letras, dona Alvarina recomendou demora curta:    — O leitão está no ponto.        No  decorrer  de  dois meses não  tive  outro  serviço.  Todo  sábado,  chovesse  ou ventasse,  eu dava  entrada  em  Mata-Cavalo  para  o  ajantarado  da  comadre  Alvarina  e  pelo  cativeiro  dos olhos de água da moça professora. Nunca andei tão embonecado como nesses dias todos. Mas digo de coração aberto que a minha conversa não era calhada para as mimosuras dela. Sempre encontrava  a  menina  afundada  nas  leituras.  Com  modo  fino  e  voz  doce,  eu  condenava  tal proceder :    — Dona Isabel vai acabar turvando as vistas.    Bem  que  eu  apurava  o  coronel.  Vinha  a  Mata-Cavalo  em  água  de  cheiro,  coisa  de  causar admiração  mesmo  ao  nariz  mais  acostumado  a  essa  mimosura.  Só  do  baú  de  um  cometa arrematei  toda  a  praça  de  sabonete,  fora  as  encomendas  que  Salim  Nagibe  trazia  da  cidade. Francisquinha,  por  minha  expressa  deliberação,  dirigia  a  lavagem  de  roupa  do  seu  menino. 
Joguei moleque no polimento da botina,  ao passo que Janj ão  Caramujo  cuidava das pratas da sela e das esporas. O povo fuxicava de tal esmero:    — O coronel tem moça em vista.    Nem  galante  das  ribaltas  podia  comigo.  Quando  retirava  o  lenço  do  bolso  traseiro,  que  é onde  aprecio  guardar  essa  utilidade,  o  cheiro  de  frasco  saltava  longe,  a  ponto  de  dona Alvarina, uma ocasião, dizer em tom finório:    — O compadre anda nos chiques. Parece que vai casar.    Ponderei no mesmo ar brincalhão:    — Ora, dona Alvarina, quem é que vai querer um solteirão como este seu compadre?    Nos  rodados  do  vestido  da  menina  Isabel  meu  atrevimento  encolhia.  A  boca  do  coronel, dona  de  tanta  fala,  nessas  especiais  circunstâncias  perdia  os  venenos.  Lá  uma  vez  ou  outra, mesmo assim em feitio medroso, saía uma inquirição desgovernada:    — Vossa Mercê já foi mordida de cobra?    A  moça  ria  desses  e  outros  despautérios,  que  outra  coisa  não  podia  fazer.  Uma  noite, estando  em gozo  de  cadeira  de balanço no  alpendre, um vaga-lume  acendeu  e  apagou  a brasa do rabo bem junto dela. Logo aproveitei para soltar bobagem:    — Dona Isabel já viu a pessoa de um boitatá?    Não viu, nem  acreditava  em  invencionices  do povo bronco  dos  ermos.  Pois  eu,  em vez  de meter o boitatá no saco, ainda tive o desplante de apresentar aos olhos de água da moça, todo apetrechado e desbatizado, um lobisomem que conheci em dias recuados da infância:    — A menina nem pode fazer ideia. Um monstrão.    A  mestra  de  letras,  no  vaivém  da  cadeira  de  balanço,  aturou  tudo  dentro  dos  bons ensinamentos da educação. A certa altura, eu mesmo achei que era lobisomem demais. Mudei a toada, falei do tempo:    — Vai cair água. O sul está puxando.    Só isso é que  saía da minha ideia, bobajada, tolice de pegador de rês.  Se fosse um caso de lei, rixa na Justiça,  eu  era  coronel  de  obtemperar  a noite toda,  sem vez  de  descanso. Mas  em terreno  de  sentimento,  de rasgar  seda  em  conversa  de moça, nunca  que ninguém podia  contar comigo,  a  não  ser  que  a  parolagem  fosse  entremeada  de  patifaria  e  sucedidos  de  cama  e travesseiro. Então, digo  sem alarde, era eu do maior preparo. Nem mesmo Juj u Bezerra, mais praticado  que um  sultão  das Arábias,  encostava perto  de mim. Dadá Mesquita,  dona  de  casa- de-porta-aberta, sempre dizia:    — Ponciano é de serviço completo…    Por isso, era de muita admiração que um suj eito do meu porte, já dobrado em anos, pegasse tremelique  de taquara nova  diante  da moça professora.  Longe  de Mata-Cavalo, na  estrada  ou na  varanda  do  Sobradinho,  eu  desencorujava.  Todos  os  reprimidos  do  meu  peito,  sem  a presença  da  menina,  vinham  aos borbotões.  Era  cada ponderação  mimosa,  cada  carta  que  eu escrevia  uma  melhor  do  que  outra!  Nos  sozinhos  dessas  conversas,  alisando  e  torcendo  a barba, eu prometia sanar o caso da professora:    — Sábado dou a decisão. Ela vai ver quem é Ponciano de Azeredo Furtado!    Sábado  entrava,  sábado  saía,  e  eu  sem  desemperrar.  Até  que  uma  tarde,  quase  na  data estipulada  para  a  professora  voltar  aos  seus  deveres  da  escola  de  letras,  resolvi  pegar  o assunto na parte  central. Antes, num particular, botei  Juquinha  a par  da  questão.  O  compadre mostrou o dente de ouro e afiançou que fazia gosto no pedido. Pelos regulamentos da cortesia, 
muito  embora  eu  fosse  dono  de  Mata-Cavalo, não podia  deixar  Juquinha  sem  aviso, uma vez que  a  moça  pretendida  morava  em  telhado  de  seu  mando.  Cumprida  essa  educação,  mandei, em  bilhete  torneado,  pedir  conferência  especial  a  dona  Isabel  Pimenta.  A  resposta  veio  na mesma  pata  de  cavalo  —  a  prima  de  dona  Alvarina  esperava  por  mim  sábado,  na  parte  da tarde. Com esse consentido no bolso, gritei para o fundo da cozinha:    — Preciso de farda engomada. Vou enfrentar conferência de cerimônia.    O  resto  da  semana  andei  feliz  como  passarinho.  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  só  faltava voar, tão  leve  ia meu passo.  E  sábado,  dentro  do  comprometido,  entrava  o  coronel  em Mata- Cavalo,  bem  montado  e  melhor  sabonetado.  No  beiçal  da  varanda,  fiz  o  bragado  ficar  nas patas do coice, galhardia que encheu a vista de Juquinha. Um molecote, todo passado a ferro, veio pedir licença para segurar a rédea do patrão. Vestido cheirando a loja, pente trespassado no  cabelo,  dona Alvarina  esperava no  alto  da  escada. Falei baixinho,  só para  o  entendimento do coronel:    — Seu Ponciano, desta vez vai sair compromisso de papel passado e anel no dedo.    No  meu  subir,  as  rosetas  das  esporas  tiniam  na  pedra  e  os  engomados  estalavam  nos j oelhos.  Quintanilha, pouco mais  atrás  de  dona Alvarina, não  cabia na batina  inaugurada.  De fingimento, como manda a cortesia, mostrei espanto:    — Pelos vistos, os compadres vão para festa de batizado.    A  figura  deste  coronel,  uma  estampa  de  atravancar  sala  e  saleta,  tirou  admiração  dos compadres,  acostumados  a  lidar  comigo  no  trivial  do  pano  grosso,  uma  vez  que  farda  era regalia que eu só mostrava em feriado militar ou em procissão, no serviço dos andares e nunca em visita de rotina. E pelo corredor, enquanto manobrava o lenço no rosto, fiz ver a Juquinha os porquês  dos  galões  e  engomados —  em  cerimônia  de pedido um  oficial  não podia  vir  no civil:    — É dos regulamentos, da lei militar.    A moça professora,  com todas  as  suas belezas,  esperava na  sala  de visitas,  ao  lado  de um jarrão  de  dálias  e  cristas-de-galo.  O  vestido  dela,  de  branco  tecido,  apertado  na  cintura  e fofinho nas partes  de baixo, tomava  conta  do  sofá.  Fiz  o pedido  em termos,  sentado na ponta da  cadeira,  lenço metido na  trouxa  da mão.  Tinha  lá  os meus  anos  entrados,  léguas  de pasto, dinheiros  forros  no  Banco  Hipotecário,  ensinamentos  de  escola,  fora  outras  vantagens  como oficial  superior  e  homem  de  Irmandade.  E  dei  o  último  laço  no  peditório  mais  ou  menos assim:    — De Vossa Mercê espero graça favorável.    Ficou de dar resposta assim que falasse aos pais, gente da antiga, toda cheia de inquirições e pormenores. Aplaudi esses cuidados:    — Muito que bem, muito que bem.    Quatro  dias  andados  sobre  tal  atrevimento,  Ponciano,  espora  de  prata  no  pé  e  roupa engomada  no  resto,  levava  a  moça  Isabel  a  Santo  Amaro  para  o  trem  da  tarde.  O  povo  do tráfego  parou  diante  de  minha  esmerada  ilustração  —  barba  em  derrame  pelo  branco  do peitilho  e  na  cumeeira  o  chapéu  das  labutas  do  Foro,  pois  terno  escuro  sempre  pediu  tal arremate.  Pela  primeira  vez  na  vida  lidei  com  folhagem  de  cravo,  um  amarrado  para  vinte despedidas. Dobrada na janela, dona Isabel agradeceu as flores, muito admirada da galhardia da  prenda.  E  enquanto  Juquinha  arrumava  a  bagagem  no  compartimento  das  cargas,  a professora  tirou  o  cravo  mais  saído,  de  vermelhoso  porte,  que  foi  por  ela  beijado  e  a  mim 
devolvido como prova de consideração. E, em voz adoçada, asseverou que nunca ia esquecer tanta bondade junta:    — Muito desvanecida, coronel.    A  máquina  resfolegou,  gemeu  na  ferragem,  bufou  no  arranco  da  saída.  Quintanilha  seguiu viagem na companhia da moça. Precisava dar finalização a uma partida de sal e arame farpado no  comércio  da  cidade.  Chapéu no peito,  em  sinal  de  consideração,  esperei  o  trem  sucumbir na curva. Bem charutado, esfreguei as mãos:    — Estou servido, estou montado. Vou ser pai de muito Azeredinho.    Pisando  alegria,  corri  o  varejo  de  Santo  Amaro  em  busca  de  papel  cheiroso,  que  desse vazão  ao  meu  sentimento  quando  inaugurasse  vaivém  de  correio  com  a  menina  professora. Não  foi  encontrada  a  mercadoria  de  meu  desejo  e  era  de  admirar  que  fosse,  sabido  que  em comércio  bruto  não  tinha  saída  tal  delicadeza.  No  Bazar  Almeida,  que  passava  por  ser  bem sortido, um caixeiro novo pelejou para que eu levasse papel de acabamento grosseiro:    — É do melhor, patrão. É do melhor.    Varejei a caixa nos confins do balcão:    — Requeri folha de escrever e não couro curtido.    E  em  passada  larga,  como  é  do  meu  andar,  saí  rumo  da  casa  do  padre.  Queria  que  o confessor   do   Sobradinho,   antes   de   outro   alguém,   soubesse   da   deliberação   do   coronel Ponciano  de  Azeredo  Furtado.  Já  via  o  reverendo  tossir  sua  tossinha  igrejeira  e  dizer  que  o meu proceder calhava bem:    — Já tardava, já tardava.    Não  tive   ocasião   de   encontrar   o  padre.  Um  menino   de   sacristia,  puxador   de   sino, despachado  como nunca vi,  disse  que  o reverendo, bem  antes  de  aurora, j á  andava no  longe, em lombo de mula, para levar os santos sacramentos a um padecente quase defunto, pelo que a igreja estava a cargo dele:    — Se é causa de batizado ou missa eu dou os recados.    Agradeci e gabei o espevitamento do aprendiz de sacristão:    — O menino é falante, de língua solta. Vai dar um bom sermonista.    Desembaraçado da  sacristia, fui arejar as ideias no balcão de Juj u Bezerra. Distanciado da casa  do  padre,  a  gente  podia,  livre  de  bula  e  excomunhão,  dar  rédea  solta  às  conversas  de rabo de saia. O mulatinho do pilulador, sem retirar a atenção da receita, logo participou:    — Seu Bezerra saiu madrugadinha em viagem do governo.    Sabia  que  era  esse  o  recado  que  o  major  deixava  em  poder  do  aprendiz  quando  afundava nas  safadezas  de  sertão  adentro.  Assim,  sem  rumo,  rolei  espora  e  roseta  na  poeira  de  Santo Amaro,  sempre  admirado  de uns  e  outros,  que  a uns  e  outros  eu  salvava  em  cumprimento  de tirar   o   chapéu,  boa-tarde-como-vai-como-anda-a-obrigação.  Na  responsabilidade   de  um praça, sentinela da Casa da Delegacia, deixei recomendação para Juju Bezerra:    — Diga que é da parte do coronel Ponciano de Azeredo Furtado.    O meganha apresentou a cortesia militar que a mim era devida. Com isso, virei as costas ao povinho  de  Santo  Amaro.  Meti  a  navegação,  um  pata-branca  de  passo  valente,  em  caminho pouco pisado, um corte que bastante barateava a distância entre  Santo Amaro e o  Sobradinho, trilha restingueira, bem nascida para uma tocaia de vingança, braba de trato, onde o que mais dava  era gravatá-de-gancho  e  cabeça-de-frade. Mas  estando de ideia  cravada  em dona Isabel Pimenta, tudo vinha em moldura bonita e até achei bem talhado o canto do peito-ferido, que é 
o bicho de asa mais falso já existido em terra de boi. Ponciano era todo bondade e uma coruja que desse o ar de sua graça não ia receber desconjuro. Digo mais — se não fosse possuído de autoridade militar, peito mais de mando do que para essas teteias de sentimento, abria a goela em  modinha  daquelas  de  meus  tempos  de  serenata.  Em  verdade,  nunca  em  tantos  anos  senti contentamento  igual.  Já  presenciava  a  moça  professora  na  fartura  dos  nove  meses,  na  roupa fofa  de  esperar parteira.  Mais  de  dez Azeredinhos Furtados  era  eu  capaz  de jogar no mundo. Mais de dez!        Por  duas  semanas  contadas  e  esperadas  não  arredei  fundilho  do  Sobradinho.  Meio  olho gastei na vasculhagem das bocas de estrada de onde devia vir a resposta de dona Isabel. Já a comichão  da  impaciência  mexia  comigo  quando,  lá  uma  tardinha  de  sábado,  vi  chegar  Tutu Militão.  Sabia  que  era  o  curador pelo medo  dos moleques, todos  corridos na  frente  da  caixa do  mulato.  Deixou  a  mulinha  nos  cuidados  de  Janj ão  Caramujo  e,  passando  de  largo,  foi ancorar  na  cozinha,  de  modo  a  prestar  obediência  a  dona  Francisquinha.  De  lá,  acabado  o beija-mão,  mandou  uma  fusquinha  pedir  permissão  para  entrar  na  sala  do  coronel.  Pela própria, remeti o consentimento requerido:    — Que venha, que venha.    Militão, respeitoso, apareceu no  seu andar marinheiro, os dedos de anel coçando o queixal encardido. Muito apreciava a educação do curador e era só por brincadeira que eu relembrava o  caso  da  onça-pintada,  quando  Tutu  arranjou modos  de  escapulir na  carcunda  de uma  cobra fugida de sua caixa de peçonha. Sempre atirava em rosto dele essa fraqueza. Por isso, ao ver o curador  na  minha  frente,  fiz  a  indagação  costumeira  a  respeito  da  tal  surucucu  sabida  que entendia língua de gente, que mal escutou falar em onça logo desertou do mando de Tutu:    — Como vai o ensino dela? Já virou doutora?    O  pardavasco,  como  das  outras  tantas  vezes,  não  mastigou  a  resposta.  Pediu  licença  para dizer que não era tanto assim, que o coronel avantajava o aprendizado da minhoca:    — A bem dizer, está nos primeiros abecedários.    Repeli  a  sabedoria  da  surucucu  de  Militão  com um  sucedido  mais  espaventoso,  o  caso  de um jacaré de circo de cavalinhos, meu conhecido dos dias passados. O casca de jaca fazia de um tudo, desde fumar Flor de Ouro a tirar modinha em flauta de barro:    — Jacaré escolado, bicho instruído.    O curador fingiu espanto.  Se não fosse o coronel garantir, era caso de ninguém acreditar. E coçando o queixo:    — Quem haverá de dizer, quem haverá de dizer !    Foi  a  vez  de  Tutu  mandar  de  volta  o  troco  da  minha  molecagem  com  outro  sucedido  de cobra. Desde muito vinha  ele  cevando, no bom  e no melhor, uma jararacuçu  das  amarelas, na esperança de vender a casca da roliça em comércio de sapateiro. Sabedor da intenção de Tutu, a  cobra pronto  deliberou.  Chegado  o tempo  da muda, tanto  esfregou  a jararacuçu  o paletó no pedregulho que acabou chaga só:    — Botei a birrenta no de-molho de arnica para sarar os estragos.    Não pude sustar a gargalhada ao figurar a jararacuçu metida em panos, coberta de cuidados e  sanativos,  amamentada  feito  criança nova.  E brincalhão,  acusei  Tutu  de  grandes  ganhos,  de ter mês  de  correr mais  dinheiro para  o bolso  dele  do  que  os  lucros  de um Bispado  em  ano  e meio de água benta: 
   —  Vosmecê  procede  muito  bem.  Criação  de jararacuçu  é  mais  rendosa  do  que  serviço  de padre e comércio de boi juntos.    Tutu pediu autorização para aclarar a verdade:    —  Se mal respondo,  coronel,  cobra  é negócio dificultoso que não paga nem  a mantença da mula.    Embrulhou  língua  mais  de  hora  comigo.  Lá  fora  a  tarde  apresentava  rabos-de-galo  e carneirinhos  de  nuvens  no  céu.  Esparramado  na  cadeira  de  couro,  eu  picava  Tutu  e  seu comércio de cobra:    — Vosmecê chora de barriga cheia.    Suspiroso,  o  pardavasco  relembrava  outros  passados,  quando  não  dava  vencimento  aos pedidos da pastaria:    — Nem cem dedos tivesse, meu patrão.    E por desdita dele deu de aparecer nas prateleiras das lojas de Santo Amaro e São Gonçalo remédio de  estancar veneno na raiz. Mas  soubesse o povo ignorante dos pastos que uma água de  frasco não podia  correr parelha  com reza  de  fé, uma  simpatia  feita  em nome  de  são Bento ou  outro  qualquer  milagroso  dado  a  desfeitear  maldade  dos  matos.  Por  essas  e  outras  é  que Tutu dava o ofício de curador como morto, sem valimento nos currais. Mês entrava e mês saía e nem um  chamado  de picada  de  lacraia  quanto mais  de  surucucu  ou jararaca.  Qualquer hora encostava a caixa de sanativos e ia trabalhar em outro comércio:    —  Tenho  minha  vocação  de  carapina,  sim  senhor.  Sei  trabalhar  um  vinhático,  um  óleo- vermelho, sim senhor.    Larguei  a  cadeira  tomado  de  abatimento  mortal.  Digo  que  desejei  um  derrame  de  cobras pelo mundo, de todo o tamanho e peçonha, capaz de entupir os embornais de Tutu de prendas e riquezas. Com a chegada da moça portadora de café  e mandioca, tive esse meu pesar cortado no  meio.  O  mulato  gabou  o  biju  e  quis  saber  se  era  do  Sobradinho  ou  comprado  em cargueiros. De pronto matei a indagação:    — Nem uma coisa nem outra. É tapioca do fabrico de Juquinha Quintanilha.    Mal toquei no nome do feitor de Mata-Cavalo e já Tutu batia na testa:    — É verdade. O compadre mandou encomenda de carta.    Parei  a  caneca no  ar,  gogó  afrontado,  enquanto  Tutu  apalpava  os bolsos.  Era  a resposta  de dona Isabel Pimenta. Por dentro, o coração de Ponciano entrou em desgoverno, em cambalhota de bater  forte na parede  do peito. Mesmo  assim,  ainda tive presença para  dizer  que  Tutu não ficasse desensofrido:    —  Não  é  sangria  desatada,  homem.  Deve  ser  aporrinhação  dos  impostos,  encrenca  do governo.    Bem  sabia  eu  que  não  era.  Deixei  a  tapioca  e  fui  pegar  charuto  especial,  que  a  ocasião pedia tamanho regalo. Disfarcei  o  embaraço mandando,  aos berros,  sair  da  sala um molecote ajudante  de  Janj ão  Caramujo  no polimento  dos arreios.  Livre  do  abelhudo,  cortei  no  dente  o Flor  de  Ouro, manobra  em  que  eu  sempre jogava muita perícia.  Isto  feito,  fui bater no  ombro do pardavasco ainda na vassouragem dos bolsos:    — Sai ou não sai esse papel de carta, seu compadre?    Num  estalo,  Tutu  lembrou  que  tinha  acamado  a  encomenda junto  da  caixa  de  sanativos,  na companhia  de  uma  papelada  do  dr.  Caetano  de  Melo.  E  ligeirinho,  com-licença-coronel, venho-j á-coronel,  sumiu  na  escada.  De  volta  trouxe  o  que  eu  mais  queria —  a  carta  de  dona 
Isabel  Pimenta,  que  reconheci  pela  letra  educada,  de  talho  doce.  Na  sofreguidão  de  ler  o trazido, despedi Tutu  a poder de  abraços  e  outras  considerações,  fora uma partida de Flor de Ouro para o gozo dele nos rabos de jantar. Feliz da vida, estipulei que lavasse a boca antes da primeira tragada e ofertasse um charuto à surucucu ensinada em nome do coronel:    — Cobra também aprecia esse deleite.    Revirei  a  encomenda —  lá  aparecia  meu  nome  em  letra  de  moça,  o P  de  Ponciano,  altão, soberbão  e  o A  dos Azeredos todo  floreado,  dentro  do maior  orgulho.  Os  dedos  de mandioca do  coronel,  no  descostume  de  manobrar  peça  delicada,  quase  cometeram  uma  desordem.  A custo,  descasquei  a  encomenda  e  lá  brotou,  toda  cheirosa,  a  carta  da  professora.  Peito afrontado,  perna  tremosa,  entrei  nas  leituras.  Nem  demorou  duas  linhas,  logo  no  rabo  dos cumprimentos  (“Como-vai-como-tem-passado-o-coronel?”),  tive  o  primeiro  desgosto.  Entre desculpas e desculpinhas, a mestra repelia meu pedido. E repelia com parte de que um primo dela,  doutor  formado não  dizia bem  em  que  ofício, vindo  do  Rio  em viagem  especial,  enfiou anel  de  compromisso  no  dedo  dela.  Casava  logo,  que  além  de  ser  do  gosto  da  família  (“O- coronel-sabe-como-é-imposição-de-família”),  vinha  desencravar  um  bem-querer  dos  dias  de brincadeira de escondido, dos seus verdes-anos-de-menina.    — Cachorra!    Que verdes  anos,  que brincadeira  de  escondido,  que nada!  Soubesse  ela  que  eu também já tinha  sido  dado  a  essas  vadiações,  de  deixar  as partes  das  meninas  em  fogo  vivo.  Tanto  que era eu aparecer e logo o recreio acabar, fosse brincadeira de roda, fosse bento-que-bento-é-o- frade, fosse sou-uma-pobre-viúva. Por isso, estava aparelhado para provar que essa vadiagem de escondido não passava de velhacaria.    — Cachorra!    Fazer  um  homem  de  barba,  forrado  de  respeito,  esperar  uma  enfiada  de  dias  para  no finalmente  apresentar  decisão  afrontosa.  Não,  ofensa  de  tamanho  agravo  não  podia  ficar  na prateleira,  sem  resposta  viperina.  Que  ia  dizer  Juju  Bezerra,  que já  dava  a  moça  professora como  pertence  do  Sobradinho?  E  o  velho  Pires  de  Melo,  a  quem  participei,  dentro  das etiquetas,  a  tomada  de  estado?  Juca  Azeredo,  meu  primo  de  Paus  Amarelos,  até  o  pano  da padrinhagem mandou cortar, não levando em conta  Sinhozinho, que amamentava, em chiqueiro novo,  leitoa  para  meu  regalo  da  primeira  noite.  Bem  ponderado,  bem  aquilatado,  eu  saía  de tudo  isso  com  a  patente  denegrida  e  o  galão  desautorado.  Mas  o  que  mais  doía,  picava  pior que espinho de cobra, não era a carta da mestra de letras recheada de traições. Era o vexame da despedida. Eu, militar severão, trocando a aromagem da pólvora por água de cheiro. E não contente de tamanho  subalternismo, ainda compareci de cravo no dedo, talqualmente um vira- bosta qualquer recoberto de mesuras e tremeliques:    — É para o regalo da menina, é para o enfeite da menina.    E  que  serventia  tirei  desse  proceder  floreado?  Nenhuma!  Era  até  de  pensar  que  a  moça professora,    vendo     meu    todo    respeitoso,    dona-Isabel-dá-licença-dona-Isabel-faz-favor, cuidasse  ser eu despreparado para um namoro de repuxão, desses de  segura-mais-embaixo-e- olha-a-porta-que-pode-vir-gente.  Soubesse  ela  que não  existia  outro ninguém mais  atilado  do que eu em abusamento e tomada de confiança. A sem-vergonha confundia um coronel, que tem patente  a  zelar,  com  os  engomadinhos  das  portas  dos  bilhares.  Devia  respeito  a  Juquinha Quintanilha,  quanto  mais  não  fosse  pela  força  do  compadrado.  Juju  Bezerra  é  que  estava sobrecarregado  de razão. Povo  de  saia  que passasse na  distância  do  seu bafo,  fosse  dama  de 
procissão  ou  senhora  de  família,  recheada  de  anca  ou  tábua  de  passar  roupa,  entrava  em chumbo:    — Tudo serve, coronel. Todas têm seu proveito.    Ademais, bem pensado e medido, não podia ser donzela garantida moça que teve primo nas infâncias,   acostumada   a  praticar   atos  nas  brincadeiras   de   escondido.   Sabia   eu   lá   das exorbitâncias  ministradas  no  debaixo  das  escadas,  nos  fundos  das  chácaras,  nas  vadiações dela  pelos  quartos  e  no  atrás  dos  armários?  Nunca  que  podia  jurar  que  fosse  donzela  de primeira mão:    — Nunca!    Fui  dormir  no  roçar  da  meia-noite,  testa  cansada  e  barba  dorida  de  tanto  ser  repuxada  e destorcida,  pois  é  esse  utensílio  que  mais  sofre  nos  meus  destemperos.  E  grande  trabalheira tive para meter em seus negros covis os serpentões que assobiavam no peito do coronel. Rolei de um beiral  a  outro  da  cama — uma peça  de  lei,  lavrada nas  cabeceiras,  que presidiu muita safadeza  de  Azeredo  Furtado  e  capaz  ainda  de  aguentar,  como  apregoava  Juju  Bezerra,  as maiores inaugurações de lua de mel:    — Berço de barão, coronel, como não existe mais.    Essas e outras parolagens de travesseiro,  e mais o pio das corujas, deram comigo no  sono. Lá bem entrado  em horas, acordei de um pesadelo, barba molhada, peito  empapado. O tempo tinha mudado  e um  sul ventoso varria  o  quarto. Fui  conferir  as taramelas  e  a vidraça mostrou um ninho  de  corisco  que  crescia no  lado  da  costa. Puxei  a  coberta  e  de novo  caí na  garra  do pesadelo. Bichos de duas cabeças,  só existidos nos dias em que  são Jorge andou purgando os pecados  do mundo, vieram  lamber  as pernas  e  a barba  deste  coronel.  Pelas paredes  escorria baba de lesma e da cumeeira, como cipó-de-cordão, pendiam gongolôs e outras nascenças das umidades.  Parecia  que  eu  andava  no  fundo  de  uma  cacimba,  de  onde  minava  tudo  que  era maldade. Um sapo de canela cabeluda e dente velho de desembargador jubilado debochava de mim em farreagem com lacraias e minhocões comedores de barra. Gritei dentro do pesadelo:    — Vai debochar da mãe, bicho excomungado!    Debatia  eu  esses  e  outros  casos  próprios  dos  pesadelos,  quando  um  trovão  sacudiu  o Sobradinho na pedra mais enterrada. No alumiado do corisco, avistei o coronel em formato de anjo,  asa  dourada,  igualzinho  aos  talhados para  a  igreja  de  Santo  Amaro. Nisso,  na porta  do quarto, o Tinhoso de pata de bode espiou por trás do  seu olhinho de fogo. Já pulado da cama, chamei pelos santos de minha devoção:    — São Jorge, santo Onofre, são José!    Logo  o  aparecido perdeu  a  feição de  cornudo  e virou Francisquinha, que veio ver  se  o  seu menino  estava  a  gosto,  se não tinha  esquecido janela  aberta na trovoada.  O  lampião  da velha esmiuçou  trancas  e  taramelas  e  pronto  sumiu  no  corredor.  Ficou  no  vento  aquele  pedaço  de reza  em  louvor  de  santa  Bárbara  e  de  novo  embrenhei  os  passos  em  nação  de  gongolôs  e minhoca  de  leite.  Andava  eu  na  beira  de  um  brejal  carrasquento,  lugar  de  miasma  e  febre podre, mais  sozinho do que um  condenado. Nem  arvoredo, nem  asa. Tudo mormaço, quentura de fornalha. Do lonjal uma garganta de penitente chamava meu nome:    — Ponciano! Ponciano!    Larguei o pé em desenfreada carreira, fraqueza que nem em  sonho é permitida a um militar graduado.  Nesse  correr,  por  cima  de  plantação  de  carrapicho  e  vassourinha,  a  roseta  da espora  engasgou  numa  embira-de-frade  e  lá  foi  o  coronel  ao  barro,  com  estrondo  e  desonra. 
Acordei no barulho da queda e em hora de ver meus dois metros estabelecidos no assoalho. A cama  parecia  uma  desordem,  um  campo  de  batalha,  lençol  em  trouxa,  travesseiro  no  chão. Aproveitei  o  contratempo  para  azeitar  na  moringa  a  goela  ressequida  e  animar  a  língua  do lampião. Lá fora imperava o corisco e era faísca tanta que um bicho da noite,  sei lá  se coruja ou  marrequinha-irerê,  veio bater  de  contra  a  vidraça. Não perdi  vaza,  desconj urei  o perdido da escuridão:    — Vai bater na janela de Satanás!    Dormi ninado pela  chuva. De manhã,  água no telhado,  quedei na moleza  da  cama,  levanta- não-levanta, cabeça de chumbo, perna de pilão. Uma ponta de dor, nascida na pá, rodeava em abraço  dolorido  a  pessoa  toda  do  coronel.  Francisquinha,  a  par  da  noite  de  lobisomem  que passei,  encheu  o  seu  menino  de  chá  de  descarrego  e  macela  limpadeira  da  entranha.  Não satisfeita,  procedeu  a  uma  fumegação  reforçada  de  reza,  que  algum  olho-grande  podia  estar encravado em mim. A custo, já manhã adiantada, larguei a cama para desempenar as juntas no corredor. Da janela, olhei o céu  sujo, de nuvens enroladas, cada manta escura mais que outra. Fazia  dó presenciar  as  casuarinas  de  Janj ão  Caramujo  debulhadas  em  água,  do  que resultava uma tristeza de cemitério, de coisa morta. Isso mais amoleceu o coronel. Fui desgastar o peso dessa  morrinha  rebatendo  na  pena  as  desconsiderações  de  dona  Isabel  Pimenta.  O  dia  todo andei  em  trabalho  de papel —  escreve, rasga,  emenda.  Quem  visse  o  meu proceder, rabo  da caneta na testa, no  avivamento  das  ideias,  ia  cuidar  que voltei  ao  estudo  dos  livros.  Cansado de rabiscar, cabeça em fogo, tranquei o assunto na gaveta:    — Não vou rebaixar a patente respondendo de mão própria.    Na  primeira  ocasião,  pedia  ao  dr.  Pernambuco  Nogueira  que  escurecesse  umas  letras  no papel de modo a dar o caso da professora por acabado. Tomada a deliberação (“Coisa curta e grossa,   doutor”),   fui   desbastar   as  mágoas  na   camaradagem   de  um   charuto,  na  paz   da espreguiçadeira.  No  entrelaçado  da  fumaça  eu  divisava  o  que  bem  queria:  cabeças  de  anjo, perna  de moça, bois  e uma imensidão  de  carneirinhos  de Nosso  Senhor.  Sempre muito prezei as  invencionices  da  fumaça. Pois  andava  eu nessa vadiagem  quando, no  entrar  da noite,  senti de novo aquele arrepio malino que requeria cama. Fiz a vontade dele e no cobertor sufoquei a tremedeira. Navegava  eu  outra  vez  em  terra  de  cobra,  cada  qual  mais  enrolada. Na  madorna chamei Tutu Militão.  Onde  estava, meu Deus,  a  sua  caixa  de peçonha? Dormi  em  quentura  de forno,  sem lugar certo no colchão. Acordei, lá  sei a que horas, alagado de  suor. A matraca do queixo tinha parado. Do fundo do  Sobradinho vinha um cheiro de vela e um miudinho de reza atrás  dele.  A  custo,  cai-não-cai,  saí  corredor  afora.  Talvez  que  o  coronel,  de  patente  e regalias, já estivesse no céu e sem notícia do acontecido. Por medida de segurança apalpei as partes fracas e dei uma volta na barba, tudo achando de conforme. Não careci de ir longe — o cantochão,  que  eu  pensava  ser  dos  anj os,  era  tirado  pelo  povo  da  cozinha  no  oratório  de Francisquinha.  Cuidava  a  boa  negra  de  espantar,  na  força  da  devoção,  os  quebrantos  do coronel. Em pé de gato voltei ao travesseiro e dormi sono ajuizado. Acordei manhã limpa, céu novinho,  que  a  chuva  lavou  e  ensaboou  em  dois  dias  e  duas  noites.  Da  janela  do  quarto apreciei uma navegação de marrequinha-irerê no céu, na barriga das nuvens. Nem parecia que Ponciano  de  Azeredo  Furtado  tinha  andado  em  nação  de  cobra,  em  cacimba  de  pesadelo.  A ideia andava leve, a perna pedia estrada. Mandei chamar Francisquinha:    — Que novidade é essa de ladainha nos cafundós da noite?    A velha, feliz de ver a barba do seu menino outra vez viçosa, mandou que eu calasse o bico: 
   — Tenha tino, tenha tino.    Fui tirar a ferrugem dos joelhos em passeio manso. Perto das casuarinas, Janj ão Caramujo, já bem entrado na cachaça, esquentava sol. Antão Pereira, às voltas com uma carapinagem nos fundos do Sobradinho, veio salvar o coronel. Reprimi o pouco-caso dele:    — Um cristão morre, é enterrado, e ninguém para segurar a alça do caixão, seu Pereira!    Antão  abriu  a  boca,  enrolou  a  língua,  avermelhou  a  cara,  pois  fala  de  gago  tem  desses atrasos.  E,  logo  que  pôde,  descarregou  a  culpa  do  sumiço  nos  costados  de  João  Ramalho, pegado  que  foi  em  sarampo  fora  de  idade,  desses  de  varejar  o padecente  nos paus  da  cama. Com estima de melhoras, mandei recado ao doente:    — Diga a esse sujeito que sarampo é mazela de menino. Sai nas urinas.    Desembaraçado  de  Antão  de  volta  ao  serrote,  bordejei  a  casa  do  paiol  e  fui  parar  nas cacimbas.  Uma  toada  de  lavadeira  subia  em  derredor,  pelo  que  avivei  a  atenção,  cativo  de tanto  afinado. De pronto dei  com  a  fonte da  cantoria — um par de braços  cresceu por trás de uma cuitezeira em serviço de estender roupa. Era uma sarará da maior presença. No tapume de uma macega escondi meu vulto de modo a aquilatar, em sossego, as partes todas dela. Mirei e remirei tudo  que  a vista  abarcava  e  só  depois, no último repasse,  é  que raspei  o  assoalho  da garganta  em  aviso  de  que  tinha  gente perto. Ao  dar  comigo,  a  sarará não perdeu  a  galhardia. Posta  a  roupa  no  varal,  saiu  em  altivo porte,  com uns balançados  de  sacudir  os  debaixos  do vestido.  Coisa  de  tal  acabamento  merecia  uma  retorcida  de  barba.  Sim  senhor,  a  gente  no detrás das mesmas paredes e eu longe, desinformado de tudo. Era artimanha de Francisquinha, sempre em guarda contra a minha fama de mulatista. Escondia o seu povo como quem esconde arca de ouro. Por isso, ao voltar ao  Sobradinho, mandei chamar a velha. E medindo sala, cara de réu, fiz ver o abuso da agregada. Recriminei o proceder dela, toda apertada nos panos, em risco de rasgar a chita e de dentro dela sair o que devia, por respeito, estar bem escondido:    — Não quero deboche na minha frente!    A velha muito prezou o meu severismo e prometeu torcer a orelha da abusada. Era o alvará que  eu  requeria.  Uma  engomadeira,  fugida  do  engomador,  veio  contar  diz  que  diz  da  sarará, que apreciava passar por branca. Era afilhada de Francisquinha e na água benta, já grandona, recebeu  o nome  de Nazaré. Por  ser  da pá-virada,  foi remetida  à madrinha,  de modo  a perder as  sapequices e mal-educamentos. Mas o que ela mais  sabia fazer era tingir a cara de urucu e avantajar o atrás:    — Sem pejo maior ainda não vi.    De cara amarrada, mandei que a engomadeira fosse tratar dos seus engomados:    — Vosmecê é candongueira. Cuide do ferro de passar. Cada macaco em seu galho.    Em  verdade,  bem  apreciei  o  diz  que  diz  trazido.  Ia  escrever  a  Juju  Bezerra  bilhete descarado. Que ele viesse na asa do vento avaliar a peça que eu tinha em mando, coisa de ser esmerilhada no sabonete e chamada na responsabilidade. Já via o major alegrar o rosto e fazer alarde dos proveitos que eu podia tirar de tão esmerado lombo:    — É montaria para muita sela, para serviço de luxo, coronel.    O  resto  do  dia,  por  mais  que  especulasse,  fiquei  sem  olho  na  sarará.  De  tardinha, recomendei  a  Antão  Pereira  que  aprontasse  cavalo  madrugador,  uma  vez  que  o  primo  Juca Azeredo  requeria  meu  tirocínio  numa  extração  de  madeira.  O  gago  ponderou  que  calhava  a providência — o mês era favorável e não existia lua melhor para trabalho de corte. Não pude contentar o parente Azeredo. Foi a noite chegar e eu recair no bate-queixo. Na intimidade dos 
agasalhos,  o  coronel  suava  como  cavalo  de  légua.  Juju  Bezerra  correu  de  Santo  Amaro  ao Sobradinho.  Chegou  fora  de  hora,  aturdido  com  o  chamado  da  velha  Francisquinha.  Trouxe caixa de farmácia, desde purgativos a lanceta de carnegão. Não precisou de exame demorado. De pronto, meteu o dedo na postema:    — O coronel foi apanhado de tremedeira, maleita da pior.        Dois  meses  de  enfiada  vaguei  no  marasmo  da  malina,  queimado  na  labareda  do  demônio. Purguei pecados que tive e não tive. Nos entrementes da tremedeira, que deu de fazer visita de três em três dias, o major puxava por mim. Lá uma ocasião ordenei que ele desse um repasse na afilhada de Francisquinha. Não careci de mandar duas vezes. Bezerra  sumiu no corredor  e quando voltou foi para gabar a  sarará dos pés ao cabelo. Já estava receitado o reconfortativo que eu devia usar nas convalescenças:    — Beiço de sarará duas vezes no decorrer da semana.    Como Juju Bezerra, de repente, amiudasse as vindas ao Sobradinho, mandei remeter Nazaré a  lugar  seguro  e  de  respeito,  a  barra  da  saia  da  comadre  Alvarina.  A  velha  Francisquinha ainda  quis  denegar  consentimento,  mas  Juquinha  Quintanilha,  industriado  por  mim,  soprou junto dela dois casos de Juju Bezerra e não precisou de entrar no terceiro. A velha encafuou o donzelismo  da  afilhada  em  quarto  de  boa  tranca,  de  onde  só  saiu  para  a  viagem  de  Mata- Cavalo. Como providência de contrabalançar o saco de deboche que era Bezerra, na cauda da semana  vinha  o  reverendo  Malaquias  de  Azevedo.  Comprei  para  o  seu  bem-estar  mulinha passista, de boca educada, um cetim de sela. O padre vinha montado em paina nas estradas do governo ou pelos caminhos de Deus. Francisquinha, de padre dentro de casa, vivia em grande orgulho. O batina, ao pisar soleira do  Sobradinho, já encontrava a sua bacia de água esperta e toalha  nova.  Toda  embonecada,  vestido  esmaltado  na  goma,  a  velha  puxava  o  cordão  das negrinhas  ao  serviço  do  padre.  Do  cadeirão  de  descanso,  pé  no  banho-maria,  espalhava  o reverendo  benzedura  e  outros  benefícios  dos  frades.  Das  casuarinas  de  Janj ão  Caramujo  ao varandão  do  Sobradinho  era  aquela  corda  de  gente  atrás  do beija-mão. Malaquias ranzinzava por  nada,  como  se  o  povo  dos  pastos  fosse  um  magote  de  emporcalhados,  que  vivesse  nas maldades do pecado. Gritava com um, que todo o seu rebanho o velho conhecia pelo nome:    — Seu Micael, sou sabedor de que vosmecê não sai da jogatina de vintém.    Gritava com outro:    — Seu Pedro Lima, fale rente de mim que quero conhecer a marca de sua cachaça.    Mas ninguém deixava o beija-mão do padre de bolso vazio. Era um fortificante, um xarope, um  sal  amargo  para  desempestiar  a  tripa  ou  desimpedir  o  rim,  fora  munição  de  boca  ou fazenda  de  camisa.  Sábado  o  padre  dedicava  a  essas  rotinas.  E  no  domingo,  no  fresco  do orvalho,  é  que  saía  em  missão  de  batizado,  na  limpeza  dos  currais.  Era  um  derrame  sem medida  de  água benta na  cabeça  dos pagãozinhos,  a ponto  de Juju Bezerra  dizer,  em  segredo, que  se  a  pantaneira  do  coronel  durasse  tempo  dilatado,  Malaquias  de  Azevedo  acabava batizando até pé de pau:    —  Não  sobra  nada,  meu  coronel.  Nem  vassourinha,  nem  embira-de-macaco  ou  melão-de- são-caetano. Entra tudo no sal de água benta.    Desde  que  caí nas  funduras  da malina não  existia  sábado  sem reza no  Sobradinho.  Mesmo assim,  tão  bem  amparado  de  religião,  a  tremedeira  não  encolhia.  Era  visita  marcada  no relógio. De tarde, na asa do primeiro morcego, num entremeio de três dias chegava a maldosa. 
Vinha  de  leve,  até  dava  gostinho bom no  começo. Depois,  endurava. Dentro  do  camisolão  eu batia matraca por horas bem  sofridas. Juquinha  Quintanilha,  em vista  das  amarelidões  do  seu compadre, quis que eu fosse pegar tratamento na cidade:    — Só doutor dá jeito.    Rejeitei o conselho:    — Que doutor, que nada! Na semana entrante corro esta pestilência de uma vez.    Dona  Alvarina,  coitada,  veio  na  poeira  do  marido.  Queria  cuidar  do  compadre,  ajudar  no mando  da  casa.  A  princesona  do  Sobradinho,  a  velha  Francisquinha,  apresentou  embaraço. Resmungou,  chorou. No  sofrimento  de  seu menino ninguém metia  o bedelho. Piores maldades teve meu avô Simeão e nem por isso veio gente de fora:    — Não careceu, não careceu.    A terçã  do  coronel  levantou povo  que  eu nunca vi,  que nem  de  ideia  sabia  existir, mas  que alguma vez recebeu uma bondade minha,  em  empréstimo  ou  ajutório. Dioguinho do Poço, das lonjuras  do  sem-fim,  encomendou  promessa,  uma  devoção  nunca  vista  —  um  Ponciano  de Azeredo   Furtado   todo   de   cera,   quase   dois   metros   de   obra.   Também   cativaram   meu reconhecimento  os  interesses  de  Tutu  Militão.  Sua  caixa  de  cobra,  chovesse  ou  fizesse  sol, vinha todo  domingo  saber  como  andava  o  doente.  Por  imposição  do padre,  o mulato  deixava as  suas  peçonhentas  em  lugar  apartado.  Malaquias  não  podia  nem  ouvir  falar  em  cobra  sem logo  pegar  arrepio,  nojo  que  não  estava  nele  debelar.  Tutu,  todo  bem  servido  de  mesuras, concordava:    — O meu bom padrinho manda. Sou católico de santo Onofre e afilhado de são Jorge.    Dos  vizinhos,  não  apareceu  Badejo  dos  Santos,  por  estar  de  costela  derreada,  avaria  que contraiu  em  queda  de  cavalo.  Mandou  recado  e promessa  de  pronta  visita.  Rebati  na  mesma educação  —  se  tivesse  sabido  dos  estragos  era  o  primeiro  a  correr  até  lá  em  viagem  de amizade.  Desfalque  que  mais  senti  foi  o  do  primo  Juca  Azeredo,  no  Rio  de  Janeiro, desembaraçando  da  unha  do  governo  uma  turbina  para  o  seu  fabrico  de  cachaça.  Outro desvelado  foi  Sinhozinho, de não  sair da  cabeceira do doente. Veio morar na boca do quarto, pronto  a  dar  seus  préstimos  de  noite  ou  de  dia.  Ajudava  Francisquinha  e  Juju  Bezerra  no preparo do quinino e beberagens caseiras. Lá uma feita, peguei o velho em labuta que não era sua, pelo que tive de chamar a atenção dele:    —  Que  é  isso,  homem?  Vosmecê,  amigo  de  meu  avô,  que  senta  comigo  na  mesa,  não  é moleque de fazer serviço subalternista.    Apreciava   escutar   o   barulho   da   perna   doente   de   Sinhozinho   no   corredor.   Ria   dos destemperos  dele.  Não  queria  grito  mais  forte  no  por  perto  do  quarto  e  visita  que  chegasse sem moderação recebia reprimenda do velho:    — Vosmecê, meu compadre, não pode deixar o trombone do lado de fora?    Uma  tarde  percebi  Sinhozinho  dizer  que  tinha  chegado  visita  de  cerimônia.  Era  Pires  de Melo. Uma penca  de  agregadas  de  Francisquinha  correu na  limpeza  do  quarto, no  arranjo  da cama. Em tantos anos, era a primeira vez que Pires de Melo machucava soalho do Sobradinho. De roupa mudada, lençol novo, recebi o vizinho  sentado a meio pau, costas resguardadas nos travesseiros.  Pires  de  Melo  falou  pouco,  de  modo  a  não  cansar  o  padecente,  como  manda  a etiqueta.  E  quando  o  velho,  acapangado  por  Antão  Pereira  e  Sinhozinho  Manco,  deixou  o quarto,  recaí  na  dormência  e  nesse  desfalecimento  eu  ainda  escutava  o  retinido  do  correntão do relógio  de  Pires  de  Melo, uma peça  de muito peso  e valimento.  Gostei  que  o vizinho não 
esquentasse  cadeira,  pois  na  visita  da  malina  eu  era  homem  desgovernado.  Ninguém  ficasse perto  de  mim  que  escutava  bobagem.  O  febrão  nascido  da  água  choca  empurrava  para  fora todo  o  lixo  que  o  coronel  guardava por  dentro,  de  não  ficar  impureza  que  não  viesse  a  furo. Uma ocasião, Juju Bezerra foi compelido a trancar a porta tal a grandeza de nome feio que eu soltei  na  fervura  da  terçã.  Caso  passado,  o  major  relatou,  em  risadaria,  os  impropérios  que apresentei no pesadelo. Mais de quarenta nomes cabeludos contou Juju, fora coisa leve, como rabo da mãe, vaca e filho de égua:    —  Sim  senhor,  coronel  Ponciano.  Boca  de  ouro  tem  vosmecê.  Vou  morrer  sem  conhecer outra igual.    Com o envelhecer da mazela, no corpo do  segundo mês, deixei de lado a mania de rabo de saia e entrei nos heroísmos. Falava de brigas, rixas, lutas de ferro e fogo que tive e não tive. O mormaço  do  febrão  pegou  cheiro  de  pólvora,  de  ninguém  entrar  no  quarto   sem  levar incumbência  militar.  Em  grito  de  coronel,  eu  pedia  reforço  de  armas  por  cismar  que  um magote de hereges queria tomar o  Sobradinho pelo cano da chaminé. Numa dessas inventorias do  delírio,  apareci  de  camisolão  na  cozinha  e  desandei  a  dar  ordens  e  a  fazer  desmandos. Correu  logo  que  o  coronel  do  Sobradinho  não  dizia  mais  coisa  com  coisa,  fraco  que  estava das  ideias. Danei  ao  saber  do  apregoado  e  danado  fiz ver  a  Sinhozinho  e  Saturnino Barba  de Gato  que  nem  onça-pintada  pôde  comigo  quanto  mais  uma  pantaneira  à  toa,  nascida  dos miasmas  e  águas  chocas.  E  na  barba  dos  dois,  enquanto  metia  a  camisa  dentro  das  calças, garanti:    — Pois muito que bem! Vou dar finalmência a este caso.    Juquinha,  chegado  na  ocasião,  recebeu  incumbência  de  viajar  a  comadre  Alvarina  para  a rua da Jaca com o fim de arejar e polir a minha casa da cidade:    — Vou mostrar, seu compadre, quem é Ponciano de Azeredo Furtado.    Na  visita  do  meio  da  semana  botei  Juju  a  par  da  providência.  Concordou  —  nada  para secar maleita como mudança de ares:    — Faz muito bem. Vou mandar bilhete ao dr. Sousa Bastos.    Uma  quinzena não  era  decorrida  e já  o  coronel,  sem ninguém  esperar,  dava  entrada na rua da Jaca. A comadre Alvarina preparou tudo a contento. A casa das minhas infâncias cheirava a água  e  sabão,  toda  bonita,  lavada  de  ponta  a  ponta.  Juquinha  Quintanilha,  que  veio  comigo, mandou  recado  urgente  ao  doutor  da  recomendação  de  Juju  Bezerra.  Cobertor  na  orelha, esperei  a  visita  de  Sousa  Bastos.  A  tarde  entrou  nas  seis  e  nada  do  tílburi  do  doutor  chegar. Juquinha,  desacostumado  a  lidar  com  gente  formada,  ficou  a  pé,  sem  providência  que  tomar. Por  sorte,  apareceu  no  dia  entrante  o  primo  Juca  Azeredo.  Na  vinda  do  Rio,  ainda  no  trem, soube  do  acontecido.  Correu  ao  Sobradinho  e  de  lá  para  a  rua  da  Jaca.  Nem  em  Paus Amarelos botou o pé:    — Como estava vim, primo Ponciano.    Agradeci  os  interesses  dele,  que  logo  saiu  no  rasto  do  tal  Sousa  Bastos.  O  doutor  teve  o desplante de dizer a Juca Azeredo que não tomava conta de caso novo. Todo o tempo dele era dedicado a doente de cabresto. Quase quebro a cama ao ter conhecimento de tamanha desfeita. Implorei roupa de rua, pois queria exemplar o atrevido, estivesse onde estivesse. O febrão, já conhecedor  do  meu  gênio  atravessado,  adiantou  a  chegada.  Debaixo  de  agasalho,  metido  na fervura,  perambulei  de  pesadelo  em  pesadelo  atrás  de  uns  capetas  vestidos  de  fogo  e  que faziam  pouco-caso  de  Nosso  Senhor.  Exterminei  dois,  restou  um  filhote  de  Satanás  que  não 
pude  dar  morte  porque  a  maleita  abrandou  e  voltei  a  ser  outra  vez  Ponciano  de  Azeredo Furtado,  limpo  de  quebrantos  e  no  vigor  do  meu j uízo.  Apalpando  os  empapuçados  da  cara, obtemperei aporrinhado:    —  Se não acordo,  se a terçã aguentasse o roj ão, o coronel fazia uma limpeza na capetagem do pesadelo.    Juca  Azeredo,  sem  prática  de  pantaneira,  cuidou  que  o  seu  parente  estivesse  para  esticar canela. Trocei dele e da doença:    — Ainda vão inventar mazela capaz de jogar este seu primo no barro do cemitério.    No abrir da noite apareceu na rua da Jaca o tabelião Pergentino de Araújo. A par de que o coronel  seu  amigo  andava  em  rixa  contra  doença  ruim,  veio  em  passeio  de  visita.  Nem demorou  os  óculos no montão  de barba  e  amarelidão  que  eu  era.  Saiu  sem  esquentar  cadeira, na  companhia  de  Juca  Azeredo,  em  busca  de  um  médico  de  sua  especial  confiança,  doutor novo, de canudo ainda molhado dos exames:    — É moço de instrução, com muita fama de competência.    A comadre Alvarina, nos cuidados do meu bem-estar, trouxe bacia e toalha cheirosa para o uso do visitante. Em dormência  fiquei  e, quando dei acordo de mim, já o doutor  era chegado. Bem-falante, como  se conhecesse o coronel desde anos e anos, mandou que eu apresentasse a língua. Fiz a vontade dele e bem um quarto de hora ficou o moço nesse trabalho de apalpa-cá, apalpa-lá,  além  de  esquentar na  cova  do meu braço  o  apurador  de  febre. Acabada  a vistoria, tratou o bom doutor de lavar as mãos na bacia de água limpa. Isso feito, pediu caneta e passou a garatujar no papel letra que só Deus podia entender. Foi quando avisei:    — O doutor tem prazo de mês para dar a minha pessoa por bem curada.    No  acabar  da  primeira  quinzena  vi  que  em  companhia  certa  Pergentino  deixou  o  coronel. Teve  o  doutor meios  e modos  de  arrumar umas pílulas  que  sem mais  aquela  caíram  em  cima do  covil  da pantaneira.  Sem poder botar  a  cabeça  de  fora,  a maldade  deu  de  sair pela urina, em  jorro  vermelhoso.  Juquinha  Quintanilha,  espantado,  indagou  se  esse  proceder  era  do natural da mazela. Sosseguei o compadre:    — É o rabo da doença, a despedida dela. Por mais duas quinzenas vou verter água de barro.    Era janeiro,  mês  de  trovão.  Da  minha  cadeira  de  doente  vi  passar  a  safra  das  cigarras  e entrar   o   tempo   das   quaresmeiras.   Atrás   dos   seus   arroxeados   chegou   aquele   ventinho candeeiro, puxador de friagem. O inverno mostrava o topete. Falei para a comadre Alvarina:    — Já é tempo do coronel deixar o resguardo.    Parece que eu estava adivinhando. Na visita da tarde, o moço doutor, depois de vasculhar o sarro da minha língua e medir a quentura do meu sovaco, deu a sentença final:    — O coronel está livre para outra.    Em pronto momento quis inaugurar caixa de charuto de parceirada com Coelho dos  Santos, que era esse o nome do doutor. Denegou consentimento:    — Mais tarde, mais tarde pode ser.    Caí nos braços  das  convalescenças.  Coelho  dos  Santos  escreveu  em papel  o resguardo  de mesa  que  dona  Alvarina  devia  seguir.  Nem  uma  gordurinha  a  mais,  nem  uma  gordurinha  a menos.  Vez  por  outra,  meu  apetite  militar  requeria  obra  mais  puxada,  um  molho  de  pimenta, uma perna  de  leitão  ou uma posta  de robalo.  O  diacho  é  que não havia modos  de  demover  a comadre  Alvarina  do  estipulado  pelo  doutor.  Tanto  insosso  acabou  por  enfastiar  minha entranha. Coelho dos Santos, com os bons modos que recebeu do berço e do estudo, pediu que 
eu ficasse desensofrido:    — No fim da quinzena vou dar alta ao coronel.    Uma tarde,  sem  aviso  ou bilhete, vejo parar na porta  carro  de  cerimônia.  Era  Pernambuco Nogueira munido de senhora, moça de sala e salão, que mal pisou a soleira da varanda já suas águas  de  frasco  aromavam  a  casa  inteira.  Assim  conheci  dona  Esmeraldina.  O  major  Juju Bezerra,  em  gozo  de  semana  na  rua  da  Jaca,  não  aguentou presença  tão bonita.  Foi  esconder seu  embaraço na  folhagem do jardim. Não precisei de muita vista para  saber que  o doutor de minhas  causas  estava  bem  calçado  de  senhora  —  só  o  par  de  covinhas  do  rosto  dela  era nascença de muita graça. Desde a  entrada, o riso de dona Esmeraldina clareou a  sala, limpou qualquer impedimento entre as partes. Era como se fosse pessoa do meu conhecer antigo. Não tive  canseira  de  aguentar,  de  sozinho,  o  repuxo  da  conversa.  Gabou,  ajudada  pelo  dr. Nogueira, o arranjo da casa, o asseio dos meus pertences:    — O coronel está de parabéns. Tem muito gosto.    Mas  foi  demora  de  médico  a  visita  dos  Nogueira.  A  bem  dizer,  entraram  e  saíram  num redemoinho. Nem houve ocasião para a comadre Alvarina  servir licor de jenipapo. O doutor, chapéu na mão, pediu desculpas:    — Fica para outra vez. Aprendi o caminho.    Juju Bezerra,  fora  do  esconderijo  das trepadeiras  e  espadas-de-são-jorge,  correu  ainda  em tempo  de  segurar  pelo  rabo  os  saldos  da  água  de  frasco  de  dona  Esmeraldina.  E  fungando como barrasco em resguardo:    — Seu Ponciano, seu Ponciano! Estou para ver peça mais bem acabada.    Retorci  a  barba,  espichei  o  pernal  no  assoalho.  Juju,  ainda  afrontado  com  tanta  boniteza, desandou  a  discriminar, uma  a uma,  as partes  de  dona  Esmeraldina. Não  desceu  aos  confins. Quedou nas rebordas, nos recheios de cima, pois dona Alvarina veio pedir a presença dele na mesa,  que  o jantar  esfriava  no  prato.  Quis  acompanhar  Bezerra,  espiar  de  longe  a  fartura  do servido,  no  que  não  consentiu  a  comadre.  Ameaçou  levar  ao  conhecimento  de  Coelho  dos Santos as saliências do compadre:    — Remeto queixa ao doutor agora mesmo.    Fui ver da varanda a noite que desembuchava. Era mês de lua grossa e já muita flor estalava de  gozo  entre  o  folhame  do jardim.  Como  o  sereno pudesse trazer  desbenefício  ao meu resto de maleita, tratei  de recolher  o  coronel  a  lugar  seguro.  Sim  senhor ! Bem  agasalhado  de moça andava Pernambuco Nogueira.  Sujeito formado tinha, e  sempre há de ter, dessas vantagens — arrebanhava nas casas de família as peças mais avultadas. Juquinha Quintanilha dizia sempre:    — Nada como uma regalia de anel no dedo.    Perante o espelhão da  sala de visitas empaquei o andar. E recuei espantado — os olhos do coronel soltavam fita de fogo. Por dentro de minha pessoa, de relancinho, contei mais de dúzia e meia de bodes. Não havia dúvida. Ponciano estava curado. 
 Por deliberação do dr. Coelho dos  Santos peguei quinzena de vadiagem em Paus Amarelos, onde  mandava  e  desmandava  o  primo  Juca  Azeredo.  Tive  trato  de  rei.  Tudo  do  melhor  foi reservado para  este  coronel,  que passou  a  dormir  na  cama  mais  macia  e  a  comer  da  comida mais  fina.  Já  o  trabalho  do  fabrico  entrava  nos  estrebuchos  do  fim,  da  moagem  das  últimas canas.  Como  o  doutor  da  minha  cura  estipulasse  banho  de  mar,  manhãzinha  raiada,  eu  tirava asseio de água. A onda vinha, crescia, criava crista — e desovava no cabeludo do meu peito. Era  como  se  batesse  em  rochedo  da  costa,  em  azuada  de  ressaca.  Saído  da  briga  do  mar,  o coronel caía na mesa, em batalha de devastação. De noite, até no turvar do sono, a gente batia carta.  Eu  ganhava  vaza  sobre  vaza  e  Juca  Azeredo,  aporrinhado  de  tanto  tostão  perdido, atirava o baralho longe e resmungava deixando a mesa:    — O primo tem trapaça mais que cigano.    Nesse  viver  descuidoso  ganhei  de  novo  o  que  perdi  na  rixa  contra  a  febre  malina.  No morrer  da  segunda  semana  quase  destronquei uma balança  de  comércio  que  ficou no  debaixo de minha botina. Juca soltou grito brincalhão:    — Nesse andar nem balança de usina aguenta o primo.    O  que  mais  desbeneficiava  o  passadio  de  Paus  Amarelos  era  a  carência  de  rabo  de  saia. Nunca vi nos dias todos de lá uma perna ou anca que quebrasse meu resguardo. Tudo velha de boca  afundada,  onde  dente passou  e morreu  desde muito  inverno,  de jenipapo murcho  ganhar delas em beleza. Gabei as escolhas do primo:    — Sim senhor, seu Juca! Sim senhor ! Nem um frade peneirava igual feiura.    O primo Azeredo, disfarçado, come-mansinho, passava de largo. Apregoava  ser mulherista fora  de Paus Amarelos. No  engenho  era  capado,  exigidor  de respeito. Bem  sabia  eu,  desde  a peripécia do bicho-de-pé do primo Azeredo, que nem tudo era feiura nessa nação de cachaça. Perto  da  casa  dos  vasilhames,  em  chalezinho  avarandado,  imperava  a  obrigação  de  Tude Gomes, dona Mercedes, moça de largas prendas, pouco capinada pela mão do marido, que só guardava carinho para o ponto de aguardente. De tarde, prezava dar meu esticão de perna — a botina  teimava  em  emperrar  na  varandinha  do  mestre  aguardenteiro  em  conversa  leve  de como-vai-dona-Mercedes,   como-vão-seus-lindos-olhos.   Pois   não   pude   esmerilhar,   como queria  e  gosto,  as virtudes  da moça,  logo mandada  sã  e  salva  longe  da minha barba.  Cabrito bom não berra — nem notícias dela pedi. Tratei de dar  finalmência  ao meu passadio de Paus Amarelos. Certa noite, na cauda do jantar, estipulei:    — Amanhã, sem mais tardança, boto o coronel na estrada.    E já  andava  de  mala  arrumada,  cavalo  encilhado,  quando primo  Azeredo  implorou  que  eu desse  um  retardo  na  viagem,  precisado  que  estava  de  meu  tirocínio  numa  complicação  de escrituras, por  ser  eu  antigo  aprendiz  de  escrivão  e  sujeito  capaz  de  destorcer uma lei para  o vento que bem entendesse:    — É o que eu digo  sempre. Em duas coisas ninguém pode com o primo Ponciano. Em rabo de saia e artimanha do Foro.    Não cabia denegar a Juca Azeredo, que tanto desvelo mostrou na minha cabeceira, favor tão nanico.  Desarrumei  a  bagagem  e  dei  prazo  de  uma  semana  para  que  aparecesse  com  as escrituras:    — Quero ver se os direitos do primo estão dentro do conforme.    Sem  delonga,  no  fresquinho  da  manhã,  meteu  Juca  cavalo  na  poeira  em  busca  dos  seus instrumentos de posse. Foi  ele  sair  e  entrar  o major  Serapião Lorena,  amarrado  ao primo por laços  de  consideração  e  prestância.  Conhecia  o  major  de  nome  e  pouco  de  pessoa,  duas  ou três vezes  em  cortesia  de  estrada.  Era homem  arredio,  de viver  sozinho.  De pronto  senti  que carregava  pesado  desgosto.  A  sua  pessoinha,  mirrada  de  nascença,  sumiu  no  assento  da cadeira  e  quase  perdi  Lorena  de  vista.  De  fora  restou  aquele  par  de  bigodes  —  pontas descaídas no  lado  da boca, murchadas  como planta  sem  água. Atrás,  o rostinho  do  afrontado dava dó. Indaguei dele qual o caso de tanto incômodo:    — Que tem o major, que parece corrido de lobisomem?    Do fundo da cadeira subiu uma ventania de palavras, uma querendo saltar carniça por cima da  outra.  Falou  que  antes  fosse  lobisomem, maldade  de  todos  conhecida,  descapacitada para aguentar batina de padre ou galho de arruda:    — O caso é outro, do maior embaraço.    Deixei  a  língua  do mirrado trabalhar  em  campo  limpo.  Parecia  Lorena possuído  de bicho- carpinteiro  no  assoalho  da  garganta.  Quando,  no  meio  do  seu  apressadinho,  garantiu  que  um ururau  estava  de moradia  firmada numa  loca  de  sua herança,  quase  deixei  escorrer no  chão  a tesoura com que podava um renque de cabelo crescido no funil do nariz. Armei admiração:    — Não diga, não diga!    Vendo  meu  espanto,  o  major  mais  avivou  a  brabeza  de  bicho.  Era  um jacaré  recoberto  de pedregulho, vindo  dos  dias mais recuados,  de não  existir papel  capaz  de  caber  sua  conta  em anos.  De  noite,  num  lonjal  medido  de  légua  e  meia,  era  só  o  que  dava  —  grito  de ururau acompadrado  com  labareda  dos  demônios.  E,  na  minudência,  relembrava  a  fogueira  do aparecido:    — Solta fogo, sim senhor !    O  caso  era  até  engraçado, pantomima para  charuto novo. E  enquanto preparava  o bocal  do Flor de Ouro, no que sempre boto esmero, Lorena dava andamento às artes do ururau. Em cem braças de costa, onde o amarelão montou ninho, nenhum vivente tinha franquia de passar :    — Nem cavalo, nem gente, nem asa do céu.    Mas  de tudo  isso Lorena  só  levava um  desgosto —  o  de não ter  encontrado  Juca Azeredo, pessoa de muito tirocínio em pendência de tal graveza. E no desabafo:    — Azeredo é que sabe manobrar essas presenças dos infernos.    Por pouco-pouco não engoli o charuto ao ver o parente mencionado como homem animoso, capaz de limpar uma maldade dos ermos. Coitado do primo!  Se  soubesse da prebenda trazida pelo major, era muito Juca Azeredo de pedir asilo no povo estrangeiro. Mas diante de Lorena, tão  vendido  no  concernente  aos poderes  do primo,  não  neguei  a brabeza  dele.  Embarquei  na mesma canoa e dei conhecimento a  Serapião Lorena de umas levadices da breca armadas por Juca Azeredo, nas infâncias de matador de bem-te-vi: 
   — Desencantou um lobisomem, seu compadre!    Para não rir na bochecha da visita, charuto a meio fogo, fui disfarçar na soleira da porta. Lá andava no  céu  dos passarinhos  a  fumaça  do  fabrico.  O  arroto  azedo  da bagaceira, repassado pelos pés de pau  em  flor, perdia  as pestilências  e  chegava  em  forma  aromal  ao meu nariz, do que  aproveitei  para  cair  na  lembrança  de  dona  Esmeraldina  e  seus  avultados.  Debruçado  no corrimão  da  escada,  fui  longe  sem  arredar  botina  do  soalho  de  Juca  Azeredo.  No  fundo  da sala,  o  major  continuava  na  penitência  de  sacudir  pelo  rabo  o  ururau  e  garantir  que  o aparecido largava fogo:    — Mais de um viu e comprova, sim senhor !    Lorena  não  conhecia  Ponciano  e  as  voltas  que  ele  sabia  montar.  No  gozo  de  uma  sem- vergonheira,  como  era  o  j usto  caso  de  dona  Esmeraldina,  o  coronel  ficava  todo  aluado, vaguinho,  vaguinho.  Vez  por  outra,  saído  do  seu  assento,  Lorena  tentava  rasgar  no  dente  do ururau  o  filó  de  minhas  relembranças,  em  trabalho  sem  futuro,  pois  sou  fofo  e  mudo  em  tais alturas.  Para  retirar  Ponciano  de  viagem  tão  distante  precisou  Lorena  dependurar  a  sua pessoinha na manga de meu paletó:    — Coronel, vosmecê permite uma franqueza?    E,  agarrado  nos  meus  panos,  afiançou  que  de  ponta  a  ponta  de  cem  léguas  só  existia  um sujeito capacitado para dar provimento ao caso do ururau:    — Esse um é vosmecê e ninguém mais.    Não comprei a briga na imediata ocasião, como era do seu querer. No gozo do charuto, que já  queimava  no  sabugo,  fiquei  fechado,  desprovido  de  boca.  O  velho  andou  lá  e  cá,  bigode caído,  cangotinho  abaulado,  uma  tristeza  andando  em  botina  de  menino.  Não  sou  homem  de judiar  e  fazer  pouco  de  ninguém.  Diante  Lorena  tão  sumido  e  desajudado,  com  o  rabo  de ururau trespassado na goela, parti em auxílio dele:    — Pois fique sem embaraço. Tomo conta da causa.    Foi como se o major deixasse de lado uma doença ruim, já outro sujeito, renovado e no uso da coragem. Pegou viço o bigode e por baixo do cabeludo escorreu agradecimento para todos os  Azeredos  e  Furtados  antigos  e  de  cem  anos  na  frente.  De posse  de  minha palavra  militar, nem  esperou  o  café  da tarde. Antes  que  eu  apresentasse  embargo,  feliz  da vida, meteu  cavalo no barro. Esperava pelo amigo coronel no dia entrante, mesa aparelhada e quarto lavado:    — Tudo do bom e do melhor.    Cumpri o prometido. Céu ainda estrelado, madrugada longe, viajei na direção do ururau.        Cheguei  no  areal  do  major  noite  feita.  Foi  causa  do  atraso  a  minha  fama  de  grandeza,  que logo correu dianteira, avisando um, avisando outro. Tive que descer de  sela vezes  sem conta. Era  um  café,  uma  tapioca,  uma  peça  de  mesa  que  eu  não  podia  rejeitar  sem  quebra  de educação.  Desentoquei  povo  que  não  via  desde  anos.  Afundei  numa  velharia  de  pensar  que alguns  deles já  dormiam  no  descanso  dos  sete-palmos.  Desembaraçado  de  tanta  cortesia,  de novo  na   estrada,   sobreveio  uma  valente  manta   de   água  no   após  meio-dia.   Os   cargos embrabeceram, os banhados  encheram a pança e água  sobrou até cobrir capim-limão, que é o pasto mais avantajado em altura. Lá tive de mudar o rumo da viagem e meter casco em vereda de pouco uso, umas atafonas de beira-mar. O areal da costa, socado de chuva, dava pata livre em caminho sem fim. Lá uma hora, por estar sendo seguido por um pássaro do mar salgado, de nem saber que raça de asa ele era, determinei que voasse de largo, em distância regulamentar, 
como tem direito todo coronel de patente:    — Do contrário, mando chumbo mortal.    Já nessa altura, cuidadoso de que eu tivesse entrado em mato perdido, mandou o major atrás do  meu  calcanhar  uma  guarnição  de  moleques  apetrechados  de  lamparinas  e  gritos.  Não  vi cheiro  dos  procuradores  e  foi  sozinho  que  pisei  a  soleira  da  porta  de  Serapião  Lorena  com meu grito de presença:    — Sou chegado, sou chegado!    A  casa  andava  em  rebuliço,  um  entra  e  sai  de  formiga  carregadeira,  o  lampião  bem alumiado no centro da  sala. Fui  salvado como doutor em cabeceira de padecente. De um tudo havia  para  mim,  desde  bacia  d ʼágua  a  chinelo  de  corda.  Um  povinho  encardido  espiava  de longe talqualmente bugre das brenhas. Mal liberei as esporas e o capotão da trafegagem, quis saber em que especiais circunstâncias encontraram o amarelão:    — De noite ou de dia, com sol ou em hora das estrelas, amigo Lorena?    Foi como desarrolhar jinjibirra. A língua de Lorena estalou e correu ligeirinha da cabeça ao rabo do ururau. Pedi que relatasse sem afogadilho:    — No compasso, homem de Deus. No compasso.    Serapião desabafou — fez as piores ausências do jacaré, uma imundice de escama e gosma, coisa  que  só  aparecia  de  muitos  e  espaçados  tempos,  de  ninguém  guardar  lembrança  de  ter existido  outro  em  derredor  de  cem  anos.  Denegriu  Lorena  o  ururau  e  sua  parentada  e arredondou  a  conversa  dizendo  que  de  tudo  isso  guardava  um  desgosto:  o  de  não  receber  o coronel dentro das regalias merecidas. Desde que o jacaré ancorou em suas posses, mandou a obrigação e filharada para lugar resguardado:    — Naveguei dentro do conforme, coronel?    Aprovei a deliberação dele:    — Andou em juízo. ururau é bicho que não dá garantia.    Nesse  entrementes,  sei  lá  saído  de  onde,  apareceu  aquele  gogó  de  espinho  para  dizer  que ururau nunca foi jacaré de correr na frente de qualquer comedor de farinha:    — Mesmo que sendo gente militar.    Torci  a barba  e vistoriei,  de  alto  a baixo,  quem  assim  tomava  tanta  liberdade  comigo.  Era um  cabrinha  sem  cor  firmada,  um  perna  de  bambu  incapaz  de  aguentar  vento  de  rosa  sem corcovar o espinhaço. Não dei apreço ao atrevimento dele. Era como  se não existisse na  sala ninguém  a  não  ser  eu  e  Lorena.  Com  isso,  o  magrelinho  do  gogó  saído  novas  arrogâncias tomou. Apostava que não era qualquer pegador de boi que podia meter questão em terreno de ururau:    — Não é qualquer um, mesmo que sendo militar.    O major, em vista de tamanha imprudência, pulou de dedo no nariz dele:    — Norato, Norato! Tome freio na boca.    Já  preparava  uma  remessa  de  raiva  contra  o  sujeitinho,  quando  o  major,  em  meia  voz, apresentou  desculpas. Norato  era  desarrumado  das  ideias.  Em  tempo  de  lua perdia  o  acerto, de  vagar  dias  e  dias  nas  atafonas  e  pitangueiras,  como  demente.  Fora  desses  vazios,  era sujeito de bom viver, amestrador de cachorro e cavalo, no que trabalhava desde menino:    — O que desgraça Norato é ser pancada da cabeça.    Inteirado do incômodo, afrouxei a zanga e mandei que Lorena chamasse o homem, entocado longe,  no  escuro  da  sala,  atrás  de  um  armário.  A  custo,  empanzinado  de  resmungos  e 
impertinências,  voltou  Norato,  sempre  achegado  ao  ururau,  apostando  na  brabeza  dele.  Não houve  ponderação  que   demovesse   o   aluado,  por  mais  prometidos   e  vantagens  que   eu apresentasse, para ficar contra o jacaré. Era a mesma ladainha:    — Não ganha dele, mesmo que sendo militar.    Jantar  na  mesa,  ataquei  a  parte  central  de  um  robalo  que  esperava,  em  bandeja  bonita,  a minha fome atrasada. Estalei a língua:    — Veio como aprecio, seu Lorena, em ponto de molho.    Norato  teve  ordem  de  pegar  desterro  na  cadeira  mais  distanciada  da  mesa.  Um  tal  de Afonsinho  da  Igreja,  assim  conhecido  por  ser  santeiro  de  mão  perita,  chegou  no  meio  do robalo.  Sacudiu  a  chuva  e  escolheu  cadeira rente  de mim.  Jeitoso, rendeu tributo  ao  coronel, seu conhecido de vista, das idas e vindas de trem. Sabia das muitas estimas que tinha por mim padre Azevedo:    — É Santo Amaro no altar e o coronel no Sobradinho.    No  andamento  da  conversa,  relatou  suas  ausências  dos  pastos,  em  serviço  de  igreja  em outras paróquias, pelo que não deitava as vistas no vigário de minha amizade para mais de ano e meio. E na presença de tão sortida mesa, afiançou o mestre santeiro que a coisa que o padre mais apreciava, fora sermão e batizado, era galinha ensopada:    — É de perder as falas, de não arredar da mesa.    Apresentei reparo:    — Como mais do que o povo do governo, seu compadre.    O santeiro achou graça, de quase pegar engasgo, do meu falar debochado. Tive de dar umas palmadas nas costas dele:    — Que é isso, homem de Deus? Cuidado com as espinhas.    Norato,  em  presença  de  tanta  alegria,  largou  o  fundo  da  mesa  e  veio jogar  na  orelha  de Afonsinho  da  Igreja  as  brutezas  do  ururau.  Que  era  amarelão  nascido  para  chupar  qualquer vivente  de  perna  ou  asa  que  roçasse  seu  ninho  num  achegado  de  cem  braças.  E  de  olho adernado para mim:    — Mesmo que sendo gente militar.    Limpei  o  beiço  nas  costas  da  mão  e  num  repente,  como  prezo  fazer,  larguei  em  rosto  de Norato a seguinte indagação:    — Pois vosmecê que tanto  fala, que tem  soltura de gogó, diga logo  sem demora de quantas partes consta um ururau?    O  inquirido,  sem  demonstrar  embaraço,  enfrentou  a  indagação  com  muito  bom  responder. Em  conta  de  dedo,  um-dois-três,  desandou  a  discriminar  peça  por  peça  o  ururau:  cauda  de jacaré, escama de cobra, força de cavalo e olho  sugador de gente. Disse ainda Norato, no  seu rompante de soberba, que alguma raça largava fita de fogo do ventre:    — Como é o justo caso do ururau do major.    Repeli a invenção com invenção maior :    — Pois não quero ser Ponciano de Azeredo Furtado se não avivar meu charuto na brasa do amarelão.    Mal  acabei  o  resto  da  promessa,  sobreveio  um  vento  encanado  e  a  lingueta  do  lampião alongou  e  morreu.  No  denegrido  da  sala,  como  coisa  vinda  das  profundas  do  mar  salgado, cresceu aquele ronco de gelar o ânimo mais saído. E tanto era coisa aparentada das águas que logo um cheiro de maresia e lodo deu entrada no recinto. O major abriu o peito: 
   — É ele! Credo em Cruz! É o ururau!    Um  atropelado  de  gente  em  debandada  entupiu  o  corredor,  que para  abrir  caminho  tive  de usar  da  força  bruta.  Quando  dei  acordo  de  mim,  andava  no  meio  da  desordem,  em  lugar subalterno,  atrás  de uns balaios, na  despensa  de  Lorena.  E no  calcanhar  da  arruaça  apareceu aquele toco de preta munida de lamparina. Parou admirada de presenciar tanto ajuntamento de homem em compartimento de cozinha, cada qual mais escondido entre mantas de carne-seca e outras mantenças. Sou lesto de ideia e pronto salvei a honra dos assustados inventando que tal proceder  era por motivo  de pregar peça  em Juca Azeredo,  que já  devia, pelo tempo,  estar na sala  chegado.  E  antes  que  a  subalterna  entrasse  em  pormenor  e  indagação,  mandei,  dedo apontado para o corredor, que fosse esperar a visita:    — Vá lá dentro fazer a cortesia a ele.    Na comandância do caso, larguei em poder da retinta missão de olhar os compartimentos da frente  e  trazer  de  tudo  imediata notícia. Nem  cumpriu  a  agregada  da  cozinha  de  Lorena vinte passos   dentro   da   incumbência   e   tudo  já   estava   aclarado   —   um   safanão   de   vento, destramelando  a janela  da  despensa,  mostrou  o  rabo  de  um  corisco  no  céu  denegrido.  Não contive o ímpeto:    — Que ururau, que nada!    O  povinho  de  Lorena  tinha  arrepiado  pé  na  frente  de  um  trovão  recaído  de  mau jeito  no derredor da casa. Era no que dava lidar com gente espantada. Andei vai-não-vai para soltar o ferrão  da  língua nos  costados  deles todos,  cambada  de mariquinhas, magote  de  assombrados. Respeitador  da  lei  da  hospedagem,  dei  passo  atrás  nessa  deliberação  e  fui  levar,  na  paz  de Deus  e na  segurança  de minha patente,  os  espavoridos  de volta  ao robalo.  E mais:  como  sou sujeito humanal, levantei o ânimo decaído dele. Que ninguém perdia fama por rejeitar, sem os devidos resguardos, briga com bicho que muito entendido garantia  ser advindo das trevas dos infernos:    — Ninguém, seu Lorena! Ninguém!    Com  mais  dois  ou  três  encorajamentos  desse  teor,  a  valentia  voltou  a  imperar  na  mesa  do major. Na  primeira  badalada  das  oito,  robalo  na  espinha,  a  harmonia  era  servida  na  sala  de Serapião Lorena. Todos reconheceram, no maior respeito, que o coronel Ponciano de Azeredo Furtado  tinha  procedido  dentro  do  conforme,  não  deixando  que  algum  deles,  de  gênio  mais espinhado,  fizesse  a tolice  de  enfrentar, no peito  e na raiva,  o  amarelão  ou  lá  o  que  fosse.  O rebate falso não retirava a mestria da manobra:    — Não foi ururau, mas podia ser.    O próprio Norato, num repente de boa ponderação, gabou meu tirocínio:    — A sorte foi o coronel, a valência foi o coronel.    Então,  pela  folga  da  boca  que  o  charuto  deixava  forra,  fiz  ver  ao  major  que  só  por  isso, como  freio  de  evitar  precipitação,  é  que  consenti  ver  a  minha  patente  em  sítio  de  tamanho subalternismo como era o paiol de mantimentos:    — Só por isso e mais imposição nenhuma!    No concernente a mandar a retinta vistoriar a sala, em risco de ser ofendida pelo amarelão, demonstrei  aos  circunstantes  que  foi  outra  artimanhosa  ideia  que  tive, providência  de  sujeito com prática  de ururau.  Em  lonjal  de  costa  e pasto  era  de  todos  averiguado  que nunca  existiu um  caso  de  ururau  atacar  gente  de  saia.  Sempre  foi  grandeza  deles  ter  respeito pelas  damas, fosse  preta,  branca  ou  pardavasca,  no  que  não  levantava  diferença.  Faz  toda  qualidade  de 
cerimônia, como no sucedido a uma lavadeira que deu entrada, sem saber, em nação de ururau, no preciso momento  em que o pestilento afiava o queixal para destroçar um par de inocentes. Pois  foi  ver  a  lavadeira  e  afundar  em  boa-tarde  e  cortesias,  a  ponto  de  ralar  a  cauda  nas pedras  do rio  e morrer  desensanguentado.  Sabedor  desse  fraco  dos  amarelões, não podia  eu, com responsabilidade de mando e patente, sacrificar um agregado de Lorena em rixa à toa:    — De modo nenhum, de modo nenhum!        Chuva passada, luar no céu, duas noites adiante saí na poeira de uma capivara que requeria meu tiro mortal em beira de banhado. Ao aprovar a ideia da matança, fiz caçoísmo:    — Vem a calhar para limpeza da pontaria.    De acordo com Lorena, releguei o caso do ururau para os confins da  semana, prazo em que a  armada do  Sobradinho ia  chegar, dentro do  estipulado pelo bilhete que  fiz  correr das terras do major  às mãos  de Juquinha  Quintanilha,  com  ordens  de trazer minhas  armas  de  estimação. E enquanto esperava meu povo, peguei a questão da capivara para despachar. Fazia mês sobre mês  que meu  ombro não  sentia metal  de  carabina.  E  foi  contente  da vida,  de  Lorena  ao  lado, que  saí no luar das oito horas, dividindo com o major as manhas da caçada. Mais conhecedor do  que  eu  das  locas  e  atafonas  de  sua  herança,  deixei  em  poder  do  velho  a  obrigação  de levantar a capivara. No beiçal do banhado, espingarda prevenida, eu aguentava o repuxo:    — Apareceu, morreu, amigo Lorena.    Minha  navegação,  um  estreleiro  de  perna  fina  e  boca  macia,  antes  de  enterrar  a  pata  no carrascal,  escarvou  o  chão,  assuntou  o  vento.  Se  fosse  mula,  eu  ia  cuidar  que  andava adivinhando perigo, tocaia ou língua de cobra. Tive que domar a má-criação dele na roseta da espora, bem corrida na parte da virilha. Com a providência, o bichinho tomou tenência e logo, em pouco mais de meia hora de  sela, encontrei o lugar estipulado pelo major, um tanque onde a capivara era de costume farrear. Rente do charco tirei sentinela na esperança de encontrar a tal  caça  que  Lorena  apregoava  ser  de  muita  arroba.  Na  mira  da  espingarda  passou  o  que  o mato tinha  de bem  escondido,  desde  o  figurão  de um tatu  aos viventes mais  amesquinhados  e desimportantes  como  preá  ou  calangro.  Do  alto  dos  pés  de  pau,  numa  roça  de  mangue,  a bicharada  caía  de  podre  —  o  luar  amadura  tudo.  Vez  por  outra,  uma  asa  tombava  no  lodo  e mais de um par de garças roçou o meu abrigo em voo demoroso.  Só a capivara de arroba não dava sinal de vida. Obtemperei:    — Bicho desgraçado, caça peçonhenta.    Andava  eu  nessas  vasculhações  de  mato  quando  reparei  que  do  espelho  das  águas  uma renda  esgarçada  subia,  na  certa  a  respiração  do  brejal.  Tratei  de  ficar  em  chão  seco,  que  o bafo  do  mangue  podia  trazer  contaminação  malina.  O  estreleiro  é  que  não  esperou  outra providência. Foi sentir de novo o coronel em sela e largar em corrida sem juízo. Lá fui, como bem  entendeu  o  desensofrido,  encalhar  numa  plantação  cheirosa.  Nunca  vi  tanta  brancura derramada.  Era  um  véu  de  noiva  estendido,  remessa  sobre  remessa  de  lírio-d’água.  Não contive o meu parecer :    — Que beleza, que imensidão de brancura!    De  repente,  contraí  aquela  devastação  de  saudade  de  dona  Branca  dos  Anjos.  Podia  estar comigo, aprontando Azeredinhos Furtados, no vaivém das labutas dos debaixos do lençol, nas rotinas de marido e mulher.  Sempre nesses meus quebrantos sobrevém a moça das tranças. No lirial, que corria num perder de vista no meu adiante, eu figurava o Sobradinho apetrechado de 
criança nova,  dona  Branca no mando  do  casarão, Francisquinha  feliz  de ver  Ponciano pai  de filho,  tomado  de  responsabilidade.  De  tarde,  chegava  povo  para  pedir  meu  ajutório,  meu tirocínio  se  fosse  caso  de  lei,  ou  auxílio  da  patente,  se  o  assunto  pedisse  mão  militar.  E  lá embaixo, junto das casuarinas, o visitante primeiro pedia notícia de minha obrigação:    — Coronel, como vai a patroa, como anda a meninada?    Na  gostura  dessa  relembrança  não  vi  que  a  minha  sela já  de  muito  tinha  deixado  atrás  a plantação  cheirosa  e  sua  pata  afundava  em  areal  de  gravatá  e  espinho-de-carrapicho.  Diante de mim,  alumiado  de ponta  a ponta, rolava  o mar.  Saía  eu  de uma beleza  e  entrava  em  outra. Aguentei a rédea espantado:    — Virgem nossa! Que recinto é esse?    Contra a vontade do estreleiro, que teimava em arrepiar carreira, parei de junto de um pé de amendoeira.  A  um  pulo  de  sapo  a  água  fazia  a  limpeza  das  areias,  no  vai-lá-e-vem-cá  das marolas. Apeei de modo a apreciar de rente tamanha imensidade junta. Pois foi a minha batina ranger  no  areal  e  advir  aquele  ronco  de  tormenta  longe.  Vistoriei  o  céu  —  no  além  do chapelão da amendoeira brilhavam umas bem contadas dez estrelas. Nem fiapo de nuvem, tudo luar  de  noite  limpa.  A  arruaça  devia  ser  alguma  descarga  do  major  Lorena  no  trabalho  de levantar  a  capivara. E já preparava brincadeira para receber  o velhote,  quando uma ponta  de vento assobiou de cobra nas partes baixas de minha barba. Excomunguei:    — Vai ventar na mãe.    O estreleiro, que prendi em galho alto, subiu nas patas do coice e lá de cima, no derradeiro furo da rédea, rinchou feio, como bicho cercado de medo, corrido de onça. Digo, sem orgulho ou  soberba,  que  qualquer  um  que  não  tivesse  o  preparo  do  coronel  Ponciano  de  Azeredo Furtado caía no oco do mundo, pelas veredas das atafonas. Aguentei o roj ão e tratei de fincar defesa  na  segurança  de  uma  touceira  de  gravata-da-praia.  Cocei  o  pau  de  fogo,  que  logo respondeu ao meu apelo. O gatilho chegou a pular no contentamento da pólvora. Nisso, do alto da amendoeira, rolou agouro de coruja, de imediato desconjurado por mim:    — Vai piar nas profundas dos infernos, cadela de asa!    Foi  quando tive um  estalo, um repente muito próprio  de minha natureza. Era bem  capaz  do coronel  estar  em terra  de ururau  e  disso  desprevenido.  Talvez  que toda  essa  figuração, ronco de  tormenta  e  assobio  de  cobra,  não  passasse  de  embuste  de  sua  cabeça.  E  tanto  eu  andava certo,  que  nova  remessa  de barulho,  dessa  vez  em  feitio  de  algazarra  de  gato,  veio  vindo  da entranha do mar. Do meio da desordem saiu meu nome:    — Ponciano! Ponciano!    Não apreciei essas confianças tomadas comigo, sabido por todos que muito prezo a patente e não gosto de ver meu nome  solteiro dela, em intimidade que não dou a nenhuns.  Só que não sou  homem  de  ser  chamado  e  descomparecer.  Corri  na  poeira  da  voz  e  vi  o  neto  de  Simeão água adentro, trabuco no ombro e indagação na ponta do beiço:    — Quem requer meus préstimos?    Outra vez, agora do lado da terra, chegou o lamento:    — Ponciano! Ponciano!    Quis voltar, mas pregado no  fundo  da marola  estava meu pé,  enquanto  o  luar  espichava  de não poder  mais  a  sombra  deste  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  na  imensidão  das  águas.  Visto assim, eu fazia as vezes de um gigantão das carochinhas — a claridade dos ermos  sempre foi mestra nessas  artimanhas  e  invencionices,  de  figurar um  calangro  em tamanho natural  de uma 
rês. Avisei de imediato:    — Sou muito cativo das linduras da noite mas não gosto de abuso comigo.    Andava  eu  nesse  encantamento  de  mirar  a  própria  sombra,  e  nisso  reparei  que  ela murchava,  como  sugada  por  força  maior.  A  bem  dizer,  o  coronel  esvaziava.  Mas  logo,  sem alarde, como é da feição militar, alumiei o caso:    — É ele, é o amarelão!    Em  derredor,  num  redemoinho,  o  bululu  da  água  fervia  como  chaleira  em  fogo  vivo.  E Ponciano   cada   vez   mais   atraído,   talqualmente   sapo   em   olho   de   cobra.   Sem   ânimo, desvontadoso,  fui  indo,  escorregando  em  modo  de  sabonete  de  moça.  O  casco  velho  do coronel  começava  a  afundar.  A  água  era  morninha,  cheirosa  de  flor.  Num  arranco,  sacudi  a espingarda fora, no  seco da areia. Foi quando uma peça escamosa deu de roçar a vassoura da minha barba  que boiava  na  frente  do  queixo,  sem  leme  e  sem  governo.  Sobreveio  disso  uma frouxidão  de  todas  as  minhas  forças,  uns  esfarinhamentos  de  todo  o  meu  por  dentro.  Aí ponderei:    — Ponciano está encantado.    Em verdade,  o  coronel não  deliberava mais. Nem  sentia  o barulho  do mar, nem  o vento  da costa.  Tudo  escureceu  como noite  sem  lua  fosse. Na unha  do  encanto  eu valia menos  que um jacá  furado  ou  agulha  partida.  Achei  tudo  isso  uma  falta  de  respeito  que  ofendia  meu  brio militar.  Um  coronel  de  patente  não  podia  acabar  assim  em  banho-maria  sem  mostrar  a  força das armas.    — Nunca!    E  num  incontido,  tomado  de  raiva  possessa,  ajuntando  todas  as  brabezas  dos  Azeredos  e demais  Furtados,  fendi  o  encanto  e  sacudi  a  água  com  tamanha  valentia  que um  mundaréu  de marola  cresceu  da  altura  da  amendoeira.  No  emaranhado  da  briga,  água  na  cabeça  e  no  pé, senti ao alcance do braço aquele leque que tanto desfazia da minha barba. Não perdi a ocasião — lesto, em bote de onça, avancei os dedos pelos escorregados das escamas até ancorar numa curva desprevenida. Se o coronel tinha de morrer, não ia viajar solteiro:    — Levo tudo para as profundas do mar salgado.    Digo,  em  boa  verdade,  que  esse  proceder  foi  a  minha  valência.  Fiz  do  punho  torniquete  e espremi o cativo como quem espreme carnegão. Quanto mais apertava, mais a vista do coronel clareava,  longe  e  salvo  das  dormências  e  feitiços.  Fosse  lá  o  que  fosse,  cavalo-marinho  ou ururau, não recebia alvará de soltura. Tão senhor fiquei da guerra que cantei de galo:    — Conheceu, papudo! Braço de Ponciano não é sabonete que derrete na marola!    A bruteza do meu falar sacudiu o descampado. A costa, de cabo a rabo, veio apreciar a rixa, bichos  da  noite  e  estrelas  do  céu.  A  água  entrou  em  pronto  sossego  e  o  vento  recolheu  seus assobios. O que fosse estava bem guardado no cativeiro do meu braço. Podia o libertino soltar borbulha pela cauda ou pela goela, mas sair de navegação solta é que não saía, nem com papel do governo, nem com sentença da Justiça. De novo, como medida de pouco-caso, gritei:    — Conheceu, papudo!    Foi  nessa  especial  circunstância  que  tive  o  maior  espanto  destes  anos  todos  de  pasto  e vento.  Saído  não  sei  de  onde,  veio  vindo  aquele  canto  mimoso,  que  parecia  nascido  da garganta  dos  anjos mais  afinados.  O  coração  de Ponciano  logo pulou  de  saudades  curtido. E, antes  que  outro  quebranto  viesse,  suspendi  o  cativo  fora  da  marola,  na  altura  do  peito.  E  na presença  do  luar  apareceu  aquele  rosto  de  bonitezas,  cabelo  de  ouro  pingando  água  e  boca 
cheirosa chamando por mim:    — Ponciano, Ponciano…    Mas, para desgosto meu, arrematava em rabo de peixe. Era uma sereia.        Espalharam,  mais  tarde,  que  o  coronel  do  Sobradinho  abusou  e  desabusou  das  partes  de cima da  sereia, que as debaixo, escama  só, nunca tiveram  serventia. Quem nunca lidou com o povo encantado das águas é que pode dar andamento a um despautério desse porte. Nunca quis tomar  franquia  com  a moça  do mar,  embora  fosse  ela provida  de um par  de roliços  do maior agrado meu, coisa vistosa de não caber na concha das mãos. Como estivesse em tarefa militar, fiquei dentro dos regulamentos e estipulações da guerra. Fui respeitoso no trato. Sem rompante ou  orgulho,  apresentei  conselhos  e ponderações.  Se  ela  fosse  sereia, bem podia  desencantar, que o coronel Ponciano de Azeredo Furtado arrumava casamento e dote para a sua pessoa.  Se fosse  peixe  nascido,  de  rabo  e  escama,  podia  seguir  sua  navegação  na  paz  de  são  Pedro,  o padroeiro das águas:    — É Vossa Mercê escolher.    Acabada a conselhagem, gabei as cantorias dela:    — Estou ainda de ver garganta mais educada.    Dito  isso,  em  braço  carinhoso  arrastei  a  cativa  para  o  seco  —  o  rabo  ficou  em  bacia  de mar,  como  é  da  lei  das  sereias.  O restante,  que  é  a parte melhor,  calhou  de  caber  todinho no meu colo. A moça, como atingida de paixão, recostou a cabeça no meu ombro e desse conforto soltou  todas  as  cantorias  das  águas,  maravilha  que  foi  ouvida  em  afundadas  léguas  de  mar  e costa,  mesmo  em  navio  de  alta  trafegação.  Aviso  que  era  canto  das  maiores  feitiçarias. Sabendo com quem lidava, e nisso ninguém vai adiante de mim, fingi espanto:    — Que beleza, que beleza!    Tratava  em  dedo  de moça  a  aparecida  das marolas, pois  em  grande risco navegava  o neto de   Simeão.   Todas   essas   inventimanhas   não   passavam   de   outras   tantas   armadilhas   da encantada,  já  de  propósito  firmado  em  levar  este  Azeredão  para  as  profundas  das  águas verdes. Mas ela não conhecia o coronel e as voltas que ele sabia dar. Um demandista de minha marca,  aprendiz  de  escola  de  frade  e  de  cartório, nunca  que podia  cair  em  arapuca  de  sereia por mais instruída que  fosse. Marombei, tenteei, deixando a enfeitiçada na ignorância do meu poder. Dei razão ao seu desgosto e quis botar meus préstimos e patente a serviço dela:    — Todo meu poder em armas e dinheiros em caixa é de Vossa Mercê.    Rejeitou:    — Do coronel só quero uma prenda.    Nesse  ponto,  a  sereia  rebaixou  os  olhos  de  verdes  capins  como  pratica  toda  donzela  de primeira mão. E,  sem mais,  deu  de trançar  cafuné na raiz  da minha barba,  que  é  onde tenho  a maior fraqueza. Ordenei que falasse, que abrisse o saco de segredos:    — Diga ao que vem, minha boa sereia.    Então, aparelhada das sedas que as sereias sabem tecer, falou a moça mais ou menos assim:    —  É um  sujeito  do  calibre  do  coronel  que  desejo para  marido.  Tenho posses  de palácios, carruagem  de  ouro  e  mesa  de  muitas  e  sortidas  prendas.  Por  que  não  toma  o  coronel  estado comigo?    Mais  conforto  dava  um  ronco  de  onça  do  que  esse  falar  educado  da  donzela  das  águas. Estremeci.  Se  denegasse  o pedido  da moça, podia  suceder uma  desgraça.  Se  desse  despacho 
favorável,  era  coronel  falecido  e  amortalhado.  Rolei  a  barba  e  resposta  forrei  do  mais  fino veludo. Obtemperei na melhor educação:    — Muito cativo estou da lembrança da boa sereia, que é pessoa instruída e viajada. Mas de casamento nem é bom falar, que Vossa Mercê não conhece a minha mulata teúda e manteúda. É o capeta de saia.    Inventei compromisso de mulata teúda e manteúda de propósito, quando toda gente sabe que nenhuma  cara bonita prende  em  cativeiro homem  como  o neto  do velho  Simeão.  Conhecia  eu que  só uma invenção de tal peso podia  sanar,  sem danos e riscos, a paixão da moça  sereia. E foi  largar  a mentira  e  ouvir  aquele  lamento mais triste já  entrado  em  ouvido  de  gente viva.  O mar cresceu, a lua perdeu as forças. A noite, pegada de medo, expeliu dos pés de pau tudo que era  asa  de  pássaro.  E  a  sereia,  como  enguia  lustrosa,  foi  deixando  o  meu  torniquete  e  pelos dedos  de  Ponciano  escorreu  todinha para  as  ondas  do mar  salgado. Ainda  tentei, num último arranco,  segurar  a  encantada  pelas  tranças.  Escapuliu,  porque  não  há  força  de  homem  que aguente uma  sereia  desenganada.  Dela  guardei um  cacho  de  cabelo  de  ouro,  logo passado  ao poder de Serapião como arremate do meu compromisso:    — Aqui tem o major esta prenda mimosa.    Lorena, muito cativo do meu serviço, fez questão de dizer :    — O coronel é dos uns que mata cobra e mostra o pau.    Nas promessas de trovoada, na mudança do tempo, os tais deixados da moça sereia ficavam num  assanhamento  de  meter  medo.  E  o  vento,  ao  roçar  por  eles,  levava  na  distância  as harmonias  bonitas  que  eu  tão  bem  conhecia.  O  canto  da  sereia  que  Ponciano  de  Azeredo Furtado pegou,  certo  de  que  andava  em  guerra  de  ferro  e  fogo  contra  o nojento  de um ururau, que é maldição de grande poder e fama de brabeza.  Não  sou  homem  de  espalhafatos  e  alardes.  Por  mim,  pelo  meu  feitio  reservoso,  deixava morrer  na  nascença  a  questão  da  moça  das  águas,  sem  permitir  que  a  fama  do  acontecido saísse das tramelas do  Serapião Lorena. Mas digo e repito que em boca de pasto ninguém tem mando.  É  bicho  arredio  que  não  aceita  cabresto  ou  imposição.  O  vento  linguarudo  longe  foi soprar  o  caso  da  sereia  em brenha  que nem  sabia  da  existência  de pessoa tão  encantada.  Em vista  disso,  e  para  não  ter  que  contar  e  recontar  a  peripécia,  que  muitos  podiam  cuidar  ser invenção  das  carochinhas,  peguei  a  mala  e  fui  tirar  semana  no  Hotel  das  Famílias.  Avisei  a Francisquinha:    — Vou a Campos a chamado dos doutores da Justiça.    Andava na  cidade um Moulin-Rouge  que Juju Bezerra,  sujeito  da primeira  fila,  asseverava ser  bem  guarnecido  de  pernas  e  caras.  Comprei,  ainda  com  a  roupa  da  chegada,  assento vistoso,  de  onde  eu  pudesse  a  cômodo  medir  as  vantagens  das  moças  da  ribalta.  Chamei  o homenzinho dos bilhetes e estipulei:    — Só serve cadeira na boca do palco, seu compadre.    De  noite,  terno  mudado,  barba  tesourada,  charuto  novo  no  beiço,  apareci  nos  cafés  e bilhares. Na porta do Taco de Ouro tive de atender a uns boiadeiros que vieram tirar pergunta comigo a respeito de rês e replantio de pasto. Saí com duas pedras na mão:    — Quero lá saber disso, de rotina de curral.    E esfreguei no chifre dos atrasados minha cadeira do Moulin-Rouge:    — Estou de vadiagem, por conta dos rabos de saia.    Nesse brinquedo de apreciar perna bonita consumi o resto da semana. No abrir do domingo, farto  das ribaltas,  fiz  a primeira visita  de  cortesia. Fui bater na porta  do  solteirão Pergentino de  Araújo.  Morava  o  jubilado  da  Justiça  na  rua  do  Barão,  em  casinha  ajardinada,  toda revestida de azulejos. A varanda trafegava na  sombra de um caramanchão e era nesse recanto de  passarinho  que  o  aposentado  gostava  de  amamentar  sua  preguiça,  ler  suas  gazetas  de imprensa,  palestrar  na  boa  amizade  de  um  e  de  outro.  Lá  perambulei  a  tarde  toda,  em conferência sem-vergonhista. Contou ele na ponta dos dedos os rabos de saia que lustraram os paus de sua cama, tantos e tantos de não ter cabeça de guardar :    — Nem um caderno alentado dava para escrever os nomes todos.    E  como  prova  de  libertinagem  retirou  de  uma  canastra  quantidade  de  ligas  e  demais apetrechos que as madamas, na pressa da retirada, esqueciam nos cantos:    — De deixados de lenço nem é bom falar. Tenho um gavetão cheio.    Rebati  o  avantajado  dele  com  avantajado  igual.  Fiz ver,  apontando  o  queixo,  que um terço de barba perdi em roçar cangote de donzela militante:    — Ou mais, seu compadre, ou mais. 
   De tarde, movido  a posta  de bacalhau,  saí na  companhia  de Pergentino para  sua penitência na rua do Mafra. Toda noite, soprasse ventinho ou ventão, tinha ele de deixar o seu suspiro nas redondezas  de  certo  sobrado  de  uma  dona  Estefânia  Portinho,  que  em  tempos  verdes  da mocidade  teve  um  pé  de  namoro  com  ele.  Eu  achava  um  despautério,  uma  falta  de  brio  esse penar do aposentado. Um sujeito de sua ilustração, que lavrava uma escritura de ponta a ponta sem consultar doutor, preso nas galés de uma dama que dormia de marido às ordens, enquanto ele,  de  óculos  na  cara,  suspirava  em  beiral  de  esquina  feito  menino  de  amor  primeiro!  Se tivesse a desinfeliz ideia de pedir meu conselho, levava imediata recriminação:    — Tenha respeito, tenha brio.    Acabada   a   cortesia   devida   ao   tabelião,   fui   levar   no   dia   entrante   cumprimentos   a Pernambuco Nogueira. Encontrei o doutor das demandas do Sobradinho já de saída, escritório a  meia  porta.  No  abraço,  segredou  que  madama  de  grande  valimento  esperava  por  ele  para uma tarde de lençol, para as práticas de quarto fechado:    — Coisa de responsabilidade.    Agradeci  a  confiança  e  ajudei  o  doutor  a  meter  a  papelaça  na  escrivaninha.  Na  rua,  já aboletado no assento de um tílburi, estipulou de dedo avançado para mim:    — Lá em casa, logo mais, depois das sete.    Na  hora  aprazada  puxava  eu  o  rabo  da  campainha  dos  Nogueira  da  rua  dos  Frades.  O próprio doutor, braços abertos, veio receber a visita. Antes que sua obrigação chegasse, falou dos proveitos da tarde:    — Foi uma guerra. Estou de rim moído.    Ia entrar nos pormenores, quando na ponta da escada cresceu o vulto de dona Esmeraldina. Parecia uma princesona das carochinhas, muito branca, cabelo em formato de labareda. Pelos modos, andava arreliada com o doutor, talvez até fosse  sabedora das bandalheiras do marido, que rabo de saia tem dessas adivinhações. E no jantar, que foi demoroso, revestido de todas as etiquetas,  nem  uma  vez  trocou  palavra  com  ele.  Na  briga  dos  dois,  a  vantagem  pendeu  para mim. A dona da casa não sabia o que fazer em meu agrado:    — Por favor, coronel, prove este molho. É receita de família.    A  conversa  de  mesa  recaiu  em  desavenças  e  demandas  da  Justiça.  Vez  por  outra,  dona Esmeraldina puxava relato de pasto — se o coronel tinha onça nova em mira:    — Estou precisando de uma pele para o quarto de dormir.    Estive  quase  conta-não-conta  o  caso  da  sereia  das  águas,  o  que  não  fiz  por  achar  que peripécia  dos  areais  não  calhava  em  recinto  tão  educado.  Dei  preferência  de  ouvir  as vantagens  de  Nogueira  nas  labutas  do  Foro  e  especial  atenção  prestei  a  uma  pendência  de terras  que  sustentou  a  poder  de  rabulice,  dando  ganho  de  causa  ao  que  era  torto.  Em  duas penadas  limpou  a  escritura  de  toda  a  impureza.  E  o  demandista  seu  amigo  ficou possuído  de chão que era seu e que não era:    — Foi um trabalho bonito.    E  feliz  da  molecagem, passando  o beiço  no  guardanapo, Nogueira  relembrou  os proveitos tirados de tudo isso por Selatiel de Castro:    — Grande negócio para o Castrão do Banco da Província. Grande negócio!    Da  sobremesa  caí  no  Flor  de  Ouro,  fumado  de  parceirada  com  o  doutor  a  um  canto  da saleta, no macio da cadeira. Dona Esmeraldina, a quem a fumaça enjoava, pediu licença:    — À vontade, coronel. Vou mandar fazer café. 
   Nogueira,  na  quarta  baforada,  despencou  no  sofá, já  de  olho  morto,  no  sono  da  digestão. Tive de tomar café na companhia de dona Esmeraldina e  suas covinhas de rosto. Enrolei com ela  palestrinha  mimosa,  de  homem  de  salão.  Ria  das  minhas  ponderações,  e  lá  uma  hora, quando gabei o chalé, fez empenho em mostrar o compartimento das hospedagens:    — Talvez assim o coronel ganhe ânimo e venha passar uns dias com Nogueira.    Agradeci a bondade de dona Esmeraldina e por sua mão, que sumiu entre meus dedos de nó, segui  atrás  daquela  abundância —  cintura  de  louva-a-deus  e um  alisador  de  sofá  de vistosas almofadas. No cômodo do casal, bem arejado e enfeitado, demorei a vistoria sem-vergonha na cama das maridanças, uma peça de cabiúna, fortona, preparada para aguentar, sem rangidos de madeira,  o  que  desse  e viesse noite  adentro. Vendo minha toda  atenção  empacada na peça  de dormir,  dona  Esmeraldina  relembrou  as  nascenças  do  traste.  Vinha  vindo  de  herança  em herança, de uma gente fidalga existida em outroras muito afastados:    — Os Barbalhos de Macaé, aparentados de Nogueira.    O  quarto  das  hospedagens,  o  mais  afundado  do  chalé,  era  de  bom  trato.  Portas  e janelas desembocavam no jardim, sem compromisso com o resto da casa. Duas camas de metal polido estavam  sempre  prontas  para  agasalhar  os  chegados.  A  dona  da  casa,  de  mão  própria,  quis comprovar os fofinhos e fofões do colchão:    — Veja, coronel, pura paina.    Meio encurvada sobre a cama, balangou o aramado enquanto eu, um pouco atrás, gozava as penugens  do  seu  pescoço  e  peças  em  derredor.  Subia  dos  lençóis  um  cheiro  de  gavetão,  de roupa  curtida  nas  águas  de  frasco.  Logo  figurei  Ponciano  afundado  em  velhacaria,  aboletado nas boas partes de que era servida a mulher de Nogueira. Por sorte, uma luzinha de santo, que ardia  no  alto  da  parede  em  devoção  de  Nossa  Senhora  das  Dores,  varreu  de  minha  cabeça esses pecados. Gabei o conforto do quarto:    — Compartimento de muita grandeza, sim senhora!    E, no fogacho da gabação, prometi passar um par de dias no chalé da rua dos Frades. Dona Esmeraldina,  que  ajeitava  o  cabelo  de  fogo  no  espelho  do  corredor,  guardou  o  compromisso na gaveta:    — O prometido é devido. Vou esperar o coronel.    Na  sala,  colete  desabotoado,  charuto  dormido  na  aba  do  beiço,  Nogueira  continuava enterrado no sono da digestão, de só acordar quando o cuco do relógio abriu na algazarra das dez:    — Diabo, dormi demais, dormi demais.    A cortesia de Ponciano aos Nogueira da rua dos Frades tinha terminado. Como também por terminada dei a minha presença na cidade. Parti para os currais.        No  Sobradinho,  como  relembrado  da  rixa  com  a  sereia  do  mar,  prenda  especial  esperava por  mim  na pessoa  de  um  galinho  de briga.  Digo  e provo  que  esporão  assim  nunca  mais  vai ciscar  chão  de  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo  em  cem  anos  mais  no  adiante.  Ao  ser  trazido  à minha  deliberação,  era um  tiquinho  de pena, pescoço  de  linha, perna  de  graveto, pelanca  só. Todo mundo fez pouco dele. Juquinha Quintanilha não perdia vaza para desfazer da prenda:    — Não morro sem comer esse sujeitinho no arroz de dona Francisquinha.    João  Ramalho,  nascido  de  surdez  do  lado  esquerdo,  veio  a  chamado  meu.  Queria  que passasse  as  vistas  no  frango,  pois  era  ele  de  muito  entendimento  em  labuta  de  rinha.  Foi 
chegando  e  desfeiteando  o  bichinho.  Era  da  raça  dos  melados,  sem  força  no  esporão,  sem ânimo de briga. A bem dizer, não valia o milho que o coronel ia gastar na sua mantença:    — É bicho corredor, nanica no primeiro pau.    Mandei que vistoriasse outra vez, que não desse opinião de afogadilho:    — Quero parecer de muita ponderação.    João Ramalho, pouco apreciador de ser contrariado, jogou a prenda do major para cima, fez todas as judiações que entendeu de fazer. Não  satisfeito, varejou o galo no alto, em perigo de quebrar o pobrinho contra os galhos das casuarinas. Gritei em garganta de raiva:    — Veja o que faz! Isso não é manta de carne-seca, seu Ramalho!    O boiadeiro confirmou o parecer :    — É o que digo, patrão. Não vale o milho que vai comer.    Sou  cabeça  dura.  Cismei,  porque  cismei,  de  fazer  do  galinho  um  bicho  de  fama.  Tomei estimação  por  ele.  E  o  danadinho,  conhecedor  dessa  honraria,  rebatia  no  mesmo  pé  de amizade. Vivia na minha rabeira,  como  cachorro no  calcanhar  do  dono.  Onde  eu  estivesse,  lá estava  ele,  cacarej oso,  orgulhosão  do  seu  padrinho  coronel.  Francisquinha  achava  graça  do meu bem-querer, fazia comparação de gente antiga:    — Igualzinho o avô.    Em  dois  meses  de  milho   e  bom  passadio,  o   frango  pegou  outra   figuração.  Ganhou plumagem,  canto  de  força,  corrida  ligeira.  Tinha  uns  modos  engraçados  de  olhar  de  banda. Metido como ele só! O coronel não era homem de abrir uma gazeta de imprensa que o mestiço não quisesse especular. Eu mangava dele:    — Sua pessoinha quer estar a par das novidades da política?    Uma  tarde,  estando  eu  no  sossego  do  depois  do  almoço,  presenciei  uma  estripulia  dos infernos perto  das  casuarinas.  Gente  gritava,  cachorro  latia,  moleque  soltava pulo.  Fui  ver  o que havia, já pronto para  os destemperos de que  sempre  ando  sortido. Nas redondezas de um carregamento  de  farinha, meu raçudo  depenava  em  guerra  feroz um  galo-da-terra,  de mais  de arroba. Janj ão Caramujo, encachaçado de sair pelos olhos, procurava cai-não-cai desapartar a desavença  de  esporão.  Não  conseguiu,  nem  teve  tempo  para  tanto.  Com  duas  cacetadas  de estalar, a prenda do major Lorena limpou o terreiro. O galão de arroba, pegado em parte fofa, bem  na  raiz  do  papo,  trocou  perna  e  foi  cair  meio  adernado,  já  de  cabeça  escondida  no debaixo da asa. Nessa postura, deu dois estrebuchos por honra da firma e apagou. Antão, que andava  por  perto  em  trabalho  de  afinar  uns  codorneiros,  gritou  em  língua  de  gago  que  um raçudo de tiro tão mortal ele nunca viu nem ia ver no resto da vida.  Saturnino Barba de Gato, chegado no entremeio da briga, logo arrumou apelido para o valente:    — Vermelhinho Pé de Pilão.    Aprovei o batismo. E aprovando, mandei Antão Pereira procurar, em Poço Gordo, terra de galista , tratador capaz de aperfeiçoar as artes do bichinho. Almejava que aprendesse todas as artimanhas das rinhas, pegasse esporão de faca, asa de gavião, coice de mula:    — Quero ver esse danadinho mais apetrechado que um trem de guerra.    E  foi  assim  que  certa manhã  lá partiu  em viagem  de  aprendizado  o  galo  do meu xodó.  Era de cortar o coração ver como ele mirava o seu padrinho. Pingava tristeza, como se fosse para o  cativeiro,  cumprir  pena  de  nunca  mais  voltar.  Ministrei  lição  de  coragem  na  concha  da orelhinha dele:    — Vosmecê, meu neguinho, vai ganhar tutano. 
   Foi.  Por  seis  meses  contados  no  coração  e  na  folhinha  não  vi  o  seu  topetinho  vermelho. Pelos  préstimos  de  Antão  Pereira  chegava  ao  Sobradinho  notícia  de  sua  brabeza.  Andava adiantado na picardia  das rinhas  e  em mais  de  dúzia  de mestiços  o  seu  esporão  deu morte.  O próprio   mestre   tratador,   que   conhecia   galo  bom  pelo   cheiro,   vivia   de   admiração   em admiração.  Mandaram  de  Poço  Gordo  proposta  de  barganha  —  o  galo  por  quatro  bois  de canga:    — Fora ainda umas obrigações de dinheiro, coronel.    Rejeitei na má-criação:    — Troco mais é pelo rabo da mãe.    No esmorecer de janeiro, chuva que Deus dava, chegou Vermelhinho Pé de Pilão da escola de  Poço  Gordo.  Quase  dei  festa  no  Sobradinho,  com  cabrito  na  mesa  e  foguete  no  céu.  Fiz questão de chamar João Ramalho para que mirasse a obra. O campeiro veio de encabulamento nos  modos.  Tinha  dado  sentença  denegatória  contra  o  galinho  (“Não  vale  o  milho  que  come, patrão”)  e  agora  era  obrigado  a  reconhecer  o  engano.  Ficou  de  lado,  desacreditando  no  que via.  Passei  a  pessoinha  do  galo  de  mão  em  mão.  Que  o  povo  visse  a  peça,  apreciasse  a galhardia do danadinho:    — Veja o calibre, veja a navalha do esporão!    João Ramalho, sujeito de queixo duro, continuou de riso mole, de parecer debochado:    — Faço fé não…    Espicacei  o  orgulho do galista. Trouxesse  a melhor  criação do  seu terreiro que  eu,  coronel Ponciano  de Azeredo Furtado,  casava  dez  contos  contra um jacá  de jenipapo  como  o  galinho dele não atravessava o primeiro refresco:    — Não vai além, seu Ramalho. É o que digo. Não vai além.    Coitado dele! Perdeu a aposta e teve o desgosto de ver o seu galo mais de fama com a cuité da  cabeça  aberta  em  duas.  A papa  do  miolo  espirrou  longe.  Gente  de  fora,  que presenciou  a guerra,  levou  em boca  escancarada  a notícia  de  que  o mestiço  do  Sobradinho  era  aparentado dos capetas. Tutu Militão, em vista do pau nefasto de Vermelhinho, foi franco:    — Com esse tiro de pé nem boi aguenta.    Dessa briga  em  diante  a  fama  do  raçudo pegou  vela  solta.  Pulou  os  currais  e  foi bater  em terra de galista tão além da pastaria que carta  saída de lá  só chegava ao  Sobradinho com mês e  tanto  em  mala  do  correio.  De  tão  afundados  ermos  um  sujeitão  de  nome  Penalva  de  Brito queria  saber  intimidades  de  Pé  de  Pilão,  sua  nascença,  parentagem  e  cruzamentos.  Como  o pedido não viesse dentro da boa educação, mandei que ele fosse coçar as virilhas:    — Não tem de saber nada.    Mas digo que forrado de tanta glória o galo do  Sobradinho não caiu em  soberba.  Sempre o mesmo, de jeito alegre, despido de orgulhos. Qualquer outro, que não tivesse o seu caráter de pedra,  logo  virava  a  cabeça,  talqualmente  um  vinagre  do  capitão  Aristeu  Beda,  que  por  ter vencido  uns  dois  ou  três  desafios  deu  de  apresentar  as  maiores  má-criações.  Embirrava, queria comer  em prato de louça como  se cristão  fosse. Pé de Pilão tinha proceder diferente  e fora  da rinha  era  de trato  esmerado,  desvaidoso. Para  conforto  dele, mandei  levantar  casa  de conto  de  réis,  com  bebedouro  de  vidro  e  poleiro  torneado  pelo  melhor  formão  de  Santo Amaro. Quando o último prego foi batido, chamei o galo:    — Veja que grandeza, capitãozinho.    Mostrou  desprezo  por  todas  essas  benfeitorias  e  continuou  no  seu  galho  de  limão-galego, 
nascido bem rente  do meu  quarto. Era  desse mirante  que  ele  dava  ordens  ao raiar  do  dia. No primeiro canto dele o  Sobradinho pulava da cama, corria para o coador de café. Eu largava o meu  corpanzil  no beiral  da janela —  lá  estava  o  seu  rostinho  a  serviço  do  contentamento  de Ponciano. Sendo eu militar, gostava de dar honraria de patente ao mestiço:    — Bom-dia, meu capitão, como vai sua pessoinha?    Empoleirado  no  galho  de  limão,  Vermelhinho  abaixava  e  suspendia  a  cabeça,  feliz,  gogó cheio de rompância. O povo achava engraçado tanta amizade, tanto bem-querer junto, a ponto de afiançar :    — O coronel não barganha seu galo de guerra por cem reses do Piauí.    Aos  domingos, na  cauda  dos batizados,  o  galinho batia  esporão na  sombra  das  casuarinas. Padre  Malaquias,  ao  lado  de  Francisquinha  e  demais  agregadas  do  Sobradinho,  ficava  de resmunguice por não apreciar maldade contra os bichinhos de Deus. Chegou a ameaçar a folia com os poderes do altar :    — Acabo pedindo ao sr. bispo providência que dê cobro a essa impiedade.    Mais que depressa eu fomentava festas e batizados no  Sobradinho. O povo trazia galo para o  terreiro  e  menino  para  o  sal  da  água  benta.  Uma  coisa  lavava  a  outra.  Assim,  livre  dos desconjuros  do  bom  batina,  eu  deixava  Vermelhinho  afiar  o  esporão  no  papo  da  mestiçada. Era um morrer  de  galo  sem  conta  e jeito. Para mais  de vinte peças,  de  coragem  comprovada, sangraram nas armas de Pé de Pilão, fora miudeza avulsa, tais como frangos e galos-da-terra. O  danadinho  não  podia  ver  capão  que  não  remetesse,  de  pé junto,  para  o  vinha-d’alhos  de Francisquinha.  De  longe,  chegava  galista,  em  viagem  de  muita  sela  e  trem,  pelo  gosto  de apreciar um tiro  de pé  de minha prenda.  Tanta bizarria  espicaçou  o  orgulho  do major Badejo dos  Santos, dos pastos do Degredo. Dos seus currais, em carta de sujeito que sabia onde tinha o  nariz,  mandou  pedir  data  para  uma  briga  acompanhada  de  aposta.  Respondi  que  aceitava, dando  lambuja  no  concernente  à  pesagem.  Estava  a  par,  por  Antão  Pereira,  que  o  bicho  do major Badejo era de quebrar balança — um galão e tanto, de pau exterminador. Militão, ao ter notícia do compromisso, correu ao Sobradinho:    — Coronel, não faça esse despropósito.    Debochei  do  seu  conselheirismo,  do  seu  intrometimento.  Do  que  ele  muito  sabia  era  de peçonha  de  cobra  e  nunca  de  esporão  de  galo.  E  na  ferreação,  destorcendo  a  parolagem  do pardavasco Tutu:    — É verdade que vosmecê mandou uma surucucu sentar praça na milícia do governo?    A contragosto de Tutu, mandei que o major trouxesse o raçudo e a pecúnia da aposta. E num domingo  embandeirado  em  arco,  chegou  o  maldoso  no  braço  do  próprio  Badejo  dos  Santos. Era peça de um cristão medir e pasmar. Ciscava o assoalho da varanda em modelo de touro de campo  cerrado,  orgulhosão,  desrespeitoso.  O major,  em vista  do meu  admirado,  avisou meio no deboche:    — Ainda está em hora do vizinho desmanchar o compromisso. Sou de boa paz.    Aguentei  o  rabo  do  foguete  e  até  charuto  puxei  de  modo  a  desembaraçar  as  ideias.  Antão Pereira, vindo apanhar umas ordens, estancou aparvalhado diante de tanta quantidade de galo. Perfez o sinal da cruz e gaguej ou uns desconjuros:    — Cré… cré… credo!    Não  passei  recibo  no  espantamento  de  Pereira.  Sentado  em  distância  pouca  de  mim,  o vizinho Badejo espalhava orgulho no varejo e no atacado. Chamou o seu pedação de galo: 
   — Venha cá, Machadinho. Conheça o coronel, Machadinho.    No canto do alpendre, o mestiço virou, mexeu, trabalhou o papo como se fosse falar e veio, sempre ciscando as tábuas, dar andamento ao chamado do major patrão dele. Era a traição em pena  e  espora.  Com  dedo  de  cafuné, Badejo  coçou  a  cabeça  do  galo  e mostrou  fingimento  de contrariedade:    — Tenho passado cada vexame por causa deste traste que nem é bom falar !    E felizão, sempre de cafuné na cabeça do galo, contou que em Cruz das Almas, em briga de amizade, Machadinho  quase  comeu  a moela  de um  frango  de  estimação  de Aristeu Fortunato, seu compadre, padrinho de todos os seus meninos:    — Foi um vexame que nem gosto de relembrar.    Mirei  o  malvadão.  Lá  andava  ele  de  atenção  em  mim,  pronto,  pelo  visto,  a  desfeitear  a minha  patente.  Se  tivesse  o  topete  de  dar  um  passo  mais,  era  galo  morto,  com  dois  tiros  de garrucha bem na raiz  do papo. Por  sorte  dele,  apareceu  Sinhozinho, todo  azedo  e resmungão. Deu por paus  e por pedras.  Que  era uma  falta  de  ordem bater  esporão no  Sobradinho  e  disso não ter ele aviso:    — Nunca recebi afronta maior, seu Ponciano. Falta de respeito, seu Ponciano.    Foi na  crista  dessa raiva  que  o velhote  deu  com  o  galo  de  Badejo  dos  Santos  em  dedo  de cafuné.  Sem consideração pelo major,  Sinhozinho destratou o bicho, que era coisa de ninguém apresentar em briga de aposta:    — É armação só. Desfalece no primeiro pau.    Catucado com vara curta, o major virou onça, cresceu de peito estofado contra Sinhozinho:    — Não pode falar quem não pode apostar.    Sabia Badejo dos  Santos que o velho, pobrinho de Jó,  sem outros teres do que um pastinho ralo  em  terra  de  gravatá  e  roseta-de-espora,  não  podia  arcar  com  responsabilidade  nem  de vintém.  Corri  em  socorro  dele.  Por  dinheiro  não  fosse  —  pedia  licença  ao  bom  major  para apostar, em nome de Sinhozinho, a pecúnia que ele estipulasse:    — De um a vinte contos de réis, vizinho.    Badejo recuou:    — Não vim prevenido para compromisso tão avantajado.    Passado  o nó  da raiva,  o major voltou  às boas,  que homem  de  suas  educações  sabia  serrar de  cima. Abraçou  Sinhozinho, misturou  a  sua  fumaça  de  cigarro na  dele  e tudo  findou na boa amizade dos currais. Mesmo assim, casou porco cevado contra uma partida de mandioca como o galo do coronel abria o bico no segundo tiro de pé:    — Ou até que no primeiro, amigo Sinhozinho.    De  coração  miúdo  vi  Antão  Pereira  largar  Vermelhinho  no  bico  do  galão  de  Badejo  dos Santos.  Cheguei  a  morder  o  charuto  quando  aquele  trem  de  guerra  inaugurou  carreira  na direção da minha prenda. O major, no fogo do entusiasmo, contou vantagem:    — Vizinho, dobro o compromisso e dou lambuja.    Pois digo que nem chegou a coçar o bolso. Com uma escora de pé, ministrada bem no vazio do papo, meu raçudo botou a peça do major no seu devido lugar, cabeça emborcada e rabo no vento.  A  risadaria  sacudiu  o  terreiro  e  na  poeira  desse  contentamento  fiz  a  minha  picardia. Torci a barba, avivei a brasa do charuto e inquiri na galhofa:    — Seu Pereira, essa briga começa ou não começa?    Badejo  dos  Santos  purgou  as  dívidas  e  saiu  do  Sobradinho  de  crista  rebaixada.  Dias 
andados,  na  conversa  de  um  mestre  de  tropa,  que  parou  na  sombra  das  casuarinas  para refrescar  os  cascos,  soube que  o major,  com  o desgosto  sofrido,  esvaziou todas  as gaiolas de criação e deu por mal acabada a sua carreira de galista:    — Tomei entojo de galo. Vou criar canário.    Levei o sucedido ao conhecimento de Vermelhinho:    — Capitãozinho, vosmecê acaba fechando tudo que é rinha desta nação.        Mas o melhor vinha chegando em lombo de mula. Veio  sem aviso ou bilhete. Uma noite, de passagem  pelo  Sobradinho,  Tutu  Militão  (“Com  as  devidas  licenças  de  Vossa  Mercê,  meu coronel  e  padrinho”)  trouxe  recado  de  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos.  O  dr.  Caetano  de  Melo queria contratar briga com meu galo, que sabia ser malvado em tiro de pé. Refuguei. O raçudo andava  em  desfastio,  que talvez  fosse mazela  de pevide. Em resposta  educada,  agradeci  e  fiz ver que  em  outra  ocasião  eu  saldava  a lembrança.  O  curador, bem uma  semana não  era  finda, voltou aparelhado de nova missão. Chegou embaraçado, cheio de dedos:    — Sou amigo do coronel, sou amigo do doutor.    Sem hora a perder, mandei que desembuchasse:    — Diga ao que veio, homem de Deus.    Sempre provido de desculpas (“Sou amigo do coronel, sou amigo do doutor”), o curador de cobra abriu o saco. Caetano de Melo fazia questão fechada de aquilatar, em aposta de grandes dinheiros, a valentia do meu brigador, nem que tivesse de comprar o  Sobradinho e  suas todas benfeitorias:    — É imposição dele, meu patrão.    Cortando o recado, obtemperei já esquentado:    —  Seu Militão,  diga  lá  de peito  aberto  se  esse  doutor  de Ponta  Grossa não  é  cismático  da cabeça?    Sem  nem  pousar  os  fundilhos  no  Sobradinho,  o  curador  voltou  pela  mesma  estrada  com resposta ferina:    —  Diga  a  esse  doutor  que  mande  preço  para  os  seus  currais  e  benfeitorias  que  ando talqualmente ele em maré de aquisição.    E  da  varanda,  enquanto  Tutu, perto  das  casuarinas,  arrochava  a barrigueira  da  mula,  dei  a última demão no recado:    —  Tem  mais,  seu  compadre.  Diga  lá  em  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos  que  o  coronel  do Sobradinho só bota briga de galo com sujeito que tomou chá em pequeno.    Disso resultou que o curador de cobra quase afinou a canela de tanto levar e trazer recado. Sua caixa de peçonha andava de um lado a outro como o ventão dos agostos. E o caso ganhou sustância, foi tão falado e refalado, que Juju Bezerra, da intimidade de Caetano de Melo, veio ao Sobradinho em missão de harmonia:    — Que é isso, amigo Ponciano? Que cobra mordeu o coronel?    De saída, repeli os préstimos dele. Que falasse de tudo, menos do doutor de Ponta Grossa:    — Malcriadão, seu Bezerra! Desaforado, seu Bezerra!    Juju  ia  responder  quando  Nazaré,  de  novo  no  Sobradinho,  cruzou  a  sala.  Vendo  olho  de Bezerra nas  suas partes, aí mesmo  é que avivou as tremuras do atrás, uma  sem-vergonhice de quase rebentar as costuras do vestido. Juju quis saber dos pormenores dela:    — Já anda nas serventias? Já estreou os paus da cama? 
   Foi  nesse  entrementes  que  Bezerra,  braço  embaralhado  no  meu,  garantiu  que  moça  bonita, de toldar  as vistas, morava  em Ponta  Grossa dos Fidalgos,  onde  eu  embirrava de não botar  o pé:    — É dona Bebé, prima de Caetano de Melo.    Ainda azedo, repeli o rabo de saia:    — Quero lá saber de dona Bebé ou da mãe dela!    Sem  fazer  caso  do  desabafo,  Juju passou  a  discriminar  as  variadas prendas  de  dona  Bebé de Melo, até firmar j urisprudência perto da cintura, quando, com os dedos, figurou um aro dos mais apequenados:    — Assim, seu Ponciano, pouco mais grosso que um tolete de taquara.    Vi logo que essa dona Bebé de Melo era da raça das tanajuras — o fininho da cintura servia de ligamento entre os fornidos de cima e as abundâncias de baixo. Mesmo assim, em presença de rabo de saia tão beneficiado, ainda sustentei meu resto de raiva:    — Não adianta o major vir na engabelação. Com gente de Caetano de Melo, nem no céu.    Quis  envergar  a  conversa  em  outro  rumo,  no  que  não  consentiu  Juju  Bezerra,  sempre  no discriminamento  das  linduras  de  dona  Bebé.  E  mais  depois,  na  hora  em  que  o  bom  major, piscando  olho, trouxe  a  furo  o  desejo  dela  de tomar  estado,  o neto  de  Simeão  amoleceu  e  só por honra da firma é que ainda desfiz da prima do doutor :    — Vai ver é uma mijona de pasto que mal sabe garatujar o nome.    Bezerra  esbravejou.  Muito  admirava  que  o  coronel,  suj eito  de  letras,  levantasse  uma suspeita tão descabida. Soubesse eu, para não cair em falso, que dona Bebé havia passado, em estudo de muito zelo  e respeito, uma  enfiada de  anos no  colégio das madres, pelo que levava todas as vantagens numa palestra de sala e saleta:    —  Ninguém  melhor  do  que  vosmecê,  que  cursou  escola  de  frade,  para  aquilatar  desse aprendizado.    Curvei o cangote e respondi macio:    — Colégio de batina não é brincadeira. Puxa pela ilustração.    Juju,  vendo  quebrado  meu  ânimo,  correu  em  socorro  do  mulato  Tutu  Militão,  que  eu  já culpava,  em raiva  fingida,  de ter  emaranhado, pior  do  que  cipó-de-cobra,  as relações  entre  o Sobradinho e Ponta Grossa dos Fidalgos:    — Tutu é boa pessoa, é mulato respeitador, coronel.    Cresci nos cascos:    — Não venha com panos quentes, pelo amor de Deus.    Sou  especial  nessas  pantomimas  e  ninguém,  em  caso  do  coronel  querer,  sabe  melhor amarrar  uma  cara,  torcer  uma  barba,  medir  assoalho  em  demonstração  de  zanga.  Parado  na frente  de  Juju  eu  parecia  o  pai  das  zangas.  Fiz  gato-sapato  de  Tutu  Militão  e  no  ombro  do pardavasco despejei as culpas todas do mal-entendido:    — Seu Bezerra, desta hora para o adiante dou a demanda com o doutor por acabada. O caso agora é com Tutu, com ele e mais ninguém, seu Bezerra!    E como reforço, larguei dois sopapos na mesa:    — Seu Bezerra, comigo ninguém brinca!    Quando,  na  estrela  papa-ceia,  bem  jantado  e  sobremesado,  Juju  deixou  o  Sobradinho, levava  carta  branca  no  bolso  —  podia  fazer  o  que  entendesse.  O  galo,  do  bico  ao  esporão, estava às ordens de Caetano de Melo. Por outro lado, se eu apreciasse a moça, se a beleza de 
dona  Bebé  estivesse  dentro  do  meu  conforme,  eu  entrava  de  galante  em  cima  dela.  Bezerra, nesse caso, ficava incumbido de aplainar as dificuldades, et cetera e tal. Foi como eu disse ao major :    — Gostando, caso. Quero encher o Sobradinho de cueiro e choro novo de menino.    Em troca, pedi  que  o major retirasse  da  caneta  de  Caetano  de  Melo  carta  dando  a  quizília por enterrada:    — Careço de ficar resguardado, Juju.    O bom major apoiou a minha estipulação:    — É o que eu ia dizer. O coronel não é qualquer um. É suj eito de responsabilidade.    Bezerra  cumpriu  o  prometido.  Mal  a  semana  virou  o  rabo,  deu  entrada  no  Sobradinho  a carta  de  Caetano  de  Melo.  O portador,  um  retinto  de  feição  de  branco,  veio  em  cavalo  rico, pescoceiro  de  boa  presença.  Luzia  nas  pratas  e  nos  caprichos  da  sela.  Saiu  o  portador  do debaixo  de  um  chapéu  branco  de  aba  larga,  dos  usos  de  gente  enricada.  Com  o  máximo respeito disse quem era:    — Nicanor  do  Espírito  Santo,  da parte  de  meu padrinho  dr.  Caetano  de  Melo, para  servir Vossa Senhoria.    A  fala do retinto  era limpa, de quem  alisou banco de  colégio. Em  cortesia passava  a perna no  próprio  Tutu  Militão  e  outros  educados  da  pastaria.  Por  tudo  pedia  licença,  até  para debelar as umidades do suor. Ordenei que ocupasse cadeira:    — Esteja a conforto, como em sua casa.    O retinto corcovou lá embaixo, de quase varrer o assoalho com a aba do chapéu:    — Sou muito agradecido a Vossa Senhoria.    Como  manda  a  educação,  firmei  interesse  no  passadio  de  Caetano  de  Melo  e  demais pessoas da família dele. O retinto,  sempre bem falante, não deixou inquirição de pé — matou uma  a uma nas nascenças.  Cumprida, de minha parte,  essa  obrigação, pedi licença de modo  a ler a carta trazida. Era peça de lindo acabamento, letra miúda, que corria de lacraia de uma a outra borda  do papel. Nela,  depois  de  outros  agrados,  o  doutor  convidava  o  coronel  a  “dar  a honra de  sua presença em Ponta Grossa dos Fidalgos, dentro do estabelecido pelo major Juju Bezerra”. Dei vazão ao meu contentamento:    — Sim senhor, o doutor é de muita ilustração.    Satisfeito,  dobrei  a  carta  e  chamei  gente  da  cozinha,  logo  aparecida  na  pessoa  de Nazaré. Dando  com  o  retinto,  a  roxinha  tomou porte  orgulhoso,  esmerou  no  andar,  apertou  a  chita  do vestido  de  modo  a  sobressair  os  avultados  e  escondidos  de  sua  pessoa.  Em  voz  autoritária, aborrecido  de ver tal  assanhamento,  intimei  que trouxesse  a  aparelhagem  de  escrever,  caneta nova e papel fino, de carta de desembargador :    — Um maço que está encafuado no armário de vinhático.    Demorei bem meia hora no trabalho da resposta. Cuidei, por causa do retinto, de não botar a  língua  de  fora,  como  pede  a  minha  natureza  em  tais  circunstâncias.  Fiz  obra  vistosa  — montei letra de curva, toda floreada, aprendida nos meus dias de escrivão. Acabado o serviço, sequei  a  tinta  na  farinha  de  pau.  Em  seguimento,  afastado  da  mesa,  reli  a  peça  e,  visto  tudo estar  no  conforme,  soltei  embaixo  o  jamegão  de  Ponciano  de  Azeredo  Furtado,  com  tanta sustância que a pena rangeu nas ferragens. Feito isso, alforriei o portador :    — Bons regressos e recomendações ao dr. Caetano de Melo.    De pé,  encomenda  no bolso,  o  retinto  fez  empenho  em  dizer,  com  a  minha  devida  licença, 
que conhecia desde muito tempo passado o coronel do  Sobradinho, quando andou, por ordens do seu padrinho, em escola na cidade:    — Pratrasmente de dez anos, meu patrão. Pratrasmente disso.    No  último  lance  da  escada,  cabeça  desguarnecida  de  chapéu  em  sinal  de  respeito,  o afilhado de Caetano de Melo deu a última brochada na cortesia:    — Nicanor do Espírito Santo, um criado de Vossa Senhoria.    Foi  o retinto virar  as  costas  e  correr  entre  o  Sobradinho  e Ponta  Grossa  aquela viração  de amizade.  Toda  semana  vinha  portador  de  Caetano  de  Melo.  Era jacá  de  goiaba,  partida  de fruta-de-conde  ou  remessa  de  aguardente.  Ponciano,  de  interesse  montado  em  dona  Bebé, rebatia na mesma toada. Lá mandei o meu melhor cabrito  e uma tarde  fiz chegar às posses do doutor um cavalinho azeitonado, de canela  fina, capaz de correr na  frente do vento de agosto. Queria,  em  cima  dessas  prendas,  encher  as  vistas  de  Caetano  de  Melo  e  de  sua  delicada prima. Foi quando lembrei a Juju Bezerra, numa de minhas idas a  Santo Amaro, onde cortava roupa nova, da necessidade de comprar presente vistoso para o dedo ou o pescoço da menina Bebé de Melo:    — Coisa assim na ordem de um anel, colar ou mesmo figa de ouro.    Juju  desaprovou, por não  calhar  dentro  das  etiquetas. Além  do mais,  Caetano  de  Melo  era cheio de nós pelas costas, meio cismático:    — Pode não apreciar.    No  fim  das  águas, prazo  marcado para  a briga  de  galo,  eu já  implorava  a  são  Jorge  e  são José,  fora  o  reforço  de  outros  santos,  que  o  mestiço  do  Sobradinho  perdesse  a  guerra.  Não desejava levar desgosto ao doutor, que eu conhecia de longe, sem bom-dia ou boa-tarde, mas a quem muito apreciava. Nas conversas com o galo nunca esquecia de recomendar :    — Veja lá! Veja lá! Não vá vosmecê judiar do bichinho do doutor.        Até  que  um   sábado,  na  comandância  de  armada  comprida,  parti  para  a  viagem  do compromisso. Saí de madrugadinha, na hora em que o fresco da manhã começa a desembuchar. Antão Pereira, todo recoberto de responsabilidade, levava Vermelhinho em casco preguiçoso. O cavalo dele era assemelhado a uma paina, sela para bunda de moça. Não queria Antão socar as carnes do raçudo, que esse foi conselho recebido do mestre tratador dele. Dava gosto ver a campeirada  do  Sobradinho  em  trafegação  de  tanto  orgulho.  Cada  qual  desencovou  do  baú  o melhor  pano,  o  arreio mais  de  domingo.  Saturnino  Barba  de  Gato  até  de  água  de  cheiro encharcou o sovaco. Muito senti a ausência de João Ramalho, que desde a mazela de sarampo não foi mais homem de grandes esticadas. Pediu, por especial favor a ele, que eu fosse em seu cavalo,  um  tordilho  carregado  no  vermelho,  pata  educada,  capaz  de  virar  pasto  dia  e  noite, mesmo desbeneficiado de água e descanso:    — É regalia que quero receber do coronel.    Aprovei o pedido e a melhor  sela de meu avô vestiu o tordilho de João Ramalho. Em cima dela  ia  o  coronel  do  Sobradinho  todo  embonecrado,  roupa  saída  da  tesoura,  botina  de primeira  sola.  A  barba  corria  vistosa  no  peitoral  da  camisa.  A  bem  dizer,  eu  cheirava  à inauguração.  No  coice  meu  e  de  Juquinha  Quintanilha  vinha  aquele  cordão  de  boiadeiros, engrossado  a  cada  porteira  ou  encruzilhada. Na  rabeira  da  comitiva  navegava  uma  miuçalha do  Sobradinho  com  Janj ão  Caramujo  no  miolo.  Já  bem  adentrado  nos  ermos,  tive  de  repelir certa  braçada  de  inventados  de  um  limpador  de  pasto  de  Badejo  dos  Santos,  que  escumava 
mentira  sem  pejo  de  ser  pegado  em  falso.  Garantiu  ter  dado  cabo  de  uma  cobra  de  seus duzentos palmos de tamanho e trinta arrobas de peso:    — Provo mostrando a pele.    Nas  bochechas  dele  desfiz  do  serpentão  com  o  caso  de  uma  monstrona  que  apareceu  no mandiocal de Santinho Belo, primo afastado de meu avô Simeão. A danosa devia ter vindo das águas do mar salgado, porque pasto nenhum, por mais viçoso, podia aguentar exageramento de tal  calibre.  Morta  a  bicha,  dois  dias  e  duas  noites  o  povo  de  Santinho  Belo  não  fez  outro trabalho que não puxar rolete de cobra do seu fundo covil. Foi um tirar de serpente sem fim. A pele,  vendida  no  comércio  de  espichados,  comportou  mais  de  dúzias  de  cintos  dos  largos  e ainda rendeu um tapete de sala:    — Invenção dos matos nunca vista.    O sujeito, que dava mostra de entender do riscado, concordou:    — Do modo falado pelo coronel, só podia de ser mesmo a tal serpentona do mar.    Dito  isso,  afundou na  sua  desimportância. Voltei  ao  comando  da  armada, junto  de Juquinha Quintanilha.  Nesse   chega-não-chega,  tive   grande   contentamento   da  vista   e   do   coração. Descido  de  sela,  guarda-chuva  no  braço,  correntão  de  ouro  trespassado  na  barriga,  Pires  de Melo esperava por mim na  sombra de uns oitizeiros. Requereu licença para engrossar a tropa do Sobradinho:    — Quero gozar da boa companhia do coronel.    Chapéu  no  peito,  como  manda  a  educação,  desci  do  tordilho  e  fui  levar  cumprimentos  ao amigo:    — Não esperava tanta honra, vizinho.    E  foi  assim,  ao  lado  dele,  que pisei  as primeiras posses  de  Caetano  de Melo. Pouco mais, aparecia  a  casa  do  doutor,  munida  de  um  vistoso  cata-vento,  bem  plantado  no  miolo  de  um verdal de jaqueiras e pés de manga. Dava prazer avistar moradia tão garbosa. Gabei a obra:    — O doutor é de gosto, sabe viver no bem-bom.    Tive  chegada  de  rei.  Juju  Bezerra,  de  mão  própria,  pegou  no  estribo  do  tordilho.  Da varanda, desceu um sujeito de cabeça esbranquiçada, todo aberto em franqueza. Nem precisei de ser apresentado, coronel-este-é-o-doutor, doutor-este-é-o-coronel. Vi logo que era Caetano de  Melo.  Estalei  os  ossos  dele  contra  a  tábua  do  meu  peito,  que  o  homem  era  de  porte.  Daí choveu cortesia:    — É uma honra ter o coronel em visita.    Paguei a educação dele com educação maior :    — A honra é minha e dela não abro mão nem por todo o dinheiro do governo.    Pelo  braço  de  Caetano  de  Melo  ganhei  a  boca  da  casa,  onde  Juju  Bezerra  apresentou  a minha  pessoa  a  uns  e  outros.  Na  sala,  fazia  as  honras  da  hospedagem  uma  dona  de  preto, altona,  que  mostrava  retrato  ostentoso  do  doutor  em joia  de  peito.  Juju  correu  na  frente  da apresentação.  Era  dona  Antônia,  irmã  de  Caetano  de  Melo,  na  gerência  da  casa  desde  que  a senhora dele foi levada deste mundo. Troquei finura com a dama, no cabo do que pediu que eu ficasse a gosto:    — Como em sua casa, coronel.    Pires  de  Melo,  aparentado  da  família,  ficou  como  se  em  casa  estivesse.  Mas  quem,  em verdade,  dava  carta  era  Juju  Bezerra, mais  dono  de  tudo  do  que  o próprio  doutor.  Costurava de  um  lado  a  outro  na  mandância  das  ordens  e  providências.  Juquinha,  a  um  canto  da  sala, 
logo encontrou orelha desimpedida para jogar seu boquejo de replantio e manha de rês. Fiquei preso na conversa de Caetano de Melo que era possuído da mania de endireitar a todo instante a manga do paletó, dando repuxão no braço e no pescoço. Sempre junto a mim, no conforto de sua  cadeira,  indagou  das  pormenorizagens  do  Sobradinho,  o  quilate  da  criação,  a  força  dos pastos, se havia muito campo sujo ou peste de berne:    — Pelo que corre, é invernada de grande rendimento, para suas muitas cabeças de gado.    Não  deixei  pergunta  sem  resposta  e  tive  o  cuidado  de  não  espichar  os  meus  herdados  em cabeças de rês ou dinheiros em caixa. Desavantajava tudo:    — Qual o quê, doutor ! Herdança é a sua, de largas águas e pastos perenes.    De sua vez, ele garantia não haver campo de engorda melhor do que o Sobradinho, que isso era sabido e apregoado da costa do mar aos cafés da cidade:    — Só em capim-colonião o coronel tem uma fartura de não acabar mais.    Nesse rasga-seda  a  gente  ficou  até perto  do meio-dia,  quando  dona Antônia veio  dizer  que uma guarnição de toalha, com bacia de lavar mão, esperava o coronel no quarto da frente:    — Por favor, por favor.    Enrolado  no  braço  de  Juju,  fui  limpar  a  barba  e  esmerilhar  o  cabelo.  Porta  na  tramela, ligeirinho pedi ao major notícia da dona Bebé de Melo:    — Seu compadre, onde anda essa beleza?    Em  garganta  sumida,  Bezerra  deu  os  motivos  da  ausência  da  moça.  Uma  caxumba  tinha jogado dona Bebé no resguardo do vento:    — Eu mesmo estipulei o retiro dela.    Mostrei  abatimento  por  cortar  terno  novo  e  não  ser  visto  pela  prima  do  doutor.  Era  azar demais, urucubaca da grossa:    — Vou andar com galho de arruda na concha da orelha.    Bezerra, de pronto, limpou meu desgosto, com ponderação safada:    — O coronel pode ir comprando os depurativos.    Foi rindo que afundei a cabeça na bacia  e  apurei a barba. E  enquanto alisava a piaçava do cabelo  engrandeci  as  platibandas  de  dona  Antônia.  Era  coisa  de  admiração,  apetrechos  de fazer  vista.  Suspirando,  relembrei  não  existir  outro  igual  ao  neto  de  Simeão  para  trabalhar nessas partes fracas das damas:    —  Sugo  mais  que  bezerro  novo,  seu  Juju.  Sei  chorar  nesses  murunduns  mais  que  criança nova, seu compadre.    O  major,  em  termos  de  reprimenda,  mandou  que  eu  tivesse  tino  —  dona  Bebé  era  melhor aquinhoada do que a prima Antônia:    — É a moça calhada para cativar o coronel.    Ainda  quis  obtemperar,  mas  Bezerra,  abrindo  a  porta,  afundou  no  corredor.  Tive  que acompanhar os passos dele. Na  sala, em roda animada, a conversa de principal era o galo do Sobradinho. Pires de Melo, para desgosto do doutor, recriminava as brigas de rinha:    — É uma judiação, primo Caetano. O governo devia ver isso.    O doutor cresceu em defesa do povo galista. O que o governo devia olhar era a bandalheira da  política,  gente  enricando  do  dia  para  a  noite,  como  Chiquinho  Lima,  que  de  falido  do açúcar passou  a  morar  em  casa  avarandada  desde  que  ficou  na  cabeça  de uma  repartição  de impostos:    — Isso é que o governo devia ver, seu Pires de Melo. Isso e não briga de galo. 
   Entrei de modo a harmonizar as partes. Abri as asas dos braços entre os demandistas e com eles caminhei varanda fora. Já nesse andar a conversa era outra e pouco mais depois, quando foi  servida uma bandeja  de refresco, ninguém mais  lembrava  a  desavença.  O  que  Caetano  de Melo queria era ver o tal galo do Sobradinho, que devastava, no esporão, terreiros e rinhas.    — Mande subir o valente, amigo coronel.    Incumbi  Antão  Pereira  de  trazer  o  bichinho.  Nisso,  uns  dedos  pretos  bateram  em  meu ombro. Era o retinto da carta de Caetano de Melo. Cumprimentei o estafeta:    — Como vai a sua pessoa?    O retinto curvou o busto e retribuiu respeitoso:    — Como Deus é servido, coronel. E como passa Vossa Senhoria, meu patrão?    Feita  a  cortesia,  quedou  ele  em  distância  regulamentar,  sem  mais  abrir  o  bico.  Nesse entrementes,  chegou  Vermelhinho  no  braço  de  Antão  Pereira.  Retirei  do  poder  dele  o  meu valente e fiz a apresentação:    — Conheça o dr. Caetano de Melo, capitãozinho.    Acharam  graça  da patente  dele  e  o próprio Pires  de Melo teve  de reconhecer  que  era uma galhardia  de  galinho.  O  doutor  é  que  amarrou  a  cara,  sempre  atrapalhado  com  os repuxos  do paletó.  Sabedor de que Pé de Pilão tinha aprendido as artes de guerra em Poço Gordo, deu as piores ausências do mestre galista de lá:    — Conheço aquele lambão. Botou a perder um crista-de-serra que criei em mimo de pai.    Juju Bezerra puxou pela opinião dele, se fazia fé no galo do Sobradinho, bicho que vinha na frente de mais de uma dúzia de brigas:    — É possuído de um tiro de pé que só vendo.    Caetano  de  Melo,  como  doutor  dando  consulta, rolou  o  dedo na barba rala  e  falou  manso. Sabia Juju que ele, em assunto de rinha, era franqueza dos pés à cabeça.    — Não engambelo ninguém. Sou galista desde menino. Conheço essa raça no ovo.    Por  isso,  e  sem  ofensa  às  partes  presentes,  podia  garantir  que  o  galo  do  Sobradinho  não tinha porte para aguentar um trem de briga como era o pescoço-pelado de seu terreiro:    — Caso uma boiada contra dois carneiros se o galo do amigo Ponciano passar do primeiro refresco.    Tive vontade de repelir a ousadia do doutor e a custo sofreei essa comichão. Não ia perder as sortidas prendas de dona Bebé por uma desimportância de rixa de galo. Tinha cama vazia a encher,  uma  peça  de jacarandá  apropriada  para  o  maior  rabo  de  saia  que  aparecesse.  Sem pejo,  deixei  que  Caetano  de  Melo jogasse  nos  cornos  da  lua  o  valentão  de  sua  rinha.  Livre ficou para contar e recontar as peripécias do pescoço-pelado de Ponta Grossa, desde que saiu do  ovo  e  entrou  no  serviço  militar.  Só  comia  alpiste,  milho  escolhido  e  osso  ralado.  Viajou légua sobre légua por imposição de pegar, em colégio de bom tratador, firmeza no pescoço. E por cima de tanta virtude, o malvado de Ponta Grossa era munido de um cacoete que ninguém tirava:    — Aprecia vazar olho, que é a parte onde ele bate com mais sustância.    Em presença de tanta desconsideração, a língua do gago Pereira chocalhou no céu da boca, já  em  preparo  de  resposta.  Com  um  rolar  de  barba,  cortei  a  gagueira  dele  e  mandei  que levasse  Vermelhinho  para  fora  da  sala.  Não  desejava  que  minha  prenda  engolisse,  sem revidância, as grandezas do outro. Talvez que até apanhasse encabulamento. Na  saída do galo chamei Juju Bezerra a um particular : 
   — Então, o major afiança que posso ir comprando os tônicos e revigorativos?    O almoço das homenagens levou tempo. Começou na asa de doze frangos e acabou na farofa de vinte leitoas. A digestão foi tirada no debaixo dos pés de jaca, em cadeira preguiçosa. E o fresquinho  da tarde,  soprado  da  costa, não  fez mais  que  empurrar  a  demanda para  os  confins do dia. Era de muito gosto a benfeitoria trazida pela viração do mar. A briga, por isso mesmo, só  saiu  na  quebrura  das  quatro,  quando  Juju  Bezerra  bateu  palmas  e  avisou  que  os  galos estavam na ponta dos cascos:    — Dr. Caetano de Melo, coronel Ponciano de Azeredo Furtado!    A  rinha  era  de  conforto.  Cadeiras  de  palhinha  rente  do  picadeiro  e,  em  volta,  bancos  de madeira, uns  empoleirados nos  outros, talqualmente  em  circo  de  cavalinho. A  campeirada  do Sobradinho, no  comando  de  Quintanilha,  derramou  seus  assentos  atrás  de mim.  Tive  lugar  de honra,  em  camarote  especial,  bem  na  boca  da  rinha.  Do  outro  lado,  por  não  admitir misturagem, ficava de solteiro o assento de vime de Caetano de Melo. No concernente a briga de  galo,  era  cismático,  todo  cheio  de  nós  pelas  costas.  O  doutor  mesmo  não  escondia  esses seus particulares:    — Só aprecio briga de galo sem muito povo em meu derredor.    Pires de Melo é que não deu o ar de sua graça. Ficou na varanda, na saia da prima Antônia, resmungando contra a judiaria:    — Não tenho natureza para aguentar tanta malvadez.    Juju  Bezerra,  escolhido  juiz  da  pendência,  ficou  contaminado  das  maiores  importâncias. Longe  andava  ele  do receitador  de poções  e  comandante  de meganhas  de  Santo Amaro. Mais fechado  que  desembargador  da  Justiça  em  dia  de  decidir  questão,  não  dava  confiança  a ninguém.  E  tanto  era  dono  do  terreiro  que  Antão  Pereira  foi  tirar  uma  palavra  dele  e  levou descompostura:    — Fique em distância regulamentar. Fale de longe.    E foi como se estivesse na comandância de uma tropa que mandou vir os rixentos:    — Os galos, os galos!    Lá  veio  Vermelhinho  no  braço  de  Antão  Pereira.  De  imediato,   forrado  de  penas   e rompâncias,  apareceu  o  galo  do  doutor,  um  pescoço-pelado  de  mau  caráter.  O  bico  parecia mais uma foice e um cachorro danado não ganhava dele em raiva e vingança.  Saturnino Barba de Gato teve espanto:    — É bicho escolado, traquejado de asa.    Virei o busto para atender a uma petição do compadre Quintanilha e nisso Juju deu a guerra por começada. Já Vermelhinho tinha levado o primeiro pau pela crista, coisa de estalar. Atrás do primeiro veio  o  segundo  e, numa  enfiada,  em  feitio  de  cordão  de maracujá,  o terceiro  e  o quarto.  Assim pegado  no  desaviso,  Pé  de  Pilão  foi  atirado  contra  o  encosto  da  rinha.  E,  mal avivou  as  forças,  já  o  pescoço-pelado  de  Caetano  de  Melo  largava  na  praça  outro  coice ferino.  Lá  viajou  meu  galinho  de  cambalhota  e  cuidei  que  tudo  estivesse  arrematado,  que  a queda  levava  peçonha.  Como  tomado  dos  demônios,  o  povo  de  Ponta  Grossa  deu  de  fazer algazarra e molecagem:    — É galo ou galinha?    Nesse  vaivém,  um  pedaço  de  pena  de  Vermelhinho  voou  de  passarinho,  o  que  esticou  a berraria dos circunstantes. No meio da azuada, um brincalhista engatilhou pergunta mofina:    — Que hora é o enterro dele? 
   Caetano de Melo, no gozo da  sua cadeira de vime, achava graça nos deboches. Nas minhas costas eu sentia o bafo de tristeza de meus boiadeiros. Antão Pereira, na porta da rinha, torcia os  dedos.  Revirei  a barba para  mostrar  segurança,  acendi  charuto. No picadeiro,  o pescoço- pelado fazia e desfazia do meu galo, catucava embaixo e dava em cima, no lado e na rabeira. Coitada da minha prenda! Trocava perna, já sem aguentar o peso nem do vento. Só resmunguei quando  um  vira-bosta  qualquer  das  cozinhas  de  Caetano  de  Melo  mandou  que  o  pescoço- pelado furasse o olho do meu bichinho:    — Faz galo cego nele!    Na  certa  o  brigador  de  Ponta  Grossa  entendia  língua  de  gente  —  num  repente  despachou aquele tiro  daninho bem no  arco  da vista  do meu raçudo.  Foi uma  saliência  de ponta  a ponta do  terreiro.  Era  quem  mais  gritava.  Caetano  de  Melo,  felizão  da  vida,  repuxou  a  manga  do paletó e mandou o retinto seu afilhado saber se eu não queria dar um finalmente na questão:    — Coronel, meu padrinho pede licença por motivo de sustar a sangria.    Mostrei espanto:    —  Sustar o quê, homem de Deus? Diga ao padrinho de vosmecê que galo meu  só começa a esquentar no segundo refresco.    Rejeitei  a  proposta  do  doutor  de  coração  trespassado.  É  que  Vermelhinho já  andava  em modelo de peru de festa, curtido de cachaça. Meio aluado das ideias, navegava sem leme, cai- não-cai.  Sinhozinho  Manco,  chegado  em  atraso  a  Ponta  Grossa,  sem  saber  do  acontecido, avisou que casava vinte por um no galo do coronel Ponciano de Azeredo Furtado:    — Pego qualquer aposta, graúda ou miúda.    Fizeram  pouco  dele.  Um  brancarrão,  que  apreciava  soltar  deboche,  desfez  da  pobreza  de Sinhozinho. Berrou que em Ponta Grossa ninguém tirava dinheiro de cego ou de capenga:    — Lugar de pobre é na porta da igreja, homem.    O  sujeitão  não  conhecia  de  quanto  danifício  era  forrado  o  gênio  do  velho,  que  nunca deixava afronta sem resposta. Levou pelas platibandas ofensa da maior :    — Pago com os ouros que a mãe deixou no debaixo do meu travesseiro.    O brancarrão, assim ofendido na raiz da nascença, fez modos de largar o assento:    — Repete o lance, se é homem.    De  propósito,  levantei  o  bustão  e  tudo  ficou  sanado  —  ele  com  a  afronta  e  Sinhozinho serrando de cima:    — Pago com o dinheiro da mãe, j á disse.    A  verdade  é  que  o  mestiço  do  doutor  era  escolado  e  mofino,  muito  sabedor  das  artes  e negaças  da  guerra.  Vermelhinho,  em  luta  contra  tanta  picardia,  lembrou  de  esconder  a cabecinha no  sovaco  do  outro,  de jeito  a  evitar  castigo  desregrado.  Pois não  é  que pescoço- pelado,  como  fosse possuído  de  tino, mudou  o rumo  da  demanda!  Deu  de brigar  em  linha  de poeira,  barbela  quase  rente  do  chão,  com  a  qual  providência  desbaratou  o  esconderijo  de Vermelhinho. Tive que render homenagem às ilustrações dele:    — Sim senhor ! É artimanhoso dos mais.    Sinhozinho é que deixava de enxergar grandeza na peça de Caetano de Melo, Lá do alto, no pau do assento, não cansava de ministrar conselho:    —  Capitãozinho,  catuca no papo, no  saco  do milho,  que  essa raça  é  começo  só.  É  fogo  de palha, compadre!    Não havia ninguém que não mangasse do velho, da sua maluquice de jogar dinheiro em galo 
bobo.  Do  seu  trono  de  orgulho,  Caetano  de  Melo  soltava  sabença.  E  lá  uma  ocasião,  falou grosso, de modo a entrar em ouvido até de mouco, que o mestiço do coronel não cruzava vivo o primeiro refresco:    — Vai emborcar, vai emborcar.    Boca  de  urubu  assim  nunca  vi !  Bem  não  disse  e já  Vermelhinho,  pegado  em  parte  mole, focinhava na areia, mais sangue do que galo. Com essa malvadez, a rinha quase veio abaixo:    — Mata! Mata!    Quando  o  berrame  amansou,  de  novo  a  falinha  de  Sinhozinho  pulou  com  nova  remessa  de desafio:    — Cem por um no galo do coronel.    Chegado  o primeiro refresco,  desembaracei meus  dois metros  de tamanho  e  fui  consolar  o meu bichinho. Espadanei a fumaça do Flor de Ouro na cumeeira dos circunstantes, em risco de chamuscar o topete de um e outro. Não contente, arrotei vantagem:    — A briga vai mudar do pé para a mão.    Encontrei  o  capitãozinho  na  lavagem,  cabeça  empapada  de  sanativos.  Mirou  o  dono  com olho tristento de quem estivesse dizendo adeus-vou-embora, pedindo desculpas por tão grande desgosto. Digo que fiquei de coração quebrado e estive a ponto de verter lágrimas no peitinho dele.  Ia  fazer  essa  vergonha,  retirar  o  galo  da  demanda,  quando  vi  Sinhozinho  em  discussão ferrada no meio  de um povaréu  de boiadeiros. Não podia  desmerecer  da  confiança  do velho, pelo que mandei Antão Pereira deixar Vermelhinho por minha conta:    — Quero ter um particular com esta mimosura.    Carreguei o desarvorado para os  sozinhos do fundo do terreiro e nesse  sossego, na  sombra de  um  pé  de  oiti,  chamei  o  bicho  às  responsabilidades.  Que  vergonha  era  essa  de  levar esporão do rabo à crista,  sem mostrar valentia? Onde morava aquele  seu pau nefasto, parente do coice de mula? E severista:    — Que adiantou vosmecê receber regalia de capitão se não sabe honrar a patente?    Essas e outras inquirições fiz dentro da maior franqueza e amizade. Cabeça pendida, o galo parecia bicho que quisesse desembuchar intimidade, mas cabreiro e sem jeito. Foi quando tive um estalo, um repente. Quem sabe que ele tinha levado a sério as recomendações que dei para não  estuporar  o  galo  do  doutor?  Só  podia  ser  isso  e  mais  embaraço  de  monta  nenhum.  O educado  do  bichinho,  sem  querer jogar  desgosto  na  tão  bem  nascida  amizade  de  Caetano  de Melo por mim, achou de melhor paz entregar as rédeas da guerra ao brigador de Ponta Grossa. Pensei de Ponciano para Ponciano:    — Só pode ser isso e mais embaraço nenhum.    Com  essa  ideia,  e  para  debelar  qualquer  mal-entendido,  retirei  o  charuto  do  beiço  e  no ouvidinho  do  galo  dei  nova  ordem.  Que  ele  deixasse  de  bobagem  e  largasse,  com  fé  e peçonha, o pau no peitoril do pescoço-pelado:    — Como vosmecê procedeu naquela demanda do major Badejo dos Santos.    Nada mais careci de dizer. Como se tudo entendesse, Vermelhinho pulou nos esporões. Tive de firmar o braço, pois de grande ânimo ficou ele tomado. Bateu asa e, se não sou punho duro, acostumado  a  puxar  rês,  não  ia  aguentar  o  roj ão  do  danadinho.  Mandei  que  ficasse  em sossego:    — Tome tenência, capitão, tenha tino.    Antão  Pereira  correu  na  indagação  do  que  havia  e  parou  no  espanto  de  encontrar  em  meu 
poder um outro brigador, feito de guerra, galhardão e desabusado. E diante da boca aberta de Pereira,  suspendi  o  galinho  na  palma  da  mão.  Lá  em  cima  a  crista  parecia  um  estandarte  de batalha. Tive orgulho dele e falei pelo canto da boca:    — Esse povinho de Ponta Grossa vai ver agora o que é um galo com raiva de surucucu.    E  foi,  na  ponta  do  meu  bração  de  palmeira,  quase  raspando  as  nuvens,  que  Vermelhinho voltou  ao recinto  da rinha,  onde Juju Bezerra já preparava  o recomeço  da briga. Um velhote, fumador de cachimbo de barro, vendo o mestiço em tamanha saliência, perguntou galhofista:    — O coronel bandeou de galo?    De  novo  Caetano  de  Melo,  mal  acomodei  o  rabo  na  cadeira,  mandou  missioneiro  ao  meu arraial com pedido de licença para sustar a briga. De novo repeli o requerido pelo doutor :    — Que briga, homem de Deus? Não teve briga nenhuma. Agora é que o vento vai soprar.    Foi  o  tempo  justo  de  Juju  Bezerra  autorizar  a  largada  dos  galos.  O  pescoço-pelado,  no costume  de  fazer  gato-sapato  de  Vermelhinho,  veio  em  modelo  de pavão, peito  estufado,  asa solta, dono da rinha. O capitãozinho, já de carta branca no esporão, negaceou. Fez de conta o sem-vergonhinha  que  era  galo  sem rumo, perna  sem  força, bico  caído. Um  caçoísta,  do  fundo do terreiro, largou deboche na praça:    — Sinhozinho, a que hora é o enterro?    Não precisou o velho de responder, porque em seguimento aquele povo de galista viu coisa nunca  existida  em  nação  de  rinha.  Viu  o  pilão  de  Vermelhinho  varejar  o  galo  de  Caetano  de Melo  em  distância  de  cinco braças no  além  do  terreiro.  Sucedeu  que  o pescoço-pelado,  sem saber da nova deliberação, partiu galhardista e  sem cuidados contra o raçudo do  Sobradinho. Digo,  sem  orgulho,  que  também  foi  o  último  trabalho  que  teve  na  dita  demanda.  Juntando  as armas,  Vermelhinho  disparou,  à  queima-roupa,  o  seu  coice  de  guerra.  O  brigão  de  Ponta Grossa,  pegado  no  desprevenido,  subiu  e  desceu  fora  da  rinha, já  todo  desmunhecado,  bico aberto,  ofendido  em  parte  mortal.  Na  poeira  dele,  como  um  corisco,  correu  meu  galo  em guerra de exterminação. Adverti do meu assento:    — Vai matar o pescoço-pelado! Vai matar !    Gente esfregava as vistas, cuidando estar em sonho de travesseiro. Sinhozinho, no mando da desordem,  pulou  no  picadeiro  como  se  estivesse  com  o  alvará  dos  capetas.  Gritava  de possesso:    — Eu falei, eu avisei. Era fogo de palha só!    Enquanto isso, a chapelada dos campeiros do  Sobradinho voava de andorinha de um lado a outro.  Coitado  de  Juju  Bezerra!  Quis  manter  as  rompâncias  e  severitudes  de juiz  e  quase  foi levado no ventão de braços e pernas que desabou na sua cabeça. Mais de um sujeito correu na salvação  do pescoço-pelado,  que no pega-pega  embarafustou  sua pessoa por  galinheiro  onde imperava  criação  de  panela.  Um  capão,  arvorado  em  dono  do  terreiro,  engordou  o  peital  e veio tirar pergunta na precisa hora  em  que  chegava Vermelhinho.  O pobre nunca  soube  como morreu no esporão do meu galo. Não vendo segurança, o pescoço-pelado do doutor mudou de rumo. Lagartixou por uma  cerca de bambu, mas tão  sem  força que logo  caiu na  espingarda de Vermelhinho.  Antão  Pereira,  com  dedo  de  gato,  salvou  os restos  de  vida  do  galo  de  Caetano de  Melo  quando  meu  raçudo já  atiçava  fogo  no  canhão.  Sinhozinho,  chegado  nesse  preciso instante, fez pouco-caso:    — Seu Antão, diga logo se algum trem de linha passou por cima do galo do doutor?    Mais  de  quinhentos  mil-réis  engavetou  Sinhozinho  em  aposta  avulsa,  fora  o  boi  de  raça dado  a  ele  de presente pelo  dr.  Caetano  de  Melo,  que  sabia  fazer justiça  de  grande.  Embora encabulado,  não  regateou  elogios  e  gabos  ao  brigador  do  Sobradinho.  Braço  na  amizade  do meu, sempre com trejeitos no pescoço, assim sentenciou o bom doutor :    —  Coronel,  tenho  quarenta  anos  de  rinha  e  coisa  assim  nunca  vi  igual  ou  parecida.  Faça preço, coronel, que pago em ordem de banco.    Não vendi  o galo. Estreitei  a  amizade de  Caetano de Melo na promessa de que ia pedir  ao major Serapião Lorena frango aparentado do meu:    — Lorena vai ter muita honra em mandar esse regalo para o doutor.    Era  tempo  de  preparar  a  despedida.  De  chapéu  no  peito,  pedi  que  apresentasse  meus cumprimentos  a  dona  Bebé  de  Melo  desejando  melhoras  em  sua  caxumba.  De  dona  Antônia recebi  aperto de mão  especial, de dar na vista. Abracei Pires de Melo  e pedi  a Juju Bezerra, em conversa final, que cuidasse de meus interesses na cabeceira da moça doente:    — Vou preparar garrafada de jurubeba e levanta-homem, seu compadre. Não quero beber os revigorativos em falso.    O major riu, brincou comigo, piscou o olho:    — É macuco no embornal. Pode preparar as armas, seu compadre.    A  noite  apontava.  Deixei  o  casarão  no  arremate  dessas  vassalagens.  O  retinto Nicanor  do Espírito  Santo,  por  cortesia  do  doutor,  veio  trazer  a  comitiva  na  última  porteira  de  Ponta Grossa dos Fidalgos. Um luarão de pasto  subia no distanciado. Na proa de minha armada, no ombro de Antão Pereira, seguia o galo do Sobradinho. Parecia um rei. 
 Veio então agosto e com esse mês de desgosto o caso do lobisomem.  São Bartolomeu abriu seu  saco  de ventos  em  cima  dos  ermos. Era um  assobiar  sem remédio, um  gemer  sem  fim. E, no coice desses demônios, uma chuva empapadeira de pasto apareceu na cabeça da  semana  e afundou quinzena adentro. Francisquinha, coitada, rolou seu sofrimento da sala para a cozinha. O  inverno  fuçava  inchações  e  rendiduras  de  gente  e  de  bicho.  Eu  mesmo,  que  sou  duro  de envergar,  dei  de  sentir  uma  ferroada  na  dobradiça  do  j oelho,  resto  de  uma  doença  sem- vergonhista  que  contraí  em  casa  de moça-de-vira-e-mexe. A bem  falar,  a ventania judiava  de tudo  que  fosse  vivente,  de  raiz  ou  de  carne.  Arvoredos  de  porte  ou  vassourinha-do-campo passavam  noite  e  dia  em  tarefa  de  vassalagem,  varrendo  o  chão  como  criado  de  limpeza. Parecia  que  uma  súcia  de  mal-assombrados,  cada  qual  mais  zunidor,  andava  de  rédea  solta. As  casuarinas  do  Sobradinho  quase  perderam  as  forças  de  tanto  gemer.  Enojado  de  tamanha lamúria, maquinei cortar esses pés de pau:    — Passo no serrote esses agouras, esse poleiro de coruja.    Francisquinha  correu  na  salvação  deles.  Não,  o  menino  não  podia  bolir  em  arvoredo  que Simeão, de mão própria, plantou:    — Carece de tino, carece de juízo.    Larguei de lado a ideia, mas avisei:    — Isso até chama desgraça, atrai o corisco do céu.    Uma noite,  ouvindo passar uma  frota  de marrequinhas  corridas  do  inverno, torci  a barba  e desabafei na frente do espelho:    — Um frio desse quilate e o coronel em cama solteira, sem perna de moça, sem costela que esquentar.    Por  desgraça,  a  roxinha  Nazaré  teve  de  novo  seus  préstimos  requeridos  pela  comadre Alvarina.  Lá  foi  embora  aquele  rabão  de  saia  em  lombo  de  cavalo  e  eu  sem  força  para embargar  a  viagem.  Estipulei  que  a  sela  mais  sedosa  fosse  arrumada no  seu  debaixo — uma coisa  bem  nascida,  de  lindosos  recheados.  Um  alisador  de  cadeira  como  o  dela,  fornido  de grandes  partes,  não  era  de  meu  agrado  que  sofresse  danos  e  agravos  em  navegação  de  pata dura,  ainda  mais  que  Ponciano  tencionava  tirar  da  afilhada  de  Francisquinha  as  maiores serventias   em   práticas   de   noite   adentro.   Mais   de   mês   prometia   passar   ausentada   do Sobradinho,  em  ajutório da  comadre, pegada de inchação do baço.  O  caso  é que  se  a roxinha estivesse à mão, no meio do ventão velhaco de agosto, que é mês de plantar criança, ia mesmo tirar seu plantão de safadeza no meu quarto, conhecer a cor do meu camisolão, a qualidade de jacarandá de minha cama. Não podendo ter, pelo relatado, as belezuras de Nazaré, desforrava o  coronel  o  desgosto  de  suas  ausências  relembrando  Bebé  de  Melo,  que  Juju  Bezerra apalavrava  para  mim  em  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos.  Vez  por  outra,  na  impaciência,  pedia 
relatório ao major :    — Seu Bezerra, que obra de Santa Engrácia é essa que não arremata mais?    Juju mandava que eu não ficasse desensofrido:    — A moça não estraga, homem de Deus! Está amadurando.    Pois remoía eu esse e outros desgostos na justa ocasião em que apareceu aquela embaixada de  curral.  Vinha  na  frente,  de  candeeiro,  o  sumido  Dioguinho  do  Poço.  Ordenei  que  ninguém ficasse na varanda, em perigo de pegar vento encanado:    — Minha lembrada prima  Sinhá Azeredo, lá num agosto destes, levou uma facada de vento que jogou com ela na cama e do qual sofrimento finou.    A  campeirada, boa-tarde-coronel-como-está-coronel,  ficou  encovada nos  cantos. Diante de tanta falta de garganta, estranhei:    — Que bicho bravo desentocou vosmecês com este tempo de vento?    Ninguém deu mostra de vida. Voltei em ar galhofoso:    — Se mal pergunto, deu na cama de vosmecês todos formiga-quente ou praga de gafanhoto?    Foi então que Dioguinho do Poço, por ser o mais conhecido do Sobradinho, segurou a rédea da palestra  e  falou pela boca  dos  outros.  O vozeirão  dele,  assim  solto na  sala,  fazia baixar  a própria  crista  dos  ventos.  O  caso  é  que  vinham  em  comitiva  pedir  o  meu  conselho  e experiências  em  vista  de  ter  um  alentado  de  um  lobisomem  aparecido  em  terras  do  Pilar. Soubesse  o  coronel  que  naqueles  perdidos  ermos  ninguém  era  mais  senhor  de  tirar  uma serenata  ou  visitar  um  compadre  noite  feita.  O  penado  logo  vinha  com  o  seu  samburá  de maldade. Não  contente  de trazer  o  desassossego nas  capoeiras  e  encruzilhadas,  ainda tinha  o desplante  de  assobiar  de  cobra  na janela  do  povo  adormecido.  Era  um  bater  de  portas,  uns latidos  de  cortar  o  coração. Alta madrugada,  o  gado  dava  de  gemer. Porteira  abria  e porteira fechava  sem  mão  de  gente  nenhuma.  Era  o  lobisomem  em  penitência.  Entristava  ver  a cachorrada,  em  arrepio  de  medo,  serrote  nas  costas, j untar  rabo  e  cabeça  e  entrouxar  pelos cantos,  no  debaixo  das  cadeiras.  Uma  barrigada  de  codorneiros  do  velho  Serafim  Feij ó apareceu  estraçalhada,  bem  como  o  lobisomem  achou  modos  de  dar  fim  a  certo  arrozal  de alagado  por  ter  o  dono,  homem  devocioneiro,  fincado  no  meio  da  plantação  estaca  em lembrança de cruz:    — É lobisomem da pior qualidade.    Meti  a  colher  dos  Azeredos  Furtados  nessa panela  de bobagem.  Como  desembargador  em presença  das partes,  mandei  que  ele  largasse  de  lado  os pormenores  e  entrasse no  mérito  da demanda:    — Não sou de perder tempo, seu compadre.    E antes que Dioguinho do Poço tomasse alento, larguei na sala pergunta de entendido:    — Diga, caso esteja aparelhado para dizer, se o aparecido do Pilar é da raça dos pardos ou dos avermelhados?    Todos  quiseram,  num  emaranhado  de  língua,  dar  pronta  resposta,  sem  respeito  uns  pelos outros.  Não  houve  mais  acordo  entre  as  partes,  pelo  que  tive  de  sustar  o  trabalho  de inquirição, no que procedi dentro da melhor cortesia. E tudo ia arrematar em beijos e abraços se um pau-de-amarrar-égua, um  nanico  de beiço  rachado,  não  viesse  de  falso  testemunho  em desmerecimento  de  Pires  de  Melo,  só  porque  o  aparecido  lobisomem,  talqualmente  o  meu amigo e vizinho, possuía correntão trespassado na barriga:    — Dá toda parecença dele. 
   Foi como se o nanico mexesse em ninho de surucucu. Na lembrança de que estava eu quase aparentado   de   Pires   de   Melo,  pelo  prometido   casamento   com   dona   Bebé,   cresci   em desconsiderações  contra  o  sujeitinho  de beiço partido.  Indaguei  quem  era  ele,  de  que buraco vinha. E no destampatório:    — Vosmecê  é um  desabusado.  Logo  quem  foi  escolher para  levantar  falso.  Pires  de  Melo, pai de filho, sujeito batizado e rebatizado!    No  fogo  da  raiva,  fora  do  meu  natural  serenoso,  sacudi  a  sala  dos  Azeredos  e  demais Furtados  em pisada militar.  O vento que zunia lá  fora mais  atiçava  as  cobras do meu peito. E foi  em  ódio,  charuto  apontado  para  Dioguinho  do  Poço,  que  mostrei  os  perigos  de  puxar quizília  com  lobisomem  sem  o  devido  preparo  para  tal  pendência.  Era  peripécia  de  muito cuidado,  que  não  devia  vir  embrulhada  em  falsos  e  calúnias.  Por  motivo  do  velho  Pires  de Melo usar correntão de ouro ninguém podia, em j ustiça, afiançar que fosse ele o penitente das escuridões  e  encruzilhadas. Nesse  uso,  nenhum  vivente  saído  de barriga  de  mulher  escapava de tal pecha e se aparecesse uma visagem de barba farta e cabelo de fogo estava Ponciano nas malhas  do  falatório  —  logo  um  sacaneta  qualquer  ia jurar,  na  água  benta  e  rosário,  que  alta noite saía cachorro esquisito do Sobradinho:    — É o que eu digo, seu compadre. Nesse andar, não demora vão dizer que o empestiado do Pilar é o padre Malaquias. Não demora.    Despachei os postulantes sem compromisso de dar andamento no caso do lobisomem:    — Careço de tempo, estou tomado de compromissos e empreitadas.    Em  segredo  de  amizade,  a  um  canto  de  sala,  relatei  a  Dioguinho  estar  este  seu  amigo  e coronel  em  véspera  de  tomar  estado  na  família  de  Caetano  de  Melo,  sem  hora  para  outro trabalho que não o do casamento:    — É coisa que demanda muita providência.    E alegre, dando um puxão no braço dele:    — Até já estou nos fortificantes e depurativos.    Rebate falso. Antes não caísse nesses avantajados, não soltasse foguete antes da festa. Logo no virar  de  outubro, vento  amainado, recaiu no  Sobradinho notícia  de  grande  desgosto. A par de  que  este  Azeredão  desejava  fazer  vistoria  de  casamento  em  sua  pessoa,  Bebé  de  Melo, livre dos restos da caxumba, tratou de ganhar estrada. Foi pedir asilo na casa de uns primos de Macaé, de onde mandou aviso de que só saía para cela de convento, mas casar não casava:    — Prefiro uma mortalha.    Caetano  de  Melo,  compromissado  em  dar  a  mão  da  prima  Bebé  ao  seu  vizinho  de  pasto, perdeu  as  estribeiras.  Virou bicho — um boi  largado não  era mais perigoso  do  que  o  doutor em maré de raiva. Mandou dizer  à parenta que nunca mais devia pisar  chão de Ponta  Grossa, pois não ia deixar em desconsideração e descrédito amigo da marca de Ponciano de Azeredo Furtado,  além  do  mais  coronel.  E  não  satisfeito,  viajou  Nicanor  do  Espírito  Santo  para  o Sobradinho  com  carta  desculposa.  E,  atrás  da  carta,  um  cavalinho  de  presente,  prenda  que muito  apreciei, por  ser  animal  estreleiro,  de  grande  valia  numa  vereda para  corrida  curta  ou alentada.  Tão  feliz  fiquei  com  a  consideração,  que  na  mesma  semana  dei  a  Juju  Bezerra incumbência de encaminhar meu casamento para o lado de dona Antônia de Melo. Possuía de seu um bustão de encomenda, um par de protuberâncias que falavam ao meu agrado. Decidi:    — Serve, seu Juju. Galinha velha é que dá bom caldo.    Pois  mal  o  major  inaugurou  visita  de  entendimento,  mais  que  depressa  um  marchante  de 
gado pulou na frente e pediu a mão de dona Antônia, desencalhando assim uma solteirice mais antiga  de  quarenta  anos.  Caetano  de  Melo  nem  obtemperou  —  correu  em  vento  de  agosto  e retirou dona Antônia da prateleira, logo embonecrada pelas costureiras e posta no altar. Lá fui, por  dever  de  cortesia,  ver  a  mana  do  bom  vizinho,  de  flor  de  laranjeira  e  vestido  de  cauda, tomar responsabilidade. Ainda na  capela, perguntei  a  Juju  Bezerra  se não restava moça vaga na família dos Melo:    — Mesmo parenta mais distanciada, Bezerra.    A contragosto, meio arrepiado, o major disse que não:    — Essa foi a derradeira, coronel.    Dei  de  ombros. E na viagem  de volta,  em  conversa vadia, provei  a Juju  que um  sujeito  do meu feitio não era mesmo para amarrar suas liberdades em rabo de saia:    — Nunca, seu Bezerra, que vou ficar embaraçado nesse cipó-rabo-de-macaco.    Juju,  desanuviado  de  ver  seu  amigo  fora  das  armadilhas  das  solteironas  de  Ponta  Grossa, garantiu que por dinheiro nenhum do mundo tomava compromisso:    — Sou lá doido, quero lá viver em mijada de criança?    Fiz troça do marchante, todo ajicado na botina nova, sem jeito, gemendo nos calos:    — Parecia um boi de presépio, amigo Bezerra.    Já  perto  do  Sobradinho  a  parolagem  era  safadeza  solta,  caso  de  boiadeiros  que  tomavam estado  sem  o  devido  preparo,  como  Totonho  Rosa,  compadre  de  Juju,  que  perdeu  todas  as forças na precisa noite do compromisso:    — Nem chá de catuaba deu alento ao compadre.    Não aguentei, quase perdi o juízo de tanto rir. Totonho Rosa, Totonho capado!        Uma  tarde,  ouvi  chiado  de  cigarra  nas  casuarinas.  O  ano  estrebuchava.  Tive,  nesse entrementes,  de  ministrar  umas justiças  nos  pastos,  coisa  de  pouca  monta,  desavenças  entre marido  e  mulher  e  uma  questão  com  um  tal  de  Pedro  Braga,  que  maltratava,  de  meter  em panelão  de  formiga,  um  molequinho  sem  pai  nem  mãe,  criado  em  sua  farinha.  O  malvadão fazia  do menino  saco  de pancada,  a ponto  do  abuso  chegar  ao  conhecimento  do  coronel  e  de Francisquinha. Dei meu despacho:    — Vou aquilatar, vou ver de vista própria.    Lá  fui,  em  missão  de justiça,  ver  que  raiz  de  verdade  havia  em  todo  esse  apregoado.  De fato, o pobrinho andava na pele e no osso, amedrontado pelos cantos. Ninguém podia levantar o  braço  que  o  coitado  logo  gemia.  Provado  o  maltrato  e  embarcado  o  ofendido  para  o Sobradinho,  expedi  sentença  de  busca  no  calcanhar  do  ofendente,  em  vadiagem  de  briga  de canário nas redondezas. Sabedor da minha presença, Pedro Braga caiu em vereda de gravatá e dormideira,   de  não   ser  mais   avistado.  Uma   semana   decorrida,  vejo  pisar   escadas   do Sobradinho  o  procurado  e  nunca  encontrado  Pedro  Braga,  um  sujeitão  altão,  em  risco  da cabeçona  dele  quase  danificar  umas  teias  de  aranha  de  minha  especial  estimação  que  desde ano não deixo retirar do teto da minha sala. Pois não chegou de sozinho o surrador de menino, veio  com  um  salvo-conduto  de  grande  valia,  uma  carta  de  Caetano  de  Melo.  Em  termos educados (“Como vai o galo Vermelhinho, como tem passado o coronel?”), o doutor de minha amizade pedia que eu relevasse a culpa do faltoso. Nem bem havia chegado no rabo da carta, já meu despacho estava dado:    — Vosmecê não tem mais culpa no cartório de coronel Ponciano de Azeredo Furtado. 
   Cuidava  o  malvadão  estar  livre  e  limpo  da justiça  do  Sobradinho,  quando  recebeu  ordens de continuar na mesma postura:    — De pé, seu Pedro Braga, que neste recinto ninguém sai sem meu especial consentido.    E mãos  cruzadas nas  costas,  como  é  do meu natural nesses  corretivos,  andei  de lá para  cá, de uma ponta  a  outra da  sala. Dei duas voltas no derredor do  suplicante,  sempre mirando  seu porte ostentoso. Feito isso, num repente, abri meu livro de educações no focinho dele:    — Então, vosmecê,  com  esse  calibre todo,  é  o tal  de Pedro Braga, judiador  dos pobrinhos dos currais?    E  dedo  apontado  para  os  seus  avantajados  de  tamanho,  com  cara  de  nojo,  fiz  ver  ao grandalhão  que  foi  um  desperdício  de  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo  botar  em  cima  das  suas botinas  uma  grandezona  assim  de  dois  metros.  É  que  o  povo  do  céu  queria  fazer  dele  uma palmeirona, coisa de brigar contra o vento brabo e o corisco ardiloso, mas que ele, pelos seus procedidos, tinha deitado tudo a perder, estragado tão bela obra da nascença:    — A bem dizer, vosmecê encolheu como chita ordinária. É um toquinho de gente, seu Pedro Braga. Vosmecê virou anão, seu Pedro Braga.    Com  esses  educativos,  dei  a  desavença  por  limpa  e  desempenada.  Só  num  ponto  firmei jurisprudência:  nas  posses  do  menino.  O  molequinho  judiado,  osso  e  pele,  não  saía  do Sobradinho:    — Fica no meu poder, no sanativo e na engorda da velha Francisquinha.    E  ainda  rolava  no  vento  o  caso  de  Pedro  Braga  e  já  outro  desgosto  pedia  entrada  no Sobradinho.  Uma  surucucu-de-fogo,  que  esquentava  sol  numa  touceira  de  capim-gordura, picou  meu  cavalinho  estreleiro,  dado  por  Caetano  de  Melo  em  comemoração  do  distrato  de casamento entre Ponciano e dona Bebé. Espalhei perna de campeiro no rasto de Tutu Militão, sumido do  Sobradinho desde o mal-entendido com o povo de Ponta Grossa dos Fidalgos. Dei ordens terminantes, que trouxessem o curador de qualquer jeito:    — Nem que seja amarrado de pé e mão. Em mais de uma quinzena de buscas e rebuscas não foi  o  mulato  encontrado,  nem  dele  chegou  notícia  no  Sobradinho.  Por  sorte,  o  estreleiro  não teve precisão dos préstimos de Tutu. A picada de cobra pegou veia desimportante e a maldade saiu nas urinas. Com um par de purgativos, o cavalinho voltou ao aprendizado de sela, no que gramava desde que veio de Ponta Grossa. E nem pensava eu mais em Tutu Militão quando, de passagem  por  Santo  Amaro,  fui  visitar  Juju  Bezerra  e  mais  o  confessor  de  meus  pecados.  A par  de  que  o  major  andava  em  socorro  de  um  padecente  de  nó  nas  tripas  e  a  batina  de Malaquias  varejava  os  currais  em  missão  de  casamento  e  batismo,  tratei  de  voltar  ao Sobradinho. E na porta do Bazar Almeida parei para avivar o charuto e comprar uma remessa de mangas  de lampião. Nisso, um vendedor  de passarinho,  que  armava vez por  outra  alçapão no Sobradinho, pediu ajutório para Tutu Militão:    — Está na Santa Casa das Misericórdias desenganado de doutor.    Sustei a tragada do Flor de Ouro e chamei o passarinheiro aos pormenores:    — Que bobagem é essa de Tutu na Casa das Misericórdias, de Tutu desenganado de doutor?    Pergunta  foi, resposta voltou. Fiquei inteirado, para  espanto meu, dos desgostos  e vexames recaídos  na  cabeça  do  curador.  Contaminado  de  mazela  de  pele,  dessas  de  parecer  sete- couros, Tutu navegou na caridade dos amigos até São Sebastião, onde devia embarcar em trem de  ferro. Veio  enrolado em  folha de bananeira, chaga  só, de minar água dos  sofrimentos dele. Lá  a  autoridade,  em  vista  da pestilência  do padecente,  estipulou  que  defunto  não  viajava  em 
trem de gente viva:    — Lugar de empestiado é no lazareto.    Em  presença  de  tanta  malvadez,  senti  a  primeira  caninana  rolar  na  caixa  dos  peitos.  A bicha,  empapada no  ódio, veio vindo, veio  subindo bem rente da garganta. Precisei de toda  a ponderação  para  evitar  que  meu  gênio,  que  é  de  cem  cobras  num  saco  de  capetas,  não estourasse  na  porta  do  Bazar  Almeida.  O  passarinheiro,  sem  saber  do  meu  por  dentro, espichava as maldades que fizeram na pessoa de Tutu Militão:    — Quedou mais de hora atirado feito porco no depósito da estação.    Vi  o  curador  embrulhado  em  folha  de bananeira  e  o  sujeitão  aos berros, mandando  que  ele não trafegasse  em trem de linha.  Capaz que nessas padecências Tutu levantasse  o pensamento para  mim  e  mais  o  santo  de  sua  devoção:  “São  Jorge!  Coronel  Ponciano  de  Azeredo Furtado!”. Não, isso não ia ficar assim sem um revide ou pronta justiça:    — Não vai ficar, não senhor, que Deus é grande e Tutu tem padrinho.    Falei para dentro, pois já um ajuntamento de povo, sem que eu sentisse, atravancava a porta do Bazar Almeida, tudo orelhudo da conversa. Retirei o passarinhista para canto resguardado, de modo  que  ele  desse,  em  confiança,  o nome  do malvadão,  cargo  e patente,  se  fosse  o  caso do sujeito possuir tais regalias:    — Diga logo, diga logo.    Fiquei  sabedor  de  que  o  dono  de  tanta peçonha  era um  certo  Jordão  Tibiriçá, mandado  de encomenda  para  dar  fim  ao  ladronismo  nos  pastos.  O  homem  só  falava  em  meter  o  rabo  do povo no banco da Justiça. O seu poder andava de invernada em invernada, vasculhando curral que nunca viu presença de meganha ou autoridade mais elevada. Até dívida de impostos, que é a pior incumbência dos ermos, o bichão cobrava. Papel do governo que ele mandasse tinha de voltar forrado de dinheiro. Antoninho do Areal, com negócio de rapadura que mal dava para a mantença  de  seus  dez  meninos,  desembuchou  perto  de  conto  de  réis  em  dízimos  e  taxações, fora  o  castigo  da  mora.  Vendeu  o  pobrinho  seus  ouros  de  herdança  e  foi  todo  tremoso, envergado  de  humilhação,  acertar  a  conta  dos  impostos.  Como  não  tivesse  nem  meia  metade da  pecúnia  estipulada,  gramou  nas  galés  de  Jordão  Tibiriçá  dois  dias  e  duas  noites.  Saiu quando  o  reverendo  de  Santo  Amaro,  sabedor  da  exorbitância,  ameaçou  levar  a  demanda  ao Bispado, por ser Antoninho do Areal afilhado de Santa Efigênia e zelador de sacristia:    — Foi a sorte de Antoninho do Areal, a salvação de sua pessoa.    Gabei o proceder do padre:    — É dos meus, tutanudo, raçudo.    Agradeci  o  relato  do  passarinheiro  e  voltei  ao  Sobradinho  em  sela  de  brasa,  com  o cobrador  de  dízimos  atravessado  no  gogó.  Nesse  ponto,  sobreveio  uma  tarefa  de  corte  de madeira em Mata-Cavalo e o caso perdeu os venenos. E digo que ia marcar passo, como tropa de  procissão,  se  o  primo  Juca  Azeredo  não  desse  entrada  no  Sobradinho  para  remexer  o acontecido.  Vi  o  parente  apear  junto  das  casuarinas  e  ganhar  a  varanda.  A  cara  de  Juca denotava desgosto novo. Estranhei visita  assim  sem mais nem menos. Desde  o  caso da  sereia que  o  primo  ficou  político  comigo,  por  achar  que  desfiz  da  sua  coragem  não  querendo  seu tirocínio  na  demanda  com  a  encantada  do  mar.  Recebi  o parente  de braços  abertos,  como  se isso não fosse existido:    — Bons olhos vejam essa bizarria. Já estava para mandar bilhete.    Juca, sem levar em consideração a cortesia, entrou logo em indagação e sindicância: 
   — Que fez o primo a Jordão Tibiriçá que o homem escuma vingança?    Caí das nuvens. Nem conhecia tal vivente,  se era pobre ou rico, magro ou gordo.  Sabia  ser sujeitão de rompantes, de gurungumba pronta, que só falava em meter o rabo do povo no banco dos  réus,  mandado  que  veio  aos  pastos  para  limpar  os  atrasados  dos  impostos.  Desavença com ele é que nunca tive:    — Se mal respondo, primo, nem sei como é o focinho desse Jordão.    Juca  Azeredo,  cadeira  mais  achegada  da  minha,  desandou  a  especular  a  sala  no  medo  de alguma orelha vadia por perto. E falou, sempre em voz sumida, que Jordão Tibiriçá não podia escutar  meu  nome  que  logo  ficava  branco,  mordido  de  raiva,  em  vista  de  ter  chegado  ao conhecimento dele, por um leva e traz vendedor de passarinho, notícia das péssimas ausências que  fiz  de  sua  pessoa  em  presença  de  um  comício  de  boiadeiros.  Era  fala  corrente  que  eu garanti, na porta do Bazar Almeida, tomar as dores de Tutu Militão. E caso Tibiriçá tivesse a audácia  de  aparecer  no  Sobradinho,  mesmo  em  missão  do  fisco,  ia  ter  que  engolir purgativo de  cavalo.  O  passarinheiro,  que  tudo  assuntou,  foi  levar  a  ameaça  ao  conhecimento  dele. Resultância:  Jordão  andava  escarafunchando,  nas  coletorias  da  cidade,  as  dívidas  e  os atrasados do Sobradinho desde o tempo mais recuado dos bugres:    — A coisa vem grossa, a coisa vem feia, primo.    Lá  continuou  Juca Azeredo,  sempre  em voz  subalterna,  o  seu miudinho  sobre  os poderes  e brabezas de Jordão Tibiriçá, que era homem de seus repentes, de gênio picado. Ninguém como ele para levantar, no bico da pena, uns atrasados do governo e endoidar o devedor. Em menos de meio ano de autoridade, enrolou em carretel e meteu nas malhas da lei o comércio todo de São  Sebastião  e já  vinha  vindo  na  direção  dos  pastos.  Gente  que  nunca  soube  o  que  fosse papel do governo ou cara de meirinho purgou mora e pagou taxas de abarrotar dez baús. Além dessas mestrias, Tibiriçá tinha escora de gente política:    — Tem costa quente. É protegido dos Miranda, povo que mexe até no governo.    Nem esperei que Juca Azeredo alinhasse a restante parte do relato. Fora do meu assento, já tomado  de  raiva,  abri  no  focinho  do  primo  um  saco  de  ofensas.  Digo  que  a  sala  do Sobradinho, grande de abrigar mesa e uma guarnição de vinte cadeiras, foi recinto pouco para o vozeirão do coronel Ponciano de Azeredo Furtado e sua barba. Com dois socos na mesa, de virar a cuia de farinha, fiz o parente ficar branco de cera. Pois muito estranhava que ele, primo de  grau  chegado,  viesse  ao  Sobradinho  trazer  valentia  de  um  desnaturado  que  eu  nem conhecia,  prejudicador  dos  pobres,  urubu  de  dízimos.  Soubesse  ele,  e  mais  Jordão  Tibiriçá, que o neto do velho Simeão não levava medo do governo:    — Até gosto, seu Azeredo, de uma rixa com esse povo safado.    E  na  frente  do  primo,  mão  fincada  na  cintura,  mandei  que  Juca  mirasse  o  seu  parente  e amigo. Não tinha  sido de casualidade que Deus Nosso  Senhor  fez  subir  em cima de meus pés altura  de  dois  metros.  E  sabia  o  parente  o  porquê  desse  tamanhão  todo?  Para  que  eu  não vergasse o cangote em presença de ninguém, fosse rei, desembargador ou padre:    — De ninguém, seu Azeredo, a não ser de Deus e de seus santos apóstolos.    Respeitava  toda  qualidade  de  gente,  desde  o  mais  apequenado  ao  mais  graúdo.  O  litro  de minha medida era o mesmo para todos. Nunca que meu braço  saiu em defesa de uma inj ustiça ou minha boca levantou falso testemunho. Como era que um filho de égua da marca de Jordão Tibiriçá vinha recheado de  ódios  e vinganças  contra mim, que vivia quieto no meu  canto  sem cuidar da vida dos alheios? 
   — Como, seu Azeredo? Como?    O temporal de Ponciano, desabado na cabeça de Juca, correu o  Sobradinho, da varanda ao desvão mais retirado. Pronto  cresceu  cara de gente pelos  cantos. Era  o  carvão da  cozinha  em visita de leva e traz. Tanto que não demorou em aparecer a velha Francisquinha puxando atrás uma  remessa  de  negras  e  pardavasquinhas.  Veio  dos  seus  engomados  saber  que  sofrimento tinha contraído o seu menino para andar tão desensofrido:    — Foi vento encanado, foi espinhela caída?    Amansei.  Era  o  que  Juca  Azeredo  mais  requeria.  Com  parte  de  estar  precisado  de conselhos,  caiu  nos  braços  da  velha.  E  assim,  na  proteção  da  saia  rodada  de  Francisquinha, sumiu no corredor. Nas costas dele, dei meu desabafo:    — Sacana!                                                          * * *      Desde essa precisa hora para a frente, em mês de andorinha e depois em tempo de inverno, soprou sem descanso um vento de pólvora entre o Sobradinho e São Sebastião, onde imperava o tal Tibiriçá dos impostos. A viração da costa,  sei lá como, levava em fala de cochicho tudo que  acontecia  em  minha  mesa  e  cozinha. Ninguém  era  senhor  de  gozar  o  seu  bicho-de-pé  ou sua noite de mulata que logo o pessoal de Jordão sabia nos pormenores. Esse leva e traz cada vez  mais  agravava  a  desavença.  De  uma  coisa  tive  orgulho  —  das  provas  de  amizade  que recebi  sem  dar um passo no  além  da  cadeira  de balanço  de meu  avô. Não passava um  dia  de Deus  que  não  apeasse  boiadeiro  no  Sobradinho  em  reforço  do  coronel.  Dioguinho  do  Poço andou  uma  noite  toda  sobre  lombo  para  vir  trazer  seus  préstimos.  De  Ponta  Grossa  dos Fidalgos,  Caetano  de  Melo  remeteu  carta  de  compadre.  Se  eu  precisasse  da  ajuda  dele  era mandar  chamar,  “uma  vez  que  amizade  de  galista  não  ficava  só  no  terreiro  e  no  esporão  dos galos”.  Já  bem  perto  do  jamegão,  em  tom  debochativo,  o  doutor  aconselhava  meter  na pendência  o  galo  Vermelhinho,  “muito  capaz  de  dar  com  o rabo  do  cobrador  de  impostos no barro da estrada”. Fui mostrar ao raçudinho a carta do bom amigo:    — Veja isso, capitãozinho! Um escrito do doutor falando de sua pessoinha.    O vento da guerra trouxe no arrastão o velho Sinhozinho Manco. Apareceu munido de baú e garrucha. Como era de seu uso, nem pediu licença ou deu boa-noite. Rente do meu quarto fez a cama. Era muito dele esse proceder. Quando ameaçava perigo no  Sobradinho, a primeira cara a  despontar  era  a  de  Sinhozinho.  Se  fosse  caso  de  alastrim  ou  febre  malina,  o  velho  corria para  as  beberagens,  armava  discussão  com  Francisquinha  sobre  o  poder  desta  ou  daquela erva. Ao contrário, se fosse uma rixa de vizinhos, o que é muito rotineiro nos pastos, mostrava as armas:    — Não tenho pau de fogo para enfeite de cintura.    Era do gosto de Francisquinha ter  o velho no debaixo do telhado.  Guardava  sempre, desde os  dias  de  meu  avô,  camisa  em  desuso,  que  ela  apequenava  na  tesoura  de  modo  a  calhar  no bustinho dele. A campeirada é que dava um braço pelos avantajados de Sinhozinho. Inventeiro como  ele  não  existia  outro  igual.  Que  fazia  e  desfazia,  que  com  seu  gênio  destemperado ninguém mexia em sua farinha, teteré-teté. Recebia inquirição de um e de outro:    — Sinhozinho Carneiro, como foi mesmo aquele arranca-rabo com os praças do governo?    Mais das vezes o velho fazia ouvido tapado. Nunca que contasse a mesma vantagem, pois a sua cabeça de queijo não guardava as invencionices que inventava.  Se alguém perguntava por 
uma certa rixa de  sangue que ele teve com um tal coronel Bem-te-vi dos pastos da Boa Vista, Sinhozinho encolhia os ombros — não apreciava remexer nos falecidos. O coronel Bem-te-vi, desde um tempo muito antigo de dantes, era pertencido de cemitério:    — Que Deus Nosso Senhor tenha lá ele em bom lugar.    O povo não levantava casos de valentia que Sinhozinho não pegasse pela cauda:    —  Vosmecê não  largou um rabo  de  arraia  no  falecido  Tatão  Gonzaga,  do homem  ser  dado por desfalecido e morto por mais de dois dias e duas noites?    O velho nem conversava:    — Dei e foi muito bem dado.    No  concernente  a  Jordão  Tibiriçá,  Sinhozinho  desandou  em  bravatismo  de  prej udicar  o andamento  de  minha  defesa.  A  voz  fininha  dele  pintava  e  bordava  na  pele  do  cobrador  de dízimos. Não  existia venda  de  estrada  ou varejo  de  Santo Amaro  que não  estivesse  a par  das péssimas ausências que Sinhozinho fazia de Jordão Tibiriçá:    — Conheci o sacana lambendo gamela na casinha do povo dos Miranda.    Tive de chamar o amigo a um pé de ouvido:    — Vosmecê vive nas imprudências, homem de Deus!    Nem  cheguei  na  terça  metade  da  obtemperação  e  já  Sinhozinho  virava  bicho  do  mato. Capengou  lá  e  cá  —  a  vozinha  dele  parecia  um  assobiado  de  surucucu.  Soubesse  eu  que ninguém parido de mulher metia freio em seu dente, que isso de falar sem medo era orgulho de que não abria mão. Obtemperava onde bem quisesse, no Sobradinho, em Santo Amaro, na casa do governo ou no próprio focinho de Jordão Tibiriçá:    — Não  trafego  com  fundilho  de palha,  seu  Ponciano! Não  sou  filho  de pai  espantado,  seu Ponciano!    Não botei mais olho em Sinhozinho o resto do dia. Como fosse fazer visita a João Ramalho, molestado de opilação, voltei ao  Sobradinho noite adiantada. De manhã, antes de lavar a cara e  passar  fumo  de  rolo  no  dente,  fui  inteirado  por  Francisquinha  do  sumiço  do  velho,  do  que não  tive  maior  cuidado.  Ainda  conversei  com  Saturnino  Barba  de  Gato  sobre  a pessoa  dele. Enquanto  Juca  Azeredo,  meu  primo  de  grau  achegado,  corria  de  galinha  na  frente  de  Jordão Tibiriçá, Sinhozinho vinha trazer seus préstimos e armas:    — Amigo do melhor, que não nega fogo.    Saturnino, que muito apreciava o velhote, concordou:    — Sinhozinho é peroba, madeira de lei.    De  tarde,  estando  eu  em  farreagem  com  o  meu  galinho  de  briga,  vejo  vir  um  meganha  de Juju  Bezerra  em  companhia  de  Janj ão  Caramujo.  Bateu  calcanhar  e  esperou,  dentro  do respeito militar, pela minha licença, que logo foi dada sem tardança:    — Pode falar, pode falar.    Contou  o meganha  que  estava no  Sobradinho  em missão  de relatar  o  sucedido na praça  de Santo  Amaro.  Foi  uma  alteração  de  correr  os  mais  valentes  —  Sinhozinho  tirou  garrucha contra  um  cobrador  de  imposto,  protegido  de  Jordão  Tibiriçá.  Em  favor  do  sujeito  dos dízimos veio  o  aprendiz dele, um retinto picado de bexiga, que  ameaçou largar  a gurungumba em  Sinhozinho.  Por  sorte,  o  major  Bezerra  chegou  na  justa  hora  de  esfarinhar  a  arruaça formada.  Levou  o  velho  em  segurança  e  despachou  o  povinho  do  imposto  estrada  afora.  O bexiguento  jurou  voltar  a  Santo  Amaro  em  viagem  de  desagravo,  enquanto  Sinhozinho,  na porta  da Farmácia  Esperança, nos braços  do major,  garantia  que  o  coronel não  demorava  em 
vir fazer uma limpeza nas ratazanas de Jordão Tibiriçá:    — Tudo vai bater de fundilho no banco da Justiça.    Bem não tinha o recadeiro de Juju Bezerra acabado a sua desincumbência, já minhas ordens pulavam  de  cabrito  novo  na  frente  do  vento,  chamando  os  boiadeiros  ao  serviço  das  armas, com  que  juntei  num  relancinho  trinta  carabinas  debaixo  de  meu  mando.  A  tarde,  que  já adernava  na  asa  dos  primeiros  bacuraus  e  corujas,  tremeu  de  ver  tanto  gatilho  em  ponto  de guerra. O pior foi engambelar Francisquinha, que não queria deixar seu menino seguir viagem. Inventei imposição do governo, dever do meu ofício de coronel:    — Missão de rotina, coisa de somenos.    Antes que minha tropa levantasse a poeira de  Santo Amaro, um leva e traz lá tinha chegado e  feito  conhecer  a  grandeza  da  armada  que  vinha  vindo  em proteção  de  Sinhozinho.  O bicho berrou na porta do Bazar Almeida:    — Fecha tudo que o coronel do Sobradinho vem pior que um cacho de capetas.    Não quedou um varejo de porta aberta. A bem dizer,  encontrei  Santo Amaro no debaixo da cama,  o  povo  todo  sumido,  uns  e  outros  espiando  de  longe,  como  se  o  coronel  viesse  em missão de passar todo mundo nas armas. Entupi a pracinha da Igreja de pata de cavalo e ainda tive  de  derramar  ferradura por  outros  arredores. Vendo meu jeito  de paz,  o povo  largou  seus escondidos  e  logo  rodeou  a  tropa  na  admiração  das  armas  e  apetrechos  dos  boiadeiros.  Um até brincou:    — Tem nova guerra do Lopes?    Padre  Malaquias, na  sua  cadeira  de rodas,  esperava por mim.  Mandou  intimação para  que eu  aparecesse  na  sacristia.  Num  salto,  levei  minha  patente  à  presença  do  confessor  de  meus pecados,  que  batia  os  dedos  no  livro  da  missa  em  sinal  de  desgosto.  Chapéu  no  peito,  pedi desculpas  pelo  desplante  de  trazer  barulho  de  armas  a  Santo  Amaro  sem  o  seu  devido consentimento:    — Foi deliberação tomada no afogadilho, sem tempo de remeter aviso.    O  padre,  de  seu  natural  encrespado,  abrandou,  do  que  aproveitei  para  fazer  indagação  do seu padecimento, se já havia debelado a ferroada nas juntas do joelho:    — Conheço essa mazela, é de repuxar o osso.    De  cara  gemida,  respondeu  Malaquias  ser  tudo  castigo  de  Deus  por  não  ter  ele  dado atenção a algum pecado que passou rente de sua batina:    — Devo ter merecido, devo ter merecido.    E  sacudindo  o rosário mandou  que  eu recolhesse  a  campeirada,  senão  ele  de boca própria dava as ordens:    — Tenho poderes para tanto e até para mais.    Não  quis  abrir  quizília  com  o reverendo, mostrar meus  direitos.  Sem  obtemperação,  acatei o mando dele:    — Padre Malaquias, sua vontade é minha lei.    Na porta  da Farmácia Esperança,  em posição militar, rodeado  de povo  e meganhas,  estava Juju  Bezerra,  desde  muito  arredio  da  água benta  do padre por  ter  caído  na  desamizade  dele. Não  convinha,  do meu  lado, mostrar  intimidade  de riso  e  abraço  com  o major. Por  isso, pedi licença  ao  bom  reverendo  para  levar  a  Juju  minha  queixa  e  requerer  de  sua  autoridade providência  sanadora  contra  os  desmandos  do  pessoal  de  Jordão  Tibiriçá.  E  dentro  dos regulamentos da cerimônia: 
   — Se Vossa Reverendíssima não bota embargo, vou chamar o major à responsabilidade.    O padre consentiu e pelo feitio do consentido vi que apreciou o meu proceder :    — Sej a com Deus, coronel.    Então,  com  a  cara  mais  enfarruscada  que  a  dos  réus  do  pelourinho,  cortei  a  praça  em passada  militar,  arrastando  na  espora  os  boiadeiros  do  Sobradinho.  Junto  de  Juju  Bezerra engrossei  garganta  de  modo  a  ser  ouvido  em  dilatada  distância  pelo  confessor  dos  meus pecados:    — Major, venho tratar com Vossa Senhoria de negócio espinhoso, que requer ponderação.    Juju,  desacostumado  a  esse  teor  de  conversa,  que  mais  calhava  em  sala  de  Foro,  recuou meio espantado:    — Que diz o coronel?    Logo fiz olho mofino para que não levasse a  sério a minha figuração, que era coisa  só para o  padre  ver.  E  na  força  do  ombro,  empurra  um,  empurra  outro,  desmontei  o  povaréu  que infestava  a  Farmácia  Esperança  e  na  companhia  do  major  ganhei  os  compartimentos  dos fundos.  Porta  cerrada,  longe  da  especulação  de  Malaquias,  desarmei  a  carranca  e  caí  nos braços de Juju:    — Venha de lá esse aperto, seu Bezerra! Como vão os rabos de saia, seu compadre?    A par de que  Sinhozinho, acabada a desavença, tinha sumido, chamei  Saturnino e dissolvi a tropa.  Que  todo  mundo  vasculhasse  os  arredores  de  Santo  Amaro  nas procuras  do  velho.  De posse dele, remetesse a campeirada de volta ao Sobradinho:    — E tudo sem alarde, na boa paz de Deus, seu Saturnino.    Como  queria  o padre  Malaquias,  Santo Amaro  ficou  desimpedida  de pata  de  cavalo,  livre dos trabucos  do  coronel  Ponciano. Na mesa  do major jantei  o meu  frango,  comi  a minha boa posta  de  robalo,  trabalho  que  afundou  em  mais  de  duas  horas.  Vez  por  outra,  Juju  gabava  a armada do Sobradinho:    — Sim senhor, gostei de ver ! Parecia até tropa de linha.    Fui parco no responder. Não era de conveniência agravar a rixa com Jordão Tibiriçá, ainda mais  que  o  aprendiz  das  poções  rondava  perto,  orelha  afiada,  em  busca  dos  farelos  da conversa. Só abri mão dessa prudência quando Juju denegriu a pessoa do cobrador de dízimos e de sacana fez a festa:    — Moleque maior não pode haver. É um cachorro.    Então, apalpando o bolso na caça do charuto, dei a conhecer a Bezerra de quanto poder  eu estava municiado. Ficasse ele no corrente de que a tropa aparecida em  Santo Amaro era nada perto das forças que armei no Sobradinho:    — Nem representa a terça metade, amigo Bezerra. Menasmente que isso.    Barba  enrolada,  charuto  bem  fincado  no  dente,  relatei  ao  espantado  Juju  que  o  grosso  da armada  tinha  quedado  nos  arredores  de  Santo  Amaro,  em  posição  de  tiro,  de  modo  a  ser requerida em pronto instante. A arte da guerra pedia tal artimanha:    — Tenho ensino militar, seu Bezerra, fora escola de frade e aprendizado de cartório.    No terminal dessa lição, morto o jantar, saí na companhia de Juju para o sereno da porta da Farmácia Esperança. Já a noite era das dez horas e o luar caía a prumo no centro da praça. Um alumiado vazava por entre as vidraças da casa do padre. Devia ser Malaquias na sua devoção. Falei a Juju da doença dele, do seu entrevamento que não cedia nem a poder de reza, nem com sal-amargo e depurativos: 
   — É cada ferroada de estalar o osso.    O  major,  encostado  na  bandeira  da  porta,  parou  a  feitura  do  cigarrinho  de  palha  para garantir  que  tinha  na  prateleira  remédio  de  muito  poder  sanativo  contra  tais  padecimentos, capaz de limpar no tutano a mazela mais entranhada:    — É um porrete. Na terceira colherada, o batina arriba.    Tive então um discernimento — apadrinhar o major junto do padre, que em anos de sermão não  cansava  de  fustigar  as  impiedades  de  Juju,  sua  vida  suja  e  desleixada.  Com  parte  de deixar  minhas  despedidas  na  igreja,  larguei  as  esporas  pela  praça  e  fui  bater  na  porta  do confessor  do  Sobradinho,  que  lia  suas  leituras  de  bispo  no  alumiado  do  lampião.  Vendo crescer  perto  da  cadeira  os  dois  metros  de  Ponciano,  o  vigário  parou  admirado.  Logo sosseguei o espanto dele com uma boa barretada de educação:    — Estou de partida, meu reverendo. Vim receber suas ordens.    Malaquias  gostou,  mas  para  não  demonstrar  fraqueza,  descobrir  seu  coração  de  ouro, resmungou  que  não  era  de  seu  feitio  dar  ordens  a  ninguém,  muito  menos  a  um  coronel  tão servido  de  armas  e  capangas.  Deixei  o  padre  falar,  que  esse  era  o  seu  ofício.  Acabado  o resmungo, entrei no avulso da conversa.  Sou de muito inventismo, um danado em fazer render uma parolagem — um  fio  de  cabelo vira  corda no meu trançado.  Levei  e trouxe  o reverendo para onde bem quis. Até que joguei na  sala o nome de Juju Bezerra, o que fez o padre dar um pulo  na  cadeira  como  mordido  de  marimbondo. Nem  por  sombra  queria  ver  o  major  em  sua frente:    — É um arruaceiro, que vive fora de Deus.    Não  esmoreci.  Botei  nesse  entendimento  todas  as  minhas  educações  de berço  e  de  escola. Inventei,  espichei,  pois  em  missão  piedosa  não  tenho  pejo  de  mentir  e  avantajar.  Assim, figurei  Juju  tornado  de  grande  mortificação,  sem  comer  e  dormir,  por  motivo  de  saber  dos padecimentos dele:    — O major até parece outro. Deu de falar sozinho.    Senti  frouxidão  na  vontade  do  padre.  Com  outros  dois  botes  certeiros,  desmantelei  a prevenção  de  Malaquias.  Resmungou,  gemeu — mas  deu  licença para  Juju  comparecer  à  sua presença:    — Previno que vai ouvir sermão grosso.    Corri  para  a  Farmácia  Esperança  e  de  lá  desentranhei  o  major  e  seus  receios.  Ainda  quis ponderar :    — Coronel, veja lá o que faz.    Cortei a ponderação dele na nascença:    — Deixa de visagem, homem! O padre está rendido.    O  major,  desde  remoto  mês,  não  pisava  assoalho  de  Malaquias,  pelo  que  entrou  meio vendido,  testa  no  chão,  sem poder  da patente,  que  o  vigário  não  admitia  regalias  no  debaixo do telhado de Nosso Senhor Jesus Cristo:    — Honraria fica lá fora. Na Igreja de Deus todo mundo é igual.    Teve  Juju  Bezerra  de  aturar  sermão  de  fogo.  Aguentou  tudo  de  cabeça  pendida,  como menino  pegado  em  delito  com  cabrita.  Acabada  a  reprimenda,  virou  Malaquias  a  língua sermonista  contra  mim,  por  ter  jogado  tropa  armada  em  Santo  Amaro,  em  risco  de  fazer desgraça:    — Que falta de juízo, que cabeça de vento! 
   Rebati  com  as maldades  de  Jordão  Tibiriçá  e  de novo  o reverendo pulou  da  cadeira. Nem falasse  eu  em  tal pecador perto  dele.  Era  outro  que  ia  conhecer  o peso  de  sua  língua.  Assim que ganhasse perna, embarcava para São Sebastião, onde morava o desalmado:    — Vou acertar contas com esse tal de Jordão Tibiriçá.    Livre do sermão, Juju correu em busca dos frascos de remédio. Foi num pé, voltou no outro. Malaquias  ainda relutou  em  aceitar  o  aj utório  do major. A rogo meu,  sempre  em resmungos  e gemidos, acabou por engolir uma colherada, mas repeliu a segunda:    — Que beberagem é essa que mais parece fel?    Noite  alta,  Santo  Amaro  nos  travesseiros,  deixei  a  casa  do  padre.  O  luar  do  lado  de  fora pedia outras conversas. Cutuquei Bezerra:    — E o povo de saia, seu Juju?    O major, ainda contaminado do sermão, fez negaça:    — Tenha dó, coronel. Agorinha mesmo a gente saiu de recinto bento, coronel.    Gritei com ele:    — Que pensa que é? Frade, santo de altar?    Riu  e  logo  voltou  ao  seu  natural  safadoso,  sem-vergonhista.  E  com  pouco  mais  relatava  a novidade  maior  da  pastaria,  que  era  o  velho  Neco  Moura  de  moça  nova  no  sobrado,  uma sarará de fogo, ardendo na casa dos vinte anos, senão menos:    — Coisa vistosa, de porte.    Achei  graça  ao  relembrar  Neco  Moura  e  sua  fama  de  mulateiro.  Mas  nunca  que  soubesse estar  ele tão bem montado  de rabo  de  saia.  Beirado  dos  oitenta, já mijando no pé,  a moça  ia dar  bolor  no  sobrado,  sem  a  menor  serventia  para  os  bem  repassados  anos  do  velhote.  De modo algum Neco aguentava exigência de menina nova. Estipulei:    — Emborca em menos de mês, seu Juju, Não vai virar a folhinha de janeiro.    Relembrança  traz  relembrança,  libertinagem  puxa  libertinagem.  Parado  no  meio  da  praça, mão  no  ombro  do  major,  quis  saber  como  passava  dona  Bebé  de  Melo,  se  tinha  voltado  a Ponta Grossa dos Fidalgos, perdoada pelo primo:    — Corre um zum-zum de que ela está de amizade renovada com o doutor.    Bezerra  disse  que  sim,  que  Caetano  de  Melo,  a  pedido  da  parentagem,  tinha  relevado  a afronta e a menina andava de novo no gozo de sua confiança:    — Está que é uma seda, perdeu aquela brabeza de cabrita.    Antes  que  eu  estranhasse  a  quebra  do  compromisso  do  doutor,  Bezerra  voltou  suas espingardas  contra  mim,  assegurando  que  eu  era  o  mais  culpado  de  dona  Bebé  não  estar  no Sobradinho, casada de cartório e igreja:    — Sujeito mais sortista que o coronel nem mandando fazer de encomenda.    Afiançava  Juju,  com  muitas  e  boas  ponderações,  que  se  eu  metesse  cavalo  na  estrada  e fizesse  o  corridinho  entre  a minha  casa  e  a  casa  do  doutor,  a moça  caía no  laço,  em vista  da esmerada instrução do coronel e sua sabedoria no trato galante:    — É o que eu digo. Caía logo, sem poder passar um dia longe da sua pessoa.    E,  no  mesmo  fôlego,  Juju  atirou  em  rosto  deste  Ponciano  o  sucedido  com  dona  Isabel Pimenta, ardida de sentimento por mim. Mas o caso é que eu não dava importância a bicho de saia, tratava tudo na ponta da botina, só sabia machucar o coração das pretendentes:    — Isso até é malvadeza, falta de piedade.    Dei ganho de causa ao amigo maj or : 
   — É verdade, é verdade. Pelo meu caráter militar, não sou dado a fazer sala, a embonecrar a minha pessoa. Comigo é pão-pão-queijo-queijo, seu Juju.    Bezerra levantou os braços:    — Bem que o coronel reconhece.    Foi tocado a canto de galo que deixei Santo Amaro de volta ao Sobradinho. A madrugada já estalava  os  matos  quando  peguei  estrada  larga,  limpa  de  bichos  da  noite,  desimpedida  de caburés  e  bacuraus.  Bom  tempo  para  remoer  as  ponderações  de  Juju  Bezerra  e  ver  que  ele estava forrado de razão. A verdade é que eu era um estabanado, um desensofrido. Lá em Ponta Grossa, na  certa,  dona Bebé  de Melo  devia  suspirar por mim  e  lágrimas  soltou  dona Antônia ao  perder  o  meu  casamento.  Como  muito  bem  disse  Juju  Bezerra,  eu  fazia  gato-sapato  do povinho de saia. Sujeito duro de coração, Ponciano de Azeredo Furtado!        Como veio, assim morreu a guerra de Jordão Tibiriçá. Vento trouxe, vento levou. O caso foi que a viração da tarde, vendo tanta pata de cavalo e armas em  Santo Amaro,  soprou ligeiro o acontecido  no  comércio  de  São  Sebastião,  que  cerrou  as  portas  e  era  quem  mais  queria escapulir,  de  não  restar  carro  de boi  ou  sela  vaga.  Um  cometa,  vendedor  de  rendas,  garantiu que a tropa do coronel tinha cortado a linha de ferro para  sustar a retirada de Jordão Tibiriçá e seus agregados:    — Vem mais de cem campeiros de carabina embalada.    A tremedeira em São Sebastião só amainou noite alta, quando um comprador de rês, em jura de  mão  no  alto,  garantiu  ter  escutado  o  coronel  do  Sobradinho  dar  ordem  de  exterminação contra o pessoal dos dízimos (“Quero ver tudo passado nas armas, que na Justiça eu limpo as culpas”),  ordem  essa  logo  desmanchada  porque  o  padre  de  Santo  Amaro,  inteirado  de  tudo, amansou a raiva de Ponciano e até reprovou, na praça da Igreja, o proceder dele:    — Foi a valência. Foi a salvação.    Pois  sucedeu  que  Jordão  Tibiriçá,  em  vez  de  crescer  em  autoridade,  gritar  que  ia  pedir tropa  de  linha  ao  governo,  abaixou  a  crista.  Nem  esperou  o  mercador  de  rês  dar  a  última demão ao recado — no raiar do dia era ele entrado em terras de Juca Azeredo, onde foi pedir apadrinhação. Contou ao parente que virei  Santo Amaro pelo avesso, a ponto de  ser chamado à ordem pelo vigário. Queria, por ser sujeito de paz, que o primo arrumasse meios e modos de acabar com a pendência:    — Sou homem de trabalho, não quero desavença com ninguém.    De  posse  da  fraqueza  do  taxador  dos  impostos,  no  mesmo  dia  Juca  Azeredo  bateu  no Sobradinho:    — Jordão pediu penico. Trago proposta dele.    Pelo  regulamento  militar  não podia  eu,  sem  ofensa  à  lei  da  guerra,  desfazer  do  derrotado. Foi,  por  essa  imposição,  que  recebi  o  parente  dentro  da  maior  cortesia.  Já  não  estava  no Sobradinho  o  coronel  que mês  antes  quase  suspendeu  Juca pelos  colarinhos  e por pouco não varejou  com  ele  porta  afora.  Como  o  parente  avantajasse  as  forças  da  minha  comandância, desfiz da tropa que j oguei em Santo Amaro:    — Coisa de somenos, seu Juca. Meia dúzia de espingardinhas no mais estourar.    Juca,  dentro  da  missão  de  apadrinhador,  desenrolou  uma  batelada  de  ponderações  em louvor  do  sujeitão  dos  dízimos.  Que  Tibiriçá  era  isso  e mais  aquilo, um bom  cristão, homem de  andor  e  água  benta  como  eu,  incapaz  de  exorbitância.  Queria  viver  em  paz  comigo,  sem 
agravos  ou  ofensas.  Dava  o  Sobradinho  por  remido  de  imposto,  rasgava  as  intimações recaídas  sobre  a  herança  do  velho  Simeão,  desde  que  o  coronel  passasse  uma  esponja  na demanda. Chegado a esse ponto, Juca bateu no meu joelho:    — O primo mete bons dinheiros no bolso e ganha um amigo.    Não  dei pronta resposta. Fui  queimar meu Flor  de  Ouro, ponderar, pois nunca  apreciei  dar despacho em cima da perna. Deixei que Juca Azeredo afundasse na incerteza, padecesse o seu pedaço. Só no decorrer da terceira baforada, dedo mata-piolho na sovaqueira, é que deliberei:    — Pois muito que bem, muito que bem. Só tem um porém…    Juca  ficou  na  ponta  do  pé.  Logo  dei  parte  de  minha  imposição.  Requeria,  ao  alcance  da palmatória, o tal moleque passarinheiro causador da desavença:    — Vou ensinar a esse descarado a regra do bom viver.    Juca estalou os dedos, como procedia em maré de contentamento.  Sim senhor, a medida era justa,  a  medida  era  boa.  Ia  falar  a  Jordão  Tibiriçá,  pedir  a  remessa  do  linguarudo  ao Sobradinho:    — O primo vai ter em mão o sem-vergonha, no mais tardar na semana entrante.    Esperei sentado pelo aparecimento do moleque, que nunca mais ninguém olho nele botou ou viu  a  cor  da   sua  canela.  Jordão,  conforme  o  prometido,  virou  os  ermos  no  rasto  do passarinheiro.  A  par  o  safado  de  que  o  coronel  pedia  sua  presença  no  Sobradinho,  requereu passaporte  e  foi  purgar  o  medo  no  mais  afundado  sertão  de  Cacimbas,  covil  de  lobisomem, brejal  dos  demônios,  mãe  e  pai  das  febres  malinas.  Digo  que  dei  graças  a  Deus  não  ter  o moleque  aparecido,  que  não  sou  dado  a  tirar  vingança  de  gente  miúda.  Jordão  Tibiriçá,  em bilhete  respeitoso,  deu  conta  de  que  o  passarinhista  era  sumido,  pelo  que  pedia  desculpas. Mostrei o escrito dele a Antão Pereira, a braços com uma tarefa de limpar bicheira de cavalo:    — São todos uns mij ões, seu Pereira. Na hora de pegar no pau-furado é um corre-corre dos capetas.    De tarde, debruçado na varanda, vi chegar o roxo das quaresmeiras. Peguei um susto. Abril levantava asa. 
 Sucedeu então que o vento  soprou de enfiada mês  sobre mês, de gente do mais antigamente não  relembrar  ter  existido  semelhante  despautério.  Tratei  de  chumbar  caça,  e  atrás  de  uma capivara  dobrei  noite  com  o  dia.  Foi  numa  dessas  arruaças  de  mato  adentro,  bem  rente  aos mourões  do major Badejo  dos  Santos,  que  encontrei Nicanor  do  Espírito  Santo,  o retinto  das serventias  de  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos.  Desceu  do  seu  calçado,  uma  peça  vistosa,  de  pata branca — e veio, chapéu lá embaixo, pedir licença para cumprimentar o coronel Ponciano de Azeredo Furtado:    — Com sua permissão, com sua permissão.    Mandei  que montasse  de novo, uma vez  que ia navegar na mesma viagem  dele. Já  em  sela, estrada  de barro na  frente,  falou Nicanor  de umas  idas  e vindas  que  fez  a Mata-Cavalo,  onde foi pedir a Juquinha Quintanilha, bom compadre do coronel, receita contra boqueira de égua:    — É de muita praticância nesses serviços.    Gabei Juquinha:    — Em rotina de pasto não há como o compadre.    Ia  a  viagem  nesse  pé,  o  negro  recheado  de  educação,  quando,  de  um  verdal  protegido  do vento,  senti  presença  de  inhambu.  Larguei  o  pio  e  no  pio  a  caça  veio  sem  tardança.  Por desgraça,  um  lagartão,  que  gozava  o  seu  meio-dia  em  cama  de  folha  seca,  desandou  a espadanar o rabo em corrida assustada. Melhor aviso não queria o inhambu, sabido que esses bichos  dos  matos  vivem  de  compadragem  uns  com  os  outros.  Lá  subiu  a  caça.  No  alevante, peguei o inhambu no fofo do peitilho. Foi um tiro só — caiu de pedra, durinho, num carrascal de  banhado,  recoberto  de  tábuas,  paus-de-mangue  e  outras  vivências  das  águas  malinas. Nicanor ainda quis retirar a caça de lá, no que não consenti, por ser espinheiro de mau caráter, capaz de esconder nos seus entranhados uma surucucu ou maldade de igual porte:    — Fique a cômodo, fique a cômodo.    O protegido de Caetano de Melo, pronto para deixar a sela, acatou minha ponderação:    — Vossa Senhoria é homem de razão, sabe o que faz.    E caiu na louvação da minha pontaria:    — Se mal comparo, o coronel é de tiro do porte do major Badejo dos Santos.    Não  repeli  a  comparação. Não  era  dos  regulamentos  desfazer  da  mestria  de um  colega  de farda, por mais rebaixada que fosse a patente dele. Em verdade, nunca que o gatilho do major chegasse  aos  pés  do  meu.  Mas  disso  não  fiz  alarde  junto  do  retinto  Nicanor.  E  tratei  de embicar a palestra em outro rumo. Falei do ventão varredor de pasto:    — Parece uma súcia de lobisomem, seu compadre.    Na  citação  de  tal  maldade,  o  retinto  de  Ponta  Grossa  pediu  aparte  e  disse  que  o  povo  do Pilar  preparava  embaixada  de  mais  de  vinte  cavalos  para  pedir  a  ajuda  do  coronel  num 
desencantamento de lobisomem:    — É o propalado, coronel.    Como  costumo  fazer, por  ser  de  minha  natureza brincalhona,  inquiri Nicanor  a respeito  da cor do empestiado:    — Dos azulões ou dos barrosos?    Pelo  coçar  da  cabeça,  vi  que  era  Nicanor  sujeito  temente  de  lobisomem.  Embarquei  no medo  dele,  de  modo  a  deixar  o  afilhado  de  Caetano  de  Melo  de  rabo  entre  as  pernas,  em estrada  sozinha,  em  hora  de  sol  a  pino,  que  é  a  mais  calhada  para  visagem  e  assombração. Demonstrei  estar  a  par  de  toda  qualidade  de  aparecidos,  desde  penitenciazinha  de  menino pagão ao soberbo boitatá de porta de cemitério:    — Que é o pior dos mal-assombrados, seu Nicanor.    Sem  preparo  para  sustentar  conversa  de  alma  do  outro  mundo,  o  coitado  parecia  estar sentado em panela de  formiga, todo  encolhido na  sela, já desfeito de toda galhardia. E assim, de  medo  em  medo,  cheguei  com  ele  no  arremate  da  estrada  aberta.  O  resto  era  caminho  de calangro,  servido por pitangueiras  e  gravatás. Nicanor mirou  o  distanciado, tudo  areal, muita légua  na  frente  antes  da  primeira  cancela  de  Caetano  de  Melo.  Aproveitei  o  desconsolo  do retinto para montar nova brincadeira:    — Seu Nicanor, que cor leva mesmo a penitência?    Meio encovado, relatou que a visagem do Pilar ofendia o povo de Juca Azeredo, por saber que  o  primo  não  podia  desmanchar  a  maldade  em  vista  de  andar  de  casamento  engatilhado com menina de Pires de Melo:    — Na casa do velho, tesoura não tem sossego. Corta pano dia e noite.    Foi  como  se  a  língua  de  uma jararaca  picasse  minha  parte  mortal.  Estive  vai-não-vai  por soltar o destampatório contra a falsidade de Juca Azeredo em tomar estado à revelia deste seu parente.  Contive  o  ímpeto,  não  dando  notícia  do  meu  desgosto  ao  afilhado  de  Caetano  de Melo. Fiz  da tripa  coração  e  até  engrandeci  a providência  de  Juca Azeredo.  O primo  obrava bem, já andava maduro, cara de lagartão velho, com uma toalha de boi zebu balançada bem no debaixo  do  queixal.  Não  podia  ter  escolhido  peça  melhor.  A  menina  de  Pires  de  Melo,  de pouca idade mas de muitos bons apetrechos, era roça que dava de um tudo:    — E no mais, seu compadre, cavalo velho pede capim novo.    Dito  isso,  sem  querer  mais  amamentar  conversa,  liberei  Nicanor  do  Espírito  Santo,  com recado de amizade e lembranças ao dr. Caetano de Melo, seu padrinho:    — Qualquer hora dessas vou tomar café com ele.    Chapéu  fora  da  cabeça,  atravancado  de  respeito,  o  retinto,  como  é  da  cortesia  dos pastos, esperou  que  eu  levasse  distância  avantajada. Risquei  a roseta na barriga  da minha trafegação —  o  bichinho  subiu  nas  patas  do  coice,  ganhou  asa  e  lá  foi  Ponciano  de  Azeredo  Furtado, ardido de raiva, a caminho do Sobradinho. Boa bisca o primo Azeredo. Quando pegava dor de barriga, bem  que  sabia  o  caminho  do meu  sobrado.  Era um reforço  de pecúnia, um  conselho, uma providência disso e daquilo. E até em limpeza de escritura andei dando meu parecer, uma vez  que  não  desaprendi  as  manhas  de  meus  dias  de  escrivão.  Um  vizinho  dele,  arrotador  de rompâncias,  ao  saber  que  Juca  Azeredo  era primo  do  coronel  do  Sobradinho,  chegou  o  rabo na chiringa, deu o dito por não dito e arrumou uma barganha de terras que foi de grande lucro para  o  parente  Azeredo.  E  o  pago  que  eu  levava  era  esse  de  todo  mundo  saber  do  noivado dele,  menos  eu.  Parente  feito  de  bosta.  Logo  comigo  que  fazia  uma  desfeita  dessas.  Logo 
comigo!  E  tudo  por  medo,  no  receio  de  minha  lábia  de  sujeito  instruído,  palestroso.  Pois soubesse  Juca  Azeredo  que  não  casei  na  família  de  Pires  de  Melo  porque  bem  não  quis. Quando  dona  Bidu,  mãe  das  meninas,  cheirou  interesse  de  Ponciano pela  mais  tenrinha,  uma de  tranças  de  boneca,  tratou  de  esconder  a  moça  no  fundo  das  alcovas.  Pensava,  com  essa artimanha, futucar os brios do coronel. O que dona Bidu queria é que eu forçasse, noite alta, a janela  da  casa  e  de  lá  extraísse  a  menina  em  garupa  de  cavalo.  Como  não  caí  na  armadilha, desandou,  fui  sabedor  mais  tarde,  a  dizer  que  a  filha  dela  não  casava  com  o  barbaça  do Sobradinho nem por ouro, nem por prata:    — Prefiro ver a menina amortalhada do que em poder de Ponciano.    Não repeli  a  afronta  em vista  da  grande  consideração  que  sempre tive pelo velho Pires  de Melo. Ademais, andava eu de j urisprudência firmada em cima de dona Isabel Pimenta, do que não  adveio  casamento pelos motivos já  sabidos, tais  como bobajadas  e  ciumadas  da moça. E nunca  que ninguém  quisesse  fazer  comparação  entre  dona Isabel Pimenta  e  as marias-mijonas de dona Bidu. Nunca! Por essas e outras é que o primo não devia esconder de mim namoro tão de rabo de fora. Melhor que chegasse ao Sobradinho e fosse franco:    —  Estou  de  olho  numa  das  meninas  de  Pires  de  Melo.  Que  acha  o  primo,  que  é  bicho escolado em rabo de saia?    E mais adiante, em intimidade de parente, ministrava a Juca Azeredo aprendizado de como proceder com a moça donzela no depois das dez da noite, et cetera e tal, não fosse ele cometer despautérios e cair em vexames. Esses benefícios todos de minha amizade o parente Azeredo relegou,  amedrontado  de  perder  para  mim  a  menina  de  Pires  de  Melo.  Pois  que  segurasse agora,  sem o reforço do meu braço, o lobisomem, que pelo propagado devia  ser dos bojudos, fornido de vinganças e malquerenças. Quem come a carne, come o osso. Ficasse Juca Azeredo encarregado do lobisomem. Quando a tal comitiva da invenção dele batesse no Sobradinho, ia receber de mim resposta debochada:    —  Qual nada!  Sujeito mais  capacitado para  desmontar um  lobisomem  como  Juca Azeredo ainda vai nascer.    E, dentro desse caçoísmo, despedia os missioneiros:    — Passar bem, passar bem.    E arrematava com um bom par de bananas.        Mal jantado,  cabeça pejada de ingratidão,  caí na  cama. A  custo preguei  olho.  Sei lá  se por causa  do vento,  se pelos remexidos  da noite,  sonhei  que  o  assombrado  do  Pilar  era  Pires  de Melo. Caçado de pasto em pasto, apareceu no  Sobradinho, onde pediu proteção. Do beiço do perseguido pingava baba  de  cachorro  danado.  Saí na  defesa  do penitente  contra  a  gritaria  de cem bocas:    — Mata! Mata!    Acordei  empapado  em  suor.  O  diabo  é  que  a  algazarra  continuava  fora  de  portas,  uma gritaria  que  não  era  mais  da  peripécia  dos  travesseiros.  Num  roj ão,  escancarei  a janela  em hora  de  ver,  perto  da  casa  do  galo,  uma  procissão  de  lamparinas  que  o  dedo  do  vento espichava  e  diminuía.  De  lá  um  molequinho  gritou  que  Pé  de  Pilão  andava  em  guerra  feia  e forte  com  um  bicho  do  mato.  Logo  pensei  na  surucucu  que  de  uma  feita  picou  a  perna  do raçudinho  e  da  qual  ofensa  ele  nunca  mais  esqueceu.  Digo  que  não  sei  como  vi  o  coronel Ponciano  de  Azeredo  Furtado  no  meio  da  farreagem  das  lamparinas,  já  no  comando  das 
ordens:    — Afasta! Afasta!    Tive de mandar arrebanhar lampião capaz de repelir os desmandos da noite e do vento. Isso feito, alumiei a casa do galo. Vermelhinho, tomado de raiva possessa, pulava contra a telha-vã em risco de ralar o bico no adobe. Falei da porta:    — Que macaquice é essa, capitãozinho? Vosmecê virou caxinguelê, lagartixa de parede?    Saía  faísca  do  olhinho  miúdo  do  bicho.  Muito  era  de  pensar  que  toda  essa  apoquentação fosse  causada  pela  presença  de  algum  gambá,  da  maior  embirração  dele.  Ia  eu  entrar  no galinheiro, até espevitei a língua do lampião, quando percebi aquele assobio no telhado, pelo que  recuei  em  ocasião  de  ver,  embutidas  no  vão  da  parede,  duas  brasinhas  de  fogo.  Era  a mirada  da  cobra  que  o  clarão  das  lamparinas  atiçava.  Em  salto  ligeiro,  dei  de  mão  em Vermelhinho  e  corri  com  ele  a  salvo  da  peçonha  mortal.  Mas  só  vendo  a  força  que  o deseducado  fez para  sair  do meu torniquete!  Fui  obrigado  a usar  da minha  autoridade militar sacudindo o galo:    — Esteja em sossego, tenha tino!    Resguardei  da  língua  da  cobra  a  molecada  das  lamparinas, uma  vez  que pé  de  criança  em noite de surucucu é defunto na mesa. Em boa ordem armei a retirada, cada qual em seu devido lugar.  Na  casa  do  galo,  o  serpentão  assobiava  como  se  estivesse  de  aposta  ferrada  com  o vento.  Janj ão  Caramujo,  saído  de  sua  toca,  ficou  de  longe  —  também  outros  agregados  do Sobradinho,  ainda  tontos  do  travesseiro,  vieram  na  poeira  da  algazarra,  mas  o  zunido  que  a cobra tirava  deu para  esfriar  o  ânimo  deles.  Só Vermelhinho  é  que  continuava  desensofrido  e outro  remédio  não  achei  senão  emparedar  o  mal-agradecido  no  quarto  dos  engomados,  onde deu  de  fazer  as  maiores  pirraças  e  ranzinzices.  Tanto  barulho  acabou  sacudindo  o  dormir  de Francisquinha, que não tardou em vir saber, na frente de suas negrinhas, se o fim do mundo era chegado:    — Que desordem é essa que deu na noite escura?    Apontei para a casa do galo:    — Deu surucucu lá embaixo.    Não  precisei  de  voz  própria  para  engrandecer  a  cobra.  Um  pardinho  mais  saído  afiançou que  a  cabeça  da  traiçoeira  regulava  o  feitio  de  uma jaca.  Outro,  que  falava  engasgado,  em cópia  de Antão  Pereira,  foi medir no  soalho  o tamanhão  da  surucucu, mais  de meio  corredor de roliça. No berro, mandei que Janj ão fosse na busca de minha espingarda de fogo-central:    — Uma pesada, de coronha trabalhada, com que estuporei a onça.    Ia   picar   a   cobra   na   bala,   que   todo   mundo   avivasse   as   lamparinas.   Foi   quando Francisquinha,  parada  no  centro  da  porta,  embargou  a  providência.  Seu  menino  não  saía  em noite de breu para essas estripulias que até nem era de bom tino fazer em dia claro:    — Do que o menino carece é de dormir.    Em lábia fina rebati a imposição da velha. Andei lá e cá, desfiz da cobra:    — É minhoca à toa, que na luz do dia a gente sucumbe a poder de peteleco.    Queixo  duro,  Francisquinha  firmou  seu  parecer  —  o  menino  não  saía  por  ser  de  gênio estourado  e  ainda mais  que ninguém podia  garantir  em juramento  que  a  aparecida  da  casa  do galo não fosse o capeta em pele de surucucu:    — Nenhuma gente, nenhuma gente.    Em reforço de Francisquinha, entrou uma engomadeira que relatou o passado com ela, anos 
atrás, nos  dias  em  que  clareava roupa para uns Vasconcelos, povo  abastado  do Limão. Muito disfarçado, que o pai dos infernos tem  sete manhas e mais duas, fuçou a casa toda, como é da natureza  dos bichos  amestrados. Na porta  do  oratório  quedou  gemente  e  logo  sucedeu  aquele estrondo. Da entranha da fumarada pulou um bode preto que desapareceu em fogo e enxofre:    — A catinga dele quedou sem desfalecer mais de ano.    Não  consenti  que  a  engomadeira  levasse  a  mentirada  mais  adentro.  Com  brusquidão, mandei que recolhesse as falas:    — Cuide de seus engomados e deixe de ser inventeira.    Em  socorro  da  agregada  veio  Francisquinha.  Disso  resultou  que  a  minha  espingarda  de fogo-central não teve mais uso. Ficou  sem berro no ombro de Janj ão Caramujo. Livre do meu tiro mortal,  a  surucucu  ganhou  os  ermos.  Jurei manhãzinha raiada  sair no rasto  dela, nem  que tivesse de remexer a pastaria na raiz:    — Não vai gozar regalia por mais tempo.    O prometido foi cumprido. No cheiro do café, na primeira aragem da manhã, caí na vistoria. De longe, a molecada apreciava as minhas evoluções — era uma gamela que subia na ponta da botina,  era  um  capinzal  que  eu  varava  sem  medo  da  surucucu.  Tudo  remexi,  como  saúva  em dia de correição. E nada da cobra, nem sombra da cobra. Cruzei os braços e dei o Sobradinho como limpo dela:    — Teve juízo a surucucu. O bicho é escolado, sim senhor.    Já batia em retirada quando  Saturnino, na companheiragem de Antão Pereira, pediu licença para  trazer  à  minha  presença  um  desgosto.  João  Ramalho,  meu  bom  marcador  de  rês  do Sobradinho, tinha  fugido, no  luar  da noite,  levando num balaio  a  filha  de um tal Antônio Pio, sacristão de missa e ladainha da capela de Tocos:    — O velho saiu na perseguição dos sumidos.    Achei  graça,  o  que  desanuviou  o  bom  Saturnino  e  mais  Antão  Pereira.  Figurei  João Ramalho  de  moça  no balaio  e  no  calcanhar  dele  o  devocioneiro pai  da  menina.  Fiz  troça  do marcador de rês, gabei o seu ladroísmo:    — Roubo de moça, seu Saturnino, não incrimina ninguém.    Do  caso  de  João  Ramalho,  pulou  Saturnino  para  a  surucucu  que  andou  de  noite  no Sobradinho.  Caí  derreado  —  era  de  muita  admiração  que  ele,  morador  de  pasto  longe, soubesse da novidade assim mal saída da casca:    — Pelo visto, vosmecê tem parentesco com o fio do telégrafo.    Saturnino, pedindo licença, clareou o mal-entendido. Sucedeu que a cobra, livre do meu tiro certeiro, fez visita em sua capoeira, de não deixar carne de criação sem picada peçonhenta:    — Praticou uma limpa, meu patrão. Nem uma ninhada de pinto escapou.    Cruzei  os  braços,  balancei  a  cabeça,  cada  vez  mais  aparvalhado.  O  estirão  entre  o Sobradinho e as tarefas de Saturnino era de muita légua, estrada demais para uma surucucu só:    — Deve ser outro o causador da estripulia.    Com  a  ajuda  de  Antão  Pereira,  o  mulato  de  novo  pediu  licença  de  modo  a  ponderar  em contrário. Era a cobra do Sobradinho, que isso não cabia dúvida e mais de um cristão sabia da existência dela:    — É um pico-de-jaca estradeiro, mais andador que um cometa.    No almoço, outra remessa de novidades chegou ao Sobradinho na bagagem de um mestre de mula. Nos  Currais  de  Fora,  onde  a minha herança  cumprimentava  os mourões  de  Badejo  dos 
Santos, dois garrotes  foram mordidos. Um aleijado  ficou, outro morreu retinto de carvão, que assim afiançou o muleiro:    — Uma surucucu-pico-de-jaca foi causadora do prejuízo.    Pespeguei   dois   socos   na   mesa.   Era   no   que   dava   seguir   gente   de   ideia   fraca.   Se Francisquinha não viesse de imposição (“O menino não sai em noite de breu, que isso não tem cabimento”), a cobra pegava no centro da cabeça dois tiros de espirrar miolo de  surucucu em altura de nuvem:    — Era bicho liquidado. É o que digo. Era bicho liquidado.    Não segui a minha cabeça. Resultado, perdi dois bezerros e ainda tive, no corpo da semana, de  apaziguar  a  raiva  do  galo  Vermelhinho,  todo  tomado  de  trombas  pelo  motivo  de  ter  o coronel  seu padrinho  embargado  a  demanda  dele  com  a  surucucu. Nem  é bom  relembrar  sua má-criação. Passava de bico alto, político comigo. E a custo voltou à boa paz de antigamente, ao  seu  natural  de  amizade.  Não  sou,  nem  nunca  vou  ser,  sujeito  de  alegar  serviços.  Mas  fiz pelo  galo, nessas  especiais  circunstâncias,  o  que muito pai não  faz por  filho  ou parente. Meti mestre de obras no poleiro dele. Queria o raçudo livre das picadas dos bichos do mato, o que ficou  garantido pelo reforçamento  das paredes  e mudanças  dos  caibros  da  casa  do  galo.  Isso feito, chamei Vermelhinho:    — Veja o casão que o capitãozinho ganhou! Nem tropa de linha, quanto mais  surucucu, tem força de tombar uma grandeza assim. Nem tropa de linha.    Tamanha birra tomou  o galo pelas roliças dos matos que dessa precisa  ocasião para diante foi  um  matar  de  cobra  sem  apelo  ou  agravo.  Estuporou,  para  desgosto  de  Saturnino,  uma limpa-pasto  da  especial  amizade  dele.  Deixou  a  pobre  furada  de  crivo,  olho  retirado, desmontada da cabeça ao rabo. O que o danadinho queria era pegar em hora baldia a surucucu desaforada.  Na  cata  dessa  vingança  vasculhava  os  arredores  do  Sobradinho  e  muita  vez  a estrela papa-ceia foi encontrar Vermelhinho na busca e rebusca da surucucu. Sinhozinho, a par da  mania  do  galo,  garantiu  que  na  rixa  da  cobra  ele  fazia  mais  fé  no  esporão  —  era Vermelhinho e ainda dava lambuja:    — O pau do galo de Ponciano é madeira que dá em maluco.        Foi  nesse  ponto  que  recebi  carta  da  cidade,  onde  dona  Esmeraldina Nogueira  encarecia  a presença  do  coronel  numa  comemoração  de  natalício.  O  convite  veio  na  pouca  vergonha  de umas  gazetas  de  imprensa,  mandadas  por  Juju  Bezerra  do  covil  da  Farmácia  Esperança.  O major,  que  nem  a  nova  amizade  do  padre  teve  poder  de  estancar  as  safadezas,  chamava  a minha  atenção para um  Moulin-Rouge  chegado  do  Rio, bem  aparelhado  de rabo  de  saia.  Por baixo  dos  nomes  das  damas,  o  major  fez  correr  o  lápis.  Era  uma  estrangeirada  de  Zuzus  e Mimis de não ter fim. Ri da molecagem de Juju:    — É o pai dos capetas. Não toma emenda.    Revirei  a  carta  de  dona  Esmeraldina  na  esperança  de  encontrar  cheiros  do  vestido  dela, uma perfumada de seu especial uso. O resto do dia andei bambo, suspirento, caído da vontade. Não tirava a moça da ideia  e  até  senti  sofrimento bom ao pensar nela, no  seu cabelo de  fogo, nos seus avantajados de cima e de baixo. No impulso dessa relembrança, deliberei:    — Está decidido. Vou vadiar na cidade.    Em  verdade,  o  Sobradinho  enferrujava  a  libertinagem  de  qualquer  cristão. Nazaré,  que  eu contava  para  o  meu  desfastio,  presa  ao  serviço  de  Mata-Cavalo,  cada  vez  mais  afundada  na 
amizade  de  dona  Alvarina,  nunca  que  aparecia  de  modo  a  arejar,  com  o  vaivém  dos  seus inchados,  o  marasmo  do  Sobradinho.  No  mais,  as  tarefas  dos  currais  andavam  em  ordem,  o mês  esfriava,  a  noite  pedia janela  cerrada,  cobertor  reforçado.  O  que  eu  tinha  a  fazer,  para esperar o tempo da estiagem, era comprar um gado de fora e cortar madeira em Mata-Cavalo, aproveitando a lua favorável. Tirante isso, nada prendia Ponciano ao  Sobradinho, nem beleza de  moça,  nem  compromisso  de  casamento.  Pois  estava  decidido —  ia pegar  quarto  no  Hotel das Famílias, visitar os amigos do Foro e dos cafés, comprar cadeira estofada no tal Moulin- Rouge  da  recomendação  de  Juju  Bezerra  e  nas  caladas  da  noite,  chapéu  desabado  no  olho, frequentar casa suspeita. Falei sozinho, já adivinhando a farreagem em que ia afundar :    — O coronel vai ter menina nova às ordens, vai gozar de sultão.    Dei  conta  de  minha  deliberação  a  Francisquinha  e  antes  que  a  velha  escumasse  resmungo, como era de seu feitio, larguei a responsabilidade do Sobradinho na carcunda dela:    — Vosmecê é quem vai ficar no mando das ordens. Vosmecê e mais ninguém.    E virei  as  costas,  sabedor  de  que  decisão  dessa  ordem  deixava  Francisquinha  comprada  e de  lágrima  escorrida.  Satisfeita  a  velha,  tirei  a  semana  para  correr  a  herança  em  vistoria  de despedida.  Ministrei  ensinamentos  e  dei  ordem  a  Saturnino  Barba  de  Gato  como  devia proceder  nas  ausências  do  patrão.  Queria,  na  volta,  encontrar  o  gado  limpo,  sem  berne,  sem bicheira  ou  outros  agravos  do  tempo.  Que  metesse,  caso  o  tempo  ajudasse,  obra  nos  currais, mudasse  os  caibros  de  sua  casa,  pois  era  sabido  que  o  bom  Saturnino,  viuvão  encruado, tratava de montar família nova com senhora de respeito:    — No que obra bem, seu Saturnino, no que anda de juízo.    Outro  feixe  de  incumbências  deixei  em poder  de Antão Pereira,  cujo trabalho  de principal era cuidar do galo Vermelhinho:    — Veja que tenho por ele, seu Pereira, estimação de filho.    Conferência  maior  tive  com  meu  compadre  Quintanilha,  uma  tarde  toda,  no  Sobradinho. Botei  Juquinha  a  par  dos  meus  propósitos.  Ia  deixar  em  ombro  dele,  e  mais  de  Saturnino Barba  de  Gato,  as  responsabilidades  da  herança.  Enquanto  durasse  o  vento,  eu  ficava  na cidade,  aprimorando meu  saber,  desenferrujando  as  ilustrações  de  sujeito  que  teve  ensino  de padre:    — Careço de arejar, compadre.    Juquinha,  cara  séria,  sem mostrar  o  dente  de  ouro,  aprovou  a  deliberação. Homem  do meu preparo não podia ficar enterrado nos pastos como chifre de boi ou mourão de angico:    — Tem de vadiar, tem de espalhar a perna.    Dois  dias  andados  do  meu  entendimento  com  Juquinha  Quintanilha,  apeava  eu  na porta  da Farmácia Esperança. Juju Bezerra, em manga de camisa, aviava receita. Vendo os dois metros deste  coronel,  tudo  largou  e  na  pressa  do  abraço  quase  deitou  no  assoalho  o  pilulador  e frascos em derredor :    — Que prazer, que honraria.    Agradeci a remessa das gazetas e das  safadezas que elas portavam a respeito da pagodeira dos Moulin-Rouge:    — Pelo apregoado, a sem-vergonhice é deslavada, seu compadre.    Juju  levantou  os  braços  —  nem  eu  podia  conceber  a  belezada  que  rolava  nas  ribaltas  de Campos:    — Uma tal de Zuzu já está fazendo devastação no comércio atacadista. 
   Agarrado no meu bração de jacarandá, Bezerra foi encalhar no quintal da botica, na sombra de um  caramanchãozinho  de bogari.  Estranhei tanta  fundura, mas  o major  falou  que  em  Santo Amaro  o  ouvido  do padre  Malaquias  era  muito  comprido. Não  queria, por uma bobajada  de saia, perder a confiança do reverendo:    — Logo agora que estou por cima da carne-seca.    O  caso  é  que  ele,  Juju Bezerra  de Araújo,  andava  de  interesse  incrustado  em  certa menina do  Coliseu  dos  Recreios.  Conhecedor  do  meu  preparo  em  lidar  com  esse  povo  das  ribaltas (“O que o coronel não souber ninguém mais sabe”), pedia minhas luzes:    — Careço de umas práticas que só o amigo Ponciano pode dar.    Alisei a barba, suspendi a cabeça. Entre a petição do maj or e minha resposta andou um bom par  de  minutos,  do  que  aproveitei  para  dar  meia  dúzia  de  passos  até  ao  fim  do  quintal.  Na volta,  disse  a  Bezerra  que  lidar  com  menina  de  palco  requeria  certos  traquejos. Não  fizesse ele  o  papelão  de  Pergentino  de  Araújo,  tabelião  aposentado,  homem  de  lei,  que  no  levantar moça dos Moulin-Rouge gastava mais flor de jardim que um defunto rico e chorado:    — Tolice, seu Bezerra, bobagem de Pergentino.    Nunca  que  menina  de  palco  ia  apreciar  proceder  tão  cativoso,  por  ser  isso  mais  para donzela de  sofá e casamento. Comigo o trabalho corria diferente,  sem muita honraria ou gasto de  saliva. Não que o  suj eito  fosse chegando e pedindo à queima-roupa os estofadinhos delas. O galante, prestasse Juju atenção a essa prática, devia demonstrar certas educações de berço, de modo a não espantar a codorna:    — Mas nada de flor, como o tabelião Pergentino, seu Bezerra. Nada dessas mariquices.    Encurtando, aconselhei o major a fazer a ceata com a menina de suas paixões em recinto de conhaque e beberetes:    — Como no Taco de Ouro, seu compadre. Para esses preparativos não tem como o Taco de Ouro.    Que  procurasse  o  Machadinho,  um  de  costeleta  escorrida  até  perto  do  queixal,  que  logo aparecia mesa bem encravada no escurinho:    — Nem  o major precisa  abrir  a boca. Machadinho, vendo  a  cara pintada  da peça,  sabe no imediato que é negócio sem-vergonhista.    Escorregava  do  rosto  de  Juju  Bezerra  admiração  pela  mestria  deste  Ponciano  de  Azeredo Furtado no manobrar gente da ribalta. Ponderou que isso é que era falar certo, mostrar o dedo da sabença:    — É  o  que  eu  digo. Não há  como  o  coronel para uma  demanda no Foro  ou uma prática  de safadeza.    Mais  depois,  na  companhia  do  major,  fui  visitar  Malaquias  para  pedir  ao  meu  confessor umas  providências  a  respeito  dos  meninos  desbatizados  do  Sobradinho.  Desde  que  contraiu sofrimento no joelho, o padre não soube mais o caminho da minha herança, pelo que deixou os pastos e seus arredores desbeneficiados de água benta e sermão:    — Até parece,  seu Juju, que não dou  ajutório  às piedades dele, que  sou herege,  corrido de bula de bispo.    Em verdade, minha obtemperação não encontrou ouvido. Tive de deixar a queixa a cargo de Juju Bezerra, uma vez que o reverendo andava longe,  sem hora de chegar. E um pedreiro, que trabalhava nos reparos da sacristia, desmanchou de vez minhas esperanças de deitar a vista no padre: 
   — No menos tardar, volta na boquinha da noite.    Foi nesse ponto,  a  caminho  da Farmácia Esperança,  que Juju Bezerra,  depois  de  averiguar se  não  tinha  gente  perto,  apresentou  convite  para  que  eu  tomasse  parte  num  batizado  no Colégio:    — É uma água benta de muito proveito. Tem moça em penca.    Em  garganta  sumida,  em  modos  de  segredo,  Bezerra  foi  relatando  as  virtudes  das  meninas de lá. Era gente prendada, gente dos Nogueira. As moças só vez por outra é que apareciam nos pastos, pois todas ensinavam letras na cidade:    — Povo de diploma, cada qual mais instruída que a outra.    E mais baixo, quase em fala de tísico:    — É cada pernão, cada compartimento de baixo e de cima!    Aconselhou que eu fosse no gozo da farda, por ser a família dos Nogueira muito achegada a gente militar :    — Vou de maj or. Já mandei passar os brins.    Concordei,  não  só  pelo  pernão  das  moças  como  por  ter  semana  vadia  na  frente.  E  no Sobradinho,  mal  cheguei,  pedi  a  Francisquinha  que  mandasse  meter  na  goma  a  farda  do  seu menino:    — Minha velha, vou comandar uma água benta no Colégio.    No  oco  da  semana,  estando  eu  em  tarefa  de  marcação  de  rês,  vejo  vir  a  prometida embaixada  do  lobisomem. Não  sustei  o  trabalho  dos  ferros.  Era  como  se  não  existisse  povo nenhum na redondeza. Os postulantes ficaram por fora, sem alento de chegar. Serviço acabado, recolhidos  os  apetrechos,  um  mais  atrevido,  que  eu  conhecia  do  engenho  de  Juca  Azeredo, avançou de recado pronto. O falador até parecia da política, tão avantajado de língua era ele. Jogou  nas  alturas  a  minha  sabedoria  em  lidar  com  a  raça  dos  lobisomens,  encantação  que  o coronel Ponciano de Azeredo Furtado conhecia em distância longe, só pelo porte de andar :    — É o que todo mundo apregoa.    Zombei  por  dentro  do  falador.  Via  no  sermão  dele  o  dedo  amedrontado  do  primo  Juca Azeredo. Deixei que o bichão desse o recado, destroncasse a língua, pois em minha presença, sujeito  de  patente  e  letras,  todo  cristão  apreciava  mostrar  sabedoria.  Quando  a  corda  do homenzinho findou, dei meu despacho rendilhado, de mais parecer peça de desembargador da Justiça. Meti a embaixada do lobisomem num chinelo só na citação de leis e regulamentos. Fiz sentir que o caso trazia dificuldades:    — É de muita jurisprudência, sim senhor.    Não  contente  de  falar  nos  moldes  dos  doutores  do  Foro,  ainda  avivei  certo  sucedido  de lobisomem  que  acabou  nas  barras  da  Justiça  em  dias  recuados  dos  barões.  Jogaram  os fundilhos de um suspeitoso no banco dos réus. A demanda do julgamento, é-lobisomem-não-é- lobisomem,  afundou pela  noite,  que  era  de  sexta-feira.  Pois  foi  a  lua  aparecer  na  vidraça  da casa  do  Foro  e  o  tal  suspeitoso  soltar  aquele  ganido  de  cachorro  acuado,  num  desrespeito nunca  visto  em  recinto  de  lei.  E  sem  pedir  licença,  como  é  dever  em  tais  ocasiões,  o suspeitado  largou  o  dente  na  peça  dos  autos  e  demais  papéis  adjuntos.  Sobreveio  então  um corre-corre  de  arruaça.  Caiu  desembargador,  caiu  mesa,  caiu  cadeira  e  cadeirinha.  E  o lobisomem, dono da  sala, fuçando gavetas e tudo mais que calhou de encontrar no caminho. E no deboche, bebeu a tinta toda dos tinteiros e borrifou com ela portas e paredes:    — Deu que falar, sim senhor. Foi caso muito espantoso, sim senhor. 
   Por essas e outras, e por  ser franco e não gostar de pregar peças a ninguém, é que eu podia garantir ser lobisomem raça de muito recurso de ideia e maldade na cabeça:    — É encantação de grande jurisprudência.    Foi assim, pouco casista, que arrematei minha palestrinha com a embaixada do lobisomem. Logo  ficou  de  todos  conhecido  o  despacho  mofino  do  coronel  no  caso  da  assombração.  Uns acharam  que  fiz bem,  outros recriminaram  o meu proceder,  como  Sinhozinho  Manco.  Sumido do  Sobradinho  por  estar  a  braços  com  incômodo,  lá  nele,  de  bexiga  solta,  veio  em  viagem especial para trazer o seu desgosto e reparo. Entrou sem cortesia, já resmungão dos diabos. E sem delongas, apresentou a queixa trazida:    — Ponciano, Ponciano, que desabusamento é esse com malvadez da noite?    Andava  eu,  debruçado  na  varanda,  já  a  meio  charuto  do  depois  do  almoço,  quando Sinhozinho  estilhaçou  o  meu  sossego.  O  dedinho  dele,  que  um  cigarro  de  palha  não  ganhava em  magreza,  fazia  as  vezes  de  chicote. Nessas  destemperanças,  o  melhor  era  deixar  o  velho correr até gastar os cascos, por ser ele da natureza do vento brabo do areal, que não obedece a ninguém.  Sabedor  disso,  afundei  no  gozo  do  charuto  e  foi  a  poder  de  baforada,  rolo  sobre rolo,  que  aguentei  o  ranzinzismo  de  Sinhozinho.  Sua  vozinha  de  menino  virou  e  desvirou  o lobisomem pelas  sete partes para afiançar que mais dia menos dia o encantado ia mostrar  sua vingança.  Relembrasse  eu  que por  caçoísmo  de  menor  valia  o  capitão  Jonjoca  do  Queimado ficou de quarto duro, estropiado de não ter mais fundilho para sela:    — Finou carcomido de cancro pertinaz.    O mais curto atalho para chegar às partes moles de  Sinhozinho era mostrar arrependimento. Partista  como  ninguém,  pendi  a  testa,  alisei  o  cabelão  de  fogo,  agradeci  o  zelo  dele  e  suas boas ponderações:    — Andei em erro, andei em erro.    E  no  entremeio  desse  fingimento,  em  modo  subalternista,  botei  em  mão  do  velho  (“Para vosmecê julgar as partes, seu Sinhozinho Carneiro”) o caso do lobisomem e dos proveitos que dele queria tirar, em prej uízo meu, o primo Juca Azeredo:    — Mas o que Sinhozinho resolver eu dou como decisão da Justiça.    Não precisei  de  atacar mais  forte  e  firme.  O velho, todo rendido,  amoleceu  até no tutano  e logo pendeu a meu favor, já contra o lobisomem, achando que tive proceder brioso:    — Agiu no conforme, dentro da regra.    No  orvalho  da manhã, bem municiado  de remédios  e  apetrechos  de boca,  o velhote voltou ao   seu   pastinho   vasqueiro   e   aos   incômodos   de   sua   bexiga.   Era   sexta-feira,   dia   do compromisso  no  Colégio.  Dei  a  Antão  Pereira  ordem  para  não  submeter  ao  meu  tirocínio nenhuma rotina de curral:    — Não estou no Sobradinho nem para o rei, nem para os graúdos da política.    Mula  escovada,  farda  brilhosa,  sela  apurada,  parti  na  corcova  da  tarde  em  demanda  das terras  do  Colégio.  Juju,  pelo  ajustado,  esperava  por  mim  dentro  de  casa,  no  convívio  dos Nogueira.  Em  duas  horas  de  sela  vadia  o  coronel  Ponciano  de  Azeredo  Furtado,  tinindo  nos arreios de prata, devia ser chegado no Colégio para o beija-mão das meninas, que pelo falado de Juju Bezerra andavam roxas por largar no casamento as suas solteirices. Ia mostrar a todas elas  a  minha  prosopopeia,  o  meu  educativismo.  Uma  taquara  em  dia  de  vento  não  vergava mais do que eu nessas cortesias:    — Ponciano de Azeredo Furtado, para servir Vossas Mercês. 
   Assim,  com  as  moças  na  garupa,  fui  ganhando  estrada.  Descaía  a  tarde  e  do  lado  do  mar soprava um vento invernoso, que limpava o céu de tudo que era passarinho. Gente parava para ver  o  coronel  em  sua  mulinha  de  batizado.  Quando  estou  no  uso  da  patente,  em  regalias  de farda  e galão,  fecho a cara como nas noites de puxar andor, pois  em tais ocasiões não admito discrepância,  nem  abro  mão  da  minha  compostura  militar.  Digo  que  só  por  isso  não  parei, como  pede  o  meu  natural,  em  conversa  de  boa-tarde  com  um  e  outro.  Na  mulinha  viajava  o coronel Ponciano de Azeredo Furtado e não o dono de rês do  Sobradinho. E foi como coronel Ponciano  de  Azeredo  Furtado  que  pisei  o  primeiro  chão  dos  Nogueira.  A  bem  dizer,  eu suspirava  por  descer  no  Colégio  e  passar  vistoria  nas  moças  e  dizer,  enrolando  a  barba,  em conversas de canto de boca, só do coronel para o coronel:    —  Esta  serve  por  ter  tudo  de  donzela  a  olho  nu  e  aquela  não  serve  por  aparentar  ser despossuída do seu et cetera e tal de nascença.    Das meninas do Colégio eu só conhecia suas famas de boniteza, que vista nelas nunca botei, nem de longe nem de perto.  Sabia ser gente de grandes leituras e Juju garantia, de boca cheia, que quem casasse com elas levava moça de quarto e livro:    — Fora as herdanças, seu Ponciano, que isso vai para o além dos muitos contos de réis.    Já  havia  este  coronel  cruzado  a  segunda  porteira  do  Colégio  quando  a  lua  brotou  de  um taquaral,  do  que  aproveitei para  dar uma vista na  farda,  correr  o  lenço no pescoço  e  atiçar  a água  de  cheiro  que  ele trazia. Feito  isso,  de novo  em  sela,  deixei  que  a mulinha  seguisse  sua rotina.  Era  de  pata  educada  e  boca  tão  macia  que  logo  senti  certa  moleza,  coisa  assim aparentada do sono. Não aguentei o cortinado das pestanas, mais pesado que arroba. Repeli, a safanão, essas molezas:    — O coronel deu de dormir em sela?    Em  vão  tentei  retirar  de  mim  tais  quebrantos.  Por  dentro  do  luar,  de  rédea  perdida,  viajei tempo sem conta. Ao dar acordo de Ponciano, já o ventão da costa andava longe e um jeito de alma penada imperava nos ermos. Nesse entrementes, tive a atenção chamada para uns pés de cuité, onde um vulto parecia escondido. Freei no supetão, não fosse uma tocaia armada contra a  minha  pessoa.  Cocei  as  armas,  pronto  a  limpar  a  estrada  a  fogo  de  garrucha.  Mas  o  luar pulou  na  frente  e  desbaratou  o  vulto  da  cuitezeira,  que  não  passava  de  um  mal-entendido  da noite.  Aliviado,  catuquei  a  mula  de  sobre-leve.  Não  acusou  roseta.  Piquei  de  novo,  e  quem disse que ela arredava casco da estrada? Orelha em pé, como bicho em presença de perigo, a teimosa fincou as patas no calhau. Mais uma vez risquei a espora na barriga dela e de novo a bichinha rejeitou  as  ordens.  Conhecedor  das manhas  dos  escuros, não  quis  fazer prevalecer  a vontade  do  coronel,  embora  tivesse  poder  para  tanto.  Deixei  de  lado  esse  direito  e  procurei entrar em entendimento com a birrenta:    — Que faniquito é esse? Respeite a patente e deixe de ficar sestrosa.    Foi quando, sem mais nem menos, deu entrada no meu ouvido aquele assobio fininho, vindo não  atinei  de  onde.  Podia  ser  cobra  em  vadiagem  de  luar.  Se  tal  fosse,  a  mula  andava recoberta de razão. Por isso, dei prazo de espera para que a peçonha da cobra saísse no claro. Nisso,   outro   assobio  passou  rentoso   de  minha  barba,   com  tanta  maldade   que   a  mula estremeceu  da  anca  ao  casco,  ao  tempo  em  que  sobrevinha  do  mato  um  barulho  de  folha pisada. Inquiri dentro do regulamento militar :    — Quem vem lá?    De resposta tive novo assobio. Num repente, relembrei estar em noite de lobisomem — era 
sexta-feira.  Tanto  caçoei  do  povo  de  Juca  Azeredo  que  o  assombrado  tomou  a  peito  tirar vingança  de mim,  como  avisou  Sinhozinho.  Pois muito pesar  levava  eu  em não poder,  em  tal estado,  dar  provimento  ao  caso  dele.  Sujeito  de  patente,  militar  em  serviço  de  água  benta, carecia  de  consentimento  para  travar  demanda  com  lobisomem  ou  outra  qualquer  penitência dos pastos, mesmo que fosse uma visagenzinha de menino pagão. Sempre fui cioso da lei e não ia em noite de batizado manchar, na briga de estrada, galão e patente:    — Nunca!    A  mulinha,  a  par  de  tamanha  responsabilidade,  que  mula  sempre  foi  bicho  de  grande entendimento,  largou  o  casco na poeira.  Para  a  frente  a montaria não  andava, mas na  direção do  Sobradinho  corria  de  vento  em  popa.  Já  um  estirão  era  andado  quando,  numa  roça  de mandioca,  adveio  aquele  figurão  de  cachorro, uma peça  de vinte palmos  de pelo  e raiva. Na frente de ostentação tão provida de ódio, a mulinha de Ponciano debandou  sem minha licença por terra de dormideira e cipó, onde imperava toda raça de espinho, caruru-de-sapo e roseta- de-frade.  O luar  era tão limpo que não  existia matinho desimportante para  suas  claridades — tudo  vinha  à  tona,  de  quase  aparecer  a  raiz.  Aprovei  a  manobra  da  mula  na  certeza  de  que lobisomem  algum  arriscava  sua  pessoa  em  tamanho  carrascal.  Enganado  estava  eu.  Atrás, abrindo caminho e destorcendo mato, vinha o vingancista do lobisomem. Roncava como porco cevado. Assim acuada, a mulinha avivou carreira, mas tão desinfeliz que embaralhou a pata do coice numas embiras-de-corda. Não tive mais governo de  sela e rédea. Caí como  sei cair, em posição  militar,  pronto  a  repelir  qualquer  ofendimento.  Digo,  sem  alarde,  que  o  lobisomem bem  podia  ter  saído  da  demanda  sem  avaria  ou  agravo,  caso  não  fosse  um  saco  de  mal- querença.  Estando  eu  em  retirada,  pelo  motivo já  sabido  de  ser  portador  de  galão  e  patente, não cabia a mim entrar em arruaça desguarnecido de licença  superior. Disso não dei conta ao enfeitiçado, do que resultou a perdição dele. Como disse, rolava eu no capim, pronto a dar ao caso  solução  briosa,  na  hora  em  que  o  querelante  apresentou  aquela  risada  de  pouco-caso  e deboche:    — Quá-quá-quá…    Não  precisou  de  mais  nada  para  que  o  gênio  dos  Azeredos  e  demais  Furtados  viesse  de vela  solta.  Dei  um  pulo  de  cabrito  e  preparado  estava  para  a  guerra  do  lobisomem.  Por descargo de consciência, do que nem carecia, chamei os santos de que sou devocioneiro:    — São Jorge, santo Onofre, são José!    Em  presença  de  tal  apelação,  mais  brabento  apareceu  a  peste.  Ciscava  o  chão  de  soltar terra e macega no longe de dez braças ou mais. Era trabalho de gelar qualquer cristão que não levasse o nome de Ponciano de Azeredo Furtado. Dos olhos do lobisomem pingava labareda, em  risco  de  contaminar  de  fogo  o  verdal  adjacente.  Tanta  chispa  largava  o  penitente  que  um caçador de paca, estando em distância de bom respeito, cuidou que o mato estivesse ardendo. Já nessa altura eu tinha pegado a segurança de uma figueira e lá de cima, no galho mais firme, aguardava  a  deliberação  do  lobisomem.  Garrucha  engatilhada,  só  pedia  que  o  assombrado desse franquia de tiro.  Sabidão, cheio de voltas e negaças, deu ele de executar macaquice que nunca  cuidei  que  um  lobisomem  pudesse  fazer.  Aquele  par  de  brasas  espiava  aqui  e  lá  na esperança  de  que  eu  pensasse  ser  uma  súcia  deles  e  não  uma  pessoa  sozinha.  O  que  o galhofista queria é que eu, coronel de ânimo desenfreado, fosse para o barro denegrir a farda e deslustrar  a  patente.  Sujeito  especial  em  lobisomem  como  eu  não  ia  cair  em  armadilha  de pouco  pau.  No  alto  da  figueira  estava,  no  alto  da  figueira  fiquei.  Diante  de  tão  firme 
deliberação,  o vingativo mudou  o rumo  da  guerra.  Caiu  de  dente no pé  de pau, na parte mais afunilada, como se serrote fosse:    — Raque-raque-raque.    Não  conversei  —  pronto  dois  tiros  levantaram  asa  da  minha  garrucha.  Foi  o  mesmo  que espalhar  arruaça no mato todo.  Subiu  asa  de tudo  que  era bicho  da noite  e uma  sociedade  de morcegos escureceu o luar. No meio da algazarra, já de fugida, vi o lobisomem pulando coxo, de  pernil  avariado,  língua  sobressaída  na  boca.  Na  primeira  gota  de  sangue  a  maldição desencantava,  como  é  de  lei  e  dos  regulamentos  dessa  raça  de  penitentes.  No  raiar  do  dia, sujeito   que   fosse  visto   de  perna  trespassada,   ainda   ferida  verde,  podia   contar,   era   o lobisomem.  Mas  com  todas  essas  vantagens  da  guerra,  o  encapetado  já  em  retirada,  ainda dilatei  minha  estada  no  galho  da  figueira. No  alto  o  luar  vigorava  com  toda  a  força  e  foi  na claridade dele, passado um quarto de hora, que deixei a segurança do pé de pau. Pois bem não tinha  firmado  botina  no  barro,  pulou  aquele  bichão  despropositado  diante  de  mim.  Veio talqualmente um trem  de  ferro, bufando  e roncando.  Só tive tempo  de  largar  o  corpo  de  lado enquanto  aquele  montão  de  malvadez  passava  em  vento  de  raiva,  de  fazer  um  veredal  na mataria. De tanta vingança  cega  era movido  que na marrada  embaraçou  o pé na tal  armadilha de embira-de-corda, do que adveio aquela ofensa:    — Vai embargar a mãe!    Lesto de perna, maneiro de junta, aproveitei o desentendimento dele com o cipó para ganhar o  limpo  da  estrada.  Pouco  gozei  desse  proveito.  De  novo  o  cachorrão,  livre  do  embaraço, correu  atrás  de  minha  poeira.  Por  desgraça,  um  sujo  de  nuvem  emporcalhou  o  luar  em  sua nascença. Foi quando senti nas partes subalternas aquele focinho nojento. Era demais — nunca um  Azeredo  Furtado  recebeu  tamanha  afronta.  Em  pronta  ocasião,  rasguei  o  regulamento militar e entrei de safanão e berro em cima do abusado:    — Toma! Toma!    A primeira braçadeira largada pelo  coronel  fez  o maior desatino na pessoa do demandista. Desarmou  o  bocal  do  lobisomem,  de  espirrar  dente  e  gengiva.  Na  força  do  repuxão,  o penitente  foi  varejado  longe,  em  distância  de  vinte  braças,  no  barato.  Bateu  de  costal  numa cerca  de  angico  e voltou  sortido  de  deliberações. Liberei  de novo  a mão  de pilão no  fofo  da barriga  lá  dele —  a  munheca  de  Ponciano,  não  encontrando  resistência  de  osso,  só parou  na raiz  das  costelas.  Foi  nesse  entrementes  que  o  lobisomem  soltou  aquele berro  agoniado  e  no fim  do  berro  já  meus  dedos  de  torniquete  seguravam  o  cativo  onde  gosto  de  segurar :  na gargantilha.  Aí  até  achei  graça  da  discórdia,  uma  vez  que  a  comandância  da  rixa  estava comigo. Vendo a demanda finada, gritei:    — Estais em poder da munheca do coronel Ponciano de Azeredo Furtado e dela não saireis, a  não  ser  pela  graça  de  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo,  que  é  pai  de  todos  os  viventes  deste mundo.    Como no caso da sereia, tratei a encantação em termos de cerimônia, sois-isso, sois-aquilo, dentro  dos  conformes  por  mim  aprendidos  em  colégio  de  frade  a  dez  tostões  ao  mês.  Desse modo,  ficava  logo  estipulado  que  o  cativo  não  andava  em  mão  de  um  coronelão  do  mato, despido  de  letras  e  aprendizados,  uma  vez  que  vadiagem  das  trevas  leva  muito  em  conta  a instrução  dos  demandistas.  No  presente  caso  do  lobisomem,  nem  careci  de  empregar  outras sabedorias.  Mal  dei  a  conhecer  a  sentença  (“Do  meu  poder  não  saireis”),  escutei,  vinda  de longe, saída das profundas, uma vozinha implorar mais ou menos assim: 
   —   Tenha  pena   de  mim,   coronel  Ponciano   de  Azeredo  Furtado.   Sou  um   lobisomem amedrontado,  corrido  de  cachorro,  mordido  de  cobra.  Na  lua  que  vem,  tiro  meu  tempo  de penitência e já estou de emprego apalavrado com o povo do governo.    Em  presença  de  petição  tão  dorida,  de  penitente  cansado,  fiquei  sem  saber  que  partido tomar :  do  torniquete  ou  do  lobisomem.  Mas,  de  pronto,  meu  coração  molenga  resolveu derrogar a sentença firmada. Concedi passaporte ao condenado:    — Estais livre!    Afrouxei  o  torniquete  e  aquela  goela  peluda  sem  tardança  deixou  o  aro  dos  meus  dedos. Cabeça derreada, olhar já sem brasa de lamparina, mergulhou o penitente na noite dos pastos. A  lua,  de  novo  descompromissada  de  nuvem,  voltou  ao  clareado  de  antes.  E  de  toda  essa labuta  ficou um resto  de  enxofre no recinto  da  desavença.  Sei  lá  se  de minha  garrucha,  sei  lá se do lobisomem.                                                           * * *      
Nova  remessa  de  fama  varreu  a  pastaria  —  e  eu  na  garupa.  O  Sobradinho,  digo  sem soberba,  que  desse pecado não  sou  contraído,  foi  assoalho pouco para tanta  admiração junta. Ninguém  tinha  outra  fala  que  não  a  lição  do  coronel  em  cima  do  lobisomem.  Em  tais  alturas correu muita mentira,  como  é  da rotina  dos  currais.  Tive  de  embargar, por  falsas, meia  dúzia de propaladas invenções que davam as maiores vantagens a mim em descrédito do lobisomem. Fui justo, cortei no sabugo o que não era do coronel:    — Ao homem o que é do homem.    No  particular,  em  conversa  de  amigos,  até  gabei  o  assombrado,  que  pelo  modo  de  falar devia ser pessoa de boa instrução:    — Capaz que seja até um guarda-livros ou coisa mais para cima.    Pois  andava  este  coronel no  quinto  dia  da  dita  desavença  quando,  ao  chegar  de uma tarefa de parição, vi ajuntamento desusado no debaixo das casuarinas. Um meganha de Santo Amaro, ainda  em  sela,  relatava  coisa  de  muito  respeito  em  vista  da  cara  fechada  de  Antão  Pereira  e Janj ão  Caramujo.  Talvez  que  estivesse  em  missão  de  saber  onde  andava  João  Ramalho, bem como a sua moça roubada. Mas se esse fosse o caso, Juju Bezerra vinha pessoalmente, não só por  deferência  de  amizade  como pela  imposição  da patente.  Por  isso, por  conhecer  o  íntimo pacato  de  Juju,  não  dei  importância  ao  meganha  e  ao  comício  que  ele  fazia  na  sombra  das casuarinas. Fui  apear  longe  e  até  espantei uma  criançada  que pulava  carniça perto  da  escada do Sobradinho, com ordem para que Antão desse fim a tamanha vadiagem:    — Solte os codorneiros na canela dos safados, seu Pereira.    Já  ganhava  eu  o primeiro  lance  da  escada, na  ocasião  em  que  o meganha  de  Santo Amaro, descido  de  sela,  veio  pedir  consentimento  para  deixar  em  meu  poder  notícia  de  luto  —  o major Juju Bezerra tinha morrido no depois do almoço:    — Vim em viagem especial, a rogo do vigário.    Pulei como tocado pelo raio:    — Que diz, que diz?    O meganha, já rodeado  do povo  do  Sobradinho, repetiu  o recado,  disse  como  acabou  Juju Bezerra e o desgosto que isso trouxe a Santo Amaro:    — É uma romaria de cortar o coração.    A  custo,  tomado  de  afrontação,  ganhei  a  varanda.  Atirei  meus  dois  metros  de  Ponciano  na 
espreguiçadeira,  ainda  meio  apalermado  pela  notícia  nefasta.  E  mais  apalermado  quedei  ao saber, num particular do recadeiro, que Juju tinha morrido de morte safada:    — No detrás de porta fechada, meu coronel, em braço de moça.    A  velha  Francisquinha,  inteirada  do  meu  pesar,  abriu  o  oratório  e  acendeu  uma  fieira  de velas  para   alumiar  o  caminho  de  Juju.  Dormi  tarde,  com  o  morto  no  travesseiro,  na relembragem  de  suas  travessuras.  Acabou  como  queria,  em  intimidades  de  lençol,  afundado nos divertidos de moça:    — Felizão!    De manhã, ao dar entrada em  Santo Amaro, encontrei a praça da Igreja pejada de gente, era cabeça  e mais  cabeça,  de não haver vaga para um  alfinete. A  desgraça  de Juju teve  o  condão de  misturar  pé  descalço  com  espora  de  prata.  Nunca  tanta  légua  de  pasto  viu  defunto  mais engrandecido. Brotavam em flor, dos descampados, todas as sementes de bondade que Bezerra espalhou  em  anos  de poção  e  autoridade. Veio  embaixada  de  lugar  deslembrado, todo mundo no  desejo  de  prestar  vassalagem  ao  falecido.  Estimação  assim  estou  eu  que  não  vai  haver segunda.  Foi  como  muito  bem  asseverou  um  caixeiro  do  Bazar  Almeida  dentro  da  maior admiração:    — Enterro de fechar o comércio!    Ao lado de Caetano de Meio, que veio de luto,  segurei a alça do caixão. Na boca da cova, na   hora   da   encomendação,   o   reverendo   Malaquias   aprontou   sermão   relembrativo   dos préstimos de Juju ao mesmo tempo que enxotava dele, como nunca existidos, todos os pecados dos  seus anos de vida. Com fala embargada, o bom vigário garantiu que o major deixava este mundo limpo de culpa, lavado de mancha:    — Os benefícios que espalhou vão ser contados e pesados por Deus.    E de dedo feroz, em modos de apontar os culpados, o sermonista disse que Juju Bezerra não enricou, como tantos outros dos currais, por  ser de nascença caridoso. Ninguém, fosse o mais pobre  dos viventes, bateu  em  seu balcão  que não  saísse  de receita  aviada.  Debaixo  de vento ou  na  entranha  do  temporal  o  major  corria  a  debelar  uma  febre,  um  embaraço  qualquer,  não tendo em conta se o padecente era rico ou pobre de Jó. E com a mão no peito:    — Seu coração bem formado misturava tudo na mesma bondade.    Outras  belezas  do  falecido  mostrou  o  padre,  a  ponto  de  arrancar  suspiro  de  mais  de  um peito e lágrima de mais de um par de olhos. Eu mesmo, que sou duro de envergar, senti meu nó de  garganta.  Juquinha  Quintanilha,  junto  de  mim,  não  aguentou  o  roj ão  da  tristeza  —  foi esconder  seu  abatimento  na  capela  do  cemitério.  Outro  que  desertou,  gogó  em  soluço,  foi Dioguinho do Poço:    — Não posso mais, coronel, vou arejar.    Aguentei  firme,  aparentando  dureza,  embora  na  beira  da  lágrima.  Se  não  estivesse  com responsabilidade de galão, no uso da patente, era muito coronel de rebater o sermão do padre na frente de outro ainda mais ostentoso em favor de Juju. Mas dei graças quando o reverendo, apontando o céu, liberou o finado para a viagem dos sete-palmos:    — Agora o major Juju Bezerra descansa em Deus.    Logo  baixaram  o  falecido  à  sepultura  —  aquela  boca  de  barro  pronto  engoliu  o  corpinho todo  do  major.  Atirei  a  primeira  terra  em  cima  dele  e  Caetano  de  Melo,  depois  do  mesmo proceder, falou da estimação de Juju por mim:    — Era Deus no céu e o coronel na terra. 
   Não  quis  saber  de  mais  nada.  Um  afrontamento  começou  de  novo  a  engordar  meu  peito, pelo  que  senti  precisão  de  arejar.  Saí  por  entre  os  paus  das  cruzes  sem  dar  despedida  a ninguém.  Atrás  ficou  aquele  arremate  de  fim  de  enterro  —  o  bater  da  terra  nas  tábuas  do caixão  do  major.   Correndo  dessa  tristeza,  ganhei  vereda  recoberta  de  trepadeiras  que brigavam  contra  os  mil  dedos  das  ervas  daninhas,  numa  guerra  de  nunca  ninguém  saber  qual verde levava vantagem. Já adiante de umas cem braças, larguei as folhagens para um olhar de despedida.  Não  vi  nada  —  as  sepulturas  não  davam  trafegação  livre  à  minha  vistoria.  Só chegava junto  de mim  o barulho  agourento  das pás  dos  coveiros. Enterravam  as  safadezas  de Juju. 
A morte do major deu comigo na cidade. Fui desimpedir os deixados dele, atravancados de dívidas e gravames. Chamei o dr. Pernambuco Nogueira e na  sua mão perita joguei a limpeza do trabalho:    — Doutor, é como se fosse para mim.    Essa tarefa  de Foro prendeu meus passos  em  Campos mais  de uma  quinzena.  Tomei  quarto no  Hotel  das  Famílias, pois não  cabia  abrir  a  casa  da rua  da  Jaca por  tempo  tão nanico.  Fui morar  em  compartimento  que  dava para  a beira-rio, uma  teteia  de  onde  eu podia,  em regalo, apreciar  a  chegada  e  saída  das  navegações.  O  dono,  capitão  Totonho  Monteiro,  não  sabia  o que inventar para o meu contentamento. A mulher dele, professora j ubilada mas ainda no gozo de um bom par de platibandas, apreciava conversar comigo, e mais de uma vez meteu livro no meu sovaco:    — O coronel vai gostar. É leitura de proveito.    Monteiro desfazia do oferecimento:    —  Ora,  Estefânia,  deixe  de  apoquentar  o  coronel,  que  é  homem  de  responsabilidade  e  de muita instrução.    Tomei  gosto pelas vadiagens  da rua  Direita, pelas visitas  ao  escritório  do  dr.  Pernambuco Nogueira.  Aos   domingos,   almoçava  no   chalé   de   sua  moradia,  na   intimidade   de   dona Esmeraldina, que sempre guardava prato especial para mim. Nesse bem-bom, visita um, visita outro,  fui  espichando  o  prazo  de  volta  ao  Sobradinho.  Quando  a  limpeza  da  herança  de  Juju Bezerra foi dada como arrematada, maquinei outras incumbências na cidade. Ia aos pastos em pulo  de  doutor,  nem  bem  demorava  dois  dias  e  logo  estava  de  novo  no  Hotel  das  Famílias. Francisquinha resmungava.  Que  fazia  o  seu menino na  cidade  que tanto  espaçava  suas vindas ao Sobradinho? Tapava os resmungos da velha com os meus cuidados de sujeito religioso:    — Estou na frente das obras da Irmandade de São Benedito e vosmecê sabe como é obra de padre.    A velha  concordava por  ser muito  devocioneira. Mas  em  definitivo  cativei  o  favor  dela na tarde  em  que  apareci  no  Sobradinho  munido  de  uma  santa  toda  dourada,  olhinho  de  conta  e manto de seda. Mandei que abrisse a caixa:    — Mire que riqueza. É lembrança da Irmandade para vosmecê.    Assim  alforriado,  o  Sobradinho  e  Mata-Cavalo  no  mando  de  Saturnino  Barba  de  Gato  e Juquinha  Quintanilha,  dilatei  ainda mais minhas  ausências. Virei  fruta rara  e mais  de um  caso de curral Juquinha teve de resolver no Hotel das Famílias. O compadre, nessas vindas e idas, perguntava sempre pelo andamento da obra da Irmandade:    — Quando é que o coronel arremata o compromisso?    Sossegava o mulato: 
   — Antes do ventão de agosto, no mais tardar, dou a incumbência por acabada.    Mas  agosto  veio  e  foi  —  e  eu  cada  vez  mais  adentrado  no  bem  viver  dos  cafés,  nos ajantarados da rua dos Frades. Reforcei, de outra banda, a amizade de Pergentino de Araújo e na companhia dele armava convescote no Taco de Ouro, corria os bilhares e as diversões dos teatros. É bem verdade que vez por outra puxava minha procissão. Dentro da farda, como é da pragmática militar, lá ia eu embaixo dos andores — a barba de fogo do coronel do Sobradinho arrancava admiração, impunha respeito. Apontavam para mim:    — Aquele graudão é Ponciano de Azeredo Furtado.    Sem  ofensa  aos  santos,  do  que  eu  mais  gostava  era  do  chalé  da  rua  dos  Frades,  onde  eu tinha  cadeira  especial  e talher  certo. Nogueira,  como  era  do uso  antigo  dele,  caía no  sofá, no gozo da digestão:    — Vou tirar uma soneca.    Em  ponta  de  pé,  atrás  de  dona  Esmeraldina,  eu  ganhava  o jardim.  Pelos  corredores,  sem testemunha  de  acusação,  eu  podia  apreciar  o  vaivém  que  os  por-baixos  da  moça  faziam  nos panos.  Era um tremido  de  chamar  safadeza,  de  levantar  o  ânimo mais  desgastado.  O  falecido Juju,  que  viu  a  mulher  de Nogueira um par  de  vezes,  garantia  que  só  de  mirar  tanta beleza  o cristão virava menino novo:    — Vale por cem garrafadas de catuaba e outros tantos cem revigorativos.    Em  cadeirinha  de  ferro, junto  de  um  tanque  onde  boj udo  sapo  de  louça  esguichava  água, gozava  as  minhas  tardes  da  rua  dos  Frades,  enquanto  dona  Esmeraldina  abria  a  caixa  de bordados e dava andamento ao trabalho de agulha. Pernão cruzado, eu avivava esses sossegos a  poder  de  acontecidos  dos  pastos.  Caía  no  relato  das  brigas,  desavenças  com  os  vizinhos, mortes  de  cobra,  casos  de  lobisomem,  rixas  de  galo  e  outros  sucedidos  de  igual  peso.  Mais das vezes eu perdia as rédeas da conversa e exagerava uma verdade ou outra:    — Já vi  a tal da  serpente do mar, dona Esmeraldina, que  é  coisa de um vivente não querer presenciar duas vezes. Media cem braças ou mais que além dessa metragem.    A  mulher  de  Pernambuco  Nogueira,  sem  tirar  a  atenção  do  trabalho  de  linha,  mal  eu acabava um caso pedia outro:    — Aquele da sereia do mar, coronel.    Assim  eram  meus  domingos  da  rua  dos  Frades.  E  essa  amizade  entre  os  Nogueira  e Ponciano  de  Azeredo  Furtado  criou  mais  raiz  quando,  numa  apertura,  passei  ao  bolso  do amigo doutor cinco pacotes de conto de réis e uma garantia de banco de mais cinco. A bem da verdade,  devo  declarar  que  a  custo  consentiu  Nogueira  em  receber  o  ajutório.  Rejeitou,  por não querer sobrecarregar os amigos.    — Não é direito, coronel. Não fica bem.    Tive  de  arrastar  o  doutor para um robalo no  Taco  de  Ouro, no  fim  do  que resolveu  aceitar meu oferecimento:    — Já que o coronel quer, não vou fazer desfeita.    Sobre esses cinco, quinzena adiante joguei mais dez. E não ficou nisso. Uma tarde, quase de lábio  no  meu  ouvido,  dona  Esmeraldina  relatou  que  Nogueira  havia  levado  rombo  dos demônios.  Foi  montar  negócio  de  atacado  em  benefício  de  um  primo  de  Niterói  e  o  parente largou  nos  ombros  dele  prejuízo  na  vizinhança  de  vinte  contos  de  réis.  E  chupando  uma lágrima no lenço:    — Nogueira não come, Nogueira não dorme, coronel. Só pensa na responsabilidade. 
   Debruçado  na  varanda,  consolei  a  moça.  Por  descuido,  meu  cotovelo  calhou  de  empacar junto  do braço  dela.  Como não rejeitasse  a vizinhança,  fiquei  em  sossego, no  aproveitamento da  quenturinha  que  vinha  do  encostado.  E  prometia  ficar  assim  o  resto  da  tarde  se  o  dr. Nogueira, acabada a soneca da digestão, não viesse procurar o coronel. Dona Esmeraldina, de pronto,  deixou  a janela. E,  antes  que  o marido  entrasse na  sala, pediu  que  eu, nem por  sonho, contasse nada a Nogueira:    — Pelo amor de Deus, coronel.     Sou  ardiloso  como  gato-do-mato. No  outro  dia,  antes  do  almoço,  depois  de  uma  visita  ao Banco Hipotecário, entrei no escritório de Nogueira. Lá estava o doutor em recinto de tristeza, olho  encovado  de  quem não via travesseiro.  Dei parte  de  desentendido, no  que  sei manobrar como  gente  das  ribaltas.  Ofereci  um  par  de  Flor  de  Ouro  ao  doutor  —  sua  boca  de  peixe recusou em fala despossuída de sustância, de sujeito assoberbado por fundo desgosto:    — Não gaste sua boa vela com ruim defunto.    Avivando  o  charuto,  como  quem  não  sabia  de  nada,  pedi  a  Nogueira  o  especial  favor  de abrigar, na caixa-forte do escritório, uma certa quantia de que eu andava desprecisado:    — Dinheiro vadio, doutor, de que não vou carecer de pronto.    Relutou  Nogueira  em  dar  agasalho  à  minha  pecúnia,  por  não  possuir  burra  de  segurança, pelo que aconselhava o coronel a procurar cofre de maior valia:    — Não posso arcar com tanto risco.    Jogando a bolada de vinte contos de réis na tábua da escrivaninha, obtemperei que confiava na caixa-forte dele:    — É burra de segurança, doutor. É peça de inglês.    Respondeu  que  só  pegava  a  responsabilidade  se  eu  deixasse  o  cobre  na  qualidade  de empréstimo, com garantia e juro de lei:    — Como em transação de banco, amigo Ponciano.    Lá  empurrei  a  pecúnia  na  direção  do  doutor.  Nogueira  quis  meter  a  dívida  no  papel  e  no selo, providência que repeli zangado:    — Sou lá homem de papelada, seu compadre.    Ao  saber  dessa minha  artimanha,  dona  Esmeraldina  disse  que  eu  era  levado  da breca,  que ninguém  podia  comigo.  Ficava  muito  agradecida,  mas  nunca  que  ia  relatar  mais  segredo  a mim:    — Foi o primeiro e último.    Nessa tarde, que era domingo de chuva, a soneca de Nogueira entrou pela noite. Fiquei com dona Esmeraldina na sala de costura, no quentinho do sofá. Tive de recontar, pela quinta vez, o caso  do  lobisomem  e  de  todos  os  seus  acompanhamentos.  No  entremeio  do  acontecido, relembrei  o  grande  desgosto  que  sofri  com  a  morte  de  Juju  Bezerra.  E já  engatilhava  uma liberdade  mais  funda  no  instante  em  que Nogueira,  na  sala  da  frente,  deu  sinal  de  acordado. Varejei longe Juju Bezerra e suas mulatas. E afundei em palestra de família.        Foi por  imposição  de  dona  Esmeraldina  que mandei  cortar roupa na mesma tesoura  do  dr. Pernambuco  Nogueira,  um  sujeitinho  cheio  de  carretéis  e  donzelismos,  alfaiate  de  comércio aberto  na  praça  do  Mercado.  Semana  e  pouco  depois  das  medidas,  estreava  eu  a  peça,  um ternão  preto,  bem  caído  nos  meus  dois  metros  de  tamanho.  Montado  em  botina  nova,  barba penteada, corri a mostrar a obra na rua dos Frades. Dona Esmeraldina bateu palmas, chamou o 
marido:    — Nogueira, venha ver quem está chegando!    O doutor, gazeta de imprensa no sovaco, mirou e remirou o terno, deu uma volta ao derredor do coronel, no fim do que apresentou seu parecer abalizado:    — Bom corte, assenta bem.    De noite, como  fosse tempo de religião,  semana de Quaresma, levei os Nogueira ao Teatro São  Salvador,  onde  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo  era judiado  pelos  hereges.  Tirei  cadeira  no detrás  de  dona  Esmeraldina,  que  vez  por  outra  destorcia  o  pescoço  e  pedia  minhas  atenções para uma coisa e outra:    — Que sentimento, que representação, não acha, coronel?    Balançando a cabeça, como boi de presépio, eu concordava com tudo. Nessa postura, a um suspiro  da  moça,  eu  recebia  os  benefícios  de  suas  águas  de  cheiro  e  podia  contar  até  as penugens  do  cangote  de  leite  que  eu  tinha  na  minha  frente.  Mas  pouco  durou  esse  bem-bom. Nogueira,  carcomido  de  sono,  não  aguentou  as  encenações  do  palco.  Foi  fechando  o  olho, pendendo a cabeça,  e mais de uma vez teve de  ser  espevitado por dona Esmeraldina na  força do beliscão:    — Tenha modo, Nogueira. Os outros estão reparando.    O  doutor  passava  a  mão  na  boca,  avivava  as  vistas,  mas  recaía  na  sonolência.  E  lá  numa representação  de  temporal,  luzes  desmaiadas  e  Judas  já  em  galho  de  figueira,  o  doutor aproveitou para levantar assento:    — Vou chegando. A devoção foi cumprida, amigo Ponciano.    Fui  levar,  em  carruagem  fechada,  os Nogueira na rua  dos Frades. Não  entrei, por  ser noite avançada.  Mas  recebi  de  dona  Esmeraldina  aperto  de  mão  todo  especial,  demorado,  de promessa graúda:    — Espero o coronel domingo, para o ajantarado.    Com  esse novo viver, tive  de  apurar  os modos.  Inaugurei  camisa  de peito  duro  e botão  de ouro. Outros panos mandei cortar no mestre da praça do Mercado. Dona Esmeraldina escolhia os tecidos, esse-serve, esse-não-serve:    — Terno escuro condiz muito bem com a pessoa do coronel.    Meu compadre Juquinha Quintanilha, sem saber dessas melhorias, parou espantado na frente do  meu  figurão,  certa  manhã  em  que  veio  pedir  licença  para  uma  venda  de  rês.  Mostrou  o dente de ouro e disse:    — Coronel, que educação, que esmero!    Saiu dentro da maior admiração e foi espalhar nos currais que seu compadre andava tirando cartucho  de  doutor.  O  vento  levou  a  invencionice  e  mais  de um boiadeiro  veio  tirar  consulta comigo no Hotel  das Famílias  sobre  demanda  de  gado,  fincamento  de mourões  e  até um  caso de moça donzela, que perdeu seus protocolos na lábia de um sujeito casado, tive de despachar.    — Perdeu, está perdido, que isso de donzelismo é como bananeira. Só dá uma vez.    Por  causa  desse meu modo  demandista,  de  estar  a par  das leis  e regulamentos  do Foro,  foi que  conheci  João  Fonseca,  do  comércio  de  compra  e  venda  de  açúcar.  Todo  lambuzado  de constipação,  pescocinho  envolvido  em  agasalho,  pediu  minha  opinião  no  concernente  a  uma pendência  de herança.  O  capitão  Totonho Monteiro,  compadre  dele, meteu  empenho para  que eu desse meu parecer abalizado:    — O coronel pode dar uma penada a favor do compadre Fonseca. 
   A  um  canto  do  Hotel  das  Famílias  escutei  o  postulante  na  maior  atenção,  como  manda  o figurino.  Obtemperei  num  ponto  e  noutro  para  melhor  limpar  a  questão.  E  foi  com  uma palmada nos costados de Fonseca que garanti ser causa de ganho fácil:    —  É  macuco  no  embornal.  Vosmecê  pode  dar  entrada  nos  papéis  que  vence  em  toda  a instância.    Monteiro, fiador do compadre junto de mim, gabou meu tipo:    —  Não  há  como  o  coronel  para  desembaraçar  uma  lei.  Com  um  par  de  conselhos  (“Faça vosmecê  isso,  faça  vosmecê  aquilo”)  e  nova  batida  de  amizade  nas  costas  (“Foi  uma  honra, seu  Fonseca,  foi uma honra”), mandei  o postulante  embora.  E  digo  que nem pensava mais na pendência,  quando,  mês  e  tanto  distanciado  do  conselho,  dei  com  a  pessoa  de  João  Fonseca em  mesa  de  sete  e  meio  no  Hotel  das  Famílias.  Jogava  cartas  na  companhia  de  Totonho Monteiro,  na  espera  do  coronel.  Pedi  desculpas  pelo  atraso.  Se  soubesse  da  presença  dele, deixava os compromissos de lado e vinha tomar parte no sete e meio:    — É vadiagem que muito aprecio.    Todo  desfeito  em  intimidade,  o  capitão  Totonho  Monteiro  afiançou  que  eu  era  o  homem mais requerido pelo povo de saia da cidade:    — O coronel é que sabe gozar a vida. Tem dama assim atrás do coronel.    Achei graça. De fato, nessa noite jantei em casa de moças desencaminhadas, num chalezinho escondido  em  chácara  do  Beco  das  Corujas.  Era  despedida  do  tabelião  Pergentino,  de  mala pronta  para  uma  temporada  de  águas,  a  mando  dos  médicos,  de  modo  a  limpar  a  entranha  e lavar  outras  miudezas.  Não  relatei  a  Totonho  Monteiro  a  libertinagem  da  despedida,  os cafunés  que  as  meninas  tiraram  da  minha  barba.  Tido  e  havido  no  Hotel  das  Famílias  como homem recatoso, puxador de procissão, não podia, por vaidade, desmerecer de tão boa  fama. Por isso, tratei de desmanchar a brincadeira de Totonho:    — O capitão é um exagerado, seu Fonseca. É dado à pilheriação.    Como  o  ponteiro  do  relógio  abeirasse  das  onze,  chamei  os  amigos para  uma  vadiagem  de beira-rio. A noite era benigna, céu limpo, com uma aragenzinha que até desinfetava os peitos. João  Fonseca,  sempre  repuxando  os  agasalhos,  agradeceu  o  conselho  que  levou  de  mim  no caso  da  herança.  Foi  demanda  que  nem  teve  graça  —  morreu,  com  proveito  para  ele,  na primeira sentença da Justiça:    — Como o coronel afiançou.    Teimava em jogar no meu crédito o bom desfecho da pendenga:    — Foi de muita valia o parecer do coronel.    Apresentei modéstia:    — Nada disso, seu Fonseca. Vosmecê é que obrou com acerto.    Ficou a gente nesse jogo de empurra até que Totonho Monteiro, de relógio no luar, lembrou que era hora dos gatos e ele tinha de acordar cedo, de modo a botar uns viajantes no trem das cinco:    — Ademais, essa viração não faz bem ao sofrimento do compadre.    Na  porta  do  Hotel  das  Famílias,  na  despedida,  sempre  ajeitando  os  agasalhos,  Fonseca largou em meu poder proposta de partilhar comigo os ganhos de compra e venda:    — Estou entranhado no mercado de açúcar desde menino.    Agradeci, mas atirei no barro a ideia dele:    — Sou homem de pasto, sem preparo de comércio, seu Fonseca.
   De  manhã,  antes  do  café,  o  capitão  Monteiro  avivou  meus  interesses  pela  proposta  do compadre. Relutei — que sabia eu de compra e venda de mascavo ou açúcar cristal? No mais, a  qualquer  hora  voltava  aos  pastos  e  não  queria  deixar  responsabilidade  nas  costas  dos outros:    — Nada de embaraços, seu compadre.    Totonho  garantiu  que uma  coisa não  atrapalhava  a  outra, pois  João  Fonseca  era homem  de grande honradeza:    — Bote ouro na mão dele, que presta conta do menor grão.    Simpatizei  com  Fonseca,  sempre  recoberto  de  agasalhos,  de  peitinho  murcho  e  tossido. Nasceu  desse  meu  pendor  por  ele  a  entrada  do  coronel  no  comércio  de  compra  e  venda  de açúcar. Chamei Totonho Monteiro:    — Traga lá o compadre para firmar compromisso.    Fonseca levou cinco contos de réis para as especulações da praça. Tive, nesse meio-tempo, de dar um pulo de semana no Sobradinho, onde Saturnino Barba de Gato pedia minha presença por causa de obras e melhoramentos. Matei saudades de Francisquinha e do galo. Na volta, de novo no Hotel das Famílias, nem pensava em João Fonseca, logo cedo apareceu ele encovado nos  cobertores.  Vinha  prestar  contas  da  primeira  transação.  Tomei  espanto  quando  o  sócio largou na mesa dois contos e uns quebrados:    — Foi resultado de uma compra de mascavo.    Começou  daí  aquela penitência —  todo  sábado,  apetrechado  de  caderninho,  João  Fonseca trazia  os  benefícios  do  seu  comércio.  A  pedido  dele,  dobrei  o  dinheiro  da  especulação. Totonho Monteiro não perdia vaza de engrandecer o compadre:    — Pena que seja tão empalamado. É um ovo que pode partir de uma hora para outra.    De  fato,  sujeito  de  confiança  era  João  Fonseca.  Prestava  contas  de  tudo,  sempre  no documento   do   caderninho.  De  uma   feita,   em   compra  mais   graúda,   andei   ganhando  na vizinhança de meia dúzia de contos de réis. Como comemoração, almocei na casa da sua teúda e manteúda, num retiro  sossegado da rua do Gás. Muito contentamento tive em conhecer dona Celeste,  que  cuidava  de  Fonseca  dentro  do  maior  desvelo.  A  casa  do  sócio,  da  varanda  ao fundo  da  chácara,  era  passarinho  só.  A  criação  de  gaiola  era  o  orgulho  dele.  Nem  por  nada consentia  que  alguém  tocasse nessas belezinhas  de  asa.  Muito  ciumento  delas,  dava nome  de namorado  aos  canários  e  bicos-de-lacre.  Afundado  em  agasalhos,  Fonseca  de  mão  própria fazia o serviço do alpiste e mudança de água. Só sabia acordar na algazarra da passarada:    — Um laranjeira que veio de Cabiúnas é o meu despertador.    Aprendi o caminho da casa de Fonseca, que a teúda e manteúda trazia em brilho de espelho. Era moça de encantos escondidos, de palavra doce e modos de paina. Andava como se tivesse asa, talqualmente um passarinho. Mas digo, sem maldade, que puxava pelos apetites de cama e devia ser de largos pormenores nas brigas de noite adentro. Vivia na aba do paletó de Fonseca com recomendações e cuidados:    — Olha esse vento encanado, homem de Deus. Saia do corredor.    Era Fonseca para cá, Fonseca para lá. Da minha parte, admirava esses desvelos dela e por mais de uma ocasião gabei a moça junto do sócio:    — É caprichosa, dama de respeito.    Com  o  rolar  dos  meses,  a  amizade  entre  o  coronel  e  João  Fonseca  mais  fincou  estaca. Acostumei o ouvido naquela penitência de tosse e sentia falta nas ausências dele.  Só um cisco 
arranhava  tanta  estimação  —  a  birra  de  Fonseca  por  tudo  que  cheirasse  a  Pernambuco Nogueira.  Não  que  levantasse  a  voz  em  condenação  ou  pouco-caso.  Mas  eu  sentia  os embaraços  dele  na  presença  do  doutor.  Murchava  nos  agasalhos  e  não  era  homem  de  mais palavra.  Logo  desimpedia  o  recinto  de  sua  pessoa.  Tanto  esse  proceder  de  Fonseca  deu  na vista que o próprio Nogueira quis saber, certa feita, dos porquês da malquerença:    — Esse sujeito é pancado da cabeça. Nunca troquei palavra com ele.    Desculpei o sócio, falei dos seus achaques, da sua tosse de cemitério:    — É boa pessoa, doutor. Esquisitão, mas boa pessoa.    Até  que uma  tarde, na porta  do  Café  Lord, Nogueira  estourou.  Foi  ele  aparecer  e  Fonseca sair  no  seu  passinho  de  doente.  Nunca  vi  tanto  veneno  em  raiva  de  homem.  Pernambuco Nogueira,  que  trazia  uma  peça  da  Justiça  na  cava  do  braço,  esparramou  o  papelame  no assoalho  e  saiu  no  rasto  de  João  Fonseca.  Estiquei  o  bração  e  na  ponta  dele  veio  o  doutor arrastando  sua  vingança.  Ainda  esperneou,  mas  em  vão  proveito,  que  munheca  de  Ponciano sempre foi cadeia de sete chaves. A poder de conselhos domei o destempero dele:    — Que vai dizer o povo do Foro, doutor?    Limpando  a  testa, Nogueira  voltou  ao  seu  natural  ajuizado.  E já  no  caminho  do  escritório, desembuchado de ódios e vinganças, agradeceu minhas boas ponderações:    — O coronel teve cabeça. Eu podia fazer uma asneira.    Pelo mesmo motivo,  dias  depois, tive  desentendimento  com  o velho  Setembrino  Machado, do  Banco  Hipotecário,  muito  achegado  ao  Sobradinho  pela  amizade  de  meu  avô.  Numa retirada   de   maior   sustância,   teve   a   ousadia   de   apresentar   conselho   em   desfavor   de Pernambuco Nogueira:    — O coronel conhece bem esse doutor?    Fiquei  quieto,  conferi  a  pecúnia  como  gosto  de  fazer,  molhando  o  dedão  no  beiço.  Isso acabado, dinheiros recolhidos, larguei na mesa do velho uma pelega de cem mil-réis:    — É a paga do conselho, seu Setembrino.    Sabedor  da  desavença,  o  Banco  da  Província,  em  carta  respeitosa,  mandou perguntar  se  o “coronel  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  não  queria  honrar  o  estabelecimento  com  a  sua preferência”. Revirei o papel — lá sobressaía o jamegão de Selatiel de Castro, o Castrão que vassourava rabo de saia nas portas dos teatros. Na lembrança disso, deneguei o pedido:    — Dinheiro meu não cabe em banco. É coisa pouca, que até levo no bolso.    E  bati  forte  na  perna.  O  portador  da  encomenda,  todo  falante,  cabelinho  avaselinado, agradeceu. De qualquer modo a diretoria do Banco da Província ficava às ordens do coronel. E já na porta do Hotel das Famílias, chapéu lá embaixo, o magricela arrematou:    — Fontainha, às ordens. Artur Fontainha para servir Vossa Senhoria.    De tão recurvado parecia um cabo de guarda-chuva,  feitio que devia ter contraído em anos e anos de  subalternismo. Por mais de uma vez, no  entrar dos meses,  encontrei o  engomadinho do Banco da Província nas ruas e na porta dos bilhares. Abaixava o cangote, retirava o chapéu e quase espanava o chão da minha passagem:    — Prazer em cumprimentar Vossa Senhoria.    De  novo,  um  domingo,  apareceu  Fontainha  no  Hotel  das  Famílias,  portador  de  proposta vantajosa. O Banco da Província dava taxa especial ao dinheiro do coronel, “só — estipulava a  carta  —  pela  honra  de  ver  Vossa  Senhoria  entre  os  nossos  mais  distintos  depositantes”. Rolando a barba, prometi resposta sem pressa: 
   — Vou pensar, vou consultar o dr. Nogueira.    Desde  esse  dia,  toda  semana,  o  engomadinho  aparecia  no  Hotel  das  Famílias.  Era  aquele espalhafato:    — Como vai o coronel? Dormiu bem? Vossa Senhoria já tem alguma ordem a dar a este seu criado?    No começo, achei ruim e estive por desmantelar o arrumadinho à moda dos Azeredões dos currais. Mas uma  ocasião,  em  que  acordei tarde, vi Fontainha  alvoroçado, num  desassossego dos capetas, preso nos braços de Totonho Monteiro. É que um cometa vendedor de panos, para mostrar grandeza, indagou quem era esse tal de Ponciano e que instrumento tocava:    — Um barbadão que queima charuto a torto e a direito.    Antes  que  o  capitão  Monteiro  desse  resposta,  Fontainha  avançou  aos  berros  contra  o viajante. Queria que ele, antes de mais nada, honrasse a patente dos outros:    — Vire a língua! Vire a língua!    A  alteração  foi  curta  —  o  cometa,  tomado  de  espanto,  encovou,  pediu  desculpa  por  não conhecer os regulamentos e honrarias da gente militar :    — Não sou homem de ofender paisano, quanto mais gente de espada.    Achei  graça  e  contei  o  sucedido  a  Pernambuco Nogueira.  Garantiu  o  doutor  que  Fontainha era rapaz de brio:    — Conheço Fontainha. Prestativo como ele só.    Fiz  a  vontade  ao  Banco  da  Província.  Acompanhado  de Nogueira,  fui  abrir  conta  em  seus livros. Selatiel de Castro, no terminal das formalidades, bateu no meu ombro:    — A casa é sua. É favor mandar as ordens.    Veio  de braço  dado  comigo na porta  da rua. E  enquanto Nogueira, num retirado  de balcão, falava  no  particular  com  Artur  Fontainha,  o  financeiro  relembrou,  batendo  na  minha  barriga, que não tinha ninguém como eu para arrebanhar menina de palco. E trocista, de olho piscado:    — Quero a receita, coronel.    Sujeito fino Selatiel de Castro.        Mês de cidade tem mil pés, corre ligeiro, de parelha com o vento. Quando dei por mim, um ano  havia  morrido  e  outro  entrava  na  folhinha  desde  que  enterrei  Juju  Bezerra  e  vim  tomar compartimento no Hotel das Famílias. Fui reclamar do capitão Totonho Monteiro:    — Seu compadre, como o tempo corre! Careço de voltar ao Sobradinho.    No  ajantarado  de  domingo,  na  casa  dos Nogueira,  participei  minha  intenção  de  voltar  aos currais:    — Doutor, estou fora dos pastos mais de ano. Já é hora de acabar a vadiagem.    Nogueira  deu  um  safanão  no  talher.  Protestou.  Bobagem  maior  não  podia  eu  fazer,  logo agora  que  estava metido no negócio  de  compra  e venda,  dono  do mercado, homem  de  largos créditos e nome firmado na praça:    — Loucura, coronel. Não faça isso.    Dona Esmeraldina,  sem nada ponderar, recaiu  em tristeza. E  em tristeza,  como  se  eu  desse notícia  de  morte  ou  de  doença,  o  ajantarado  acabou.  Na  parte  da  noite,  a  braços  com  um arrazoado  do  Foro,  mergulhou  Nogueira  na  papelada  da  Justiça.  Longe  do  marido,  a  moça desabafou.  De  cara  amarrada,  em  jeito  de  fundo  desgosto,  disse  que  eu  não  podia  ter procedimento mais descabido: 
   — O coronel apanha a estima da gente e vai embora.    Deixei  a  rua  dos  Frades  nos  cascos  da  alegria.  A  mulher  de  Nogueira  era  peça  domada, caída  de  sentimento,  de  quase  verter  lágrima  no  meu  brim.  Que  pena  que  Juju  Bezerra  não estivesse vivo!  Ia babar  de  contentamento  ao  saber  que  o  coronel  do  Sobradinho,  seu  amigo, andava em altas cavalariças. Figurava o major, todo clareado em riso, de brincadeira comigo:    — Sim senhor ! Mulherista como Ponciano nem no estrangeiro tem igual.    Dormi  noite  de  anjo.  Acordei  tarde, já  o  dia  bem  crescido  e  amamentado.  Fonseca,  que esperava por mim na palhinha do capitão Totonho Monteiro, parece que adivinhou meu íntimo. Apresentou proposta para aumentar o negócio de especulação, na ordem de mais alguns contos de réis:    — A hora é boa, o mercado está aberto.    Com um abraço nele, aceitei sem mais indagação:    — O sócio manda, o sócio dá as ordens.    Foi tempo de grande proveito. Na rua dos Frades eu cada vez mais afundava no bem-querer de  dona  Esmeraldina. No  comércio  de  compra  e  venda  a  firma  navegava  de  vento  em  popa. Em mesa reservada, no Taco de Ouro, eu tramava com o sócio as manobras dos ganhos. Fiquei conhecido no atacado do açúcar e era quem mais vinha negociar comigo. Fonseca, de natureza sumítica,  é  que  amarrava  a  firma.  Não  apreciava  os  arrojos  das  compras  graúdas.  Era  da miudagem, do ganha-pouco. Vivia munido de conselhos:    — Açúcar é comércio manhoso. Tem mais volta que carretel.    Devia  ter  paciência  quem  fosse  sócio  de  João  Fonseca.  Fazia  conta  de  tudo,  vintém  por vintém.  Num  ganho  de  maior  porte,  relembrei  que  era  hora  da  firma  procurar  saleta,  com escrivaninha  e  cadeira.  Não  ficava  bem  viver  a  gente  em  mesa  de  café,  como  mercador  de chita ou rendas:    — Há que assentar os fundilhos, mostrar abastança.    Fonseca  desconversou  e  a  ideia  da  sala  e  escrivaninha  caiu  de  lado.  No  princípio  ainda admirei  suas honestidades. No passar  dos meses,  cansei  de tanta  continha,  de tanta poupança miúda:    — Seu Fonseca, a firma não pode ficar nas rotinas. Tem de crescer.    Não  adiantava  sacudir  o  sócio.  Ele  escondia  as  respostas  dentro  da  tosse,  nos  seus agasalhos  de  doente.  Fontainha,  que  pegou  agarramento  comigo,  não  cansava  de  dizer  que  o homem dava urucubaca da graúda:    — Já naufragou mais de cinco firmas só nesta praça.    Quando,  todo  de preto,  enrolado  em  agasalho,  Fonseca  despontava  na  rua,  Fontainha  fazia figa, entrava no primeiro café ou porta desprevenida:    — Desconjuro! Mangalô três vezes. Lá vem o urubu.    Outras implicâncias tive de demover de  sobre João Fonseca.  Selatiel de Castro, uma noite, na porta do  Coliseu dos Recreios,  enquanto vistoriava  as damas que  saíam,  aconselhou  a que eu deixasse o sócio de lado:    — É homem rotineiro, que não pode chegar aos pés do coronel.    Sou  duro  de  dobrar —  aguentei,  de pé,  o  comércio  de  compra  e venda  com Fonseca. Mas, passado um par  de meses, tive  de  chegar  o rabo na  chiringa.  O  sócio  aparecia  cada vez mais sumítico,  cismático  da  cabeça.  Deu  de  encurtar  os  negócios.  Semana  sobre  semana  e  eu  sem ter o gosto de um lucro. Reclamei dele, mostrei o que a gente andava desganhando:
   — Um dinheirão, um dinheirão, seu Fonseca.    Ajeitou os agasalhos, alisou o chapéu e disse que não queria atrapalhar ninguém:    — Coronel, dou a firma por acabada.    Era  a precisa hora  de pegar  a palavra  dele pelo  cangote  e  sacudir  de minha presença tanto incômodo  e  prejuízo.  No  justo  momento  de  agir  (“Sim  senhor,  aceito  a  proposta,  seu Fonseca”),  o  danado  do  coração  dos Azeredos negaceou, mastigou  o tiro. Acabei na  casa  da sua teúda  e manteúda  em mesa bem  apetrechada  de  galinha. No  café  da  digestão  ainda tentei convencer Fonseca de que a gente devia entrar forte no mercado de compra:    — Dinheiro não falta, seu compadre. Castrão garante a retaguarda.    Não  demovi  o  sócio  do  seu  voo  de  cambaxirra.  Saí  da  rua  do  Gás  como  entrei:  de  mão atada.  A  conselho  de  Pernambuco  Nogueira  comecei  a  manobrar  fora  das  vistas  de  João Fonseca. Fiz minhas  compras,  ganhei meus  dinheiros. De uma  feita,  açambarquei uma partida de  mascavo  que  rendeu  gorda  pecúnia.  A  coisa  vinha  a  calhar,  uma  vez  que  o  sócio, contaminado de uns leicenços, caiu de cama, do que aproveitei para largar Artur Fontainha na praça. O raio do engomadinho, pior do que codorneiro,  fuçava negócio de todo lado.  Selatiel de Castro aprovou a medida:    — Agora sim, o coronel está no bom caminho.    De  fato,  em  duas  semanas  na  frente  das  especulações,  tive  lucro  de  encher  arca  e  meia. Numa  alta  de  mascavo,  na  qual  transação  empatei  cinquenta  contos  de  réis,  ganhou  a  firma quase  outro  tanto.  Com  essa  mercancia  firmei  nome  na  praça,  como  sujeito  atilado,  que  não temia responsabilidade. Nogueira bateu palmas:    — O coronel é dos meus, é dos arrojados.    Fonseca, às voltas com os leicenços, só teve notícia dos ganhos quando, livre das cabeças- de-prego, apareceu no Café Lord. Relatei o sucedido, apresentei ao sócio a nota dos lucros:    — Mais de cinquenta contos limpinhos, seu compadre.    Não disse nada, não teve reação de  entusiasmo. Fui  atender  a um meirinho, meu  conhecido das  labutas  do Foro. Nesse  ir  e vir, Fonseca  sumiu. De noite,  em poder  do  capitão Monteiro, seu compadre, encontrei recado dele. Recusava o ganho do mascavo e pedia licença de modo a dar a sociedade por acabada:    — Só tem uma imposição, coronel. O compadre quer continuar nas suas boas amizades.    Senti um  fofo por  dentro.  Era  sexta-feira.  A  firma  Ponciano  e  Fonseca  morria  em  noite  de lobisomem.        Limpo  do  sócio,  livre  do  seu  carrancismo,  atirei  meus  arrojos  no  perde-ganha  da  praça. Pedi a  Selatiel de Castro que liberasse Fontainha dos afazeres do Banco da Província, no que fui sem demora atendido. Era de grande presteza o moço engomadinho. Num abrir e fechar de olho  arranj ou  sala  e  saleta  no  alto  do  Livro  Verde,  na praça  da  Quitanda.  Da  sacada  a  gente via  o  povinho  passar  e  ainda  pegava  um  naco  de  beira-rio.  Dei  franquia  a  Fontainha  para embonecrar  o  escritório  de  todos  os  pertences  necessários.  Nem  precisei  de  fazer  nova recomendação. Uma segunda-feira, depois de um pulo de dia e meio no  Sobradinho, encontrei tudo montado. Era escrivaninha de vinhático de um lado, cadeirinha estofada de outro, a sala e saleta  nos  maiores  esmeros.  Por  baixo,  um  tapetão  todo  em  ramagens  abafava  o  rangido  das botinas.  Da parede,  em  caixilho  dourado, pendia  quadro  de pintor  figurando  o mar  salgado  e suas marolas, que Fontainha garantia não ter outro de igual grandeza nem na Bahia: 
   — Trabalho fino, comprado a preço de enforcado.    Digo  que peguei  certo  acanhamento  diante  de tamanha  ostentação, mas no  andar  da  semana acostumei  os  sapatos  e  o  assento  aos  confortos  do  escritório.  E  era  assim  de  lorde  que  eu recebia  as partes, manobrava  os postulantes. Na  saleta  da  frente  ficava  a mesa  de  Fontainha, engrandecida  de  jarro  de  flor  e  tinteiro  de  prata.  Quem  quisesse  falar  comigo  devia  antes passar pelo coador do magricela. Despedia um, despedia outro:    — O coronel não pode atender. Está em conferência reservada.    Lá  dentro,  refestelado  na  cadeira,  eu  peneirava  os  negócios.  Não  perdia  hora,  como  nos dias  de  João  Fonseca,  em transação  de pouca monta.  Quando  eu  alisava  a barba  era  sinal  de que  a  operação  estava  fechada.  Sujeito  que  viesse  trazer  proposta  rotineira  nem  passava  da jarra de Fontainha. De pronto era despachado:    — Não interessa. Tempo de João Fonseca já passou.    Pergentino  de  Araújo,  que  andou  mais  de  ano  longe,  em  tratamento  de  águas,  subiu  certa tarde,  bengala  debaixo  do  braço,  as  escadinhas  do  Livro  Verde  para  o  abraço  de  chegada. Nunca  podia  eu  figurar  tal  descabimento,  uma  vez  que  o  tabelião,  na  notícia  das  cartas, estipulava  regressar  nas  chuvas  de  outubro,  a  bem  dizer  no  rabo  do  ano.  Por  isso,  foi  na surpresa que escutei a fala dele e antes que Fontainha armasse uma de suas deseducações (“O coronel  não  pode  atender,  o  coronel   está  ocupado”),  avancei   sala  afora,  já  de  braço engatilhado:    — Pergentino, que prazer. Que prazer, seu compadre.    Arrochei  o  amigo  contra  o  peito,  de  estalar  o  cavername  dele  no  meu  abração.  Fontainha, vendo tanta amizade junta, correu a puxar cadeira:    — Tenha a bondade, tenha a bondade.    Pergentino,  antes  de  tomar  assento,  foi  apreciar  as  belezas  do  escritório.  Parado  rente  do quadro que figurava o mar salgado, limpou os óculos, como era de seu costume. E, na ponta do sapato,  de modo  a  ficar mais  crescido, mirou  e remirou  a  obra. Feita  a vistoria, não regateou admiração:    — Muito bonito. O coronel soube escolher.    Apontei  Fontainha  —  não  sou  dado  a  esconder  glória  de  ninguém.  Além  do  mais,  não calhava  a  um  militar,  no  vigor  da  patente,  tratar  desses  embonecramentos  de  sala  e  saleta. Reclamei de Pergentino:    — Tenho lá natureza para essas teteias, seu compadre!    Sem responder,  sempre ajeitando os óculos, especulou o escritório de ponta a ponta. Pediu os  preços  das  benfeitorias,  apalpou  os  estofados  e  mostrou  dedo  entendido  ao  aquilatar  a macieza das cortinas:    — Veludo fino, coisa rica.    Fontainha é que não cabia dentro de tanto orgulho. Recurvado, retorcia os dedos, amaciava o caminho do tabelião:    — Tenha cuidado Vossa Senhoria, que pode tropeçar.    E  ia  retirar  um  traste,  demover  uma  escarradeira  para  deixar  caminho  aberto  aos  seus passos. Numa hora  lá  em  que Fontainha virou  as  costas, Pergentino  garantiu  que  eu tive  sorte na escolha do ajudante:    — Esse Fontainha é expedito, esse Fontainha vai longe.    De  noite,  no  Taco  de  Ouro,  ofertei  jantar  ao  aposentado,  um  frango  de  minha  particular 
invenção,  preparado  em  fogo  de  grelha.  Fontainha,  por  deliberação  própria,  foi  fiscalizar  a obra.  Na  cozinha,  manga  arregaçada,  ministrava  ordens.  Que  o  mestre  não  carregasse  nos vinagres,  por  estar  o  coronel  em  receita  de  médico.  Da  cozinha  vinham  os  resmungos  do magricela:    — Nada de colorais e engordurados, que o doutor não quer.    De  fato, tive uma  carregação de nascidas  e  corri  ao dr.  Coelho dos  Santos,  o debelador de minha terçã. Desde então Fontainha açambarcou todos os cuidados da mazela. Era eu entrar no escritório e receber inquirição dele:    — O coronel já tomou os medicamentos do dr. Coelho dos Santos?    Limpando os óculos, Pergentino aprovou os desvelos do escriturário:    — Fontainha procede bem. É amigo do coronel, é rapaz prestimoso.    Pouco adiante, chegada a encomenda da cozinha, como eu avançasse no tempero, um molho grosso curtido na mostarda, Fontainha quase atirou fora essa  serventia. Ainda tentei  segurar o bracinho dele:    — Uma pitada não leva ninguém ao cemitério, seu Fontainha.    Esbravej ou, exagerou os desvelos, ameaçou derramar o molho no assoalho:    — Não consinto, não consinto. Tenha juízo.    Noite  feita,  bem  jantado  e  conversado,  sem  a  presença  de  Fontainha,  que  no  depois  da sobremesa  saiu  para  um  compromisso  de  natalício,  levei  Pergentino  a  passeio  dilatado.  De passagem,  no  Café  Lord,  abasteci  o  bolso  de  Flor  de  Ouro.  Era  a  hora  dos  teatros  e  as carruagens cortavam as ruas. Numa delas, bem repimpado, vinha Selatiel de Castro entre duas moças de cara pintada e cigarro na boca. Do meio de tanto vestido, o financeiro tirou o chapéu em cortesia alegre:    — Boa-noite, coronel.    Rebati no mesmo tom:    — Boas-noites, boas-noites.    Pergentino,  às voltas  com  a  limpeza  dos  óculos,  depressinha meteu  as  cangalhas  no  lombo do nariz para ver se reconhecia os rabos de saia de Selatiel de Castro:    —  Não  conheço  nenhuma.  Mas  pelo  feitio  estabanado  dos  chapéus  deve  ser  povo  das ribaltas.    Reprovei  a  libertinagem  de  Castrão,  seu  caradurismo  em  rolar  no  centro  da  cidade  em carruagem de moças do Coliseu dos Recreios:    — Passou da conta. Devia ser mais resguardado.    Pergentino  concordou.  O proceder  de  Selatiel  de  Castro não tinha  cabimento,  logo  ele  que lidava com dinheiro, ofício que requeria severidão e bom nome na praça:    — Assim o Castro vai mal, mal.    E dando um repuxão no meu braço:    — Selatiel precisa de tirar curso com um certo coronel que eu conheço.    Como  manda  a  boa  educação  da  sociedade,  fiz  que  não  entendi,  embora  sabendo  onde Araújo  queria  amarrar  o  seu  cavalo,  que  era na porta  dos Nogueira. Pela picardia  do  falar,  o aposentado j á  devia  estar  senhor  do  acontecido,  talvez  até  confessado por  dona  Esmeraldina num  desabafo  de paixão, uma vez  que Pergentino  entrava  e  saía  do  chalé  em passo  livre, por ser  aparentado  dela  em  sangue  distante.  A  verdade  é  que  eu  não  podia,  nem  ficava  bem, esconder   do   amigo   meus   interesses   pela   prima   dele,   mesmo   que   isso   custasse   um 
amolecimento de amizade.  Se Pergentino apertasse o carnegão, eu desembuchava de uma vez. Dizia   do   meu   pendor   por   dona   Esmeraldina   e   que   estava   disposto   a   arcar   com   a responsabilidade  do  que  desse  e  viesse.  Era  homem  de  torrar  a  herança  de  Simeão  e  no cangote do apurado, na ordem de meus muitos contos de réis, montar casa em Niterói e acabar meus dias no colo da mulher de Nogueira. E já preparava confissão completa e bem costurada quando Pergentino, parado do meio da rua, dedo apontado para mim, disse com ar alcoviteiro:    — Não há como uma casinha cheia de canários da rua do Gás.    Caí  de  quatro  no  atolado.  Esperava  que  o  tabelião  trouxesse  a  furo  o  caso  da  prima  dele (“Sei de tudo, Esmeraldina relatou”) e vinha Pergentino com uma bobagem:    — O amigo Ponciano é canarista da rua do Gás, não é?    Torci  a  barba  e  nesse  torcer  tive  um  estalo.  Capaz  que  a  prima  dele,  mordida  de  ciúme, quisesse  tirar  a  limpo  os  meus  giros  pela  rua  do  Gás  e  desse  ao  primo,  seu  íntimo, incumbência  de  aclarar  a  verdade.  Macaco  velho  não  cai  em  armadilha  de  pouca  banana — tratei, em pronto momento, de desmantelar, perante o amigo, o mal-entendido. Fingi desgosto, o que deixou o aposentado meio aturdido, de ânimo caído. Que ele tivesse paciência, mas não podia  permitir  eu,  um  militar,  que  alguém  pensasse  em  denegrir  a  reputação  do  amigo  João Fonseca, meu sócio dos primeiros tempos de compra e venda:    — É um falso, é um despautério.    Tanta  obtemperação  espantou  Pergentino,  que  procurou  debelar  meu  agastamento.  Havia sabido, por um amigo da rua do Gás, das minhas noites altas, das minhas idas e saídas de uma casinha de canários que ficava em recanto escondido.  Sendo eu mulherista,  sujeito de não dar ponto sem nó, logo figurou perna de moça nesses bordejos do coronel:    — Mas fica o dito por não dito, amigo Ponciano. Dou como boa a sua ponderação.    Apreciei o desfecho da pendenga, que ia reforçar meus créditos junto de dona Esmeraldina. E  satisfeito,  beiço pesado  de  charuto,  aceitei  convite  de  Pergentino para  uma  vadiagem pela rua  do  Mafra,  onde  morava  seu  bem-querer  encravado,  sentimento  das  infâncias.  A  mesma penitência ano sobre ano — toda noite o aposentado levava a obrigação de raspar a janela dos seus sofrimentos, soltar suspiro e voltar de crista caída para o travesseiro. Mexi com o amigo:    — Vosmecê é das paixões recolhidas, de meter um cristão na cova do cemitério.    Encovou sem resposta. Foi como se perdesse a graça da fala. Sou piedoso — não escamei a ferida dele, pois  sei acatar o desgosto dos outros. De garganta murcha  segui o aposentado até o casarão da rua do Mafra. Uma luz debochada, que parecia advir das alcovas, escapulia pela janela. Naquela hora bem  crescida  da noite  era muito  capaz  que  o marido  da  dama  estivesse nos proveitos  de  casado,  enquanto  Pergentino,  do  lado  de  fora, pegava  aragem  e  sereno.  Um apito de trem, no lonjal, revirou ainda mais os doídos de Pergentino. Para  sacudir o tabelião, inventei  uma  pândega  que  tive  na  entrada  da  semana,  quando  enfrentei,  sem  deslustrar  a patente, o fogo cerrado de mulata nova:    — Seu compadre, foi uma refrega de escadeirar o litigante.    Pergentino,  no  poço  do   seu  quebranto,  nem  veio  à  tona,  nem  deu  atenção  à  minha invencionice,  ele  que  sempre  foi  perdido  por  uma  libertinagem,  de  pedir,  em  boca  babada, pormenores  e minudências —  como  foi,  como não  foi,  se  a militante  era  de todos  os  deveres ou  recatada  de  primeira  viagem.  Sempre,  nos  fins  desses  relatos,  o  tabelião  requeria  notícia do cangote das moças, do que era muito atraído:    — E o cangote, seu Ponciano? Como era o cangote? 
   Nessa noite nem vinte cangotes, com os acompanhamentos sem-vergonhistas que em seguida apresentei,  tiveram  o  condão  de  demover  Pergentino  de  Araújo  do  seu  triste  cismar.  Bati  no ombro dele:    — Acorda, homem de Deus, que lugar de dormir é na cama.    Foi  a  custo,  quase  a  martelo,  que  arrastei  o  aposentado  da  Justiça  rua  do  Mafra  abaixo, braço meu no dele. Por desgraça, num chalé de esquina, servido de jardim e repuxo, um piano gemia no dedo de certa mocinha de tranças. Tomado de nova remessa de quebranto, Pergentino parou rente do gradil. Tive pena do seu todo decaído e embezerrado. E para não deixar o bom amigo sozinho nessa recordativa, chamei à minha presença a miragem de dona Esmeraldina. E já estava no proveito dela, de novo em conversa de caramanchão, quando escapuliu do chalé, em  pulo  de  bode,  aquele  dó  de  peito  que  chegou  a  balangar  o  trançado  das  trepadeiras  e sacudir a noite. Estirei a vista para o lado de onde vinha tal disparate. Dentro da sala, apoiado no  piano,  vigorava  o  vozeirão  de  Peixotinho  do  Cartório,  um  varapau  meu  conhecido  das brigas  do  Foro.  O  cantorista  tirava  da  goela  modinha  sem jeito,  coisa  em  que  ele  fazia  as partes  de  um  beija-flor  maluco  do  juízo  por  uma  estrela  do  céu.  Achei  tudo  isso  um descabimento,  uma  falta  de  respeito.  Era  só  o  que  faltava!  Um  escrivão  de  cartório,  oficial juramentado,  figurando bobagem,  abusando  das  avezinhas  de Nosso  Senhor  Jesus  Cristo.  Era só o que faltava! 
Subi  demais. No  dobrar  do primeiro  ano  de  compra  e venda  eu tinha  sacudido pela  orelha as rotinas  do  comércio.  Era  quem mais  queria  falar  comigo  e muito nababo  do  açúcar tomou suadouro de cadeira na saleta de Fontainha. O escriturário, cada vez mais engomado, marcava os  tratos,  atendia  o  grosso  dos  postulantes.  Selatiel  de  Castro,  em jantar  no  Taco  de  Ouro, gabou meu faro ladino, meus arrojos no jogo da especulação:    — Nesse andar o coronel acaba dono de usina.    Na verdade,  os ganhos  da  firma inchavam nas burras  do Banco  da Província. Dos pastos  e labutas  de  rês  eu  nem  queria  ouvir  falar.  Quem  quisesse  presenciar  este  coronel  mordido  de cobra  era  relembrar  tarefa  de  curral.  De  uma  feita,  mandei  Antão  Pereira  de  volta,  pelo desplante  que  o  gago  teve  em  trazer  ao  Hotel  das  Famílias um  caso  de  surucucu.  Intimei  que mirasse o patrão:    — Veja, seu Pereira, se tenho feitio de Tutu Militão.    Para evitar focinho do meu povo na cidade, dei carta branca a Juquinha Quintanilha:    — O que o compadre escrever eu assino em cruz.    Todo  rabo  de  mês  vinha  ele prestar  contas, pedir providências,  comprar  munição  de  boca ou  ferragens.  Era  desajeitado,  sem  gosto,  que  eu  escutava  os  trazidos  do  compadre,  as peripécias  do  gado  fugido,  praga  de  berne,  o  estado  deste  ou  daquele  campo  de  engorda. Juquinha Quintanilha tinha toda a herança de  Simeão na ponta da língua — era perguntar e ele responder. Não  escapulia  do  seu  olho mateiro  o pé  de pau mais  escondido,  fosse  de beira  de estrada ou de capoeirão adentro. O compadre botava orgulho particular nas reservas de Mata- Cavalo:    — Tem madeira para montar duas serrarias ou mais.    Nas  primeiras  vindas  dele  ao  Hotel  das  Famílias  ainda  mostrei  interesse  numa  coisa  e noutra.  Inquiria  Juquinha  no  avulso,  a  respeito  do  andamento  das  obras  dos  currais,  se  os angicos do lado do major Badejo dos  Santos tinham sido bem fincados, como ia a extração de madeiras, que ele tivesse em mira os prazos da lua e do ano:    — Mês que tem letra r não dá bom corte.    Quintanilha,  naquele  seu  modo  tardoso,  a  tudo  respondia,  sempre  dentro  das  minúcias, talqualmente  fazia  João  Fonseca  nos  tempos  de  compra  e  venda.  Com  o  passar  dos  meses, deixei de lado esses fingimentos. E era sempre em pressa (“Compadre, estou de trato marcado no  escritório,  tenho  de  arredondar  uma  compra  graúda”)  que  eu  recebia  o  bom  Juquinha Quintanilha.  E  mal  ele  apresentava  um  caso,  eu  dizia,  em  imitação  dos  desembargadores  da Justiça, que o feito era da exclusiva alçada dele:    — Para isso é que dei carta branca ao compadre.    Orgulhoso  da  confiança,  Juquinha  mostrava  o  dente  de  ouro,  coçava  o  cabelo  de  mola  e 
entrava  na  parte  dos  recados.  Sinhozinho  andava  de  mala  feita  por  causa  do  emprego  do governo.  Antão  Pereira  pedia  licença  de  barganhar  dois  codorneiros  por  um  cachorro levantador  de  paca,  dona  Francisquinha  remetia  garrafada  de  beberagem,  fora  pedidos  de ajutório do padre Malaquias para a pobreza de  Santo Amaro. O compadre sempre acabava os seus trazidos com notícia que muito alegrava o meu coração:    — A pessoinha do galo manda lembrança.    Na  largada,  eu  garantia  a  Juquinha  Quintanilha  visita  no  morrer  do  mês.  Mandava  que preparasse leitão, arrebanhasse os amigos:    — Diga a minha boa comadre Alvarina que vou levar prenda rica para ela.    Cumpria  sempre  a metade  do prometido —  a prenda  seguia,  o  compadre  ficava.  Digo  que meu mês era tempo curto para caber tanto proveito. Além do mais, esquentava o quebranto de dona  Esmeraldina  por  mim.  Fontainha  servia  de  leva  e  traz  entre  o  escritório  e  a  rua  dos Frades.  E  era  recadinho  (“O  coronel  vai  ter  surpresa  no  domingo”),  e  era  ramo  de  flor para enfeite  de  minha  mesa,  fora  remessa  de  compota  e  queijadinha,  gulodices  de  que  sempre  fui muito inclinado. Triste de Ponciano se saltasse um ajantarado de sábado ou domingo! Recebia reprimenda de Nogueira e de dona Esmeraldina:    — Não faça isso, não repita o abuso.    De  artimanha, no  que  sou  especial,  eu pulava um  ou  outro  compromisso  e  caía na mesa  do capitão  Totonho  Monteiro,  no  Hotel  das  Famílias.  Dona  Estefânia  logo  aparecia  de  vestido negro,  apertada nas partes,  de modo  a  tornar  o  seu  amassador  de  sofá mais vistoso.  Mas  era raro  eu  rejeitar  o  ajantarado  da  rua  dos  Frades.  Vez  por  outra,  Nogueira  trazia  convidados, Pergentino  de  Araújo,  Castrão  do  Banco  da  Província  ou  algum  desembargador  da  Justiça, chegado  de  Niterói.  Quem  não  apreciava  essas  visitas  era  a  dona  da  casa  e  disso  não  fazia segredo. Reprovava o marido:    — É melhor botar placa na porta, como nas casas de hospedagem.    Uma  tarde,  em  que  ajudava  a  mulher  de  Nogueira  a  desembaraçar  um  novelo  de  lã, segredou  que  desde  que  passei  a  frequentar  o  chalé  não  achava  mais  graça  em  ninguém, mesmo o primo Pergentino, por muito que gostasse dele:    — Sei lá! Perdi a paciência.    Estando eu em tais alturas, de dama quase submetida, não tinha cabimento perder sábado ou domingo   em   terra   de   boi,   no   Sobradinho   ou   em   Mata-Cavalo,   conforme   prometi   a Francisquinha.  Falei  franco  a  Quintanilha,  que  num  fim  de  mês  requereu  minha  presença  em festa de Santo Amaro, numa cavalhada onde eu sempre aparecia na melhor pata e na sela mais ostentosa.  Puxei  Juquinha  para  junto  de  mim  e  tirei  do  bolso  a  caderneta  do  Banco  da Província.  Que  ele visse,  em  segredo,  os meus ganhos  em pouco mais de  ano no  comércio de compra e venda:    —  Duzentos  e tantos pacotes,  seu  compadre!  Duzentos  e tantos  contos  de réis  sem  carecer de aturar chifre de boi, seu Quintanilha!    O  mesmo  proceder  tive  com  Sinhozinho  Manco.  Francisquinha  não  cansava  de  chorar  as ausências do seu menino. Tanta lamúria, lá uma ocasião, fez o velho subir as escadas do Livro Verde,  em  viagem  especial,  para  demover  o  coronel.  E  foi  ainda  na  poeira  do  trem  de  ferro que apareceu  ele na  saleta de Fontainha. O  escriturário, como  era de  seu costume, já de dedo estendido, pediu contas a Sinhozinho:    — Que deseja, que deseja? Diga logo, que não tenho tempo a perder. 
   A  falinha  do  viajante  encorajou  Fontainha  a  largar  na  sala  nova  encomenda  de  gritos  e estipulações,   do   que   bem   depressa   recuou   em   vista   da   gurungumba   apresentada   por Sinhozinho.  Já  o  cipó  assobiava no vento  quando  apareci no  entre  os  dois. Na raiva,  o velho ciscava  o  assoalho  como  um  touro  pagão.  Queria  exemplar  o  engomadinho,  custasse  o  que custasse:    — Ensino a esse cachorro a regra do bom viver, seu Ponciano.    Branco  de  cera,  ligeirinho  como  se  estivesse  em  terra  de  peste,  o  escriturário  trancou  o medo no quarto das necessidades. Como providência sanadora, saí de Sinhozinho no braço em busca de compartimento no Hotel das Famílias, onde ficou aos cuidados do capitão Monteiro:    — É povo meu. É Sinhozinho Carneiro, um mandachuva dos pastos.    Dormiu  o  velho  em  cama  fofa  e  tanto  gostou  desse  manso  viver  que  passou  duas  semanas comigo.  No  Hotel  das  Famílias  tinha  ele  importância  de  lorde,  consideração  da  maior.  Era major-veja-isso,     major-veja-aquilo.      Desacostumado         a   receber     tanta   cortesia,    acabou resmungando que não era homem de patente nem de outra qualquer regalia:    — Sou Sinhozinho. Sinhozinho Carneiro, nascido e criado em Ponta Grossa dos Fidalgos.    Totonho  logo  retirou  a  patente  dos  ombros  dele,  mas  o  resto  do  Hotel  das  Famílias,  dos viajantes ao pessoal da cozinha, continuou a dar a Sinhozinho a regalia renegada. Desse modo, sem  ele  querer,  virou  major  Carneiro.  Achei  graça  e  fui  o  primeiro  a  troçar  da  patente  do amigo.  De  cara  fingida,  como  se  eu  fosse  um  estranho,  perguntava  pelo  major  Sinhozinho Carneiro:    — Um graudão, de barba rala, que tem mais de mil cabeças de rês.    Senti  pesar  quando  o  velhote  arrumou  os  trastes.  Até já  tinha  acostumado  a  orelha  ao  seu andar manco. Vinha toda madrugada bater na minha porta, por conta do canto do galo. Chegou ao Hotel  das Famílias  em missão  de  dobrar  o  coronel,  de levar Ponciano  de volta. Diante  de tanta  grandeza,  deu  razão  ao  meu  proceder.  Ele  também  andava  de  mala  pronta.  Ia  receber encargo do governo, serviço leve, de ganho certo. O primo da política,  Sebastião Carneiro, já havia engatilhado tudo para o rabo das eleições:    — Trabalhinho manso, coisa do governo.    Sacudi o ombrinho dele, meti alento na sua esperança:    — Muito que bem, seu major. Pasto não dá mesmo mais nada.    Foi embora num sábado de chuva plantadeira, dessas de dar raiz em sola de botina. Deixou bom  nome  no  Hotel  das  Famílias,  apesar  de  madrugador  e  resmungão.  Levei  Sinhozinho  em roda  de  tílburi  ao  bota-fora.  No  apito  da  máquina,  quis  enfiar  no  bolso  dele  dois  contos  de réis. Rejeitou de cara enfarruscada:    — Não sou homem de pegar favor, não estou nas falências.    Quando  o  trem  sumiu,  tragado  na  primeira  curva,  senti  um  vazio  por  dentro.  Um  nó  de mágoa depressa cresceu na garganta do coronel Ponciano de Azeredo Furtado.        Minha data de anos  foi passada  em jantar de amizade, na casa dos Nogueira. Fontainha, de parceirada  com  dona  Esmeraldina,  trabalhou  a  semana  toda  nos  arranjos  e  pormenores  do natalício. Fazia segredo, cochichava nos cantos. De noite, na rua dos Frades, encontrei o chalé quieto de dormir. Pois mal pisei a soleira do portão, tudo que era luz abriu em claridade e um comício de gente correu em vivas e abraços. Fontainha, em roupa de cerimônia, comandava a algazarra,  era  quem  mais  espevitava  a  animação.  Em  presença  de  tão  farta  amizade,  caí  nos 
braços de Pernambuco Nogueira. Era bondade muita para um coronel  só. Falei embargado de comoção:    — Muito agradecido, muito agradecido de tudo.    Andei  de braço  em braço talqualmente  os  graúdos  da política.  Gente  que  eu nem  conhecia veio  ao  come  e  bebe  da  rua  dos  Frades.  Só  senti  uma  ponta  de  tristeza  ao  ver  Selatiel  de Castro   amarrado  no  vestido   de   dona  Esmeraldina   e   de   atenção  posta   em   suas  partes desguarnecidas. De longe, o  financeiro acenou para mim. Respondi  severoso, condizente com as boas práticas da educação:    — Muito boas-noites, muito boas-noites.    Acabados  os  cumprimentos  de um  e  de  outro,  fui  ancorar na vizinhança  de Pergentino,  que animava  uma  alegria  de  moças  em  canto  de  varanda.  Desse  mirante,  eu  podia  vigiar  as evoluções  de  Selatiel  em  derredor  de  dona  Esmeraldina.  E  meu  coração  quase  teve  um desfalecimento  ao  ver  o  financeiro  sumir,  ao  lado  da  dona  da  casa,  para  os  escondidos  do jardim. Não fui mais Ponciano de nada — era só olho aberto nas folhagens. Por sorte, um luar de  curral,  desses  de  clarear  todas  as  miudezas,  vigorava  por  cima  do  chalé.  E  não  demorou que  dona Esmeraldina voltasse, toda  desajeitada,  arrumando  o  cabelo,  como  saída  de um par de  abraços,  de  um  plantão  de  segura-embaixo-e-aperta-em-cima.  Atrás,  de  flor  no  paletó, vinha  Castrão,  feliz  da  vida,  mão  no bolso,  como  segurando  grossos  dinheiros.  Cuidei  que  a moça estivesse aborrecida dele por alguma confiança tomada. De pronto percebi o engano — foi  ela, de vontade própria, que pediu  a  ajuda de  Selatiel para ganhar  os degraus da varanda. E de braço encurvado:    — Castro, tenha a bondade.    E entrou na sala de riso aberto, fazendo covinha no rosto. Virei de lado, para não presenciar a ostentação de Selatiel de Castro. Fingi interesse pelo que as meninas tagarelavam ao lado de Pergentino,  no  comando  de  um  jogo  de  adivinhação.  Cada  uma,  a  pedido  do  aposentado, relatava  a  cor  do  seu  gosto —  o vermelho representava  o  sentimento  da paixão,  o  amarelo  o desprezo  e  o  branco  a  inocência.  Sujeito  mais  fora  de  moda  do  que  Pergentino  não  podia haver. Enquanto o aposentado tirava brincadeira boba no entre as moças, Castrão do Banco da Província  escamava,  nos  escurinhos,  as  partes  expostas  da  prima  Esmeraldina.  E  ele,  na varanda, feito um boitatá, de pergunta em pergunta:    — Qual a cor de dona Julinha Rocha? A menina Alice é cativa do azul?    Quando a inquirição chegou a mim, recusei tomar parte na brincadeira:    — Não sou preparado para essas vadiagens de salão.    As meninas protestaram, bateram palmas.  Queriam  que  eu  entrasse na roda,  desse  a  cor  do meu  encanto.  Uma  delas,  Julinha  Rocha,  não  teve  pejo  de  segurar  a  manga  do  meu  paletó.  E estava a coisa nesse pé, entra-não-entra, na hora em que dona Esmeraldina, amarrada no braço de Selatiel de Castro, veio pedir licença para roubar o coronel:    — É um instantinho de nada.    Pergentino, ajudado pelas moças, denegou o pedido dela. Bateu pé, firmou parecer. Não era fino retirar o aniversariante Ponciano de Azeredo Furtado de recinto tão seleto:    — Não fica bem, senhora minha prima.    Fui rodeado  em  cordão  de  saias  e nesse miolo,  como um palmeirão  entre  flores  de jardim, quedei  a  cômodo.  Sem  fazer  caso  dos  protestos,  a  mulher  de  Nogueira,  rompendo  cetins  e rendas, retirou o coronel da sua prisão de filó: 
   — Meninas, é um instantinho só.    Selatiel,  em  curvatura  educada,  deixou  vago  o  braço  de  dona  Esmeraldina.  Enganchado nele,  ganhei  o  corredor  e  entrei no  quarto  dos hóspedes,  onde  surpresa  de natalício  esperava por mim. Da entranha de uma gaveta retirou a moça embrulho forrado de papel de seda:    — Tenha a bondade, coronel.    Ponciano, homem de curral, possuía dedo demais para abrir caixa tão pequena. Mexi, virei e  quase  a prenda transbordou no  assoalho. Diante  de tal  despreparo, pediu  dona Esmeraldina licença  e  com  mão  de  bordado  descascou  o  presente.  Era  um  par  de  abotoaduras,  de  fino lavor, aparelhadas de um P grande, encastoado em ouro. Confesso que a lembrança tocou forte o meu  sentimento. Embaraçado, disse que prenda tão rica não calhava em mim, era mais para um doutor formado:    — Não mereço tanto, dona Esmeraldina.    Bem rente da barba, cabeça nos brins do meu ombro, aquela boca de flor falou mansinho:    — O coronel merece muito mais.    Por mal  dos meus pecados,  tive  de  cortar  essa boa  intimidade porque  Fontainha, na  frente de uma sarabanda de moças, veio dizer que o jantar ia entrar em mesa:    — Coronel, dona Esmeraldina.    Foi  em  onda  de  renda  e  cheiro  de  sabonete  que  entrei  na  sala  dos  festejos,  alumiada  de velas,  como  manda  o  regulamento  dos  natalícios.  Peguei  cadeira  de  honra,  entre  a  dona  da casa  e  o  tabelião  Pergentino  de  Araújo.  Bem  recuado,  Selatiel  de  Castro  conversava  com Pernambuco Nogueira,  que  ocupava  a  cabeceira  da  mesa.  Em  frente,  avultava  a  cara  terrosa do velho Gastão Palhares. Era cismático de doença e onde estivesse logo puxava conversa de remédios, receitas e conselhos. Quis  saber de Pergentino  se as águas limparam de verdade as impurezas do seu baço:    — Pelo visto, o amigo teve muitos benefícios.    Desviei  a  atenção  para  dona  Esmeraldina,  que  ria  de  um  segredo  contado  pela  menina Julinha Rocha. Os cabelos dela, no alumiado da vela, sobressaíam em marolas de fogo — uma beleza  de  ninguém  esquecer.  Devagarinho,  no  meu  melhor  cetim,  gabei  o  esmero  da  festa  e para  espicaçar  ciúme joguei  meus  interesses  na  moça  sentada  às  direitas  do  doutor  marido dela:    — Muito recatada, de esmerado trato.    Dona   Esmeraldina  mostrou   sua   educação   de  berço.   Concordou   comigo  —   Mocinha Cerqueira era menina de muitas prendas, de fina beleza, boa no piano e melhor nos enfeites de casa. E mais achegada a mim:    — Bom partido para o coronel.    Ia rebater a troça, mas a criadagem, puxada por Artur Fontainha, avançou  sala adentro com terrinas  e bandejas.  O  escriturário  era  de  grande  valimento  em  tais  comemorativos,  de  muita ideia  no  armar  um  recinto  de  aniversário  ou  batizado.  Mandou  que  primeiro  fosse  servida  a dona da casa. E na concha da minha orelha:    — O coronel não pode abusar, tem de ter temperança.    Pois nem bem havia eu cheirado a comida, já Pergentino de Araúj o levantava voo. Cadeira afastada, de pé, raspou o assoalho da garganta e pediu a palavra:    — Minhas senhoras, meus senhores.    Larguei  o talher, todo tomado de  encabulamento. Então, rolando  o  copo no  alto, Pergentino 
fez  o  diabo  com  a  pessoa  deste  coronel,  que  ele  só  faltou  munir  de  asas  e  soltar  no  céu  dos passarinhos.  Jogou  na  mesa  todas  as  minhas  virtudes  de  nascença  e  outras  mais  que  eu  não carregava.  E  fechou  a  rosca  das  gabações  levando  ao  conhecimento  dos  presentes  uma peripécia  que  eu  nem  mais  relembrava,  o  caso  de  um  pobre  burro  de  carroça  que  defendi  e desagravei das judiarias do dono. E de copo a um palmo da minha barba:    — Aos muitos e bons anos que o amigo Ponciano de Azeredo Furtado ainda vai festejar.    Fontainha, na  fúria de agradar, por um triz não  estilhaçou o copo da menina Julinha Rocha. Sossegados os vidros, Nogueira, no após limpar o beiço no guardanapo, tossiu e elevou a voz. Foi  outro  gabamento  sem  fim.  Recaí  no  enrolar  de  barba,  como  é  do  meu  feitio  quando  sou atingido  no  meu   íntimo  modestoso.  Nogueira,   que   falava   como   se   estivesse  no  Foro, apresentou umas ponderações a respeito do meu tino de demandista e arrematou a louvaminha levantando o copo em benefício de minha saúde:    — Pela felicidade do coronel.    Palavra puxa palavra,  é  como já-começa  ou  alastrim. Na  esteira  do  doutor veio Fontainha. Endireitou  os  engomados,  aj eitou  o  cabelo,  pousou  as  mãos  na  mesa  como  arrumando  as ideias. E  de repente,  sem ninguém  esperar,  avançou  aos berros  contra  os inimigos  do  coronel Ponciano de Azeredo Furtado, uma comandita de invejosos que queriam solapar os progressos da firma de compra e venda. E subalternista:    — Firma da qual sou o mais humilde servidor.    Do outro lado da mesa, alisando o bigodinho de alfinete, Castrão protestou:    — Não apoiado, não apoiado!    Fontainha rebaixou  a  cabeça  e  agradeceu  o reforço recebido  de  Selatiel  de  Castro. E  cada vez mais curtido em veneno, socou a armação dos peitos, com promessa de defender o coronel mesmo em risco da própria vida:    — Não, ninguém, em minha presença, desautoriza Vossa Senhoria.    E  mais  não  disse  porque  nessa justa  ocasião,  instrumento  em  punho,  apareceu  na  varanda Peixotinho do Cartório, vindo sem ser chamado ou convidado:    — Rogo a especial licença de homenagear o aniversariante desta casa.    E  sem  esperar pelos trocos, violão  em  cima,  quase na ponta  do  queixo,  liberou  a primeira cantoria. Foi um rebuliço, um  arrasta-cadeira por todo  lado. Estava  desmanchado  o jantar  de natalício  e  cada  qual,  munido  de  prato  e  talher,  tratou  de  suas  comodidades.  As  meninas, baratas em véspera de trovoada, rodearam Peixotinho,  feliz de ter tanta renda por vizinhança. Um carinha de bem-te-vi, que tratava de papéis no escritório de Pernambuco Nogueira, pediu para Peixotinho atacar modinha amorosa:    — Aquela do conde e da princesa.    A mando de Fontainha, já esquecido dos impropérios e ameaças, os convidados espalharam o assento nas cadeirinhas de ferro e bancos do jardim, o que era bem providenciado, uma vez que a noite navegava em claridade. Foi nessa algazarra, no corre-corre das meninas, que dona Esmeraldina trouxe Mocinha Cerqueira à minha presença:    — É ou não é uma beleza, coronel?    O resto da noite passei rente dela, que era, de fato, de variados encantos, cabelo escorrido nos  ombros  e boca  que ria  à toa. Na varanda,  o vozeirão  de Peixotinho  sacudia  a noite pelas tranças,  a  ponto  de  tilintar  os  vidros  e  vidrinhos  dos  armários.  O  pior  é  que  o  sujeitão  só trabalhava modinha triste, de fim de vida desgraçado. Fiz meu reparo: 
   — Esse Peixotinho é defunteiro, não acha, dona Mocinha?    A  menina  encontrou  muita  graça  na  minha  ponderação,  mas  disse  que  eu  não  devia  ser maldoso com ele:    — Coitado, coronel, veio em seu louvor.    Dei graças a Deus por ter, mais adiante, a moça inventado de colher cravos na outra banda do jardim.  E  foi  pisando  alegria  que  adentrei  meus  passos  pelas  alamedas  e,  caminhos  de planta, enquanto a menina Cerqueira gabava a bonitura das folhagens. Queria que eu reparasse no caramanchão de amor-agarradinho e no canteiro das dálias:    — Veja que mimo, coronel.    Da minha parte, reforçava a admiração dela:    — É planta de muita valia, sim senhora.    Foi assim a gente nessa vadiagem até o canteiro dos cravos, uma rocinha de fazer gosto. De volta,  perto  da  varanda,  a  menina  parou  de  modo  a  apreciar  uns  brincos-de-princesa  que pendiam da folhagem. Nisso, de uma touceira de samambaia, pulou na ponta do sapatinho dela uma  perereca-tinhorão.  No  susto,  a  moça  recuou  seus  atrasados  bem  rente  das  minhas intimidades, na justa parte central do coronel. Foi um nadinha, o tempo de um estalo, mas que serviu para  aquilatar  dos benefícios  de  que  a  menina  Cerqueira  era portadora.  Vista  assim  a olho  nu,  forrada  de panos  e  rendados,  não parecia  muito  sortida, por  ser  de porte  enganador —  magra  por  fora  e  avantajada  por  dentro. No  respeitante  a  essas  enganações  das  damas,  o pranteado Juju Bezerra é que tinha razão:    — Seu Ponciano, seu Ponciano, quem vê roupa não vê miolo.    E assim morreu, noite funda, a festa do meu natalício.  Saí de flor na botoeira, lembrança da moça dos cravos. Já o cheiro da madrugada subia das chácaras e quintais da rua dos Frades.        Durou um nada a alegria do aniversário. Da pastaria, no fim da  semana, trouxe o compadre Juquinha  notícia  nefasta.  O  galo  Vermelhinho,  prenda  do  major  Lorena,  tinha  sumido  de  não ser  presenciado  em  vinte  léguas  no  derredor  da  herança  de  Simeão.  O  caso  foi  que  a  tal surucucu, que uma vez picou o mestiço em lugar carnoso, cismou de fazer serenata e vadiagem na frente da casa do galo. Noite de lua, a cobra montava rodela por cima de rodela, de modo a formar  aquela trouxa peçonhenta  aparelhada  de  dois  olhinhos  de  fogo. Desplante  assim  devia ser cortado a ferro e pólvora. Morto o dia, ninguém no  Sobradinho arriscava pé fora de porta. Para  dar  fim  a  tamanho  despautério,  Antão  Pereira,  de  língua  presa  mas  de  boa  mira,  armou tocaia  sem resultância, visto  ser  a  surucucu visitante possuída  de tino matreiro. A bem  dizer, mandava e desmandava nas noites dos pastos. Foi Antão Pereira rendido por  Saturnino Barba de  Gato,  que  no  corpo  de  uma  quinzena  não  fez  outra  coisa  —  dedo  no  gatilho  e  olho  na estrada da cobra. No arredondar da  segunda  semana,  sem ver  sombra de bicho, deu  Saturnino o Sobradinho como sanado de surucucu:    — Nanicou, correu do meu pau de fogo.    Juquinha Quintanilha, de boca própria, mandou que ele sustasse a vigília das armas:    —  Não  vem  mais,  seu  Saturnino.  Foi  fazer  arruaça  em  outra  freguesia.  Pois  foi  Saturnino recolher o instrumental de fogo e o minhocão voltar fagueiro e mais sortido de veneno. Picou, por desfastio, um leitão que esperava faca de batizado e não contente do estrago, encontrando porta  facilitada,  rolou  o  seu  roliço  da  cozinha  à  sala  de  visitas.  Como  bem  disse  a  velha Francisquinha,  só  faltou  pernoitar  na  cama  do  coronel  e  pedir  charuto.  Foi  então  que 
Vermelhinho,  nunca  deslembrado  da  picada  da  cobra,  resolveu  tomar  em  ombro  a  defesa  do Sobradinho. De manhã, enquanto o moleque da lavagem mudava a água da casa do galo, minha prenda  caiu  de  perna  solta  no  mundo.  Sumiu  de  não  ser  presenciado,  por  muito  que  o  povo virasse e revirasse matos e touceira de capim. Medroso de minha raiva, o moleque tomador de conta  pediu  asilo  nos  currais  de  Caetano  de  Melo.  Na  asa  do  vento  foram  chamar  Juquinha Quintanilha  em  Mata-Cavalo.  Que  fazer,  que  não  fazer?  O  compadre,  a  par  do  acontecido, coçou a cabeça e deu sua sentença:    — A gente tem de encontrar o galo nem que seja com ajutório dos meganhas do governo.    Deram  buscas  e  rebuscas  em  chão  nunca  pisado  por  gente  do  Sobradinho  —  os  pés  dos meus boiadeiros afundaram carrascal adentro num espichado de vinte léguas. De noite, munido de  tochas,  o  pessoal  vasculhou  os  ermos,  tarefa  que  só  acabou  nas  areias  do  mar,  já madrugada  subindo.  E  nada  de  Vermelhinho,  nem  rasto  dele.  Ninguém  viu,  ninguém  acertou olho no  sumido. A velha Francisquinha prometeu novena  e Antão Pereira um  galo  de  cera  ao milagroso  santo Antônio,  caso  o bichinho voltasse  são  e  salvo. No  quinto  dia  de busca  o  céu de  Deus  enfarruscou  e  sobreveio  aquele  lençol  de  água  que  tudo  afogou. Ninguém  era  doido de  andar  nesses  escorregados  de  sabonete.  Juquinha,  no  mando  da  guerra,  sustou  a  operação militar :    — Chuva amainada, a gente recai nas procuras.    Na  mesma  noite,  ancorou  no  Sobradinho,  debaixo  de  água, um  mercador  de  aguardente  de nome Quirino Dias. Veio molhado de bater queixal. Francisquinha  suspendeu as  forças dele a poder   de   alcatrão   cruzado   com   salsaparrilha.   Retemperado,   roupa   seca   no   corpo,   o aguardenteiro  contou  que vinha vindo  de um  comércio  em Ponta  Grossa  dos Fidalgos  quando na redondeza  do mar,  em terreno  de pitanga  e guriri, num  areal  desimpedido,  deu  com  aquela figuração que nenhum olho de homem mortal ainda tinha presenciado: um galinho cor de  fogo em  guerra  contra  uma  surucucu-pico-de-jaca.  A  tarde  perdia  as  forças  no  debaixo  da  chuva. Suj eito de religião, Quirino Dias pensou que tudo  fosse mais uma capetagem de Belzebu, que sempre  escolhe  a hora  do  escurecer para  apresentar  esses padecimentos  e  abusões.  Sem  sair da  sela, praticou  sua devoção, uma reza de grande proveito  e presteza em tais aflições. Posto assim, pelo poder  dos  santos,  a  salvo  das  armadilhas  do  Chifrudo,  o mercador  de  aguardente tratou de deixar areal tão distanciado de socorro e testemunhas. Nesse entrementes, uma força de  pesadelo  sustou  Quirino  e  seu  cavalo,  de  não  ter  mais  o  aguardenteiro  notícia  de  sua pessoa, nem poder para retirar as vistas do galo e da surucucu. A cobra atraía o mestiço como se fosse rã, enquanto o galinho quebrava esses encantos na força do esporão. O pau do raçudo cantava de estalar nos roliços da surucucu. A briga de exterminação foi assim adentrando pela roça de pitangueira  e guriri.  O galo  sempre tomado de grande raiva  e  a  surucucu nas defesas, montada  na  sua  trouxa  de  rodelas,  de  onde  desferia  bote  sobre  bote.  Quirino  Dias,  bem pregado  na  sela,  foi  acompanhando  em  passo  curto  o  desenrolar  da  peripécia,  no  que  andou um  estirão bem puxado. Já  em tais  alturas a demanda pendia mais para o galo, uma vez que  a surucucu  mostrava  estar  ofendida,  de  cabeça  avariada  e  desguarnecida  de  um  olho.  A  bem falar,  a  língua  mortal  da  surucucu  só  trabalhava  por  honra  da  firma.  Bichão  valentão! Esfrangalhada  pelo  galo,  que  sabia  bater  nas  partes  moles,  a  surucucu  não  ensarilhava  as armas.  Morria  no  pau,  sem  pedir  refresco.  E  assim,  a  ferro  e  fogo,  galo  e  cobra  levaram  a guerra  até  no  beiçal  do  mar.  E  sem  medo  de  boto  ou  sereia,  como  guerreiros  destemidos, foram de água adentro, um embaralhado no outro, em abraço final: 
   — Foi quando dei acordamento de minha pessoa.    Mesmo  assim,  descompromissado  dos  encantos,  Quirino  Dias  quis  aquilatar  das  verdades que  viu,  tudo  não  fosse  mais  uma  traquinada  do  Demônio  ou  algum  mal-entendido  da  tarde chuventa, por não  acreditar,  mais  que  arregalasse  os  olhos,  em  tamanha  invencionice.  Com  a faca  de  cortar  cipó,  de  que  sempre  andava  aparelhado,  o  aguardenteiro  catucou  o  arco  da costela,  de  modo  a  sentir  se  estava  morrido  ou  sonhado.  Na  primeira  picada  do  aço,  ele ponderou em voz de igreja, bem sumida:    — Salve Deus! Ainda sou Quirino Dias, do comercinho de cachaça de Macaé.    Isso  comprovado,  de  reza  no  beiço,  navegação  em  disparada,  deu  graças  quando  reparou luz  de  lamparina  em  porta  de  venda.  Parou  para  um  revigorativo  de  cachaça  e  nesse  parar soube  que  o povo  do  Sobradinho  andava no  calcanhar  de um mestiço  da maior  estimação  do coronel Ponciano de Azeredo Furtado:    — Sumiu faz um par de dias.    Perguntou de que cor era ele:    — É um brasino de perna fina e crista em bandeira?    Sabedor de que tinha dado com o galo do coronel, o aguardenteiro nem chegou ao assoalho do copo — correu por dentro da chuva e foi levar o  sucedido ao  Sobradinho, com o que todo mundo  quedou  de  queixo  tombado,  como  se  visse  o  tal  sujeito  de  pé  de  cabra.  Acabado  o estupor,  a  campeirada,  com  Juquinha  Quintanilha  na  garupa,  caiu  na  noite  cerrada.  Com  a madrugada, chegou meu povo na referida nação de dormideira e gravatá, do conhecimento do mercador  de  aguardente.  Tudo  foi  vassourado,  cheirado  e  medido.  Não  ficou  unha  de  praia que  não  recebesse  a  vistoria  dos  meus  agregados.  Só  encontraram  peças  avulsas  da  rixa  — escamas  de  surucucu  e  a marca  do  galo nos perdidos  do  areal. Mas  a pessoa  de Vermelhinho nunca mais ninguém viu nem deu notícia.        Perdi o galo, perdi em  seguimento os préstimos de Juquinha Quintanilha, que uma desgraça nunca vem  solteira. Aconteceu que  o  compadre, tendo bebido umas  águas de miasmas,  esteve vai-não-vai, falece-não-falece. Mandei buscar Juquinha em Mata-Cavalo e na cabeceira dele, em  noites  desdormidas,  velei  seu  padecimento.  Ficou  na  Santa  Casa  das  Misericórdias  em compartimento especial, bem servido de atenções, com sua doença a cargo de um certo e bom Pereira Nunes, visto o dr. Coelho dos Santos estar em gozo de recreio, de consultório fechado. A comadre Alvarina, passado o perigo, relatou que depois de Nosso Senhor Jesus Cristo foi o coronel o salvador de Juquinha:    — Teve de um tudo, de um tudo.    De  coração partido,  vi  o  compadre  deixar  o  mando  dos  meus  currais,  onde  governou  com perícia  e  mestria  chifre  de  boi  e  verde  de  pasto.  O  próprio  dr.  Pereira  Nunes  aconselhou Juquinha  a  mudar  de  ofício,  no  que  o  mulato  relutou.  Não  ficava  bem  deixar  o  coronel  de braço partido:    — O compadre não merece, é uma imensidão de bondade.    Fui severo:    — Não senhor. O doutor estipulou e está acabado.    Comprou o compadre, com os guardados que ajuntou em anos de trabalheira, meio alqueire de  mato nos  afastados  da  cidade, na  estrada  do  Capão.  Gostei  do negócio —  Juquinha  sabia escolher. Só de olhar dava força às terras, desencabulava raiz. A chácara era de boa presença, 
possuída  de  água  corrente, bem plantada  de mangueiras  e  abricós. Na  casa  da residência, no beiço  da  estrada,  o  compadre  montou  varejo.  Ajudei  o  amigo  em  cinco  contos  de  réis desagravados  de  qualquer  compromisso  e  crédito  a perder  de  vista  no  comércio  de  atacado. Expedi ordem para o povo dos secos e molhados da rua do Rosário:    — É como se fosse para mim.    Dentro  do  meu  viver  sem  hora,  cada  vez  mais  embrenhado  no jogo  da  especulação,  nunca botava  o  pé  na  chácara  do  compadre.  A  bondade  muito  comprida  de  dona  Alvarina  é  que chegava todo fim de semana ao Hotel das Famílias, em forma de doce ou em jeito de samburá de  fruta.  Nem  desembrulhava  os  remetidos  —  assim  como  vinham  viajavam  para  a  rua  dos Frades.  Juquinha,  vez  por  outra,  aparecia  no  escritório.  Dava  conta  dos  negócios  (“Coronel, paguei o charque, limpei os créditos na praça”), pedia um ou outro conselho. Na saída, chapéu respeitoso no peito, como no tempo de Mata-Cavalo, mandava que desse as ordens:    — Vou chegando, com a licença do coronel.    A  rogo  de  dona  Esmeraldina,  entreguei  o  bastão  deixado  por  Juquinha  a  um  primo  dela, moço  formado  na  engenharia,  que  andava  sem  préstimos  no  Rio.  Nem  nunca  vi  a  cara  dele, nem disso quis saber. Sem delonga, despachei o pedido da moça:    — Dona Esmeraldina não pede, dona Esmeraldina manda.    O  doutor  engenheiro  demorou  a  pegar  o  compromisso.  Era  carta  atrás  de  carta  —  e  ele, nada. Até que um sábado, ao chegar para o ajantarado costumeiro, encontrei na rua dos Frades cara nova. Era o primo dos Nogueira, todo enfeitado e aromado. Parecia saído do engomador. Bigodinho de ponta de alfinete, em feitio de  Selatiel de Castro, mais calhava para galante das ribaltas do que para tarefa de mato. De grande  soberba era forrado o doutor engenheiro, tanto que nem deixou  o  sofá quando  entrei.  Sentado  estava,  sentado quedou. A dona da  casa  correu cheia de panos quentes:    — Coronel, esse é o primo Baltasar da Cunha.    Do sofá subiu aquela mãozinha que apertei de leve, no receio de amassar :    — Muito prazer, doutor.    Não rebateu a cortesia, por mais que dona Esmeraldina, no derretimento de prima, forçasse os  seus  bons  modos.  Dei  de  ombros,  tratei  de  enrolar  conversa  com  Pernambuco  Nogueira, que  atendia  na  sala  de  visitas  a  uns  postulantes  do  Foro.  E  no  gozo  do  charuto,  enquanto esperava  o  doutor,  ri  sozinho  ao  figurar  os  desmandos  que  o  ventão  dos  ermos  ia  fazer  na cabeleira  encaracolada  do  sujeitinho.  No  primeiro  safanão  do  inverno,  o  primo  Baltasar saltava  mais  desinfeliz  que  perereca  em  pata  de  boi.  Era  pessoa  desnascida  para  labuta  de curral e essa verdade pulava em rosto. Limpando o morrão do charuto, falei para dentro, como é muito do meu uso falar :    — O sacana vai perder a soberba, de ficar mais manso que cavalo de procissão.    No pé do ajantarado, já no café da sobremesa, fiz ver a Pernambuco Nogueira que o parente deles era muito fino para montar lombo de pasto:    — O mocinho pode estranhar, doutor. Mata-Cavalo é bicho redomão, deseducado de sela. É nação de vento brabo.    Nogueira  acalmou  meus  cuidados.  O  primo  Baltasar  era  entendido  em  sertão  e  grandes benefícios  podia  carrear  para  a  herança.  E  abrindo  o  colete,  já  no  preparo  da  soneca  da digestão:    — Aposto que o amigo Ponciano vai fazer bom negócio. 
   De posse de tanta segurança, despachei o parente dos Nogueira munido de todos os poderes que dava a Juquinha Quintanilha. Em dinheiro contado, como auxílio de mudança, levou perto de cinco contos, fora adiantados de meio ano que paguei a rogo de dona Esmeraldina. Mesmo assim, uma quinzena não era passada, subia o doutor engenheiro as escadinhas do Livro Verde com pedido de novo estipêndio:    — Conto fazer reservatório e reparos na casa da residência.    Falava como se fosse dono, do alto, em termos de imposição. Sentava de rei, perna cruzada, dedo  na  cava  do  colete  e  cabelo  encaracolado  caído  na  testa.  Se  tivesse  um  vintém  de respeito,  não  vivia  tão  embonecrado,  com  sapato  de  lustro  e  unha  de  moça.  Que  ia  dizer  o povo  da ventania  sabendo no mando  de Mata-Cavalo um  sujeitinho tão  engomado  e lustrado? Já escutava o zum-zum correr as cancelas:    — Tem mariquinha, tem donzela em Mata-Cavalo.    Fontainha,  feito  do  mesmo  bagaço,  desde  a  primeira  vista  firmou  amizade  com  o  parente dos  Nogueira.  Nunca   Baltasar   da   Cunha   vinha   ao   escritório   que   não   arrebanhasse   o escriturário  para  os  cafés  e  bilhares,  onde  conversavam  miudinho.  E  mais  miudinho  ainda caso eu passasse em distância curta. O pior é que Fontainha deu de copiar os modos do doutor engenheiro e lançou no por-cima do beiço bigodinho de minhoca. Chamei o bichão às falas:    — Acha vosmecê direito andar um agregado meu com essa safadeza na cara?    Curvou o espinhaço, todo desculpento, pronto a dar fim ao despautério:    — Limpo o rosto. O que não quero é trazer desgosto, contrariar o coronel.    Diante de tanto devotamento e submissão, dei o dito por não dito. Que ele andasse do modo que entendesse. E já em tom amigo:    — Faça o que quiser da cara, que é sua.    As  imposições  do  primo  Baltasar,  com  o  rolar  dos  meses,  cresceram  em  arrogância.  Uma ocasião, bem alicerçado de recibos  e contas,  fui ao ajantarado dos Nogueira disposto a botar tudo no limpo. Armei  sermão do mais  fino  e  entrei no  chalé  com  o propósito de dar  cobro  às exorbitâncias  de  Baltasar  da  Cunha.  Mas  logo  tive  de  recolher  a  reprimenda. Nunca  vi  dona Esmeraldina  tão  esfogueteada  pelo  primo.  Apoiada  no  meu  braço,  cabeça  meio  pendida  em favor do meu peito, saiu em busca do marido, que lia na sala dos livros uma jurisprudência da Justiça. Rindo, fazendo covinha no rosto, pediu que ele desse a notícia:    — Nogueira, diga ao coronel, faça o relato.    O doutor, marcando a página de sua leitura, garantiu que eu era um sujeito de sorte:    — O coronel nasceu de estrela grande. É um felizão.    E, sem tardança, mandou que dona Esmeraldina fosse apanhar, na sala da frente, a papelada do primo Baltasar :    — Um amarrado em cima do piano.    Submetia  o  doutor  engenheiro  ao meu  consentimento um rol  de  obras,  desde  as  cacimbas  a encanamentos  d’água.  Rolei  as  vistas  pelo  emaranhado  de  rabiscos,  cocei  a  barba,  avivei  o charuto.  Não  consenti,  nem  desconsenti.  Que  o  moço  de  pessoalmente  trocasse  em  miúdos aquela engenharia:    — Pelo visto é obra puxada, coisa de monta, que requer ponderação.    Nogueira pediu charuto, concordou:    — É justo. Foi o que eu disse a Cunha.    Recolhi o  sermão e esperei, no escritório, que o moço engenheiro aparecesse. De fato, não 
tardou Baltasar  da  Cunha  a  subir  as  escadinhas  do Livro Verde. Fontainha,  ao  sentir  a pisada dele,  correu  a  arrumar  cadeira,  ajeitar  o  conforto  do  doutor  perto  de  mim.  Refestelado  no assento,  dedão  no  sovaco  do  colete,  sem  boa-tarde  ou  qualquer  outra  cortesia,  o  primo  dos Nogueira foi logo avisando:    — Estive na rua dos Frades. Estou a par de tudo. O que não posso é perder tempo.    E sacou do bolso as invenções todas dele para as tarefas de Mata-Cavalo, uns rabiscos que nem o Diabo entendia. Seu dedinho embonecado apontou as melhorias que ia fazer e não fazer na herança de  Simeão. Falou em represamentos dos corgos, sangria dos banhados, dois paióis e mais água corrente dentro de casa. Levantava toda essa grandeza dentro da maior pechincha, num desembolso de pecúnia que dava até graça em dizer :    — Quando muito, duzentos contos de réis.    Fontainha, admirado de tanta obra, bateu palmas, aprovou os riscados do moço engenheiro:    — Bom trabalho, bom trabalho.    Rejeitei:    — É salgado, doutor. Não é para as minhas posses.    Foi como  se eu ofendesse a parentagem toda dele, como  se eu destratasse  sua pessoa. Num arranco, pegou  o  chapéu  e recolheu  os rabiscos. Não tinha  outro que  fazer no  escritório, pelo que dava o contrato de Mata-Cavalo como quebrado:    — O resto fica a cargo do primo Nogueira.    E  sem  mais,  soberbão,  orgulhosão,  empurrou  a  porta  de  vaivém  em  risco  de  desconj untar molas  e  parafusos.  Vi  que  ia  perder  as  vantagens  da  rua  dos  Frades  e  isso  levantou  a  minha voz:    — Dr. Baltasar, dr. Baltasar.    Fontainha correu a embargar, na escada, os passos do enraivado. Braço encafuado no dele, falou, ponderou,  fez  a defesa  cerrada do  coronel,  a ponto de demover  o doutor  engenheiro de largar as responsabilidades de Mata-Cavalo:    — Não tem cabimento, não faça uma afronta dessas.    Já  domado,  outra  vez  de  dedo  na  cava  do  colete,  Baltasar  da  Cunha  deixou  a  boca  da escada  para  vir  de  novo  esquentar  o  assento  da  cadeira.  Apresentei  desculpas,  sempre ajudado pelo  escriturário.  A  firma  andava  afundada  em  compra  de  vulto,  meia  safra  ou  mais de usina. Uma vez solvido o compromisso, a obra podia ser levantada:    — Embaraço passageiro, dr. Cunha, coisa de pouca tardança.    Batendo  os  dedos  no jacarandá  da  escrivaninha,  Baltasar  da  Cunha  obtemperou  que  pela muita amizade que tinha por Fontainha, e a rogo dele, dava mês de prazo para o coronel pegar ou largar a obra:    — Não espero mais.    Achei  um  desaforo  tanta  imposição  e  por  um  triz  não  quebrei  o  orgulho  do  atrevido  a safanão  e  pontapé.  Engoli  mais  esse  sapo,  pedi  a  Baltasar  da  Cunha  que  voltasse  dentro  do prazo estipulado:    — Conto já estar prevenido do numerário para as primeiras manobras.    E  foi  assim  que  teve  início,  em  setembro,  a  tal  engenharia  de  Mata-Cavalo,  melhoramento de  sair  nas  gazetas  de  imprensa.  Nessas  folhas,  que  Fontainha  não  esquecia  de  demarcar  a lápis  vermelho,  o  coronel  figurava  em  relevo,  como  sujeito  atilado,  que  devia  servir  de exemplo  ao  povo  rotineiro  dos  currais.  Li  e  reli  o  proseado  e  em  gaveta  segura  guardei  o 
louvor.  E  tive  gosto  em  saber,  por  trazido  de  Fontainha,  que  dona  Esmeraldina  havia apreciado a peça:    — Mandou parabéns, coronel.    Para  essas  grandezas  de  que  falavam  as  folhas,  desembolsei  eu,  de  saída,  cinquenta  contos de  réis,  tirante  um  crédito  de  igual  porte  que  deixei  em  aberto  no  Banco  da  Província,  ao dispor  de  Baltasar  da  Cunha.  Digo  que  bem  depressa  o  embonecadinho  de  Mata-Cavalo aprendeu  o  caminho  do  dinheiro.  Volta  e  meia  inventava  coisas — um  aramado  novo,  gastos de ida e vinda ao Rio, um cavalo de raça que queria em sela, fora outras sangrias. Nas costas dele, eu esbravejava:    — Seu Fontainha, isso carece de ter cobro.    O  povo  do  Sobradinho,  que  aparecia  em  Mata-Cavalo  por  imposição  de  serviço,  voltava atoleimado.  A  herança  em  rebuliço,  revirada  de  cima para baixo.  O  casarão  andava  em  tinta fresca,  o  assoalho  brilhava  nos  polimentos  e  as janelas  espelhavam  vidro  novo.  Um  sujeito especial  em  folhagens  veio  plantar  pé  de  flor  em  derredor  da  varanda.  Cuidaram  até  que  o doutor da engenharia ia trazer moça donzela, tal a mimosura das obras. Sinhozinho, em recado aborrecido,  mandou  dizer  que  cavalo  no  trato  do  doutor  vivia  em  melhor  passadio  que  o restante povo dos currais. E tanto a coisa cresceu que Juquinha Quintanilha, já além de meses descompromissado dos ermos, veio ao Hotel das Famílias trazer sua ponderação:    — Meu compadre precisa ver, meu compadre precisa botar rédea curta no doutorzinho.    O  que  o bom  Quintanilha não  sabia  é  que  a  desgraça  do  compadre  dele  era  a  dama  da rua dos Frades, as belezas dela, o seu todo especial de amansar meus rompantes. Em mais de uma ocasião  lá  cheguei  intencionado  de  rasgar  o  compromisso  de  Mata-Cavalo.  Levava  todas  as recriminações  até  na  porta  do  chalé.  Mal  entrava,  logo  os  olhos  cor  de  planta  de  dona Esmeraldina,  ajudados  pelas  covinhas  de  seu  rosto,  esvaziavam  meu  saco  de  zanga.  Caía  no bem-bom,  nas  intimidades  do  caramanchão,  deslembrado  das  exorbitâncias  do  primo.  Mais das vezes eu mesmo gabava o moço:    — Tem muito invento, muito tino na cabeça.    Só perdi as estribeiras quando dei na papelada das contas com aquele disparate de tapete e almofadas que o doutor comprou para regalo do seu sertão. Bati pé, torci a barba:    — Seu Fontainha, esse sujeito perdeu a governança. Endoidou, seu Fontainha.    Papelada em punho, como se fosse gurungumba, investi contra o atrevimento dele na pessoa do escriturário. E foi sapecando a conta na mesa de Fontainha que garanti de escuma no beiço:    — Não pago nada! Acabou, fechou a rosca.    De  gênio  solto,  saía  e  entrava  na  saleta  do  escritório  de  fazer  das  portas  de  vaivém ventarola. Soubesse ele que Baltasar da Cunha andava enganado se cuidava que eu ia sustentar tanta  invenção  o  resto  da  vida.  Sem  sair  do  Livro  Verde  (“Desta  saleta  onde  vosmecê,  seu Fontainha,  tem  o  rabo”),  eu  andava  no  concernente  de  todos  os  tidos  e  havidos  em  Mata- Cavalo como se de meus olhos próprios visse:    — De nenhum sucedido de lá, por mais nanico, eu estou ausente.    Quanto  mais  falava,  mais  a  língua  dos  Azeredos  Furtados  ganhava  força,  assobiava  de chicote. Desaforo,  saliência de Baltasar da Cunha! Fazer gasto de mobília nova para conforto dos  seus  fundilhos  como  se  eu  fosse nababo  do  governo  ou  tivesse  fabrico  de  dinheiro.  Pois que  pagasse  ele,  do  bolso  próprio,  o  que  gastou  sem  o  devido  consentimento.  De  meu  é  que não via mais tostão: 
   — Acabou a safadeza, seu Fontainha.    O  escriturário,  cangotinho  recaído  nos  papéis,  deixou  que  o  temporal  de  Ponciano  de Azeredo Furtado desabasse lá fora. Parecia um rato, um camundongo enfeitado.        Mas  veio  o  natalício  de  dona  Esmeraldina,  o  dr.  Pernambuco  Nogueira  embarcou  na política, tive uns  ganhos  alentados na  especulação  da praça.  Reformei  a  sentença  em relação às  maluquices  de  Baltasar  da  Cunha  —  paguei  os  gastos  dos  estofados.  Como  a  mulher  de Nogueira  achasse  de  reformar  as  cortinas  do  chalé,  pedi  licença  e  dependurei  veludo  e veludinho nas portas e janelas da rua dos Frades:    — Releve dona Esmeraldina a desimportância da prenda.    Pagou  a pena.  Tive,  sem  esperar,  agradecimento  que muito tocou meu  coração. Uma  tarde, enquanto fazia trabalho de agulha, a moça prometeu passar uns dias em Mata-Cavalo:    — Desde que seja do gosto do coronel.    Como pede a regra da boa educação, não demonstrei estar desensofrido, embora por dentro eu desse  cambalhota de moleque, plantasse bananeira no  contentamento da notícia.  Sujeito de tirocínio,  manobrei  na  prudência.  Fiz  ver  a  dona  Esmeraldina,  para  que  ela  pegasse  mais confiança, que Mata-Cavalo requeria ainda uns reparos e confortos de modo a agasalhar dama de seu porte:    — Conto ver a obra acabada ainda neste corrente mês.    Não perdi tempo. Logo mandei  chamar Baltasar  da  Cunha  em  carta  de Fontainha, por  estar ele  meio  político  comigo,  de  relações  estremecidas.  Mas  foi  o  moço  aparecer  e  levar incumbência  pela  proa.   Que   ele,   sem   delonga,  metesse  Mata-Cavalo  no   figurino  mais adiantado:    — Quero tudo do bom e do melhor, sem precisão de regatear preço.    O  primo  dos  Nogueira,  desacostumado  com  tanta  franquia,  mostrou  espanto,  perdeu  a soberba.  Fontainha,  por  sua  vez,  testemunha  das  minhas  arruaças  por  causa  dos  gastos  do doutor  engenheiro,  caiu  das  nuvens.  Mas  ligeiro  pegou  chão  firme.  Abriu  os  bracinhos  de linha, apertou neles Baltasar da Cunha. Visse o doutor que por essas e por outras galhardias é que  ele não  desgrudava  do  coronel,  sujeito  avantajado  de tino, homem  de  arrojo,  que  sempre corria  na  frente  dos  progressos.  E  parado  diante  de  Cunha,  que  limpava  a  testa  em  lenço cheiroso:    — É o que eu digo, seu doutor. Sujeito atilado é o coronel.    Mão  enroscada  na  barba,  falei  que  era  do  natural  dos  Azeredos  Furtados  esse  jeito demoroso de andar em passo de boi e de muito ponderar antes do despacho final:    — Dou uma rês para não entrar na guerra e um curral para não sair.    Na  sustentação dessa grandeza, tive de abrir as burras do Banco da Província, raspar meus guardados  em  dinheiro.  Baltasar  da  Cunha  levou  vinte  contos  de  réis  e  o  dobro  queimei  na política de Pernambuco Nogueira, fora o brilhantão de ovo com que municiei o dedo de dona Esmeraldina  na  data  do  seu  natalício.  O  diabo  é  que  o  primo  dela,  sabedor  da  minha sofreguidão   no   embelezar   Mata-Cavalo,   deu   de   espichar   as   necessidades.   Não   sabia mariquice mais que inventar e até quadro de parede, uma peça de metro e meio, comprou para guarnecer  a  sala da herança. Não  sendo  eu  entendido nas  artes da borração, pouco  apreciei  o tingido  que  representava  um  lacrimal   onde  um  par  de  gansos,  retorcidos  de  pescoço, refrescavam      seus   por-baixos       no   azulinho    da    água,   enquanto     certa    moça    de    cabelo 
empolvilhado,  num  banco  de  jardim,  abanava  o  leque  na  companheiragem  de  um  galante enfeitadinho  de  rendas  e  penduricalhos.  A  dama  parecia  estar  dentro  de  um  repolho,  tão grande era o avantajado dos seus panos. Olhei e não gostei:    — Muita roupa, muita roupa.    Por  ser  de  fino  lavar,  a  obra  ficou  no  escritório  aguardando  condução  segura,  do  que aproveitou  Pergentino   de  Araújo  para  vistoriar   a   compra.   Com   ele,  veio  Pernambuco Nogueira, interessado em aquilatar o gosto do primo. Franqueei a peça. Pergentino e Nogueira miraram  e  remiraram  os  seus  pormenores.  O  aposentado  da  Justiça  ficou  mais  cativo  do anilado do céu:    — É vistoso, calha bem.    Nogueira disse que não, que bonita era a dama:    — Veja o porte, veja o afunilado da cintura!    A pedido deles, dei meu parecer. De modo a não descontentar nem um, nem outro, retorci a resposta  para  o  lado  mulherista.  O  libertino  que  fosse  trabalhar  dama  assim,  tão  vestida  e revestida, ia perder mais de hora no descascamento dela:    — É roupa demais, seu compadre. Tem jeito de armarinho.    Nogueira  mirou   Pergentino   espantado.   E   em   seguimento,   como  um  possesso,   largou gargalhada estrondosa, a ponto do charuto escapulir do beiço e rolar no tapete. Meio adernado sobre a escrivaninha, pediu o doutor que eu repetisse o parecer :    — Como é mesmo, como é mesmo?    Em  verdade,  se  não  sou  sortista,  bem  que  esse  meu  vistoso  viver  e  mais  os  gastos  da política davam comigo de rabo no barro. Mas dinheiro saía por uma porta e entrava em dobro pela janela. Nunca  os negócios  de  compra  e venda  deixavam  enfraquecidos meus  créditos no Banco da Província. O bolso do coronel  sangrava de todo o lado. Fontainha, que na nascença do escritório nem queria ouvir falar em paga (“Trabalho por gosto, pela amizade do coronel”), começou   a   encarecer.   Tive   de   socorrer   suas   aperturas  uma   dúzia   de  vezes.  Dava   os estipêndios e aconselhava:    — Seu Fontainha, seu Fontainha! Tenha pulso nos gastos.    Era afeiçoado a mim a mais não poder. Comprava as desavenças do coronel, copiava meus rompantes,  o  costume  natural  que  eu  sempre  tive  de  medir  sala  em passo  militar.  Respeitoso era  ele  que nem  fumava na  sala  ou  saleta  em  que  eu respirasse.  Cuidava  em  exagero  do meu bem-estar  e  quase  avariou  a  cara  de um vendedor  de  charuto por não ter  o  cigarrista  a marca do  meu  agrado.  Se  no  Taco  de  Ouro  o  frango  não  vinha  a  gosto,  lá  soprava  Fontainha  sua ventania. Nogueira não cansava de gabar os cuidados dele:    — É capaz de matar pelo coronel.    É bem verdade que andou uns meses adernado para o lado de Baltasar da Cunha, inclinação que  cortei  com  dois  berros  dos  que  sei  dar.  Voltou  depressinha  o  escriturário  e  quis,  como prova de devoção, cortar a amizade do moço engenheiro:    — Largo uma batelada de desaforos agora mesmo em rosto dele.    Fui  obrigado  a  segurar  a  raiva  de  Fontainha  pela  gola,  já  todo  galo  de  briga,  querendo destratar o primo dos Nogueira:    — Tenha modos, tenha modos.    Recompensei   o   zelo   dele   com  uns   adiantados   de   dois  meses.   E   foi   ainda   em   sua consideração  que  deixei  o  Hotel  das  Famílias. Não  que tivesse  queixa  de  Totonho  Monteiro, 
sempre cuidadoso do meu passadio. O caso é que o major não cansava de atirar nos costados de Fontainha a culpa pelo falecimento da firma que tive com João Fonseca:    — Uma pena, uma pena. Logo o compadre, homem direito, homem de bem.    A par  das péssimas  ausências  que  o major  fazia  dele, tratou Fontainha  de tirar pergunta na porta do Hotel das Famílias. Palavra vai, palavra vem — Totonho coçou a virilha em menção de  tirar  seus  metais,  faca  ou  garrucha.  Fontainha  fez  o  mesmo.  E  nesse  fazer  o  mesmo,  um correu assombrado do outro. O escriturário desabou rua abaixo e Totonho foi achado no sótão do Hotel das Famílias, mais amedrontado do que um gato na água. Fui obrigado a dar ganho de causa  a  Fontainha,  mas  com  tal  mestria  manobrei  que  Totonho  Monteiro  ficou  de  dar ajantarado em minha honra:    — Vai ser coisa grande, de sair nas folhas. De peru para cima.    Não  levei  arrependimento  por  deixar  o  major.  Já  de  muito  andava  de  namoro  com  outros recintos,  amadurando  a  ideia  de  levar  as  malas  para  estabelecimento  mais  condizente  ou mesmo  abrir  a  casa  da  rua  da  Jaca.  Fontainha  berrava  que  o  Hotel  das  Famílias  não  era capacitado para um suj eito de nome na praça, de um militar de minhas posses:    — Aquilo não passava de uma espelunca de cometa, albergue de caixeiro-viajante.    A  desavença veio  assim na medida. Lancei  ferros no Hotel  dos Estrangeiros,  casa  de  luxo, uma  exorbitância  de  fazer  orgulho, toda  de veludinhos  e berloques nos  cortinados.  O  tapetão do  assoalho  corria  na  frente  da  botina,  entrava  num  compartimento  e  saía  no  outro.  Gabei  a escolha:    — Sim senhor. Coisa de lorde, moradia de doutor.    Fontainha,  orgulhosão  do  meu  apoio  na  pendenga  do  Hotel  das  Famílias,  esmerou  nos confortos do patrão. Discutiu  o pagamento,  a  arrumação dos trastes  e  fez  sentir que  o  coronel Ponciano  de  Azeredo  Furtado  não  abria  mão  de  arrumadeira  descompromissada,  de  porte garboso:    — É militar de respeito, quer tudo nos escondidos.    Quando  apareci  no  Hotel  dos  Estrangeiros,  o  dono,  um  barrilote  de  cabelo  repartido  no meio, quase beijou meus pés:    — Padilha, um criado de Vossa Senhoria.    Como  eu  fosse  militar,  apreciava  o  pançudinho  falar  comigo  batendo  os  calcanhares.  De manhã,  corria  a  saber  do  meu  conforto,  se  passei  a  noite  a  gosto,  se  estava  a  contento. Esfregava as mãos, ria por qualquer invenção que eu fizesse:    — Vossa Senhoria tem muita graça. O amigo Fontainha tem razão. Vossa Senhoria tem muita graça.    Gostei  do  Hotel  dos  Estrangeiros  e  esse  gostar  aumentou  no  decorrer  dos  dias.  E  não demorou  que  aparecesse,  dentro  do  combinado,  moça  arrumadeira  mais  para  branca  do  que mulata. Abriu a porta do quarto e na frente dela veio aquele bom cheiro de cabrita nova. Olho a  meio  pau,  devassei  os  recurvados  da  arrumadeira  e  só  sustei  a  correição  no  rodapé  dos torneados do mocotó. Achando tudo de conforme, aprovei os préstimos dela:    — A menina pode vir todo dia no depois das sete.    Nem esperou que eu pedisse sua graça. Foi relatando, muito desembaraçada de modos e de boca, que tinha o nome batismal de Ritinha Guedes, mas que disso ninguém fazia uso:    — Sou apelidada de Titinha.    Saiu  montada  em  andar  de  cobra,  num  vai-lá-e-vem-cá  de  balançar  as  repartições  todas 
dela.  Felizão,   alisei   a  barba.  A  bem   dizer,   o   coronel   estava   garantido.   O  Hotel   dos Estrangeiros velava pelo meu bem-estar.        A rogo de dona Esmeraldina, cada vez mais embeiçada, amparei empréstimo do marido no banco  da  província.  Nogueira,  afundado  na  labuta  das  eleições,  requeria  fortes  dinheiros. Assinei  a  papelada  na  parolagem  do  caramanchão,  um  sábado,  longe  do  doutor,  tomado  que ficou  de  encabulamento  pelo  incômodo  que  dava  ao  coronel.  A  dona  da  casa,  antes  que  eu pespegasse  o jamegão  na  garantia  do  empréstimo,  disse  que  só  deixava  o  marido  viajar  em comitiva política se o coronel viesse, toda noite, fazer companhia a ela na rua dos Frades:    — Já preveni Nogueira. Não fico sozinha neste chalé.    Não precisei  levantar indagação —  os  olhos  de  água  de  dona Esmeraldina  limparam todas as impurezas  e dúvidas. Era mulher  sucumbida, domada pela minha lábia. Ponciano ia ter  em mão  o mais vistoso rabo  de  saia já trabalhado por um Azeredo Furtado  de  cem  anos  atrás  ou de todos os antigamentes. Pena que Juju não estivesse vivo para ver em que altura andava eu. Até figurava a voz do falecido:    — Sim senhor, seu Ponciano. Isso é que é saber escolher !    Outra tristeza que minava meu viver da cidade era não ter ao lado o parente Juca Azeredo, de  amizade  estremecida  comigo  desde  que  lançou  âncora,  por  motivo  de  tomar  estado  na família de Pires de Melo. Ia gabar meu gosto:    —  O  primo  é  morosão  nas  escolhas,  mas  quando  levanta  moça  é  coisa  de  grande ostentação.    Deixei  a  rua  dos  Frades  feliz  de  não  caber  nas  botinas.  A  poder  de  charuto  esfumacei  a praça da Quitanda, onde comprei carregamento de sabonete e água de cabelo. Estipulei:    — Quero do mais caro, mercadoria de aromar na distância.    Feita  a  compra,  ganhei  a  rua  do  Rosário  com  o  sovaco  sobrecarregado  de  sabonetes  e frascos  de  cheiro.  Foi  quando  esbarrei  no  velho  Gastão  Palhares,  que  navegava  de  cabeça decaída e guarda-chuva arrastado.  Se não estivesse em maré de alegria, era homem de mudar de calçada e deixar o velhote  seguir em passo de procissão. Como uma pilastra, plantei meus dois metros diante dele:    — Em calçada militar paisano não passa.    Palhares, ao dar comigo, abriu os braços e gabou meu viço, meu todo coradão:    — Venha de lá a receita, venha de lá o remédio.    Já dependurado no meu paletó, pediu, como  era de  sua mania, conselho  sobre uma pontada que desde mês afetava o seu vazio. E, como reforço, mostrou o sarro da língua e os amarelões das bochechas:    — O coronel não sabe receita para essas mazelas?    Desenganei o velho:    — Sou lá homem de receita! Curo os meus sofrimentos em perna de moça, seu Palhares.    Desacostumado   com   esse  meu  proceder   libertino,   Palhares,   sujeito  todo   forrado   de ipsilones e nove-horas, recuou como se tivesse levado um coice de mula:    — Veja lá como fala! Sou homem de respeito.    Sem outros encargos, deixei o velhote no meio da rua, tomado de afrontamento, atingido em sua  severidão  e  fui  jantar  cabrito  especial  no  Taco  de  Ouro,  na  boa  camaradagem  de Pergentino  de  Araújo.  O  tabelião  riu  de  estourar  as  braguilhas  ao  saber  da  tratantagem  que 
armei à custa de Palhares, crente de igreja, homem de andor, pai de meninas devocioneiras:    — O amigo teve graça. Só queria ver a cara de boi-pintadinho do Palhares.    Noite  alta, bem  andado  e  conversado, recolhi meu  cansaço  ao  Hotel  dos  Estrangeiros  sem relatar  a  Pergentino  meus  avançados  dentro  do  coração  da  prima Nogueira.  E  no  balancinho dessa esperança, dormi leve e foi ainda leve que subi, no dia seguinte, no ponteiro das oito, as escadas do Livro Verde, para dar nó de arremate em transação de vulto, uma compra de cristal e  mascavo.  Andava  eu  nesse  serviço,  preparado  para  enfrentar  os  negociantes  da  rua  do Rosário,  quando  vi  subir  Pernambuco  Nogueira  em  meio  de  suas  amizades  da  política,  uma gente que eu conhecia dos cafés e cochilos de esquina. Veio o doutor trazer suas gratidões pela garantia que dei ao empréstimo do Banco da Província:    — Não sei como agradecer ao amigo Ponciano.    Desconversei,   apertei   a   mão   das   amizades   dele.   Fontainha   aparecido   na   crista   da embaixada era o mais acendido de todos. Atendia um e outro, acomodava as visitas nos  sofás e  cadeirinhas.  Um  macilento,  de  pescoço  de  linha  e  óculos  de  vidro  esfumarado,  pulou  na minha frente de lápis em punho. Fontainha, mais que depressa, apresentou a pessoa dele:    — É o amigo Nonô Portela, que escreve nas folhas.    Como nunca apreciei, nem nunca vou apreciar, os bisbilhoteiros da imprensa, armei cara de réu e na  segunda volta da barba o macilento já estava fora do meu bafo, em recanto de  saleta, trocando  miúdos  com  Fontainha.  Disso  resultou,  passada  uma  semana,  uma  batelada  de louvaminhas a meu favor. Padilha, logo que desci para o café das sete, avisou que andava nas folhas. E aos berros, todo alvoroçado, mandou buscar a tal gazeta que falava do coronel:    — Está emprestada ao hóspede do quarto 23.    De pé  atrás,  li  o relato no receio  de  que  o macilento,  destratado por mim, tirasse vingança nas  entrelinhas,  como  é  da  natureza  do  povinho  das  gazetas.  Digo  que  achei  tudo  dentro  da verdade,  tirante  um  certo  exagero  no  dizer  que  verti  sangue  na  defesa  dos  espoliados  dos impostos e que mais de um trabalhador da roça retirei das garras do governo:    — Exageração, inventaria do gazeteiro.    No  escritório,  quando  Fontainha  chegou,  passei  ao  conhecimento  dele  o  fraseado  de Portela:    — Veja esse dislate, esse engrossamento, homem de Deus!    O  escriturário,  repimpado  na  cadeira,  leu  alto  o  que  a  folha  afiançava.  Metido  na  rebusca de um papel, fingi não ter ouvidos para essas letras de forma e até recriminei a invenção dele em gabar meus arrojos na briga dos impostos:    — Bobagem, coisa de somenos.    Acabada  a  leitura,  Fontainha  engrandeceu  as  artes  de  Portela,  a  sua  mestria  em  deitar  o preto no branco:    — É um danado, um bichão, esse Portela.    De   noite,   ao   dar   entrada   no   Hotel   dos   Estrangeiros,   encontrei   Padilha   de   espinha embodocada, portador de encomenda para mim. Bateu os calcanhares em continência militar e disse que era coisa da rua dos Frades:    — Da parte do dr. Pernambuco Nogueira.    Era  bilhete  cheiroso  de  dona  Esmeraldina,  com  parabéns  pelo  que  diziam  de  mim  as gazetas. Também de Fonseca, que encontrei na rua dia depois, recebi cumprimentos:    — Sim senhor ! O coronel anda por cima da carne-seca. Não sai das folhas. 
   Abraçado ao amigo, que não via desde o falecimento da firma de compra e venda, reclamei do sumiço:    — Onde anda essa bizarria que a gente não deita mais olho?    Peitinho afrontado, mil chiados de gato por dentro, Fonseca jogou a culpa das ausências na conta da asma. Era puxamento de ninguém fazer ideia. De noite, a mazela criava força de não ser ele homem de levantar uma pena. E desalentado:    — É uma sufocação, um mal-estar que o padecente pensa que vai morrer.    Tratei de levantar  o  ânimo dele.  Que não  era nada, que  fosse passar temporada nos pastos. Vinha de lá remoçado na segunda garrafada da velha Francisquinha:    —  Prepara  uma  beberagem  com  perna  de  rã  e  erva-de-bugre,  que  é  tiro  e  queda  em puxamento.    Encolheu  os  ombrinhos,  riu  murcho,  sempre  ajeitando  os  agasalhos  no  pescoço.  De  braço dado, em passeio de amizade, desci com Fonseca a caminho do Banco da Província, onde uma papelada  esperava  meu  jamegão.  Antes  da  despedida,  quis  notícias  de  dona  Celeste  e  da passarada:    — Como vai a moça? O laranjeira ainda está de canto aberto?    Firmei  compromisso  de  jantar  na  rua  do  Gás  lá  um  domingo  vadio.  De  dentro  dos agasalhos, a vozinha afrontada de Fonseca recomendou:    — Não precisa avisar. É aparecer, que a casa é sua.        Não ficou barato a louvação de portela. Fui sangrado em duzentos mil-réis e jantar no Taco de Ouro, que o magricela não era parco pedir. Desabafei no cangote de Fontainha:    —  Seu  compadre,  é  mais  em  conta  sustentar  um  burro  a  pão  de  ló  do  que  esse  povo  de imprensa a capim.    Fontainha, todo cheio de dedos, obtemperou que o amigo Portela  sabia trabalhar a caneta e não era qualquer um que pegava rapapé dele. Quando não gostava, triste do cristão:    — É cada desaforo! Até intimidade de família vem a furo.    Repeli  a  indireta,  de jeito  a  que  Fontainha  não  cuidasse  que  levava  eu  medo  de  letra  de forma:    — Quebro o chifre do calhorda que desabonar meu viver civil ou militar, seu Fontainha!    Na  asa  do  Foro,  onde  apareci  por  causa  de  uns  saldos  de  demanda,  esbarrei  no  dr. Secundino  Peralva,  um  velhote  seco,  devastado  de  cabelo,  que  nunca  dirigia  palavra  a ninguém.  Nogueira  falava  dele  recheado  de  raiva.  Que  era juiz  birrento,  cismático.  Pois  foi dar comigo num cotovelo de corredor e abrir as intimidades:    — Meus parabéns. Li o artigo. O coronel é dos meus.    E  sem  mais  aquela,  em  canto  retirado,  contou  que  nos  outroras  da  mocidade  também  tinha pegado  no  pau-furado  por  causa  do  imposto  da  farinha,  quando,  em  baderna  de  rapaziada, estilhaçou lampiões e portas, o que deu em resultado a vinda para a rua das tropas de linha:    — Quase que o governo vem abaixo. Andou por um triz.    Não  dormiu nisso minha  fama  de brabeza,  de  coronel  que  enfrentou  o poder  dos  impostos. Indo eu, dias mais além, a um almoço em louvor de Pernambuco Nogueira, em véspera de sair em comitiva política, a páginas tantas saltou, de palavra em riste, o bigode de um certo Janj ão Pereira  para  dizer  que  aquele  recinto  de  tanta  amizade  era  honrado  com  a  presença  de  um militar que em mais de uma dúzia de vezes jogou a vida em defesa dos necessitados, contra os 
desmandos do governo. E de dedo na minha direção:    — Esse militar é o coronel Ponciano de Azeredo Furtado.    Mastigava eu, sem saber de nada, asa de galinha, quando recaiu em minha cabeça a honraria de Janj ão Pereira. Pegado assim pela gola, nem tive tempo de limpar o beiço. E foi besuntado que recebi chuva de palmas de todos os circunstantes, com Fontainha na proa:    — Muito bem! Muito bem!    De  manhã,  estando  eu  no  sono  das  seis,  o  escriturário  investiu  pelo  quarto  munido  de gazeta:    — Veja que beleza, que coisa imponente!    Deitado,  barba  escorrida  no peitilho,  li  o  escrito  da  lavra  de  Portela.  Em  língua  floreada, falava  do  banquete,  das  peças  servidas,  da  grande  amizade  que  imperou  entre  todos,  dos delicados  discursos,  bem  como  da  honra  que  deu  o  coronel  Ponciano  de  Azeredo  Furtado comparecendo  aos  festejos  do  dr.  Pernambuco  Nogueira.  Em  seguimento,  discriminava,  em meu louvor, os serviços e ajutórios que prestei ao povo oprimido no torniquete dos impostos e taxações descabidas. E  fechando  a rosca das louvações: “Nessa batalha  contra  os desmandos e desmazelos estaremos sempre ao lado da figura altaneira de Ponciano de Azeredo Furtado”. Não pude, por ser justiceiro de nascença, deixar de reconhecer o preparo do magricela:    — Seu Fontainha, esse Portela é um corisco. Pega tudo no ar, seu Fontainha.    Nova remessa de pecúnia mandei para o bolso do gazeteiro, na ordem de duzentos mil-réis. Portela  ainda  relutou  em  receber  o  levado,  não  por  honradeza,  mas  por  achar  curtos  os dinheiros:    — Sou lá homem de duzentos mil-réis, seu Fontainha!    Rebati o atrevimento dele com aviso destemperado:    —  Seu  Fontainha,  diga  a  esse  filhote  de  lobisomem  que  não  dou  mais.  Não  encomendei sermão.    Em  vista  da  minha j urisprudência,  Portela  empalmou  os  duzentos  e  pediu  a  Fontainha,  em termos de amizade, que arranjasse com o coronel um adiantado de mais cem. Concordei:    — Isso é outro falar, seu compadre. Imposição é que não aceito.    Com  essas  macacagens  de  imprensa,  o  coronel-fez-isso,  o  coronel-fez-aquilo,  o  escritório de compra e venda apanhou enchente de povo. Era gente que mais queria falar comigo. Muitos pensavam que eu estivesse em véspera de entrar na guerra da política:    — Pelo visto, o coronel tem em mira coisa mais alta…    Desiludia os postulantes:    — Coisa nenhuma. Essa história de eleição é com Nogueira, o dr. Pernambuco Nogueira.    Não era mais homem de pisar a rua sem receber cumprimentos e parabéns. Muito faladinho miúdo ouvi em passagem de esquina:    — Aquele barbadão é o tal Ponciano.    Fingia  não  perceber,  pois  não  dava  como  ofensa  ser  tratado  de  barbudo  ou  grandalhão.  O que não admitia era deboche, risinho de pouco-caso.  Se o  suj eito faltasse ao devido respeito, levava  logo  meu  pé  de  pilão  pelas  platibandas  que  era  uma  beleza  presenciar  o  desabusado desfalecer na pedra da calçada. Além do coice, levava reprimenda:    — De outra feita, quebro o chifre do pai por ter cuspido no mundo filho tão deseducado.    Ia dizendo que não podia botar a cara de fora  sem que não juntasse povo em meu derredor. Com  tanto  embaraço,  tive  de  alugar  carruagem,  gastei  roda  de  tílburi  mesmo  nas  pequenas 
trafegações. Fontainha apoiava meu novo proceder :    — O coronel não pode perder minuto em conversa de esquina. É homem de negócio, militar graduado.    O  que  o  coronel  andava  era  felizão,  contente  de  ter  nascido.  Nogueira,  todo  da  política, estava  de  malas prontas.  Assim  que  virasse  as  costas,  entrava  Ponciano  velho no uso  e  gozo de  dona  Esmeraldina,  dama  de  muita  dificuldade  em  conceder  benefícios.  O  primo  Baltasar, que  nem  no  natalício  dela  apareceu,  era  todo  de  Mata-Cavalo,  das  engenharias  e  obras.  E ainda  por  sorte,  Pergentino  de  Araújo,  que  vez  por  outra  vinha  ao  chalé,  atacado  de  nova plantação  de  nascidas,  não  fazia  outro  serviço  que  não  espremer  suas  cabeças-de-prego.  A bem dizer, eu corria de pata livre em vereda limpa. Ponciano, esfregando as mãos, dizia de um ouvido para outro:    — Vai ser uma tarefa de safadeza de grande monta.    Nesse  entrementes,  pedi  a  Portela,  sem  interferência  de  Fontainha,  que  floreasse  uns rabiscos  na  sua  gazeta  a  meu  respeito,  coisa  leve,  onde  eu  figurasse  como  sujeito  galante, homem de saber entrar e sair em qualquer salão:    — Assim nesse teor, seu Portela.    Avivei as ideias dele com duzentos mil-réis e mais cem para guardar  segredo, que ninguém fosse  sabedor  dessa patuscada, nem Fontainha, nem  o  dr. Pernambuco Nogueira, nem  Castrão do Banco da Província:    — Ninguém, seu Portela.    Não tive  de  esperar para ver  o meu pedido  em  letra  de  imprensa. De  fato,  o magricela  fez melhor do que a encomenda. Inventou que eu andava de mala pronta, com passagem comprada. Ia  apadrinhar,  na  Bahia,  linda  moça  por  motivo  de  formatura.  E  nas  entrelinhas  levantava suspeita de que o coronel Ponciano de Azeredo Furtado talvez fosse pedir a mão da dita moça para  com  ela  tomar  estado.  Ao  acabar  a  leitura  do  floreado,  que  fechava  desejando  feliz viagem ao ilustre militar, não pude deixar de tirar o chapéu em louvor do sujeitinho:    — Vai ter ideia assim nos infernos!    E  foi nos maiores  cheiros  de  sabonete, barba penteada  e  cabelo  encharcado  de  loção,  que apareci na rua dos Frades para o ajantarado de rotina. Pelo visto, a artimanha tinha atingido o coração  de  dona  Esmeraldina,  que  falou  comigo  do  alto,  um  boa-tarde  sem  graça,  sem  dedo apertado. Nogueira, chegado em seguida, de chapéu ainda na cabeça, felicitou o coronel:    — Sim senhor. Li a novidade. E o amigo sem dizer nada, sem avisar a gente.    Desmenti, meio mofino, o propalado das folhas:    — Rebate falso, seu doutor, invenção das gazetas.    O  ajantarado  foi  todo  brincadeira  sobre  brincadeira,  o  doutor  querendo  saber  o  nome  da moça e eu nas encolhas, como caracol em sua casca. E a vadiagem só teve acabamento por ter chegado  na  rua  dos  Frades  embaixada  de  gente  política.  Nogueira  correu  ao  portão,  no alvoroço  de  fazer  todo  mundo  entrar.  Apreciei  os  intrometidos  que  deixavam  em  meu poder, de  sozinho  e  à  vontade,  dona  Esmeraldina  e  seus  ciúmes.  Se  não  sou  servido  de  tirocínio, sujeito  passado  e  repassado  em  rabo  de  saia,  bem  que  não  demovia  as  desconfianças  da mulher  de  Nogueira.  A  custo  pegou  convencimento  de  que  era  falsidade  o  propalado  pelas folhas. Jurei quebrar os chifres do escrevinhador de tal despautério:    — Isso não fica assim, dona Esmeraldina. Arrombo a cara do sem-vergonha que botou esse disparate em letra de forma. 
   Debelada  a  ciumeira,  de novo nas boas  graças  de  dona  Esmeraldina,  fui  dormir  em paz.  E no  decorrer  da  semana  não  fiz  outro  trabalho  que  não  apurar  o  coronel.  Não  havia  vidro  de cheiro  que  chegasse,  brilhantina  que  desse  conta  do  meu  cabelo.  E  foi  em  casca  nova,  um ternão  de  pano  caro,  que  lá  numa  tarde  de  sábado  levei  o  dr.  Pernambuco  ao  bota-fora. Inaugurava  o  amigo  sua  trafegagem  pela  política.  Ia  correr  longe,  em  comitiva  de  eleição. Deixei,  a  rogo  do  doutor,  que  Fontainha  engordasse  a  embaixada,  na  tarefa  de  preparar  as homenagens  e  comandar  os  foguetes.  Na  estação,  mais  alto  do  que  todo  mundo,  eu  via  o apressadinho do embarque. Abracei Nogueira, dei conselho a Fontainha, fui mordido em vinte mil-réis  por  Portela  e  só  sosseguei  quando  o  chefe  do  trem,  de  boné  vermelho,  liberou  as ferragens.  A  máquina  ainda  gemia  no  arranco  da  saída  e  eu  já  estava  de  tílburi  tomado, mandando o cocheiro tocar para o chalé:    — Rua dos Frades, ligeirinho que tenho pressa.    Antes  de  chegar, passei revista na roupa  que tinia nos  engomados. Espichei, no portão  dos Nogueira,  o  lenço  de  cheiro.  Ponciano  era  um  aromal  de  ser  admirado  em  distância  de algumas braças, mesmo em vento desfavorável. No primeiro repuxão da campainha, apareceu na varanda, bonita de cegar, a dona dos meus quebrantos.  Senti um vazio, um afrontamento no peito,  pelo  que  avancei  degraus  acima  em  passo  medroso.  Dona  Esmeraldina,  vendo  meu acanhamento, brincou comigo:    — Pode entrar, não tem cachorro.    E para dentro da sala:    — Mocinha, venha ver quem está chegando.    Fui recebido em onda de pó de arroz, o que rebateu meus cheiros de cabelo e lenço. A dona da  casa,  toda  agitada,  pediu  desculpas.  Ela  e  Mocinha  estavam  de  saída,  em  visita  a  uns parentes de Nogueira que moravam em chácara afastada:    — Estou por saldar esse compromisso desde o ano retrasado.    Outro  que  não  tivesse  a  minha  educação  de  berço  era  capaz  de  sair  no  destampatório,  na cobrança do prometido. Como sou cachaça de outros alambiques, menino educado em tabuada de frade, fiz o galante:    — Ora, dona Esmeraldina, não tome preocupação.    Nisso,  pelo  corredor,  endireitando  o  cabelo,  despontou  a  menina  Cerqueira  dentro  de  um vestido  da brancura  das  garças.  Ganhei  dela  a  cortesia  mais  fina —  ao  chegar perto  de  mim abaixou a cabeça e deu um passinho atrás como era do uso das damas dos rococós:    — Coronel, que prazer.    Fiquei  cativado  dela,  enquanto  a  dona  da  casa  (“Estou  atrasada,  estou  atrasada”)  corria na caça  do  leque  esquecido  nos  confins  do  quarto.  Digo  que  não  saí  da  rua  dos  Frades  de  olho abanando.  Foi  dona  Esmeraldina  sumir  no  corredor  e  eu  firmar  jurisprudência  num  certo estofado  da  menina  Cerqueira.  De  cima  dos  meus  dois  metros  eu  levava  todas  as  vantagens. Era  deixar  escorrer  a  vista  pela  folga  das  rendas  e  disso  tirar  proveito.  Como jacaré  velho, choquei  as  partes  expostas,  a  ponto  da  moça,  tomada  de  encabulamento,  retirar  da  brasa  de Ponciano  o  naco  infestado.  Para  que  não  pensassem  maldade  de  mim,  gabei  a  riqueza  do vestido:    — A menina tem gosto. O branco calha bem, é a cor que mais estimo.    Sem outros quefazeres, deixei a casa dos Nogueira com promessa de voltar no dia seguinte:    — Sem falta, sem falta. 
   Mas  estava  escrito  e  estipulado  que  o neto  de  Simeão  do  Sobradinho não  ia  aproveitar  as ausências  do  doutor.  Certo  incômodo  de  caxumba  j ogou  comigo,  por  duas  semanas,  nos lençóis  do  Hotel  dos  Estrangeiros.  Quase  mandei  chamar,  no  Capão,  a  comadre  Alvarina,  o que foi impedido pelo tratamento que recebi da arrumadeira Titinha. Desvelou, noite e dia, na cabeceira do padecente. Ordenei que ninguém, que não tivesse tido caxumba, viesse ao Hotel dos  Estrangeiros  em  visita  de  cortesia.  Com  isso,  liberei  Pergentino,  já  amedrontado  de contrair  a  maldade  e  da  inchação  descer  aos  compartimentos  de  baixo,  como  sempre  foi costume e gosto das caxumbas recolhidas.    — Seu compadre, pode até botar o sujeito roncolho ou na adjacência disso.    Amarrado no pau da cama, preso em receita de doutor, vi o tempo de Nogueira passar e eu sem  o uso  de  dona  Esmeraldina.  E  danei, j á no resguardo,  ao  saber  que  Selatiel  de  Castro,  a convite do primo Baltasar, fez passeata na rua dos Frades, enquanto eu curtia o  sofrimento da caxumba. O relato veio do próprio Nogueira,  em reclamação por não ter o coronel aparecido no chalé:    — A patroa diz que foi uma desconsideração, que estava pronta para cuidar da sua mazela.    Quase  arranquei  as  barbas  de  raiva.  Além  de  cara  inchada,  mais  parecendo  um  boi  de presépio, ainda levava fama de amigo  sem préstimo. Mas  sou  sujeito ladino e aproveitei para dizer  a Nogueira  que  não  era  do  meu  feitio  comparecer  em  casa  dos  amigos  estando  o  dono fora:    — No mais, doutor, estava amarrado na caxumba.    Nogueira rebateu meus escrúpulos. Se havia sujeito com franquia no chalé, era eu, amigo da família, muito apreciado de Esmeraldina:    — Bobagem, Ponciano. Prepare o ânimo para levar pito da patroa.    Compareci  à  presença  de  dona  Esmeraldina  para  lavar  a  testada.  E  afianço  que  pagou  a pena ficar encaxumbado. A mulher de Nogueira quase botou este Azeredo Furtado no colo. Foi derretimento sobre derretimento. Tive de dar segurança de que na primeira mazela corria para a rua dos Frades, ao que ela ponderou em modo acetinado:    — Tenho muito gosto em cuidar do coronel.    Entre  outras  provas  de  consideração,  falou  que  muito  sentiu  a  minha  falta  e  que  no desespero de saber notícias minhas, lá uma tarde, chegou a mudar de roupa para uma fugida ao Hotel dos Estrangeiros:    — Nunca cuidei que tivesse tanta estima pelo coronel.    Amolenguei — e nesse amolengar eu já achava engraçado o papelão de boitatá que  Selatiel de Castro representou na rua dos Frades. Contou a moça que o financeiro ficou encabulado de tanto ser chamado de Ponciano:    — Coitado de Castro. Vou mandar Nogueira pedir desculpas a ele.    De novo  fui  dono  da rua  dos Frades. A menina Mocinha  Cerqueira,  que não  saía  do  chalé, começou a abrir suas facilidades a meu favor — era um olhar, uma roupa mais sem-vergonha, um pedido para colher cravo no escurinho do jardim, bem como outras liberdades de rabo de saia mal-intencionado. Em mais de uma ocasião, tive de dar provimento a esses desejos dela, de afundar por veredas e nação de trepadeiras. Numa dessas viagens, enquanto dona Mocinha, meio recurvada, labutava em tirar uns beijos-de-frade do seu covil, vislumbrei, pelos folgados da  blusa,  dormindo  em  bercinhos  de  renda  e  fofinhos  de  pano,  aqueles  dois  mimosos particulares  dela  arrematados  em  feitio  de  botão  de  rosa.  Pelo  visto,  ninguém,  nem  dedo  de 
homem  ou beicinho  de  criança, havia  ainda trabalhado  esses  compartimentos  que  só tinham  a crescer com o uso  e os abusos. Em presença de tão lindos  encontrados, limpando a testa com lenço infestado de água de cheiro, ponderei em conversinha que só eu sei escutar :    —  Se  o  coronel  cai  no  entre  esse  par  de  murundus,  nem  com  reza  ou  busca  do  governo, ninguém vai mais achar o coronel. Ninguém!    Passei de largo por todas essas belezuras em flor apresentadas pela menina. Tratei de botar as barbas de molho, antes que dona Esmeraldina apanhasse nova remessa de ciúme. Por sorte, um Cerqueira, tio de dona Mocinha, com engenho em Macaé, pediu o desvelo dela para coisa de  doença  e  lá  foi  a moça, muito  em  desgosto,  cumprir  as  obrigações  da parentagem. Deixou despedida especial para mim:    — Diga ao coronel que levo muitas lembranças dele.    Respirei  aliviado,  queimei  charuto  em  comemoração  ao  embaraço  do  velho.  Montada  na mazela  do  tio  Cerqueira,  a  menina  deixava  Ponciano  de  mão  livre  na  rua  dos  Frades.  O coronel  podia  dar  trabalho  a  seu  olho  alcoviteiro,  fazer  suas  navegações  de  alto  bordo.  Por outro lado, o doutor de minhas causas era como não existido. Vivia no redemoinho da política, no  corre-corre  dos  comícios,  de reunião  em reunião.  Com  o  chalé  cheio  de povo, um  entra  e sai  de  formiga  carregadeira,  Nogueira  não  arranjava  nem  hora  para  a  soneca  da  digestão. Dona Esmeraldina reclamava:    — Isso não é vida, Nogueira. Isso é uma penitência.    Contava  eu,  esfriado  o  caldeirão  da  política,  levar  dona  Esmeraldina  a  um  passadio  de semana  ou  mais  em  Mata-Cavalo,  como  era  do  prometido  dela.  O  embargo  era  Baltasar  da Cunha.  Mal  aprontava  uma  tarefa,  outra já  nascia  adiante.  Era  um  nunca  acabar  de  obras  e gastos.  Em jeito  macio,  de  modo  a  não  melindrar  as  partes,  chamei  a  atenção  de  Nogueira, num ajantarado, para o arrastamento da engenharia do primo:    — O doutorzinho está custando a dar cabo da empreitada.    Antes não  apresentasse tal  embargo. Nem uma  quinzena  era passada, mordido  de jararaca, subiu  Baltasar  da  Cunha  as  escadas  do  Livro  Verde.  Varejou  na  tábua  da  escrivaninha  a papelada de sua engenharia, com intimação para que eu visse o andamento das obras:    — Não estou lá coçando os bagos como cuida muita gente, ouviu?    Parei  meio  atordoado  diante  de  tanto  rabisco  e  má-criação.  Não  era  de  meu  propósito ofender  o  moço,  pelo  que  deixei  sua  raiva  minar  por  baixo  e  por  cima.  Em  passo  de  zanga, medindo a sala de lado a lado, dedo na cava do colete, penteadinho como quem vai para festa, Cunha avisou que de outra feita que eu levasse reclamação para a rua dos Frades, largava ele o compromisso de Mata-Cavalo:    — Pego no chapéu e vou embora. Não sou moleque de ninguém.    E  sem  outras  indagações,  soberboso  como  entrou,  desceu  em  redemoinho  as  escadas  do Livro Verde, com Fontainha na rabeira. Parecia um pé de vento.        Não  mudei  os  modos,  não  dei  o  braço  a  torcer.  A  má-criação  de  Baltasar  da  Cunha  nem chegou na rua dos Frades. Caiu de lado e assim morreu. E quando, tempos mais tarde, o doutor engenheiro  voltou  ao  escritório,  viu  Ponciano  de  braços  abertos,  sem  queixas  ou  desgostos. Mão  no  ombro  dele,  requeri  notícias  dos  pastos,  como  andavam  os  encanamentos  e  as melhorias:    — Sou sabedor de que vai por lá uma grandeza, seu doutor. 
   Outras  demonstrações  de  fino  trato  dei  a  conhecer  ao  deseducado  no  decorrer  dos  dias. Torcia eu, a mais não poder, a minha natureza. Enquanto eu trabalhava no mimoso, Baltasar da Cunha  rebatia  com  afrontas  e  agravos.  E  teve  o  topete  de  desconhecer  minha  patente.  Era Ponciano só, despido das regalias do posto militar. Falava seco:    — Ponciano, vou montar uma olaria em Mata-Cavalo.    Com  o  andar  dos  meses,  nem  mais  consentimento  pedia  para  suas  inventimanhas  e  gastos. Como um criado dele, a mim competia pagar as despesas, sem chiado ou obtemperação:    — Passe o cobre que o recibo vem depois.    Tanta exorbitância acabou por contaminar Artur Fontainha, que passou a tratar as tarefas da praça, as transações de compra e venda, como rotina  subalterna. E não tardou que aparecesse com  imposições  e  rompantes.  Deu  de  tratar  comigo,  talqualmente  o  primo  dos  Nogueira,  de igual para igual:    — Não conte com meus préstimos no restante da semana, seu Ponciano.    Entranhado na briga  da política,  carrapato  do paletó  de Nogueira, passava  dias  sem vir  ao escritório,  deslembrado  das  contas  e  letras  de  carta.  Relaxava  a  guarda  dos  papéis  e  a escrivaninha  de  seu  uso  criou  poeira,  como  traste  de  belchior.  Quem  quisesse  encontrar  o focinho dele  era nos  cafés, nas  altas rodas do povo  endinheirado. Atrás do  engomadinho, por motivo  de  saber  deste  ou  daquele  papel,  fui  de  perna  própria  dúzias  de  vezes  vasculhar  os bilhares e ajuntamento da política. Bem que eu reclamava:    — Seu Fontainha, que sumiço é esse, seu Fontainha?    Resmungava. E resmungando despejava a culpa na trabalheira da eleição:    — Apresente queixa ao dr. Nogueira, fale com dona Esmeraldina.    Conhecedor  de  minha  banda  fraca,  o  escriturário  novas  confianças  tomou.  Nem  para receber  os  estipêndios  do  mês  ele  aparecia  no  Livro  Verde  —  mandava  um  estafeta  com bilhete atrevido. E não contente, vez por outra, na rua ou nos cafés, ainda sangrava o bolso do patrão em cem e duzentos mil-réis:    — Bote na caderneta dos adiantados.    Era  comendo  sapo  que  eu  aguentava  tanto  desaforo.  E  desaforo  maior  tive  de  engolir quando  Baltasar  da  Cunha,  com  parte  de  ajudar  o  primo  na  guerra  da  política,  largou  Mata- Cavalo na  desgovernança,  entregue  ao  vento  e  ao  agouro  das  corujas.  Veio  morar na rua  dos Frades  e  lustrar  os  fundilhos  nas  conversas  de  café,  ao  lado  de  Fontainha,  cada  dia  mais achegado a ele, não só na roupa como nos jeitos e tremeliques. Pulei num pé só:    — Não, isso não vai ficar assim!    De novo  dona  Esmeraldina,  com  as  suas  covinhas no rosto,  correu  em  socorro  do parente. Pediu  que  eu  tivesse  paciência  —  abrandada  a  fervura  da  política  o  primo  voltava  para  o arremate do compromisso:    — Também falta pouco para essa barafunda ter um paradeiro.    E de dedinho cheiroso bem no meu beiço mamador de charuto:    — O coronel sabe que não perde por esperar.    Não  fui  mais  homem  de  gozar  o  caramanchão  da  rua  dos  Frades.  Com  a  presença  de Baltasar  da  Cunha  no  chalé,  dona  Esmeraldina  ficou  arredia,  vendida  de  não  ser  mais  a mesma.  Sustei meus  sábados  e  domingos  de visita  e  ajantarado.  De  forma  a não  embaraçar  a moça, inventei viagem ao Sobradinho, onde meus préstimos eram pedidos:    — Vou aproveitar os rabos da semana para meter em dia umas tarefas de curral. 
   Mentira, o  Sobradinho mesmo é que não via o coronel. Ficava no Hotel dos Estrangeiros e nem da convivência de Pergentino eu podia gozar. O tabelião, chamado em carta, teve de fazer viagem  apressada  a  São  Fidélis,  na  defesa  de  uns  seus  interesses  em  terras  e  pecúnia.  Num desses domingos vagos, acabei no Capão, na boa intimidade de Juquinha Quintanilha. Foi hora de festa para a comadre Alvarina, que tirou da gaveta a toalha mais rica e serviu o frango mais tenro.  Comi  por  sete  bocas  e  dormi  meu  depois-do-almoço  nas  sombras  das  cajazeiras.  Na boquinha da noite, voltei ao Hotel dos Estrangeiros, deixando em poder da comadre promessa de nova visita:    — Prepare outra batelada de frango, dona Alvarina.    O  pior  é  que  essas  minhas  ausências  da  rua  dos  Frades  não  melhoravam  o  ânimo  de Baltasar da Cunha. Entrou o moço engenheiro pelo terreno do deboche. Uma tarde, na porta do Taco  de  Ouro, no meio  de uma miuçalha  de povo,  onde  imperava  gente  das  gazetas,  o primo dos Nogueira, de longe, estalando os dedos, pediu charuto:    — Venha de lá o mata-rato.    Dentro  do  neto  de  Simeão  fervilharam  todas  as  borbulhas  das  raivas  dos  Azeredos  e Furtados.  Andei  vai-não-vai  para  abotoar  o  atrevido  e  dar  com  os  abusos  dele  na  calçada, como  pedia  tamanha  falta  de  respeito.  Teve  sorte  o  doutorzinho.  Do  fundo  do  Taco  de  Ouro despontou  Pergentino  de  Araújo,  todo  de  tamanduá,  braços  abertos  para  o  quebra-osso  da amizade:    — Coronel, foi Deus que armou este encontro.    Mas vendo a mão de Baltasar da Cunha estendida na busca do charuto, o aposentado recuou como se o punho do doutor fosse cabeça de surucucu. O outro teve igual proceder. Fiquei entre as  duas  malquerenças  sem  atinar  com  os  motivos.  Só  mais  adiante,  na  porta  do  Café  Lord, longe do moço engenheiro, é que Pergentino soltou a fala num bafo de ódio:    — Filho de uma égua!    Parei na indagação do sucedido:    — Que é isso, Pergentino? O que aconteceu, homem?    Foi  montado  em  ódio,  ainda  contaminado  pela  presença  de  Baltasar,  que  o  tabelião  deu  a notícia funesta:    — Saiba que rompi com os Nogueira.    Quase desabei do alto dos meus dois metros, sem querer dar agasalho ao que ouvia:    — Diga de novo, homem, diga de novo.    Rilhando  os  dentes,  em  chocalho  de  cobra  na  desova,  o  aposentado  da  Justiça  tirou  os óculos e confirmou o barulho entre ele e os Nogueira:    — Foi ontem de tardinha, por causa do Selatiel de Castro.    Carreguei o amigo para o escritório do Livro Verde, que peripécia de tal penacho não podia ser tratada na rua, perto  dos  gazeteiros  e  abelhudos. Na ponta  da  cadeira,  cabeça pendida na limpeza dos óculos, desamarrou Pergentino o seu embrulho de mágoas e ofensas.  Sucedeu que de  passagem  pela  rua  dos  Frades  teve  a  desinfeliz  ideia  de  levar  seu  abraço  de  cortesia  à prima Nogueira, em quem não deitava vista para além de um mês, atarefado em São Fidélis no desembaraço  de uns  dinheiros  e  terras.  Como  era  do uso,  nem puxou  a  sineta  do portão.  Foi entrando na franquia de amigo e parente. Quando reparou já estava bem afundado no corredor, nos confins do chalé. Ia bater palmas, mas nisso percebeu barulho de brincadeira e risinho na saleta dos bordados. Pois foi olhar e receber, no cheio do rosto, aquela afronta — em recanto 
de  sofá,  todo  faltante  de  respeito,  Selatiel  de  Castro  tirava  os  maiores  proveitos  das  partes altas da prima Esmeraldina, de passar, sem resistência, o beiço do charuto nos despidos dela, do pescoço a outras repartições. Em defesa dos seus atingidos, ela só sabia dizer bobagem:    — Castro, deixe disso, pare com essa maluquice, Castro.    Sem  saber  que providência  tomar,  recuou  em  macio  de  gato  até junto  do portão  e  de  lá,  a poder  de  sineta,  alertou  a  casa.  No  repuxão  da  campainha  veio  a  prima  toda  respeitosona, como  saída  de um  trabalho  de  agulha  e  não  de um  trecho  de  safadeza.  E  ainda  reclamou por ver o parente do lado de fora:    — Que cerimônia é essa, primo?    E  com  a  cara mais  sonsa, já na  sala,  contou  que  Selatiel  de  Castro  (“Saiu  agorinha mesmo daqui”),  na  sofreguidão  de  arrumar  casa  e  tomar  estado,  não  deixava  a  rua  dos  Frades.  Era uma  penitência  —  volta  e  meia  aparecia  atrás  de  um  conselho,  de  uma  consulta  disso  e daquilo.  Queria  por  força  que  ela  fosse  ao  Rio  em  viagem  de  escolher  móveis  e  cortinados, uma  vez  que  a  noiva  de  Selatiel,  retirada  em  escola  de  freira,  não  podia  cuidar  desses arranjos:    — É um cabeça tonta, quer casar no fim do ano.    Pergentino  fez  o  educado.  Deixou  que  a prima  desse  a pantomima por  acabada,  depois  do que  falou  sério,  apresentou  sua  ponderação.  Que  ela  tivesse  mais  cuidado  no  trato  com Selatiel de  Castro,  sujeito dado  a mulheradas, que não tinha pejo  em  andar na  companhia das meninas das ribaltas. E na última dobra do conselho:    — A prima sabe como é a língua do povo, fala do que vê e do que não vê.    Pois  soubesse  o  amigo Ponciano  que mal  chegou  de noite  em  casa,  apareceu Fontainha  em sua porta, todo pomposo, amarradão de cara, parco de palavras. E antes de entrar, avisou que vinha em missão de cerimônia e não em visita de amizade:    — Sou portador de carta do dr. Pernambuco Nogueira.    Nas inocências do que ele trazia, ainda tentou desmontar a severidão de Fontainha:    — Deixe de etiqueta, homem. Que cara de enterro é essa?    O escriturário repeliu a intimidade. E espigado, muito arrumado, sempre parco de palavras, pediu licença:    — A missão está cumprida. Passe bem.    Deixou  no  liso  da  mesa  dois  linguados  de  carta,  uma  peça  viperina,  nefasta  para  o  seu recebedor. Em  letra  graúda,  como nas  defesas  do Foro, Nogueira repelia  o  conselho  que  ele, abusando  das regalias  que  desfrutava no  chalé, teve  a petulância  de  dar  a  dona  Esmeraldina, sem respeito pelo parentesco e boas normas da educação. E mais abaixo, no terminal da carta, estipulava o doutor que ele, Pergentino de Araújo, ficava proibido de passar, mesmo de longe, pela rua dos Frades, onde só morava família de respeito e merecimento:    — Assim nesse teor, amigo Ponciano, nesse teor malcriado.    Digo,  sem mentira, que  se  o  chapéu do mundo desabasse na minha testa não  causava maior estrago.  Nem  tive  ânimo  de  sair  da  cadeira,  como  se  atarraxado  estivesse  pelos  fundilhos. Pergentino,  sempre tirando  e botando  os  óculos,  ainda  contou  e recontou  esta  ou  aquela parte da carta, moendo e remoendo ofensas:    — Assim, coronel, nesse teor desaforado.    Em  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  o  que  mais  picava  como  ferro  na  entranha  era  aquela relembrança  do  sofá  —  a  mulher  de  Nogueira  no  beição  de  Selatiel,  manga  do  vestido  lá 
embaixo  e  o  libertino  trabalhando  de  menino  de  leite  no  desabotoado  dela.  Por  isso,  quando Pergentino pediu meu parecer, não tive palavra. Era como  se Ponciano tivesse perdido o dom da fala.        Por  uma  braçada  de  dias  não  fui  mais  homem  de  nada.  Andei  perdido,  longe  de  minha pessoa, fora do meu natural alegroso. Era um penar sem jeito, um sofrimento sem fim. De noite não  pregava  olho  e  suspiroso  ficava  até  de  madrugada.  Como  aparecesse,  nesse  entremeio, uma  chuva  espirradeira,  mais  de  aborrecer  do  que  de  molhar,  quedei  na  cama  do  Hotel  dos Estrangeiros. Queria delir a mágoa, desbastar a tristura que minava meu íntimo, depois do que o  coronel  ia  mostrar  ao  povo  dos  Nogueira  e  seus  adjuntos  quem  era  o  neto  de  Simeão  do Sobradinho. Como inauguração da nova vida, mandava comprar no Rio bengala de junco, mais ferina  que  um  par  de  soiteira.  E  já  avistava  Selatiel  escangalhado  na  minha  gana  e  eu  de bengala no cangote do sem-vergonha:    — Toma, filho dos desvãos dos corredores! Toma, saco de safadeza!    No  quentinho  do  travesseiro,  ajudado  pela  chuva,  eu  apurava  o  gênio  vingancista.  Não ficava ninguém escapado da minha justiça. Figurava Baltasar da Cunha corrido do escritório e eu atrás dele, aos berros:    — Toma mais dinheiro, seu filho de uma vaca, toma!    Em verdade, nem cheguei a comprar a prometida bengala. Chuva recolhida, Fontainha veio ao escritório em missão da rua dos Frades. Estranhei a visita e disso fiz deboche:    — Que milagre é esse, seu Fontainha? Deixou a política do dr. Nogueira?    O engomadinho afinou o palito do bigode e relatou, sem ligar ao meu falar mofino, que dona Esmeraldina  Nogueira  queria  um  particular  comigo,  por  estar  sozinha  e  muito  sentida  das minhas ausências:    — Espera o coronel, sem falta, na parte da tarde.    Fui. Não podia  denegar pedido  dela,  ainda mais  que  sempre tive bom tratamento no  chalé. Em  consideração  a  esses  passados,  pois  não  sou  de  sujar  no  prato  que  como,  no  dobrar  das quatro,  no  fim  do  charuto  da  digestão,  parei  tílburi  na  rua  dos  Frades.  Entrei  em  cima  das etiquetas:    — Como vai, dona Esmeraldina, como tem passado o dr. Nogueira?    Mas  foi  a  mulher  do  doutor  apresentar  aquele  seu  par  de  covinhas  para  o  coronel  nelas enterrar  os  desgostos.  Desarmado, já  de  veneno  recolhido,  tive  de  aturar  da  moça  queixas  e recriminações.   Que   eu   não   ligava   mais   amizade   antiga,   que   talvez   estivesse   mesmo compromissado com a tal menina do Rio:    — Deve ser isso, só pode ser isso.    Sou ligeiro de invenções. No lombo das tarefas do escritório e do Sobradinho atirei a culpa dos sumiços:    — Ando numa assoberbação dos diabos, dona Esmeraldina.    Sem  ouvidos  para  essas  ponderações,  garantiu  que  o  coronel,  gabado  por  tanta  gente,  até por moça do Rio, queria ver os amigos velhos pelas costas:    — Faz muito bem. É assim mesmo.    Estive a ponto de desembuchar, dizer das minhas prevenções, trazer a furo as exorbitâncias do  sofá. Mas em boa hora  sofreei o desabafo e a conversa correu macia no ventinho da tarde. Disse  dona  Esmeraldina,  muito  cheia  de  novidades,  que  Mocinha  Cerqueira,  nas  cartas 
remetidas de Macaé, não esquecia de mandar abraço especial para mim:    — Estou desconfiada que há sentimento nisso. Estou bem desconfiada, coronel.    Da menina Cerqueira pulou para o lado da política — relatou a dona da casa o aj udão que o primo dela, graças ao meu bom entendimento, estava dando a Pernambuco Nogueira, sem falar de Fontainha, que era um devotado, de não ter hora nem para dormir :    — Não sei o que seria de Nogueira sem os dois. Não sei.    E  assim,  nessa  boa  intimidade,  afundou  a  palestra  por  outras  veredas  até  que  na  crista  da onda veio o nome de Pergentino de Araújo:    — Não vejo a pessoa dele desde mais de uma quinzena.    Foi  como  se  eu mexesse  em  gaveta  de  lacraia. Pulou  dona Esmeraldina  do  assento  e muito ofendida, cheia de razões, contou o desgosto que o parente Araújo trouxe ao chalé. Estava ela na paz dos trabalhos de linha quando,  sem palmas ou puxada de campainha, entrou Pergentino como  aluado  da  cabeça. No princípio  cuidou  que  o primo  estivesse  atacado  de tontura  ou  de outro incômodo, tal a sua branquidão de cera. Tratou de correr ao armário dos frascos, no que foi impedida por ele em jeito desaforado, com gabos a certas partes dela. Inocente que estava, ainda brincou com Pergentino:    — O primo bebeu ou está em seu natural perfeito?    Como ele não sustasse o abuso, repeliu a afronta e fez sentir que andava em casa de família:    — Tenha respeito, veja onde pisa.    Foi nesse ponto que o atrevido mostrou risinho de pouco-caso e jogou veneno nas relações dela com o coronel e mais Selatiel de Castro. Perante tamanha calúnia, não teve outro remédio senão chamar a criadagem e varejar Araújo fora de porta:    — Não contei tudo a Nogueira com medo de suceder uma desgraça.    Peguei  fogo.  De  pé,  com  todos  os  diabos  do  meu  gênio  desembestado,  obtemperei  que ninguém denegria um Azeredo Furtado sem levar corretivo seguro:    —  Ninguém,  dona  Esmeraldina!  Vou  rebentar  esse  confiado  como  quem  rebenta  um  ovo choco.    E  sacudi  o  assoalho  do  chalé na  força  da minha botina,  como  se  o primo  dela  estivesse no debaixo da sola. Tanta vingança botou a moça alarmada. Que eu não tivesse tal procedimento, visse minha posição de homem de negócios, de pessoa de respeito:    — Tenha juízo, não faça criancices.    E melando a fala, pediu que desse a pendenga por desfeita ou nunca existida. Nogueira, em carta  autoritária, já tinha  exemplado  o  atrevimento  dele. Ademais,  achava  que  Pergentino,  de uns tempos para cá, andava de cabeça avariada. E se esse fosse o caso era para ter pena dele:    — Coitado! Pode acabar como o tio Epaminondas.    E  muito  triste,  muito  sentida,  contou,  por  ser  eu  como pessoa  da  família,  o  caso  do  tio  de Pergentino,  o  velho  Epaminondas,  que  contraiu  a  mania  de  trem  de  ferro  —  apitava  nas esquinas,  pegava  passageiros  nas  portas  e  carregava  uma  enorme  almotolia  para  azeitar  as engrenagens. Alta noite, corria a casa copiando o resfolegar da máquina,  sendo que em tempo de lua ninguém segurava, dentro de paredes, o trenzinho do velho Epaminondas:    — Acabou em cela de doido, coronel.    Senti  pena  e  logo  dei  a  conhecer  a  dona  Esmeraldina  que  a  diferença  com  Pergentino acabava naquela hora:    — É como não existida. Dou o caso como morto e sepultado. 
   Por  essas  bondades,  recebi  dos  seus  olhos  de  água  promessa  toda  especial.  Saí  do  chalé outro  Ponciano  de Azeredo  Furtado,  desarmado  de mágoas,  limpo  de prevenções. Na rua um ventinho de jasmim, saído do fundo dos quintais, jogou comigo nas infâncias, nos meus dias de menino, feliz como uma cambaxirra.        Não  tive  precisão  de  romper  a  amizade  de  Pergentino  de  Araújo.  O  tabelião,  tocado  pela carta de Nogueira, depressa avivou  seu incômodo do baço e foi em busca das águas de curar, não sendo esperado mais o resto do ano. Gostei do acontecido, que tirava o solteirão de minha presença.  Selatiel de Castro, atingido como eu pela língua do atrevido, pensou em viajar para as águas e nelas justiçar Pergentino sem pena e consideração:    — Está decidido. Faço o caixa-d’óculos engolir a afronta. Vou dar uma lição no patife.    Com palavras e conselhos, demovi o financeiro de tal proceder, que não calhava em sujeito de dinheiros a juro:    — Ademais, o caso já passou em julgado, amigo Castro.    Selatiel armou o palito do bigode, balançou a cabeça e acatou o meu parecer :    — O coronel tem razão. O caso passou em julgado.    Foi no fecho desse mal-entendido que a moça da rua dos Frades comprou de vez o restante de minha devoção. Como Baltasar da Cunha estivesse fora, em missão da política nas brenhas de  Santa Bárbara,  filei meus  ajantarados  e gozei,  em  dois  ou três  sábados,  o  caramanchão  do chalé  e no pescoço  da  dona  dele  dependurei prenda vistosa. Motivou  essa medida  o  cuidado com  que  a  mulher  de  Nogueira  teve  de  guardar,  dentro  de  grande  carinho,  a  data  em  que conheceu a minha pessoa. Rememorativo desse porte não podia passar em branca nuvem, pelo que  fiz  chegar na rua  dos Frades  o meu reconhecimento  em  forma  de  colar  de  duas voltas  do ouro mais maciço. Afrontada com a grandeza da lembrança, dona Esmeraldina quase nem teve fôlego para agradecer :    — Coronel, que exagero. Fico até encabulada, coronel.    Mais de um amigo, vendo este Azeredão Furtado tão de bolsa aberta, cuidou que eu tivesse perdido  as  forças  da  cabeça  e  caído  na  demência.  Nessa  arapuca  de  pau-de-flecha  caiu Juquinha  Quintanilha. Acolhi  o  compadre na velha  amizade  dos  ermos, perguntei pela patroa, agradeci uma remessa de mães-bentas mandada por dona Alvarina:    — A comadre é muito bondosa. Estou em falta com ela.    Andava a intimidade nesse ponto quando Juquinha, de cara  séria, chapéu desacomodado na mão, relatou que o pessoal dos pastos debochava das minhas figurações e manias de galante:    — É o que mais o povo apregoa nos trens e no comércio de Santo Amaro.    Segurei  o  relato  de  Juquinha  pelos  gorgomilos  e  mandei  que  o  compadre  repetisse  o apregoado a meu respeito:    — Que invenção  é essa,  seu Quintanilha? Diga de novo, bem rente desta concha de orelha, seu Quintanilha.    O  mulato  confirmou  —  a  gentinha  dos  currais  fazia  deboche,  ria  do  meu  viver  em carruagem, dos meus engomados e botinas de lustro. O mais gravoso é que o padre Malaquias só  esperava  ficar  limpo  de  umas  ferroadas  no  joelho  para  vir  ao  Hotel  dos  Estrangeiros acertar contas comigo:    — Soube de boca que não mente, de um próprio afilhado dele.    Como resposta, já esquentado das ideias, avancei contra o compadre munido de um rolo de 
dinheiro  e  repeli,  brandindo  a  maçaroca,  a  ousadia  dos  boiadeiros,  um  povo  que  mordia  o rabo na inveja de ver um cristão de camisa lavada e sapato polido:    —  São  uns  cevados,  seu  Quintanilha.  Um  lote  de  gambás  não  tem  tanto  bodum  como  essa corja de linguarudos, seu Quintanilha.    O  compadre,  arrependido  de  ser  portador  de  tal  desgosto,  procurou  desfazer  o  meu  nó  de raiva com as relembranças das boas amizades que eu tinha nos pastos. O que Juquinha queria era matar a conversa, dar o dito por não dito e voltar fagueiro da silva para o seu comércio do Capão. Não consenti. E foi picado de raiva, escuma no canto da boca, que pulei na frente dele espadeirando o vento do escritório com o maço da dinheirama:    —  Veja  isto,  seu  Quintanilha.  É  ouro  vivo.  Faço  dele  o  que  bem  quiser.  Até  rasgo,  seu Quintanilha.    E  na  cara  espantada  do  compadre,  como  um possesso, piquei  em  miudinho uma pelega  de cem mil-réis:    — É coisa que não ligo. Rasgo cem e rasgo mil, seu Quintanilha.    Por  falta  de  sorte,  vinha  subindo  os  degraus  nessa  precisa  ocasião  um  mulatinho  que ajudava Pernambuco Nogueira nas demandas do Foro. Veio saber do paradeiro de Fontainha e levou  a  notícia  de  que  o  coronel  do  Livro  Verde  andava  rasgando  dinheiro  do  governo, desmontado da cachola, atacado da mania de grandeza. Disso resultou que certa noite, na porta do  Clube  dos  Políticos,  um  encasacadinho  da  comandita  de  Baltasar  da  Cunha  teve  o despautério  de perguntar,  em tom  caçoísta,  se  o  coronel  acendia  charuto  em nota  de  conto  de réis:    — Ninguém fala outra coisa na cidade.    Lá  foi  o  braço  de  Ponciano  tirar  satisfação  na  focinheira  do  perguntador,  que  ficou estatelado  na  calçada,  tonto  das  ideias,  de  olho  embaciado.  Serviço  feito,  endireitando  a manga do paletó, inquiri os circunstantes em modelo debochativo:    — Qual de vosmecês mais quer saber se acendo charuto em nota do governo?    Com  essa  arruaça  da  porta  do  Clube  dos  Políticos,  matei  em  tenra  idade  o  apregoado  de que  eu  queimava nota  de  conto  de réis na  fumaça  do Flor  de  Ouro. Mas,  como  demonstração de  que não  fazia mesmo  caso  dos  dinheiros,  grandes  ou pequenos, mandei reservar  camarote cativo numa folia de Moulin-Rouge vinda do Rio dentro de toda a fama e escama. Lá no alto, a barba  graúda  do  neto  de  Simeão  dava  presença  quase  toda  noite,  e  quando  eu  não  aparecia, por  este  ou  aquele  embaraço,  Baltasar  da  Cunha,  chegado  das  brenhas  de  Santa  Bárbara, gozava  as  regalias  do  compartimento  ao  lado  de  Fontainha  e  do  tal  Portela  das  gazetas.  Aos sábados, vinha dona Esmeraldina, vistosona, bonitona, recoberta de joias e cheiros de frasco. O marido, para efeito da eleição, ficava no beiçal do camarote, no ponto de ser visto por todo o  mundo.  Cumprimentava  um,  dava  adeusinho  a  outro.  Saía  muita  vez  em  beija-mão  das madamas  de  outros  camarotes.  Dona  Esmeraldina  ria,  acenava  com  o  leque,  enquanto  eu, debruçado no  cangote  dela,  espichava  intimidade,  falava  grosso  de modo  a  ser percebido no recinto de baixo.  Sempre alegre, a mulher de Nogueira discriminava as famílias e conhecidos presentes:    — Aquela de vestido rendado é a viúva Pederneiras. O senhor de p ince-nez é o pai dela.    Castrão,  apesar  dos  dinheiros  a juros, não teve topete  de pegar  camarote  cativo. Vinha nas águas  do  coronel,  rondava  pelos  corredores,  trocava  fumaça  de  charuto  comigo  e  mais Pernambuco  Nogueira  nos  intervalos.  Não  perdia  vaza  de  chamar  a  minha  atenção  e  a  do 
doutor para os rabos de saia que passavam:    — Que pedaço, seu Ponciano! É a mulher do Cardoso. Veja os comprovantes da retaguarda, seu doutor.    O  que mais  Selatiel  apreciava  era  a  companhia  do pessoal  do palco  e  lá uma  ocasião teve ele  o  desplante  de  trazer  ao meu  camarote uma  cômica  de nome  Zizi,  que mostrava perna  de fora  na  ribalta,  um  palmo  acima  do  j oelho,  em  verdade  um  roliço  de  muito  proveito  e serventia.  Estando  dona  Esmeraldina  presente,  armei  cara  de  réu  condenado,  de  sujeito severão,  talqualmente  mostrava  nas  procissões,  nos  meus  dias  de  pau  de  andor.  Mas  por dentro, com alegria de bode velho em pasto de cabrita nova, bem que apreciei o todo vistoso da menina Zizi e no particular os recheios de que era portadora, tanto nas partes nobres como no  andar  de  baixo,  onde  apresentava  instrumental  de  muita  ostentação,  do  libertino  botar  em redoma e deixar em casa de comércio para ser visto e apreciado a tanto por cabeça. Quem não gostou e pegou mordida de cobra, capaz que por ciúme de mim, foi dona Esmeraldina. Vendo a  moça  das  ribaltas  muito  delambida  no  braço  de  Selatiel,  deu  uma  rabanada  e  largou  o camarote de quase desmontar os veludos e cortinados:    — Com licença, com licença.    Nogueira,  tomado  pelo  repente  dela,  só  teve  tempo  de  pegar  o  chapéu  e  sair  atrás  do  seu rabo de saia:    — Que tolice é essa, que tolice é essa?    Ainda  tentei,  em  pura  perda,  demover  a  zangada.  A  caminho  da  porta,  batendo  o  leque  na mão, jurou nunca mais botar os pés em teatro:    — Não estou para ser desfeiteada por essas sem-vergonhas.    Lá  foram por  água  abaixo  os meus  sábados  de  camarote. E na  garupa  desse  desgosto, pelo correr  da  semana,  outro  desgosto  chegou. Nicanor  do Espírito  Santo,  que  em  dias  da vida  do galo  Vermelhinho  andou  de  leva  e  traz  entre  Ponta  Grossa  e  a  varanda  da  minha  herança, desejava  tomar  estado  com Nazaré,  para  o  que  levava  o  braço  forte  do  seu  padrinho,  e  meu amigo, Caetano de Melo. A transação andou bem até que emperrou em dona Francisquinha. A velha estipulou:    — Casa se o menino lá da cidade mandar.    De modo  a  sanar  o  impedimento,  Caetano  de  Melo mandou  ao  Hotel  dos  Estrangeiros,  em missão  especial,  o  guarda-livros  dos  seus  negócios,  o  velho  Crispim  Ramalho,  munido  de carta  e  recomendações  para  mim.  Agigantou  Ramalho,  perante  meus  olhos,  os  merecimentos de Nicanor do Espírito Santo, que andava no derradeiro ano do aprendizado de carapinagem e já  tinha  de  seu,  presente  do  padrinho  dele,  oficina  montada,  além  de  um  pastinho  de  boas águas e terras de plantio:    — O doutor conta em toda linha com o consentimento do coronel.    Na  última  vez  que  vi  Nazaré,  ainda  em  Mata-Cavalo,  a  roxinha  andava  no  ponto  —  se continuasse,  tempo  mais  adentro,  sem  fazer  uso  dos  seus  utensílios,  era  capaz  de  perder  o viço, murchar de jenipapo. Foi o melhor naco de moça já aparecido nos pastos. Mesmo assim, Crispim Ramalho levou o rogado consentimento. Pela lembrança do bom passadio que tive em Ponta Grossa, em companhia do falecido Vermelhinho, fiz a vontade de Caetano de Melo e seu apadrinhado.  Dei  de  mão  beijada  os  belos  particulares  de  Nazaré.  Era  mais  um  pedaço  do Sobradinho que eu perdia. 
Enfim, num domingo puxador de vento e nuvem, bravo como as armas, veio a eleição. Só de carruagem, apanha um em casa, leva outro na boca da urna, gastei uma exorbitância. Toda essa grandeza, esse mão-abertismo, não era ponto  sem nó. Para quem  sabe ler, um pingo é letra — foi o que retirei de um desabafo de dona Esmeraldina, lá uma noite em que o chalé virou casa de  comício,  gente  esparramada  pelas  cadeiras,  sujeitos  tomando  confiança  que  ninguém  deu. Recriminou  ela, torcendo  os  dedos,  a trabalheira  da política —  desde meses não  sabia  o  que era um domingo em sossego, na paz do caramanchão:    — Mas já preveni Nogueira. Acabada essa barafunda, vou embora, vou descansar no mato.    E para reforçar  o que dizia retirou da gaveta um bando de receitados de doutor, todos  com imposição para que ela fosse vadiar, por um mês afora, em lugar sossegado:    — Não aguento mais. Vou sumir, vou virar bicho do mato.    Contei na ponta dos dedos os dias que faltavam para o prazo da eleição e já via a moça do chalé  de  sozinha  comigo,  em  ermo  de pitangueira,  em vadiagem  de ninguém ver.  De noite,  ia ser  um  chorar  de  cama  sem  governo,  de  começar  no  depois  da janta  e  afundar  para  além  do canto  do  galo.  O  povinho  do  diz  que  diz  ia  ter  conversa  para  muita  porteira  e janela.  Quem passasse, vendo aquela ostentação de moça na varanda do  Sobradinho, levava notícias de que eu estava de teúda e manteúda no debaixo de telha:    — O coronel está bem montado, o coronel soube escolher.    Outras  garantias  recebi  de  dona  Esmeraldina  de  que  estava  disposta  a  tirar  seu  descanso nos matos de Ponciano. Uma quinzena antes da eleição, em novo desabafo contra o torvelinho da  política,  lamentou  que  o  primo  Baltasar,  enterrado  na  guerra  de  Nogueira,  não  tivesse arrematado, como devia e era do trato, as obras de Mata-Cavalo:    — Uma pena, não é, coronel?    Respondi  ligeirinho  que  para  ter  a  honra  de  sua  presença  eu  mandava,  em  dois  tempos, ensabonetar  o  Sobradinho,  que  sempre  era  casarão  de  confortos  e  de  ares  limpos;  onde  ela podia, como dona, mandar e desmandar :    — Entrego as chaves do Sobradinho em sua mão, dona Esmeraldina.    De  fato,  na  garantia  de  que  o  sossego  dela  ia  ser  tirado  lá,  tomei  umas  providências  no concernente às confortagens da casa e fiz viajar para a minha  sala de visita uma guarnição de cadeiras  estofadas,  bem  como  tapete  de  conto  de  réis  que  levou  incumbência  de  expulsar  o couro  de  boi  estendido  perto  do  sofá  desde  os  dias  de  meu  avô.  E,  ainda  por  cima  dessas medidas, mandei meter sabão e água no assoalhado do Sobradinho:    — Quero ver tudo limpo, branquinho de cal, como pano de altar.    Por  outro  lado,  procurei  sanar  a  minha  diferença  com  o  doutor  engenheiro  e  seu  estafeta Fontainha.  Pedi  a  dona  Esmeraldina  que  limpasse  o  terreno,  de  vez  que  em  toda  essa 
dobadoura  eu  só  tinha  em  mira  resguardar  a  amizade  dela  e  fazer  o  dr.  Nogueira  subir  na política:    — De ficar lá em cima, na sala da governança.    Não tardou que o efeito dessa minha artimanha viesse à tona. Tanto que logo em seguimento, estando  eu  na  Farmácia  Brito,  onde  fui  comprar  pó  dental,  Baltasar  da  Cunha  sangrou  meu bolso  em  conto  de  réis  —  o  portador  do  pedido,  Portela  das  gazetas  de  imprensa,  levou também  a  sua  parte,  cem  mil-réis  e  dois  charutos.  Como  paga,  garantiu  lançar  em  letra  de forma novo floreado a meu favor :    — Coisa fina, como aquela do casamento.    E  na  manhã  da  eleição,  para  surpresa  minha,  bateu  Fontainha  no  Hotel  dos  Estrangeiros, manso  de  seda,  como  nos  antigamentes  do  escritório.  Era  outra  vez  o  Fontainha  de  espinha recurvada,  despossuído  de  arrogância.  Queria um reforço  em  dinheiro,  de modo  a  socorrer  o povo da votação. Pediu duzentos, dei o dobro:    — A restante parte, seu Fontainha, é para os fogos da comemoração.    De noite,  em terno vistoso,  apareci na rua  dos Frades.  O vento  arrepiava  o  arvoredo, pelo que  pensei  não  haver  gente  no  chalé.  Engano  —  a  freguesia  da  política  abarrotava  tudo, varanda  e janela,  de  escorrer  perna  em  assento  pelos jardins.  Empaquei  num  amontoado  de povo. Mas vendo Nogueira o meu vulto altão, gritou do meio da sala:    — Venha cumprimentar o deputado, homem de Deus.    De braço aberto, trocando fumaça comigo, Nogueira garantiu que a eleição estava no papo:    — Digo mais, seu Ponciano, se sou conhecedor de minha força corria para senador.    Não  pôde  continuar  a  gabação  —  Fontainha,  chegado  da  rua  naquela  justa  hora,  todo alvoroçado, deu notícia de que no Morro do Coco foi uma devastação de fazer dó:    — Portela veio de lá. Só imperou na boca da urna o nome do doutor.    Nogueira, feliz como peru de terreiro, chamou o primo Baltasar :    — Cunha, venha ouvir esta, venha ouvir esta.    O moço  engenheiro,  saído  de um magote  de  amigos, veio  atender  ao  chamado  do parente  e por mim passou  como  se  eu  fosse  cadeira  ou  sofá,  sem balanço  de  cabeça  ou  outra  qualquer cortesia. No centro da sala, Fontainha parecia um possesso, mais agitado do que ninguém com a devastação de Nogueira nas urnas do Morro do Coco:    — Coisa nunca vista, de todo mundo ficar de queixo mole.    Dona  Esmeraldina,  apertada  nos  panos  de  um  vestido  preto  que  muito  condizia  com  as brancuras  do  seu  todo,  correu  assustada  para  saber  que  rebuliço  era  esse  do  Fontainha.  E nesse  correr  deixou  cair  no  meu  terno  um  pedaço  de  olho  todo  especial.  Não  perdi  vaza, mostrei minha educação:    — Meus parabéns, dona Esmeraldina, pelas vantagens do doutor.    A moça, mimada por uns e por outros, depressa afundou no redemoinho dos cumprimentos e de  sua  presença  fiquei  desbeneficiado  o  resto  da  noite.  Sem  rumo,  fui  bater  em  varanda infestada  pelo  velho  Palhares,  que  falava  debruçado  no  ombro  de  um  sujeitinho  chupado, ofendido  da  vista,  zarolho  de  nascença.  Pelos  modos,  devia  ser  assunto  de  mazela,  uma  vez que Palhares reforçava sua ponderação com apalpadelas no vazio. Saía deles um bafo de água choca, de frasco de remédio, que até podia contaminar o chalé. Tratei de acomodar o coronel num  retirado  de  saleta,  onde  um  moço  cabeludo  prometia,  por  trás  dos  óculos  de  tartaruga, meter a camarilha toda do governo nas penas da lei: 
   — Uns ladrões, uns gatunos!    Sem  atenção  de moça,  dona Esmeraldina nas honras  da  casa,  logo peguei  enfado, pelo  que deixei a rua dos Frades em sapato de paina e fala miúda:    — Muito boas-noites. Vou chegando.    Voltei  no  outro  dia  e  o  mesmo  ajuntamento  empesteava  os  compartimentos  do  chalé. aporrinhado,  sustei  minhas  visitas  por  tempo  de  uma  quinzena.  Quando  a  sorte  rodou  em desfavor de Nogueira, voltei a dar o ar de minha amizade, para que não cuidasse o doutor ser o neto de Simeão amigo só dos dias alegrosos. Fui encontrar o chalé mudado, desimpedido de gente, limpo da varanda  aos  corredores. Apenasmente meia dúzia de  cabeçudos  cochichavam nos  cantos  como  em  velório.  O  único  que  ainda  carregava  o  andor  era  Fontainha,  sempre animoso, prometendo reviravolta no fim da contagem:    — Em Macaé o doutor tira a diferença. Em Macaé sou amigo de todo mundo.    Veio  a  numeragem  de  Macaé  e  Nogueira  cada  vez  mais  na  cauda  da  eleição.  O  chalé começou a  esvaziar até que o último cabeçudo não  foi mais presenciado. Restou um ranço de comício e charuto, logo retirado por dona Esmeraldina e sua criadagem na força de limpeza e creolina.  Desse  modo,  afogada  em  balde  de  água  e  sabão,  acabou  a  política  de  Pernambuco Nogueira.        Voltei  ao  meu  trabalho  do  escritório.  Fontainha,  murcho  e  encovado,  fez  o  mesmo.  Era  de coração lavado que eu via o engomadinho nos seus quefazeres de compra e venda, já de novo subalternista,  todo   entranhado  nos  meus   interesses.   Com  jarro   de   flor   enfeitou   ele   as ambiências do Livro Verde, fora outras vantagens para o meu conforto. Recoberto de desvelo, disse que o coronel carecia de um descanso no mato:    — Precisa retemperar as forças, tirar um sossego de meio mês.    Ri por  dentro,  que  isso já  devia  ser  artimanha  de  dona  Esmeraldina, preparando  o  terreno para  sumir  comigo  pelos  ermos  do   Sobradinho,  conforme  o  prometido.  Virei  a  barba, concordei com ele:    — O amigo Fontainha tem razão. Estou precisado de uma vadiagem.    A rogo  do  escriturário,  adiantei  dois meses  de  estipêndios  a Baltasar  da  Cunha, preparado para voltar a Mata-Cavalo e dar acabamento nas obras de  sua engenharia. Paguei em cima do pedido:    — Por isso não seja, seu Fontainha, por isso não seja.    Estando  a  ferida  da  política  aberta,  evitei  a  rua  dos  Frades  e  os  belos  olhos  de  dona Esmeraldina. Era proceder de boa  educação, pois não queria,  com  a minha presença,  agravar a mágoa do doutor, que devia andar montado em lombo de onça. Em verdade, era engano meu. Quando,  no  fim  do  mês,  as  folhas  estamparam  a  contagem  da  eleição,  encontrei Nogueira  na praça da Quitanda na maior bizarria. De gazeta de imprensa em punho, mandou que eu visse o seu figurão na guerra das urnas:    — Veja que beleza. Nunca esperei ganhar tanto voto, seu Ponciano.    Nem  parecia  um  derrotado  da  política,  mais  endividado  do  que  um  falido  do  comércio. Apontava  a  folha  de  imprensa  como  se  nela  estivesse  relatada  uma  grande  vantagem  a  seu favor :    — Veja isto, Ponciano. Voto em lugar que eu nem esperava.    E gargantoso, de varar a praça da Quitanda, Nogueira começou a culpar o dedo do governo 
por  não  ter  ele  saído  galhardão  da  briga,  sobrecarregado  de  voto  talqualmente  um  senador velho:    — Mas isso não fica assim, seu Ponciano. Vai ter revide.    E  batendo  as  costas  da  mão  na  gazeta  de  imprensa, jurou  que  a  camarilha  não  perdia  por esperar :    — Vou  escrever nas  folhas.  Sei  de podres,  seu  Ponciano.  Sei  de bandalheiras. Não vai ter cadeia para comportar tanto rato.    Na  despedida,  convidei Nogueira para um  almoço no  Taco  de  Ouro, um  comemorativo  em louvor do procedimento dele na demanda contra o governo e sua comandita:    — Faço empenho, doutor. Faço questão fechada.    Ficou  de  pedra  e  cal  estipulado  para  dois  dias  adiante  o  come  e  bebe  de  Nogueira.  Mas para  tristeza  minha  nunca  esse  comemorativo  foi  gozado  pelo  doutor  da  rua  dos  Frades. Sucedeu  que  estando  eu  no  escritório,  Fontainha  na  saleta  da  frente  de  novo  no  mexido  da papelada, apareceu o primo de dona Esmeraldina, lá sei a mando de que Satanás. Estranhei tal visita, uma vez  que  fazia  Baltasar  da  Cunha  em  Mata-Cavalo, no trabalho  de  sua  engenharia. Sem  cuidar  de  que  eu  estivesse  presente,  perguntou  em  que  buraco  podia  ser  encontrado  o capitão-do-mato  patrão  dele,  um  tal  de  Ponciano  de  Azeredo  Furtado?  E  na  prática  do deboche:    — No cocho ou no debaixo de cangalha, seu Fontainha?    Ofensa  assim nenhum Azeredo  Furtado recebeu  desde  a mais recuada  geração.  E  enquanto Fontainha, no outro lado do tabique, cochichava com o doutor engenheiro, eu a custo sustava a remessa  de  vingança  que  comprimia  os  compartimentos  do  meu  peito.  Foi  a  valência  de Baltasar da Cunha. Quando a raiva do coronel arrebentou as comportas, tudo levando na ponta da botina,  o  atrevido já  estava  fora  de mão. Para não perder viagem,  despejei  o meu  ódio na cabeça do escriturário:    —  Seu Fontainha, que pensa esse doutor,  seu Fontainha? Cuida que  sou boneco de engonço que não boto reparo nas deseducações dele, seu Fontainha?    Para  espanto  meu,  o  ofendido,  num  arranco,  fechou  a  escrivaninha  e  de  dedinho  no  vento repeliu a minha obtemperação:    —  Veja  lá  como  fala!  O  doutor  não  é  moleque  de  curral.  É  moço  formado,  que  merece respeito.    E aos trancos e barrancos desandou escada abaixo. Foi corrida salvadora — meu dedão de vergar  chifre  de  boi  por  um  nada  não  segurou  a  rabeira  do  fugido.  Na  crista  da  raiva  ainda corri  para  a  sacada  do  Livro  Verde,  de  onde  soltei  meu  vozeirão  de  pasto  enferrujado  no desuso da cidade:    — Vem cá, filho de uma porca!    Juntou gente, lá embaixo, em derredor de Fontainha, todo afrontado, pronto a armar comício na  beira  da  calçada,  o  que  desmanchei  ao  descer,  de  dois  em  dois,  os  degraus  da  escada.  O arrumadinho,  em  carreira  assombrada,  afundou  na  primeira  esquina.  No  meio  da  rua,  mão entrouxada no alto, berrei outra vez:    — Sacana! Cachorro!    Digo  que  houve  rebuliço  do  maior  na  rua  dos  Frades,  ao  chegar  lá  a  notícia  do  sucedido. Fontainha foi pedir asilo aos Nogueira e Baltasar da Cunha tomou as dores do amigo. Rompeu seu compromisso de engenheiro de minhas obras. Firmou ponto de vista: 
   — Não boto mais os pés em Mata-Cavalo.    Na  esteira  da  desavença, veio Pernambuco tirar  a  limpo  o havido  e  acontecido. Refutei  as ofensas do moço engenheiro e de Fontainha fiz gato-sapato:    —  Um  vira-bosta,  doutor,  um  sujeitinho  que  a  bem  dizer  peguei  de  fundilho  rasgado,  na porta do Banco da Província.    Nogueira virou, mexeu, mediu  a  saleta  em passo de batina lustrosa, limpou  a testa,  e  falou. Deixei  o  doutor  soltar  a  língua,  como  fazia  nas  demandas  da  Justiça.  No  fim,  como  quem presta um favor, disse que eu devia ter cuidado:    — Sou amigo do coronel, sou primo de Baltasar.    Já  de pulga  atrás  da  orelha, revirei  a barba.  E bem  achegado  ao  doutor,  de não  caber uma folha no entremeio, inquiri mais ou menos assim:    — Onde quer o amigo Nogueira chegar?    Limpando  a  testa  em  lenço  aromoso,  o  doutor  fez  ver  por  mais  isso  e  mais  aquilo  que Baltasar  da  Cunha,   engenheiro  de  obras,  homem  de  diploma,  podia  pedir  o  que  bem entendesse  pelos  trabalhos  de  Mata-Cavalo,  que  a  lei  era  por  ele.  Se  levasse  o  caso  na Justiça, não havia escapatório:    — O coronel perde em toda a instância.    Dei o desespero:    —  Então,  seu  doutor,  sou  desconsiderado  e  ainda  vou  acabar  com  a  bunda  no  banco  dos réus?    Nogueira, diante dos repuxos que eu dava na barba, pediu ponderação. Não ia permitir que amizade  tão  grande  tivesse  fim  tão  vasqueiro.  Mas  que  em  mão  de  desembargador  o  primo Cunha ganhava a causa, isso ganhava:    — Sem apelação, Ponciano. Sem apelação.    Na presença de tamanha afronta, a natureza de cobra do coronel saltou pela boca. Com dois murros na escrivaninha, desafiei Nogueira a mover questão contra a minha pessoa:    — Até que vou apreciar, doutor. É do que mais careço, doutor.    Nogueira,  que  só  conhecia  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  em  roupa  de  cidade  e  nunca  em deseducação dos matos, tratou de retirar a sua doutorança dos arredores de meus azedos. Deu a  conferência  por  acabada,  tão  no  afogadilho  que  esqueceu  na  borda  do  sofá  uns  papéis  do Foro. Vi Nogueira sumir na escada e atrás dele a minha sentença:    — Safado!    Livre do doutor, desbastei o restante da raiva nos móveis e utensílios. A cesta dos rasgados subiu  de  balão  e  desmontei  a  escarradeira  na  ponta  da  batina.  E  quando,  um  quarto  de  hora adiante,  Selatiel  de  Castro  subiu  a  escada  do  Livro  Verde,  ainda  andava  eu  afundado  em mágoas.  Vendo  o  desarranjo  do  escritório,  um  alvoroço  de  campo  de  batalha,  o  financeiro recuou, já arrependido da visita. Mandei que entrasse:    — Pode vir. Não tem cachorro, não tem cobra.    Não  perdeu  Selatiel  vez  de  entrar  no  mérito  da  demanda.  Disse  estar  a  par  do  rebuliço, coisa sem pé nem cabeça, que muito depunha contra as ilustrações minhas e do doutor :    — Criancice, bobajada.    Não  consenti  que  Selatiel  tomasse  o  gosto  da  cadeira.  Fui  logo  obtemperando  que  não admitia insulto. Que o doutor e mais o primo dele puxassem pelos seus direitos, que dos meus cuidava eu. E, parado na frente do financeiro, mostrei a barba: 
   — Não uso este utensílio para enfeite. Não sou coronel por benefício do governo.    Como  entrou,  saiu  Selatiel  de  Castro,  murcho  e  de  missão  gorada.  Para  que  não  levasse agravo  de  mim,  acompanhei  o  financeiro  na  porta  da  rua.  Agradeceu  a  cortesia  e  enquanto ajeitava  o  chapéu  pediu  que  eu  ponderasse  melhormente,  que  levasse  em  conta  a  muita consideração que por mim tinha dona Esmeraldina Nogueira:    — É amizade que o coronel deve prezar.    Andava  a  malquerença  nesse  pé,  eu  afiando  as  armas  contra  o  doutor  e  sua  camarilha, quando,  meia  dúzia  de  dias  andados,  de  manhã,  mal  o  moleque  da  limpeza  fez  as  suas serventias,  parou  carruagem  na  porta  do  Livro  Verde.  Olhei  bem  no  instante  de  ver  aquele chapéu  de  renda  subir  e  por  baixo  dele  a  cara  bonita  da  mulher  de  Nogueira.  Tive  um quebranto  da  cabeça  aos  pés,  pois  não  andava  preparado  para  encontro  tão  cheiroso.  Fui receber dona Esmeraldina no começo da escada e até ajudei  seu pezinho de palma a vencer o último  degrau.  Só  de  gozar  aquele  riso  de  covinha  no  rosto  fiquei  mudado.  Nem  parecia  o coronelão desmontador de móveis e utensílios. Meus ódios, um a um, meteram o rabo entre as pernas  e  sumiram.  Ficou  dona  Esmeraldina  no  meio  da  sala  para  melhor  vistoriar  os compartimentos do escritório. Gabou os armários e de mão própria foi abrir os cortinados das janelas:    — Com licença, com licença.    Não deu confiança de tocar na postema da desavença. Era como não existida. Ao  sair, toda bonita, sombrinha na ponta do dedo, intimou o coronel a jantar no chalé:    — Faço questão. É aniversário de Nogueira.    Ensarilhei  as  armas.  Enterrada  nas  covinhas  do  rosto  de  dona  Esmeraldina,  acabava  a guerra entre o coronel e o doutor da rua dos Frades.        Aparelhado de presente rico, uma bengala de castão de ouro, parei carruagem na porta dos Nogueira  na  noite  aprazada,  que  era  de  segunda-feira.  A  casa  estava  fechada,  o  portão  na segurança  do  cadeado.  A  menina  Julinha  Rocha,  vinda  de  uma  ladainha,  avisou  que  dona Esmeraldina e o doutor desde muitos dias tinham seguido para as águas:    — Só ficou o primo Baltasar.    Não sou sujeito de passar recibo, pelo que fingi esquecimento:    —  Muita  razão  tem  a  menina.  Sou  um  cabeça  tonta.  O  doutor  até  almoçou  comigo  em despedida de viagem.    Digo  que  por  dentro,  na  intimidade,  fiquei  derrocado,  de  sentir  uma  friagem  na  boca  do estômago  e um repuxão no peito.  Dormi mal,  contraído  de um  embezerramento  sem  fim.  Mas cuidei que todo esse vento de tristeza logo amainasse, o que foi pensar enganoso, uma vez que o meu padecer criou força no adentrar da  semana. Era cada ferroada de não dar  sossego. Nos travesseiros  do  Hotel  dos  Estrangeiros,  de  papo  para  cima,  eu  contava  as  horas  e  muita madrugada  vi brotar  sem pregar  olho.  Era  como  se  eu  fosse  menino  de primeira paixão.  Era como se o coronel Ponciano de Azeredo Furtado estivesse possuído de mazela de boi, que faz o padecente ficar murcho e de vontade desfalecida. Vivia na esperança de uma carta ou bilhete de  dona  Esmeraldina.  Era  eu  dar  entrada  no  Hotel  dos  Estrangeiros  e  Padilha,  batendo  o calcanhar em jeito militar, dizer que não tinha chegado nada:    — O estafeta já passou. Agora só amanhã, coronel.    Em  vista  desse  meu  todo  acabrunhado  e  encolhido,  certa  noite  Titinha,  a  moça  das 
arrumagens, entrou no quarto suprida de arruda de rezar quebranto. Vasculhou o recinto com o nariz e garantiu de saída:    — O coronel precisa de uma devoção de descarrego.    Na  borda  da  cama,  braço  de  reza  estendido,  sem  esperar  meu  consentimento,  inaugurou Titinha a  sua  simpatia, enquanto eu, atordoado pela arruda, descansava no travesseiro. A mão da mulata passeava  seu ramo verde, do meu umbigo  à barba, de modo  a desencravar, na raiz, todos os quebrantos do padecente. Estava a benzedeira nessa devoção, busto a meio palmo do meu cabelo de fogo, quando, sei lá como, pulou dos descobertos de suas chitas, tremido como geleia,  aquele par  de  estofados  de boa nascença  e melhor parecência. Digo  e repito,  se há na praça um sujeito capacitado para trabalhar nessas utilidades, nesses crescidos do debaixo das blusas,   esse   um   sou   eu,   militar   muito   praticado   em   casas-de-porta-aberta,   de   moças desonestadas.  Sou de especial num mimoso, num passa-mão educado, num roça-barba abridor dos  apetites.  Pois  foi  a  rezadeira  apresentar  seus  desabotoados  e  logo,  num  redemoinho  de lençol e travesseiro, o coronel mostrar o uso e os abusos que sabia fazer da patente. E o resto da noite passei no  aproveitamento  de todas  as belas  serventias  da moça  arrumadeira. No  fim dos préstimos, já a madrugada no gogó dos galos, estipulei limpando a barba:    — A menina pode vir todo rabo de semana.    Assim, montado em lombo de mulata, fui varando os dias. Passou uma quinzena e mais outra dobrou  a  esquina —  e nada  dos Nogueira.  Lá uma tarde, por notícia  de  Portela,  soube  que  o doutor havia  feito  as pazes  com  o governo  e  esperava incumbência de vulto  em repartição de Niterói. Devia ser verdade — Baltasar da Cunha, que vivia meio adernado, arredio dos cafés e bilhares, caramujo emperrado em sua concha da rua dos Frades, voltou a meter os dedos nas cavas  do  colete  na  companhia  de  Fontainha,  outro  safardana  que  dobrava  esquina  e  saltava muro só de medo da minha sombra. Falei da boca para o ouvido:    — Nogueira, o porco sujo, vai comer no cacho do governo.    Nesse entrementes, tive um baque forte nos negócios de compra e venda. Perdi dinheiro de abalar  qualquer um  que  não  fosse  o  neto  de  Simeão.  E  dos pastos,  como  sobrecarga,  chegou notícia  nefasta.  Um  pé  de  água,  caído  de  surpresa,  engordou  os  corgos  e  alagados,  do  que resultou muito dano para o  Sobradinho e adjacências. Francisquinha, na frente de  suas pretas, teve  de  sair  em  carro  de  boi  para  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos,  onde  recebeu  hospedagem  e regalias  do  dr.  Caetano  de  Melo.  Tanto  que  a  velha,  estando  na  porta  o  casamento  de  sua afilhada Nazaré  com  o protegido  do  doutor,  lá  fez  moradia.  Ordenei  que  Juquinha  fosse  meu olho  nas  avarias  dos pastos.  O  compadre,  sem  medir  os prejuízos  do  seu  comercinho, partiu para  a  vistoria.  Ao  voltar,  trouxe  parecer  desgostoso  —  o  rombo  das  águas  não  cabia  em prejuízo de cem contos, sem contar as cabeças de gado perdidas e paus de mourão tombados:    — Vai bem para mais disso, compadre.    Na  esperança  de  descontar  os  desmandos  das  águas  nos  ganhos  do  comércio,  abri  as comportas da especulação. Em menos de uma quinzena comprei açúcar em grosso, mais de um armazém  de  mascavo  e  cristal.  A  barba  do  coronel  não  saía  das  casas  de  negócio  da  rua  do Rosário,  em  visita  de  esperteza.  Queria  sentir  o  pulso  do  povo  de  compra  e  venda.  Todo mundo  receava  uma  quebra  no  preço  e  isso  dava  campo  limpo  aos  arrojos  de  Ponciano. Desprevenido de pecúnia, pedi empréstimo ao Banco da Província. Selatiel nem pestanejou:    — É o que o coronel quiser. Tem crédito aberto e sem limite.    O  próprio  Selatiel  de  Castro  trouxe  ao  escritório  um  tal  de  Lobão  Siqueira,  senhor  de 
chaminé de usina. Estava encalacrado, rodeado de dívidas, os unhas de fome dos usurários já cheirando  desgraça.  Sem  outra  saída,  vendia  todo  o  fabrico  de  uma  safra  a  preço  de enforcado:    — O coronel que faça o preço.    Cocei  a  barba,  andei  de  lá  para  cá,  como  aprecio  fazer  em  hora  de  deliberação.  Selatiel, perna cruzada no conforto do sofá, avivou a minha coragem:    — Por dinheiro não seja, amigo Ponciano.    O negócio era dos bons, carne sem osso. Peguei a compra pelo chifre e fiquei dono da safra do usineiro.  O  fecho  da transação teve  ensopado no  Taco  de  Ouro. Portela,  que  sabia  cheirar fartura longe, tomou parte na mesa e ainda levou duzentos mil-réis na invenção de que andava de meirinho na porta,  em risco  de perder  os trastes  de  casa.  Castrão, barriga  acotovelada  de galinha, bateu no meu ombro e sentenciou:    — É o que eu digo. Não tem para negócio de arrojo como o coronel.    Tanto rendeu o barulho da compra que Fonseca, largando as quenturas dos agasalhos, correu ao Livro Verde. Atacado de puxamento, às voltas com os chiados do peitinho magro, não teve ânimo de subir. Desci para atender o amigo, que foi logo recriminando meu proceder :    — O coronel perdeu o tino? O povo da rua do Rosário anda apatetado de tanta compra sem pé nem cabeça.    Sempre  ajeitando  os  agasalhos,  fez  ver  que  a  mercadoria  andava  inclinada  a  descer  de preço, a ficar no rés do chão, de menor valia que farinha de pau. O conselho que apresentava era que eu devia torrar os estocados a preço de queima:    — Mesmo no prejuízo, mesmo pela metade.    Desconversei,  no  que  sou  mestre  e  doutor.  Onde  andava  o  sabiá-laranjeira?  E  avivando  a brasa do charuto:    — Como vai o desalmado? Ainda está muito cantador?    Boca de coruja, a de João Fonseca. Bem o chiado do  seu afrontamento não havia  sumido  e já  o  açúcar  entrava  em baixa. Foi uma  queda  de ninguém relembrar  outra  igual. Um vento  de urubu varreu  a rua  do  Rosário,  de  quebrar no meio negociante  forte,  gente  de  créditos  até na praça  do Rio. Da noite para  o  dia, vi  escorrer,  como melado  em  cuia  furada,  os meus  ganhos todos. Dei de ombros:    — Dinheiro vai, dinheiro vem.    Continuei nas charutadas de porta de café, mais pomposo do que nos dias de fartura. O pior é  que  o  Banco  da  Província,  em  vista  da  calamidade,  deu  de  apertar  os  parafusos  das cobranças. No terceiro mês da desgraça, recebi, trazido por um recadeiro, papel de aviso  em que  os  usurários  ameaçavam  levar  as  dívidas  de  Ponciano  na  barra  da  Justiça.  Mal  li  a intimação,  corri  no  rasto  de  Selatiel,  em  quem  não  botava  vista  desde  semana  e  tanto.  Fui chegando e perguntando de papel no ar :    — Onde está o safado que garatujou esta exorbitância?    Cabeça rebaixada, todo mundo  enterrado na  escrituração das  contas, ninguém  abriu  o bico. A  muito  custo,  em  fala  ligeira, um  miudinho  que  vivia  em  contagem  de  dinheiros por  trás  de um aramado veio dizer que Selatiel de Castro não estava nem era aguardado tão cedo:    — Foi chamado ao Rio e de lá segue para as águas.    De novo inquiri o miudinho:    — Se não é atrapalho, quem responde, nas ausências dele, pelo governo desta pinoia? 
   Nisso,  de uma portinhola  de vaivém  apareceu um bexiguento, todo  amaricado,  de  cravo no paletó e pó de arroz na cara. De bons modos, pediu que eu entrasse:    — Seabra, às ordens. Com quem tenho a honra de falar?    Apresentei nome e patente:    — Coronel Ponciano de Azeredo Furtado.    O suj eitinho era de natureza apressada, parecia ter formiga no assento. Não parava quieto e era  dado  a  fazer  macaquismos  com  a boca.  Peguei  cadeira bem na  frente  dele  e por  cima  da escrivaninha estendi o papel malcriado:    — Recebi essa afronta e vim desembaraçar o caso.    O  bexigoso  abriu  a  gaveta  de  cuja  entranha  retirou  um  amontoado  de  papéis.  Com  dedo alegre,  mexeu  e  revirou  meus  compromissos,  todos já  estourados  nos  prazos.  Por  dentro,  o sacaneta era felicidade, do rabo ao cangote enfeitado de pó de arroz. Do lado de fora,  Seabra era todo veludinho:    — Desculpe o incômodo, desculpe o contratempo.    Fez conta, tirou, botou, repartiu, empilhou juros e deu o vulto dos compromissos. Enfim, eu devia  ao  Banco  da  Província  perto  de  quatrocentos  contos  de  réis,  fora  os  papagaios  do  dr. Pernambuco Nogueira, que levavam  a minha garantia, também já  estourados de vários meses. E em parecer final:    — Não posso fazer nada. São ordens de cima.    Cocei  o  queixo,  pedi  novos  prazos,  o  que  não  era  favor,  em  vista  dos  bons  lucros  que  eu tinha carreado para as burras dos capitalistas:    — Opero na mão de Selatiel desde que montei negócio.    Seabra, percebendo meu todo bonançoso, cresceu em arrogância, endureceu o entendimento, largou  de  lado  todos  os  seus  educados.  Chegou  a  bater  na  mesa,  asseverando  que  os capitalistas  do  Rio, povo  das  altas rodas, não podiam  afrouxar rédea,  que banco  era  casa  de lucro  e  não  sociedade  de  favoritismo.  E  nessa  toada,  cada  vez  mais  desembaraçado  de garganta,  culpou  Selatiel,  sujeito  de  coração  largo  que  não  sabia  dizer  não  a  ninguém,  pelos desmandos em que navegava o Banco da Província:    — Mas isso acabou. Dívida estourada tem de ser paga, custe o que custar.    E  guardando  os  compromissos,  levantou  a  sua pessoinha  em jeito  de  quem  corta  conversa enjoada.  Fiz  o  mesmo  —  desembrulhei  os  dois  metros  de  coronel  nas  barbas  dele  e  lá  de cima, como um pilão, deixei a munheca descer no ombro do bexigoso. Vi o sujeitinho desabar na  cadeira,  todo  desmantelado,  mais branco  do  que  o  seu pó  de  arroz.  Feito  isso,  falei  neste tom educativista:    —  O mocinho,  que  é tão  falante, vai  ouvir  em  sossego,  sem retirar  a bundinha  dos paus  da cadeira, toda a minha ponderação.    Acendi  charuto,  esfumacei  o  recinto  com  as  primeiras  baforadas,  no  final  do  que  ordenei que ele tomasse em bico de lápis os apontamentos da minha obtemperação e desse notícia dela aos  usurários  do  Rio  de  Janeiro.  Ponderasse  que  eu  andava  em  dificuldade  passageira,  mas rico  de  terra  e  pasto,  capaz  até  de  comprar  o  tamborete  de  empréstimo  e  usura  que  era  o Banco da Província. E de dedo apontado para o lápis dele:    — Nesse teor, seu Seabra, nesse teor.    E  sem  mais,  pegando  o  chapéu,  pronto  ganhei  a  porta  da  rua.  Atrás,  de  novo  educado  e desculposo, veio Seabra com promessa de interceder a meu favor : 
   — Imediatamente! Imediatamente!    Bem  meio  mês  não  era  decorrido,  recebia  eu,  na  traição,  novo  aviso  do  Banco  da Província.  Nessa  data  a  coisa  já  estava  em  poder  de  advogado  para  cobrança  de  lei.  O próprio  entregador da intimação,  favorecido por mim  em  certo  embaraço de dinheiro, relatou que nas minhas costas, fazendo negras ausências, Seabra garantiu que ia meter a pique mais um coronel  da  roça,  que  se  eu  não  espirrasse  o  cobre  dentro  do  estipulado  varejava  no  fogo  da penhora  terras  e  outros  bens  de  Ponciano.  A  velhacaria  era  feita  com  o  consentimento  de Selatiel de Castro, que armava o alçapão, dava os primeiros alpistes  e o restante da maldade ficava a cargo de Seabra:    — É da rotina dos usurários esse proceder.    No fechar do relato, todo em segredo, o entregador de papéis mandou que o coronel tivesse cuidado — Seabra era alma negra, capaz de tirar muleta de aleijado, judas de muitas traições:    — Ele desce do Rio só para essas tarefas.    Retemperei a amizade do estafeta com cem mil-réis e abraço apertado:    —  Muito  que  bem.  Essa  comandita  de  gatunos  não  sabe  quem  é  Ponciano  de  Azeredo Furtado, seu compadre.    Atirado  contra  a  parede,  em  beco  sem  saída,  torrei  na  pressa  de  agoniado  a  herança  de Mata-Cavalo. Vendi tudo em transação de porteira fechada, sem direito nem de retirar louças e armários.  Confesso  que  não  tive  grande  dó  da  perda.  Mata-Cavalo,  nação  de  lobisomem  e água palustre, nunca  foi terra  de meu bem-querer. Pasto  de  dar  coice na  sombra, brabo  como nasceu,  todo  revestido  de  malucagem  e  invencionice,  capaz  de  estranhar  a  melhor  mão  de trato. Quando, na hora da escritura, soube que os comprantes queriam meter nele soca de cana, soltei gargalhada de quebrar vidraça. Eles não conheciam as negaças e artimanhas desse chão aparentado dos capetas, sua raiva de tudo que não fosse capim-pau-de-mangue e vassourinha- de-bugre. E na porta do cartório, dinheiro encovado no bolso, fiz ironismo:    — Aquilo é terra benta. Dá de um tudo.    Mas  foi  nos  cacos  de  Mata-Cavalo  que  limpei  as  dívidas  na  praça  e  revigorei  créditos abatidos. Na tarde em que apareci no Banco da Província, para o ajuste final, o medo varreu a casa  da usura. Na boca  do  cofre paguei  os  quatrocentos  contos  e  ainda  salvei,  das  garras  da Justiça,  os  compromissos  de  Pernambuco  Nogueira.  Ao  cabo  desse  serviço,  indaguei  dos escriturários  onde  é  que  eu podia  encontrar um tal  de  Seabra, um bexiguento  que repuxava  o beiço e usava pó de moça no focinho:    — Quero ter um particular com ele, coisa de um ou dois bofetões.    Sabedor  de  que  eu  andava  em  seu  calcanhar,  Seabra  saltou  dias  sem  aparecer  no  seu tamborete. Até  que uma noite, na porta  do  Taco  de  Ouro,  quem  encontro,  todo  galante,  cravo no paletó  e polvilho nas ventas?  O bexiguento  do  Banco  da  Província. Arrotava  grandeza no meio de um povinho do comércio de panos da rua do Conselho. Lá foi o meu braço comprido segurar  o  sem-vergonha,  que  veio  leve,  em  peso  de  boneco.  Nessa  trafegação,  do  Taco  de Ouro  ao  outro  lado  da  rua,  o  atarraxador  de  dívidas  viajou  pelos  ares,  cabeça  no  lugar  da perna, feito encomenda barata. Foi um esparramar de  Seabra por todo lado e ainda presenciei quando  seu  atrás  firmou jurisprudência  no  duro  da  calçada.  Feito  o  trabalho,  em  passo  de sujeito no gozo da digestão, peguei o caminho do Café Lord, onde abasteci de charuto o vazio do bolso. Um mulato, que veio comprar  fumo, contou que um tílburi tinha danificado gente na porta do Taco de Ouro: 
   — O coitado ralou as partes no pedregulho.    Dormi  em  paz,  em  travesseiro  de  anjo.  Tão  contente  que  rejeitei  o  pedação  de  perna  da menina arrumadeira. E essa contentagem andou de braço dado comigo bem um par de semanas e  só teve fim ao  saber o meu coração do abatimento em que andava João Fonseca por motivo da quebra dos preços. O vento da desgraça também havia soprado em sua janela. A notícia foi trazida à minha presença pela boca do major Totonho Monteiro, do Hotel das Famílias. Corri para  a  rua  do  Gás  em  visita  de  animação.  A  teúda  e  manteúda  dele,  dona  Celeste,  carpia tristeza no  fundo  da  sala, uma vez  que Fonseca, balançado  com  as perdas, rejeitava poções  e beberagens. Animei o amigo que brigava contra os gatos da asma:    — Que é isso, Fonseca? A gente não caiu, homem de Deus. A gente só tropeçou.    Feiçãozinha  triste,  rosto  desgastado,  nem  respondeu.  Saí  da  rua  do  Gás  roído  de  mágoa, contraído  de  um  nó  de  choro  que  sufocava  a  minha  garganta.  Em  poder  da  moça  teúda  e manteúda deixei dois contos de réis. Era tudo o que restava de Mata-Cavalo. 
Quando pensaram, vendo tanta desgraça em derredor, que eu era  sujeito decaído, aí mesmo é que cresci. Foi como se nascesse de novo. É na hora de vento soprar de contra que gosto de ver  Ponciano  de  Azeredo  Furtado,  coronel  por  trabalho  de  valentia  e  senhor  de  pasto  por direito  de  herança.  No  redemoinho  da  desventura,  nem  uma  vez  abri  mão  de  qualquer galhardia, nem desmereci da patente. No canto da boca encravei charuto do melhor e do mais fino. Onde  estava Ponciano, lá andava  sua  fumaça. De repente, voltei a  falar na voz de curral que  as  educações  e  finuras  da  cidade  tinham  relegado  como  coisa  sem  préstimo.  Era  cada grito,  cada  destampatório!  Nunca  que  pensassem  ver  o  neto  de  Simeão  de  cangote  tombado, olho na ponta do pé, que esse jeito de andar era uso do povo arruinado da rua do Rosário. Não ia  virar  Juventino  Ferreira,  da  firma  Irmãos  Ferreira,  que  na  primeira  volta  do  redemoinho perdeu  a vontade,  deu  de  falar  em  cemitério.  Era uma pessoa respeitada, homem  de  garganta rouca,  correntão  de  ouro  de  um  lado  a  outro  da  barriga  e  guarda-chuva  de  cabo  de  prata  no braço. Mandava no comércio de cristal e mascavo, pelo que seu escritório de compra e venda vivia  cheio  de  estafetas  e  guarda-livros.  Seu  braço  era  comprido  —  saía  da  rua  do  Rosário para comerciar na praça do Rio, onde  fez nome  e  firmou crédito. Pois toda  essa grandeza  era engano  só.  Por  dentro,  Juventino  Ferreira não passava  de  viga podre,  sujeito  feito  de pano  e papel. Não aguentando o safanão dos prejuízos, escapuliu montado numa bala de garrucha. Fui ao  enterro  dele, puxei  a  alça  do  caixão,  animei  os  desanimados.  Quem tivesse  suas  aperturas podia contar comigo:    — Tenho proposta de dinheiros altos de uns capitalistas do Rio de Janeiro.    Ponciano de Azeredo Furtado arrotava soberba, fosse onde fosse, nos corredores da Justiça ou  em  repartição  de  governo.  Ninguém  pisava  meu  calo  ou  montava  na  garupa  das  minhas atrapalhações.  Ao  presenciar  algum  arruinado  de  açúcar  contar  desgraça  (“Que  prejuízo, coronel, que fim de vida, coronel”), mandava que tivesse pejo:    — Ora essa! Um homem é um homem e um gato é um gato.    Juquinha  Quintanilha,  inteirado  das  aperturas  do  seu  compadre,  trouxe  do  Capão  uns guardados de joias para que eu fundisse tudo na guerra dos compromissos:    — É da maior satisfação o coronel não rejeitar.    Repeli a bondade do mulato:    — Guarde os seus ouros e pratas, compadre. Estou de negócio graúdo engatilhado.    A  fim  de  tapar  uns  restos  de  dívidas,  resolvi  torrar  em  moeda  corrente  a  casa  da  rua  da Jaca,  que vivia  sem  serviço,  tomada  de rato,  fechada  de janeiro  a  dezembro.  Mandei  abrir  o casarão, vassourar  salas  e varandas, tosar  as tiriricas ,  limpar  a  chácara  das  ervas  daninhas  e carurus:    — Quero tudo arejado, como se fosse receber noiva ou doutor. 
   Tive  conhecimento  nesse  então  que  o  vizinho  da  direita,  um  enricado  no  comércio  de charque,  deliberou  por  sua  alta  recreação  passar  o  machado  no  pé  de  jaca  das  minhas infâncias,  onde,  em brincadeira de menino,  eu repelia  a investida da bugrada. Maldade  assim não  podia  permanecer  sem justiça.  Lá  bati  na  porta  do  comerciante  para  saber,  de  viva  voz, que raiz  de verdade havia  em tudo  isso.  Pois não  é  que  o  orgulhosão,  sem  levar  em  conta  os meus  dois  metros  da  botina  ao  chapéu,  confirmou  a  ação  nefasta?  Arvoredo  que  metesse  o bedelho  em  seu  quintal,  de  modo  a  fazer  sombra,  entrava  no  machado.  E  mais  não  disse  o abusado porque  o braço  de Ponciano,  de  cima para baixo,  decepou  a petulância no meio. Na caída do bichão ainda avisei:    — De outra feita, dou para estuporar.    Assim  vinguei  a  jaqueira  dos  meus  verdes  anos.  Justiça  feita,  desmanchado  o  mal- entendido,  vendi  a  casa  da  rua  da  Jaca,  ressalvando  os  trastes  de  vinhático  e  os  talheres  de prata  que  viram  tanto  beiço  de  Azeredo  Furtado.  E  em  cima  dos  apurados  desencravei  os derradeiros   compromissos,   sem   esquecer   de  mandar  regalia  para   a   comadre  Alvarina Quintanilha.  Recebeu  a boa  senhora,  de  olho molhado, peça  de  tecido  fino  em  companhia  de uma  guarnição  de  frascos  de  cheiro.  Como  a negrinha Nazaré  estivesse  em véspera  de tomar estado,  fiz  chegar  a  Ponta  Grossa  dos  Fidalgos  lembrança  rara  em  forma  de  rendas  e  cetim. Sabia  que  comprava  com  esse  proceder  as  graças  de  Francisquinha,  toda  no  preparo  da afilhada, tanto que nem cuidava tão cedo de voltar ao  Sobradinho, sua casa natural não só por estima  como  por  direito.  Mas  a  prenda  melhor  mesmo  foi  a  dela  —  viajou  para  a  sua  mão rosário  de marfim  e  ouro,  de não haver  segundo  em  cem  léguas  de pasto, mesmo  entre  gentes de posses. Com a lembrança, remeti recado brincalhão:    — Diga à dona dele que não há tramela de céu que resista a uma beleza deste calibre.    O  restante  da  pecúnia  advinda  da  rua  da  Jaca  consumi  no  Sobradinho,  avariado  pelo dilúvio. Tomou encargo dos reparos o gago Antão Pereira, que veio ao Hotel dos Estrangeiros e de mim recebeu carta branca:    — Quero o casarão de meu avô como no antigamente, vistoso e lavado de cal.    Pena  que não  contasse, nessa  circunstância,  com  os préstimos  de  Saturnino Barba  de  Gato, outro  que  seguiu  a picada  de  Juquinha  Quintanilha —  foi montar varejo  de  secos  e molhados em  Poço  Gordo.  Toda  vez  que  vinha  em  viagem  de  compra  não  esquecia  de  dar  um  pulinho aos  altos  do  Livro  Verde.  Era  como  se  eu  ainda  fosse  o  patrão,  a  quem  devesse  respeito  e consideração.  Foi  outro  que  correu  em  meu  auxílio  ao  saber  da  derrocada  do  açúcar.  Tentou deixar em meu bolso o dinheiro do seu comércio miúdo:    — Desculpe o montante pouco, coronel.    Remexido  de  sentimento,  abracei  o  mulato.  Que  não  tivesse  pesar.  Não  precisava  eu  de ajutório, sabido que era homem de levantar na praça, com a garantia de um fio de barba, meus trezentos contos de réis:    — Ou mais, amigo Saturnino. Ou mais!    Confortava sentir tanta garantia de amizade. A afeição dos pastos brotava em tempo de flor. Sinhozinho   Carneiro,   quando   a   novidade   de   meu   descalabro   chegou   em   seu   pastinho vasqueiro,  nem  esperou  confirmação.  Bateu  na  cidade,  aparelhado  de  faca  e  garrucha. Cuidava,  nas  suas  ignorâncias,  que  tanta  perda  devia  ser  sanada  em  rixa  de  tiro  e  morte. Remeti  o  amigo  de  volta  aos  currais,  uma  semana  além, já  acalmado  de  ameaças  e  raivas. Ninguém era culpado da quebradeira do comércio:
   — É da regra, Sinhozinho. É do jogo do perde-ganha.    O velho partiu desafrontado, mas deixou notícia triste. Padre Malaquias não imperava mais em Santo Amaro, removido que foi para lugar onde sua presença era mais requerida, uma terra de  sertão  adentro,  braba  como  as  armas  e  que  só  a  bondade  dele  podia  domar.  Como  essa nação  de  herege  estivesse,  desde  anos,  sem  missa  e  água  benta,  lá  foi  montar  Malaquias  a primeira viga de igreja:    — Faz mês que não bota o pé em Santo Amaro.    Pedi  a  Sinhozinho  que  desse  ao  reverendo,  caso  tivesse  ocasião,  uma  palavrinha  a  meu favor :    — Diga ao padre que vou fazer uma visita especial a ele.    O pesar de saber Malaquias Azevedo ausentado dos currais foi rebatido por uma satisfação que  tive  logo  em  seguimento.  Uma  tarde,  na  porta  da  Espingarda  Grande,  soltava  eu  os esfumaçados do meu charuto na admiração de uma pistolinha de moça, quando vi o primo Juca Azeredo,  que  o  noivado  com  menina  de  Pires  de  Melo  tinha  afastado  da  minha  convivência. Fingi  não  reparar  no  parente,  pelo  que  rebaixei  a  cabeça  em  trabalho  de  limpar  a  borra  do charuto ao mesmo tempo em que avivava o passo na direção da praça da Quitanda. Não andei dez braças e já era refreado por mão segura:    — Como vai esse coronel que eu não vejo pratrasmente de ano e tanto?    Abraço foi, abraço voltou.  Senti que o velho respeito de Juca Azeredo não tinha diminuído. O  parente,  longe  nos  dias  de  minha  grandeza,  vinha  em  vassalagem  de  amigo  trazer  seus préstimos e ajutórios na hora da desdita:    — Não carece Ponciano de falar. Sei de tudo. O que é meu é do primo.    Respondi na mesma altura. Se ele, por acaso, precisasse de dinheiro, a gente corria as casas de banco, que nenhum tamborete recusava servir um Azeredo Furtado:    — Nenhum, Juca. Nenhum!    O resto da  semana foi de apuramento de amizade, consumido nas lembranças das brigas de galo,  do  caso  do  lobisomem  e  da  sereia.  Ao  falar  da  moça  das  águas,  Juca  Azeredo  não esqueceu das grandes  ausências que  o major  Serapião Lorena  sempre  fazia de mim. Toda vez que pernoitava em Paus Amarelos, o velho não tirava meu nome da boca:    — Prometeu visitar o primo uma hora dessas.    De minha parte, quis ficar inteirado do andamento do seu casório:    — Sai ou não sai, seu compadre? Quero comer os doces.    Juca  confirmou — tomava  estado  assim  que  o velho Pires  de Melo  ficasse  liberado  de um incômodo que dava com ele na cama em tempo de vento:    — Já marquei e desmarquei o casamento dois pares de vezes.    Brincou comigo, disse que eu precisava de tomar igual obrigação:    — Do que o primo carece é de uma costela.    Em  uma  quinzena  bem  contada  tive  Juca  Azeredo  debaixo  de  mando.  Andava  enganchado em mim como boi de canga, de não largar o dia todo. De noite, o primo seguia para o pernoite em  casa  de uns parentes  de  Pires  de  Melo, nos  afastados  da  cidade.  E um  domingo  fui  levar Juca  Azeredo  ao  bota-fora.  Fazia  empenho  em  que  eu  fosse  padrinho  de  casamento  dele  e  o primeiro moleque que brotasse dessa transação ia receber na água benta o nome do Ponciano:    — Está decidido, primo. Vai haver mais um Ponciano na família.    Senti  um  aperto  no  peito,  um  bolo  na  garganta  ao  saber  de  tão  bondosa  deliberação. Nem 
tive boca de agradecer, nem mão de dizer adeus. Talqualmente um dois de paus, fiquei no meio da estação; enquanto o trem puxava Juca Azeredo para o seu engenho de cachaça.  Sim senhor ! Vivendo  e  aprendendo.  Na  precisa  hora  em  que  eu  dava  mostras  de  afundar,  que  aparentava acabado de uma vez, recebia um presentão daqueles. Um afilhado de firma comprida:    — Ponciano de Azeredo Furtado e Melo.    Bom nome para um doutor de lei.        Já  sem  préstimos,  tratei  de  dizer  adeus  ao  escritório  de  compra  e  venda.  E  estando  eu  de mangas arregaçadas na tarefa de desobrigar gavetas e rasgar papéis, vejo subir Fontainha todo de preto, como se viesse prantear defunto. Chegou de Portela atrás e pediu licença:    — Venho em missão de interesse de Vossa Senhoria.    Admirado  de  tal  presença,  nunca  desesquecido  das  falsidades  e  abusos  de  Fontainha,  tive por  primeira  intenção jogar  o  safado  no  olho  da  rua.  A  custo  represei  esse  ânimo  e  mais  a custo respondi a Portela, sem ligar ao escriturário:    — Vá dizendo, vá dizendo.    Fontainha   empacou   sério,   de   cara   amarrada.  Foi  Portela,   saído   do   seu   lado,   quem desembaraçou  a  conversa.  Que  eu  tivesse paciência,  mas  a  visita  do  amigo  Fontainha  era  de cerimônia, não podia ser tratado no afogadilho:    — É de importância, pede tempo, coronel.    Deixei  os  papéis,  cocei  a  barba.  E  tive  um  estalo  —  talvez  os  dois  sacanetas  viessem  a mando de dona Esmeraldina ou do dr. Nogueira. Com  esse pensar, logo mudei de trato, já  em pé de galhofa, quase nos portais da amizade. Inquiri, abaixando as mangas da camisa, se minha pessoa  devia vestir  casaca,  fazer protocolo,  assim  como  em  sala  da  Justiça  ou  em repartição do governo:    — Os amigos não levam a mal eu estar em roupa de rotina?    E zombeteiro, brincalhão,  fui vestir o paletó, depois do que arrastei cadeira para junto dos missioneiros:    — Muito que bem, muito que bem. Estou às ordens dos doutores.    Fontainha,  todo  revestido  de  cerimônia,  relatou  ao  que  vinha.  Como  afiançou  o  amigo Portela,  a  missão  era  de  muito  cuidado,  de  nem  saber  como  começar.  O  caso  é  que  o  dr. Baltasar  da  Cunha  estava  em  vias  de  mover  demanda  contra  mim,  uma  vez  que  era  de  todo mundo  sabido que não dei quitação  a  ele pelos trabalhos de Mata-Cavalo. Desejava  o doutor que  eu pagasse,  dentro  da tabela  dos  engenheiros,  os  serviços prestados, na  ordem  de  alguns contos de réis:    — É o que o dr. Cunha vai pedir em processo da Justiça.    Portela, nesse entrementes, saltou do seu assento:    — O que a gente quer é evitar esse desgosto ao coronel.    Não sacudi o par de sacanas fora de portas, como era de minha norma proceder. Deixei que eles mostrassem até a que ponto chegava o desplante do tal doutor da mula-ruça. Torci a barba e ponderei, meio encovado, como temente das penas da lei:    — É o diabo, é o diabo. Não quero embaraço na Justiça.    Como  macaco  novo  em  plantação  de  milho,  Fontainha  depressa  afundou  na  arapuca  do coronel.  Engordou  a  falinha  e  de  dedo  no  sovaco,  em  imitação  de  Baltasar  da  Cunha,  deu prazo para a resposta: 
   — O doutor não pode esperar. A lei anda do lado dele.    Outra  vez  saltou  Portela  dentro  da  conversa.  Visse  eu  o perigo  de  uma pendenga  no  Foro, logo  contra  o  primo  de  Pernambuco Nogueira.  O  melhor  era  arrumar  tudo  em  casa,  deixar  a briga morrer entre quatro paredes, e pronto:    — Todo mundo fica contente e a amizade de pé.    Fontainha concordou. O melhor mesmo era o coronel matar o mal pela raiz, uma vez que em demanda de lei ninguém ia ter coragem de embaraçar um parente de Pernambuco Nogueira, em véspera de tomar assento em posto da governança:    — Ninguém, que ninguém é doido.    O  caso  é  que  o  dr. Baltasar  da  Cunha  exigia, para  sustar  a  entrada  dos papéis no Foro, um embolso na ordem de trinta contos de réis, o que ele, Fontainha, achava uma bagatela em vista do montante das benfeitorias levantadas em Mata-Cavalo:    — Não paga nem a terça metade do trabalho.    Rejeitei:    — Seu Fontainha, tenha dó. É dinheiro muito.    Portela entrou de panos quentes. O coronel era amigo, o coronel era da roda dos Nogueira, merecia  consideração.  De  fato,  o  montante  de  trinta  contos  de  réis  era  capim  grosso,  que qualquer um não tinha em caixa. Que eu pagasse em partes, em dois ou três saques:    — Baltasar é amigo, Baltasar concorda.    Agradeci a Portela pela sua ponderação em meu favor. E com esse fingimento, deixei o sofá e passei  ao  outro  compartimento do  escritório,  assim  em modo de quem ia  apanhar  a pecúnia exigida. Para maior efeito da pândega, abri gaveta, retirei papéis, remexi embrulhos. De volta, afiancei que benefício de tal ordem não podia passar sem um comemorativo no Taco de Ouro:    — Os amigos estão convidados.    Com   bons   modos,   demonstrando   agradecimento,   peguei   os   bracinhos   de   linha   dos missioneiros e, seguro neles, caminhei na direção da escada, onde apresentei a decisão final:    — Pois muito que bem. A visita foi honrosa, de muita instrução.    E, sem mais pormenores, sacudi os sujeitinhos escada abaixo, como quem sacode tapete em janela.  De  cambulhada,  num  atropelado  de  gado  em  corredor,  lá  desceram  em  desordem futucados pelo meu berro:    — Rua, seus cachorros, filhos de uma cadela!    De  noite,  no  Hotel  dos  Estrangeiros,  fiquei  inteirado,  por  leitura  das  gazetas,  que  o  dr. Pernambuco  Nogueira  estava  de  novo  na  cidade,  com  o  fim  de  dar  acabamento  a  umas demandas no Foro, no após o que ia montar, em definitivo, casa e banca de doutor em Niterói. Uma  comichão  de  saudades  dormiu  comigo  e  de  imediato maquinei  sanar minhas  desavenças na  rua  dos  Frades.  Aparecia  lá, pedia  entrada  e  o  resto  ficava  na  conta  da  lábia  do  coronel. Mas  tive  de  desmanchar  essa  intenção  mal  não  era  nascida  ao  saber,  pela  menina  Mocinha Cerqueira, que encontrei numa saída de missa, das ausências de dona Esmeraldina:    — Ficou no Rio, na casa de uns primos.    Nem  tirei  proveito  dos  olhos  molhados  que  a  moça  ofereceu  à  minha  consideração.  De peito  oprimido,  parti  em  demanda  do  escritório  de  Nogueira  onde  cheguei  desarmado  de prevenções  e  ódios.  O  que  desejava  era  passar  uma  esponja  nos  mal-entendidos  e  dar  ao doutor os seus papagaios de banco, como presente de amizade. Chegar e dizer :    — Aqui está seu compromisso morto e sepultado, doutor. 
   Com  esse  intento,  coração  empapado  de  bondade,  apareci  diante  do  doutor  das  minhas causas. Pernambuco Nogueira, no detrás da escrivaninha, atendia a um  sujeito roliço, nascido com  ares  de  coruja,  cara  redonda  e  olhinhos  junteiros.  Sendo  eu  amigo  do  escritório,  não tomei precaução. Fui entrando e abrindo os braços:    — Bons olhos vejam o doutor. Já sei de tudo. Li nas gazetas.    Tanta alegria não recebeu troco da mesma grandeza. Nogueira estipulou seco:    —  Estou  resolvendo  uns  casos  de  urgência  com  o  dr.  Macedo  Costa.  Tenha  a  bondade  de esperar na outra sala.    A  intimação  doeu  mais  do  que uma  facada  nas  costas.  O baixote,  que  espiava por  olho  de coruja,  nem  deu  confiança  de  prestar  maior  atenção  na  minha  pessoa.  Desmontei,  em  pronto instante,  o  meu  todo  amigo  e  voltei para  a  saleta  das  esperas, um  compartimento pouco para caber  ódio tão  grande. Fui vistoriar  a barba no  espelhinho  do porta-bengala —  lá  estava  ela, uma  peça  que  não  podia  ser  destratada  por  qualquer  um,  doutor  ou  rei.  Passei  nela  dedo  de namorado,  enquanto  no  covil  do  peito  amamentava  as  caninanas  do  meu  gênio.  Nogueira  ia receber lição de ser dependurada na parede, como pele de onça ou cabeça de veado. Filho de uma égua! Tratar na ponta da ferradura um militar da minha grandeza, amigo de suas aperturas em mais de uma ocasião. Via Ponciano na rua dos Frades, tratado a vela de libra, no gozo do melhor prato e no macio da melhor cadeira. E agora era esse desprezo:    — Tenha a bondade de esperar lá fora.    Andava  eu  nessas  funduras,  remoendo  relembranças,  quando  Nogueira  chamou  do  outro lado:    — Tenha a bondade, tenha a bondade.    Parei na frente da escrivaninha, sem receber intimação de sentar. O olho de coruja cravou a mirada  em  mim,  o  mesmo  fazendo  Pernambuco  Nogueira.  E  nem  esperou  o  banhudo  que  eu levantasse a voz. Foi relatando que era advogado do dr. Baltasar da Cunha, do que tinha muita honra.  Como  eu  tivesse  desconsiderado  os  amigos  do  moço  engenheiro  que  foram  levar proposta de paz, não restava a ele outro caminho do que o da lei e da Justiça:    — É o que vou fazer amanhã mesmo.    Do lado dele, bem plantado na cadeira, Pernambuco alisava o bigode ralo, mais distante do que uma nuvem em tempo de estiagem. Não embarguei a obtemperação do Macedo Costa. E à medida  que  entrava  ele  no  íntimo  da  pendência,  mais  gosto  tomava.  Lá  numa  pausa,  em  que freou para  sorver  vento, pedi  a Nogueira,  com  cara  injustiçada,  que  fizesse  as  vezes  de j uiz, servisse de desembargador no caso em andamento:    — Quero o parecer do doutor.    Cabeça pendida para o espaldar da cadeira, olho na cumeeira, relembrou Nogueira que em mais de uma vez tinha deixado claro que era questão perdida:    — Peça um acordo. A causa é ingrata. Em todo caso, a questão é sua. Lavo as mãos.    O banhudo Macedo Costa, montado na j urisprudência de Nogueira, cresceu em ofensa:    — Não quero acordo, não quero nada.    Era desaforo muito para a patente de um coronel. Dedo no focinho dele, mandei que tivesse respeito, que não estava eu no escritório para aturar mal-educados e sim em dever de cortesia. Que  pensava  ele  que  era?  Dono  da  Justiça,  dono  dos  desembargadores?  Que  mirasse  bem  o meu tamanho:    — Não foi à toa que cresci em formato de palmeira, seu doutor. 
   Já nesse  lance  do  desaforo meus  dois metros  andavam no  alto,  quase no teto,  em  cima  dos diplomados.  Nogueira,  conhecedor  do  meu  gênio,  pediu  prudência,  enquanto  o  outro  doutor, lenço na testa, falou com bochecha medrosa:    — Não sou de alterações. Sou advogado de carreira, homem do Direito e da lei.    Sacudi  a  mesinha  a  poder  de  safanões.  Pois  metesse  a  lei  contra  mim,  que  não  ia  ser  o primeiro nem o último:    — Até gosto, seu doutor de bosta. Até dou risada, seu filhote de lobisomem.    E  como  demonstração  de  pouco-caso,  abri  em  gargalhada  e  na  poeira  desse  deboche esvaziei  meus  trazidos  de  ódio  e  ofensas.  O  venta  de  coruja,  lá  às  tantas,  tentou  largar  o recinto. Meus dedos de calombo aquietaram o banhudo na palhinha da cadeira:    — Sem ordem minha, safadão nenhum sai deste covil.    Disse  o  que  bem  entendi,  em  jeito  severão  e  no  mais  das  vezes  na  brincadeira,  na gargalhofa.  E  no  arremate  da  conferência,  retirando  do  bolso  as  responsabilidades  de Nogueira que  salvei da unha dos usurários, mandei que visse, que conferisse o jamegão. E no mesmo instante, com desprezo, joguei os compromissos na tábua da escrivaninha:    — Não quero ter em bolso papel de sujeito que não sabe honrar as amizades. Limpe o rabo com ele.    Na porta do escritório, chapéu enterrado na cabeça, dei a última demão na afronta:    — Cambada de ladrões! Camarilha de gatunos!    Cuidei  estar  ligado  aos Nogueira  da  rua  dos  Frades  na  vida  e  na  morte. Nunca  que  podia figurar  dona  Esmeraldina  longe,  em  tempo  acabado,  que  logo  sentia  um  esfarelamento  na entranha. Pois bastou aparecer a ingratidão dos Nogueira, para tudo virar fumaça, esmaecer de pronto.  Ao  pisar  a  rua,  mal  saído  da  desavença,  eu  era  outro  Ponciano  de  Azeredo  Furtado, leve de compromissos, limpo de agravos. Só trazia um desabafo:    — Ladrões, gatunos!    Assim,  no  caminhar  dos  dias,  perdi  os  Nogueira  da  lembrança.  Via  o  doutor  longe,  dona Esmeraldina desbotada no meu bem-querer. E uma quinzena mais adiante, ao ter conhecimento das péssimas  ausências  que  ele  fazia  de mim,  abri  em risada. Espalhava  o  safardana  falsos  a meu respeito, que  fiz  e  aconteci,  a ponto de tentar  ação nefasta  contra  a honra da patroa dele, do que resultou pegar eu reprimenda grossa e ficar banido para nunca mais da rua dos Frades. O  velho  Gastão  Palhares,  sabedor  do  que  o  doutor  apregoava,  e por  ser  muito  inclinado  aos militares  e  andar  de  amizade  arranhada  com  os Nogueira,  queria  que  eu rebatesse  a  afronta  e ressalvasse a patente:    — Há que agir, há que agir.    Levei Palhares  a um  canto  e bem rentoso  da  orelha  dele  confirmei  o  abuso. De  fato, havia tirado  uma  mimosa  conferência  em  certos  avolumados  de  dona  Esmeraldina,  coisa  leve, abrideira de apetite, que o grosso da patifaria, soubesse o amigo Palhares, tinha sido aprazado para mais tarde, em terra erma. E segurando o bracinho do velhote:    — No Sobradinho, seu Palhares. Estação de safadeza de uma quinzena, seu Palhares.    O  velho,  sujeito  de  óculos,  pai  de  família  crescida,  nem  esperou  pelo  fim.  Tão  afrontado ficou  que  abriu,  sem  propósito,  o  guarda-chuva  e  nessa  postura  desabou  rua  abaixo.  Ainda mirei o alto, em busca de um pingo de água ou de um carvão de nuvem. A tarde era de primor, o céu de andorinha.   
     Cerrei as portas do escritório de compra e venda. Os móveis e utensílios, no meio de outras serventias, foram dados por meia dúzia de vinténs a um belchior da rua Formosa. Era um unha de  fome — regateou,  desfez  das madeiras, negou  a  qualidade  dos  cortinados, mas  sempre  em modo educado, desculpativo:    — Não tem saída, meu senhor. Compro para guarnecer o depósito de guardados.    Sacramentado  o  toma  lá  dá  cá,  o  espoleta  meteu  o  olho  encanado  no  correntão  do  meu relógio.  Dedo  engatilhado  na  direção  da  peça,  perguntou  se  eu  não  queria  ficar  despossuído dela:    — Dou quinhentos mil-réis pela guarnição. Nem preciso ver. Quinhentos mil-réis.    Chamei  o  unha  de  fome  à  responsabilidade.  Não  pensasse  o  seu  nariz  abelhudo  que  eu andava  em  apertura  de pecúnia.  Se  quisesse,  era muito homem  de  comprar, na boca  do  cofre, toda a sua casa de trapizongas, sem sair de onde estava. E de barba quase na cara do belchior :    — E ainda levo de contrapeso o rabo da mãe, sim senhor.    Virei  as  costas.  Ninguém,  por  mais  enricado,  podia  contar  vantagem  na  minha  frente  sem levar revide de boca ou de braço. No Hotel dos Estrangeiros, eu que era de paz e acomodado, virei ranzinzão. Por qualquer  falta, menor que  fosse,  soltava o gargantão pelos corredores. Já nesse  então,  a  demanda  de  Baltasar  da  Cunha  começava  a  esquentar.  Mais  de uma  escadinha de  doutor  de  lei  subi  e  desci.  Ninguém  queria  sustentar  os  meus  direitos,  por  ser  o  outro litigante aparentado de Pernambuco Nogueira. A comandita do Foro vivia em união de unha e carne.  Nenhum  doutor  ia  descontentar  oficial  do  mesmo  ofício,  em  véspera  de  subir  na gangorra do governo. Nenhum. A resposta era sempre igual:    — Sinto muito, mas estou sobrecarregado de compromisso.    Desse modo,  sem  outra porta  que bater,  lancei no  fogo  da  Justiça  os préstimos  de  Serafim Carqueja, um pardavasquinho  ensebado,  que vivia  de  encaminhar papéis, rábula  dos  desvãos do  Foro.  Em  certa  época  dei  um  ajutório  a  ele,  auxílio  pouco,  do  qual  nem  guardava relembrança.  Carqueja,  nunca  esquecido  do  benefício,  colocou  as  armas  do  seu  tirocínio  ao meu dispor :    — O coronel não paga nada. É de prazer servir o coronel.    Carqueja, de tão pobre, nem canto de escritório possuía. Administrava suas causas em mesa de café ou no fundo de uma sejaria que ficava perto da  Santa Casa das Misericórdias. Mesmo assim,  sem  eira  nem  beira,  o  mulato  aguentou  a  sabença  de  Macedo  Costa.  Percebi  de  logo que  Serafim  Carqueja  era  de  muita  artimanha  e  de  recursos  no  concernente  a  trabalhar  os arrazoados:    — Tenho trinta anos de corredor de Foro. Não é qualquer doutor de canudo novo que pode comigo.    Em verdade,  a pendenga  andou  e  inchou. Nas mesas  dos  escrivães  e  doutores pegou papel de  muitos  rabiscos,  engordou  nos  embargos  e  pareceres.  Como  nos  dias  de  minha  guerra contra Dantas Mesquita,  o  charuto de Ponciano não  saía dos  corredores da Justiça. Macedão, safado  da  vida,  reclamou.  Em  discussão,  na  presença  de  mais  de  meia  dúzia  de  olhos  e ouvidos,  chegou  a  destratar  o  pobre  Carqueja.  Queria  uma  ordem  do  alto  para  que  eu  não fuçasse a papelada, não acompanhasse a trafegação da demanda:    — Vou pedir providências, vou acabar com esse abuso.    Por sorte, cheguei na horinha em que Macedo Costa ameaçava o defensor dos meus direitos. 
Vendo Serafim tão ofendido, da cor do barro, quis saber se algum lobisomem tinha passado na redondeza:    — Só o lobisomem é que faz essa azoada, esse espalha-vento.    O reclamante tratou  de  sumir  a  sua pessoa na primeira porta, relembrado  do meu proceder no  escritório  de Nogueira.  Carqueja,  senhor  do meu  apoio,  cresceu  em  galhardia. Pegou  ares de doutor formado, passou a falar firme, citando casos e jurisprudência. Prometi, uma vez feita j ustiça a meu favor, quebrar o chifre de Macedo Costa e mais Baltasar da Cunha bem na porta do Taco de Ouro:    — Para todo mundo ver, para servir de cartilha a essa nação de safados.    Por  dois  meses  rolou  a  questão  na  sabedoria  dos  doutores,  cada  vez  mais  alentada  de agravos e pareceres. O pobre bracinho de  Serafim Carqueja era curto para carregar tão vasta jurisprudência.  Passava  os  dias  na  leitura  e  meditação  dos  despachos,  naquele  seu jeito  de roçar o nariz rente das letras, uma vez que de tanto lidar com rabisco de juiz perdeu a força da vista. Prometi botar no rosto dele um par de cangalhas novas:    — Óculos do mais fino e do melhor, seu compadre.    Tanta  devoção  de  Serafim  Carqueja  acabou  em  bom  resultado.  Uma  segunda-feira  a  rixa subiu  à  apreciação  final  e  foi  cair na unha  de um juiz  de  fornada nova,  que  eu nem  conhecia, de nome Perlingeiro  de  Sá Meneses. Numa penada,  o  doutor  lavrou  a  sentença  a meu  favor  e ainda  destratou  a  acusação,  condenada  no  rabo  do  processo  a  pagar  as  custas  e  outros caprichos da Justiça. Na porta do Foro, charuto avassalador no dedo, berrei:    — Conheceu, cachorro!    Caí  no  calcanhar  de  Serafim  Carqueja,  a  saber  o  preço  do  seu  trabalho.  O  defensor  da minha causa andava em fundo de café, nariz pregado numa papelada de inventário. Mandei que ficasse de pé:    —  Venha  de  lá  um  abraço,  seu  doutor.  A  gente  ganhou  de  cabo  a  rabo,  sem  deixar  nem direito de apelação.    Carqueja nem  quis  ouvir  a história  da paga.  Que  eu  solvesse  os  gastos  de rotina,  selagem, despesas em cartório, buscas etc. e tal:    — Coisa de pouca monta.    Obtemperei em contrário:    — Seu doutor, não aceito o sacrifício. Diga quanto é o serviço.    Sem cuidar do que eu dizia, Carqueja retirou do bolso um caderno denegrido pela usança e começou  a juntar  despesa.  Contou  e  recontou,  nariz  no  papel.  Não  contente,  fez  noves-fora- nada e só depois é que proclamou o montante da dívida:    —  Cento  e  oitenta  mil-réis.  Como  o  coronel  já  deu  um  adiantado  de  duzentos,  estou devendo, em justa conta, vinte mil-réis.    E varreu o paletó na intenção de liquidar o saldo da rixa. Protestei:    — Era o que faltava, seu Carqueja. Diga o preço do serviço, homem de Deus.    Não  houve  modos  de  receber  um  tostão.  Todo  maltratado,  casaco  roído  na  curva  do cotovelo,  gravata  de  cor  perdida  desde  anos,  Serafim  Carqueja  tinha  ares  de  rei.  Que  eu guardasse as economias e deixasse em seu poder a amizade:    — É o que basta, é o que basta.    O  mulato  valia  ouro  em  pó.  Nunca  que  um  Pernambuco  Nogueira,  mesmo  ajudado  pelo governo,  mesmo  de  anelão  no  dedo,  chegava  às  alturas  dele.  Era  até  uma  falta  de  respeito 
medir no mesmo metro um  e  outro. Nogueira,  diante  da grandeza  do  encaminhador  de papéis, ficava  diminuído,  menor  que  um  rato.  Virava  suj eito  merecedor  de  penas  e  dós,  um  pobre- diabo:    — Desimportante.    Mas  a  minha  alegria  de  ver  Baltasar  da  Cunha  perdido  na  Justiça  foi  contaminada  por notícia  triste  vinda  da  rua  do  Gás. No  Hotel  dos  Estrangeiros,  de  noite,  encontrei  recado  de dona Celeste dando conta da morte de João Fonseca.  Sem tirar o chapéu, corri em  socorro da moça, uma vez que o capitão Totonho Monteiro, compadre dele, estava ausentado, em viagem demorada.  Encontrei  a  teúda  e  manteúda  do  falecido  lavada  em  pranto,  nos  braços  dos vizinhos. O morto já estava preparado para os trabalhos da cova. Tive de arranjar os papéis e outras  obrigações  de  cemitério,  no  que  gastei  todo  o  dinheiro  trazido.  Não  podia  deixar Fonseca  seguir em caixão da  Santa Casa das Misericórdias, como um qualquer,  sem proteção e amizade. Estipulei desde logo:    — Vai em primeira classe.    Escolhi  caixão  do  melhor,  um  de  amarelos  por  fora  e  fofinhos  por  dentro.  Vistoriei  as tábuas,  não  fosse  alguma  ponta  de  prego  magoar  os  sequinhos  dele.  E,  nesse  corre-corre, larguei  no papo  do belchior  da  rua  Formosa  o  correntão  de  ouro,  acompanhado  de  relógio  e medalha.  Com  o  apurado, vesti  João  Fonseca  de  caixão  ostentoso,  de muita  gente pensar  que ia  dentro  defunto  enricado.  E  mais  não  fiz  porque  as  amizades  de  Fonseca  não  apareceram. Foi  embora  em  solidão,  comigo  na  garupa  do  enterro  e  mais  três  carruagens  de  aluguel  que contratei  para  engrossar  o  cortejo.  Feita  a  piedade,  voltei  em  missão  de  consolar  a  teúda  e manteúda:    — Conte com meus préstimos, no que quiser, em conselhos e dinheiros, mesmo que largos.    Como encontrasse, na casinha da rua do Gás, um restante cheiro de defunto encravado, que teimou   em  não   acompanhar   o   falecido,  mandei   que   escancarassem   os   compartimentos, franqueassem  portas  e janelas.  Cumprida  a  providência,  depressa  o  luar  e  o  vento  da  noite desempestearam tudo, de não restar recanto sem ser vistoriado e bisbilhotado. Fui então armar conversa na varandinha, na intimidade de uns vizinhos sobrados do enterro. Na altura da meia- noite apresentei a despedida:    — Muito que bem, dona Celeste, vou chegando.    Vejam  só! Entrei na  casa  do  falecido  de mão vazia  e  saí munido  de um  sabiá-laranjeira  de canto  limpo,  lembrança  de Fonseca  ao  seu  amigo  de  compra  e venda. Uma  quinzena  antes, já na beira  do  fim,  ordenou  que  o bichinho, na partilha  dos  seus  deixados,  coubesse  ao  coronel Ponciano de Azeredo Furtado. Teve até uma de suas poucas alegrias ao falar nisso:    — O coronel vai gostar, vai ter muito contentamento com o laranjeira.    Ao entrar na posse da prenda, que dona Celeste entregou entre lágrimas, senti um arranco no coração,  aquele  nó  de  garganta  que  sempre  teimava  em  desfeitear  a  minha  patente.  Gaiola debaixo  do  braço,  peito  oprimido,  saí  navegando  pelo  luar.  Antes  de  pisar  o  Hotel  dos Estrangeiros, numa esquina de rua, reprimi um começo de água que queria escapulir dos meus olhos. Ponciano vazava por dentro. 
 Morreu  Fonseca,  morreu  o  ano.  Abri  mão  de  várias  regalias,  menos  do  charuto.  Destratei Padilha, do  sujeito requerer  socorro, gritar pelas autoridades. Vendo meirinho  sobre meirinho no  meu  calcanhar,  pensou  o  capataz  do  Hotel  dos  Estrangeiros  que  era  chegado  o  fim  do coronel. Como primeira medida de traição, pediu o compartimento que eu ocupava, sem atraso de paga. Veio amolecido, bem conversado, com parte de que um doutor do governo trocava o quarto dele pelo meu:    — É gente de cerimônia, que precisa mostrar luxo.    Repeli a barganha, montado na maior grandeza:    — Se ele carece de compartimento mais vistoso eu também careço.    Padilha,  mais  tarde,  levantou  argumento  de  que  o  Hotel  dos  Estrangeiros  era  respeitoso, pelo  que  embargava  meu  proceder  a  certas  horas  da  noite,  quando  ocupava  os  préstimos  da arrumadeira  em  trabalho  que  todo  mundo  sabia  qual  era.  O  pior  é  que  a  mulata  das arrumações, em queixa deixada em poder de Padilha, acusava a minha pessoa de sua desgraça, de  ter  abusado  dela,  de  ter  extraído  a  sua  donzelice  sem  o  seu  consentimento, pois nunca  foi moça militante. Padilha, em cima desse falso, cresceu em coragem. Garantiu que eu não ficava nem mais uma noite no Hotel dos Estrangeiros:    — Vou levar o caso para banca de advogado.    Num  repente,  corri  atrás  do  espoleta —  e  foi  aquela  desorganização  em  que  sou  especial. Levantei  mesa,  quebrei  copo,  sopapei  uns  e  outros.  Padilha  debandou  rua  afora,  em  grito  de socorro. Firmei ponto de vista:    —  Desta bosta  não  saio!  Estou  em  dia  com  a paga  e  quero  ver  quem  tem  tutano  de  mexer comigo.    Padilha, tarde  da noite, voltou  apadrilhado  de  doutor, um homenzinho  de modos  educados. Já no  aperto  de mão,  que  arrochei  com  fé, viu  ele  que  o  coronel não  era  flor  de paletó. Nem deixei o sujeitinho da lei falar. Desbastei as mágoas na carcunda de Padilha. Que pensava ele de mim?  Mais  de  ano  e meio morava  eu no  Hotel  dos  Estrangeiros  e nunca  que  achou tempo para  dizer  que  eu  tirava  outra  serventia  da  arrumadeira  que  não  fosse  as  da  obrigação  dela. Como  vinha  agora  de  honestidade  em  riste,  quando  era  voz  sabida  que  nos  compartimentos dos fundos a farreagem corria livre, de encabular a vizinhança. E indaguista:    — Como, seu Padilha, como?    E  plantado  na  frente  do  doutor,  peito  alargado  pelo  ódio,  garanti  que  nos  meus  direitos nenhum filho de égua metia os cascos:    — Ainda está para nascer, doutor. Ainda está para nascer.    Digo que o tal advogadinho do apadrinhamento de Padilha era de lábia. Rodeou, penteou os meus azedos. Disse que conhecia o coronel Ponciano das labutas do Foro: 
   — Sou amigo de Carqueja. Vossa Senhoria conhece bem o Carqueja.    Foi  água  na  fervura.  Não  podia  destratar  um  doutor  da  amizade  de  Serafim  Carqueja.  O desentendimento  logo  mudou  de  tom  e  acabou  em  camaradagem,  em jantar  servido  de  mão própria por Padilha, já rendido e amansado:    — O coronel vai quando quiser, sem compromisso de coçar o bolso na paga dos aluguéis.    Dei prazo de dois meses para mudar :    — Estou em negócios de casa apalacetada na rua do Mafra.    Antes  do  tempo  apalavrado,  uma  quinzena  de  menos,  deixei  o  Hotel  dos  Estrangeiros.  A rogo  da  comadre  Alvarina,  mudei  os  trastes  e  pertences  para  o  Capão,  onde,  em  quarto arejado, fiquei em sossego. Uma plantaçãozinha de resedá subia de j unto da minha janela. Em pregos  de  segurança  espetei  a  gaiola  do  sabiá-laranjeira,  de  modo  que  a  prenda  de  João Fonseca puxasse as madrugadas na maior comodidade. Barba junto do ouvidinho dele falei:    — Vosmecê vai mostrar a esse povinho de asa e bico o que é uma gargantinha educada.    Dito  e  feito,  de ver tanta jaqueira  e  outras  qualidades  de  arvoredo,  o bichinho  deu  de tirar do peito novas remessas de cantorias. Farreava de ser admirado em chácaras longe. Juquinha, que  nos  antigamentes  de  menino  foi  passarinheiro  de  paixão,  tomou  a  cargo  a  mantença  do menestrel.  Mudando  as  águas,  escolhendo  os  alpistes,  sempre  relembrava  ser  o  compadre Ponciano sujeito sortista para bicho de pena:    — Depois do galo Vermelhinho, este laranjeira de peito claro.    Arrumei outro tipo de  soberba — do Capão ao Café Lord, um puxado de bem uma hora, eu tirava  em  lombo  de  cavalo,  um  estreleiro  de  linda  música  nos  cascos,  bicho  escolado  que  o primo Juca Azeredo botou às ordens das minhas esporas. Parava gente em admiração da peça, da sela avantajada e dos estribos de prata. Quanto mais a pecúnia minguava, mais eu arranjava grandeza. Se um conhecido, nas esquinas e portas do comércio, perguntava pelo meu passadio, a resposta descia ligeira de cima do estreleiro:    — Vou de vento em popa, namorando usina para comprar.    Espalharam que  eu não andava certo da bola, possuído de macaquinhos no  sótão. O que  eu não queria é que filho de vaca nenhum risse do meu tropeço. Na praça da Quitanda, em poder de  moleque  de  vintém,  deixava  as  rédeas  da  minha  navegação  e  saía,  espora  arrastada  na calçada,  em  visita  pelo  comércio  da  rua  do  Rosário.  O  que  mais  apreciava  era  judiar  da comandita dos dinheiros a juro, dos usurários dos bancos e tamboretes. Uma tarde,  sem aviso nem  recado,  empurrei  a  portinhola  de  vaivém  do  Banco  de  Crédito.  Deseducado,  entupindo tudo  na  fumaça  do  charuto,  inquiri,  debruçado  na  gaiolinha  do  pagador,  se  o  tamborete  tinha preparo capaz de agasalhar, em segurança, uns dinheiros meus:    — Tenho compromisso nos estrangeiros pelo que vou ficar ausentado um bom par de anos.    Um  atarracado,  de  caneta  na  cava  da  orelha, já  todo  derretido  e  prestimoso,  pediu  (“Não interrompendo, não interrompendo”) que eu mencionasse o montante dos guardados:    — Se isso não é incômodo para Vossa Senhoria.    Inventando que falava em voz baixa, fiz a conta, cocei a barba e desembuchei:    — Coisa pouca, na ordem de seus oitocentos pacotes, fora uns valores em papéis e joias de herança.    O  usurário  da  caneta  no  atrás  da  orelha,  cangote  retraído,  veio  trazer  Ponciano  na  porta. Segurou  a rédea  do  estreleiro  como  se  fosse  Janj ão  Caramujo  ou  qualquer moleque  da praça da Quitanda. Gabou o porte altivo do cavalo, a beleza da sela e os lavrados dos estribos: 
   — Que primor, que beleza.    Obtemperei que havia rejeitado por ele um par de contos de réis batidos:    — Em pelo, sem as pratas e benfeitorias.    Apreciava  fazer  essas  grandezas  pelo  gosto  de  ver  a  cara  de  vassalagem  do  povinho  dos empréstimos,  que  é  a  raça  entre  todas  a  mais  nefasta.  Dei  de  falar  em  compra  de usina  e  até entabulei  transação  com  uns  falidos  de  certa  fábrica  de  açúcar.  Quando  soube  que  era maquinaria antiga, engenho de pouco fabrico, repeli a proposta:    — Quero lá saber de ferro velho, seu compadre!    Desde  que  escorreguei  no  comércio  de  compra  e  venda,  fui  outro.  Cada  dia  que  passava, mais o coronel do mato vinha a furo, destrambelhado e ferino.  Se caminhava por uma calçada e  não  recebia,  de  algum  conhecido,  a  atenção  do  tempo  de  dantes,  logo  saía  na  esteira  do deseducado. Foi o que aconteceu ao capitão Anísio Cavalcanti, dono de uma fogueteria na rua do Príncipe e pessoa muito achegada aos políticos e suas festas. Cortou esquina para não falar comigo.  Caí  no  calcanhar  dele  e  na  porta  da  Pena  de  Bronze,  casa  de  lápis  e  caderninhos, encurralei o bichão contra a parede:    — Seu capitão, que soberba deu em sua patente que não quer mais salvar os superiores?    O  fogueteiro  encalistrou,  encolheu  o  orgulho.  Investi  contra  a  sua  desconsideração.  Que reparasse  no  meu  porte  e  visse  bem  se  a  queda  do  açúcar  havia  tirado  de  mim  um  dedo  de tamanho. E recuando, de modo a que ele tivesse a vista livre:    — Veja, capitão. Repare que até estou mais avantajado, mais engrandecido.    Mas  o  caso  sucedido  a  Baltasar  da  Cunha  é  que  foi  de  ser  contado  em  muitas  conversas. Vinha  eu  no  estreleiro,  nem  querendo pensar  nas  ingratidões  dos Nogueira,  quando  divisei  o doutor  engenheiro  aboletado  em  cadeira  do  Salão  Chic, na parceirada  de Artur  Fontainha.  Ia seguir a minha destinação em paz, que era a de comprar uns panos de camisa para a tesoura de minha  comadre  Alvarina, peças  de  que  eu  andava  desguarnecido. Nisso,  fui  atingido por uns guinchos  de  deboche  no  fim  do  qual  apareceu,  na  porta  do  Salão  Chic,  um  magricela  de tesoura   em  riste.  Um   chocalhar   de  risada   sacudiu   a  barbearia   e   sua  vizinhança.  Não demonstrei  ter  percebido  a  ofensa  —  pelo  canto  do  olho  vi  o  sujeitinho  na  macacagem  de representar  que  cortava minha barba.  Em  calma,  desci  da  sela  e rumei  os passos para  dentro do Bazar Aliança. Lá pedi uma gurungumba de assobio, de envergar como bodoque de bugre:    — Das de nó, moço, de dar em maluco.    Se Deus botou no mundo instrumental que sei trabalhar, é a tal da gurungumba. Na bochecha espantada  do  caixeiro,  fiz  o  cipó  assobiar  de  cobra  e  vento.  E  foi  assim,  bem  municiado  de porrete,  que  encalhei  meus  dois  metros  de  Ponciano  na  porta  do  Salão  Chic.  Baltasar  da Cunha, focinho revestido de sabão, fingia ler uns almanaques sovados de barbearia. Fontainha, a  par  do  meu  gênio  picado,  afundou  a  venta  nos  escondidos  da  saleta.  No  deboche,  o magricela da tesoura veio saber se o meu caso era de barba ou cabelo:    — Ou tudo junto ao mesmo tempo, doutor?    De  resposta,  liberei  o  cipó  em  cima  do  caçoísta.  A  gurungumba,  pegando  firmeza  na saboneteira do ombro dele, dobrou para a parte das costas  e ainda teve  força de  fazer grande agravo  na  traseira  do  abusado.  Atingido  em  região  dorida,  o  barbeiro  curvou  o  espinhaço  e pronto desfaleceu. Avisaram do meio da rua:    — O barbaça vai matar todo mundo.    Na confusão advinda, o moço da engenharia, rapidinho, de cara barbeada de uma banda só, 
escapuliu da cadeira e ganhou a rua mais desarvorado do que o pai dos capetas em capela de santo. Lá foi meu cipó vingancista mostrar ao safado o tamanho do braço do coronel. Com uma lambada de assobio, que zuniu ferina, desmanchei, no costado dele, todas as ofensas recebidas da corja dos Nogueira:    — Toma, filho de uma cadela!    O  engomadinho,  ganindo  em  formato  de  cachorro  espantado,  embarafustou  o  rabo  por  um armarinho de fazenda, de ninguém saber como entrou e saiu. Aí cantei de galo:    — Esse vai mijar vermelho o resto do mês.    Fontainha, de passagem, também pegou o seu levado, uma gurungumbada das que sei dar — do alto até as partes da virilha. Nem teve força de levantar. Emborcado ficou, como morto, no meio da rua. De novo serrei de cima:    — Aprendeu, sem-vergonha?    Desagravado, patente limpa, montei em sela e fiz o estreleiro subir nas patadas do coice. E do alto, varejei o cipó de minha justiça dentro da barbearia, acompanhado deste conselho:    —  Bota  num  quadro  e  dependura  na  parede  como  lembrança  do  coronel  Ponciano  de Azeredo Furtado.    Correu  ligeira  a  notícia  de  que  Baltasar  da  Cunha  e  mais  o  dr.  Nogueira  tinham  pedido providências das  autoridades, que  o governo ia  fazer  e  acontecer.  Serafim  Carqueja,  a par da arruaça,  correu  ao meu  encontro.  Queria  que  eu  ficasse  encovado no  Capão,  sem  aparecer na cidade:    — É o melhor que o coronel faz.    Repeli o conselho do bom Carqueja:    — Sou homem de esconderijo, amigo Serafim? Meu lugar é na porta do Taco de Ouro.    Aí mesmo é que firmei jurisprudência de não sair das mesas dos cafés e esquinas povoados. E  assim  a  trovoada  amainou.  Nenhum  meirinho  da  Justiça  veio  intimar  o  coronel  e  de Pernambuco  Nogueira  vim  a  saber,  semana  depois  da  desavença,  que  tinha  abocanhado,  em Niterói,  o  tal  cargo  da  governança.  A  troco  desse  pau  de  poleiro  desprezou  os  amigos  de antes, o que valeu ao seu lombo uma boa sova de jornal. A tal gazeta, entre outras rebaixações, afiançava  que  a  ida  de  Pernambuco Nogueira para  a  Limpeza  Pública  calhava no  seu  caráter de lata de lixo. E como arremate, em letra graúda:                                   NOGUEIRA, ADVOGADO DE PORTA DE XADREZ,                                TEM O QUE MERECE: O MENOSPREZO DO POVO.      Achei  graça, ri  de  chamar  a  atenção.  Estava  eu na porta  do  Café  Lord,  charuto  a meio pau na ponta  do beiço  e  chapelão  desabado para  o  cangote. E  foi nessa postura  que  falei  alto,  de modo a ser escutado em distância de muitas braças:    — Essa do lixo é boa, tem seus cabimentos. Calha de luva no chifre do ordinário.    Para  debelar  a  ofensa  da  gazeta  os  amigos  de  Nogueira  armaram  banquete  de  muitos talheres.  O  safardana do  Selatiel de  Castro  sustou viagem demorada para vir  ao  come  e bebe do  doutor.  No  decorrer  da  semana  era  o  que  mais  saía  nas  folhas  —  rapapés  e  baj ulismos estipendiados  pelo  povinho  do  governo,  agora  de  braço  dado  com  as  sem-vergonhices  de Nogueira.  E  lá  uma  quarta-feira,  em  mesa  do  Taco  de  Ouro,  li  o  que  foi  a  comilança.  Pelo feitio   do   escrito,   devia   ser   da   lavra   de   Portela,   sujeito   muito   apropriado   para   esse subalternismo. Contava a gazeta de imprensa que o financeiro  Selatiel de Castro tinha cortado 
viagem  longa  só para  estar  do  lado  do  dr. Pernambuco Nogueira,  seu  amigo  íntimo. E  depois de outras considerações, dava conta dos discursos — era quem mais queria agradar. Acabado o  peru,  o  convescote,  de  carruagem  aberta,  rumou  em  direitura  da  rua  dos  Frades,  onde  foi servida  noite  de  recitativo  e piano.  Peixotinho  do  Cartório,  dando braço  forte  à  homenagem, apareceu de surpresa, no comando de uma serenata que entrou madrugada adentro:    — Corja de lobisomens, cambada de sem-vergonhas!    Enojado,  deixei  cair  no  assoalho  a  gazeta  de  imprensa  e  não  satisfeito  esfarinhei  o papelucho  a  poder  de  botina.  Era  como  se  pisasse  a  rua  dos  Frades,  os  Nogueira,  o  mundo todo:    — Cambada, súcia de ladrões!    Ainda  estava  forte  o  barulho  do  banquete  quando,  uma  tarde,  na  praça  da  Quitanda,  vi passar, em carruagem de luxo, dona Esmeraldina e Selatiel de Castro, o Castro dos dinheiros a juro  do  Banco  da  Província.  Ia  o  bicho  em  facilidades,  todo  garboso,  bengalinha  no  dedo  e charuto  dorminhoco  na  boca.  Ao  dar  comigo,  espetado  na  calçada,  a  mulher  de  Nogueira rebaixou  os  olhos.  Digo,  sem  mentira,  que  não  senti  o  menor  repuxão  no  peito.  Era  como  se tudo fosse decorrido muito no antigamente, já em bolor de gavetão. Dei de ombro:    — Vaca!        Por  causa  das taxas  e  dízimos  fui  obrigado  a voltar  ao  Sobradinho.  Já não  era  sem tempo. As educações da cidade não comportavam mais o coronel do mato que eu era. Meus berros de pastos varavam longe, metiam medo. Ponciano de Azeredo Furtado exagerava tudo. Puxei uma procissão  em  louvor  de  Nossa  Senhora  do  Parto.  Foi  tão  encorpada  a  minha  cantoria  que  o padre, coroinha novo no ofício, veio pedir que eu rebaixasse o tom:    — Mais baixo, mais baixo.    Danei:    — Não rebaixo nada. Nasci assim e assim vou morrer, seu vigário.    Mas a volta aos pastos não andava no meu propósito. Aconteceu que Juquinha Quintanilha, vindo da remissão de uns impostos, apareceu afrontado. Em quarto trancado e conversa baixa, relatou  que  dado  escrevente  do  governo,  que  o  compadre  conhecia  de  pouco,  disse  da tratantada  que  maquinavam  contra  um  tal  de  Ponciano  de  Azeredo  Furtado.  Nem  de  longe adivinhava  o  escriturário  dos  dízimos  que  Juquinha  Quintanilha  era  unha  e  carne  comigo. Assim,  desprevenido,  deu  a  língua  no  dente.  Afiançou  que  atrás  da  manobra  tinha  dedo  forte do  governo.  O  caso  é  que mandaram  levantar  as  obrigações  de  Ponciano  desde  que  o mundo era  mundo,  acrescidas  de  moras  e  outras  invenções  do  pessoal  dos  impostos.  Iam  meter  a Justiça no caso, em demanda que era traição da maior :    — O tal coronel vai chiar sem ser cigarra.    Bem  Juquinha  não  acabou, já  pulava  eu  na  direção  das  malas  e  bagagens.  Chamei  dona Alvarina:    —  Comadre,  apronte  os  utensílios.  Vou  mostrar  a  esses  cachorros  do  governo  quem  é  seu compadre Ponciano.    Logo  fiz  fumaça  de  guerra.  No  belchior  da  rua  Formosa  deixei  umas  restantes  peças  de herança, um anelão e duas alianças que sempre guardei para uma emergência de tomar estado. Foram  esses  meus  ouros  fazer  companhia  ao  reloj ão  que  torrei  na  morte  de  João  Fonseca. Guarnecido  de  bolso,  voltei  ligeiro  ao  Capão.  Varei  a  noite  em  claro  e  ouvi  o  choro  da 
comadre  Alvarina  e  a  fala  consoladora  de  Juquinha. Na  certa,  a boa  senhora  tirava  lágrimas por  mim.  Se  não  fosse  faltar  ao  respeito,  era  homem  de  entrar  no  quarto  dos  compadres  e levantar, na força de discurso, o ânimo deles:    —  Isso  não  é  nada,  dona  Alvarina.  É  incômodo  que  rebato  com  um  par  de  berros, compadre.    De manhã, na primeira modinha  do  sabiá-laranjeira, pulei  da  cama  e já  o  café  da  comadre esperava  por  mim  em  bule  de  batizado,  uma  peça  bojuda,  de  lavrados  e  lavradinhos. Contraída de pesar, dona Alvarina preparou embornal carinhoso, galinha e outros pertences de viagem. E ajuntou a todas essas regalias uma garrafa de jinjibirra, de sua especial fabricação:    — É para o compadre matar a sede no trem.    Na  despedida,  o  soluço  embargou  a  comadre,  de  não  ter  boca  que  falar,  nem  mão  que acenar. Deixei com ela abraço animoso:    — No mais tardar, volto numa semana. Nem carece de desfazer a cama.    Dei  graças  ao perder, no  lombo  do  estreleiro,  o  Capão  de vista.  Quintanilha veio  ao bota- fora  da  estação,  na  qualidade  de  carregador  das  bagagens.  Queria  que  eu  não  agravasse  a guerra:    — Compadre, governo é governo, tem poder de não acabar mais.    No  trem,  sabiá-laranjeira  do  lado,  como  se  passageiro  fosse,  dei  balanço  aos  meus salvados.  A  bem  falar,  voltava  o  neto  de  Simeão  de  bolso  vazio,  mas  enricado  de  muitas  e boas  experiências.  Suj eito  nascido  como  eu,  altão,  de  mais  de  uma  nuvem  encalhar  no  meu cabelo,  não  podia  ficar  arreliado  com  as  picadas  dos  gongolôs  e  das  minhocas  cá  de  baixo. No mais, não  era  de bolso vazio  quem possuía um passarinho  como  o  que herdei  do  falecido João  Fonseca.  Muitas  outras  gentes  tinham  baús  de  brilhantes  e  brilhantins,  mas  cantoria  de veludo  só  quem tinha mesmo  era  o  coronel  Ponciano, na  gargantinha  do  seu  sabiá-laranjeira. Por  isso,  os  apressadinhos  da  estação  cuidaram  que  eu  estivesse  avariado  do  miolo  quando cheguei e comprei passagem para o cantador :    —  Quero,  sem ver  despesa,  assento macio para  acomodar  a bundinha  do meu  sabiá,  que  é prenda que não barganho nem pelas pratas nem pelos ouros do maior sultão das Arábias.    Subi  de  foguete,  desci  em  flecha  queimada.  O  que  lucrei nos  três  anos  de  afastamento  dos pastos, na cidade deixei em formato de benfeitorias, em bondades que espalhei, em encrencas que  tive por  causa  dos  outros.  Mas  nada  disso,  nem  a  quebra  do  açúcar  nem  os  agravos  dos Nogueira,  vergava  meu  ânimo  guerreiro.  Não  foi  de  presente,  em  bandeja  do  governo,  que recebi o canudo de coronel e suas competentes regalias. Ia mostrar ao povo dos impostos que não era com papelinho da Justiça que o governo metia o bedelho no que de raiz era meu:    — Nem de papel, nem sem papel.    Em  Santo Antônio,  o trem pegou umas mercadorias  e  dois  ou três trafegantes  do  comércio. De  novo  andou  e  ao  roçar  o  engenho  do  Visconde  obtemperei  alto,  assim  em  modos  de perturbado do tino:    — Não vão fazer comigo o que fizeram com ele. Não vão, que Deus é grande e o meu braço coisa de destroncar o boi mais pescoçoso.    E  apontei  a  carcaça  do  engenho  que passava,  encabulada, pela janela  do trem. Mais  de um viajante  que  dou  caído  em  espanto  sem  atinar  com  os  motivos  do  meu  destampatório  e  fala grossa.  Armado  de  charuto,  ministrei  lição  a  respeito  da  desgraça  que  ferrou  o  Visconde  em parte mortal. Engenho melhor que ele nunca houve. Açúcar do seu fabrico podia ser igualado à 
brancura das espumas. Pois tanto gravame levou, tanto imposto jogaram nele, que o pobre não aguentou. Um belo dia apagou o fogo da fornalha e virou ninho de gambá, lugar empesteado de baba e asa de morcego:    — Tudo por culpa do governo, pelo desmazelo dos políticos, que tudo isso é uma corja só.    Um  vermelhão,  que  chupava  cigarro  de  palha  em  banco  afastado,  aprovou  o  que  eu ensinava:    — O coronel está com as boas razões.    Fui assim, de estação em estação, montado em retreta, de ladrões e gatunos fazendo a festa. Juntou  viajante  em  meu  derredor  e  eu  de  ódio  solto,  charuto  devastador  no  dente.  Um embonecadinho,  que  lia  gazeta  de  imprensa  em  canto  retirado,  resmungou  embargo  contra  a fumarada do Flor de Ouro. Logo mudou de ideia ao ver em frente de sua pessoa esta palmeira de  nome  Ponciano  de  Azeredo  Furtado.  Nunca  pensou  que  um  cristão  pudesse  ganhar  tanta altura do pé ao chapéu. Munheca na carinha dele, perguntei em tom educativo:    — Vossa Senhoria é dama que não aguenta catinga de charuto?    Não  dei  andamento  ao  resto  da  palhaçada  porque  minha  atenção,  nesse  entrementes, esbarrou  na  cara  de  um  cobrador  de  impostos  da  camarilha  de  Jordão  Tibiriçá.  De  peito aberto,  aos  berros,  garanti  que  em  sela  do  neto  do  velho  Simeão  ninguém  montava,  nem governo, nem desembargador, nem nada:    — Só Nosso Senhor Jesus Cristo. Só ele.    O cobrador de dízimos sumiu no emaranhado das bagagens de onde só desencravou o medo na parada  de  São  Gonçalo.  Fora  do  meu braço,  caiu  de  conversa  com  o  mestre  da  estação  e apontou  para  mim,  como  sujeito  acabado  de  sair  das  garras  de  um  maluco  da  cabeça. Providenciei pular do trem. Nisso, a máquina fungou, fez aquele escarcéu de largada, fincou as patas nos trilhos, e partiu. Da janela, cara de fora, barba ao vento, eu devia ser a figuração de Satanás, pois  tanto  o  mestre  da  estação  como  o  sugador  de  impostos  desapareceram  entre  as mantas  de  carne-seca  que  esperavam praça  em  São  Gonçalo.  Mandei  em  direitura  deles meu grito de guerra:    — Gatunos!    Isso  feito,  cuspi  o  nojo  e  voltei  a  firmar  assento  rente  do  sabiá-laranjeira.  O  resto  da trafegagem  foi  charuto  a meia brasa,  sem grande  fumaça, uma vez que  o balancinho do trem  é conforto capaz de botar sonolência mesmo em olho de boneca. No braço dessa cachaça dormi para acordar já  em  Santo Amaro, no choro das  ferragens. Da portinhola, avisei que  estava de volta:    — Vim mostrar aos safados do governo quem é Ponciano de Azeredo Furtado.    Em  passo  largo,  embornal  e  sabiá-laranjeira  no  dedo,  ganhei  a  porta  do  Bazar  Almeida, onde requeri munição grossa:    — Pode descer a mercadoria, que compro tudo que for bala de calibre avantajado.    Já  era rodeado por  gente  espantada,  quem mais  querendo  saber  que  cobra tinha mordido  o coronel do Sobradinho. Barba entrouxada na mão, ofendi o governo e seus agregados e, quanto mais ofendia, mais tomava gosto pela ofensa. Pedi notícias de Jordão Tibiriçá:    — Em que buraco mora esse gatuno?    Foi como se o coronel cutucasse em ninho de lobisomem. O Bazar Almeida parou limpo de gente,  sem mais  quem  escutar meu  destampatório. Não  afrouxei  a  galhardia. Virei  o vento  da raiva  contra  o povinho miúdo  de  Santo Amaro,  que tremia  de vara verde na presença  de uma 
afronta a Jordão Tibiriçá. E da porta berrei:    — Cambada de mariquinhas! Vou mandar vestir saia em todo esse povinho safado.    Aos pinotes,  em mula  emprestada,  larguei  Santo Amaro. As  cigarras  do meio-dia  chiavam nos  pés  de  pau  e  no  mato  mais  desimportante.  Até  o  fio  dos  telégrafos  tinha  cantoria  delas. Tanta  algazarra,  vinda  das  folhagens,  acabou  por  contaminar  o  laranjeira,  sempre  pronto  a mostrar  sua  mestria.  Em  vista  de  garganta  tão  educada,  as  cigarras  perderam  o  fôlego, deixando sozinho o sabiá em sua aulinha de canto. Admirado de tamanha harmonia, avivei, em parecer de voz alta, os gorjeios dele:    — Vosmecê é muito cantativo, mais que um tenor das ribaltas.    Ia a música nessa pauta, eu em elogiação e o sabiá em trinados, quando, de uma figueira-do- inferno, um peito-ferido veio escurecer o bom andamento da viagem. Não fui mais coronel de ter  sossego  —  aquele  noj ento  par  de  asas  seguiu  meus  passos  bem  longe,  sertão  adentro. Arreliado, mandei que fosse acapangar a mãe:    — Bicho desnaturado, forma de fazer capeta!    Não  encontrei  ninguém  que  merecesse  meio  dedo  de  prosa  —  só  molecote  de  pasto  ou pegador de passarinho. Gente de botina não vi nem para um bom-dia, como-vai-como-passou. E foi em boca calada, garganta ressequida, que cheguei ao  Sobradinho. A tarde devia estar no ponteiro  das  três,  o  que  aquilatei  pela  sombra  dos  arvoredos.  Nem  gente,  nem  bicho  nas redondezas  da  casa  de  Simeão. Abandono  assim  só  em  dias já passados  de peste, num tempo de dantes muito recuado, quando o bafo malino dos pântanos espalhou,  sem consideração por reza  e  remédio,  miasma  e  febre  palustre.  Descido  da  mula,  velejei  de  modo  a  pegar  o Sobradinho  na  parte  traseira,  onde  em  dias  de  sua  vida  teve  o  galo  Vermelhinho  poleiro  e gaiola. No beiço da escada, parei de coração repuxado. As ervas-de-passarinho,  sobradas da cumeeira, vinham meter os dedos nos rachados das paredes. Juquinha levava razão — a manta de água havia pintado o bode no sobradão de meu avô, em banho que nunca existiu outro igual em  duzentos  anos.  Foi  pisando  em  mágoa  que  ganhei  a  sala  de jantar,  de  onde,  em  setenta invernos, Simeão comandou suas muitas léguas de curral e pasto. No desensofrimento de abrir janelas e portas, tropecei num montão de selas e arreios, a que rebati a poder de praga:    — Vai embargar a mãe!    De  novo  restabelecida  a  paz,  cuidei  ouvir  passos  nos  compartimentos  dos  fundos.  Sem demora inquiri:    — Seu Antão, seu Antão Pereira?    Não era Antão, não era nada. Bem averiguado, devia ser uma coruja extraviada na tarde ou capaz  que  uma  abusão  das  trevas  esperando  hora  noturna.  Em  cautela,  e  nunca  por  medo, armei  meu  quartel  na  varanda  do  Sobradinho.  Lá  de  baixo,  subia  a  cantoria  limpa  do  sabiá- laranjeira. Outra vez pensei ouvir passos, pelo que logo intimei:    — Os de casa que apareçam. O coronel está de volta.    Como vento solto, o vozeirão de Ponciano correu o descampado, desmantelou a madorna da tarde  e  ainda teve  sustância para  espadeirar um magote  de  anuns  que vadiavam numa  cancela carcomida. Reforcei a intimação:    — Ó de casa, ó de casa!    Da  sombra  das  casuarinas  um  vulto  começou  a  vigorar.  Era  Janj ão  Caramujo,  todo embaraçado no  sono da cachaça. Cruzei os braços em grande admiração. Anos atrás, deixei o negro nessa mesma postura de lagartão velho em gozo de sol. Andei em largas ausências, virei 
e mexi. Fiz  dinheiro  de jogar  fora  e mais  de uma  cabeça  de moça  donzela  larguei perdida.  E vinha  de  volta  encontrar  Janj ão  Caramujo  na  vigilância  de  sempre,  na  maior  amizade  pelo Sobradinho. Tamanha devoção buliu comigo e desabei escada abaixo, já de abraço montado:    — Seu Janj ão, bons olhos vejam sua pessoa.    O tratador de cavalo, desacostumado a cortesia tão bondosa, recuou em perna embaralhada. A  custo  reconheceu  o  coronel  e  foi  então  um  contentamento,  dele  e  meu,  de  lavar  os  peitos. Sacudi o negro no apertão do abraço:    — Seu Janj ão, vosmecê não mudou em nada.    Dos  cumprimentos  passei  aos  casos  do  Sobradinho.  Onde  andava  Antão  Pereira  que  não dava  cobro  aos  desmazelos  do  casarão?  Que  era  feito  da  dinheiraça  que  eu  tinha  largado  no bolso dele a título de reparos e outras serventias? E de dedo apontado para a farreagem que os verdes do mato faziam nos beirais do casarão:    — Onde anda esse desalmado, seu Janj ão, que não vê as ervas-de-passarinho imperando na minha varanda?    Janj ão,  assombrado  da  minha  presença,  não  tinha  força  para  responder  ao  patrão.  Mandei que  subisse  comigo,  em  visita  de  correição,  não  estivesse  num  recanto  de  sala  ou  quarto  do Sobradinho alguma surucucu esquecida das águas. E na brincadeira:    — Ademais, vosmecê é especial nessas faxinas.    De par  em par,  o negro  abriu portas  e janelas,  do  que  o vento  aproveitou para  espantar  os cheiros  de  bolor  do  casarão  em  resguardo.  Feito  o  asseio,  passei  a  comprovar  o  vigor  do assoalho, não estivesse em alguma parte corroído e precisado de madeira nova:    — Vou mandar vistoriar tudo isso por mestre de obras.    Na  mão  das  águas  o  que  muito  sofreu,  vi  de  olhos  próprios,  foi  o  reboco  —  minava umidade de mais de uma parede. Mas ficasse Janj ão sabedor de que o coronel ia meter brocha de pintor e plaina de carapina de modo a embonecrar o Sobradinho, do telhado às cacimbas:    — Seu Janj ão, ninguém, pronta a obra, vai conhecer a casa do velho Simeão. Até quadro de parede vou mandar vir da cidade.    Isso  dizendo,  subi  ao  sótão  das  armas  e  foi  uma  luta  para  abrir  fechaduras  e  cadeados. Janj ão  pasmou  de  ver  tanta  raça  de  bacamarte.  Revirei  uns  e  outros,  mostrei  ao  negro  o  pau das coronhas:    — Madeira de lei, que nem existe mais, seu Janj ão.    Cuidei  que  o  paiol  das  munições,  uma  arca  pesadona  dos  capetas,  sofresse  os  agravos  da chuva. Para alegria minha, tudo estava seco, em ponto de serventia. Janj ão, que nunca gozou as regalias desse compartimento do  Sobradinho, coçava o queixo, de olho comprido nos paus de fogo.  E  quase  ganhou  um  desarranjo  de  peito  na  hora  em  que  passei  ao  poder  dele  uma espingarda de  fogo-central, capaz de esbagaçar a onça mais opulenta ou outro qualquer bicho de igual porte:    — É pertence seu. Tome conta da prenda, seu Janj ão.    No cotovelo da tarde chegou Antão Pereira, mais gago do que deixei anos atrás. Não queria acreditar que o coronel estivesse de volta. Bati no ombro dele:    —   E   de   vez,   seu   Pereira,   de   vez.   Domingo   vou   de   pessoalmente   buscar   a   velha Francisquinha em Ponta Grossa dos Fidalgos.    Custei a retirar Antão do espanto. Balançava a cabeça, chapéu sempre rolado nos dedos. Se eu tivesse prevenido, mandado recado ou bilhete, tinha dado um arranjo na casa. Nunca que ia 
figurar  o  patrão  no  Sobradinho,  pois  corria  nos  pastos  como  certo  que  o  coronel  estava querendo trocar os currais por chaminé de usina. Não confirmei, nem desconfirmei:    — Tenho esse propósito, mas ainda não deliberei em decisão final.    Pedi que Antão ficasse a gosto para saber das novidades trazidas. E naquele meu natural de medir soalho, barba na frente e mãos no atrás das costas, inaugurei os trazidos:    — Fique em cadeira segura que é coisa de pasmar, seu compadre.    E  ia  bem  entrado  na  conversa,  Pereira  a  par  da  guerra  de  exterminação  que  eu  preparava contra  o povo  dos  impostos,  quando  Janj ão  Caramujo,  orgulhoso  de  sua  espingarda  de  fogo- central,  gritou  lá  embaixo,  das  casuarinas,  como  embargando  passo  intruso.  Corri  para  a varanda  no  receio  que  fosse  meirinho  portador  de  intimação  do  governo.  Mas  quem  deparei em conferência com Janj ão era pessoa do meu maior bem-querer. Gritei do meu mirante:    — Seu Tutu, corra logo para saber das novas.    O  mulato,  sempre  carregado  de  cerimônia,  requereu  permissão  para  dar  um  abraço  no coronel Ponciano, seu patrão e padrinho. Apertei o pardavasco como aprecio apertar gente de minha especial estimação, no arrocho, no quebra-costela:    — Sim senhor, não esperava visita tão galhardosa.    Disse Tutu, que andando em visita a uma menina empanzinada de vermina, soube, ao passar por  Santo Amaro, que isso era o que mais dava nas conversas do comércio, da minha chegada no  trem  da  manhã.  Correu  de  imediato  para  trazer  suas  gratidões  e  sentimentos  ao  coronel, pelo muito que fiz por ele nos dias em que andou na beira da cova, atacado de mazela sarnosa:    — Sou muito agradecido a Vossa Senhoria.    Mandei que deixasse de bobagem:    — Não tem que agradecer nada. Como anda o seu comércio de cobra, seu Tutu?    No  seu  feitio  respeitoso,  Militão  pediu  licença  de  relatar  uns  avantajados.  Enquanto  o coronel  andava na  cidade,  ele, liberado  da unha  da  doença,  aumentou  a profissão  de  curador, aprendeu  outras  simpatias,  tais  como  cura  de  quebranto,  barriga-d’água,  espinhela  caída  e carne  rendida,  fora  um  reconfortativo  de  sua  inventoria,  de  grande  prestança  em  caso  de fraqueza:    — Estou largando o ofício de curador de cobra, meu patrão.    Atalhei na galhofa:    — Pelo visto, vosmecê tomou o lugar do falecido Juju Bezerra.    Na  marola  da  conversa  (“Como  vai  Sinhozinho,  onde  anda  Dioguinho  do  Poço?”),  veio  a furo  o nome  de  Jordão  Tibiriçá.  Tomado  de  ódio  incontido,  que  eu nem  sabia possuir,  dei  de falar  alto,  no  meio  da  sala,  como  um  possesso.  Era  uma  força  que  subia  do  meu  íntimo  e saltava pela boca. Destratei o cobrador de impostos e ofendi, no mesmo vento da má-criação, Nogueira e sua camarilha:    — Tudo uma corja de ladrões, uma comandita de gatunos.    Tutu e Antão Pereira, cuidadosos de que eu tivesse perdido o tino, correram para apaziguar meus perturbados:    — Coronel, pelo amor de Deus, pelo amor de Deus, coronel.    Não atendi o pedido dos  suplicantes e  saí varanda afora,  sempre aos berros, obtemperando contra  o  governo.  Fui  e  voltei  no  impulso  do  ódio.  A  barba  do  coronel  era  que  mais  sofria nessas destemperanças — virava rosca de parafuso ou escada de caracol, de tanto ser torcida e  destorcida. E  foi  enrolando  esse pertence, no  entra  e  sai  da  sala para  a varanda,  que  firmei 
jurisprudência.  Sacana  nenhum  do  governo  botava  a  pata  pestilenta  em  terras  da  minha herança:    — Nenhum, seu Tutu. Nenhum, seu Antão.    E de j oelho, fazendo parte de que estava munido de arma de fogo, figurei atirar por trás das pilastras da varanda. A matraca da língua trabalhava como carabina de repetição:    — Tá-tá-tá-tá-tá.    Já  via  meirinho  da  Justiça,  protegido  pelos  meganhas  da  governança,  avançar  mourões  e porteiras do Sobradinho adentro. Chamei Pereira, mais gago que nunca:    — Seu Antão, lá está um. Veja o olho de fogo do atrevido.    Pereira, rente de mim,  especulou  a parte infestada, mas teve  o desplante de negar presença de meirinho nas imediações de uma touceira de capim-limão. Que eu desculpasse a sua pouca vista. O que aparecia em forma de brasa bem podia  ser o fogo dos vaga-lumes, já que a tarde descaía:    — Mais não é, co… co… coronel.    Escumei de raiva, culpei os olhos dele:    — Seu Pereira, do que vosmecê mais precisa é de um par de óculos de couro.    E outra vez aos berros, garanti que não barganhava a minha vista por vista de menino novo, que graças a Deus nunca necessitei de cangalha no nariz para despedaçar, em tiro certeiro, um mangangá na distância de muitas braças:    —  É  quanto  aparecer,  quanto  morre,  seu  Pereira.  Não  sou  homem  de  mentiradas,  seu Pereira.    Puxei Tutu e apontei o descampado:    — Vosmecê, homem mateiro, que vê coisa que ninguém nunca vê, diga na maior verdade se no atrás das casuarinas não está um moleque fazendo deboche?    E  sem  esperar  resposta,  como  picado  de  faca,  corri  de  possesso  na  direção  do  paiol  do Sobradinho em busca das armas. Ouvia, no atropelado da minha cabeça, o barulho de tropa do governo. E da boca da escada, com a botina no primeiro lance, abri o berrador :    — Cambada de sacanas! Vou comer tudo na bala.    Nisso, no  esforço  de  derrotar  de  dois  em  dois  os  degraus  do paiol,  sofri uma  agulhada no centro  do  peito  —  o joelho  dobrou  e  caí  de  borco.  Tutu,  no  meu  calcanhar,  gritou  em  feitio embargado:    — Seu Antão, corra depressa que o coronel está em aflição mortal.    Ainda  percebi,  no  derradeiro  furo  de  minhas  forças,  aquele  corre-corre  cada  vez  mais lonjal — Tutu pedindo vela  e Antão Pereira  em  choro. Um  sono  de paina,  desses  que  fecham os  olhos  da  gente  com  bondade,  tomou  conta  deste  Azeredão  Furtado  dos  pastos  de  Santo Amaro. Quando dei acordo de mim, sei lá que tempo decorrido, já andava longe, em terras de Badejo  dos  Santos.  Saí  do  Sobradinho  sem  atinar  como,  que  perna  e  lombo  de  cavalo  não usei.  Fiz toda  a viagem  em relâmpago —  a tardinha  que  deixei na varanda  do meu  avô  era  a mesma  que  escurecia  os  matos  do  major.  Andava  eu  em  leveza  de  passarinho,  sem  gasto  de batina, sem esforço de perna. Achei graça de tais artimanhas:    — O coronel é levado da breca. Quem é que pode com as invenções do coronel?    O  engraçado  é  que  eu  não  sofria  mais  a  pontada  do  peito,  o  aguilhão  que  ferrou  a  minha carne na escadinha do paiol. Era alegria sobre alegria, contentamento e mais contentamento. E foi  em  pé  de  sonho  que  especulei  as  posses  do  amigo  Badejo.  E  levado  por  um  bulir  de 
macega,  relembrei  um  contado  do  povo  que  dava  como  existente  nas  terras  do  major  um serpentão  de  fundo  de  cacimba  que  era  dos  mais  nefastos.  O  encantado,  velho  de  muitos antigamentes,  saía  de  suas  funduras  no  cair  da  noite,  no  alumiado  da  estrela  papa-ceia,  para então  armar  estripulias  nas picadas  e  veredas  do  mato.  Quem  deparasse  com  ele  era  vivente perdido,  desmiolado  da  cabeça.  Sobrevinha  logo uma  fraqueza  das  ideias,  de nenhum  doutor dar jeito.  Se Badejo  dos  Santos, homem  de patente, não tomasse  como  ofensa,  eu  era  coronel de esbagaçar o serpentão e limpar os seus pastos de tal maldade. Para evitar uma desavença, e eu ter que passar por cima da autoridade dele, tratei de  sair dos pertencentes do bom amigo e vizinho, pelo  que  avivei  o passo.  E nesse  avivar  fui bater perto  de um  cachorro  que  farejava trilha  de preá. Ao  dar  comigo,  o bicho meteu  a rabeira  entre  as pernas,  arrepiou  o  serrote  do lombo e saiu em gemido de agoniado. Enxotei o medroso:    — Vai agourar a mãe nos infernos, seu nojento.    Uma  camarilha  de urubus,  lá  no  alto,  corria  na  frente  da  noite.  Era  hora  da  corujada.  Sem rumo  certo, perambulei  em vadiagem  de um  lado  a  outro. De repente, por  entre uma  folga  do arvoredo,  pulou  a  casa  de  Badejo  dos  Santos,  que  eu  conhecia  de  raspão,  sem  nunca  ter gozado  de  sua varanda  ou  da  sala  de jantar.  Contavam  que  o major  guardava  a  sete  chaves  e tramelas uma  sobrinha de largos merecimentos, portadora de uma guarnição de pernas de fina nascença,  além  de  bem  municiada  na  sua  repartição  dos  fundos,  coisa  de  ser  vista  até  de longe,  tal  a  grandeza  dos  avultados  dela.  Por  conseguinte,  o  que  calhava  era  eu  aparecer  lá, cumprir a cortesia dos currais (“Estou de volta, major, às ordens de sua amizade”) e aquilatar, de olho próprio, as propaladas belezuras e avantajados da menina de seus cuidados. Esfreguei as mãos no vento desse pensar :    — Muito que bem, muito que bem. O coronel é de muita ideia.    Tomada a deliberação, ajeitei a barba, retirei uns picos-de-macaco do brim das calças — e caí  em  chão  de  estrada,  um  caminho  de  esmerado  trato,  liso  de  calhaus,  que  até  era  de pena dar passagem a casco de rês e roda de carro de boi. Pois nem tinha eu avançado dez braças e vejo  assomar,  dos  escurinhos  de  um  bambuzal,  aquela  soberba  manada  de  mil  chifres.  O caminho,  de um beiral  a  outro,  ficou  atravancado  e pouco  faltou para  que  a  aspa  de um boi- corneta  não  varasse  o  meu braço.  Em  salto  de  gato  afastei  o perigo.  Mas  saiu  tão  tutanudo  e descalibrado o pulo, que Ponciano atravessou o arvoredo e foi pousar, de passarinho, na outra banda, no coice da boiada. Era de muito admirar — na beira dos sessenta, maneiro de junta, o neto  de  Simeão  ainda podia  apresentar  essas vantagens  do uso  da  gente moça. Um  campeiro, que vinha na bosta do gado, passou em ventania, sem consideração pela minha pessoa. Abri a goela:    — Filho de uma vaca, cegueta de uma figa!    O  abusado,  sem  dar  confiança,  sumiu  na  poeira.  Resolvi  apreciar  a  noite  que  a  Lua começava  a  polir.  Além  do  mais,  devia  fazer  hora,  de  modo  a  pegar  o  major  no  depois  do jantar, e nunca antes, que assim mandava a etiqueta. Afundei na estrada, na apreciação de uma beleza e outra.  Sou de coração muito humanal e não tenho olho só para benfeitorias de pasto e curral.  Sei  apreciar  uma  boniteza  de  planta,  uma  asinha  de  borboleta  e  ninguém,  nestes  anos todos  de  minha  vida,  fez  injustiça  contra  os  passarinhos  do  meu  céu  e  os  bichos  de  meus matos. Por isso, na vadiagem pelos ermos do major, parei na vistoria de uma ninhada de lírios que  bebia  água  choca  de  um  mangue  de  mau  caráter.  E  estava  eu  no  admiramento  desses mimosos  quando,  do  lado  onde  sumiu  o  vaca-braba  do  campeiro,  senti  passos.  Talvez  o 
atrevidão viesse  desagravar  a mãe  ofendida,  sabido  que  gente  de  curral  é tardosa  das  ideias. Sendo  assim,  tratei  de  esconder  minha  pessoa  no  escuro  de  uma  figueira-do-inferno.  Queria, com essa manobra militar, ganhar as vantagens da surpresa, o que numa guerra de estrada vale por meia briga vencida. Os passos vieram vindo, cada vez mais achegados. Matutei com meus botões:    — Deve ser o vaca-braba. Ele e mais vivente nenhum.    Apurei  a  atenção  e  vi  na  minha  frente,  em  distância  de  um  couro  de  boi  espichado,  saído não  sei de onde, um tal capitão Felisberto das Agulheiras, que uma jararaca tinha dado morte em anos bem recuados. O capitão, muito devocioneiro de são Benedito, vivia de bentinhos no pescoço.  Em  viagem  mais  alongada,  levava  sempre,  em  mulinha  especial,  oratório  e  água benta.  Fugia  ele  de  morrer  como  herege,  desbeneficiado  da  religião.  Sem  mostrar  receio, inquiri o aparecido:    —  Se mal pergunto, capitão, que busca vosmecê nestes ermos de gente viva  se todo mundo sabe que sua pessoa foi enterrada em cova de segurança, faz tempo de perder a conta?    O  capitão  caiu  em  reza  para  que  os  santos  abrissem  as  claridades  do  meu  juízo.  Em olhadela mais  funda, reparei  que  o  devocioneiro  de  são  Benedito  aparecia munido  de  asas  e só  de ver  essas peças  do povo  do  céu  entrei  em gargalhada. Diante  de Felisberto  feito garça, com penas no lugar dos braços, perguntei trocista:    — O capitão tirou patente de anjo?    O picado de jararaca, deixando o rosário, implorou que eu tivesse piedade. Andava ele em missão pelos ermos, em socorro de uns e outros:    — O mundo é um saco de pecados e cada um arrasta sua penitência.    O  falar  do  capitão  era  tão  comovitivo  e  tristoso  que  perdi  o  gosto  da  galhofa.  Logo  duas águas rolaram pela minha barba militar. Em palavras de sentimento, Felisberto das Agulheiras relatou  o  que  era  a  maldade  dos  capetas,  suas judiarias  e  artimanhas.  De  ver  o  capitão  de lágrima   solta  meu  gênio  picado  botou  a  cabeça  de   fora.  Implorei,  de  peregrino  mais necessitado, que Felisberto das Agulheiras (“Por  São Jorge e todos os demais santos do reino do  céu”)  apontasse, naquela justa  ocasião,  em  que  covil morava  o Trevoso. Ia mostrar  a  esse jacá de peçonha a força do braço de um Azeredo Furtado:    — Capitão, vou fazer com ele o que fiz com um soberbão de um lobisomem que empesteava as encruzilhadas de Paus Amarelos.    Mal firmei o compromisso, sofri no nariz aquela catinga da raça dos enxofres. Pelo visto, o porco devia andar nas vizinhanças, de chifre aceso, pronto para tomar vingança. O pior é que o devocioneiro de são Benedito, que tanto puxou pela minha piedade, foi o primeiro a sumir e dele  só restou um bater apressado de asas e nada mais. Fiquei de  sozinho na estrada como na noite do lobisomem. Nem o vento corria, nem o mato era  senhor de mexer uma folha. Por trás dos  aceiros,  rondava  o  sujeitão  de  pé  de  cabra.  Podia  escutar  o  risinho  pouco  casista  dele, enxergar  seu par de olhos feitos de brasa. Tive de afrouxar o colarinho para contrabalançar o calor de cem fornalhas que vinha da parte infestada pelo pai dos capetas. Não procurei trocar palavras com ele, que esse proceder não vinha nos livros de minhas leituras, nem nas práticas por  mim  aprendidas  em  escola  de  frade.  Fiz  o  que  todo  cristão  batizado  deve  fazer. Ajoelhado, cabeça rebaixada, pedi a proteção do alto:    — São Jorge, santo Onofre, são José.    Foi este penitente chamar os santos de sua devoção e um par de asas roçar a minha cabeça. 
Muito  admirado  fiquei  de  ver  lá  em  cima,  em  forma  de  anjo,  um  certo  menino  comedor  de terra, falecido nas minhas infâncias. O bichinho, ao cruzar perto de um querubim que gozava o luar em aba de nuvem, falou mais ou menos assim por sua boquinha do céu:    —  Lá  vai  o  coronel  Ponciano  de  Azeredo  Furtado  em   sua  mulinha  de  desencantar lobisomem. Vai para a guerra do Demônio, que o coronel não tem medo de nada.    Foi  então  que  reparei  estar  em  sela,  bem  montado  e  bem  guarnecido  de  armas.  Devia  ser prenda de são Jorge, que sempre soube apreciar o valor de um estribo e a força de uma rédea, desde  que  brigou  com  um  dragão  e  ao  maldoso  deu  morte.  Não  só  eu  montava  mula  segura como  vestia  a  farda  mais  vistosa  de  coronel.  Barba  de  pura  seda  e  cabelo  de  lustroso ondeado, da casa dos meus vinte anos. Eu era de novo Ponciano de Azeredo Furtado dos dias em que destronquei o pescoço do gigantão do circo de cavalinhos. Mortas andavam as ofensas que recebi  e  os  agravos  que tive  de repelir. Era  como  se  eu nascesse naquela hora,  limpo  de mágoas  e malquerenças. Nem vinte  capetas,  do mais  denegrido  ódio, podiam  comigo  em tais circunstâncias.  Muito  afastada,  como  em  despedida,  chegou  de  novo  a  vozinha  do  anjo comedor de terra:    — Lá vai o coronel Ponciano de Azeredo Furtado em sua mulinha de guerra.    Olhei  em  derredor. Um  fogo  de  labareda,  de  cambulhada  com um bater  de patas, vinha  do aceiro.  Era  o  Diabo  em  seu  trabalho  nefasto.  Pois  ia  ele  saber  quem  era  o  neto  de  Simeão, coronel por valentia e senhor de pasto por direito de herança. Sem medo, peito estufado, cocei a garrucha e risquei, com a roseta, a barriga da mulinha de são Jorge. A danada, boca de seda, obedeceu a minha ordem. O luar caía a pino do alto do céu. Em pata de nuvem, mais por cima dos  arvoredos  do  que  um  passarinho,  comecei  a  galopar.  Embaixo  da  sela  passavam  os banhados, os currais, tudo que não tinha mais  serventia para quem ia travar luta mortal contra o pai de todas as maldades. Um clarão escorria de minha pessoa. Do lado do mar vinha vindo um canto de boniteza nunca ouvido. Devia ser o canto da madrugada que subia. 
O “coronel” e sua gente (ror de personagens) AFON SINHO DA IGREJA — Mestre santeiro, de mão perita. ALICE — Mocinha que frequentava a casa de dona Esmeraldina. ALON SA  DOS   SANTOS  —  Mulata  guarnecida  do  mais  vistoso  par  de  popas,  segundo  Juju Bezerra. ALVARINA QUINTANILHA — Comadre de Ponciano, mulher de Juquinha Quintanilha.  Senhora de boas prendas e bondade no coração. ANTÃO  PEREIRA  —  Boiadeiro  do  Sobradinho,  gago  de  nascença,  sujeito  sisudo  de  nunca mostrar dentes de riso a ninguém. ANTÔNIA  —  Irmã  de  Caetano  de  Melo.  Altona  e  dona  de  um  par  de  platibandas  muito  do agrado de Ponciano. ANTONINHO DO AREAL — Negociante pobre, pai de dez filhos, e ameaçado de galés por Jordão Tibiriçá. ARISTEU BEDA (capitão) — Galista, dono de um galo de briga avinagrado, cheio de soberba. ARISTEU FORTUNATO — Compadre do major Badejo dos Santos. ARTUR  FONTAINHA — Bancário, magricela muito  falante,  engomadinho de  cabelo  avaselinado. Recurvado que nem cabo de guarda-chuva e peito contraído em anos de subalternismo.   BADARÓ  DO  ROSÁRIO  —  Compadre  de  Dioguinho  do  Poço,  que  —  segundo  ele  mesmo  — verteu água só de ver o tamanho da onça aparecida em posses de Badejo dos Santos. BADEJO DOS SANTOS (major) — Vizinho de Ponciano e seu parceiro de armas. Dono dos pastos onde apareceu uma pintada de grande porte. BALTASAR  DA  CUNHA — Doutor  engenheiro, vindo  do Rio. Arrogante,  cabeleira  encaracolada, bigodinho  de ponta  de  alfinete,  todo  enfeitado  e  engomadinho.  Primo  de  dona  Esmeraldina  e substituto de Juquinha Quintanilha no comando dos pastos de Mata-Cavalo. BARBALHOS — Gente fidalga de Macaé. Aparentados de Nogueira. BEATRIZ DE MELO — Filha mais nova de Pires de Melo, vizinho de Ponciano. BEBÉ  DE  MELO — Prima  de  Caetano  de Melo.  Cintura  da raça  das tanajuras  em  ligamento  dos seus fornidos de cima e abundâncias de baixo. BEM-TE-VI   (coronel)  —   Pertencido   de   cemitério,   dos  pastos   de  Boa  Vista,   com   quem Sinhozinho Manco — segundo ele mesmo — teve uma rixa de sangue. BIDU  DE  MELO  —  Mulher  de  Pires  de  Melo.  Mãe  de  meninas  tidas  como  marias-mijonas, segundo Ponciano. BRANCA DOS ANJOS — Primeiro amor de Ponciano, dona de um par de tranças de muito agrado do principal personagem. Morava em casa avarandada, com jardim de bogaris, em Gargaú.   
CAETANO DE MELO  (doutor) — Doutor de dar  consulta. Antigo vizinho de Ponciano, possuidor de barba rala e tique nervoso. Sujeito cheio de nós pelas costas e cismático. CAZUZA DO REGO — Compadre de Tutu Militão. Sujeito cismático. CELESTE — Teúda e manteúda de João Fonseca. Moça de encantos escondidos, palavra mansa e  modos  de  paina.  Morava  numa  casinha  avarandada  na  rua  do  Gás.  Depois  da  morte  de Fonseca  presenteou  Ponciano  com  um  sabiá-laranjeira,  bichinho  do  maior  bem-querer  do coronel. CERQUEIRA — Dono de engenho em Macaé e tio de Mocinha. CHIQUINHO  LIMA — Falido  de  açúcar,  enricou  da noite para  o  dia,  desde  que  ficou na  cabeça de uma repartição de impostos. CICARINO  DANTAS  —  Aguardenteiro,  vizinho  de  Ponciano,  sujeito  vingancista  com  quem Ponciano brigou em demanda de terreno. COELHO DOS SANTOS (doutor) — Médico da cidade, debelador das mazelas de Ponciano. CRISPIM RAMALHO — Guarda-livros dos negócios de Caetano de Melo, portador do pedido de casamento de Nicanor do Espírito Santo para Nazaré.   DADÁ PEREIRA — Dona de pensão de moças descompromissadas. DANTAS MESQUITA — Invernista com quem Ponciano teve pendenga no Foro. DIOGUINHO DO POÇO — Vizinho dos ermos, dono de voz troncuda, madurão e vivido.   ESMERALDINA  NOGUEIRA—  Paixão  de  rebite  de  Ponciano.  Dona  de  um  par  de  covinhas  de muita graça e olhos verdes. Branca, de cabelo em formato de labareda. Mulher de Pernambuco Nogueira. EPAMINONDAS — Tio de Pergentino Araújo. ESTEFÂNIA — Mulher de Totonho Monteiro, dona de um vistoso amassador de sofá. Em tempos verdes  da  mocidade  teve  um  pé  de  namoro  com  Pergentino  de  Araújo,  do  qual  Pergentino curtia dor de cotovelo.   FELISBERTO  AGULHEIRAS  (capitão)  —  Devocioneiro  de  são  Benedito  e  bentinhos  no  pescoço. Personagem que Ponciano encontra em forma de anjo. FRANCISQUINHA  —  Negra  de  confiança  do  avô  Simeão.  Velha  enérgica  e  de  bom  mando  na cozinha, sala e saleta.   GASTÃO  PALHARES  —  Velho  de  cara  terrosa,  cismático  de  doença,  com  mania  de  puxar conversa de remédios, receitas e conselhos. Sujeito cheio de ipsilones e nove-horas.   ISABEL  PIMENTA  —  Mestra  de  letras.  Prima  de  dona  Alvarina.  Moça  vistosa,  de  fino  trato, macia de fala e de variadas belezas. Segundo amor de Ponciano.   JANJÃO  CARAMUJO — Pardavasco de bons prestativos. Limpador de  cavalos  e  cachacista  sem remissão.  Gozava  da  apadrinhagem  da  velha  Francisquinha  por  ter  servido  Simeão  desde tenra infância. JANJÃO  PEREIRA  —  Sujeito  de  bigode,  discursador,  da  comitiva  política  de  Pernambuco Nogueira. JOÃO FON SECA — Sócio de Ponciano dos primeiros tempos do comércio de compra e venda de 
açúcar. Pescocinho fino envolvido em agasalho. JOÃO  RAMALHO —  Marcador  de  gado  do  Sobradinho,  ofício  que  conhecia  de  cor  e  salteado. Sujeito andeiro e de muita ponderação. Nascido de surdez do lado esquerdo. JONJOCA  DO  QUEIMADO  (capitão) —  Que  ficou  de  quarto  duro,  estropiado  de não  ter  fundilho para sela, segundo Sinhozinho Manco. JORDÃO TIBIRIÇÁ — Meganha do governo e cobrador de impostos nos ermos e currais.  Sujeito de  rompantes.  Segundo  ficou  sabendo  Ponciano,  mandado  de  encomenda  para  dar  fim  ao ladronismo nos pastos. JOSÉ FEIJÓ — Marchante de boi. JOSÉ  MATEUS  —  Pardinho,  tocaieiro  de  tiro  certo,  que  rondava  as  porteiras  do  Sobradinho. Contratado para matar Ponciano. JUCA AZEREDO — Primo de Ponciano de grau achegado, do Morro do Coco. JUJU   BEZERRA   (major)   —   Boticário,   dono   da   Farmácia   Esperança   em   Santo   Amaro. Autoridade  do  governo,  de  soltar  e  prender.  Anel  de  doutor  em  assuntos  de  rabos  de  saia. Vivia a par de todas as sem-vergonhices do Moulin-Rouge e casas de pândega. JULINHA ROSA — Moça que frequentava a casa de dona Esmeraldina. JUQUINHA  QUINTANILHA  —  Mulato  de  dente  de  ouro,  que  em  tempo  de  moço  serviu  sob  as rédeas do avô de Ponciano. Preparado em  sertão, entendido em gado e mazelas. Cerimonioso no trato e desaparelhado de coragem. JUVENTINO FERREIRA — Dono da  firma Irmãos Ferreira, que mandava e desmandava  (antes de se arruinar) no comércio de mascavo  e cristal. Por  fora, respeitosão, de  fala rouca  e corrente trespassada na barriga. Por dentro, safadeza só. MACEDO COSTA  (doutor) — Advogado de Baltasar da Cunha.  Sujeito roliço, nascido com ares de coruja — cara redonda e olhinhos j unteiros. MACHADINHO — Garçom do Taco de Ouro, de costeletas escorridas. MACHADINHO  —  Galo  de  briga  do  major  Badejo  dos  Santos,  um  mau-caráter  de  penas, orgulhosão, rival de Vermelhinho. MALAQUIAS  DE  AZEVEDO  (padre) —  Confessor  do  avô  Simeão  e  de  Ponciano.  Homem bom  e fervoroso. MERCEDES  —  Mulher  de  Tude  Gomes.  Moça  de  largas  prendas.  Cabelo  em  forma  de  trança ameninava seu porte de grandes competências e de largos tirocínios. MICAEL — Pessoa a que o padre Malaquias se referia nas visitas ao Sobradinho. MIMIS — Estrangeiras do Moulin-Rouge.   NECO MOURA — Velho de oitenta anos que ostentava moça em sobrado de Santo Amaro. NICANOR DO ESPÍRITO  SANTO — Retinto de  feição de branco,  fala limpa e respeitosa. Afilhado de Caetano de Melo. NICO  FERREIRA  —  Mestre  de  tropeiros.  Ciumento  de  sua  mulinha,  tratada  como  moça,  dentro do maior respeito e cuidado. NONÔ  PORTELA — Macilento, de pescoço de linha  e  óculos de vidro  esfumado. Escrevia para as gazetas. NORATO  —  Desarrumado  das  ideias,  amestrador  de  cachorros  e  cavalos  do  major  Lorena. Sujeito magrelinha, de perna de bambu e gogó saído.   PADILHA — Gerente do Hotel dos Estrangeiros. Barrilote, de cabelo repartido no meio. 
PEDERNEIRA (viúva) — Espectadora do Moulin-Rouge. PEDRO LIMA — Pessoa a que o padre Malaquias se referia nas visitas ao Sobradinho. PEDRO BRAGA — Sujeito malvadão e altão, que Ponciano queria exemplar. PEDRO PITA — Barrigudão de não ver o birro desde muitos anos atrás. PEIXOTINHO  DO  CARTÓRIO  —  Escrivão  de  cartório,  oficial  juramentado  metido  a  cantor  de modinhas tristes. PENALVA BRITO — Galista de afundados ermos. PEREIRA  NUNES  —  Médico  que  assistiu  aos  padecimentos  de  Juquinha  Quintanilha  na  Santa Casa das Misericórdias. PERGENTINO  DE  ARAÚJO —  Tabelião,  amigo  de Ponciano  das  farras  do Moulin-Rouge  e  outras ribaltas.  Metido  a  severão por  fora  e  dentro  safadeza  só.  Óculos, bengala  de  castão  de  ouro. Solteirão. Aparentado de dona Esmeraldina em sangue distante. PERLINGEIRO DE  SÁ MENEZES — Juiz de fornada nova, que lavrou sentença a favor de Ponciano e  ainda  destratou  a  acusação  presente,  condenada  a  pagar  as  custas  e  outros  caprichos  da Justiça. PERNAMBUCO NOGUEIRA —  Doutor  das  demandas  e  do  inventário  do  avô  Simeão.  Raposa  da Justiça, paixão de Ponciano. PIRES DE MELO — Primo de Caetano de Melo. Contrário a brigas de galo. Vizinho de invernada de Ponciano. Velho de corrente de relógio trespassada na barriga. PONCIANO  DE  AZEREDO  FURTADO  —  Principal  personagem  do  livro,  dois  metros  de  altura, barba  ruiva,  fortão,  voz  grossa,  invencioneiro  e  bondoso.  Por  vezes,  maluco  da  cabeça  e apreciador de rabo de saia.   QUIRINO  DIAS  —  Mercador  de  aguardente  que  trouxe  relatagem,  ao  Sobradinho,  da  briga  do galo Vermelhinho com surucucu. SABIÁ-LARANJEIRA  —  Bichinho  de  penas,  de  canto  limpo.  Lembrança  do  João  Fonseca  para Ponciano na partilha de seus deixados. SALIM NAGIBE — Vendedor ambulante em trânsito pelo Sobradinho. Mascate. SANTINHO BELO — Primo afastado do avô Simeão. SATURNINO BARBA DE  GATO — Campeiro dos tempos do avô  Simeão,  sujeito de porte alentado e bexigoso de cara. SEABRA — Funcionário do Banco da Província. Amaricado e bexiguento. SEBASTIÃO CARNEIRO — Que arrumou encargo do governo para seu primo Sinhozinho Manco. SECUNDINO PERALVA — Juiz. Velhote seco, devastado de cabelo, birrento e cismático. SELATIEL  DE  CASTRO — Banqueiro,  conhecido  como  Castrão,  que vassourava rabo  de  saia nas portas do teatro. SERAFIM  CARQUEJA —  Rábula  dos  desvãos  do  Foro.  Pardavasquinho  ensebado,  casaco  roído na curva do cotovelo, que vivia de encaminhar papéis. SERAFIM FEIJÓ — Homem devocioneiro, dono de cachorros codorneiros. SERAPIÃO   LORENA  (major)  —  Homem  arredio,  de  viver  sozinho.  Pessoinha  mirrada  de nascença, com cangotinho abaulado e bigodes descaídos pelos cantos da boca. SETEMBRINO  MACHADO — Funcionário  do Banco Hipotecário. Muito  achegado  ao  Sobradinho pela amizade do avô Simeão. SIMEÃO — Avô do personagem, sujeito severoso e dono de muitos pastos e currais. 
SINHÁ AZEREDO — Prima de Ponciano, solteirona, magricela e devota. SOUZA BASTOS (doutor) — Médico que não quis tratar da maleita de Ponciano.   TIMÓTEO DA CUNHA — Tabelião que cuidou das papeladas de cartório, da herança de Simeão. TITINHA — Mulata, arrumadeira do Hotel dos Estrangeiros, que tratou a caxumba de Ponciano e cedeu seus préstimos, de madrugada, nos lençóis do coronel. TOMÉ DE AZEREDO FURTADO — Tio de Ponciano. TOTONHO  BORGES  —  Escrevente  de  cartório,  entre  uma  penada  e  outra  prendia  ladrão  de cavalo e administrava outras justiças em nome do governo. TOTONHO  MONTEIRO  (capitão)  —  Dono  do  Hotel  das  Famílias,  onde  Ponciano  se  hospedava em Campos. Compadre de João Fonseca. TOTONHO ROSA — Compadre de Juju Bezerra, que perdeu as forças no dia do casamento. TUDE GOMES — Mestre de alambique de Paus Amarelos. Brancarrão e sarará. Macio de trato. TUTU MILITÃO — Pardavasco de barba ralinha, de muitos anéis nos dedos. Respeitoso no trato e de proceder mimoso. Vivia de sanar picada de jararaca e caninana.   URURAU  —  Jacaré  recoberto  de  pedregulho,  vindo  dos  dias  mais  recuados,  de  não  existir papel capaz de caber sua conta em anos.   VERMELHINHO   PÉ   DE   PILÃO  —  Galinho  de  briga,  também  conhecido  como  Capitãozinho, apelido  carinhoso  dado  por  Ponciano.  De  muito  tino  e  coragem  e  especial  bem-querer  do coronel. ZACARIAS VALADÃO — Dono de fazendas e sujeito de variadas camas e muitos dinheiros. ZIZI —  Moça  da ribalta,  que mostrava, nos palcos, um par roliço  de muitas  serventias  acima dos joelhos. ZIZIS — Estrangeiras do Moulin-Rouge. ZUZA  BARBIRATO  (capitão)  —  Portador  de  cem  mortes  de  onça,  homem  de  muita  fama  e escama, conforme relato de Juquinha Quintanilha. 

Um Brasil do imaginário                                                                                                Noemi Jaff e    Em  1970,  seis  anos  depois  da  publicação  de  O  coronel  e  o  lobisomem,  José  Cândido  de Carvalho disse que “Entre Olha p ara o céu, Frederico! (de  1939) e O coronel e o lobisomem, passaram-se vinte e cinco anos e o mundo mudou de roupa e de penteado. Apareceu o imposto de  renda,  apareceu  Adolf  Hitler  e  o  enfarte  apareceu.  Veio  a  bomba  atômica,  veio  o transplante. E a lua deixou de ser dos namorados”.    Entre  1964,  ano da primeira  edição do romance,  e 2014, mais  cinquenta  anos  se passaram. O mundo mudou novamente  de roupa  e  de penteado,  e,  quem  sabe,  até  de pele,  como  faz uma cobra.  Não  só  a  lua  deixou  de  ser  dos  namorados,  mas  o  espaço  inteiro  se  modificou  e  foi loteado.  Os namorados  quase nem precisam mais  se ver  e  aquela  lua  que  os  inspirava  e  cuja apropriação pelas máquinas entristecia José Cândido hoje é assunto ultrapassado.    O que  será que ele diria hoje para comentar mais uma das inúmeras edições do romance  O coronel e o lobisomem?  Será que festejaria sua atualidade, tanto tempo e tantos enfartes, aids, aquecimento  global,  WhatsApp,  guerras  televisionadas  e  aplicativos  depois?  Ou  será  que lamentaria esse mundo sem namorados inspirados pela lua?    Segundo dizia, um mundo em que o computador substituísse o sabiá não seria mais para ele. Entretanto,  nesse  mundo  de  pele  trocada,  cujo  tempo  e  espaço  estão  quase  inteiramente ocupados  por  algoritmos,  ainda  existem  sabiás  e,  pasme,  José  Cândido!,  há  muito  lugar também para você, para o seu mundo e especialmente para sua linguagem cheia de “chifres” e “rabos”, como comentou a esse respeito Rachel de Queiroz.    Mas por que ainda é tempo de publicar  O coronel e o lobisomem? Por que ainda é preciso ler  sobre  onças  e  lobisomens,  sobre  o  sertão  do  Piauí  e  sobre  as  invencionices politiqueiras de  falsos  coronéis  e  senhores  de  engenho,  cujas  formas  de  vida  aparentemente  não  existem mais?    Há muitas razões para isso.    Como  se  sabe,  pelo  menos  desde  as  definições  de  Italo  Calvino  em  Por  que  ler  os clássicos ?,  um  clássico  se  reconhece  por  sua  atualidade  misteriosa  e  inesgotável.  É  sempre tempo  de  relê-lo  e,  a  cada  vez,  o  efeito  inaugural  se  repete,  porque  é  como  se  a  obra  se transmutasse de acordo com a época, o lugar e o leitor.  Se somos sempre outros, também com os clássicos acontece assim.  São livros capazes de se modificar, independentemente da época de  seu  conteúdo:  a  linguagem  é tão particular  e nova  que  é  ela  a  sempre nos transportar para outro tempo e espaço.    Mas  o  importante,  aqui,  é  entender  por  que  O  coronel  e  o  lobisomem  é  um  clássico  da literatura brasileira, mesmo não sendo ainda devidamente reconhecido como tal.    Os  “chifres”  e  “rabos”  a  que  se  refere  Rachel  de  Queiroz  são,  certamente,  os  prefixos  e 
sufixos  que  Cândido  apõe  às  palavras,  transformando-as  em  espécies  de  criaturas  móveis  e passíveis  de transformação  contínua,  dinamizando  a  língua  e  fazendo-a  se  curvar  aos  desejos do autor.    Como  exemplos  dos  prefixos  e  sufixos,  temos,  entre  inúmeros  outros,  “descuidoso”, “recatosa”,      “desbeneficiar”,       “desensanguentar”,        “desensofrer”,       “descomparecer”, “desvontadoso”,  “severista”,  “donzelismo”,  “subalternista”,  esse  último,  aliás,  um  sinônimo mais “erudito” e bem mais interessante, de “puxa-saco”.    Mesmo   esse   procedimento   lembrando   em   muito   a   linguagem   de   Guimarães   Rosa, contemporâneo  de  Cândido,  ainda  assim  as  diferenças  se reconhecem, pela  forma  como  cada um  manipula  as  palavras.  Como  com  Rosa,  esses  afixos  movimentam  a  língua,  fazendo-a ganhar  conteúdos  novos  ao  torcer  as  flexões  regulares  das  palavras,  o  que  possibilita  maior particularização e poetização da linguagem. Mas, em Cândido, esse procedimento adquire uma tonalidade   mais   local   e   contextualizada,   mais   conformada   a   cada   personagem   que   as pronuncia,   destacando-se,   entre   todos,   evidentemente,   o   coronel   Ponciano   de   Azevedo Furtado, narrador e personagem do romance.    Os  neologismos  e  as  invenções  linguísticas  de  Rosa,  como já  é  sabido,  são  de  um  sertão, por  assim  dizer,  universal,  em  que  as  personagens  são  elas  mesmas,  mas,  ao  mesmo  tempo, também presenças simbólicas de vínculos com a mitologia geral e com a cosmologia. No caso de  Cândido,  mesmo  que  haja  a  presença  do  fantástico,  como  se  verá  adiante,  a  linguagem opera mais em favor de si mesma e da autenticidade dos personagens, semelhantes ao que são no real brasileiro, tão carregado de  superstição e magia. Além disso, a presença dessa língua do sertão, em Cândido, tem um “sotaque” nordestino bem pronunciado, acentuando muito mais as diferenças  sociais entre os falantes, além de  ser eminentemente brasileira, diferente do uso que  dela  faz  Rosa,  emprestando  recursos  de  inúmeras  línguas  em  seu  processo  de  invenção. Ou  seja,  usos  similares  para  finalidades  diferentes.  Uma  curiosidade,  entretanto,  são  certas coincidências, em ambos os autores, de algumas formações: “no que não”, por exemplo, como em  “no  que  não  consenti”,  querendo  dizer  “com  o  que  não  consenti”,  além  do  uso  de  frases que  podem  passar  por   ditados,   característica  marcante   das   comunidades   ágrafas,   onde persistem  verdades  menos  relativas.  É  o  caso  de,  por  exemplo:  “Nenhum  segredo  aguenta ficar  em  boca  de  gavetão  em  prazo  de  fazer  bolor”;  “Perdeu,  está  perdido,  que  isso  de donzelismo é como bananeira. Só dá uma vez”. Afora estes, ainda há várias outras ocorrências de formas semelhantes entre os dois autores.    Como já  se  comentou  sobre  Guimarães  Rosa,  a  sagacidade  do  autor  está  não  somente  no fato  de  ele  ter  criado  uma  nova  língua  do  sertão,  mas  no  fato  de  ele  ter  sabido  escutar  e transpor para  a  literatura  as  falas  genuínas  do  sertanejo. É  esse, por  certo, também  o  caso  de Cândido de Carvalho.    Ponciano  é  um  personagem  tão  “presençoso”  e  contundente,  que  consegue  narrar  sua história quixotesca em primeira e em terceira pessoa ao mesmo tempo, como se fosse um eu e um outro. Ele ocupa todos os lugares e instantes, com  seus dois metros de altura e  sua voz de trovão. E, assim, é como se também as palavras se curvassem a sua vontade, como se também com  elas  ele  fizesse  o  que  fez  com  a  sururucu,  a  onça  e  o  lobisomem:  golpes  de  sorte, esperteza, rapidez e muita fantasia.    Ponciano  é  o representante de um mundo passado  e presente:  o mundo dos  favores da  elite rural  nordestina.  Nascido  e  criado  pelo  avô  latifundiário,  aparentemente  no  final  do  século 
XIX,  o   menino    cresceu    sem   profissão,   malandro     e   preguiçoso    como    seu   antecessor Leonardinho, de Memórias de um Sargento de M ilícias, e como o sucessor do personagem de Manuel Antônio de Almeida, Macunaíma,  compondo  com  eles  a tradição do personagem que vence mais pela esperteza e pelo favorecimento do que por mérito.    Depois de vários lances de sorte, que em tudo lembram o romance picaresco tradicional e a velocidade da farsa — inclusive de Dom Quixote —, Ponciano acaba por se tornar coronel. E então,  como  acontece  com  o  alferes  de  Machado  de  Assis,  farda  e  homem  se  confundem. Ponciano se torna o coronel Ponciano — um nome, quase mais do que uma pessoa. Assume as terras do avô falecido, torna-se “severista” e cumpridor e trata de viver bem.    As  variações  do  adjetivo  “severo”,  por  sinal,  pontuam  toda  a  narrativa:  “severoso”, “severo”,  “severista”,  “severidão”,  “severão”  aparecem  inúmeras vezes.  É justamente  essa  a importância da farda e do título: aparentar severidade, um atributo de que Ponciano se orgulha e  que  ostenta,  mas  de  que  o  leitor  não  se  convence  muito,  porque  o  coronel  é  também compassivo,  generoso  e,  por  que  não,  muitas  vezes  fraco  e  megalômano.  Mas  tudo  isso  sem deixar  de  ser,  ao mesmo tempo,  autoquestionador,  como uma  espécie  de  Paulo  Honório mais bruto  e  antigo,  sem  a  urgência  de  modernização  do  personagem  de  Graciliano  e  tampouco  a aridez de sua linguagem.    A  narrativa  algo  rocambolesca  segue,  em  primeira  e  em  terceira  pessoa —  com  Ponciano ora  confessional  e  ora  admirado  de  si  —,  como  uma  saga,  ou  um  romance  de  formação acaipirado,  contando  toda  a  vida  de  Ponciano,  desde  sua  infância  e juventude  até  sua  morte, que  é  narrada  também  em  primeira  pessoa.  Aos  poucos  e  até  mesmo  sem  desejá-lo,  o  leitor vai  se  afeiçoando  desse  homem  que  sabe  ser  injusto  —  como  era  quase  todo  processo  de herança, poder e economia no antigo Nordeste — mas também generoso, despojado e carente. Contra  qualquer preconceito  ideológico,  é  o personagem  que  fala  mais  alto  e,  sem perceber, ficamos  enredados  por  sua  fala  arrogante  e  colorida,  verdadeira  e  fantasiosa,  mas  sempre particular.  É  inevitável.  Lá  está  o  Brasil  passado  —  e  parte  do  Brasil  moderno  e,  acima  de tudo, lá está um homem brasileiro, com tudo o que ele tem de pior e de melhor.    As  relações  de  privilégio,  favor  e  corrupção  atravessam  o  romance,  deixando  claras  as maneiras  como  os  vínculos  se  estabeleciam  com  os  criados,  os  jornalistas,  os  padres,  os “amigos”  e  a  família.  Como já  tinha  nos  mostrado  Machado  de  Assis,  todos  esses  laços  têm como base a troca de negócios verbal, daí gerando dívidas de gratidão e de conveniência, que são  pagas  quando  ainda  há  interesse  da  parte  do  “cliente”  ou  descaradamente  ignoradas, quando não os há.    Ponciano vai da glória à ruína com o mesmo passo: certo de si. E dessa forma, convencidos também  nós  de  sua  consistência,  ficamos  convictos  de  suas  certezas  e  nos  apegamos  a  ele, mesmo que com restrições e uma pulga sempre incomodando atrás da orelha. Pois Ponciano é um forte cheio de fraquezas; um herói anti-herói; um falso gigante, cujo maior sonho, encontrar um  grande  amor,  acaba  não  se  realizando  e  cujas  proezas  nas  brigas  com  bichos  reais  e imaginários podem não passar de pura bravata.    Nesse  sentido,  também,  o  romance  de  Cândido  surge  como  um  dos  poucos  exemplares  do realismo  fantástico  no  país,  numa  época  em  que  era  esse  o  gênero  prevalente  na  América Latina.  Como  acontece  com  Mario  Vargas  Llosa,  Carlos  Fuentes  e  Gabriel  García  Márquez, entre  vários  outros,  a  presença  do  fantástico,  em  Cândido  de  Carvalho,  é  em  grande  parte alegórica  de  um  quadro  sociopolítico  maior,  onde  o  absurdo  compõe  o  real,  não  somente 
porque  no  sertão  daquela  época  o  pensamento  mágico-mítico  é  extremamente  forte,  mas também  como  signo  de  um  mundo  muito  dependente  da  religiosidade,  o  que,  entre  outras coisas, caracteriza as relações de desigualdade.    Algumas  passagens  do  livro,  tão  carregadas  de  inocência,  magia  e  colorido  narrativo, transportam  o  leitor  para  dentro  de  um  Brasil  que  já  passou,  mas  que  de  alguma  forma persiste,  ainda  que  somente  no  imaginário.  É  o  caso  da  amizade  desinteressada  que  se estabelece entre o coronel e seu galinho ruivo, capaz de lutar colericamente com uma surucucu que ameaça as redondezas. Ou da cena entre o coronel e uma sereia — que em tudo lembra um Ulisses gauche — , sendo que o herói a frustra por resistir aos seus encantos.    Não à toa, foram feitos um filme e um seriado com base no romance, já que sua velocidade e visualidade muitas vezes remetem ao universo da imagem, tanto quanto ao da narrativa.    O  coronel  Ponciano  de Azeredo  Furtado, natural  da  Praça  de  São  Salvador  de  Campos  de Goytacazes,  não  é  homem  que  se  despreze.  Como  um  Brasil  que  desperta  desesperada  mas também  inesperadamente  a  cada  novo pesadelo,  ele  declara  que,  mesmo  “No  redemoinho  da desventura, nem uma vez abri mão de qualquer galhardia, nem desmereci da patente. No canto da  boca  encravei  charuto  do  melhor  e  do  mais  fino.  Onde  estava  Ponciano,  lá  andava  sua fumaça”. 

Invencioneiro e linguarudo                                                                                              Socorro Acioli    Depois  de  ler  O  coronel  e  o  lobisomem,  há  muito  o  que  pensar  sobre  esse  primoroso  e divertido romance de José Cândido de Carvalho. Dos aspectos externos (período, parentescos e  filiações)  à  riqueza  da  construção  do  texto.  Dos  personagens,  da  força  da  voz  narrativa  à linguagem  e  ao  uso  da  oralidade.  Sobre  tudo  isso  valem  algumas  notas  para  ampliar  a experiência de leitura dessa obra sem par na literatura brasileira.    Começando pelos parentescos, José Cândido de Carvalho faz parte do grupo de romancistas brasileiros  atuantes nos  anos  1960,  que usufruíram,  com  gosto,  da herança  literária  e  estética resumida em uma sentença determinante: todas as liberdades serão concedidas.    Essa  possibilidade  ilimitada  de  formas,  temas  e  recursos  de  linguagem  foi  deixada  pelos autores  que   escreveram   a  história  da  literatura  brasileira  ousando   criar  romances  que obedecessem unicamente às necessidades da narrativa, assumindo o risco do pioneirismo e da estranha novidade.    Foi  entre  1960  e  1970  que  nasceram,  por  exemplo, A  morte  e  a  morte  de  Quincas Berro D ’água  ( 1961),  O  comp adre  de  Ogum  ( 1964),  e Dona Flor  e seus  dois  maridos  ( 1966),  de Jorge  Amado;  A p aixão  segundo  G.  H.  ( 1964),  de  Clarice  Lispector;  A  estranha  máquina extraviada  ( 1967),  de  José  J.  Veiga;  A  crônica  da  casa  assassinada  ( 1969),  de  Lúcio Cardoso.  Fora  do  cânone,  mas  não  menos  experimentais,  estão  Deus  da  chuva  e  da  morte ( 1964), de Jorge Mautner;  O criador de demônios  ( 1964), de José Alcides Pinto, e um pouco antes, Doramundo ( 1957), de Geraldo Ferraz. Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, vem um pouco depois, em  1971.    O coronel Ponciano, protagonista deste livro, talvez chamasse a lista acima de um balaio de gatos,  diante  da  imensa  diferença  de  registros,  projetos  literários,  temáticas  e  identidade  de todos  esses  autores.  Caso  fizesse  isso,  ele  teria  toda  razão.  Mas  esse  elenco  híbrido  serve para  entender  o  contexto  da  data  de  nascimento  d’O  coronel  e  o  lobisomem:  um  tempo  de romancistas  ávidos por  experimentar,  cada  um  a  seu  modo,  servindo  apenas  às  necessidades dos seus personagens.    Os vizinhos  da América hispânica também viviam um momento marcante  em  sua  literatura no  intervalo  entre  os  anos  1960  e  1970.  Gabriel  García  Márquez  publicava  Cem  anos  de solidão   ( 1967),   Julio   Cortázar   lançava   Carta   a   uma  senhorita   em  Paris   e  Jogo   da Amarelinha,  ambos  em  1962,  Carlos Fuentes, também  em  1962, publicava Aura,  apenas para citar  exemplos  da  Colômbia, Argentina  e México  de uma nova  literatura  que  surgia  e  ecoava no  Brasil.  García  Márquez  foi  leitor  de  Érico  Veríssimo,  Cortázar  adorava  Osman  Lins,  e  o trânsito  entre  os  autores  do  boom  e  do  pós-modernismo  no  Brasil  costurava  uma  trama  de influências significativas nas temáticas e no artesanato do texto. 
   Depois de tantos rompimentos com toda e qualquer forma ou regra, parecia possível atingir uma  amplitude  original  na  moderna  ficção,  e  José  Cândido  de  Carvalho  fez  bom  uso  disso. Uma  das  frases  mais  citadas  na  fortuna  crítica  do  romance  O  coronel  e  o  lobisomem, publicado  em  1964,  traz  a  opinião  convincente  de  Érico  Veríssimo  à  época  do  lançamento: “Não  hesito  em  colocar  O  coronel  e  o  lobisomem  como  um  dos  melhores  romances  da literatura brasileira de todos os tempos”.    O crítico Afrânio Coutinho concorda e destaca esse livro de José Cândido de Carvalho, por sua  “rica  experiência  de  linguagem,  o  retrato  do  Brasil  interiorano,  sem  aproximações  a escolas ou preconceitos literários”.    É  também  frequente  observar  na  fortuna  crítica  e  nas  resenhas  livres  d’O  coronel  e  o lobisomem   o   destaque   para   o   caráter   regionalista   da   obra,   um   rótulo   que   conduz   a investigação  literária  ao  grande  risco  de  reduzir  o  texto  a  um  aspecto  único.  A  alcunha  de regionalista  serve muito mais  à historiografia  literária  do  que  a uma  análise  do valor real  da diegese.  O  local  ficcional  da  obra  e  a  forma  como  o  espaço  afeta  o  texto  importam,  sim.  O rótulo do livro, o escaninho no qual ele deve ser guardado, isso já tem bem menos relevância.    A  escritora  Rachel  de  Queiroz  parece  discordar.  Nos  dois  textos  que  escreveu  sobre  O coronel  e  o  lobisomem,  em   1964  e   1970,  ela  ressalta  que  Carvalho  deu  vida  nova  ao regionalismo brasileiro.  “Até  então”,  disse Rachel,  “parecia  que  alguém  querendo  apresentar o  homem  do  interior,  sua  vida,  seus  amores,  suas  lendas  e  problemas,  teria  que  inventar fórmula  diferente,  porque  o  velho  romance  regional,  o  velho  conto,  supostamente  não  tinha mais  nada  pra  dar …  E  vem  agora  José  Cândido  de  Carvalho  provar  que,  havendo  crânio, talento, boa boca, nenhum  assunto  está  esgotado  ou morto”,  conclui  a  autora. À  época  colega de Rachel de Queiroz na  editora José Olympio, Carvalho dá um passo largo adiante da prosa regionalista  dos  anos  1930  e  1945,  da  qual  ela  foi um  dos principais  expoentes.  Tanto  que  o caráter regional de sua obra fica em segundo plano diante de aspectos bem mais marcantes.    É  a própria  Rachel  que  aponta  o  grande  êxito  de  José  Cândido  de  Carvalho:  a  construção primorosa  de  um  narrador-personagem  crível   e   forte  o   suficiente  para  diluir  qualquer distância entre ele e o leitor.    Rachel  de  Queiroz  diz  que  Carvalho  conseguiu  “fazer  com  que  o  dito  leitor  […]  se esquecesse  completamente  de  que  havia  um  autor  de permeio  e  tratasse  o protagonista  como figura de vivente, como homem, como gente, apaixonante e de carne, tal como nós”.    Pois  vamos  a  ele,  Ponciano  de  Azeredo  Furtado,  coronel por  valentia,  herdeiro  das  terras de muitas medidas de seu avô Simeão. É esse narrador-personagem que nos conta a história da sua  vida,  alternando  entre  a  primeira  e  a  terceira  pessoa,  falando  de  si  como  se  fosse  um outro, de vez em quando. Ele avisa, desde a primeira página, que gosta de falar alto sem freio nos dentes.    Seguimos  com  ele  do  começo  ao  fim  de  suas  aventuras,  desde  a  infância  no  Sobradinho, casa de seu avô, até suas lutas contra uma onça, um lobisomem, soldados do Exército e outras mil  situações  nas  quais  se  metia  e  sempre  saía  vitorioso.  Sendo  conduzidos  pelo  coronel  e somente por ele no curso dos fatos, até que ponto podemos confiar e acreditar em Ponciano? O pacto  entre  leitor  e  narrador  incluiu,  desde  o  começo,  a  vista  grossa  aos  exageros  do  nosso personagem?   Você,   leitor,   acreditou   sempre   no   coronel?   Ou   riu   de   suas   presepadas, percebendo a tentativa de engano?    Estamos  lidando,  aqui,  com  uma  autobiografia  ficcional,  situação  em  que  um  personagem 
nos  conta  sua  vida,  relembrando  em  um  momento  quase  final  (ou  após  a  morte,  como  Brás Cubas em  suas memórias póstumas) o que aconteceu desde o começo. O tempo da narração  e o  tempo  do  narrador  parecem  quase  coincidir.  Convém  confiar,  desconfiando.  O  passado, afinal, é leite derramado — título oportuno do romance de Chico Buarque, que traz o narrador autobiográfico menos confiável dos últimos tempos.    O coronel, narrador, dirige-se a um interlocutor definido: você, leitor. Ele quer convencê-lo de  que  teve  uma  vida  digna  e  bonita.  Quer  fazê-lo  acreditar  que  resistiu  ao  canto  da  sereia, que  matou  a  onça  sozinho,  que  venceu  o  valentão  no  circo,  que  é  bom  em  tudo  o  que  faz, homem de coragem.    A prosa vem, quase o tempo inteiro, na forma de solilóquio. Ele domina o texto, os diálogos são   econômicos,   quase   nunca   mais   de   duas   linhas,   quase   sempre   frases   soltas   dos personagens, perguntas ou respostas pontuais. Algumas vezes, o travessão está ali para marcar suas próprias falas.    Os personagens  com  os  quais  o  coronel  convive  são tantos  e tão  difusos  que  o  autor  achou necessário  incluir  ao  final  do  livro  a  seção  “O  ‘coronel ’  e  sua  gente — ror  de personagens”, escrita  aparentemente  por  um  narrador  externo,  heterodiegético,  que  não  se  limita  a  uma descrição  técnica  dos  personagens,  mas  dá  sua  opinião.  Por  exemplo,  ao  descrever  Antônia, diz que é “Irmã de Caetano de Melo. Altona e dona de um par de platibandas de muito agrado de Ponciano”.  Ou,  ao  falar  de Bebé  de Melo, prima  do mesmo  Caetano,  diz  que tem  “cintura da raça das tanajuras, em ligamento dos seus fornidos de cima e abundâncias de baixo”.    O  entra  e  sai  de  personagens  na  vida  do  coronel  dá  o  ritmo  ao  eixo  narrativo  de  sua história, essa sucessão de feitos que ele acredita deixarem registrada sua coragem nessa vida. O  leitor  acompanha  o  coronel  e  suas  relações  atrapalhadas  com  parentes,  amigos,  mulheres, seres de outro mundo e desafetos.    A tônica  dessas narrativas  costuradas  em uma  autobiografia, portanto,  é  o humor,  que  José Cândido  de  Carvalho  explora usando  os recursos  da metáfora  (Dona Isabel Pimenta,  ardida de  sentimento  p or  mim),  da  metonímia  (um  sujeito  do  meu f eitio  não  era  mesmo  p ara amarrar  suas  liberdades  em  rabos  de  saia)  e  abusando  da  crendice  popular  nos  casos  da sereia,  do  lobisomem  e  do ururau, na voz  da  gente  simples  que  lida  com  ele  e na  sua  suposta valentia.  O  leitor  é  cativado por  essa  ironia,  mas  também pela  cumplicidade  com  o  coronel, sempre correndo o risco de ser enganado por Nogueira, por Esmeraldina e por tantos outros.    Ponciano se autoproclama herói, um guerreiro das terras do açúcar, com ações toscas e mal arranjadas  que  só  contradizem  o  seu  discurso.  É  durão,  diz  ter  coragem  de  matar,  caçar  de tudo, mas amolece o coração diante de injustiças e situações de miséria.    Diz  enfrentar  lobisomens  e resistir  a  sereias, mas  ama  seu  galinho  e  o  sabiá  que  canta por perto.  Com  as  mulheres,  não  tem  sorte  nem  jeito.  Morreu  solteiro,  mas  passou  muitos momentos bem acompanhado.    De alma do outro mundo ele não tem medo. Sua tia apareceu, seu avô também, e isso não foi motivo de susto. Ganhou fama de caçador de onça, sem merecer. É invencioneiro e linguarudo, esse Ponciano.    É  desse  material  ambíguo  que  é  feito  nosso  quase  herói,  o  personagem  que  nos  faz  rir  da morte até o último e comovente parágrafo. Há, na criação desse personagem, a complexidade necessária para  estar  ao  lado  de  criaturas  de papel  e  tinta  tão  marcantes  como  Diadorim,  de Guimarães Rosa, Macunaíma, de Mário de Andrade, ou da dupla João Grilo e Chicó, do teatro 
de Ariano Suassuna.     Apesar  de  todas  as  qualidades  elencadas  na  fortuna  crítica  do  livro  O  coronel  e  o lobisomem  e  de  seu  lugar já  consagrado  entre  a  melhor  produção  da  literatura  brasileira,  o percurso  para  a  publicação  não  foi  fácil  para  José  Cândido  de  Carvalho.  José  Olympio  e Civilização  Brasileira,  principais  editoras  da  época,  não  tinham  agenda  para  publicá-lo.  O jeito  foi  recorrer  às  gráficas  da  revista   Cruzeiro,  que  imprimiu  os  primeiros  três  mil exemplares da obra, esgotados em quatro meses.     Depois  da  publicação,  vieram  as  críticas  positivas  nos jornais  (por  Wilson  Martins,  Leo Gilson  Ribeiro,  Herculano  Pires,  entre  outros)  e  os  prêmios,  como  o  Jabuti  de  Melhor Romance e o Prêmio da Academia Brasileira de Letras.     A  segunda  edição,  de  dez  mil  exemplares,  foi  publicada  pela  Cruzeiro.  Já  a  terceira conseguiu  espaço  na  José  Olympio  e  foi  recheada  de  opiniões  elogiosas  de  Rachel  de Queiroz, Josué Montello e Nelson Werneck  Sodré, entre outros. Posteriormente, o coronel  foi balbuciar  seus  feitos  em  outras  línguas,  como  espanhol,  alemão  e  francês.  Apesar  de  todo êxito,  a  obra  de  José  Cândido  de  Carvalho  é  concisa  e  ele  j ustificava  o  fato  repetindo  o bordão de alguns autores de seu tempo; alegava que “detestava escrever”.     Mesmo depois de lançar outros cinco livros — Por que Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon  ( 1970),  Um  ninho  de  maf agaf os  cheio  de  maf agaf inhos  ( 1972),  Ninguém  mata  o arco-íris ( 1972), Manequinho e o anjo de p rocissão ( 1974), e Notas de viagem ao Rio Negro ( 1983) —, O coronel continua ocupando um lugar especial na obra do autor.    No  seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Carvalho declara-se como um leitor  de  Cassiano  Ricardo,  acima  de  tudo,  que regressa  de um  dos  seus  livros  e  cai na vida real, ali, diante de todos que presenciam sua posse:          E retorno agora, nesta hora e nesta noite, aos meus borzeguins de  sujeito comum, às minhas rotinas do dia a dia. Troquei        o bacamarte de boca de  sino pelo guarda-chuva de cabo de prata. Não  sou mais íntimo dos  sonhos nem contemporâneo        dos dias que ainda virão. Volto a ser simplesmente José Cândido de Carvalho, funcionário público, temente do imposto de        renda, apavorado de mordida de surucucu e de vento encanado.       O Brasil segue lendo e descobrindo José Cândido de Carvalho, que, por sua vez, deve isso ao coronel e a suas falácias, mentiras, seus enrabichamentos por rabos de saia e a seu coração sensível  e  saudoso  de  um  galinho  caipira.  A  oralidade  e  o  humor  que  temperam  esse  relato biográfico  e  ficcional  marcam  o  Sobradinho  como  um  lugar  literário  que  constaria,  com mérito,   em  um  possível   dicionário   de   lugares   imaginários  brasileiros.   O   coronel   e   o lobisomem é, acima de tudo, um romance narrado na língua do Brasil.