Visualizar obra

 GRANDE SERTÃO: VEREDAS

 João Guimarães Rosa

– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de 
briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no 
quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, 
gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. 
Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem 
ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não 
quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de 
beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de 
cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. 
Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, 
cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: 
quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, 
instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O 
senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que 
situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, 
fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de 
Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que 
tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de 
fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com 
casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado 
do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. 
Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, 
almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que 
vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens 
dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem 
tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão 
ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte. 
Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores. 
Em falso receio, desfalam no nome dele – dizem só: o Que-Diga. 
Vote! não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num 
Aristides – o que existe no buritizal primeiro desta minha mão 
direita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-deSanta-Rita – todo 
o mundo crê: ele não pode passar em três lugares, designados: 
porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma vozinha 
que avisando: – “Eu já vou! Eu já vou!...” – que é o capiroto, o 
que-diga... E um José Simpilício – quem qualquer daqui jura ele 
tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a 
ajudar em toda ganância que executa; razão que o Simpilício se 
empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem 
também que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não 
deixando, quando ele quer amontar... Superstição. José Simpilício 
e Aristides, mesmo estão se engordando, de assim não-ouvir ou 
ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo, nestes dias de época, 
tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de passagem, 
no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou 
que, para aqui vir – normal, a cavalo, dum dia-e-meio – ele era 
capaz que só com uns vinte minutos bastava... porque costeava o 
Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também, quem sabe – sem 
ofensas – não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor 
quem se anunciou assim, quando passou por lá, por prazido 
divertimento engraçado? Há-de, não me dê crime, sei que não 
foi. E mal eu não quis. Só que uma pergunta, em hora, às vezes, 
clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moço, se há, 
quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, 
será a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso 
Estado nosso, custante viagem de uns três meses... Então? Que- 
Diga? Doideira. A fantasiação. E, o respeito de dar a ele assim 
esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que 
ele forme forma, com as presenças! 
Não seja. Eu, pessoalmente, quase que já perdi nele a 
crença, mercês a Deus; é o que ao senhor lhe digo, à puridade. 
Sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. 
Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito 
condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de 
paramenta, com uma vara de maria-preta na mão – proseou que 
ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo, do corpo vivo de 
uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do 
Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é como eu? Não 
acreditei patavim. Compadre meu Quelemém descreve que o que 
revela efeito são os baixos espíritos descarnados, de terceira, 
fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se travarem com os 
viventes – dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito 
me consola – Quelemém de Góis. Mas ele tem de morar longe 
daqui, na Jijujã, Vereda do Buriti Pardo... Arres, me deixe lá, que 
– em endemoninhamento ou com encosto – o senhor mesmo 
deverá de ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não 
sim? Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangued’Outro, 
o Muitos-Beiços, o Rasgaem-Baixo, Faca-Fria, o 
Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... 
Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não 
sou amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço 
se entrete, já é por alguma competência entrante do demônio. 
Será não? Será? 
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não 
possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no 
moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a 
folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range 
rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo 
existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. 
O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco 
de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor 
consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira 
alguma? Viver é negócio muito perigoso... 
Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os 
crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos 
avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. 
Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, 
franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este 
caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa 
importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, 
assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe 
agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava 
por ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua 
aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem 
espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, 
este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu 
estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas 
crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? 
E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. 
... O diabo na rua, no meio do redemunho... 
Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as 
certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... 
Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de 
ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, 
e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma 
estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – 
motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno 
sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, 
de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a 
outra, a mandiocabrava, também é que às vezes pode ficar 
mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, 
o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, 
nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada 
dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua 
suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as 
feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, 
rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por 
ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, 
venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em 
fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se 
sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue 
maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para 
campear?! Arre, ele está misturado em tudo. 
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, 
aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor – 
compadre meu Quelemém, diz. Família. Deveras? É, e não é. O 
senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais 
grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, 
bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem 
os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens. 
Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um 
chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da- 
Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. 
Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as 
palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao 
real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em 
horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para 
papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça 
rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido 
rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, neste 
aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... 
Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, 
vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha 
filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. 
Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o 
velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço 
de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. 
Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, 
numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não 
sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro 
– eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz 
dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e 
uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não 
perdeu o juizo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive 
da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas 
horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes 
não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque 
Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. 
Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo 
castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos 
tinham?! 
Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. 
Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também 
tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, 
demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o 
velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, 
também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no 
corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu 
Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, 
eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do 
inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, 
vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em 
tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm 
um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o 
que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, 
essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito 
mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso 
de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em 
qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha 
pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula bentabêbada 
dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três 
pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, 
é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de 
matar...” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim 
um susto; porque: passarinho que se debruça – o vôo já está 
pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir 
isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o 
menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu 
nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e 
na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. 
A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de 
magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e 
entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. 
Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de 
nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um 
prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas 
certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. 
Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega 
para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como 
compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor 
dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, 
terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, 
agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e 
penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... 
Ave, vi de tudo, neste mundo! lá vi até cavalo com soluço... – o 
que é a coisa mais custosa que há. 
Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para 
pecados e artes, as pessoas – como por que foi que tanto 
emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre 
meu Quelemém, também. Sou só um sertanejo, nessas altas 
idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura 
é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma 
doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e 
meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, 
Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, 
regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes 
de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por 
falar: mas, desde o começo, me achavam sofismado de ladino. E 
que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que 
também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom 
livro, despaçado. Na fazenda O Limãozinho, de um meu amigo 
Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de logogrifos e 
charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, 
ponho primazia é na leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e 
exemplos – missionário esperto engambelando os índios, ou São 
Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto 
muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom 
caminho, aconselhar a justo. Minha mulher, que o senhor sabe, 
zela por mim: muito reza. Ela é uma abençoável. Compadre 
meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de 
consciência, que sendo bem-assistido, terríveis bons-espíritos 
me protegem. Ipe! Com gosto... Como é de são efeito, ajudo 
com meu querer acreditar. Mas nem sempre posso. O senhor 
saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido 
diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu 
quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor 
concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o 
senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa 
por fundo de todos os matos, amém! Olhe: o que devia de 
haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições 
gradas, fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, 
artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não 
pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. 
Por que o Governo não cuida?! 
Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor 
por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com 
país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... 
Tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega: todos 
nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de 
emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo 
chuva e negócios bons... De sorte que carece de se escolher: ou 
a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de 
religião só. Eu podia ser: padre sacerdote, se não chefe de 
jagunços; para outras coisas não fui parido. Mas minha velhice já 
principiou, errei de toda conta. E o reumatismo... Lá como 
quem diz: nas escorvas. Ahã. 
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-omundo 
é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é 
que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, 
desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a 
salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco 
ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... 
Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, 
católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu 
Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, 
vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente 
se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos 
deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me 
refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo 
todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é 
privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – o que 
faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, 
executado. Eu não tresmalho! 
Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não 
mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela 
pago, todo mês – encomenda de rezar por mim um terço, todo 
santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha 
mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma 
outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de 
que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com 
ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, 
reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! 
Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, 
de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por 
principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, 
para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as 
coisas dum seu modo. Montante, o mais supro, mais sério – foi 
Medeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joãozinho Bem- 
Bem, o mais bravo de todos, ninguém nunca pôde decifrar 
como ele por dentro consistia. Joca Ramiro – grande homem 
príncipe! – era político. Zé-Bebelo quis ser político, mas teve e 
não teve sorte: raposa que demorou. Só Candelário se 
endiabrou, por pensar que estava com doença má. Titão Passos 
era o pelo preço de amigos: só por via deles, de suas mesmas 
amizades, foi que tão alto se ajagunçou. Antônio Dó – severo 
bandido. Mas por metade; grande maior metade que seja. 
Andalécio, no fundo, um bom homem-de-bem, estouvado 
raivoso em sua toda justiça. Ricardão, mesmo, queria era ser rico 
em paz: para isso guerreava. Só o Hermógenes foi que nasceu 
formado tigre, e assassim. E o “Urutu-Branco”? Ah, não me 
fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que era um pobre 
menino do destino... 
Tão bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruim 
com o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar – Deus 
espera essa gastança. Moço!: Deus é paciência. O contrário, é o 
diabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca – e afia – que se 
raspam. Até as pedras do fundo, uma dá na outra, vão-se 
arredondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que 
eu penso, tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e 
carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, 
não arrocha o regulamento. Pra quê? Deixa: bobo com bobo – 
um dia, algum estala e aprende: esperta. Só que, às vezes, por 
mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta... 
Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, lá em 
Sete-Lagoas, para partes de consultar um médico, de nome me 
indicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via das 
dúvidas, não me sombrearem por jagunço antigo. Vai e 
acontece, que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, 
voltando deste brabo Norte, um moço Jazevedão, delegado 
profissional. Vinha com um capanga dele, um secreta, e eu bem 
sabia os dois, de que tanto um era ruim, como o outro ruim era. 
A verdade que diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para 
um longe dali, mudar de meu lugar. Juízo me disse, melhor 
ficasse. Pois, ficando, olhei. E – lhe falo: nunca vi cara de 
homem fornecida de bruteza e maldade mais, do que nesse. 
Como que era urco, trouxo de atarracado, reluzia um cru nos 
olhos pequenos, e armava um queixo de pedra, sobrancelhonas; 
não demedia nem testa. Não ria, não se riu nem uma vez; mas, 
falando ou calado, a gente via sempre dele algum dente, presa 
pontuda de guará. Arre, e bufava, um poucadinho. Só rosneava 
curto, baixo, as meias-palavras encrespadas. Vinha reolhando, 
historiando a papelada – uma a uma as folhas com retratos e com 
os pretos dos dedos de jagunços, ladrões de cavalos e criminosos 
de morte. Aquela aplicação de trabalho, numa coisa dessas, 
gerava a ira na gente. O secreta, xereta, todo perto, sentado junto, 
atendendo, caprichando de ser cão. Me fez um receio, mas só no 
bobo do corpo, não no interno das coragens. Uma hora, uma 
daquelas laudas caiu – e eu me abaixei depressa, sei lá mesmo por 
que, não quis, não pensei – até hoje crio vergonha disso – 
apanhei o papel do chão, e entreguei a ele. Daí, digo: eu tive mais 
raiva, porque fiz aquilo; mas aí já estava feito. O homem nem me 
olhou, nem disse nenhum agradecimento. Até as solas dos 
sapatos dele – só vendo – que solas duras grossas, dobradas de 
enormes, parecendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse 
Jazevedão, quando prendia alguém, a primeira quieta coisa que 
procedia era que vinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas 
pressas, e ia pisava em cima dos pés descalços dos coitados. E 
que nessas ocasiões dava gargalhadas, dava... Pois, osga! 
Entreguei a ele a folha de papel, e fui saindo de lá, por ter mão 
em mim de não destruir a tiros aquele sujeito. Carnes que muito 
pesavam... E ele umbigava um princípio de barriga barriguda, que 
me criou desejos... Com minha brandura, alegre que eu matava. 
Mas, as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu, o senhor 
nem tem calo em coração para poder me escutar. Conseguiu de 
muito homem e mulher chorar sangue, por este simples 
universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde 
manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, 
que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal... 
Tanto, digo: Jazevedão – um assim, devia de ter, precisava? 
Ah, precisa. Couro ruim é que chama ferrão de ponta. Haja que, 
depois – negócio particular dele – nesta vida ou na outra, cada 
Jazevedão, cumprido o que tinha, descamba em seu tempo de 
penar, também, até pagar o que deveu – compadre meu 
Quelemém está aí, para fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que é 
viver... Mas só do modo, desses, por feio instrumento, foi que a 
jagunçada se findou. Senhor pensa que Antônio Dó ou Olivino 
Oliviano iam ficar bonzinhos por pura soletração de si, ou por 
rogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermão de padre? Te 
acho! Nos visos... 
De jagunço comportado ativo para se arrepender no meio 
de suas jagunçadas, só deponho de um: chamado Joé Cazuzo – 
foi em arraso de um tirotei’, p’ra cima do lugar Serra-Nova, 
distrito de Rio-Pardo, no ribeirão Traçadal. A gente fazia má 
minoria pequena, e fechavam para riba de nós o pessoal dum 
Coronel Adalvino, forte político, com muitos soldados fardados 
no meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depois 
ficou capitão. Agüentamos hora mais hora, e já dávamos quase 
de cercados. Aí, de bote, aquele Joé Cazuzo – homem muito 
valente – se ajoelhou giro no chão do cerrado, levantava os 
braços que nem esgalho de jatobá seco, e só gritava, urro claro e 
urro surdo: – “Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Céu, com seus 
filhos de Anjos!...” Gritava não esbarrava. – “Eu vi a Virgem!...” 
Ele almou? Nós desigualamos. Trape por meu cavalo – que 
achei – pulei em meu assento, nem sei em que rompe-tempo 
desatei o cabresto, de amarrado em pé de pau. Voei, vindo. Bala 
vinha. O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai 
ao inteiro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito 
burro bruto, dá-que, dá-que. Umas duas ou três balas se 
cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar 
quase muita a paina do encheio. Cavalo estremece em pró, em 
meio de galope, sei: pensa no dono. Eu não cabia de estar mais 
bem encolhido. Baleado veio também o surrão que eu tinha nas 
costas, com poucas minhas coisas. E outra, de fuzil, em 
ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o 
senhor veja: bala faz o que quer – se enfiou imprensada, entre 
em mim e a aba da jereba! Tempos loucos... Burumbum!: o 
cavalo se ajoelhou em queda, morto quiçá, e eu já caindo para 
diante, abraçado em folhagens grossas, ramada e cipós, que me 
balançaram e espetavam, feito eu estava pendurado em teião de 
aranha... Aonde? Atravessei aquilo, vida toda... De medo em 
ânsia, rompi por rasgar com meu corpo aquele mato, fui, sei lá – 
e me despenquei mundo abaixo, rolava para o oco de um grotão 
fechado de moitas, sempre me agarrava – rolava mesmo assim: 
depois – depois, quando olhei minhas mãos, tudo nelas que não 
era tirado sangue, era um amasso verde, nos dedos, de folhas 
vivas que puxei e masgalhei... Pousei no capim do fundo – e um 
bicho escuro deu um repulão, com um espirro, também doido 
de susto: que era um papa-mel, que eu vislumbrei; para fugir, 
esse está somente. Maior sendo eu, me molhou meu cansaço; 
espichei tudo. E um pedacinho de pensamento: se aquele bicho 
irara tinha jazido lá, então ali não tinha cobra. Tomei o lugar 
dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia me largar. Eu era só 
mole, moleza, mas que não amortecia os trancos, dentro, do 
coração. Arfei. Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia 
mal, me importei não. Assim, uns momentos, ao menos eu 
guardava a licença de prazo para me descansar. Conforme 
pensei em Diadorim. Só pensava era nele. Um joão-de-barro 
cantou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, 
mano-oh-mão, que estava na Serra do Pau-d’Arco, quase na 
divisa baiana, com nossa outra metade dos sócandelários... Com 
meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu iavoava reto 
para ele... Ai, arre, mas: que esta minha boca não tem ordem 
nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me 
fio? Atéque, até-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu 
vinha: depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os 
cabras do Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro 
daquele Joé Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem mais 
pacificioso do mundo, fabricador de azeite e sacristão, no São 
Domingos Branco. Tempos! 
Por tudo, réis-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para a 
idéia se bem abrir, é viajando em trem-de-ferro. Pudesse, vivia 
para cima e para baixo, dentro dele. Informação que pergunto: 
mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer 
de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A 
como? O senhor sabe: há coisas de medonhas demais, tem. Dor 
do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo 
amor e raiva de ódio. Vai, mar... De sorte que, então, olhe: o 
Firmiano, por apelidado Piolho-de-Cobra, se lazarou com a 
perna desconforme engrossada, dessa doença que não se cura; e 
não enxergava quase mais, constante o branquiço nos olhos, das 
cataratas. De antes, anos, teve de se desarrear da jagunçagem. 
Pois, uma ocasião, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequitaí, 
depois contou – que, vira tempo, vem assunto, ele dissesse: – 
“Me dá saudade é de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola, 
com faca cega... Mas, primeiro, castrar...” O senhor concebe? 
Quem tem mais dose de demo em si é índio, qualquer raça de 
bugre. Gente vê nação desses, para lá fundo dos gerais de Goiás, 
adonde tem vagarosos grandes rios, de água sempre tão clara 
aprazível, correndo em deita de cristal roseado... Piolhode-Cobra 
se dava de sangue de gentio. Senhor me dirá: mas que ele pronunceia 
aquilo fora boca, maneira de representar que ainda não 
estava velho decadente. Obra de opor, por medo de ser manso, e 
causa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra: 
proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao redor 
é duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmo vau, tendo 
de um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez! Pena não 
paga contar; se vou, não esbarro. E me desgosta, três que me 
enjoa, isso tudo. Me apraz é que o pessoal, hoje em dia, é bom de 
coração. Isto é, bom no trivial. Malícias maluqueiras, e 
perversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geração 
minha, verdadeira, ainda não eram assim. Ah, vai vir um tempo, 
em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho. 
Bom, ia falando: questão, isso que me sovaca... Ah; formei 
aquela pergunta, para compadre meu Quelemém. Que me 
respondeu: que, por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que 
todos os feios passados se exalaram de não ser – feito semmodez 
de tempo de criança, más-artes. Como a gente não carece 
de ter remorso do que divulgou no latejo de seus pesadelos de 
uma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se! Ahã. Por isso dito, é 
que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro com compadre meu 
Quelemém, o senhor sabe: razão da crença mesma que tem – 
que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato. Sujeito 
assim madruga três vezes, em antes de querer facilitar em 
qualquer minudência repreensível... Compadre meu Quelemém 
nunca fala vazio, não subtrata. Só que isto a ele não vou expor. A 
gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é 
que é a regra do rei! 
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do 
mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não 
foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam 
ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso 
que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas 
Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A 
força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus 
vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – 
assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se 
economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que 
eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, 
barbatimão, angico, lá sei. – “Amanhã eu tiro...” – falei, comigo. 
Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, 
saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, 
quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta. Deixei, 
para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma 
da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não 
ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, 
o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende... 
Somenos, não ache que religião afraca. Senhor ache o 
contrário. Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava – cré 
que o caroá levanta a flor. Eli, bom meu pasto... Mocidade. Mas 
mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir. Também, eu 
desse de pensar em vago em tanto, perdia minha mão-de-
homem para o manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que 
raciocinei, e penso a eito, não nem por isso não dou por baixa 
minha competência, num fogo-e-ferro. A ver. Chegassem 
viessem aqui com guerra em mim, com más partes, com outras 
leis, ou com sobejos olhares, e eu ainda sorteio de acender esta 
zona, ai, se, se! É na boca do trabuco: é no té-retêretém... E 
sozinhozinho não estou, há-de-o. Pra não isso, hei coloquei redor 
meu minha gente. Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda 
abaixo, o Paspe – meeiro meu – é meu. Mais légua, se tanto, tem 
o Acauã, e tem o Compadre Ciril, ele e três filhos, sei que 
servem. Banda desta mão, o Alaripe: soubesse o senhor o que é 
que se preza, em rifleio e à faca, um cearense feito esse! Depois 
mais: o João Nonato, o Quipes, o Pacamã-de-Presas. E o Fafafa 
– este deu lances altos, todo lado comigo, no combate velho do 
Tamanduá-tão: limpamos o vento de quem não tinha ordem de 
respirar, e antes esses desrodeamos... O Fafafa tem uma eguada. 
Ele cria cavalos bons. Até um pouco mais longe, no pé-de-serra, 
de bando meu foram o Sesfredo, Jesualdo, o Nélson e João 
Concliz. Uns outros. O Triol... E não vou valendo? Deixo terra 
com eles, deles o que é meu é, fechamos que nem irmãos. Para 
que eu quero ajuntar riqueza? Estão aí, de armas areiadas. 
Inimigo vier, a gente cruza chamado, ajuntamos: é hora dum 
bom tiroteiamento em paz, exp’rimentem ver. Digo isto ao 
senhor, de fidúcia. Também, não vá pensar em dobro. 
Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo 
para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a 
devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, 
rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, 
penso também – mas Diadorim é a minha neblina... Agora, bem: 
não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um 
porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa 
parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é 
não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa 
confirmação. Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, 
alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna supremada, muito 
mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! 
Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, 
não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de 
entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que 
reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino 
menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso 
sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, 
foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão 
ligeiro –; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já 
se fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, 
ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não 
queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, 
peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em idéia 
firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua 
companhia me dá altos prazeres. 
Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma 
ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o 
senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte 
do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso... 
Eh, que se vai? Jajá? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. 
Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de 
minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhãcedo, 
o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo 
sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, 
comigo, é por três dias! 
Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de 
territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus 
motivos. Agora – digo por mim – o senhor vem, veio tarde. 
Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo 
leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada. Os bandos bons de 
valentões repartiram seu fim; muito que foi jagunço, por aí pena, 
pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir no 
comércio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje de 
gibão é feio e capiau. E até o gado no grameal vai minguando 
menos bravo, mais educado: casteado de zebu, desvém com o 
resto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, é à pobreza, à 
tristeza. Uma tristeza que até alegra. Mas, então, para uma safra 
razoável de bizarrices, reconselho de o senhor entestar viagem 
mais dilatada. Não fosse meu despoder, por azias e reumatismo, 
aí eu ia. Eu guiava o senhor até tudo. 
Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de lá, 
num afã, espuma próspero, gruge; cada cachoeira, só tombos. O 
cio da tigre preta na Serra do Tatu – já ouviu o senhor 
gargaragem de onça? A garoa rebrilhante da dos-Confins, 
madrugada quando o céu embranquece – neblim que chamam 
de xererém. Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem 
dono foi Diadorim... A da-Raizama, onde até os pássaros 
calculam o giro da lua – se diz – e canguçu monstra pisa em 
volta. Lua de com ela se cunhar dinheiro. Quando o senhor 
sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, 
em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas... 
Isto – no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um 
tamarindo sombroso... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até 
nos telhados das casas. Ou no Meãomeão – depois dali tem uma 
terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso, 
igual um ovo de macuco. Ventos de não deixar se formar 
orvalho... Um punhado quente de vento, passante entre duas 
palmas de palmeira... Lembro, deslembro. Ou – o senhor vai – 
no soposo: de chuva-chuva. Vê um córrego com má passagem, 
ou um rio em turvação. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-de- 
Santa-Maria... Senhor caça? Tem lá mais perdiz do que no 
Chapadão das Vertentes... Caçar anta no Cabeça-de-Negro ou 
no Buriti-Comprido – aquelas que comem um capim diferente e 
roem cascas de muitas outras árvores: a carne, de gostosa, 
diverseia. Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha 
no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já 
tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de 
idéia e saudade de coração... Ah. Diz-se que o Governo está 
mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatu, 
por aí... 
Na Serra do Cafundó – ouvir trovão de lá, e retrovão, o 
senhor tapa os ouvidos, pode ser até que chore, de medo mau 
em ilusão, como quando foi menino. O senhor vê vaca parindo 
na tempestade... De em de, sempre, Urucuia acima, o Urucuia – 
tão a brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre 
torta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do chão 
um vapor de enxofre, com estúrdio barulhão, o gado foge de lá, 
por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador – 
donde dão retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: o 
rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno; meu, em belo, é o 
Urucuia – paz das águas... É vida!... Passado o Porto das Onças, 
tem um fazendol. Ficamos lá umas semanas, se descansou. 
Carecia. Porque a gente vinha no caminhar a pé, para não acabar 
os cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim, fora de 
guerra, prazer dele era dormir com camisolão e barrete; antes de 
se deitar, ajoelhava e rezava o terço. Aqueles foram meus dias. Se 
caçava, cada um esquecia o que queria, de de-comer não faltava, 
pescar peixe nas veredas... O senhor vá lá, verá. Os lugares 
sempre estão aí em si, para confirmar. 
Muito deleitável. Claráguas, fontes, sombreado e sol. 
Fazenda Boi-Preto, dum Eleutério Lopes – mais antes do 
Campo-Azulado, rumo a rumo com o Queimadão. Aí foi em 
fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: 
que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no 
cerrado; o anis enfeitando suas moitas; e com florzinhas as 
dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, redobra 
logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco. De 
qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas 
folhas, saíam em giro as todas as cores de borboletas. Como não 
se viu, aqui se vê. Porque, nos gerais, a mesma raça de 
borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira 
muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do 
ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o 
povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no 
revoredo, o saci-dobrejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempoquente, 
a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras 
enrouquecidas. Bom era ouvir o mom das vacas devendo seu 
leite. Mas, passarinho de bilo no desvéu da madrugada, para toda 
tristeza que o pensamento da gente quer, ele repergunta e finge 
resposta. Tal, de tarde, o bento-vieira tresvoava, em vai sobre 
vem sob, rebicando de vôo todo bichinhozinho de finas asas; 
pássaro esperto. Ia dechover mais em mais. Tardinha que enche 
as árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que 
fechavam o dia: o papa-banana, o azulejo, a garricha-do-brejo, o 
suiriri, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro... Eu estava todo o 
tempo quase com Diadorim. 
Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com 
assim, a gente se diferenciava dos outros – porque jagunço não 
é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a 
bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é 
feito um por si. De nós dois juntos, ninguém nada não falava. 
Tinham a boa prudência. Dissesse um, caçoasse, digo – podia 
morrer. Se acostumavam de ver a gente parmente. Que nem 
mais maldavam. E estávamos conversando, perto do rego – 
bicame de velha fazenda, onde o agrião dá flor. Desse lusfús, ia 
escurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar 
sabugos. Mariposas passavam muitas, por entre as nossas caras, 
e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma brisbisa. O ianso 
do vento revinha com o cheiro de alguma chuva perto. E o 
chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados. Por mim, só, 
de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de 
à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje 
fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas 
essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som como os sapos 
sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das 
brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém 
que me tirava para ele – o irremediável extenso da vida. Por 
mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele 
estava obedecendo quieto. Quase que sem menos era assim: a 
gente chegava num lugar, ele falava para eu sentar; eu sentava. 
Não gosto de ficar em pé. Então, depois, ele vinha sentava, sua 
vez. Sempre mediante mais longe. Eu não tinha coragem de 
mudar para mais perto. Só de mim era que Diadorim às vezes 
parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o 
amigo! Mas, essa ocasião, ele estava ali, mais vindo, a meia-mão 
de mim. E eu – mal de não me consentir em nenhum afirmar 
das docemente coisas que são feias – eu me esquecia de tudo, 
num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia 
uma duvidação, ranço de desgosto: eu versava aquilo em 
redondos e quadrados. Só que coração meu podia mais. O 
corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende. 
Perto de muita água, tudo é feliz. Se escutou, banda do rio, uma 
lontra por outra: o issilvo de plim, chupante. – “Ta que, mas eu 
quero que esse dia chegue!” – Diadorim dizia. – “Não posso ter 
alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto 
aqueles dois monstros não forem bem acabados...” E ele 
suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não 
se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: 
parava sendo um ódio sossegado. Odio com paciência; o senhor 
sabe? 
E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim – mas 
não como ódio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os dois 
monstros vivessem, simples Diadorim tanto não vivia. Até que 
viesse a poder vingar o histórico de seu pai, ele tresvariava. 
Durante que estávamos assim fora de marcha em rota, tempo de 
descanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim só falava 
nos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue. 
Assim nós dois esperávamos ali, nas cabeceiras da noite, junto 
em junto. Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava saco 
de sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beira do rego. 
A ramagem toda do agrião – o senhor conhece – às horas dá de 
si uma luz, nessas escuridões: folha a folha, um fosforém – agrião 
acende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medo em alma. 
Não respondi. Não adiantava. Diadorim queria o fim. Para 
isso a gente estava indo. Com o comando de Medeiro Vaz, dali 
depois daquele carecido repouso, a gente revirava caminho, ia em 
cima dos outros – deles! – procurando combate. Munição não 
faltava. Nós estávamos em sessenta homens – mas todos cabras 
dos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdia guerreiro. 
Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos formado, não 
gastava as palavras. Nunca relatava antes o projeto que tivesse, 
que marchas se ia amanhecer para dar. Também, tudo nele 
decidia a confiança de obediência. Ossoso, com a nuca enorme, 
cabeçona meia baixa, ele era dono do dia e da noite – que quase 
não dormia mais: sempre se levantava no meio das estrelas, 
percorria o arredor, vagaroso, em passos, calçado com suas boas 
botas de caititu, tão antigas. Se ele em honrado juízo achasse que 
estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosário na 
algibeira, se traçar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para se 
matar uma a uma as mil pessoas. Desde o começo, eu apreciei 
aquela fortaleza de outro homem. :O segredo dele era de pedra. 
Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas, 
antes delas acontecerem... Com isso minha fama clareia? Remei 
vida solta. Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, 
ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes – a um, ao Chapadão do 
Urucuia – aonde tanto boi berra... Ou o mais longe: vaqueiros 
do Brejo-Verde e do Córrego do Quebra-Quinaus: cavalo deles 
conversa cochicho – que se diz – para dar sisado conselho ao 
cavaleiro, quando não tem mais ninguém perto, capaz de 
escutar. Creio e não creio. Tem coisa e cousa, e o ó da raposa... 
Dali para cá, o senhor vem, começos do Carinhanha e do 
Piratinga filho do Urucuia – que os dois, de dois, se dão as 
costas. Saem dos mesmos brejos – buritizais enormes. Por lá, 
sucuri geme. Cada surucuiú do grosso: voa corpo no veado e se 
enrosca nele, abofa – trinta palmos! Tudo em volta, é um barro 
colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por 
ferradura. Com medo de mãe-cobra, se vê muito bicho retardar 
ponderado, paz de hora de poder água beber, esses escondidos 
atrás das touceiras de buritirana. Mas o sassafrás dá mato, 
guardando o poço; o que cheira um bom perfume. Jacaré grita, 
uma, duas, as três vezes, rouco roncado. Jacaré choca – 
olhalhão, crespido do lamal, feio mirando na gente. Eh, ele sabe 
se engordar. Nas lagoas aonde nem um de asas não pousa, por 
causa da fome de jacaré e da piranha serrafina. Ou outra – lagoa 
que nem não abre o olho, de tanto junco. Daí longe em longe, 
os brejos vão virando rios. Buritizal vem com eles, buriti se 
segue, segue. Para trocar de bacia o senhor sobe, por ladeiras de 
beira-de-mesa, entra de bruto na chapada, chapadão que não se 
devolve mais. Água ali nenhuma não tem – só a que o senhor 
leva. Aquelas chapadas compridas, cheias de mutucas ferroando 
a gente. Mutucas! Dá o sol, de onda forte, dá que dá, a luz tanta 
machuca. Os cavalos suavam sal e espuma. Muita vez a gente 
cumpria por picadas no mato, caminho de anta – a ida da 
vinda... De noite, se é de ser, o céu embola um brilho. Cabeça 
da gente quase esbarra nelas. Bonito em muito comparecer, 
como o céu de estrelas, por meados de fevereiro! Mas, em 
deslua, no escuro feito, é um escurão, que peia e pega. É noite 
de muito volume. Treva toda do sertão, sempre me fez mal. 
Diadorim, não, ele não largava o fogo de gelo daquela idéia; e 
nunca se cismava. Mas eu queria que a madrugada viesse. Dia 
quente, noite fria. Arrancávamos canela-de-ema, para acender 
fogueira. Se a gente tinha o que comer e beber, eu dormia logo. 
Sonhava. Só sonho, mal ou bem; livrado. Eu tinha uma lua 
recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutava outros 
pássaros. Tiriri, graúna, a fariscadeira, juriti-dopeito-branco ou a 
pomba-vermelha-do-mato-virgem. Mas mais o bem-tevi. Atrás e 
adiante de mim, por toda a parte, parecia que era um bem-te-vi 
só. – “Gente! Não se acha até que ele é sempre um, em 
mesmo?” – perguntei a Diadorim. Ele não aprovou, e estava 
incerto de feições. Quando meu amigo ficava assim, eu perdia 
meu bom sentir. E permaneci duvidando que seria – que era um 
bem-te-vi,.exato, perseguindo minha vida em vez, me acusando 
de más-horas que eu ainda não tinha procedido. Até hoje é 
assim... 
Dali vindo, visitar convém ao senhor o povoado dos 
pretos: esses bateavam em faisqueiras – no recesso brenho do 
Vargem-da-Cria – donde ouro já se tirou. Acho, de baixo 
quilate. Uns pretos que ainda sabem cantar gabos em sua língua 
da Costa. E em andemos: jagunço era que perpassava ligeiro; no 
chapadão, os legítimos coitados todos vivem é demais devagar, 
pasmacez. A tanta miséria. O chapadão, no pardo, é igual, igual 
– a muita gente ele entristece; mas eu já nasci gostando dele. As 
chuvas se temperaram... 
Digo: outro mês, outro longe – na Aroeirinha fizemos 
paragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moça, vestida de 
vermelho, se ria. – “Ô moço da barba feita...” – ela falou. Na 
frente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostrava 
em fio. Tão bonita, só. Eu apeei e amarrei o animal num pau da 
cerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto que desses 
três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância de 
trinta léguas. Diadorim não estava perto, para me reprovar. De 
repente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, que 
tocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira 
d’água. Eu nem tinha começado a conversar com aquela moça, e 
a poeira forte que deu no ar ajuntou nós dois, num grosso rojo 
avermelhado. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de 
mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava 
Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo – 
alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só 
se colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá. Depois ela me 
deu de presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, 
com talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar 
uma estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi. 
Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana 
Duzuza: falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da 
boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita 
virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e até – contanto que 
fosse para os homens de fora do lugarejo, jagunços ou tropeiros 
– não se importava, mesmo dava sua placença. Comemos 
farinha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo 
forte segredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda 
a banda o liso do Suçuarão. Ela estava chegando do arranchado 
de Medeiro Vaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas 
profecias. Loucura duma? Para quê? Eu nem não acreditei. Eu 
sabia que estávamos entortando era para a Serra das Araras – 
revinhar aquelas corujeiras nos bravios de ali além, aonde tudo 
quanto era bandido em folga se escondia – lá se podia azo de 
combinar mais outros variáveis companheiros. Depois, de arte: 
que o Liso do Suçuarão não concedia passagem a gente viva, era 
o raso pior havente, era um escampo dos infernos. Se é, se? Ah, 
existe, meu! Eh... Que nem o Vão-do-Buraco? Ah, não, isto é 
coisa diversa – por diante da contravertência do Preto e do 
Pardo... Também onde se forma calor de morte – mas em 
outras condições... A gente ali rói rampa... Ah, o Tabuleiro? Senhor 
então conhece? Não, esse ocupa é desde a Vereda-da- 
Vaca-Preta até Córrego Catolé, cá embaixo, e de em desde a 
nascença do Peruaçu até o rio Cochá, que tira da Várzea da 
Ema. Depois dos cerradões das mangabeiras... 
Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Suçuarão, é o 
mais longe – pra lá, pra lá, nos ermos. Se emenda com si 
mesmo. Água, não tem. Crer que quando a gente entesta com 
aquilo o mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um é 
que dali não avança, espia só o começo, só. Ver o luar 
alumiando, mãe, e escutar como quantos gritos o vento se 
sabe sozinho, na cama daqueles desertos. Não tem 
excrementos. Não tem pássaros. 
Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela não agüentou 
a raiva em meus olhos. – “Seô Medeiro Vaz, pois foi ele 
mesmo próprio quem me contou...” – ela teve de falar. 
Soturnos. Não era possível! 
Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha 
roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, 
nova, de bulgariana. Às vezes eu lavava a roupa, nossa; mas 
quase mais quem fazia isso era Diadorim. Porque eu achava tal 
serviço o pior de todos, e também Diadorim praticava com 
mais jeito, mão melhor. Ele não indagou donde eu tinha 
estado, e eu menti que só tinha entrado lá por causa da velha 
Ana Duzuza, a fim de requerer o significado do meu futuro. 
Diadorim também disso não disse; ele gostava de silêncios. Se 
ele estava com as mangas arregaçadas, eu olhava para os 
braços dele – tão bonitos braços alvos, em bem feitos, e a cara 
e as mãos avermelhadas e empoladas, de picadas das mutucas. 
No momento, foi que eu caí em mim, que podia ter 
perguntado à Ana Duzuza alguma passagem de minha sina 
por vir. Também uma coisa, de minha, fechada, eu devia de 
perguntar. Coisa que nem eu comigo não estudava, não tinha a 
coragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecesse por 
detrás o pano do destino? Não perguntei, não tinha 
perguntado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiçado? Me 
arrependi de não ter pedido o resumo à Ana Duzuza. Ah, tem 
uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida 
acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não 
vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e 
de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a 
nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito 
mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. 
Viver nem não é muito perigoso? 
Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o 
projeto de Medeiro Vaz só era o de conduzir a gente para o Liso 
do Suçuarão – a dentro, adiante, até ao fim. – “E certo é. É 
certo” – Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de 
que ele já sabia daquilo e a mim não tinha antecipado nem 
miúda palavra. E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, 
contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um 
amigo se pertence gostar; e, agora aquela hora, eu não apurava 
vergonha de se me entender um ciúme amargoso. Sendo 
sabendo que Medeiro Vaz depunha em Diadorim uma 
confiança muito maior do que em nós outros todos, de formas 
que com ele externava os assuntos. Essa diferença de regra 
agora me turvava? Mas Medeiro Vaz era homem de outras 
idades, andava por este mundo com mão leal, não variava 
nunca, não fraquejava. Eu sabia que ele, a bem dizer, só 
guardava memória de um amigo: Joca Ramiro. loca Ramiro 
tinha sido a admiração grave da vida dele: Deus no Céu e Joca 
Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mas ciúme é mais 
custoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente – o 
escuro, escuros. 
Então, Diadorim o resto me descreveu. Pra por lá do 
Suçuarão, já em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas 
possuía sua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e lá 
morava sua família dele legítima, de raça – mulher e filhos. A 
gente suprisse de varar o Liso em boas farsas, se chegava lá 
sem ser esperados, arrastava aquele pessoal por dura surpresa 
– acabou-se com aquilo! Mesmo quem havia de deduzir que o 
Liso do Suçuarão prestasse para nele caminho se impor? Ah, 
eles prosperavam em sua fazenda feito num quartel de bronze 
– com que por outros cantos não se podia remeter, pois de 
arredor decerto tinham vigias, reforço de munição e récua de 
camaradas, pelos pontos de passagem dificultosa, que eles 
governavam, em cada grota e cada ipueira. Truco que, de 
repente, do lado mais impossível, a gente fosse surgir de 
sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Eu escutei, e 
perfiz até um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais sério, 
temperou: – “Essa velha Ana Duzuza é que inferna e não se 
serve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino 
a tenção dele, e não devia de ter falado as pausas... Essa carece 
de morrer, para não ser leleira...” 
Ouvi mal ouvi. Me vim d’águas frias. Diadorim era 
assim: matar, se matava – era para ser um preparo. O judas 
algum? – na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu não sabia? 
Não sou homem de meio-dia com orvalhos, não tenho a fraca 
natureza. Mas me venceu pena daquela Ana Duzuza, ela com 
os olhos para fora – a gente podia pegar nos dedos. Coisa que 
me contou tantas lorotas. Trem, caco de velha, boca que se 
fechava aboborosa, de sem dentes. Raspava a rapadura com a 
quicé, ia ajuntando na palma da mão o farelo peguento preto; 
ou, se não, segurava o naco, rechupando, lambendo. A gente 
engrossava nojo, salivava. Por que é, então, que ela merecia 
tanto dó? Eu não tive solércia de contradizer. As vontades de 
minha pessoa estavam entregues a Diadorim. A razão dele era 
do estilo acinte. Só previ medo foi de que ele falasse para eu 
mesmo ir voltar lá, por minhas próprias acabar a Ana Duzuza. 
Eu não sojigava tudo por sentir. Fazia tempo que eu não 
olhava Diadorim nos olhos. 
Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velha Duzuza, 
pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha 
também, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de 
mim uma decisão, e eu abri sete janelas: – “Disso que você 
disse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente 
dá atraso...” – eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava: – “Já 
sei que você esteve com a moça filha dela...” – ele respondeu, 
seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra 
verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele 
por mim também se alteava. Depois dum rebate contente, se 
atrapalhou em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco. 
E eu quase gritei: – “Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio 
do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!...” 
Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de 
dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e 
eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas 
palmas. – “Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por 
conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste 
confim de gerais?!” – ele baixo exclamou. E tive ira. – “Dou!” – 
falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a 
figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, 
o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono 
definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia 
disso, parece que não deixava: 
– “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu 
pai...” – ele disse – não sei se estava pálido muito, e depois foi 
que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais 
perto de mim. 
Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em 
cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre 
eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura 
cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em Joca 
Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os 
bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de 
cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo. 
Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha 
uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho, agora de 
vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi declarar: – 
Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo sistema, e 
com a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse. Será por 
quê? Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três 
tranços. – “Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essa Ana 
Duzuza fica sendo minha mãe!” – foi o que eu disse. E, fechando, 
quase gritei: – “Por mim, pode cheirar que chegue o 
manacá: não vou! Reajo dessas barbaridades!...” 
Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um aceso, 
de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às 
loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a 
raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como 
queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. 
Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de 
empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em 
Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas 
demais vezes, sempre. E tinha nojo maior daquela Ana Duzuza, 
que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu 
quase reconheci um surdo prestígio de, sendo preciso, ir lá, por 
mim, reduzir a velha – só não podia maltratar era Nhorinhá, que, 
ao tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certo não 
regulasse, ôxe? Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando 
isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não 
devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, 
talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem 
ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do 
jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que e ruim, 
dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. 
Para isso é que o muito se fala? 
E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. 
Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não 
existe; pois é não? O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o 
Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o 
Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, 
o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o 
Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não 
existe! E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto 
com ele? E a idéia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor 
me dê o lícito: que, ou então – será que pode também ser que 
tudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais 
crônico: que, quando um tem noção de resolver a vender a alma 
sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a 
pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato 
– que já se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus não queira; 
Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até 
podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim: quemsabe, 
a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às 
vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do 
diá? Ou que Deus – quando o projeto que ele começa é para 
muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o 
aproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que de verdade 
a gente pressente? Dúvido dez anos. Os pobres ventos no burro 
da noite. Deixa o mundo dar seus giros! Estou de costas 
guardadas, a poder de minhas rezas. Ahã. Deamar, deamo... 
Relembro Diadorim. Minha mulher que não me ouça. Moço: 
toda saudade é uma espécie de velhice. 
Mas aí, eu estava contando – quando eu gritei aquele 
desafio raivoso, Diadorim respondeu o que eu não esperava: – 
“Tem discórdia não, Riobaldo amigo, se acalme. Não é preciso 
se haver cautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem nós 
vamos com Medeiro Vaz para fazer barbaridade com a mulher e 
filhos pequenos daquele pior dos dois Judas, tão bem que 
mereciam, porque ele e os da laia dele têm costumes de 
proceder assim. Mas o que a gente quer é só pegar a família 
conosco prisioneira; então, ele vem, se vem! E vem obrigado pra 
combates... Mas, se você algum dia deixar de vir junto, como 
juro o seguinte: hei de ter a tristeza mortal...” Disse. Tinha 
tornado a pôr a mão na minha mão, no começo de falar, e que 
depois tirou; e se espaçou de mim. Mas nunca eu senti que ele 
estivesse melhor e perto, pelo quanto da voz, duma voz mesmo 
repassada. Coração – isto é, estes pormenores todos. Foi um 
esclaro. O amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei 
Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu 
pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem. 
Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, 
quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: – “Riobaldo, 
se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de 
bondade que era a dela...” 
Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na 
ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer 
direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, 
o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar 
esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim 
devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua 
paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu 
nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a 
minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial 
de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que 
eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, 
querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, 
fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito 
entre madrugar e manhecer. 
– “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim 
prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse 
falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse cego, de nascença. 
Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer 
isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me 
envergonho, por ser de escuro nascimento. Orfão de conhecença 
e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. 
Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum 
filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-ogiro 
no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O 
senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e 
habilidoso. Pergunto: – “Zé-Zim, por que é que você não cria 
galinhas-d’angola, como todo o mundo faz?” – “Quero criar 
nada não...” – me deu resposta: – “Eu gosto muito de mudar...” 
Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela 
já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém discrepa. Eu, 
tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus, por 
baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando 
eu era menino, no sertãozinho de minha terra – baixo da ponta 
da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, 
tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o 
Verde que verte no Paracatu. Perto de lá tem vila grande – que se 
chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, 
mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São 
Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e 
o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que 
podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome 
de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como 
quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de 
Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e 
São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é 
definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo: 
eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo 
tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; 
mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos. 
Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada de 
minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, 
que eu tive de um homem chamado Gramacedo... Gente melhor 
do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; 
quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Fica-
mos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali 
onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava 
com uns treze ou quatorze anos... 
De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, uma 
noite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro que 
era em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traçava, tinha 
querido se adiar das restadas chuvas de março – dia de São José e 
sua enchente temposa – para pegar céu perfeito, com os campos 
ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiro por 
campinas de brejais, e daí avançar aquilo que se disse, depodepois. 
Porque era extraordinária verdade, logo conheci; não 
achei terrível. Tangemos, esbarrando dois dias no Vespê – lá se 
tinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dum 
sitiante amigo, Jõe Engrácio, por nome. Nos caminhos ainda se 
lambuzava muita lama de ontem. – “Versar viagem a cavalo sem 
ter estradas – só doido é quem faz isso, ou jagunz...” – aquele Jõe 
Engrácio falou, esse era homem sério trabalhador, mas demais de 
simplório; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria, fortemente. 
Mas erro era – porquanto Medeiro Vaz sempre soube rumo 
prático, pelo firme. Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio 
reparou na quantidade de comidas e mantimentos que a gente 
tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era 
despropósito, por amor daquela fartura – as carnes e farinhas, e 
rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o que 
via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. – 
“Bobou?” – foi só o que Medeiro Vaz indeferiu. – “Bobei, chefe. 
Perdão peço...” – Jõe Engrácio reverenciou. 
Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, 
a praxe, homem baseado. Às vezes vinha falando surdo, de 
resmão. Com ele, ninguém vereava. De estado calado, ele 
sempre aceitava todo bom e justo conselho. Mas não louvava 
cantoria. Estavam falando todos juntos? Então Medeiro Vaz 
não estava lá. O que tinha sido antanha a história mesma dele, o 
senhor sabe? Quando moço, de antepassados de posses, ele 
recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas 
vieram as guerras é os desmandos de jagunços – tudo era morte 
e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, 
foi impossível qualquer sossego, desde em quando aquele 
imundo de loucura subiu as serras e se espraiou nos gerais. Então 
Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: 
largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se 
livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não 
tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No 
derradeiro, fez o fez-por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-
fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô – espiou até o voejo 
das cinzas; lá hoje é arvoredos. Ao que, aí foi aonde a mãe estava 
enterrada – um cemiteriozinho em beira do cerrado – então 
desmanchou cerca, espalhou as pedras: pronto, de alívios agora 
se testava, ninguém podia descobrir, para remexer com desonra, 
o lugar onde se conseguiam os ossos dos parentes. Daí, relimpo 
de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cachos 
d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos 
campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça. De 
anos, andava. Dizem que foi ficando cada vez mais esquisito. 
Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra esperança 
maior: para ele, loca Ramiro era único homem, par-de-frança, 
capaz de tomar conta deste sertão nosso, mandando por lei, de 
sobregoverno. Fato que Joca Ramiro também igualmente saía 
por justiça e alta política, mas só em favor de amigos 
perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres. Mas 
Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não 
vê; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tão forte, que perto dele até o 
doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia abençoar ou 
amaldiçoar, e homem mais moço, por valente que fosse, de beijar 
a mão dele não se vexava. Por isso, nós todos obedecíamos. 
Cumpríamos choro e riso, doideira em juízo. Tenente nos gerais 
– ele era. A gente era os medeiro-vazes.  
Razão dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme 
Medeiro Vaz com as poucas palavras: que íamos cruzar o Liso 
do Suçuarão, e cutucar de guerrear nos fundões da Bahia! Até, o 
tanto, houve, prezando, um rebuliço de festejo. O que ninguém 
ainda não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Como 
fomos: dali do Vespê, tocamos, descendo esbarrancados e escorregador. 
Depois subimos. A parte de mais árvores, dos 
cerrados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza 
pode surgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca 
soube – vem feio pior que onça. Se viam bandos tão compridos 
de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, 
desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente. Daí, se 
desceu mais, e, de repente, chegamos numa baixada toda 
avistada, felizinha de aprazível, com uma lagoa muito correta, 
rodeada de buritizal dos mais altos: buriti – verde que afina e 
esveste, belimbeleza. E tinha os restos de uma casa, que o 
tempo viera destruindo; e um bambual, por antigos plantado; e 
um ranchinho. Ali se chamava o Bambual do Boi. Lá a gente 
seria de pernoitar e arrumar os finais preparos. Eu estava de 
sentinela, afastado um quarto-de-légua, num alto retuso. Dali eu 
via aquele movimento: os homens, enxergados tamanhinho de 
meninos, numa alegria, feito nuvem de abelhas em flor de araçá, 
esse alvoroço, como tirando roupa e correndo para aproveitarem 
de se banhar no redondo azul da lagoa, de donde fugiam 
espantados todos os pássaros – as garças, os jaburus, os 
marrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhava que por 
saberem que no outro dia principiava o peso da vida, os companheiros 
agora queriam só pular, rir e gozar seu exato. Mas uns 
dez tinham de sempre ficar formando prontidão, com seus rifles 
e granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, de tardinha, 
quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, nas palmas 
dos buritis, roladas uma por uma. E o bambual, quase 
igualmente. Som bom de chuvas. Então, Diadorim veio me fazer 
companhia. Eu estava meio dúbito. Talvez, quem tivesse mais 
receio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cá 
não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era 
variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, 
para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se 
olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de 
valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi 
comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade. E, digo 
ao senhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando 
Deus manda, depois quando o diabo pede se perfaz. O Danador! 
Mas Diadorim estava a suaves. – “Olha, Riobaldo” – me disse – 
“nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você 
lembra de sua mãe; eu lembro de meu pai...” Não fale nesses, 
Diadorim... Ficar calado é que é falar nos mortos... Me faltou 
certeza para responder a ele o que eu estava achando. Que vontade 
era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos 
dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, 
até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, 
me adoecido, tão impossível. 
Dormiu-se bem. De manhãzim – moal de aves e pássaros 
em revôo, e pios e cantos – a gente toda discorria, se 
esparramava, atarefados, ajudando para o derradeiro. Os bogós 
de couro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos 
nas costas dos burrinhos. Também tínhamos trazido jumentos, 
só modo para carregar. Os cavalos ainda pastavam um pouco, 
do capim-grama, que tapava os pés deles. Se dizia muita alegria. 
Cada um pegava também sua cabaça d’água, e na capanga o 
diário de se valer com o que comer – paçoca. Medeiro Vaz, 
depois de não dizer nada, deu ordem de seguida. Primeiro, para 
adiante, foi uma turma de cinco homens, a patrulhazinha. 
Constante que com a gente estavam três bons rastreadores – 
Suzarte, Joaquim Beiju e Tipote – esse Tipote sabia meios de 
descobrir cacimbas e grotas com o bebível, o Suzarte 
desempenhava um faro de cachorro-mestre, e Joaquim Beiju 
conhecia cada recanto dos gerais, de dia e de noite, referido 
deletreado, quisesse podia mapear planta. Saímos, semoventes. 
Seis novilhos gordos a gente repontava, serviam para se carnear 
em rota. De repente, com a gente se afastando, os pássaros 
todos voltavam do céu, que desciam para seus lugares, em ponto, 
nas frescas beiras da lagoa – ah, a papeagem no buritizal, que 
lequelequeia. A ver, e o sol, em pulo de avanço, longe na banda 
de trás, por cima de matos, rebentava, aquela grandidade. Dia 
desdobrado. 
Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo sem 
volvência, até perto de hora do almoço. Mas o terreno 
aumentava de soltado. E as árvores iam se abaixando 
menorzinhas, arregaçavam saia no chão. De vir lá, só algum tatu, 
por mel e mangaba. Depois, se acabavam as mangabaranas e 
mangabeirinhas. Ali onde o campo largueia. Os urubus em vasto 
espaceavam. Se acabou o capinzal de capim-redondo e paspalho, 
e paus espinhosos, que mesmo as moitas daquele de prateados 
feixes, capins assins. Acabava o grameal, naquelas paragens 
pardas. Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o 
mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo 
do chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava 
olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo. Um gavião-andorim: foi o 
fim de pássaro que a gente divulgou. Achante, pois, se estava 
naquela coisa – taperão de tudo, fofo ocado, arrevesso. Era uma 
terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o sobejo 
dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. De 
longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta – feito 
cabeleira sem cabeça. As-exalastrava a distância, adiante, um 
amarelo vapor. E fogo começou a entrar, com o ar, nos pobres 
peitos da gente. 
Expondo ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi já 
inteirado no começo; daí só mais aumentava. E o que era para 
ser. O que é pra ser – são as palavras! Ah, porque. Por quê? Juro 
que: pontual nos instantes de o raso se pisar, um sujeito dos 
companheiros, um João Bugre, me disse, ou disse a outro, do 
meu lado: 
– “ ... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o 
Capiroto...” 
Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe. 
Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, 
e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de que vem 
um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com 
ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de 
leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor 
imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém – então dá 
um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma espécie, 
se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se 
assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais 
depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas! “... O 
Hermógenes tem pautas...” Provei. Introduzi. Com ele ninguém 
podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo. 
A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu 
Quelemém instrui. Duns lugares inferiores, tão monstromedonhos, 
que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por 
um relance a graça de sua sustância alumiável, em as trevas de 
véspera para o Terceiro Dia. Senhor quer crer? 
Que lá o prazer trivial de cada um é judiar dos outros, bom 
atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o 
que se come, é preciso de esforçar no meio, com fortes dores; e 
até respirar custa dor; e nenhum sossego não se tem. Se creio? 
Acho proseável. Repenso no acampo da Macaúba da Jaíba, 
soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades 
de regra que executavam em tantos pobrezinhos arraiais: 
baleando, esfaqueando, estripando, furando os olhos, cortando 
línguas e orelhas, não economizando as crianças pequenas, 
atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio 
vivas, na beira de estrago de sangues... Esses não vieram do 
inferno? Saudações. Se vê que subiram de lá antes dos prazos, 
figuro que por empreitada de punir os outros, exemplação de 
nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Em tanto, 
que muitos retombam para lá, constante que morrem... Viver é 
muito perigoso. 
Mas mor o infernal a gente também media. Digo. A igual, 
igualmente. As chuvas já estavam esquecidas, e o miolo mal do 
sertão residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumas 
poucas braças, e calcava o reafundo do areião – areia que 
escapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trás. 
Depois, se repraçava um entranço de vice-versa, com espinhos e 
restolho de graviá, de áspera raça, verde-preto cor de cobra. Caminho 
não se havendo. Daí, trasla um duro chão rosado ou 
cinzento, gretoso e escabro – no desentender aquilo os cavalos 
arupanavam. Diadorim – sempre em prumo a cabeça – o sorriso 
dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: “Hê, valentes 
somos, corruscubas, sobre ninguém – que vamos padecer e 
morrer por aqui...” Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se 
estugasse adiante, junto com os que rastreavam? Será que de lá 
ainda se podia receder? De devagar, vi visagens. Os 
companheiros se prosseguindo, só prosseguindo, receei de ter 
um vágado – como tonteira de truaca. Havia eu de saber por 
quê? Acho que provinha de excessos de idéia, pois caminhadas 
piores eu já tinha feito, a cavalo ou a pé, no tosta-sol. Medo, 
meu medo. Agüentei. Tanto tudo o que eu carregava comigo me 
pesava – eu ressentia as correias dos correames, os formatos. A 
com légua-e-meia de andada, bebi meu primeiro chupo d’água, 
da cabaça – eu tinha avarezas dela. Alguma justa noção não 
emendei, eu pensava desconjuntado. Até que esbarramos. Até 
que, no mesmo padrão de lugar, sem mudança nenhuma, 
nenhuma árvore nem barranco, nem nada, se viu o sol de um 
lado deslizar, e a noite armar do outro. Nem auxiliei a tomar 
conta dos bois, nem a destravar os burros de albarda. Onde era 
que os animais iam poder pastar? Noite redondeou, noite sem 
boca. Desarreei, peei o animal, caí e dormi. Mas, no extremo de 
adormecer, ainda intruji duas coisas, em cruz: que Medeiro Vaz 
estava insensato? – e que o Hermógenes era pactário! Tomo que 
essas traves fecharam meus olhos. De Diadorim, aí jaz que 
descansando do meu lado, assim ouvi: – “Pois dorme, Riobaldo, 
tudo há-de resultar bem...” Antes palavras que picaram em mim 
uma gastura cansada; mas a voz dele era o tanto-tanto para o 
embalo de meu corpo. Noite essa, astúcia que tive uma sonhice: 
Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse 
mesmo gostar dele – os gostares... 
Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação 
do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na 
brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, 
sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava os 
olhos, para não reter os horizontes, que trancados não alteravam, 
circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar, 
imaginado; o que não pode, para o senhor, é ter sido, vivido. Só 
saiba: o Liso do Suçuarão concebia silêncio, e produzia uma 
maldade – feito pessoa! Não destruí aqueles pensamentos: ir, e ir, 
vir – e só; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existido 
doidante, só agora pior, se destapava – era o que eu tinha 
rompência de gritar. E os outros, companheiros, que é que os 
outros pensavam? Sei? De certo nadas e noves – iam como o 
costume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido 
por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, 
a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos 
venteando – só se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho 
custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra. Água não 
havia. Capim não havia. A debeber os cavalos em cocho armado 
de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoços para pedir, 
eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudo o que 
cangavam de esforço, e cada restar de bebida carecia de ser 
poupado. Se ia, o pesadelo. Pesadelo mesmo, de delírios. Os 
cavalos gemiam descrença. Já pouco forneciam. E nós estávamos 
perdidos. Nenhum poço não se achava. Aquela gente toda 
sapirava de olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz 
assassinava demais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, 
procurando. Já tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. 
De mim, entreguei alma no corpo, debruçado para a sela, numa 
quebreira. Até minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale 
em todas horas? Repensei coisas de cabeça-branca. Ou eu 
variava? A saudade que me dependeu foi de Otacília. Moça que 
dava amor por mim, existia nas Serras dos Gerais – Buritis Altos, 
cabeceira de vereda – na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, 
como a diguice duma música, outra água eu provava. Otacília, ela 
queria viver ou morrer comigo – que a gente se casasse. Saudade 
se susteve curta. Desde uns versos: 
Buriti, minha palmeira, 
lá na vereda de lá 
casinha da banda esquerda, 
olhos de onda do mar... 
Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor de 
prata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, se 
embaçavam de renuvem, e não achei acabar para olhar para o 
céu. Tive pena do pescoço do meu cavalo – pedação, tábua 
suante, padecente. Voltar para trás, para as boas serras! Eu via, 
queria ver, antes de dar à casca, um pássaro voando sem 
movimento, o chão fresco remexido pela fossura duma anta, o 
cabecear das árvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O 
senhor sabe o que é o frege dum vento, sem uma moita, um pé 
de parede pra ele se retrasar? Diadorim não se apartou do meu 
lado. Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu 
roçava longe dele em meus pensamentos. – “Riobaldo, não se 
matou a Ana Duzuza... Nada de reprovável não se fez...” – 
falou. E eu não respondendo. Agora, o que era que aquilo me 
importava – de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suíxo 
manso dum córrego nas lajes – o bom sumiço dum riacho mato 
a fundo. E adverti memória dos derradeiros pássaros do 
Bambual do Boi. Aqueles pássaros faziam arejo. Gritavam 
contra a gente, cada um asia sua sombra num palmo vivo 
d’água. O melhor de tudo é a água. No escaldado... “Saio daqui 
com vida, deserteio de jaguncismo, vou e me caso com 
Otacília!” – eu jurei, do proposto de meus todos sofrimentos. 
Mas mesmo depois, naquela hora, eu não gostava mais de 
ninguém: só gostava de mim, de mim! Novo que eu estava no 
velho do inferno. Dia da gente desexistir é um certo decreto – 
por isso que ainda hoje o senhor aqui me vê. Ah, e os poços não 
se achavam... Alguém já tinha declarado de morto. O Miquim, 
um rapaz sério sincero, que muito valia em guerreio, esbarrou e 
se riu: – “Será que não é sorte?” Depois, se sofreu o grito de 
um, adiante: – “Estou cego!...” Mais aquele, o do pior – caiu 
total, virado torto; embaraçando os passos das montadas. De 
repente, um rosnou, reclamou baixo. Outro também. Os cavalos 
bobejavam. Vi uma roda de caras de homens. Suas as caras. 
Credo como algum – até as orelhas dele estavam cinzentas. E 
outro: todo empretecido, e sangrava das capelas e papos-dosolhos. 
Medeiro Vaz a nada não atendia? Ouvi minhas veias. Aí, 
a rumo, eu pude pegar a rédea do animal de Diadorim – aquelas 
peças doeram na minha mão – tive que fiquei um instante no 
inclinado. – “Daqui, deste mesmo de lugar, mais não vou! Só 
desarrastado vencido...” – mas falei. Diadorim pareceu em 
pedra, cão que olha. Contanto me mirou a firme, com aquela 
beleza que nada mudava. – “Pois vamos retornar, Riobaldo... 
Que vejo que nada campou viável...” – “Tal tempo!” – truquei, 
mais forte, rouco como um guariba. Foi aí que o cavalo de 
Diadorim afundou aberto, espalhado no chão, e se agoniou. Eu 
apeei do meu. Medeiro Vaz estava ali, num aspeito repartido. 
Pessoal companheiro, em redor, se engasgavam, pelo o 
resultado. – “Nós temos de voltar, chefe?” – Diadorim solicitou. 
Acabou de falar, e parou um gesto, para nós, a gente sofreasse. 
Tom bom; mas se via que Medeiro Vaz não podia outro querer, 
a não ser o que Diadorim perguntava. Medeiro Vaz, então – por 
primeira vez – abriu dos lados as mãos, de nada não poder 
fazer; e ele esteve de ombros rebaixados. Mais não vi, e entendi. 
Peguei minha cabaça, bebi gole, amargo de felém. Mas era 
mesmo o final de se voltar, Deus me disse. E – o senhor mais 
saiba – de supeto já eu estava remoçado, são, disposto! Todos 
influídos assim. Pra trás, sempre dá o prazer. Diadorim apalpou 
meu braço. Vi: os olhos dele marejados. Mor que depois eu 
soube – que, a idéia de se atravessar o Liso do Suçuarão, ele 
Diadorim era que a Medeiro Vaz tinha aconselhado. 
Mas, para que contar ao senhor, no tinte, o mais que se 
mereceu? Basta o vulto ligeiro de tudo. Como Deus foi servido, 
de lá, do estralal do sol, pudemos sair, sem maiores estragos. Isto 
é, uns homens mortos, e mais muitos dos cavalos. Mesmo o mais 
grave sido que restamos sem os burros, fugidos por infelizes, e a 
carga quase toda, toda, com os mantimentos, a gente perdemos. 
Só não acabamos sumidos dextraviados, por meio do regular das 
estrelas. E foi. Saímos dali, num pintar de aurora. E em lugares 
deerrados. Mais não se podia. Céu alto e o adiado da lua. Com 
outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de 
fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um 
macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. 
Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto – juro ao 
senhor – enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, 
se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era 
homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe 
dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de Deus, 
que nu por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma 
ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também 
escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi 
assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse: 
– “Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, 
modo de não morrermos todos...” Não se achou graça. Não, 
mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha 
não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher 
rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos 
perrengavam. – “Aí, então, é a fome?” – uns xingavam. Mas 
outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de 
quarto-delégua de lá, um mandioca) sobrado. – “Arre que não!” 
– ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse 
aquilo, de ser mandiocabrava! Esses olhavam com terrível raiva. 
Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem 
que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar 
sabor, só o pepego esquisito, e enganava o estômago. Melhor 
engolir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com tor-
rão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a 
coitada. Depois Medeiro Vaz passou mal, outros tinham dores, 
pensaram que carne de gente envenenava. Muitos estavam 
doentes, sangrando nas gengivas, e com manchas vermelhas no 
corpo, e danado doer nas pernas, inchadas. Eu cumpria uma 
disenteria, garrava a ter nojo de mim no meio dos outros. Mas 
pudemos chegar até na beira do dos-Bois, e na Lagoa Suçuarana, 
ali se pescou. Nós trouxemos aquela mulher, o tempo todo, ela 
temia de que faltasse outro de-comer, e ela servisse. – “Quem 
quiser bulir com ela, que me venha!” – Diadorim garantiu. – 
“Que só venha!” – eu secundei, do lado dele. Matou-se capivara 
gorda, por fim. Dum geralista roto, ganhamos farinha-de-buriti, 
sempre ajudava. E seguimos o corgo que tira da Lagoa Suçuarana, 
e que recebe o do Jenipapo e a Vereda – do-Vitorino, e 
que verte no Rio Pandeiros – esse tem cachoeiras que cantam, e é 
d’água tão tinto, que papagaio voa por cima e gritam, sem 
acordo: – É verde! É azul! É verde! É verde!... E longe pedra velha 
remeleja, vi. Santas águas, de vizinhas. E era bonito, no correr do 
baixo campo, as flores do capitão-da-sala-todas vermelhas e 
alaranjadas, rebrilhando estremecidas, de reflexo. – “É o cavalheiro-
da-sala...” – Diadorim falou, entusiasmado. Mas o Alaripe, 
perto de nós, sacudiu a cabeça. – “Em minha terra, o nome 
dessa” – ele disse“é dona-joana... Mas o leite dela é venenoso...” 
Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela 
esfrega. Esmorecidos é que não. Nenhum se lastimava, filhos do 
dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar por assim. Jagunço 
é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase 
que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está 
assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E 
todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? 
Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que 
eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na 
clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança 
– o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela 
rodeia é o quente da pessoa. E despaireci meu espírito de ir 
procurar Otacília, pedir em casamento, mandado de virtude. Fui 
fogo, depois de ser cinza. Ah, algum, isto é que é, a gente tem 
devassalar. Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda 
parte lambendo o prato... Mas eu gostava de Diadorim para 
poder saber que estes gerais são formosos. 
Talmente, também, se carecia de tomar repouso e aguardo. 
Por meios e modos, sortimos arranjados animais de montada, 
arranchamos dias numa fazenda hospitaleira na Vereda do 
Alegre, e viemos vindo atravessando o Pardo e o Acari, em toda 
a parte a gente era recebida a bem. Tardou foi para se ter sinal 
dos bandos dos Judas. Mas a vantagem nossa era que todos os 
moradores pertenciam do nosso lado. Medeiro Vaz não 
maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à 
força, nem consentia em desatinos de seus homens. 
Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que 
podiam, em comidas, outros presentes. Mas os Hermógenes e 
os cardões roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça 
em qualquer povoa) à-toa, renitiam feito peste. Na ocasião, o 
Hermógenes beirava a Bahia de lá, se soube, e eram um mundo 
enorme de má gente. E o Ricardão? Estivesse, esperasse. Dando 
meias andadas, nós chegamos num ponto-verdadeiro, num 
Buriti-do-Zé. Dono de lá, Sebastião Vieira, tinha curral e casa. E 
guardava munição da gente: mais de dez mil tiros de bala. 
Por que foi que não se fez combate, depois naqueles meses 
todos? A verdade digo ao senhor: os soldados do Governo 
perseguiam a gente. Major Oliveira, Tenente Ramiz e Capitão 
Melo Franco – esses não davam espaço. E Medeiro Vaz pensava 
era um pensamento: a gente mamparreasse de com eles não 
guerrear, não se esperdiçar – porque as nossas armas guardavam 
um destino só, de dever. Escapulíamos, esquipávamos. Vereda 
em vereda, como os buritis ensinam, a gente varava para após. Se 
passava o Piratinga, que é fundo, se passava: ou no Vau da Mata 
ou no Vau da Boiada; ou então, pegando mais por baixo, o São 
Domingos, no Vau do José Pedro. Se não, subíamos beira desse, 
até às nascentes, no São Dominguinhos. A ser o importante, que 
se tinha de estudar, era avançar depressa nas boas passagens nas 
divisas, quando militar vinha cismado empurrando. É preciso de 
saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para 
Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebracangalhas 
e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi 
lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho. 
Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um 
homem se enforcou. Por aí, extremando, se chegava até no 
Jalapão – quem conhece aquilo? – tabuleiro chapadoso, 
proporema. Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de 
filho. O menino recebeu nome de Diadorim, também. Ah, quem 
oficiou foi o padre dos baianos, saiba o senhor: população de um 
arraial baiano, inteira, que marchava de mudada-homens, 
mulheres, as crias, os velhos, o padre com seus petrechos e cruz e 
a imagem da igreja – tendo até bandinha-de-música, como 
vieram com todos, parecendo nação de maracatu! Iam para os 
diamantes, tão longe, eles mesmo dizendo: “... nos rios...” Uns 
tocavam jumentos de almocreve, outros carregavam suas coisas – 
sacos de mantimentos, trouxas de roupa, rede de caroá a tiracol. 
O padre, com chapéu-de-couro prà-trasado. Só era uma 
procissão sensata enchendo estrada, às poeiras, com o plequeio 
das alpercatas, as velhas tiravam ladainha, gente cantável. 
Rezavam, indo da miséria para a riqueza. E, pelo prazer de tomar 
parte no conforto de religião, acompanhamos esses até à Vila da 
Pedra-de-Amolar. Lá venta é da banda do poente, no tempo-daságuas; 
na seca, o vento vem deste rumo daqui. O cortejo dos 
baianos dava parecença com uma festa. No sertão, até enterro 
simples é festa. 
Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição 
se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para 
se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e 
pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham 
comparecendo, lá se levantava enorme igreja, não havia mais 
crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, 
dado logo, até à hora de cada uma morte cantar. Raciocinei isso 
com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça: – 
“Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...” – 
ciente me respondeu. 
Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos. 
O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrelad’alva 
sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. 
Senhor vê, no escuro, um quebrapeito – e é ele mesmo, já 
risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma 
cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa 
lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa 
muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele. 
Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão 
de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas 
cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e 
bichos vinham bisar. Senhor imagina? Gente sã valente, 
querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá 
ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu 
um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia 
benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegadoregional 
chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do 
povo, baldearam a moça para o hospício de doidos, na capital, 
diz-se que lá ela foi cativa de comer, por armagem de sonda. 
Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho que foi bom. 
Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num 
estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para 
pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por 
horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos 
acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que 
fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha 
um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-NãoHá, para 
estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde 
expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam 
de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu 
nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para 
caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas 
estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos 
lugares. Se não, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio 
desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, 
praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de 
misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha. 
Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque 
marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles 
vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e 
sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia 
nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que 
explorava as pedras turmalinas no vale do Araçuaí, discorreu me 
dizendo que a vida da gente encarna e reencama, por progresso 
próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! 
Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é 
possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a 
gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das 
grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos 
contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um 
pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a 
gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a 
vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em 
aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não 
dói até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não dói sem 
precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não 
nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver 
nascimento. Medo mistério. O senhor não vê? O que não é 
Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. 
Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente 
sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O 
inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente 
quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a 
gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me 
corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em 
meus gostos. O que eu invejo é sua instrução do senhor... 
De Araçuaí, eu trouxe uma pedra de topázio. 
Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? 
De mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no 
falso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa. 
Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de 
que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de 
ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas minhas noites, sem 
poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de 
transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho 
que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e 
não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto 
contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios 
da razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a 
pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, 
por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher! Ou 
conto mal? Reconto. 
Ao que nós acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de 
várzea. Até, lá era favorável de defender que os cavalos se 
espairassem – por ter manga natural, onde se encostar, e currais 
falsos, de pegar gado brabeza. Natureza bonita, o capim macio. 
Me revejo, de tudo, daquele dia-a-dia. Diadorim restava um 
tempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava para ele. “Seja 
por ser, Riobaldo, que em breve rompemos adiante. Desta vez, a 
gente tange guerra...” – pronunciou, a prazer, como sempre 
quando assim, em véspera. Mas balançou a cabaça: tinha um 
trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro, sem 
serventia, só para produzir gastura na gente. – “Bota isso fora, 
Diadorim!” – eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um 
hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, 
guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com 
a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada 
de capricho, mas que agora sendo para nojo. E, como me deu 
sede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra 
nunca, e fomos apanhar água num poço, que ele me disse. Era 
por esconso por uma palmeira – duma de nome que não sei, de 
curta altura, mas regrossa, e com cheias palmas, reviradas para 
cima e depois para baixo, até pousar no chão com as pontas. 
Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam um coberto, 
remedando choupã de índio. Assino que foi de avistarem umas 
assim que os bugres acharam idéia de formar suas tocas. Aí a 
gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava. O poço 
abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato, ali 
intrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum azul que 
haja – que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi forte. 
Sofismei: se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me 
declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco! 
Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem 
importância. Nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, 
por conta desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas, 
qual, se viu um bicho – rã brusca, feiosa: botando bolhas, que à 
lisa cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo, demos 
para trás, discordes. Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, 
por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes 
desaparecer e tornar a aparecer, sem menos. Ah, quem faz isso 
não é por ser e se saber pessoa culpada? 
No que vim para um grupo de companheiros, esses 
estavam jogando buzo, enchendo folga. Por simples que a 
companheirada naqueles derradeiros tempos me caceteava com 
um enjôo, todos eu achava muito ignorantes, grosseiros cabras. 
Somente que na hora eu queria a frouxa presença deles – fulão e 
sicrão e beltrão e romão – pessoal ordinário. A tanto, mesmo 
sem fome, providenciei para mim uma jacuba, no come-calado. 
E quis – que até me perguntei – pensar na vida: “Penso?” Mas 
foi no instante em que todos levantaram as caras: só sendo um 
rebuliço, acolá, na virada que principiava a vertente – onde é que 
estavam uns outros, que chamavam, muito, acenando especial. 
Pois fomos, ligeiro, ver o que, subindo pelo resfriado. 
Passava era uma tropa, os diversos lotes de burros, que 
vinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E o arrieiromestre 
relatando uma infeliz notícia, dessas da vida. – “Ele era 
alto, feições compridas, dentuço?” – Medeiro Vaz exigiu certeza. 
– “Olhe, pois era” – o arrieiro respondeu – “e, antes de morrer, 
deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer, 
porque aí se exalou. Comandante, o senhor creia, nós tivemos 
grande pena...” A gente, em volta, se consternava. Aqueles 
tropeiros, no Cururu, tinham achado o Santos-Reis, que morria 
urgente; tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Ao menos, 
mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus, em voto todos 
se benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais 
falta – ele estava viajando para trazer recado e combinação, da 
parte de Só Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na 
outra grande banda do Rio. 
– “Agora alguém carece de ir...” – Medeiro Vaz decidiu, 
olhando salteado; amém! – nós apreciávamos. Eu espiei, 
caçando Diadorim, que ali que era a mocinha de cabelos louros. 
– “Sesfredo, me conta, me fala nesse acontecer...” – nem bem 
cem braças andadas eu já pedia a ele. Era como se eu tivesse de 
caçar emprestada uma sombra de um amor. – “E você não volta 
para lá, Sesfredo? Você agüenta o existir?” – perguntei. – 
“Guardo isso, para às vezes ter saudade. Berimbau! Saudade, 
só...” – e ele alargou as ventas, de tanto riso. Vi que a estória da 
moça era falsa. De inventar )ouco se ganha. Regra do mundo é 
muito dividida. O Sesfredo comia muito. E sabia assoviar 
seguido, copiando o de muitos pássaros. 
Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e 
municipios, jogamos uma viagem por este Norte, meia geral. 
Assim conheço as províncias do Estado, não há onde eu não 
tenha aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa Maria – 
Barreiro Claro – Cabeça de Negro – Córrego Pedra do Gervásio 
– Acari – Vieira – e Fundo – buscando jeito de encostar no de 
São Francisco. Novidade não houve. Passamos, numa barca. Só 
sempre bater para o nascente, direitamente em cima de 
Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: um pessoal 
nosso perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca, brabas 
terras vazias do Rio Verde-Grande. De madrugada, acordamos 
em sua janela um velhozinho, dono de um bananal. O velhozinho 
era amigo, executou o recado. Daí a cinco madrugadas, 
retornamos. Era para vir alguém, quem veio foi João Goanhá, 
próprio. E as descrições que deu foram de todas as piores. Só 
Candelário? Morto em tiroteio de combate, metralhadoras 
tinham serrado o corpo dele, de esguelha, por riba da cintura. O 
Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. Titão Passos? 
Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de se escapar para a 
Bahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos. Só mesmo 
João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldo de uns 
homens, os poucos. Mas coragem e munição não faltavam. – “E 
os Judas?” – perguntei, com triste raciocínio: por que era que os 
soldados não deixavam a gente em paz, mas com aqueles não 
terçavam? – “Se diz que eles têm uma proteção preta...” – João 
Goanhá me esclareceu: – “O Hermógenes fez o pauto. É o 
demônio rabudo quem pune por ele...” Nisso todos acreditavam. 
Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que 
eu fui o primeiro que cri. 
Ainda disse João Goanhá que estávamos em brevidade. 
Porque ele sabia que os Judas, reforçados, tinham resolvido 
passar o Rio em dois lugares, e marcharem em cima de Medeiro 
Vaz, para acabar com ele de uma vez, no país de lá. Onde era que 
o perigo, Medeiro Vaz precisava de nós. 
Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para a Cachoeira 
do Salto, e esbarramos com tropa de soldados – tenente Plínio. 
Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande – tenente Rosalvo. 
Fogo no Jatobá Torto – sargento Leandro. Volteamos. Sobre aí, 
me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos. No 
formato da forma, eu não era o valente nem mencionado 
medroso. Eu era um homem restante trivial. A verdade que diga, 
eu bem defronte de mim se portava, mesmo segurava uma vara-
de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique 
gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: – “Se sendo 
ordens, Chefe, eu gostava era de ir...” Medeiro Vaz limpou a 
goela. A meio, eu estava me lançando, mas mais negaceando 
prosápia: duvidoso d’ele consentir; pelo bom atirador que eu era, 
o melhor e mor, necessitavam de mim, haviam de querer me 
mandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se deu o que se 
deu – o isto é. Medeiro Vaz concordou! – “Mas carece de levar 
um companheiro...” – ele propôs. Aí em tanto eu não devia de 
me calar, deixar alheia a escolha do segundo, que não me 
competia? Ah, ânsia: que eu não queria o que de certo queria, e 
que podia se surtir de repente... E a vontade de fim, que me ora 
vinha ranger na boca, me levou num avanço: – “Sendo suas 
ordens, Chefe, o Sesfredo comigo vai...” – falei. Nem olhei 
Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e 
despachou, em duríssimo: – “Vai, então, e no caminho não 
morre!” A ser que Medeiro Vaz, por esse tempo, já acusava 
doença a quase acabada – no peso do fôlego e no desmancho 
dos traços. Estava amarelo almecegado, se curvava sem querer, e 
diziam que no verter água ele gemia. Ah, mas outro igual eu não 
conheci. Quero ver o homem deste homem!... Medeiro Vaz – o 
Rei dos Gerais... 
Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, 
sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o 
repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado 
noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, 
para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só 
no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está 
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da 
travessia. Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de 
nenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, 
não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E 
dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu 
acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível. 
Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei com sete 
padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e 
pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não 
esfria! O senhor me releve tanto dizer. 
Mire veja o que a gente é: mal dali a um átimo, eu selando 
meu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muito entristecia. 
Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie duma 
vagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele, baixinho: – 
“Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro...” 
A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: – “Viagem 
boa, Riobaldo. E boa-sorte...” Despedir dá febre. 
Galopando junto com Sesfredo, larguei aquele lugar do 
Buriti das Três Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E então 
eu decifrei meu arranque de ter querido vir com o Sesfredo. Que 
ele, se sabia, tinha deixado, fazia muitos anos, em terras do 
Jequitinhonha, uma moça que apaixonava, e achava que não 
tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. 
Como é, então, que um se repinta e se sarrafa? Tudo sobrevém. 
Acho, acho, é do influimento comum, e do tempo de todos. 
Tanto um prazo de travessia marcada, sazão, como os meses de 
seca e os de chuva. Será? Medida de muitos outros igualasse 
com a minha, esses também não sentindo e não pensando. Se 
não, por que era que eram aqueles aprontados versos – que a 
gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por estradas 
jornadas, à alegria fingida no coração?: 
Olererê, baiana... 
eu ia e não vou mais: eu faço 
que vou 
lá dentro, oh baiana! 
e volto do meio pra trás... – ? 
João Goanhá, por valentão e verdadeiro, nem carecia de 
estadear orgulho. Pessoa muito leal e briosa. Ele me disse: – 
“Agora, da gente não sei o que vai ser... Para guerra grande, eu 
acho que só Joca Ramiro é que era capaz...” Ah, mas João 
Goanhá também tinha suas cartas altas. Homem de grito grosso. 
E, mesmo ignorante analfabeto, de repente ele tirava, sei não de 
onde, terríveis mindinhas idéias, mortes diversas. Assim a gente 
experimentava, cá e cá, falseando fuga. Os campos-gerais ali 
também tem. Tombadores. Arre, os tremedais, já viu algum? O 
chão deles consiste duro enxuto, normal que engana; quem não 
sabe o resto, vem, pisa, vai avançando, tropa com cavalos, 
cavalama. Seja sem espera, quando já estão meio no meio, aquilo 
sucrepa: pega a se abalar, ronca, treme escapulindo, feito gema de 
ovo na frigideira. Ei! Porque, debaixo da crosta seca, rebole 
ocultado um semifundo, de brejão engolidor... Pois, em roda dali, 
João Goanhá dispôs que a gente se amoitasse – três golpes de 
homens – tocaiando. Ao de manhã, primeiro passaram os do 
sargento Leandro, esses eram os menos, e um guia pagavam, por 
conhecer o caminho firme. Mas fomos lá, às pressas espalhamos 
de lugar os ramos verdes de árvore, que eles tinham botado para 
a certa informação. No depois, vinham os do tenente. Tenente, 
tenente, tu quer! Seguidos por ali entraram, ah. Dos nossos, uns, 
acolá, deram tiros, por disfarçação. Iscas! Cavalaria dos praças se 
avexou. Ave, e pronto, de repente foi: a casca de terra sacudia, se 
rachou em cruzes, estalando, em muitos metros – balofou. Os 
cavalos entornados – era como despejar prateleiras cheias – e os 
soldados aiando gritos, se abraçavam com os animais caintes, ou 
com o ar, uns a esmo desfechavam mosquetão. Mas encalcados 
se afundando, pra não mais. A gente, se queria, mirava, ainda 
acertava neles. Coisas que vi, vi, vi – oi... Eu não atirei. Não tive 
braçagem. Talvez tive pena. 
Tanto por tanto, daí se encachorraram mais em nós, por 
beber vinganças. De campos e matas, vargens e grotas, em cada 
ponto para trás, dos lados e adiante da gente, ei eram só 
soldados, montão, se gerando. Furadodo-Meio. Serra do Deus-Me- 
Livre. Passagem da Limeira. Chapada do Covão. Solón Nélson 
morreu. Arduininho morreu. Morreram o Figueiró, BatataRoxa, 
Dávila Manhoso, o Campelo, o Clange, Deovídio, Pescoço- 
Preto, Toquim, o Sucivre, Elisiano, Pedro Bernardo – acho que 
foram esses, todos. Chapada do Sumidouro. Córrego do Poldro. 
Mortos mais uns seis. Corrijo: com outros, que pegos presos – se 
disse que foram acabados! Doideamos. A Bahia estava cercada 
nas portas. Achavam de tomar regalia de desforra na gente, até 
qualquer molambo de sujeito, paisano morador. Ah, às vezes, 
perdiam ligeiro essa graça... Gerais da Pedra. Lá, o Eleutério se 
apartou da gente, umas cem braças, e foi, a pé, bateu em porta 
duma cafua, por esclarecer. O capiau surgiu, ensinou alguma 
coisa, errada. Eleutério agradeceu, deu as costas, veio andando 
uns passos. O capiau então chamou. Eleutério virou para trás, 
para ouvir o que havia, e levou na cara e nos peitos o cheio duma 
carga de chumbo fino. Cegou, rodou, entrupicado, arreganhava 
os braços, todo se sarapintando das manchas vermelhas, que 
cresciam. O cabelo dele aumentou em pé. E a soldadesca atirava, 
de emboscados no mato do córrego, e na beira do cerrado, da 
outra banda. O capiau se encobriu detrás do forno de assar 
biscoito – de lá fazia pontaria com a espingarda – e balas nossas 
levantavam terra ao redor dali, feito um ciscado de cachorro 
grande. Dentro da cafua também restavam outros soldados; que 
deram contas a Deus. Ataliba, com o facão, pregou o capiau na 
taipa da cafua, ele morreu mansinho, parecia um santo. Ficou lá, 
espetado. Nós – eh – bom. Conseguimos aragem. Até em um 
ponto de a salvo conversarmos. 
Serra Escura. Nem munição nem de-comer não sobravam. 
De forma que a gente carecia de se separar, cada um por seu 
risco, como pudesse caçar escape. Se esparramavam os goanhás. 
De si por si, quem vivesse viesse para cá do Rio, para reunião: na 
juntura da Vereda Saco dos Bois com o Ribeirão Santa Fé. Ou ir 
de direto para onde estivesse Medeiro Vaz. Ou, caso o inimigo 
rondasse perto demais, então no Buriti-da-Vida, São Simão do 
Bá, ou mais em riba, ali onde o Ribeirão Gado Bravo é vadeável. 
Ao que João Goanhá mandou. A pressa era pressa. O ar todo do 
campo cheirava a pólvora e a soldados. Diante de mim, nunca 
terminava de atar as correias do gibão um Cunha Branco, sarado, 
cabra velho guerreiro: ele boiava língua em boca aberta. E medo, 
meu, medi muito maior. Se despedimos. Escorregando sem 
rumo, eu fui, vim, o Sesfredo comigo também, viemos. Com a 
graça de Deus, saímos fora da roda do perigo. Chegamos no 
Córrego Cansanção, não longe do Araçuaí. Por durante um 
tempo, carecíamos de ter algum serviço reconhecido, no viver 
tudo cabe. Nossas armas, com parte das roupas, campeamos um 
seguro lugar, deixamos escondidas. Aí, a gente se ajustou no 
meio do pessoal daquele doutor, que estava na mineração, que 
eu já disse e o senhor sabe. 
Por que não ficamos lá? Sei e não sei. Sesfredo esperava de 
mim toda decisão. Algum remorso, de não se cumprir de ir, de 
desertados? Não vê que não, desafasto. Gente sendo dois, 
garante mais para se engambelar, etcétera de traição não sopra 
escrúpulos, como nem de crime nenhum, não agasta: igual 
lobisomem verte a pele. Só se, companheiros sobrantes, a gente 
amiúda no ajuizar o desonroso assunto, isto sim, rança o 
descrédito de se ser tornadiço covarde. Mas eu podia rever 
proveito, caçar de voltar dali para a casa-grande de Selorico 
Mendes, exigir meu estado devido, na Fazenda São Gregório. 
Temeriam! Assim e silva, como em outro tempo, adiante, podia 
flauteado comparecer no Buritis Altos, por conta de Otacília – 
continuação de amor. Quis não. Suasse saudade de Diadorim? A 
ponto no dizer, menos. Ou nem não tinha. Só como o céu e as 
nuvens lá atrás de uma andorinha que passou. Talvez, eu acho, 
também, que foi juvenescendo em mim uma inclinação de 
abelhudice: assaz eu queria me estar misturado lá, com os 
medeiro-vazes, ver o fim de tudo. Em mês de agosto, buriti 
vinhoso... Araçuaí não eram os meus campos... Viver é um 
descuido prosseguido. Aí, as noites cambando para o entrar das 
chuvas, os dias mal. Desengoli. – “Tempo de ir. Vamos?” – eu 
disse para Sesfredo. – “Vamos, demais!” – o Sesfredo me 
respondeu. 
Ah, eh e não, alto-lá comigo, que assim falseio, o mesmo é. 
Pois ia me esquecendo: o Vupes! Não digo o que digo, se o do 
Vupes não orço – que teve, tãomente. Esse um era estranja, 
alemão, o senhor sabe: clareado, constituído forte, com os olhos 
azuis, esporte de alto, leandrado, rosalgar – indivíduo, mesmo. 
Pessoa boa. Homem sistemático, salutar na alegria séria. Hê, hê, 
com toda a confusão de política e brigas, por aí, e ele não 
somava com nenhuma coisa: viajava sensato, e ia 
desempenhando seu negócio dele no sertão – que era o de 
trazer e vender de tudo para os fazendeiros: arados, enxadas, 
debulhadora, facão de aço, ferramentas rógers e roscofes, latas 
de formicida, arsênico e creolinas; e até papa-vento, desses 
moinhos-de-vento de sungar água, com torre, ele tomava 
empreitada de armar. Conservava em si um estatuto tão diverso 
de proceder, que todos a ele respeitavam. Diz-se que vive até 
hoje, mas abastado, na capital – e que é dono de venda grande, 
loja, conforme prosperou. Ah, o senhor conheceu ele? Õ 
titiquinha de mundo! E como é mesmo que o senhor fraseia? 
Wusp? É. Seo Emílio Wuspes... Wupsis... Vupses. Pois esse 
Vupes apareceu lá, logo vai me reconheceu, como me conhecia, 
do Curralinho. Me reconheceu devagar, exatão. Sujeito 
escovado! Me olhou, me disse: – “Folgo. Senhor estar bom? 
Folgo...” E eu gostei daquela saudação. Sempre gosto de tornar 
a encontrar em paz qualquer velha conhecença – consoante a 
pessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados, mas parece 
que escolhidas só as peripécias avaliáveis, as que agradáveis 
foram. Alemão Vupes ali, e eu recordei lembrança daquelas 
mocinhas – a Miosótis e a Rosa’uarda – as que, no Curralinho, 
eu pensava que tinham sido as minhas namoradas. – “Seo 
Vupes, eu também folgo. Senhor também estar bom? Folgo...” 
– que eu respondi, civilizadamente. Ele pitava era charutos. Mais 
me disse: – “Sei senhor homem valente, muito valente... Eu 
precisar de homem valente assim, viajar meu, quinze dias, sertão 
agora aqui muito atrapalhado, gente braba, tudo...” Destampei, 
ri que ri, de ouvir. 
Mas o mais garboso fiquei, prezei a minha profissão. Ah, o 
bom costume de jagunço. Assim que é vida assoprada, vivida 
por cima. Um jagunceando, nem vê, nem repara na pobreza de 
todos, cisco. O senhor sabe: tanta pobreza geral, gente no duro 
ou no desânimo. Pobre tem de ter um triste amor à honestidade. 
São árvores que pegam poeira. A gente às vezes ia por aí, os 
cem, duzentos companheiros a cavalo, tinindo e musicando de 
tão armados-e, vai, um sujeito magro, amarelado, saía da algum 
canto, e vinha, espremendo seu medo, farraposo: com um 
vintém azinhavrado no conco da mão, o homem queria comprar 
um punhado de mantimento; aquele era casado, pai de família 
faminta. Coisas sem continuação... Tanto pensei, perguntei: – 
“Para que banda o senhor tora?” E o Vupes respondeu: – “Eu, 
direto, cidade São Francisco, vou forte.” Para falar, nem com 
uma pontinha de dedo ele não bulia gesticulado. Então, era 
mesmo meu rumo – aceitei – o destinar! Daí, falei com o 
Sesfredo, que quis também; o Sesfredo não presumia nada, ele 
naquilo não tinha próprio destaque. 
Mas os caminhos não acabam. Tal por essas demarcas de 
Grão-Mogol, Brejo das Almas e Brasília, sem confrontos de 
perturbação, trouxemos o seu Vupes. Com as graças, dele 
aprendi, muito. O Vupes vivia o regulado miúdo, e para tudo 
tinha sangue-frio. O senhor imagine: parecia que não se 
mealhava nada, mas ele pegava uma coisa aqui, outra coisinha 
ali, outra acolá – uma moranga, uns ovos, grelos de bambu, 
umas ervas – e, depois, quando se topava com uma casa mais 
melhorzinha, ele encomendava pago um jantar ou almoço, 
pratos diversos, farto real, ele mesmo ensinava o guisar, tudo 
virava iguarias! Assim no sertão, e ele formava conforto, o que 
queria. Saiba-se! Deixamos o homem no final, e eu cuidei bem 
dele, que tinha demonstrado a confiança minha... 
Demos no Rio, passamos. E, aí, a saudade de Diadorim 
voltou em mim, depois de tanto tempo, me custando seiscentos 
já andava, acoroçoado, de afogo de chegar, chegar, e perto estar. 
Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito. Bela é a lua, 
lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada. 
Viemos pelo Urucuia. Meu rio de amor é o Urucuia. O 
chapadão – onde tanto boi berra. Daí, os gerais, com o capim 
verdeado. Ali é que vaqueiro brama, com suas boiadas 
espatifadas. Ar que dá açoite de movimento, o tempo-das-águas 
de chegada, trovoada trovoando. Vaqueiros todos vaquejando. 
O gado esbravaçava. A mal que as notícias referiam demais a 
cambada dos Judas, aumentável, a corja! – “A tantos quantos?” 
– eu pondo meu perguntar. – “Os muitos! Uma monarquia 
deles...” – os vaqueiros respondendo. 
Mas Medeiro Vaz não se achava, os nossos, deles ninguém 
não sabia bem. Tocamos, fim que o mundo tivesse. Só 
deerrávamos. Assim como o senhor, que quer tirar é instantâneo 
das coisas, aproximar a natureza. Estou entendido. Esbarramos 
num varjeado, esconso lugar, por entre o daGarapa e o da-Jibóia, 
ali tem três lagoas numa, com quatro cores: se diz que a água é 
venenosa. E isso de que me serve? Águas, águas. O senhor verá 
um ribeirão, que verte no Canabrava – o que verte no Taboca, 
que verte no Rio Preto, o primeiro Preto do Rio Paracatu – pois 
a daquele é sal só, vige salgada grossa, azula muito: quem 
conhece fala que é a do mar, descritamente; nem boi não gosta, 
não traga, eh não. E tanta explicação dou, porque muito ribeirão 
e vereda, nos contornados por aí, redobra nome. Quando um 
ainda não aprendeu, se atrapalha, faz raiva. Só Preto, já molhei 
mão nuns dez. Verde, uns dez. Do Pacari, uns cinco. Da Ponte, 
muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E uns sete por nome de 
Formoso. São Pedro, Tamboril, Santa Catarina, uma porção. O 
sertão é do tamanho do mundo. 
Agora, por aqui, o senhor já viu: Rio é só o São Francisco, 
o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão. E 
agora me lembro: no Ribeirão Entre-Ribeiros, o senhor vá ver a 
fazenda velha, onde tinha um cômodo quase do tamanho da 
casa, por debaixo dela, socavado no antro do chão – lá judiaram 
com escravos e pessoas, até aos pouquinhos matar... Mas, para 
não mentir, lhe digo: eu nisso não acredito. Reconditório de se 
ocultar ouro, tesouro e armas, munição, ou dinheiro falso 
moedado, isto sim. O senhor deve de ficar prevenido: esse povo 
diverte por demais com a baboseira, dum traque de jumento 
formam tufão de ventania. Por gosto de rebuliço. Queremporque-
querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles 
mesmos acabam crendo e temendo. Parece que todo o mundo 
carece disso. Eu acho, que. 
Assim, olhe: tem um marimbu – um brejo matador, no 
Riacho Cizlá se afundou uma boiada quase inteira, que 
apodreceu; em noites, depois, deu para se ver, deitado a fora, se 
deslambendo em vento, do cafofo, e perseguindo tudo, um 
milhão de lavareda azul, de jãdelãfo, fogo-fá. Gente que não 
sabia, avistaram, e endoideceram de correr fuga. Pois essa estória 
foi espalhada por toda a parte, viajou mais, se duvidar, do que eu 
ou o senhor, falavam que era sinal de castigo, que o mundo ia se 
acabar naquele ponto, causa de, em épocas, terem castrado um 
padre, ali perto umas vinte léguas, por via do padre não ter 
consentido de casar um filho com sua própria mãe. A que, até, 
cantigas rimaram: do Fogo-Azul-do-Fim-do-Mundo. Hê, hê?... 
Agora, a forca, eu vi – forca moderna, esquadriada, 
arvorada bem erguida no elevado, em madeira de boa lei, parda: 
sucupira. Ela foi num morrote, depois do São Simão do Bá, 
perto da banda da mão-direita do Pripitinga. A estúrdia forca de 
enforcar, construída, aprovada ali particularmente, porque não 
tinham recurso de cadeia, e pajear criminoso por viagens era 
dificultoso, tirava as pessoas de seus serviços. Aí, então, usavam. 
Às vezes, da redondeza, vinham até trazendo o condenado, a 
cavalo, para a forca, pública. Só que um pobre veio morar 
próximo, quase debaixo dela, cobrava sua esmola, em cada útil 
caso, dando seguida cavava a cova e enterrava o corpo, com cruz. 
No mais nada. 
Semelhante não foi, quando um homem, Rudugério de 
Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado 
um filho dele ir matar outro, buscar para matarem, esse outro, 
que roubou sacrário de ouro da igreja da Abadia. Aí, então, em 
vez de cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão, os 
dois vieram e mataram mesmo foi o velho pai deles, distribuído 
de foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices, urdindo com 
cordões de embira e várias flores. E enqueriram o cadáver 
paterno em riba da casa – casinha boa, de telhas, a melhor 
naquele trecho. Daí, reuniram o gado, que iam levando para 
distante vender. Mas foram logo pegos. A pegar, a gente ajudou. 
Assim, prisioneiros nossos. Demos julgamento. Ao que, fosse 
Medeiro Vaz, enviava imediato os dois para tão razoável forca. 
Mas porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era – o senhor 
saiba Zé Bebelo! 
Com Zé Bebelo, oi, o rumo das coisas nascia inconstante 
diferente, conforme cada vez. A papo: – “Co-ah! Por que foi que 
vocês enfeitaram premeditado as foices?” – ele interrogou. Os 
dois irmãos responderam que tinham executado aquilo em 
padroeiragem à Virgem, para a Nossa Senhora em adiantado 
remitir o pecado que iam obrar, e obraram dito e feito. Tudo que 
Zé Bebelo se entesou sério, em pufo, empolo, mas sem rugas em 
testa, eu prestes vi que ele estava se rindo por de dentro. Tal, tal, 
disse: – “Santíssima Virgem...” E o pessoal todo tirou os 
chapéus, em alto respeito. – “Pois, se ela perdoa ou não, eu não 
sei. Mas eu perdôo, em nome dela – a Puríssima, Nossa Mãe!” – 
Zé Bebelo decretou. – “O pai não queria matar? Pois então, 
morreu – dá na mesma. Absolvo! Tenho a honra de resumir 
circunstância desta decisão, sem admitir apelo nem revogo, legal 
e lealdado, conformemente!...” Aí mais Zé Bebelo disse, como 
apreciava: – “Perdoar é sempre o justo e certo...” – pirlimpim, 
pimpão. Mas, como os dois irmãos careciam de algum castigo, 
ele requisitou para o nosso bando aquela gorda boiada, a qual 
pronto revendemos, embolsamos. E desse caso derivaram 
também uma boa cantiga violeira. Mas deponho que Zé Bebelo 
somente determinou assim naquela ocasião, pelo exemplo pela 
decência. Normal, quando a gente encontrava alguma boiada 
tangida, ele cobrava só imposto de uma ou umas duas reses, para 
o nosso sustento nos dias. Autorizava que era preciso se respeitar 
o trabalho dos outros, e entusiasmar o afinco e a ordem, no meio 
do triste sertão. 
Zé Bebelo – ah. Se o senhor não conheceu esse homem, 
deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza 
dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de 
tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já 
nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de  
ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz, 
conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava, 
diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz. 
Desarmado, uma vez, caminhou para o Leôncio Du, que tinha 
afastado todo o mundo e meneava um facãozão. Como gritou: – 
“Você quer vermelho? Te racho, fré!” Ao de que, o Leôncio Du 
decidiu deixou o facão cair, e se entregou. Senhor ouve e sabe? 
Zé Bebelo era inteligente e valente. Um homem consegue 
intrujar de tudo; só de ser inteligente e valente é que muito não 
pode. E Zé Bebelo pegava no ar as pessoas. Chegou um brabo, 
cabra da Zagaia, recomendado. – “Tua sombra me espinha, 
juazeiro!” – Zé Bebelo a faro saudou. E mandou amarrar o 
sujeito, sentar nele uma surra de peia. Atual, o cabra confessou: 
que tinha querido vir drede para trair, em empreita encobertada. 
Zé Bebelo apontou nos cachos dele a máuser: estampido que 
espatifa – as miolagens foram se grudar longe e perto. A gente 
pegou cantando a Moda-do-Boi. 
No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dançava as danças, 
exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à 
vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical; só 
não praticava de buzo nem baralho – declarando ter receios, por 
atreito demais a vício e riscos de jogo. Sem menos, se 
entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse: choveu, 
louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol. 
Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o 
progresso de todos – como se mais esse todo Brasil, territórios 
– e falava, horas, horas. – “Vim de vez!” – disse, quando 
retornou de Goiás. O passado, para ele, era mesmo passado, 
não vogava. E, de si, parte de fraco não dava, nenhão, nunca. 
Certo dia, se achando trotando por um caminho completo 
novo, exclamou: – “Ei, que as serras estas às vezes até mudam 
muito de lugar!...” – sério. E era. E era mas que ele estava 
perdido, deerrado de rota, há, há. Ah, mas, com ele, até o feio da 
guerra podia alguma alegria, tecia seu divertimento. Acabando 
um combate, saía esgalopado, revólver ainda em mão, perseguir 
quem achasse, só aos brados: – “Viva a lei! Viva a lei!...” – e era 
o pipoco-paco. Ou: – “Paz! Paz!” – gritava também; e bala: se 
entregaram mais dois. – “Viva a lei! Viva a lei!...” Há-de-o, que 
quilate, que lei, alguém soubesse? Tanto aquilo, sucinto, a fama 
correu. Dou-lhe qual: que, uma vez, ele corria a cavalo, por 
exercício, e um veredeiro que isto viu se assustou, pulou de 
joelhos na estrada, requerendo: – “Não faz vivalei em mim não, 
môr-de-Deus, seu Zebebel’, por perdão...” E Zé Bebelo jogou 
para o pobre uma cédula de dinheiro; gritou: – “Amonta aqui, 
irmão, na garupa!” – trouxe o outro para com a gente jantar. 
Esse era ele. Esse era um homem. Para Zé Bebelo, melhor 
minha recordação está sempre quente pronta. Amigo, foi uma 
das pessoas nesta vida que eu mais prezei e apreciei. 
Pois porém, ao fim retomo, emendo o que vinha 
contando. A ser que, de campinas a campos, por morros, areiões 
e varjas, o Sesfredo e eu chegamos no Marcavão. Antes de lá, 
inchou o tempo, para chover. Chuva de desenraizar todo pau, 
tromba: chuvão que come terra, a gente vendo. Quem mede e 
pesa esses demais d’água? Rios foram se enchendo. Apeamos no 
Marcavão, beira do do-Sono. Medeiro Vaz morreu, naquele país 
fechado. Nós chegamos em tempo. 
Ao quando encontramos o bando, foi ali, Medeiro Vaz já 
estava mal; talvez por isso a alegria comum não pôde se dizer, 
nem Diadorim me abraçou nem demonstrou um salves por 
minha volta. Fiquei sincero. A tristeza e a espera má tomavam 
conta da gente. – “O mais é o pior: é que tem inimigo, próximo, 
tocaiando...” – Alaripe me disse. Muito chovido de noite-as 
árvores esponjadas. Mesmo dava um frio vento, com umidades. 
Para agasalhar Medeiro Vaz, tinham levantado um boi – o 
senhor sabe: um couro só, espetado numa estaca, por resguardar 
a pessoa do rumo donde vem o vento – o bafe-bafe. 
Acampávamos debaixo de grandes árvores. O barulhim do rio 
era de bicho em bicheira. Medeiro Vaz jazente numa manta de 
pele de bode branco – aberto na roupa, o peito, cheio de 
cabelos grisalhados. A barriga dele tinha inflamado muito, mas 
não era de hidropisia. Era de dores. Quando vislumbrou de 
mim, aí armou no se aprumar, pelejando para me ver. Os olhos 
– o alvor, como miolo de formigueiro. Mas se abriu, arriou os 
braços, e mediu o chão com suas costas. “Está no bilim-bilim” – 
eu pensei. Ah, a cara – arre de amarela, o amarelamento: de 
palha! Assim desse jeito ele levou o dia quase a termo. 
A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou 
adeparte; ele tramava as lágrimas. – “Amizade, Riobaldo, que eu 
imaginei em você esse prazo inteiro...” – e apertou minha mão. 
Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: – “Acode, que o 
chefe está no fatal!” Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo tudo. 
E o queixo dele não parava de mexer; grandes momentos. 
Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como de propósito. 
Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em 
volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para 
proteger a morte dele. Medeiro Vaz – o rei dos gerais ; como era 
que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas, 
escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por 
debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do 
corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a 
agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua 
goela, e gaguejou: – “Quem vai ficar em meu lugar? Quem 
capitaneia?...” Com a estrampeação da chuva, os poucos 
ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Mas eu vi 
que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. Ele avermelhava 
os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me 
apertou estreito. 
Eu não queria ser chefe! “Quem capitaneia...” Vi meu 
nome no lume dele. E ele quis levantar a mão para me apontar. 
As veias da mão... Com que luz eu via? Mas não pôde. A morte 
pôde mais. Rolou os olhos; que ralava, no sarrido. Foi dormir 
em rede branca. Deu a venta. 
Era seu dia de alta tarefa. Quando estiou a chuva, 
procuramos o que acender. Só se trouxe uma vela de carnaúba, 
o toco, e um brandão de tocha. Eu tinha passado por um susto. 
Agora, a meio a vertigem me dava, desnorteado na vontade de 
falar aqueles versos, como quem cantasse um coreto: 
Meu boi preto mocangueiro, 
árvore para te apresilhar? 
Palmeira que não debruça: 
buriti – sem entortar... 
Deviam de tocar os sinos de todas as igrejas! 
Cobrimos o corpo com palmas de buriti novo, cortadas 
molhadas. Fizemos quarto, todos, até ao quebrar da barra. Os 
sapos gritavam latejado. O sapo-cachorro arranhou seu rouco. 
Alguma anta assoviava, assovio mais fino que o relincho-rincho 
dum poldrinho. De aurora, cavacamos uma funda cova. A terra 
dos gerais é boa. 
Tomou-se café, e Diadorim me disse, firme: 
– “Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as 
derradeiras ordens...” 
Todos estavam lá, os brabos, me olhantes – tantas 
meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras – grão e grão – 
era como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso 
ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando. 
Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu 
não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas 
capacidades. A desgraça, de João Goanhá não ter vindo! Rentemente, 
que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Engoli 
cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: 
– “Não posso... Não sirvo...” 
– “Mano velho, Riobaldo, tu pode!” 
Tive testa. Pensei um nome feio. O que achassem, 
achassem! – mas ninguém ia manusear meu ser, para 
brincadeiras... 
– “Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós 
sabemos a tua valia...” – Diadorim retornou. Assim instava, mão 
erguida. Onde é que os outros, roda-a-roda, denotavam 
assentimento. – “Tatarana! Tatarana!...” – uns pronunciaram; 
sendo Tatarana um apelido meu, que eu tinha. 
Temi. Terçava o grave. Assim, Diadorim dispunha do 
direito de fazer aquilo comigo? Eu, que sou eu, bati o pé: 
– “Não posso, não quero! Digo definitivo! Sou de ser e 
executar, não me ajusto de produzir ordens...” 
Tudo parava, por átimo. Todos esperando com suspensão. 
Senhor conheceu por de-dentro um bando em-pé de jagunços – 
quando um perigo poja? – sabe os quantos lobos? Mas, eh, não, 
o pior é que é a calma, uma sisudez das escuras. Não que 
matem, uns aos outros, ver; mas, a pique de coisinha, o senhor 
pode entornar seu respeito, sobrar desmoralizado para sempre, 
neste vale de lágrimas. Tudo rosna. Entremeio, Diadorim se 
maisfez, avançando passo. Deixou de me medir, vigiou o ar de 
todos. Aí ele era mestre nisso, de astuto se certificar só com um 
rabeio ligeiro de mirada – tinha gateza para contador de gado. E 
muito disse: 
– “A pois, então, eu tomo a chefia. O melhor não sou, 
oxente, mas porfio no que quero e prezo, conforme vocês todos 
também. A regra de Medeiro Vaz tem de prosseguir, com 
tenção! Mas, se algum achar que não acha, o justo, a gente isto 
decide a ponta d’armas...” 
Hê, mandacaru! Oi, Diadorim belo feroz! Ah, ele conhecia 
os caminhares. Em jagunço com jagunço, o poder seco da 
pessoa é que vale... Muitos, ali, haviam de querer morrer por ser 
chefes – mas não tinham conseguido nem tempo de se firmar 
quente nas idéias. E os outros estimaram e louvaram: – 
“Reinaldo! O Reinaldo!” – foi o aprovo deles. Ah. 
Num nu, nisto, nesse repente, desinterno de mim um nego 
forte se saltou! Não, Diadorim, não. Nunca que eu podia 
consentir. Nanje pelo tanto que eu dele era louco amigo, e 
concebia por ele a vexável afeição que me estragava, feito um 
mau amor oculto – por mesmo isso, nimpes nada, era que eu 
não podia aceitar aquela transformação: negócio de para sempre 
receber mando dele, doendo de Diadorim ser meu chefe, nhem, 
hem? Nulo que eu ia estuchar. Não, hem, clamei – que como 
um sino desbadala: 
– “Discordo.” 
Todos me olhassem? Não vi, não tremi. Visivo só vi 
Diadorim – resumo do aspecto e esboço dele para movimentos: 
as mãos e os olhos; de reguarda. Como em relance corri cálculo, 
de quantos tiros eu tinha para à queima-bucha dar – e uma 
balazinha, primeira, botada na agulha da automática – ah, eu 
estava com milho no surrão! De devagar, os companheiros, os 
outros, não se buliram, tanto esperavam; decerto que saldavam 
antipatia de mim, repugnados por eu estar seguidamente 
atrapalhando as decisões, achassem que eu agora não tinha mais 
direito de parecer, pois a chefia própria eu enjeitara. Quem sabe, 
será se praziam no poder ver nós dois, Diadorim comigo – que 
antes como irmãos, até ali – a gente se estraçalhar nas facas? 
Torci vontade de matar alguém, para pacificar minha aflição; 
alguém, algum – Diadorim não – digo. Decerto isso em mim 
eles perceberam. Os calados. Só o Sesfredo, inesperado assim, 
disse um também: – “Discordo!” Por me estimar, ele me 
secundava. E o Alaripe, séria pessoa: – “Tem de que. Deixa o 
Riobaldo razoar...” Endireitei os chifres. Chapei: 
– “Vejo, Marcelino Pampa é quem tem de comandar. 
Mediante que é o mais velho, e, demais de mais velho, valente, e 
consabido de ajuizado!” Cara de Marcelino Pampa ficou enorme. 
Do que constei dos outros, concordantes, estabeleci que eu tinha 
acertado solerte – dei na barra! Mas, Diadorim? De olhos os 
olhos agarrados: nós dois. Asneira, eu naquela hora supria 
suscitar alto meu maior bem-querer por Diadorim; mesmo, 
mesmo, assim mesmo, eu arcava em cru com o desafio, desde 
que ele brabasse, desde que ele puxasse. Tempo instante, que 
empurrou morros para passar... Afinal, aí, Diadorim abaixou as 
vistas. Pude mais do que ele! Se riu, depois de mim. Sempre 
sendo que falou, firme: 
– “Com gosto. Melhor do que Marcelino Pampa não tem 
nenhum. Não ambicionei poderes...” 
Falou como corajoso. E: 
– “Tresdito que é a vez de se estar contornados, unidos 
sem porfiar...” – o Alaripe inteirou. 
Amém, todos, voz a voz, aprovavam. Marcelino Pampa 
então principiou, falou assim: 
– “Aceito, por precisão nossa, o que obrigação minha é. 
Até enquanto não vem algum dos certos, de realce maior: João 
Goanhá, Alípio Mota, Titão Passos... A tanto, careço do bom 
conselho de todos que tiverem, segura fiança. Assentes que 
vamos...” 
Sobre mais disse, sem importância, sem noção; pois 
Marcelino Pampa possuía talentos minguados. Somente pensei 
que ele estava pondo um peso no lombo, por sacrifício. Ao que, 
em melhores tempos, aprazia bem capitanear; mas, agora aquela 
ocasião, a gente por baixos, e essas misérias, qualquer um não 
havia de desgostar de responsabilidade? Ã, aí observei: como 
Marcelino Pampa desde o instante expunha outro ar de ser, a 
sisuda extravagância, soberbo satisfeito! Ser chefe – por fora um 
pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinhas flores. 
Meu era um alívio. Mesmo não duvidei de meu menos 
valer: alguém lá tem a feição do rosto igualzinha à minha? Eh, de 
primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje, eu 
desconheço o arruído rumor das pancadas dele. Diadorim veio 
para perto de mim, falou coisas de admiração, muito de afeto 
leal. Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora, mel de melhor. Eu 
precisava. Tem horas em que penso que a gente carecia, de 
repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e 
as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente 
adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já 
vendemos? Bobéia, minha. E como é que havia de ser possível? 
Hem?! 
Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio 
Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses – 
Davidão era o nome dele. Vai, um dia, coisas dessas que às 
vezes acontecem, esse Davidão pegou a ter medo de morrer. 
Safado, pensou, propôs este trato a um outro, pobre dos mais 
pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a ele dez contos de 
réis, mas, em lei de caborje – invisível no sobrenatural – 
chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, 
então era o Faustino quem morria, em vez dele. E o Faustino 
aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de 
feitiço do contrato ele muito não acreditava. Então, pelo 
seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major 
Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate 
quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o 
Faustino. A de ver? Para nenhum deles não tinha chegado a 
hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, 
escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos eles não 
saíam... Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto 
mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, 
vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o 
que o moço me disse? Que era assunto de valor, para se compor 
uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante, 
caprichado. O final que ele daí imaginou, foi um: que, um dia, o 
Faustino pegava também a ter medo, queria revogar o ajuste! 
Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, 
por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam 
numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, 
investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, 
por sua própria mão dele, a faca cravava no coração do 
Faustino, que falecia... 
Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa 
limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí 
podem encher este mundo de outros movimentos, sem os erros 
e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? 
Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero 
louvei. E ele me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de 
realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube somente 
só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem – deu 
baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires 
de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino 
dar baixa também, e viesse morar perto dele, sempre. Mais deles, 
ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, 
nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a 
gente. Não se queira. Viver é muito perigoso... 
A que, o que logo vi, que Marcelino Pampa, por bem de 
seu dispor, não dava altura. A tento de se acertar nos primeiros 
rumos de se mexer, ele me chamou, mais João Concliz. – “Os 
Judas estão aqui mesmo, de nós a umas quinze léguas, e sabem 
da gente. Deveras atacar, não atacam, com este tempo de todas 
chuvas e ribeirões cheios. Mas vão fechando modo de rodear a 
gente, de menos longe, porque a quantidade deles é à farta... Recurso, 
que eu acho, é dois: ou se fugir para o chapadão, 
enquanto tempo – mas é perder toda esperança e diminuir da 
vergonha... Ou, então, forçar tudo e experimentar um caminho 
por entremeio deles: se vai para a outra banda do Rio, caçar 
João Goanhá e os outros companheiros... Mais ainda não sei, 
quero toda razoável opinião.” Assim ele, Marcelino Pampa, 
disse. – “Mas, se souberem a notícia que Medeiro Vaz morreu, 
hoje mesmo é capaz que sejam de vir em riba de nós...” – foi o 
que João Concliz achou; e estava muito certo. Eu não atinava 
com o que dizer, as confusões dessas horas me encostavam. O 
que era, na situação, que Medeiro Vaz havia de fazer? E Joca 
Ramiro? E Só Candelário? Ao esmo, esses pensamentos em 
mim. Ai de, foi que reconheci como súcia de homens carece de 
uma completa cabeça. Comandante é preciso, para aliviar os 
aflitos, para salvar a idéia da gente de perturbações 
desconformes. Não sabia, hoje será que sei, a regra de nenhum 
meio-termo. Sem ação, eu podia gastar ali minha vida inteira, 
debulhando. Também, logo depois, depois de muitos silêncios e 
poucas palavras, Marcelino Pampa resolveu que, de tarde, nossa 
conversa ia ter repetição. Atontados, três. 
Dali, fui para perto de Diadorim. – “Riobaldo,” – ele mal 
disse – “você está vendo que não temos remédio...” Aí, 
esbarrou, pensou um tempo, com uma mão por cima da outra. 
– “E vocês, que foi que determinaram de se fazer?” – me 
perguntou. Respondi: – “Hoje de tarde é que se toma decisão, 
Diadorim. Você está mal satisfeito?” Ele endireitou o corpo. 
Foi, falou: – “Sei o meu. Cá por mim, isso tudo pouco adianta. 
Quente quero poder chegar junto dum dos Judas, para 
terminar!” Eu sabia que ele falava coisas de pelejar por cumprir. 
Eu tinha mais cansaço, mais tristeza. – “Quem sabe, se... Para 
ter jeito de chegar perto deles, até se não era melhor...” – assim 
ele desabafou, em trago; e recolhido num estado de segredo. Por 
seus grandes olhos, onde aquilo redondeou, cri que armasse 
agarrar o comando, por meio de acender o bando todo em 
revolta. Qualquer loucura, semelhante, era a dele. Mas, não; mais 
disse: – “Foi você, mesmo, Riobaldo, quem governou tudo, 
hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu e fez...” 
Era. Gostei, em cheio, de escutar isso, soprante. Ah, porém, 
estaquei na ponta dum pensamento, e agudo temi, temi. Cada 
hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo! 
Mas, depois de janta, quando estávamos outra vez 
reunidos – Marcelino Pampa, eu e João Concliz, – não se teve 
nem o tempo de principiar. Pelo que ouvimos: um galope, o 
chegar, o riscar, o desapeio, o xaxaxo de alpercatas. Sendo assim 
o Feliciano e o Quipes, que traziam um vaqueirinho, escoltado. 
Que vieram quase correndo. O vaqueirinho não devia de ter 
mais de uns quinze anos, e as feições dele mudavam-de mestre 
pavor. – “Arte, que este tal passou, às fugas, meio arupa. 
Pegamos. Aí ele tem grande coisa pra contar...” – e empurraram 
um pouco o vaqueirinho. De medo – a gente olhava para ele – e 
de nossos olhos ele se desencostava. Afe, por fim, bebeu gole de 
ar, e soluceou: 
– “É um homem... Só sei... É um homem...” 
– “Te acerta, mocinho. Aqui você está livre e salvo. Aonde 
é que está indo?” – Marcelino Pampa regrou. 
– “É briga enorme... É um homem... Vou indo pra longe, 
para a casa de meu pai... Ah, é um homem... Ele desceu o Rio 
Paracatu, numa balsa de buriti...” 
– “Que foi mais que o homem fez?” – então João Concliz 
perguntou. – “Deu fogo... O homem, com mais cinco homens... 
Avançaram do mato, deram fogo contra os outros. Os outros 
eram montão, mais duns trinta. Mas fugiram. Largaram três 
mortos, uns feridos. Escaramuçados. Ei! E estavam a cavalo... O 
homem e os cinco dele estão a pé. Homem terrível... Falou que 
vai reformar isto tudo! Vieram pedir sal e farinha, no rancho
Emprestei. Tinham matado um veadinho campeiro, me deram 
naca de carne...” 
– “Qual é que é o nome dele? Fala! Como é que os outros 
dizem? Aí e que jeito, que semelhança de figura é que ele tem?” 
– “Ele? O jeito que é o dele, que ele tem? Em é mais baixo 
do que alto, não é velho, não é moço... Homem branco... Veio 
de Goiás... O que os outros falam e tratam: `Deputado’. Desceu o 
Rio Paracatu numa balsa de buriti... – ‘Estávamos em jejum de 
briga...’ – ele mesmo disse. Ele e seus cinco deram fogo feito 
feras. Gritavam de onça e de uivado... Disse: vai remexer o 
mundo! Desceu o Rio Paracatu numa balsa de buriti... Desceram... 
Nem cavalo eles não têm...” 
– “É ele! Mas é ele! Só pode ser...” – aí alguém lembrou. – 
“E é. E, então, está do nosso lado!” – outro completou. – 
“Temos de mandar por ele...” – foi a palavra de Marcelino 
Pampa. – “Onde é que estará? Na Pavoã? Alguém tem de ir 
lá...” – “É ele... É ver a vida: quem pensava? E é homem 
danado, zuretado...” – “Está a favor da gente... E ele sabe 
guerrear...” E era. Repegava a chuva, trozante, mas mesmo 
assim o Quipes e Cavalcânti montaram e saíram por ele, da 
Pavoã no rumo. De certo não acharam fácil, pois até à hora de 
escurecer não tinham aparecido. Mas: aquele homem, para que o 
senhor saiba, – aquele homem: era Zé Bebelo. E, na noite, 
ninguém não dormiu direito, em nosso campo. De manhã, com 
uma braça de sol, ele chegou. Dia da abelha branca. 
De chapéu desabado, avantes passos, veio vindo, 
acompanhado de seus cinco cabras. Pelos modos, pelas roupas, 
aqueles eram gente do Alto Urucuia. Catrumanos dos gerais. 
Pobres, mas atravessados de armas, e com cheias cartucheiras. 
Marcelino Pampa caminhou ao encontro dele; seguinte de nosso 
comandante, nós formávamos. Valia ver. Essas cerimônias.  
– “Paz e saúde, chefe! Como passou?” – “Como passou, 
mano?” 
Os dois grandes se saudavam. Aí Zé Bebelo reparou em 
mim: – “Professor, ara viva! Sempre a gente tem de se avistar...” 
De nomes e caras de pessoas ele em tempo nenhum se esquecia. 
Vi que me prezava cordial, não me dando por traidor nem falso. 
Riu redobrado. De repente, desriu. Refez pé para trás. 
– “Vim de vez!” – ele disse; disse desafiando, quase. 
– “Em boa veio, chefe! É o que todos aqui 
representamos...” – Marcelino Pampa respondeu. 
– “A pois. Salve Medeiro Vaz!...” 
– “Deus com ele, amigo. Medeiro Vaz ganhou repouso...” 
– “Aqui soube. Lux eterna...” – e Zé Bebelo tirou o chapéu 
e se persignou, parando um instante sério, num ar de exemplo, 
que a gente até se comoveu. Depois, disse: 
– “Vim cobrar pela vida de meu amigo Joca Ramiro, que a 
vida em outro tempo me salvou de morte... E liquidar com esses 
dois bandidos, que desonram o nome da Pátria e este sertão 
nacional! Filhos da égua...” – e ele estava com a raiva tanta, que 
tudo quanto falava ficava sendo verdade. – “Pois, então, estamos 
irmãos... E esses homens?” 
Os urucuianos não abriram boca. Mas Zé Bebelo rodeou 
todos, num mando de mão, e declarou forte o seguinte: 
– “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus 
exércitos!...” Prazer que foi, ouvir o estabelecido. A gente 
quisesse brigar, aquele homem era em frente, crescia sozinho nas 
armas. 
Vez de Marcelino Pampa dizer: 
– “Pois assim, amigo, por que é que não combinamos 
nosso destino? Juntos estamos, juntos vamos.” 
– “Amizade e combinação, aceito, mano velho. Já, ajuntar, 
não. Só obro o que muito mando; nasci assim. Só sei ser chefe.” 
Sobre curto, Marcelino Pampa cobrou de si suas contas. 
Repuxou testa, demorou dentro dum momento. Circulou os 
olhos em nós todos, seus companheiros, seus brabos. Nada não 
se disse. Mas ele entendeu o que cada vontade pedia. Depressa 
deu, o consumado: 
– “E chefe será. Baixamos nossas armas, esperamos vossas 
ordens...” Com coragem falou, como olhou para a gente outra 
vez. 
– “Acordo!” – eu disse, Diadorim disse, João Concliz disse; 
todos falaram: – “Acordo!” 
Aí Zé Bebelo não discrepou pim de surpresa, parecia até 
que esperava mesmo aquele voto. – “De todo poder? Todo o 
mundo lealda?” – ainda perguntou, ringindo seriedade. 
Confirmamos. Então ele quase se aprumou nas pontas dos pés, e 
nos chamou: – “Ao redor de mim, meus filhos. Tomo posse!” 
Podia-se rir. Ninguém ria. A gente em redor dele, misturando em 
meio nosso os cinco homens do Urucuia. Adiante: – “Pois 
estamos. É o duro diverso, meu povo. Mas os assassinos de Joca 
Ramiro vão pagar, com seiscentos-setecentos!...” – ele definiu, 
apanhando um por um de nós no olhar. – “Assassinos – els são 
os Judas. Desse nome, agora, que é o deles...” – explicou João 
Concliz. – “Arre, vote: dois judas, podemos romper as aleluias! 
Aleluia! Aleluia! Carne no prato, farinha na cuia!...” – ele aprovou, 
deu aquilo feito um viva. Nós respondemos. E assim era que Zé 
Bebelo era. Como quando trovejou: desse trovôo de alto e rasto, 
dos gerais, entrementes antes dos gotejos de chuva esquentada: o 
trovão afunda largo, pé da gente apalpa a terra. Conforme foi: 
trovejou de cala-a-boca – e Zé Bebelo tocou um gesto de costas 
da mão, respeitoso disse: – “Isto é comigo...” Do que se tratava, 
retorno e conto, ele o seguinte revelou: – “Tudo eu não tinha, 
com os meus, munição para nem meia-hora...” A gente 
reconheceu mais a coragem dele. Isto é, qualquer um de nós 
sabia que aquilo podia ser mentira. Mesmo por isso, somenos, 
por detrás de tanta papagaiagem um homem carecia de ter a 
valentia muito grande. 
A cômodo ele começou, nesse dia, nessa hora; não 
esbarrou mais. Achou de ir ver o lugar da cova, e as armas e trens 
que Medeiro Vaz deixava, essas determinou que, o morto não 
tendo parentes, então para os melhores mais chegados como 
lembrança ficassem: as carabinas e revólveres, a automática de 
rompida e ronco, punhal, facão, o capote, o cantil revestido, as 
capangas e alforjes, as cartucheiras de trespassar. Alguém disse 
que o cavalo grande, murzelo -mancho, devia de ficar sendo dele 
mesmo. Não quis. Chamou Marcelino Pampa, a ele fez donativo 
grave: – “Este animal é vosso, Marcelino, merecido. Porque eu 
ainda estou para ver outro com igual siso e caráter!” Apertou a 
mão dele, num toques. Marcelino Pampa dobrou de ar, 
perturbado. Desse fato em diante, era capaz de se morrer, por Zé 
Bebelo. Mas, para si mesmo, Zé Bebelo guardou somente o 
pelego berbezim, de forrar sela, e um bentinho milagroso, em 
três baetas confeccionado. 
Daí, levou a eito, vendo, examinando, disquirindo. 
Aprendeu os nomes, de um em um, e em que lugar nascido, 
resumo da vida, quantos combates, e que gostos tinha, qualquer 
oficio de habilidade. Olhou e contou as pencas de munição e as 
armas. Repassou os cavalos, prezando os mais bem ferrados e 
os de agüentada firmeza. – “Ferraduras, ferraduras! Isto é que é 
importante...” – vivia dizendo. Repartiu os homens em quatro 
pelotões – três drongos de quinze, e um de vinte – em cada um 
ao menos um bom rastreador. – “Carecemos de quatro buzinas 
de caçador, para os avisos...” – reclamou. Ele mesmo tinha um 
apito, pendurado do pescoço, que de muito longe se atendia. 
Para capitanear os drongos, escolheu: Marcelino Pampa, João 
Concliz, e o Fafafa. Pessoalmente, ficou com o maior, o de vinte 
– nesse figuravam os cinco urucuianos, e eu, Diadorim, 
Sesfredo, o Quipes, Joaquim Beiju, Coscorão, Dimas Doido, o 
Acauã, Mão-de-Lixa, Marruaz, o Credo, Marimbondo, Rasgaem-
Baixo, Jiribibe e Jõe Bexiguento, dito Alparcatas. Só que, 
tidos todos repartidos, ainda sobravam nove – serviram para 
esquadrão adeparte, tomar conta dos burros cargueiros, com 
petrechos e mantimentos. O testa deles foi Alaripe, por bom 
que fosse para tudo ser. Aos esses, mesmo, se comediu 
obrigação: Quim Queiroz zelava os volumes de balas; o jacaré 
exercia de cozinheiro, todo tempo devia de dizer o de comer que 
precisava ou faltava; Doristino, ferrador dos animais, tratador 
deles; e os outros ajudavam; mas Raimundo Lê, que entendia de 
curas e meizinhas, teve cargo de guardar sempre um surrão com 
remédios. O que, remédio, por ora, não havia nenhum. Mas Zé 
Bebelo não se atontava: – “Aí em qualquer parte, depois, se 
compra, se acha, meu filho. Mas, vai apanhando folha e raiz, vai 
tendo, vai enchendo... O que eu quero é ver o surrão à mão...” O 
acampamento da gente parecia uma cidade. 
Assuntos principais, Zé Bebelo fazia lição, e deduzia 
ordens. – “Trabucar duro, para dormir bem!” – publicava. 
Gostadamente: – “Morrendo eu, depois vocês descansam...” – e 
ria: – “Mas eu não morro...” Sujeito muito lógico, o senhor sabe: 
cega qualquer nó. E – engraçado dizer – a gente apreciava aquilo. 
Dava uma esperança forte. Ao um modo, melhor que tudo é se 
cuidar miudamente trabalhos de paz em tempo de guerra. O mais 
eram traquejos, a cavalo, para lá e para cá, ou esbarrados firmes 
em formatura, então Zé Bebelo perequitava, assoviando, 
manobrava as patrulhas, vai-te, volta-te. Somente: – “Arre, temos 
nenhum tempo, gente! Capricha...” Sempre, no fim, por animar, 
levantava demais o braço: – “Ainda quero passar, a cavalos, 
levando vocês, em grandes cidades! Aqui o que me faz falta é 
uma bandeira, e tambor e cornetas, metais mais... Mas heide! Ah, 
que vamos em Carinhanha e Montes Claros, ali, no haja vinho... 
Arranchar no mercado da Diamantina... Eli, vamos no Paracatudo-
Príncipe!...” Que boca, que o apito: apitava. 
A sério, ele me chamava para o lado dele, e ia mandando vir 
outros – Marcelino Pampa, João Concliz, Diadorim, o urucuiano 
Pantaleão, e o Fafafa, vice-mandantes. Todos tinham de expor o 
que sabiam daquele gerais território: as distâncias em léguas e 
braças, os vaus, o grau de fundo dos marimbus e dos poços, os 
mandembes onde se esconder, os mais fartos pastos. Como Zé 
Bebelo simplificava os olhos, e perguntando e ouvindo avante. 
Às vezes riscava com ponta duma vara no chão, tudo 
representado. Ia organizando aquilo na cabeça. Estava aprendido. 
Com pouco, sabia mais do que nós juntos todos. Bem eu 
conhecia Zé Bebelo, de outros currais! Bem eu desejasse ter 
nascido como ele... Aí, saía, por caçar. Sucinto que gostava de 
caçar; mas estava era sujeitando a exame o morro, discriminando. 
O mato e o campo – como dois é um par. Veio e foi, figurava, 
tomava a opinião da gente: – “Com dez homens, naquela altura, 
e outros dez espalhados na vertente, se podia impedir a passagem 
de duzentos cavaleiros, pelo resfriado... Com outros alguns, dando 
a retaguarda, então...” Nesfartes, só nisso ele pensava, quase que. 
Sendo que expedia, sobre hora, alguém adiante, se informar do 
meximento dos Judas, trazer notícias vivas. E, homem feliz, feito 
Zé Bebelo naquele tempo, afirmo ao senhor, nunca não vi. 
Diadorim também, que dos claros rumos me dividia. Vinha 
a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: 
é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais. O demônio 
diz mil. Esse! Vige mas não rege... Qual é o caminho certo da 
gente? Nem para a frente nem para trás: só para cima. Ou parar 
curto quieto. Feito os bichos fazem. Os bichos estão só é muito 
esperando? Mas, quem é que sabe como? Viver... O senhor já 
sabe: viver é etcétera... Diadorím alegre, e eu não. Transato no 
meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os 
pássaros, que bem-meviam todo tal tempo. Gostava de 
Diadorim, dum jeito condenado; nem pensava mais que gostava, 
mas aí sabia que já gostava em sempre. Oi, suindara! – linda cor... 
Dando o dia, de repente, Zé Bebelo determinou que tudo e 
tudo fosse pronto, para uma remarcha em exercícios, como geral. 
Só por festa. Ao que os burrinhos comiam amadrinhados, em 
bom pasto: – “Menininhos, responsabilidade de cangalhas em 
vocês, carregando a nossa munição!” – Zé Bebelo mandou. Mas, 
montado, declarou: – “Meu nome d’ora por diante vai ser ah-ohah 
o de Zé Bebelo Vaz Ramiro! Como confiança só tenho em 
vocês, companheiros, meus amigos: zé-bebelos! A vez chegou: 
vamos em guerra. Vamos, vamos, rebentar com aquela cambada 
de patifes!...” Saímos, solertes entes. 
Para isso, a lua não era boa. Quem põe praça de 
cavalhadas, por desbarranco de estradas lamentas, desmancho 
empapado de chão, a chuva ainda enxaguando? Convinha 
esperar regras d’água. – “O Rio Paracatu está cbeio...” alguém 
disse. Mas Zé Bebelo atalhou: – “O São Francisco é maior...” 
Com ele tudo era assim, extravagável; e não queria conversas de 
cutilquê. Rompemos. Melava de chover baixo, mimelava. Até o 
derradeiro do momento, parecia que íamos atravessar o 
Paracatu. Não atravessamos. Tudo aquele homem retinha 
estudado. Daí, distribuiu as patrulhas. O drongo dele, viemos, 
pela beira, sempre o Paracatu à mão esquerda. Trovejou, de 
perturbar. Ele disse: – “Melhor, dou surpresa... Só uma boa 
surpresa é que rende. Quero é atacar!”. A gente ia para o Buriti- 
Pintado. A lá, consta de dez léguas, doze, – “Na hora, cada um 
deve de ver só um algum judas de cada vez, mirar bem e atirar. 
O resto maior é com Deus...” – já vai que falava. – “Para um 
trabalho que se quer, sempre a ferramenta se tem. Só com estes 
cavalos, só à ligeireza, de lugar para lugar, para a frente e para 
trás. Sei, mas o principal dos combates vamos dar é bem a pé...” 
Na beira do rio Soninho, descansamos. Animais de carga, a 
ponta de mulas, ficaram botados escondidos, numa bocaina na 
balsa. Só três homens tomavam conta. – “Eu é que escolho a 
hora e o lugar de investir...” – Zé Bebelo disse. E, num lugar de 
remanso, passamos o rio Soninho, no escuro, sem ensolvar, bala 
em boca. De manhã, de três lados, demos fogo. Aí Zé Bebelo 
tinha meditado tudo como um ato, de desenho. Primeiro, João 
Concliz avançou, com seus quinze, iam fazendo de conta que 
desprevenidos. Quando os outros vieram, nós todos já 
estávamos bem amoitados , em pontos bons. Duma banda, então, 
o Fafafa recruzou, seus cavaleiros: que estavam muito juntos, 
embolados, do modo por que um bando de cavaleiros ou cavalos 
dá ar de ser muito maior do que no real é. Todos cavalos ruços 
ou baios – cor clara também aumenta muito a visão do tamanho 
deles. Ah, e gritavam. Assaz os judas atiravam mal, discordados, 
nadinha nem. Aí, de poleiro pego prévio, abrimos nossa 
calamidade neles. Pessoal do Hermógenes... Não se disse guavai! 
Supetume! Só bala de aço. – “Dou duelo!... – Ei, tibes...” Só o 
quanto de se quebrar galho e rasgar roupagem. Um judas correu 
errado, do lado onde o Jiribibe estava: triste daquele. – “Ouh!” – 
foi o que ele fez de contrição perfeita. Outro levantou o corpo 
um pouco demais. – “Tu! Tu pensa que tem Deus-e-meio?!” – 
Zé Bebelo disse, depois de derrubar o tal, com um tiro de 
nhambu, baixo. Outro fugia esperto. – “Tem talento nos pés...” 
Os que enviei, deixei de numerar, por causa de caridade. Ai deles. 
Vitória, é isto. Ou o senhor pensa que é em alegre mal, feito 
numa caçada? 
Descansar? Quem disse, não foi ouvido. – “Vou lá deixar 
essa cambada birbar por aí em sossego?! Bis, minha gente! 
Vamos neles!” – Zé Bebelo se frigia. Mas o próprio pessoal de 
João Concliz tinha segurado mão nos cavalos daqueles. – 
“Toquemos na mão do norte: lá a cara do chão é minha mais...” 
Não, o caminho era da banda contrária. Tínhamos de cair em 
riba do grosso da judadas. Por resfriados e atalhos, mesmo com 
aquela cavalhada adestra, tocamos, tocamos. Estrada capaz de 
quatro, lado a lado. No Oi-Mãe. Lá tem um lajeiro – largo: onde 
grandes pedras do fundo do chão vêm à flor. Chegamos de 
sobremão, vagarosinho. Zé Bebelo recomendava, feito rondando 
quarto de doente. Ele cheirava até o ar. Sonso parecia um gato. 
Se vendo que, no inteiro mesmo de sua cabeça, ele antes tudo 
traçava e guerreava. Seja por um exemplo: havia uma cava 
grande, o inimigo estava emboscado dos dois lados, nos 
socavões, nas paredes. Como era que Zé Bebelo já sabia? 
Orçando longe volta, João Concliz levou seus homens muito 
adiante de lá, na borda do campo, de recacha. Dado tempo, 
então, nosso pelotão rastejou para os altos, até chega estávamos 
por cima dos beiços da cava. Ah e aí o Fafafa veio vindo, 
descuidado à mostra, com seus cavaleiros – surgiam 
inocentemente, feito veados para se matar... Mas – há! – então 
por de riba da cava desfechamos demos urros e o rifleio, 
transcruzando nos inferiores: – “Lá vai obra!...” Hê-hê! Deu de 
abelhas de pau oco: os das socavas entornaram o sangue-frio, 
demais se assustaram, correndo em fuga maior debaixo de tiros, 
xingos, às pragas. João Condiz, pois é, o senhor sabe... Urubus 
puderam voar cererém – uns urubus declarados. 
Mas daí voltamos, desatravessando outra vez o Soninho, 
até onde estava a nossa mulada, com munição e o mais. Mesmo 
viemos negaceando de recuar. Assim era pena, mas carecíamos 
de flautear desse jeito, sustância nossa não dava para se acabar 
com aqueles judas de uma vez. Sempre, sempre, para enganar no 
que vissem, Zé Bebelo variava de se viajar uma hora quase todos 
juntos, outra hora despedidos espalhados. Ainda, por suma 
vantagem disso, demos um tiroteio ganho, na fazenda São 
Serafim, dos diabos!  
Rumo a rumo de lá, mas muito para baixo, é um lugar. Tem 
uma encruzilhada. Estradas vão para as Veredas Tortas-veredas 
mortas. Eu disse, o senhor não ouviu. Nem torne a falar nesse 
nome, não. É o que ao senhor lhe peço. Lugar não onde. Lugares 
assim são simples – dão nenhum aviso. Agora: quando passei por 
lá, minha mãe não tinha rezado – por mim naquele momento? 
Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas 
cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no 
efeito que dão. O senhor ouvindo seguinte, me entende. O 
Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje 
ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu 
capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o 
borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios 
no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes. 
Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os 
bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se 
dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em toda a parte é 
desse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato, têm de 
caçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muito sangue. 
Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meianoite 
às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba 
estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio 
manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez 
em quando, para dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim. 
Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio 
na rua, no meio do redemunho... O senhor não me pergunte nada. 
Coisas dessas não se perguntam bem. 
Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. 
Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, 
disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem 
de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr 
denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho 
meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me 
caça. Da vida pouco me resta – só o deo-gratias; e o troco. 
Bobéia. Na feira de São João Branco, um homem andava 
falando: – “A pátria não pode nada com a velhice...” Discordo. 
A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos 
cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas – ele dizia: 
aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou 
contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e 
batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os 
revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, 
vinham de Goiás, reclamavam posse de todos animais de sela. 
Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde 
aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos 
anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas 
cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da 
gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e 
sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. 
Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa 
importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte 
ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse 
diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é 
que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas 
que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de 
recente data. O senhor mesmo sabe. 
Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome 
Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma 
carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, 
escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha 
lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, 
mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me 
chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se 
zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, 
nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e 
capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com 
Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou 
tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se 
rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, 
com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem 
tinham recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por 
engano de acaso, era um homem que, por medo da doença do 
toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga, 
logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de minha 
mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e 
mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. 
Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de 
certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal, no São 
Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas e vindo 
do Morro dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava 
gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de 
todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, 
na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto 
bom ficado em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito 
anos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende o que isso 
é? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha 
aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais 
de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que 
estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai 
avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria 
decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é 
uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria 
vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que 
empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O 
que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está 
pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não 
sabe! 
Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é 
homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, 
pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. 
Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais 
pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um 
grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas 
raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O 
que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. 
Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. 
Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão. 
Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com 
uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui – circunstância 
de cinco léguas – minha mãe e eu. No porto do Rio-de-Janeiro 
nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Josozinho, o 
negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há. 
Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de 
barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de 
depósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!... Depois 
o senhor vá, verá. Pois, naquela ocasião, já era quase do jeito. O 
de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem 
reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de- 
Janeiro em canoa – ele é estreito, não estende de largura as trinta 
braças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco, também 
principia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto, mais 
alto, onde não dá febre de maresia. A descida do barranco é indo 
por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia vem 
e tudo escavaca. O São Francisco represa o de-Janeiro, alto em 
grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. 
Dezembro dando, é certo. Todo o tempo, as canoas ficam 
esperando, com as correntes presas na raiz descoberta dum paud’óleo, 
que tem. Tinha também umas duas ou três gameleiras, de 
outrora, tanto recordo. Dá dó, ver as pessoas descerem na lama 
aquele barranco, carregando sacos pesados, muita vez. A vida 
aqui é muito repagada, o senhor concorde. Outro, meu tempo, 
então, o que é que não havia de ser? 
Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e 
minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: 
eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto – metade para 
se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr 
dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São 
Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do 
Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo 
pode. Ora, lugar de tirar esmola era no porto. Mãe me deu uma 
sacola. Eu ia, todos os dias. E esperava por lá, naquele parado, 
raro que alguém vinha. Mas eu gostava, queria novidade quieta 
para meus olhos. De descer o barranco, me dava receio. Mas 
espiava as cabaças para bóia de anzol, sempre dependuradas na 
parede do rancho
Terceiro ou quarto dia, que lá fui, apareceu mais gente. 
Dois ou três homens de fora, comprando alqueires de arroz. 
Cada saco amarrado com broto de buriti, a folha nova – verde e 
amarela pelo comprido, meio a meio. Arcavam com aqueles 
sacos, e passavam, nas canoas, para o outro lado do de-Janeiro. 
Lá era, como ainda hoje é, mata alta. Mas, por entre as árvores, 
se podia ver um carro-de-bois parado, os bois que mastigavam 
com escassa baba, indicando vinda de grandes distâncias. Daí, o 
senhor veja: tanto trabalho, ainda, por causa de uns metros de 
água mansinha, só por falta duma ponte. Ao que, mais, no 
carro-de-bois, levam muitos dias, para vencer o que em horas o 
senhor em seu jipe resolve. Até hoje é assim, por borco. 
Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa 
árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que 
eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéude-
couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. 
Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, 
com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e 
que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo 
diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um 
menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, 
verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu soube que esse 
lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos 
gerais de Lassance. 
– “Lá é bom?” – perguntei. – “Demais...” – ele me 
respondeu; e continuou explicando: – “Meu tio planta de tudo. 
Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou de morte de 
minha tia...” Assim parecesse que tinha vergonha, de estarem 
comprando aquele arroz, o senhor veja. 
Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, 
como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele 
era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, 
muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, 
nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma 
conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo 
de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e 
assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem 
brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. 
Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de 
promessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas ele apreciava 
o trabalho dos homens, chamando para eles meu olhar, com um 
jeito de siso. Senti, modo meu de menino, que ele também se 
simpatizava a já comigo. 
A ser que tinha dinheiro de seu, comprou um quarto de 
queijo, e um pedaço de rapadura. Disse que ia passear em canoa. 
Não pediu licença ao tio dele. Me perguntou se eu vinha. Tudo 
fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, 
que a gente só podia responder que sim. Ele me deu a mão, para 
me ajudar a descer o barranco. 
As canoas eram algumas, elas todas compridas, como as de 
hoje, escavacadas cada qual em tronco de pau de árvore. Uma 
estava ocupada, apipada passando as sacas de arroz, e nós 
escolhemos a melhor das outras, quase sem água nem lama 
nenhuma no fundo. Sentei lá dentro, de pinto em ovo. Ele se 
sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro. 
Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do 
rio. O menino tinha me dado a mão para descer o barranco. Era 
uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, 
perturbado. O vacilo da canoa me dava um aumentante receio. 
Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de 
folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me 
repassasse. Eu não sabia nadar. O remador, um menino também, 
da laia da gente, foi remando. Bom aquilo não era, tão 
pouca firmeza. Resolvi ter brio. Só era bom por estar perto do 
menino. Nem em minha mãe eu não pensava. Eu estava indo a 
meu esmo. 
Saiba o senhor, o de-janeiro é de águas claras. E é rio cheio 
de bichos cágados. Se olhava a lado, se via um vivente desses – 
em cima de pedra, quentando sol, ou nadando descoberto, 
exato. Foi o menino quem me mostrou. E chamou minha 
atenção para o mato da beira, em pé, paredão, feito à régua 
regulado. – “As flores...” – ele prezou. No alto, eram muitas 
flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras 
trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo; 
porque se estava no mês de maio, digo – tempo de comprar 
arroz, quem não pôde plantar. Um pássaro cantou. Nhambu? E 
periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós. Não me 
esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder 
deslembrar? Um papagaio vermelho: – “Arara for?” – ele me 
disse. E – quê-quê-quê? – o araçari perguntava. Ele, o menino, era 
dessemelhante, já disse, não dava minúcia de pessoa outra 
nenhuma. Comparável um suave de ser, mas asseado e forte – 
assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível – o 
senhor represente. As roupas mesmas não tinham nódoa nem 
amarrotado nenhum, não fuxicavam. A bem dizer, ele pouco 
falasse. Se via que estava apreciando o ar do tempo, calado e 
sabido, e tudo nele era segurança em si. Eu queria que ele 
gostasse de mim. 
Mas, com pouco, chegávamos no do-Chico. O senhor 
surja: é de repentemente, aquela terrível água de largura: 
imensidade. Medo maior que se tem, é de vir canoando num 
ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande. Até 
pelo mudar. A feiúra com que o São Francisco puxa, se moendo 
todo barrento vermelho, recebe para si o de-janeiro, quase só 
um rego verde só. – “Daqui vamos voltar?” – eu pedi, ansiado. 
O menino não me olhou – porque já tinha estado me olhando, 
como estava. – “Para quê?” – ele simples perguntou, em 
descanso de paz. O canoeiro, que remava, em pé, foi quem se 
riu, decerto de mim. Aí o menino mesmo avançação enorme 
roda-a-roda – o que até hoje, minha vida, avistei, de maior, foi 
aquele rio. Aquele, daquele dia. As remadas que se escutavam, 
do canoeiro, a gente podia contar, por duvidar se não 
satisfaziam termo. – “Ah, tu: tem medo não nenhum?” – ao 
canoeiro o menino perguntou, com tom. – “Sou barranqueiro!” 
– o canoeirinho tresdisse, repontando de seu orgulho. De tal o 
menino gostou, porque com a cabeça aprovava. Eu também. O 
chapéu-de-couro que ele tinha era quase novo. Os olhos, eu 
sabia e hoje ainda mais sei, pegavam um escurecimento duro. 
Mesmo com a pouca idade que era a minha, percebi que, de me 
ver tremido todo assim, o menino tirava aumento para sua 
coragem. Mas eu agüentei o aque do olhar dele. Aqueles olhos 
então foram ficando bons, retomando brilho. E o menino pôs a 
mão na minha. Encostava e ficava fazendo parte melhor da 
minha pele, no profundo, desse a minhas carnes alguma coisa. 
Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. – “Você 
também é animoso...” – me disse. Amanheci minha aurora. Mas 
a vergonha que eu sentia agora era de outra qualidade. Arre vai, 
o canoeiro cantou, feio, moda de copla que gente barranqueira 
usa: “... Meu Rio de São Francisco, nessa maior turvação: vim te dar 
um gole d’água, mas pedir tua benção...” Aí, o desejado, arribamos 
na outra beira, a de lá. 
Ao ver, o menino mandou encostar; só descemos. – “Você 
não arreda daqui, fica tomando conta!” – ele falou para o 
canoeiro, que seguiu de cumprir aquela autoridade, desde que 
amarrou a corrente num pau-pombo. Aonde o menino queria 
ir? Sofismei, mas fui andando, fomos, na vargem, no meioavermelhado 
do capim-pubo. Sentamos, por fim, num lugar 
mais salientado, com pedras, rodeado por áspero bamburral. 
Sendo de permanecer assim, sem prazo, isto é, o quase calados, 
somente. Sempre os mosquitinhos era que arreliavam, o vulgar. 
– “Amigo, quer de comer? Está com fome?” – ele me 
perguntou. E me deu a rapadura e o queijo. Ele mesmo, só 
tocou em miga. Estava pitando. Acabou de pitar, apanhava talos 
de capim-capivara, e mastigava; tinha gosto de milho-verde, é 
dele que a capivara come. Assim quando me veio vontade de 
urinar, e eu disse, ele determinou: – “Há-te, vai ali atrás, longe 
de mim, isso faz...” Mais não conversasse; e eu reparei, me 
acanhava, comparando como eram pobres as minhas roupas, 
junto das dele. 
Antojo, então, por detrás de nós, sem avisos, apareceu a 
cara de um homem! As duas mãos dele afastavam os ramos do 
mato, me deu um susto somente. Por certo algum trilho passava 
perto por ali, o homem escutara nossa conversa. À fé, era um 
rapaz, mulato, regular uns dezoito ou vinte anos; mas altado, 
forte, com as feições muito brutas. Debochado, ele disse isto: – 
“Vocês dois, uê, hem?! Que é que estão fazendo?...” Aduzido 
fungou, e, mão no fechado da outra, bateu um figurado 
indecente. Olhei para o menino. Esse não semelhava ter tomado 
nenhum espanto, surdo sentado ficou, social com seu prático 
sorriso. – “Hem, hem? E eu? Também que se sorriu, sem 
malícia e sem bondade. Não piscava os olhos. O canoeiro, sem 
seguir resolução, varejava ali, na barra, entre duas águas, menos 
fundas, brincando de rodar mansinho, com a canoa passeada. 
Depois, foi entrando no do-Chico, na beirada, para o rumo de 
acima. Eu me apeguei de olhar o mato da margem. Beiras sem 
praia, tristes, tudo parecendo meio podre, a deixa, lameada ainda 
da cheia derradeira, o senhor sabe: quando o do-Chico sobe os 
seis ou os onze metros. E se deu que o remador encostou quase 
a canoa nas canaranas, e se curvou, queria quebrar um galho de 
maracujá-do-mato. Com o mau jeito, a canoa desconversou, o 
menino também tinha se levantado. Eu disse um grito. – “Tem 
nada não...” – ele falou, até meigo muito. – “Mas, então, vocês 
fiquem sentados...” – eu me queixei. Ele se sentou. Mas, sério 
naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro, com uma 
palavra só, firme mas sem vexame: – “Atravessa!” O canoeiro 
obedeceu. 
Tive medo. Sabe? Tudo foi isso: tive medo! Enxerguei os 
confins do rio, do outro lado. Longe, longe, com que prazo se ir 
até lá? Medo e vergonha. A aguagem bruta, traiçoeira – o rio é 
cheio de baques, modos moles, de esfrio, e uns sussurros de 
desamparo. Apertei os dedos no pau da canoa. Não me lembrei 
do Caboclo-d’Água, não me lembrei do perigo que é a “onçad’água”, 
se diz – a ariranha – essas desmergulham, em bando, e 
becam a gente: rodeando e então fazendo a canoa virar, de 
estudo. Não pensei nada. Eu tinha o medo imediato. E tanta 
claridade do dia. O arrojo do rio, e só aquele estrape, e o risco 
extenso d’água, de parte a parte. Alto rio, fechei os olhos. Mas 
eu tinha até ali agarrado uma esperança. Tinha ouvido dizer que, 
quando canoa vira, fica boiando, e é bastante a gente se apoiar 
nela, encostar um dedo que seja, para se ter tenência, a 
constância de não afundar, e aí ir seguindo, até sobre se sair no 
seco. Eu disse isso. E o canoeiro me contradisse: – “Esta é das 
que afundam inteiras. É canoa de peroba. Canoa de peroba e de 
pau-d’óleo não sobrenadam...” Me deu uma tontura. O ódio que 
eu quis: ah, tantas canoas no porto, boas canoas boiantes, de 
faveira ou tamboril, de imburana, vinhático ou cedro, e a gente 
tinha escolhido aquela... Até fosse crime, fabricar dessas, de 
madeira burra! A mentira fosse – mas eu devo de ter arregalado 
doidos olhos. Quieto, composto, confronte, o menino me via. – 
“Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse que vinham 
minhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não sei nadar...” O 
menino sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.” 
Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma 
luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele 
indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – 
“Você nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele 
respondeu: – “Costumo não...” – e, passado o tempo dum meu 
suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao que meio 
pasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homem mais 
valente deste mundo.” Aí o bambalango das águas, aro!” – o 
mulato veio insistindo. E, por aí, eu consegui falar alto, contestando, 
que não estávamos fazendo sujice nenhuma, estávamos 
era espreitando as distâncias do rio e o parado das coisas. Mas, o 
que eu menos esperava, ouvi a bonita voz do menino dizer: – 
“Você, meu nego? Está certo, chega aqui...” A fala, o jeito dele, 
imitavam de mulher. Então, era aquilo? E o mulato, satisfeito, 
caminhou para se sentar juntinho dele. 
Ah, tem lances, esses – se riscam tão depressa, olhar da 
gente não acompanha. Urutu dá e já deu o bote? Só foi assim. 
Mulato pulou para trás, ô de um grito, gemido urro. Varou o 
mato, em fuga, se ouvia aquela corredoura. O menino abanava a 
faquinha nua na mão, e nem se ria. Tinha embebido ferro na 
coxa do mulato, a ponta rasgando fundo. A lâmina estava 
escorrida de sangue ruim. Mas o menino não se aluía do lugar. E 
limpou a faca no capim, com todo capricho. – “Quicé que 
corta...” – foi só o que disse, a si dizendo. Tornou a pôr na 
bainha. 
Meu receio não passava. O mulato podia voltar, ter ido 
buscar uma foice, garrucha, a reunir companheiros; de nós o 
que seria, daí a mais um pouco? Ao menino ponderei isso, 
encarecendo que a gente fosse logo embora. – “Carece de ter 
coragem. Carece de ter muita coragem...” – ele me moderou, tão 
gentil. Me alembrei do que antes ele tinha falado, de seu pai. 
Indaguei: – “Mas, então, você mora é com seu tio?” Aí ele se 
levantou, me chamando para voltarmos. Mas veio demorão, 
vagarosinho até aonde a canoa. E não olhava para trás. Não, 
medo do mulato, nem de ninguém, ele não conhecia. 
Tem de tudo neste mundo, pessoas engraçadas: o 
remadorzinho estava dormindo espichado dentro da canoa, com 
os seus mosquitos por cima e a camisa empapada de suor de sol. 
Se alegrou com o resto da rapadura e do queijo, nos trouxe 
remando, no meio do rio até mais cantava. Dessa volta, não lhe 
dou desenho – tudo igual, igual. Menos que, por vez, me 
pareceu depressa demais. – “Você é valente, sempre?” – em 
hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na água 
vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, 
declarou assim: – “Sou diferente de todo o mundo. Meu pai 
disse que eu careço de ser diferente, muito diferente...” E eu não 
tinha medo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, 
me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O 
sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe 
contei eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita 
coisa importante falta nome. 
Minha mãe estava lá no porto, por mim. Tive de ir com 
ela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, 
ele acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. 
Mas não carecia. Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos 
todos. 
Agora, que o senhor ouviu, perguntas faço. Por que foi 
que eu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima, eu sei. 
Dou, de. O senhor não me responda. Mais, que coragem 
inteirada em peça era aquela, a dele? De Deus, do demo? Por 
duas, por uma, isto que eu vivo pergunta de saber, nem o 
compadre meu Quelemém não me ensina. E o que era que o pai 
dele tencionava? Na ocasião, idade minha sendo aquela, não dei 
de mim esse indagado. Mire veja: um rapazinho, no Nazaré, foi 
desfeiteado, e matou um homem. Matou, correu em casa. Sabe 
o que o pai dele temperou? – “Filho, isso é a tua maioridade. Na 
velhice, já tenho defesa, de quem me vingue...” Bolas, ora. 
Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é 
onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada. Mas, onde 
é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. 
Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não 
conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de 
milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, 
repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o 
rio, defronte com o Menino? O São Francisco cabe sempre aí, 
capaz, passa. O Chapadão é em sobre longe, beira até Goiás, 
extrema. Os gerais desentendem de tempo. Sonhação – acho 
que eu tinha de aprender a estar alegre e triste juntamente, 
depois, nas vezes em que no Menino pensava, eu acho que. Mas, 
para quê? por quê? Eu estava no porto do de-Janeiro, com 
minha capanguinha na mão, ajuntando esmolas para o Senhor 
Bom-Jesus, no dever de pagar promessa feita por minha mãe, 
para me sarar de uma doença grave. Deveras se vê que o viver 
da gente não é tão cerzidinho assim? Artes que foi, que fico 
pensando: por aí, Zé Bebelo um tanto sabia disso, mas sabia 
sem saber, e saber não queria; como Medeiro Vaz, como Joca 
Ramiro; como compadre meu Quelemém, que viaja diverso 
caminhar. Ao quê? Não me dê, dês. Mais hoje, mais amanhã, 
quer ver que o senhor põe uma resposta. Assim, o senhor já me 
compraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo que o 
senhor me divulga. 
Adiante? Conto. O seguinte é simples. Minha mãe morreu 
– apenas a Bigri, era como ela se chamava. Morreu, num 
dezembro chovedor, aí foi grande a minha tristeza. Mas uma 
tristeza que todos sabiam, uma tristeza do meu direito. De 
desde, até hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me 
exporta. Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda 
parte. Amanheci mais. De herdado, fiquei com aquelas 
miserinhas – miséria quase inocente – que não podia fazer 
questão: lá larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras, panela, 
chocolateira, uma caçarola bicuda e um alguidar; somente peguei 
minha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa 
pintado de flores, uma fivela grande com ornados, um cobertor 
de baeta e minha muda de roupa. Puseram para mim tudo em 
trouxa, como coube na metade dum saco. Até que um vizinho 
caridoso cumpriu de me levar, por causa das chuvas numa 
viagem durada de seis dias, para a Fazenda São Gregório, de 
meu padrinho Selorico Mendes, na beira da estrada boiadeira, 
entre o rumo do Curralinho e o do Bagre, onde as serras vão 
descendo. Tanto que cheguei lá, meu padrinho Selorico Mendes 
me aceitou com grandes bondades. Ele era rico e somítico, 
possuía três fazendas-de-gado. Aqui também dele foi, a maior 
de todas. 
– “De não ter conhecido você, estes anos todos, purgo 
meus arrependimentos...” – foi a sincera primeira palavra que 
ele me disse, me olhando antes. Levei dias pensando que ele 
não fosse de juizo regulado. Nunca falou em minha mãe. Nas 
coisas de negócio e uso, no lidante, também quase não falava. 
Mas gostava de conversar, contava casos. Altas artes de 
jagunçosisso ele amava constante – histórias. 
– “Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. 
Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já 
é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem 
particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo 
se reina mandador – todos donos de agregados valentes, 
turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada! 
Domingos Touro, no Alambiques, Major Urbano na Macaçá, 
os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau dona Próspera 
Blaziana. Dona Adelaide no Campo-Redondo, Simão Avelino 
na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do Canastrão, o 
Coronel Camucim nos Arcanjos, comarca de Rio Pardo; e 
tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazenda some e 
surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo e 
vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no 
barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, 
cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, 
seus jagunços mil, ordeiros: ver São Francisco da Arrelia, 
Januária, Carinhanha, Urubu, Pilão Arcado, Xiquexique e 
Sento-Sé.” 
Demais falasse, tendo conhecido o Neco, se lembrava de 
quando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas eras do ano 
de 79: tomou todos os portos – Jatobá, Malhada e Manga – 
fez como quis; e pôs sede de suas fortes armas no arraial do 
jacaré, que era a terra dele. – “Estive lá, com carta firmada 
pelo Capitão Severiano Francisco de Magalhães, que era 
companheiro combinado do Neco. O pessoal que eles 
numeravam em guerra comprazia uma babilônia. Botavam até 
barcas, cheias de homens com bacamartes, cruzando para 
baixo e para cima o rio, de parte a parte. Dia e noite, a gente 
ouvia gritos e tiros. Cavalaria de jagunços galopando, saindo 
para distâncias marcadas. Abriam festa de bomba-real e 
foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavam tocar o 
sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos, 
arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em Casa-da- 
Câmara...” 
Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso. 
Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga. 
Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrete e 
faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma 
granadeira. Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que 
tinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de 
espada e em formato de folha de gravata. – “Sentei em mesa 
com o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefia dele, 
paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam e rendiam 
respeito.” Meu padrinho, hóspede do Neco; de recontar isso 
ele sempre se engrandecia. Naquela dita ocasião, todas as 
pessoas importantes tinham fugido da Januária, desamparadas 
de poder-de-lei, foram esperar melhor sorte em Pedras-de- 
Maria-da-Cruz. – “Neco? Ah! Mandou mais que Renovato, ou 
o Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão e os 
Filgueiras...” E meu padrinho me mostrou um papel, com 
escrita de Neco – era recibo de seis ancorotes com pólvora e 
uma remessa de iodureto – a assinatura rezava assim: Manoel 
Tavares de Sá. 
Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma 
decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e morar 
em casa de um amigo dele, Nhô Maroto, cujo Gervásio Lê de 
Ataíde era o verdadeiro nome social. Bom homem. Lá eu não 
carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho 
Selorico Mendes acertava com Nhô Maroto de pagar todo fim 
de ano o assentamento da tença e impêndio, até de botina e 
roupa que eu precisasse. Eu comia muito, a despesa não era 
pequena, e sempre gostei do bom e do melhor. A ser que, 
alguma vez, Nhô Maroto me pedia um ou outro serviço, 
usando muito bico de palavreado, me agradando e dizendo 
que estimava como um favor. Nunca neguei a ele meus pés e 
mãos, e mesmo não era o nenhum trabalho notável. Vai, 
acontece, ele me disse: – “Baldo, você carecia mesmo de 
estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial 
você jeito não tem. Você não é habilidoso.” Isso que ele me 
disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta, ao 
Mestre Lucas. Ele me olhou, um tempo – era homem de tão  
justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava 
ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a 
palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva 
dele. Assim Mestre Lucas me respondeu: – “É certo. Mas o 
mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava...” 
E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou 
de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos 
menores as letras e a tabuada. 
Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com 
os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá 
esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado 
não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por 
nomes de flores. A não ser a Rosa’uarda – moça feita, mais 
velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, 
dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José – ela 
era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa 
grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo 
bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que 
meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes 
me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei – carne 
moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em 
abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o 
quiabo – supimpas iguarias. Os doces, também. Estimei seo 
Assis Wababa, a mulher dele, dona Abadia, e até os meninos, 
irmãozinhos de Rosa’uarda, mas com tamanha diferença de 
idade. Só o que me invocava era a linguagem garganteada que 
falavam uns com uns, a aravia. Assim mesmo afirmo que a 
Rosa’uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras 
bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do 
quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre 
me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de: – “Meus olhos.” 
Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários 
pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei 
demais de estrangeiro. 
Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho 
muito fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu 
dinheiro, e que tanto avarava. Pois, várias viagens, ele veio ao 
Curralinho, me ver – na verdade, também, ele aproveitava para 
tratar de vender bois e mais outros negócios – e trazia para mim 
caixetas de doce de buriti ou de araticum, requeijão e marmeladas. 
Cada mês de novembro, mandava me buscar. Nunca ralhou 
comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisa nenhuma a 
ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não gostava 
dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não 
soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do 
São Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. 
Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, 
ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu era o 
jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha de testamento: das 
três fazendas, duas peguei. Só o São Gregório foi que ele testou 
para uma mulata, com que no fim de sua velhice se ajuntou. 
Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi eu menos merecia. 
Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou 
remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele. 
Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes. 
Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande 
fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os 
cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava 
batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando 
tão moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca 
saúde, mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí da cama e 
fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a 
lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns 
homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de 
capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma 
aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas  
armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de 
guerra. 
Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das 
mulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um dos 
homens – Alarico Totõe – estava expondo, explicando. Todos 
continuavam sem tomar assentos. Alarico Totõe sendo um 
fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho. Ele, 
com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de bem. 
Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por 
uma questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, 
aprovando com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava 
olhando, com uma admiração toda perturbosa, era para o chefe 
dos jagunços, o principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca 
Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão. 
Adrede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu 
dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a 
lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na 
imponência, pojava volume. E vi que era um homem bonito, 
caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados, 
ombreavam com ele dois jagunões; depois eu soube – que seus 
segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com  
um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um 
fazendeiro abastado. O outro – Hermógenes – homem sem 
anjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez. Pouco, pouco, 
fui receando. O Hermógenes: ele estava de costas, mas umas 
costas desconformes, a cacunda amontoava, com o chapéu raso 
em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que uma cabaça 
na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter pescoço. 
As calças dele como que se enrugavam demais da conta, 
enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, 
quando ele caminhou uns passos, se arrastava – me pareceu – 
que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico 
pensando: será que a vida socorre à gente certos avisos? Sempre 
me lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. 
Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse a cara. 
Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca, 
enegrecendo. 
No terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um 
recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o dia que 
vinha, pois que viajavam de noite, dando surpresa e 
desmanchando rastro. – “Tem ótimo reconditório...” – meu 
padrinho consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquela gente, 
até aonde o poço do Cambaubal, num fechado, mato caapuão. 
Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria pronto os 
olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda, e pôs 
as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes 
veio para sair comigo, mais o outro homem – um cabeça-chata 
alvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se 
chamava, até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, 
viemos até onde estavam esperando os outros, dois passos, no 
baixo da estrada. 
Aí mês de maio, falei, com a estrela-d’alva. O orvalho 
pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de 
certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder 
ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. 
Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. 
Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos 
sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do 
sertão. 
Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma 
tropa assim – feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que 
nem o dum grande rio, do aflor. A bem dizer, aquela gente estava 
toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e 
estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. 
Couro raspa em couro, os cavalos dão de orelha ou batem com o 
pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquejo. E um cavaleiro ou 
outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo, 
mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só 
dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. É diferente. 
Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito 
árvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas 
dos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam – e 
restavam esperando assim – a gente tinha medo. Ali deviam de 
estar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos 
cavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu? 
Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, 
inteiro. Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um 
alazão de bom pisar. 
– “Capixum, é eu, mais o siô Hermógenes...” – o cabeçachata 
falou aviso. 
– “A bom, Alaripe!” – o de lá respondeu. 
A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato 
cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a 
cavalhada a peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu 
branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles 
cavaleiros, escorrido, se divisava. E o senhor me desculpe, de 
estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu 
represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, 
é saudade. 
De junto com o Capixum, se aproximou outro um, 
também, de sotochefe, que o Hermógenes tratou de sié-Marques. 
O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas 
assim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim – fantasia 
de dizer – o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento. – “Aoh, 
uê, alguém, irmão?” – aquele sié-Marques perguntou, tratando de 
minha pessoa. – “De paz, mano velho. Amigo que veio mostrar à 
gente o arrancho...” – o Hermógenes contestou. Deu ainda um 
barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem mais delongas 
nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do Hermógenes, 
puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia os 
passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro 
continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era 
abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam, diziam 
graças. Presumi que estavam muito contentes de ganhar o 
repouso de horas, pois tinham navegado na sela a noite toda. Um 
falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: – “Siruiz, cadê a 
moça virgem?” Largamos a estrada, no capim molhado meus pés 
se lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para 
mim a toada toda estranha: 
Urubu é vila alta, 
mais idosa do sertão: 
padroeira, minha vida – 
vim de lá, volto mais não... 
Vim de lá, volto mais não?... 
Corro os dias nesses verdes, 
meu boi mocho baetão: 
buriti –água azulada, 
carnaúba – sal do chão... 
Remanso de rio largo, 
viola da solidão: 
quando vou p’ra dar batalha, 
convido meu coração... 
Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu 
disse. Lembrança da gente é assim. 
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, 
esperar a chegada da tropa de burros, adiante, na boca da ponte. 
Não tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez mulas, com 
os cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados, tafulhados 
com rama de algodão: afora o geme-geme das cangalhas, não 
faziam nenhum rumor. Guiamos os tropeiros também para o 
Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou, com Joca Ramiro, Ricardão, 
e os Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxe outra vez 
para casa. O dia já estava clareando completo. Meu coração 
restava cheio de coisas movimentadas. 
Não vi mais o acampo deles, as esporas tilintim. Não pude. 
Padrinho Selorico Mendes mandou que eu fosse no O-Cocho, 
buscar um homem chamado Rozendo Pio, esse homem – meu 
padrinho me disse – rastreava. E era para ele vir, debaixo de 
todos os segredos, tapejar o bando de Joca Ramiro por bons 
trilhos e atalhos, na Serra das Trinta Voltas, modo de caber em 
duas noites, sem perigo maior, o que, se não, durasse seis ou sete. 
Sendo assim, só eu mesmo merecia confiança de ir. Fui, com 
desgosto. Três léguas, três léguas e meia longe. Mas eu tinha de 
levar um cavalo adestro, para o homem. E esse Rozendo Pio era 
tratantaz e tolo. Demorou muito, com desculpa de arranjos. No 
caminho, na vinda, ele nem sabia de nada, de jagunços, quase não 
conversava, não quis dar demonstração. Nem fazia prazer 
naquilo. Quando chegamos, era o anoitecido, o bando estava 
pronto para sair. Se separavam em pequenos golpes. Meu 
padrinho tinha mandado amarrar os cachorros todos da fazenda. 
Se foram. Achei mesmo que tudo tinha perdido a graça, o de se 
ver. 
Semanas seguintes, meu padrinho só falou nos jagunços. 
Dito que Joca Ramiro era um chefe cursado: muitos iguais não 
nascem assim – dono de glórias! Aquela turma de cabras, tivesse 
sorte, podia impor caráter ao Governo. Meu padrinho levara 
aquele dia todo no meio deles. Contava: o cuidado nos arranjos, 
as coisas todas regradas, aquele dormir de ordem, aquela 
autoridade enorme no entremeamento. Nem nada faltava. As 
sacas de farinha, tantas e tantas arrobas de carne-de-sol, a 
munição bem zelada, caixote com pães de sabão para cada um 
lavar a roupa e o corpo. Até tinham um mestre-ferrador, com 
sua tendinha e os pertences: uma bigorna e as tenazes, fole de 
mão, ferramenta exata; e capanga de alveitar, com vários 
sortidos flames de sangrar cavalos adoecidos. E as mais coisas 
meu padrinho descrevia com muito agrado, de que tinha ouvido 
sincera narração. As lutas dos joca-ramiros, os barulhos, as 
manhas traçadas para se ganhar em combate, maço de estórias 
de toda raça de artes e estratagemas. De ouvir meu padrinho 
contar aquilo, se comprazendo sem singeleza, começava a dar 
em mim um enjôo. Parecia que ele queria se emprestar a si as 
façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de 
nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a 
ele, Selorico Mendes. Meu padrinho era antipático. Ficava mais 
sendo. Eu achava. Num lugar parado, assim, na roça, carece de a 
gente de vez em quando ir alterando os assuntos. 
Não estou caçando desculpa para meus errados, não, o 
senhor reflita. O que me agradava era recordar aquela cantiga, 
estúrdia, que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. 
Simples digo ao senhor: aquilo molhou minha idéia. Aire, me 
adoçou tanto, que dei para inventar, de espírito, versos naquela 
qualidade. Fiz muitos, montão. Eu mesmo por mim não 
cantava, porque nunca tive entôo de voz, e meus beiços não dão 
para saber assoviar. Mas reproduzia para as pessoas, e todo o 
mundo admirava, muito recitados repetidos. Agora, tiro sua 
atenção para um ponto: e ouvindo o senhor concordará com o 
que, por mesmo eu não saber, não digo. Pois foi – que eu 
escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, 
meus e meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e 
tristezas. Então? Mas esses, que na ocasião prezei, estão goros, 
remidos, em mim bem morreram, não deram cinza. Não me 
lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da 
memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no 
sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do 
orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos 
cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem? 
Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na 
lordeza. No São Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, 
querer querendo. E, de trabalhar seguido, eu nem carecia. 
Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava; mas não me 
louvava. Uma coisa ele não tolerava, e era só: que alguém 
indagasse justo quanto era o dinheiro que ele tinha. Com isso eu 
nunca somei, não sou especula. Eu vivia com o meu bom corpo. 
Alguém há de achar algum regime melhor? 
Mas, um dia – de tanto querer não pensar no princípio 
disso, acabei me esquecendo quem – me disseram que não era àtoa 
que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes. 
Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de 
mim o tonto houve – o mundo todo me desproduzia, numa 
grande desonra. Pareceu até que, de algum encoberto jeito, eu 
daquilo já sabia. Assim já tinha ouvido de outros, aos pedacinhos, 
ditos e indiretas, que eu desouvia. Perguntar a ele, fosse? 
Ah, eu não podia, não. Perguntar a mais pessoa nenhuma; 
chegava. Não desesquentei a cabeça. Ajuntei meus trens, minhas 
armas, selei um cavalo, fugi de lá. Fui até na cozinha, conduzi 
um naco de carne, dois punhados de farinha no bornal. Achasse 
algum dinheiro à mão, pegava; disso eu não tinha nenhum 
escrúpulo. Virei bem fugido. Toquei direto para o Curralim. 
Razão por que fiz? Sei ou não sei. De as, eu pensava claro, 
acho que de bês não pensei não. Eu queria o ferver. Quase 
mesmo aquilo me engrossava, desarrazoado, feito o vicio dum 
ruim prazer. Eu fazia minha raiva. Raiva bem não era, isto é: só 
uma espécie de despique a dentro, o vexame que me inçava não 
me dava rumo para continuação. Único reger era me empinar e 
assoprar em esta minha cabeça, aí a confusão e desordem e altos 
desesperos. Arremessei o cavalo, galopei demais. Não ia para a 
casa de Nhô Maroto. Ante antes ia para o seo Assis Wababa – 
aquela hora eu queria só gente estranha, muito estrangeira, 
estrangeira inteira! Só fosse um pouco para ver a Rosa’uarda, 
essa assim eu amava? Ah, não. Gostasse da Rosa’ uarda, mais aí 
nas delícias dela minha idéia não podendo se firmar – porque 
aumentava o desamparo de minha vergonha. Ia para a escola de 
Mestre Lucas. A lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava um 
senhor chamado Dodó Meireles, que tinha uma filha chamada 
Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis 
também tinha sido minha namorada, agora por muitos 
momentos eu achava consolo em que ela me visse – que 
soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dado revolta 
contra meu padrinho, saíra de casa, aos gritos, danado no 
animal, pelo cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas 
eu tinha de dar uma explicação. Eu não gostava daquela 
Miosótis, ela era uma bobinhã, no São Gregório nunca tinha 
pensado nela; gostava era de Rosa’uarda. Mas Nhô Maroto 
havia de logo saber que eu tivesse chegado no Curralim, e meu 
padrinho ia ter o pronto aviso. Mandava alguém me buscar. 
Vinha, ele. Não me importava. De repente, eu sabia: o que eu 
estava querendo era isso mesmo. Ele viesse, me pedisse para 
voltar, me prometendo tudo, ah, até nos meus pés se ajoelhava. 
E não viesse? Se demorasse a vir? Aí, o que era que eu ia fazer, 
caçar meio de vida, aturar remoque sei lá de todos, me repartir 
no miudinho de cada dia, tão penoso aborrecido. A bis, então, 
cresceu minha raiva. Tive outras lágrimas nos bobos olhos. 
Adramado pensei em minha mãe, com todo querer, e afirmei 
alto que seria só por conta dela que eu estava procedendo pelo 
avesso, gritei. Mas aquilo se fingia mal, espécie de minha 
vergonha esteve sendo maior. Como o cavalo, em rogo de 
misericórdia, escureceu o pêlo de todo suor. Sosseguei as esporas. 
Viemos a passo de marcha. Eu tinha medo por causa de 
minha vida, quando entramos no Curralinho. 
Em casa de seo Assis Wababa, me deram trato regozijante. 
No que jantei, ri, conversei. Só a praga duma surpresa me 
declararam: a de que a Rosa’uarda agora estava sendo noiva, para 
se casar com um Salino Cúri, outro turco negociante, nos 
derradeiros meses para lá vindo. Assumi, em trela, tristeza e alívio 
– aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos 
pessoais. Nublo em que me vi, mas me governei: trancei as 
pernas, comecei cara de falar pouco, senhor-não, senhor-sim, 
acautelado sisudo, e indagando dos grandes preços; assim fossem 
cuidar que essa minha viagem era por tramar importante encargo 
para o meu padrinho Selorico Mendes. Seo Assis Wababa oxente 
se prazia, aquela noite, com o que o Vupes noticiava: que em 
breves tempos os trilhos do trem-de-ferro se armavam de chegar 
até lá, o Curralinho então se destinava ser lugar comercial de 
todo valor. Seo Assis Wababa se engordava concordando, trouxe 
canjirão de vinho. Me alembro: eu entrei no que imaginei – na 
ilusãozinha de que para mim também estava tudo assim 
resolvido, o progresso moderno: e que eu me representava ali 
rico, estabelecido. Mesmo vi como seria bom, se fosse verdade. 
Mas estava lá o Vupes, Alemão Vupes, que eu disse – seo 
Emílio Wusp, que o senhor diz. Das vezes que viera a passar pelo 
Curralinho, ele já era meu conhecido. Tresdobrado homem. 
Sendo que entendia tudo de manejar com armas, mas viajava sem 
cano nenhum; dizia: – “Níquites! Desarmado eu completo, eu 
assim, eles todos mesmo vão muito mais me respeitar, oh, no 
sertão.” Ele me viu afinar mira, uma vez, e me louvou, por eu, de 
nascença, saber tão bem, na horinha, segurar de não respirar. 
Mesmo dizia: – “Senhor atira bem, porque atira com espírito. 
Sempre o espírito é que acerta...” Soante que dissesse: sempre o 
espírito é que mata... Mas, a bem, agora aquela hora, estava lá o 
Vupes, assim foi. Porque, num desastre de instante, eu tinha 
pegado a pensar – o que resolvia minha situação era trabalhar 
para ele, se viajar vendendo ferramentas por aí, descaroçador de 
algodão. Nem ponderei, mas disse: – “Seo Vupes, o senhor não 
quererá me ajustar, em seu serviço?” Minha bestice. “Níquites!” – 
conforme que o Vupes constante exclamava. Ali nem acabei de 
falar, e em mim eu já estava arrependido, com toda a velocidade. 
Idéia nova que imaginei: que, mesmo pessoa amiga e cortês, 
virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante. Mordi boca, 
já tinha falado. Ainda quis emendar, garantindo que era por 
gracejo; mas seo Assis Wababa e o Vupes me olhavam a menos, 
com desconfianças, me senti rebaixado demais. A contra mim 
tudo contra, o só ensejo das coisas me sisava. Dali logo saí, me 
despedindo bem. Aonde? Só se fosse ver o Mestre Lucas. Assim 
vim andando, mediante desespero. Me alembro, vinha andando e 
agora era que eu pegava a pensar livre e solto na Rosa’uarda, 
lindas pernas as lindas grossas, ela no vestido de nanzuque, 
nunca havia de ser para meu regalo. Dum modo senti, como me 
recordei, depois, tempos, quando foi arte se cantar uma cantiga: 
Seu pai fosse rico, 
tivesse negócio, 
eu casava contigo 
e o prazer era nosso... 
Isso, mas totalmente; às vezes. 
Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na 
minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso 
curto de acaso foi que se conseguiram – pelo pulo fino de sem 
ver se dar – a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim 
de clina de cavalo. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse 
sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa 
vã, que não conforma respostas. As vezes essa idéia me põe 
susto. Mas, o senhor veja: cheguei em casa do Mestre Lucas, ele 
me saudou, tão natural. Achei também tudo o natural, eu estava 
era cansado. E, quando Mestre Lucas me perguntou se eu vinha 
era de passeata, ou de recado da fazenda, expliquei que não: que 
eu tinha merecido licença de meu padrinho, para começar vida 
própria em Curralinho ou adiante, a fito de desenvolver mais 
estudos e apuramento só de cidade. Dizendo o que disse, eu 
mesmo jurava que Mestre Lucas não ia acreditar. Mas acreditou, 
até melhor. Sabe o senhor por quê? Porque, naquele dia, justo, 
ele estava remexido no meio de um assunto, que preparava o 
desejo dele para aí me acreditar. Digo: ele me ouviu, e disse: – 
“Riobaldo, pois você chega em feita ocasião!” 
Aí me explicou: um senhor, no Palhão, na fazenda Nhanva, 
altas beiras do Jequitaí, para o ensino de todas as matérias estava 
encomendando um professor. Com urgência, era homem de sua 
situação, garantia boa paga. Assim queria que Mestre Lucas fosse, 
que deixasse alguém dando escola no lugar dele, no Curralim, por 
uns tempos; isso, claro, não podia. Eu queria ir? 
– “O senhor acha que eu posso?” – perguntei; para 
principiar qualquer tarefa, quase que eu sozinho nunca tive 
coragem. – “Ei, pode!” – o Mestre Lucas declarou. Já que estava 
acondicionando numa bruaca os livros todos – geografia, 
arimética, cartilha e gramática – e borracha, lápis, régua, tinteiro, 
tudo o que pudesse ter serventia. Aceitei. Um entusiasmo nosso 
me botava brioso. Melhor que era para logo, para o seguinte: dois 
camaradas do dito fazendeiro estavam ali no Curralinho, 
esperando decisão, agora me levavam. Dona Dindinha, mulher 
de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me deu umas lágrimas 
de bondade: – “Tem tanta gente ruim neste mundo, meu filho... 
E você assim tão moço, tão bonito...” Aí, nem cheguei a ver 
aquela menina Miosótis. A Rosa’uarda, vi, de longes olhares. 
Os dois camaradas, em tanto percebi, eram capangas. Mas 
sujeitos de seu trato, sem altos-e-baixos nem as maiores 
asperezas, me deram toda consideração. Viajamos juntos quatro 
dias, quase trinta léguas, bom tempo beirando o Riachão e 
enxergando à mão esquerda os vultos da Serrado-Cabral. Meus 
companheiros quase que não me informavam, de nada ou nada. 
Tinham outras ordens. Mas, mesmo antes da gente entrar em terras 
do Palhão, fui vendo coisas calculosas, dei meio para duvidar. 
Patrulhas de cavaleiros em armas; troco de conversa de vigiação; 
e uma tropa de burros cargueiros, mas no meio dos tocadores 
vinham três soldados. Mais perto, em maiores me vi. Chegar lá 
declamava surpresa. A Nhanva enxameava de gente homem – 
pralaprá de feira em praça. E era vistosa fazenda assobradada, 
com grandes currais e um terreirão. Vi logo o dono. 
Ele era imediatamente estúrdio, vestido de brim azul e 
calçando botas amareladas. Era nervoso, magro, um pouco mais 
para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que 
pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular. 
Fui indo, ele veio vindo, o grande revólver na cintura; um lenço 
no pescoço dele esvoaçava. E aquele cabelo bom, despenteado 
alto, topete arrepiadinho. Apressei o passo, e ele esbarrou, com 
as mãos nas cadeiras. Me olhou frenteante, deu risada – de certo 
nem estava sabendo quem eu era. E gritou, caçoando: – “Me 
vem com o andar de sapo, me vem... 
Ah-oh-ah, o destempo de estar sendo debochado se irou de 
mim. Esbarrei, também. Me fiz mouco. Mas ele veio para mim, 
então, saudou, com um modo sensato de simpatia. Adiado eu 
disse: – “Sou o moço professor...” A alegria dele, me ouvindo, foi 
estupefacta. Me ferrou do braço, com porção de falas e agrados, 
subiu a escada comigo, me levou para um quarto, lá dentro, 
ligeiro, parecia até que querendo me esconder de todos. Uma 
doidice, de quê? Ah, mas, ah – esse quem era – o homem? Zé 
Bebelo. A fixe de fato, tudo nele, para mim, tirava mais para fora 
uma real novidade. 
Disse ao senhor? – eu estava pensando que ia dar escola 
para os filhos dum fazendeiro. Engano. O comum, com Zé 
Bebelo, virava diferente adiante, aprazava engano. Estudante 
sendo ele mesmo. Me avisou. Quis antever os cadernos, livros, 
pegar com as mãos. Assim ler e escrever, e as quatro contas, ele 
já soubesse, consumia jornais. Remexeu, tarabuz, e tudo foi 
arrumando na mesa grande do quarto, senhor-jesus-cristo que 
assoviava, o cantarolado. Mas – e aí comigo falou sério – 
naquilo se tinha de sungar segredo: eu visse. – “Vamos constar é 
que estou assentando os planos! Você fica sendo meu 
secretário.” Nesse mesmo ido dia, a gente começou. Aquele 
homem me exercitou tonto, eh, ô, me fino fiz. Ânsia assim e 
anfa, e poder de entender demais, nunca achei quem outro. O 
que ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que os livros 
dão e não. Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de 
lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva 
de eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, 
contra-fim. Queimava por noite duas, três velas. Ele mesmo 
falava: – “Relógio não vou olhar. Aí estudo, estudo, até que 
estico um cochilão. Cochilão me vem: então espairo o livro, e 
me deito, que me durmo.” Pela sua vontade dele, simples. De 
dia, estávamos debulhando páginas, e de repente se levantava 
ele, chegava na janela, apitava num apito, ministrava aquela 
brama de ordens: dez, vinte executações duma vez. O pessoal 
corria, cumpriam; aquilo semelhava um circo, bom teatro. Mas, 
com menos de mês, Zé Bebelo se tinha senhoreado de reter 
tudo, sabia muito mais do que eu mesmo soubesse. Aí, a alegria 
dele ficou demasiadamente. Sobrevinha com o livro, me fazia de 
queima-cara um punhado de perguntas. Ao tanto eu demorava, 
treteava no explicar, errando a esmo, caloteava. Ai-ai-ai d’ele 
atalhar as minhas palavras, mostrar no livro que eu estava falso, 
corrigir o dito, me dar quinau. Se espocava às gargalhadas, 
espalmava mão, expendia outras normas, próprias de sua idéia lá 
dele – e sendo feliz de nessas dificuldades me ver, eu )a 
ignorante, esmorecido e escabreado. Só aí, digo, foi que ele 
ficou gostando de mim. Certo. Me deu um abraço, me gratificou 
em dinheiro, me fez firmes elogios – “Siô Baldo, já tomei os 
altos de tudo! Mas carece de você não ir s’embora, não, mas 
antes prosseguir sendo o secretário meu... Aponto que vamos 
por esse Norte, por grandes fatos, que você não se 
arrependerá...” – me disse – “... Norte, más bandas.” Soprou, só; 
enche que ventava. 
Porque ele tinha me estatutado os todos projetos. Como 
estava reunindo e pervalendo aquela gente, para sair pelo Estado 
acima, em comando de grande guerra. O fim de tudo, que seria: 
romper em peito de bando e bando, acabar com eles, liquidar 
com os jagunços, até o último, relimpar o mundo da jagunçada 
braba. – “Somente que eu tiver feito, siô Baldo, estou todo: 
entro direito na política!” Antes me confessou essa única sina 
que ambicionava, de muito coração: e era de ser deputado. 
Pediu segredo, e eu não gostei. Porque eu estava sabendo que 
todos já aventavam aquela toleima, por detrás dele até 
antecipavam alcunha: “o Deputado”... O mundo é assim. Mas, 
mesmo desse jeito, o pessoal todo não regateava a ele a maior 
dedicação de respeito. Por via de sua macheza. Ah, Zé Bebelo 
era o do duro – sete punhais de sete aços, trouxados numa 
bainha só! Atirava e tanto com qualquer quilate de arma, sempre 
certeira a pontaria, laçava e campeava feito um todo vaqueiro, 
amansava animal de maior brabeza – burro grande ou cavalo; 
duelava de faca, nos espíritos solertes de onça acuada, sem parar 
de pôr; e medo, ou cada parente de medo, ele cuspia em riba e 
desconhecia. Contavam: ele entrava de cheio, pessoalmente, e 
botava paz em qualquer rutuba. Ô homem couro-n’água, 
enfrentador! Dava os urros. E mesmo, para ele, parecia não ter 
nada impossível. Com tanta bobéia assim, desfrutável e escurril, 
e ai de quem pensasse em poitar olho de chacotas: morria 
vertiginoso... – “O único homem-jagunço que eu podia acatar, 
siô Baldo, já está falecido... Agora, temos de render este serviço à 
pátria – tudo é nacional!” Esse que já tinha morrido, que ele 
falava, era Joãozinho Bem-Bem, das Aroeiras, de redondeante 
fama. Se dizia, tinha estudado a vida dele, nos pormenores, com 
tanta devoção especial, que até um apelido em si se apôs: Zé 
Bebelo; causa que, de nome, em verdade, era José Rebelo Adro 
Antunes. 
– “Sei seja de se anuir que sempre haja vergonheira de 
jagunços, a sobre-corja? Deixa, que, daqui a uns meses, neste 
nosso Norte não se vai ver mais um qualquer chefe encomendar 
para as eleições as turmas de sacripantes, desentrando da justiça, 
só para tudo destruírem, do civilizado e legal!” Assim dizendo, na 
verdade sentava o dizer, com ira razoável. A gente devia mesmo 
de reprovar os usos de bando em armas invadir cidades, arrasar o 
comércio, saquear na sebaça, barrear com estrumes humanos as 
paredes da casa do juiz-de-direito, escramuçar o promotor 
amontado à força numa má égua, de cara para trás, com lata 
amarrada na cauda, e ainda a cambada dando morras e aí 
soltando os foguetes! Até não arrombavam pipas de cachaça 
diante de igreja, ou isso de se expor padre sacerdote nu no olho 
da rua, e ofender as donzelas e as famílias, gozar senhoras 
casadas, por muitos homens, o marido obrigado a ver? Ao 
quando falava, com fogo que puxava de si, Zé Bebelo tinha de se 
esbarrar, ia até na varanda ou na janela, a apitar o apito, ditar as 
boas ordens. Daí, mais renovado, voltava para perto de mim, 
repunha: – “Ah, cujo vou, siô Baldo, vou. Só eu que sou capaz de 
fazer e acontecer. Sendo porque fui eu só que nasci para tanto!” 
Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e 
deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, 
baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a 
pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um 
tempo, crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal. 
Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa. 
Mas, minha vida na fazenda, era ruim ou era boa? Se 
melhor era. Arre, eu estava feito um inhampas. Aí lordeei. Me 
acostumei com o fácil movimento, entrei de amizade com os 
capangas. Sempre chegavam pessoas de fora, que conversavam 
em sozinhos com Zé Bebelo, gente de cidade. De um, eu soube 
que era delegado, em missão. E ele me apresentava com a honra 
de: Professor Riobaldo, secretário sendo. Nas folgas vagas, eu ia 
com os companheiros, obra de légua dali, no Leva, aonde 
estavam arranchadas as mulheres, mais de cinqüenta. Elas 
vinham vindo, tantas, que, quase todo dia, mais tinham de 
baratear. Não faltava esse bom divertir. Zé Bebelo aprovava: – 
“Onde é que já se viu homem valer, se não tem à mão estadas 
raparigas? Ond’é?” Mesmo cachaça ele fornecia, com regra. – 
“Melhor, se não eles por si providenceiam, dão logo em abusos, 
patuléias...” – isto explicava. Demais, de tudo ali se prazia 
fartura confortável! Abastada comida, armamento de primeira, 
monte de munição, roupas e calçados para os melhores. E o 
cobre para semanal de pagamento, pois nenhum daqueles 
homens estava ali por amor-de-deus, mas ajeitando seu meio de 
viver. Diziam que era dinheiro do cofre do Governo. Parecia. 
A tal que, enfim, veio o dia de se sair, guerreiramente, por 
vales e montes, a gente toda. Oi, o alarido! Aos quantos gritos, 
um araral, revôo avante de pássaros – o senhor mesmo nunca viu 
coisa assim, só em romance descrito. De glória e avio de própria 
soldadesca, e cavalos que davam até medo de não se achar pasto 
que chegasse, e o pessoal perto por uns mil. Acompanhado dos 
chefes-de-turma – que ele dava patente de serem seus sotenentes 
e oficiais de seu terço – Zé Bebelo, montado num formudo ruçopombo 
e com um chapéu distintíssimo na cabeça, repassava 
daqui p’r’ali, eguando bem, vistoriava. Me chamou para junto, eu 
tinha de ter à mão um caderno grosso, para por ordem dele 
assentar nomes, números e diversos, amanuense. Com eles eu 
estava vindo, então, o senhor vê. Vinha, para conhecer esse 
destino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer que, 
quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele dava 
baixa e alta de me ir m’embora. 
Digo que fui, digo que gostei. A passeata forte, pronta 
comida, bons repousos, companheiragem. O teor da gente se 
distraía bem. Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras. 
Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia 
ser ranço ou discórdia consigo restava para trás. Era o enfim. 
Era. – “Mais, mais, há-de dará é para diante, quando se formar 
combate!” – uns proseavam. Zé Bebelo querendo. Sabia o que 
queria, homem de muita raposice. Já no sair da Nhanva, tinha 
composto seu povo em avulsos – cada grupo, cada rumo. Um 
pelo São Lamberto, da mão direita; outro pegou o Riacho Fundo 
e o Córrego do Sanhar; outro se separou da gente no Só-Aqui, 
indo o Ribeirão da Barra; outro tomou sempre à mão esquerda, 
encostando ombro no São Francisco; mas nós, que vínhamos 
mais Zé Bebelo mesmo em capitania, rompemos, no meio, seguindo 
o traço do Córrego Felicidade. Passamos perto de Vila 
Inconfidência, viemos acampar no arraial Pedra-Branca, beira do 
Água-Branca. E tudo correndo bem. Dum batalhão para outro, 
se expedia gente com ordens e recados. Arrastávamos uma rede 
grande, peixe grande por pegar. E foi. Eu não vi essa célebre 
batalha – eu tinha ficado na Pedra-Branca. Não por medo, não. 
Mas Zé Bebelo me mandou: – “Tem paciência, você espera, para 
reunir os municipais do lugar e fazer discurso, logo que um 
estafeta vier relatar qual foi nossa primeira vitória...” 
Se deu, o que se disse. Só que, em vez de estafeta, a galope, 
veio Zé Bebelo mesmo. Eu tinha ficado com ruma de foguetes, 
para soltar, e foi festa. Zé Bebelo mandou dispor uma tábua por 
cima de um canto de cerca, conforme ele ali subiu e muito falou. 
Referiu. Para lá do Rio Pacu, no município de Brasília, tinham 
volteado um bando de jagunços – o com o valentão 
Hermógenes à testa – e derrotado total. Mais de dez mortos, 
mais de dez cabras agarrados presos; infelizmente só, foi que 
aquele Hermógenes conseguira de fugir. Mas não podia ir a 
longe! Ao que Zé Bebelo elogiou a lei, deu viva ao governo, para 
perto futuro prometeu muita coisa republicana. Depois, enxeriu 
que eu falasse discurso também. Tive de. – “Você deve de citar 
mais é em meu nome, o que por meu recato não versei. E falar 
muito nacional...” – se me se soprou. Cumpri. O que um homem 
assim devia de ser deputado – eu disse, encalquei. Acabei, ele me 
abraçou. O povo eu acho que apreciava. Daí, quando se estava 
no depois do almoço, vieram cavaleiros nossos, tangendo o troço 
de presos. Senti pena daqueles pobres, cansados, azombados, 
quase todos sujos de sangues secos – se via que não tinham 
esperança nenhuma decente. Iam de leva para a cadeia de 
Extrema, e de lá para outras cadeias, de certo, até para a da 
Capital. Zé Bebelo, olhando, me olhou, notou moleza. – “Tem 
dó não. São os danados de façanhosos...” Ah, era. Disso eu sabia. 
Mas como ia não ter pena? O que demasia na gente é a força feia 
do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente. 
Pensei que agora podíamos merece maior descanso. Ah, 
sim? – “Montar e galopar. Tem mais. Tem...” – Zé Bebelo 
chamou. Tocamos. Conversando, no caminho, eu perguntei, não 
sei: – “E Joca Ramiro?” Zé Bebelo tiscou de ombros, parece que 
não queria falar naquele. Daí me deu um gosto, de menor 
maldade, de explicar como era fabuloso o estado de Joca Ramiro, 
como tudo ele sabia e provia, e até que trazia um homem só para 
o oficio de ferrador, com a tendinha e as ferramentas, e o tudo 
mais versante aos animais. O que ouvindo, Zé Bebelo esbarrou. 
– “Ah, é uma idéia que vale, ora veja! Isso a gente tem de 
conceber também, é o bom exemplo para se aproveitar...” – ele 
atinou. E eu, que já ia contar mais, do diverso, das peripécias que 
meu padrinho dizia que Joca Ramiro inventava no dar batalha, 
então eu como me concertei em mim, e calei a boca. Mire veja o 
senhor tudo o que na vida se estorva, razão de pressentimentos. 
Porque eu estava achando que, se contasse, perfazia ato de 
traição. Traição, mas por quê? Dei um tunco. A gente não sabe, a 
gente sabe. Calei a boca toda. Desencurtamos os cavalos. 
No entre o Condado e a Lontra, se foi a fogo. Aí, vi, 
aprendi. A metade dos nossos, que se apeavam, no avanço, 
entremeados disfarçantes, suas armas em arte – escamoteados 
pelas árvores – e de repente ligeiros se jazendo: para o rastejo; 
com as cabeças, farejavam; toda a vida! Aqueles sabiam brigar, 
desde de nascença? Só avistei isso um instante. Sendo que 
seguindo Zé Bebelo, reviramos volta, para o Gameleiras, onde 
houve o pior. O que era, era o bando do Ricardão, que quase 
próximo, que cercamos. Para acuar, só faltando cães! E demos 
inferno. Se travou. Tiro estronda muito, no meio do cerrado: se 
diz que é estampido, que é rimbombo Tive noção de que 
morreram bastantes. Vencemos. Não desci de meu animal. Nem 
prestei, nem estive, no fim, como o galope se desabriu: os homens 
perseguindo uns, que com o mesmo Ricardão se 
escapavam. Mas mais não se aproveitou, o Ricardão já tinha tido 
fuga. Então os nossos, de jeriza, com os oito prisioneiros feitos 
queriam se concluir. – “Eh, de jeito nenhum, epa! Não consinto 
covardias de perversidade!” – Zé Bebelo se danou. Apreciei a 
excelência dele, no sistema de não se matar. Assim eu quis que o 
ar de paz logo revertesse, o alimpado, o povo gritando menos. 
Aquele dia tinha sido forte coisa. De longe e sossego eu careci, 
demais. Se teve pouco. Arranjado o preciso, só se tomou prazo 
breve, porque recombinaram por diante os projetos e 
desarrancamos para a Terra Fofa, quase na demarca com o Grão- 
Mogol. Mas lá não cheguei. Em certo ponto do caminho, eu 
resolvi melhor minha vida. 
Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou 
um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, 
com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na 
constante brutalidade. Debelei que descuidassem de mim, restei 
escondido retardado. Vim-me. Isso que, pelo ajustado, eu não 
carecia de fazer assim. Podia chegar perto de Zé Bebelo, 
desdizer: – “Desanimei, declaro de retornar para o Curralim...” 
Não podia? Mas, na hora mesma em que eu a decisão tomei, logo 
me deu um enfaro de Zé Bebelo, em trosgas, a conversação. 
Nem eu não estava para ter confiança nenhuma em ninguém. A 
bem: me fugi, e mais não pensei exato. Só isso. O senhor sabe, se 
desprocede: a ação escorregada e aflita, mas sem sustância 
narrável. 
Meu cavalo era bom, eu tinha dinheiro na algibeira, eu 
estava bem armado. Virei, vagaroso. Meu rumo mesmo era o do 
mais incerto. Viajei, vim, acho que eu não tinha vontade de 
chegar em nenhuma parte. Com vinte dias de remanchear, e sem 
as trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das 
Velhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma 
mulher, que muito me agradou – o marido dela estava fora, na 
redondeza. Ali não dava maleita. De manhã cedo, a mulher me 
disse: – “Meu pai existe daqui a quarto-de-légua. Vai, lá tu almoça 
e janta. De noite, se meu marido não tiver voltado, eu te chamo, 
dando avisos.” Eu falei: – “Você acende uma fogueira naquele 
alto, eu enxergo, eu cá venho...” Ela falou: – “Ao que não posso, 
alguém mais avistando havia de poder desconfiar.” Eu falei: – 
“Assim mesmo, eu quero. Fogueira – uma fogueirinha de nada...” 
Ela falou: – “Quem sabe eu acendo...” A gente sérios, nem se 
sorrindo. Aí, eu fui. 
Mas o pai dessa mulher era um homem finório de esperto, 
com o jeito de tirar da gente a conversa que ele constituía. A 
casa dele – espaçosa, casa-de-telha e caiada – era na beira, ali 
onde o rio tem mais troas. Se chamava Manoel Inácio, 
Malinácio dito, e geria uns bons pastos, com cavalhada 
pastando, e os bois. Me deu almoço, me pôs em fala. Eu estava 
querendo ser sincero. E notei que ele no falar me encarava e no 
ouvir piscava os olhos; e, quem encara no falar mas pisca os 
olhos para ouvir, não gosta muito de soldados. Aos poucos, 
então, contei: que dos zé-bebelos não tinha querido fazer parte; 
o que era a valente verdade. – “E Joca Ramiro?” – ele me 
perguntou. Eu disse, um pouco por me engrandecer e pôr 
minha prosa, que já tinha servido Joca Ramiro, e com ele 
conversado. Que, mesmo por isso, é que eu não podia ficar com 
Zé Bebelo, porque meu seguimento era por loca Ramiro, em 
coração em devoção. E falei no méu padrinho Selorico Mendes, 
e em Aluiz e Alarico Totõe, e de como foi que Joca Ramiro 
pernoitou em nossa fazenda do São Gregório. Mais coisas decerto 
eu disse, e aquele homem Malinácio me ouvia, só se 
fazendo de sossegado. Mas eu percebi que ele não estava. Deu 
jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que ali miasmava 
braba maleita. Não acertei. Eu queria esperar, para ver se a 
fogueira por minha sorte se acendia, eu tinha gostado muito da 
filha dele casada. Por um instante, o sabido do homem se tardou 
no que fazer. Mas, eu, requerendo um lugar para armar minha 
rede na sombra, e descansar – eu disse que não andava bem de 
saúde, – isso pareceu ser de seu agrado. Me levou para um 
quarto, onde tinha um jirau com enxergão, me botou lá à Ia 
vontade, fechou a porta. Ferrei; abraçado com minhas armas. 
Acordei só no aquele Malinácio me chamando para jantar. 
Cheguei na sala, e dei com outros três homens. Disseram de si 
que tropeiros eram, e estavam assim vestidos e parecidos. Mas o 
Malinácio começou a glosar e reproduzir minha conversa tida 
com ele – disso desgostei, segredos frescos contados não são 
para todos. E o arrieiro dono da tropa – que era o de cara 
redonda e pra clara – me fez muita interrogação. Não estive em 
boas cócoras. Construí de desconfiar. Não do fato d’ele tal 
encarecer – pois todo tropeiro sempre muito pergunta ; mas do 
jeito como os outros dois ajudavam aquele a me ver, de tudo 
perseverado tomando conta. Ele queria saber para onde eu 
mesmo me ia além. Queria saber por que, se eu punia por loca 
Ramiro, e estava em armas, por que então eu não tinha caçado 
jeito de trotar para o Norte, a fito de com o pessoal ramiros me 
juntar? Quem desconfia, fica sábio: dizendo como pude, muito 
confirmei; mas confirmei acrescentando que chegara até ali por 
dar volta cautelosa, e mesmo para sobre ter a calma de resolver 
os projetos em meu espírito. Ah, mas ah! – enquanto que me 
ouviam, mais um homem, tropeiro também, vinha entrando, na 
soleira da porta. Agüentei aquele nos meus olhos, e recebi um 
estremecer, em susto desfechado. Mas era um susto de coração 
alto, parecia a maior alegria. 
Soflagrante, conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, 
pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O 
Menino, senhor sim, aquele do porto do de-Janeiro, daquilo que 
lhe contei, o que atavessou o rio comigo, numa bamba canoa, 
toda a vida. E ele se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos 
verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas 
pestanas, a boca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. 
Arvoamento desses, a gente estatela e não entende; que dirá o 
senhor, eu contando só assim? Eu queria ir para ele, para 
abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com 
o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, 
visual. Os olhos nossos donos de nós dois. Sei que deve de ter 
sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo 
notaram – isso no estado de tudo percebi. O Menino me deu a 
mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais 
adivinhado e conteúdo; isto também. E ele como sorriu. Digo 
ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Ele se 
chamava o Reinaldo. 
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? 
Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum, 
sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. 
Mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir 
relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto 
coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio 
é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. 
– “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as 
horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém. 
Que fosse como sendo o trivial do viver feito uma água, dentro 
dela se esteja, e que tudo ajunta e amortece – só rara vez se 
consegue subir com a cabeça fora dela, feito um milagre: 
peixinho pediu. Por quê? Diz-que-direi ao senhor o que nem 
tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no 
ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente 
quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, 
quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama 
inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as 
surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito 
falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o 
senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! 
Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. 
Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta. 
Sabe, uma vez: no Tamanduá-tão, no barulho da guerra, eu vencendo, 
aí estremeci num relance claro de medo – medo só de 
mim, que eu mais não me reconhecia. Eu era alto, maior do que 
eu mesmo; e, de mim mesmo eu rindo, gargalhadas dava. Que 
eu de repente me perguntei, para não me responder: – “Você é 
o rei-dos-homens?...” Falei e ri. Rinchei, feito um cavalão bravo. 
Desfechei. Ventava em todas as árvores. Mas meus olhos viam 
só o alto tremer da poeira. E mais não digo; chus! Nem o senhor, 
nem eu, ninguém não sabe. 
Conto. Reinaldo – ele se chamava. Era o Menino do Porto, 
já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal 
da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me 
separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia? O que 
entendi em mim: direito como se, no reencontrando aquela hora 
aquele Menino-Moço, eu tivesse acertado de encontrar, para o 
todo sempre, as regências de uma alguma a minha família. Se 
sem peso e sem paz, sei, sim. Mas, assim como sendo, o amor 
podia vir mandado do Dê? Desminto. Ah – e Otacília? Otacília, 
o senhor verá, quando eu lhe contar – ela eu conheci em 
conjuntos suaves, tudo dado e clareado, suspendendo, se diz: 
quando os anjos e o vôo em volta, quase, quase. A Fazenda 
Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. Otacília, 
estilo dela, era toda exata, criatura de belezas. Depois lhe conto; 
tudo tem o tempo. Mas o mal de mim, doendo e vindo, é que eu 
tive de compesar, numa mão e noutra, amor com amor. Se 
pode? Vem horas, digo: se um aquele amor veio de Deus, como 
veio, então – o outro?... Todo tormento. Comigo, as coisas não 
têm hoje e anfontem amanhã: é sempre. Tormentos. Sei que 
tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa 
começou? O senhor por ora mal me entende, se é que no fim 
me entenderá. Mas a vida não é entendível. Digo: afora esses 
dois – e aquela mocinha Nhorinhá, da Aroeirinha, filha de Ana 
Duzuza – eu nunca supri outro amor, nenhum. E Nhorinhá eu 
deamei no passado, com um retardo custoso. No passado, eu, 
digo e sei, sou assim: relembrando minha vida para trás, eu 
gosto de todos, só curtindo desprezo e desgosto é por minha 
mesma antiga pessoa. Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais 
com mão de justiça, botou fogo em sua casa, nem das cinzas 
carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu 
incendiei: eu ficava escutando – o barulho de coisas rompendo e 
caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão! 
Logo que o Reinaldo me conheceu e me saudou, não tive 
mais dificuldade em dar certeza aos outros de minha situação. 
Ao quase sem sobejar palavras, ele afiançou o meu valimento, 
para aquele mestre de cara redonda e bom parecer, que passava 
por arrieiro da tropa e se chamava Titão Passos. De fato, 
tropeiros não eram, eu soube, mas pessoal brigal de Joca 
Ramiro. E a tropa? Essa, que se estava para seguir porquanto 
pra o Norte, com os três lotes de bons animais, era para levar 
munição. Nem tiveram mais prevenimento de esconder isso de 
mim. Aquele Malinácio era o guardador: com as munições bem 
encobertadas. Defronte da casa dele, mesmo, e para cima e para 
baixo, o rio possuía as croas de areia – cada qual com seu nome, 
que os remadores do das-Velhas botavam, e que todos tanto 
conheciam. Três croas e uma ilha. Mas uma delas três, maior, 
também sendo meio ilha: isto é, ilha de terra, na parte de baixo, 
com grandes pedras e árvores, e suja de matinho, capim, o 
alecrim viçoso remolhando suas folhagens nágua e o bunda-denegro 
verde vivente; e croa, só de areia, na parte de cima. Uma 
croa-com-ilha, que é conforme se diz. A Croa-comIlha do 
Malinácio, dita. A lá, que aonde estava o oculto, a gente ia em 
canoa, baldear a munição. Os outros companheiros, afetados de 
tropeiros, sendo ó Triol e João Vaqueiro, e mais Acrísio e 
Assunção, de sentinelas, e Vove, Jenolim e Admeto, que 
acabavam de enquerir a carga na mulada. A gente, jantou-se, já 
se estava de saída, para toda viagem. Eu ia com eles. 
Pois fomos, Nem tive pesar nenhum de não esperar o sinal 
da fogueira da mulher casada, filha do Malínácio. E ela era 
bonita, sacudida. Mulher assim de ser: que nem braçada de cana 
– da bica para os cochos, dos cochos para os tachos. Menos 
pensei. A andada de noite principiava como sobre algodão – 
produzida cuidadosa. Aquilo era munição de contos e contos de 
réis, a gente prezava grandes responsabilidades. Se vinha sem 
beiradear, mas sabendo o rio. Titão Passos comandava. 
De seguir assim, sem a dura decisão, feito cachorro magro 
que espera viajantes em ponto de rancho. , o senhor quem sabe 
vá achar que eu seja homem sem caráter. Eu mesmo pensei. 
Conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio de um meu 
dever honesto. Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu 
fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria 
firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não 
guardava fé e nem fazia parte. Abalado desse tanto, transtornei 
um imaginar. Só não quis arrependimento: porque aquilo 
sempre era começo, e descoroçoamento era modo-de-matéria 
que eu já tinha aprendido a protelar. Mas o Reinaldo vinha 
comigo, no mesmo lote, e não caçava minha companhia, não se 
chegou para perto de mim, nem vez, não dava sinal de prosseguir 
amizade. A gente descarecia de cuidar dos burros, um por 
um, enfileirados naquela paciência, na escuridão da noite eles 
tudo enxergavam. Se eu não tivesse passado por um lugar, uma 
mulher, a combinação daquela mulher acender a fogueira, eu 
nunca mais, nesta vida, tinha topado com o Menino? – era o que 
eu pensava. Veja o senhor: eu puxava essa idéia; e com ela em 
vez de me alegre ficar, por ter tido tanta sorte, eu sofria o meu. 
Sorte? O que Deus sabe, Deus sabe. Eu vi a neblina encher o 
vulto do rio, e se estralar da outra banda a barra da madrugada. 
Assaz as seriemas para trás cantaram. Ao que, esbarramos num 
sitiozinho, se avistou um preto, o preto já levantado para o 
trabalho, descampando mato. O preto era nosso; fizemos 
paragem. 
Dali, rezei minha ave-mariazinha de de-manhã, enquanto 
se desalbardava e amilhava. Outros escovavam os burros e 
mulas, ou a cangalhada iam arrumando, a carga toda se pôde 
resguardar – quase que ocupou inteira a casinha do preto.O qual 
era tão pobre desprevenido, tivemos até de dar comida a ele e à 
mulher, e seus filhinhos deles, quantidade. E notícia nenhuma, 
de nada, não se achava. A gente ia ao menos dormir o dia; mas 
três tinham de sobreficar, de vigias. O Reinaldo se dizendo ser 
um deles, eu tive coragem de oferecer também que ficava; não 
tinha sono, tudo em mim era nervosía. O rio, objeto assim a 
gente observou, com uma croa de areia amarela, e uma praia 
larga: manhãzando, ali estava re-cheio em instância de pássaros. 
O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas 
garças, enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato-verde, o 
pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martimpescador; 
mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto 
que mancha. Mas, melhor de todos – conforme o Reinaldo 
disse-o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rioabaixo 
e rio-acima: o que se chama o manuelzinhoda-croa. 
Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar 
apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, 
em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era 
para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: – “É 
formoso próprio...” – ele me ensinou. Do outro lado, tinha 
vargem e lagoas. P’ra e p’ra, os bandos de patos se cruzavam. – 
“Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegava mais. O sol 
dava dentro do rio, as ilhas estando claras. – “É aquele lá: 
lindo!” Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por 
cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito 
atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando 
suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – 
às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagem deles. – 
“É preciso olhar para esses com um todo carinho...” – o 
Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim, botava surpresa. E a 
macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser 
– e tudo num homem-d’armas, brabo bem jagunço – eu não 
entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava: frouxo, está 
aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O 
que houve, foi um contente meu maior, de escutar aquelas 
palavras. Achando que eu podia gostar mais dele. Sempre me 
lembro. De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é 
mesmo o Manuelzinho-da-croa. 
Depois, conversamos de coisas miúdas sem valor alheio, e 
eu tive uma influência para contar artes de minha vida, falar a 
esmo leve, me abrir em amáveis, bom. Tudo me comprazia por 
diante, eu não necessitava de prolongares. – “Riobaldo... 
Reinaldo...” – de repente ele deixou isto em dizer: – “... Dão par, 
os nomes de nós dois...” A de dar, palavras essas que se 
repartiram: para mim, pincho no em que já estava, de alegria; 
para ele, um vice-versa de tristeza. Que por quê? Assim eu ainda 
não sabia. O Reinaldo pitava muito; não acerto como podia 
conservar os dentes tão asseados; tão brancos. Ao em tanto que, 
também, de pitar se carecia: porque volta-emeia abespinhavam a 
gente os mosquitinhos chupadores, donos da vazante, uns 
mosquitinhos dançadinhos, tantos de se despertar. Eu fui 
contando minha existência. Não escondi nada não. Relatei como 
tinha acompanhado Zé Bebelo, o foguetório que soltei e o 
discurso falado, na Pedra-Branca, o combate dado na beira do 
Gameleiras, os pobres presos passando, com as camisas e as 
caras sujadas de secos sangues. – “Riobaldo, você é valente... 
Você é um homem pelo homem...” – ele no fim falou. Sopesei 
meu coração, povoado enchido, se diz; me cri capaz de altos, 
para toda seriedade certa proporcionado. E, aí desde aquela 
hora, conheci que, o Reinaldo, qualquer coisa que ele falasse, 
para mim virava sete vezes. 
Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, 
dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é 
que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja: sabe por que é 
que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha 
boa memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no 
escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que 
eu não podia proceder mal, ainda que quisesse. Por quê? Deus 
vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta 
pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, 
ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto 
para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me 
entender, me espere. 
Aí nesse mesmo meio-dia, rendidos na vigiação, o 
Reinaldo e eu não estávamos com sono, ele foi buscar uma 
capanga bonita que tinha, com lavores e três botóezinhos de 
abotoar. O que nela guardava era tesoura, tesourinha, pente, 
espelho, sabão verde, pincel e navalha. Dependurou o espelho 
num galho de marmelo-do-mato, acertou seu cabelo, que já 
estava cortado baixo. Depois quis cortar o meu. Me emprestou a 
navalha, mandou eu fazer a barba, que estava bem grandeúda. 
Acontecendo tudo com risadas e ditos amigos – como quando 
com seu arreleque por-escuro uma nhaúma devoou, ou quando 
eu pulei para apanhar um raminho de flores e quase caí 
comprido no chão, ou quando ouvimos um him de mula, que 
perto pastava. De estar folgando assim, e com o cabelo de 
cidadão, e a cara raspada lisa, era uma felicidadezinha que eu 
principiava. Desde esse dia, por animação, nunca deixei de 
cuidar de meu estar. O Reinaldo mesmo, no mais tempo, 
comprou de alguém uma outra navalha e pincel, me deu, 
naquela dita capanga. Às vezes, eu tinha vergonha de que me 
vissem com peça bordada e historienta; mas guardei aquilo com 
muita estima. E o Reinaldo, doutras viagens, me deu outros 
presentes: camisa de riscado fino, lenço e par de meia, essas 
coisas todas. Seja, o senhor vê: até hoje sou homem tratado. 
Pessoa limpa, pensa limpo. Eu acho. 
Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, no rio. Ele 
não ia. Só, por acostumação, ele tomava banho era sozinho no 
escuro, me disse, no sinal da madrugada. Sempre eu sabia de tal 
crendice, como alguns procediam assim esquisito – os 
caborjudos, sujeitos de corpo-fechado. No que era verdade. Não 
me espantei. Somente o senhor tenha: tanto sacrifício, desconforto 
de esbarrar nos garranchos, às tatas na ceguez da noite, 
não se diferenciando um ai dum ei, e pelos barrancos, lajes 
escorregadas e lama atolante, mais o receio de aranhas  
caranguejeiras e de cobras! Não, eu não. Mas o Reinaldo me 
instruiu aquilo, e me deixou na beira da praia, alegrias do ar em 
meu pensamento. Cheguei a encarar a água, o Rio das Velhas 
passando seu muito, um rio é sempre sem antiguidade. Cheguei 
a tirar a roupa. Mas então notei que estava contente demais de 
lavar meu corpo porque o Reinaldo mandasse, e era um prazer 
fofo e perturbado. “Agançagem!” – eu pensei. Destapei raivas. 
Tornei a me vestir, e voltei para a casa do preto; devia de ser 
hora de se comer a janta e arriar a tropa para as estradas. Agora 
o que eu queria era ímpeto de se viajar às altas e ir muito longe. A 
ponto que nem queria avistar o Reinaldo. 
Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. 
Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu 
acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar. A senvergonhice 
reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se 
crê no sincero sem maldade. Está certo, sei. Mas ponho minha 
fiança: homem muito homem que fui, e homem por mulheres! – 
nunca tive inclinação pra aos vícios desencontrados. Repilo o 
que, o sem preceito. Então – o senhor me perguntará – o que era 
aquilo? Ah, lei ladra, o poder da vida. Direitinho declaro o que, 
durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se 
passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação 
nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, 
mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisafeita. 
Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele 
fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele 
estar por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia 
então o que aquilo era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo 
entender não queria. Acho que. Aquela meiguice, desigual que ele 
sabia esconder o mais de sempre. E em mim a vontade de chegar 
todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro do corpo dele, 
dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação 
dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. 
Conforme, por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, 
do jeito como se encostavam em meu rosto, quando ele cortou 
meu cabelo. Sempre. Do demo: digo? Com que entendimento eu 
entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O senhor 
vá ouvindo. Outras artes vieram depois. 
Assim mesmo, naquele estado exaltado em que andei, 
concebi fundamento para um conselho: na jornada por diante, a 
gente tinha de deixar duma bando o rio, ir passar a Serra-da- 
Onça e entestar com a travessia do Jequitaí, por onde podia ter 
tropa de soldados; mais ajuizado não seria se enviar só um, até lá, 
espiar o que se desse e colher outras informações? 
Titão Passos era homem ponderado em simples, achou boa 
a minha razão. Todos acharam. Aquela munição era de ida 
urgente, mas também valia mais que ouro, que sangue, se carecia 
de todo cuidado. Fui louvado e dito valedor, certo nas idéias. Ao 
senhor confesso, desmedi satisfação, no ouvir aquilo – que a 
assoprada na vaidade é a alegria que dá chama mais depressa e 
mais a ar. Mas logo me reduzi, atinando que minha opinião era só 
pelo desejo encoberto de que a gente pudesse ficar mais tempo 
ali, naquele lugar que me concedia tantos regalos. Assim um rôo 
de remorso: tantos perigos ameaçando, e a vida tão séria em 
cima, e eu mexendo e virando por via de pequenos prazeres. 
Sempre fui assim, descabido, desamarrado. Mas meu querer 
surtiu efeito, novas ordens. Para assuntar e ver com ver, o 
Jenolim saiu em rumo do Jequitaí, de sua Lagoa-Grande; e, com 
a mesma tenção, rebuçado viajou o Acrísio, até Porteiras e o 
Pontal da Barra, com todos os ouvidos bem abertos. E nós 
ficamos esperando a volta deles, cinco dias lá, com grande 
regozijo e repouso, na casa do preto Pedro Segundo de Rezende, 
que era posteiro em terras da Fazenda São Joãozinho, de um 
coronel Juca Sá. Até hoje, não me arrependo retratando? Os dias 
que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em 
horas, andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas 
dos tantos coqueiros macaúbas, e caçando, cortando palmito e 
tirando mel da abelha-depoucas-flores, que arma sua cera cor-derosa. 
Tinha a quantidade de pássaros felizes, pousados nas croas 
e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o 
derradeiro final, nunca mais eu vi o Reinaldo tão sereno, tão 
alegre. E foi ele mesmo, no cabo de três dias, quem me 
perguntou: – “Riobaldo, nós somos amigos, de destino fiel, 
amigos?” – “Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigo seu!” – 
eu respondi. Os afetos. Doçura do olhar dele me transformou 
para os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do 
mundo. Como no tempo em que tudo era falante, ai, sei. De 
manhã, o rio alto branco, de neblim; e o ouricuri retorce as 
palmas. Só um bom tocado de viola é que podia remir a vivez de 
tudo aquilo. 
Dos outros, companheiros conosco, deixo de dizer. 
Desmexi deles. Bons homens no trivial, cacundeiros simplórios 
desse Norte pobre, uns assim. Não por orgulho meu, mas antes 
por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de 
criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste jeito. 
Mas Titão Passos, digo, apreciei; porque o que salvava a feição 
dele era ter o coração nascido grande, cabedor de grandes 
amizades. Ele achava o Norte natural. Quando que 
conversamos, perguntei a ele se Joca Ramiro era homem bom. 
Titão Passos regulou um espanto: uma pergunta dessa decerto 
que nunca esperou de ninguém. Acho que nem nunca pensou 
que Joca Ramiro pudesse ser bom ou ruim: ele era o amigo de 
Joca Ramiro, e isso bastava. Mas o preto de-Rezende, que estava 
perto, foi quem disse, risonho bobeento: – “Bom? Um 
messias!...” O senhor sabe: preto, quando é dos que encaram de 
frente, é a gente que existe que sabe ser mais agradecida. Ao 
que, em tanto, no ouvir falar de Joca Ramiro, o Reinaldo se 
aproximou. Parecia que ele não gostava de me ver em comprida 
conversa amiga com os outros, ficava quasezinho amuado. Com 
o tempo dos dias, fui conhecendo também que ele não era 
sempre tranqüilo igual, feito antes eu tinha pensado. Ah, ele 
gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que 
não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de 
opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, 
quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem, 
sem tal nem razão, moleza no diário, coisa que até me parece ser 
parente da preguiça. E ele, o Reinaldo, era tão galhardo garboso, 
tão governandor, assim no sistema pelintra, que preenchia em 
mim uma vaidade, de ter me escolhido para seu amigo todo leal. 
Talvez também seja. Anta entra n’água, se rupeia. Mas, não. Era 
não. Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu 
fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e 
do sonho de minhas noites. O senhor entenderá, agora ainda não 
me entende. E o mais, que eu estava criticando, era me a mim 
contando logro – jigajogas. 
– “Você vai conhecer em breve Joca Ramiro, Riobaldo...” 
– o Reinaldo veio dizendo. – “Vai ver que ele é o homem que 
existe mais valente!” Me olhou, com aqueles olhos quando doces. 
E perfez: – “Não sabe que quem é mesmo inteirado valente, no 
coração, esse também não pode deixar de ser bom?!” Isto ele 
falou. Guardei. Pensei. Repensei. Para mim, o indicado dito, não 
era sempre completa verdade. Minha vida. Não podia ser. Mais 
eu pensando nisso, uma hora, outra hora. Perguntei ao compadre 
meu Quelemém. – “Do que o valor dessas palavras tem dentro” 
– ele me respondeu – “não pode haver verdade maior...” 
Compadre meu Quelemém está certo sempre. Repenso. E o 
senhor no fim vai ver que a verdade referida serve para aumentar 
meu pejo de tribulação. 
Fim do bom logo vem, mas. O Acrísio retornou: 
pasmaceira na barra do rio, a nenhuma novidade. Retornou o 
Jenolim: o Jequitaí estava passável. E saímos simples com a 
tropa, sem menos dessossego nem mais receio, serra para cima, 
pelos caminhos tencionados. Daí, hora grave me veio, com três 
léguas de marcha. Mazelas de mais pesares. E donde menos temi, 
no pior me vi. Titão Passos começou a me perguntar. 
Titão Passos era homem liso bom; me fazia as perguntas 
com natureza tão honrosa, que eu não tinha ânimo de mentir, 
nem de me caber calado. Nem podia. De lá mais adiante, 
atravessando o Jequitaí, tudo ia se abrir a ser para nós todos 
campo de fogo e aos perigos de mortes. As turmas de cavaleiros 
de Zé Bebelo campeavam naquele país, caçando gente, sopitando, 
vigiando. Do povo morador, não faltava quem, desconfiando 
de nós, mandasse a eles envio de denúncia, pois todos queriam 
aproveitar a ocasião para se acabar com os jagunços, para 
sempre. – “Morrer, morrer, a gente sem luxo se cede...” – o 
Reinaldo disse. – “... Mas a munição tem de chegar em poder de 
loca Ramiro!” Eu podia pensar tranqüilo na minha morte por ali? 
Podia pensar no Reinaldo morrendo? E o que Titão Passos 
queria saber era tudo que eu soubesse, a respeito de Zé Bebelo, 
das malasartes que ele usava em guerra, de seus aprovados 
costumes, suas forças e armamentos. Tudo o que eu falasse, 
podia ajudar. O saber de uns, a morte de outros. Para melhor 
pensar, fui mal-respondendo, me calando, falando o que era 
vasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o que eu mesmo quisesse. 
Mas, traição, não. 
Não. Nem era por retente de dever, por lei honesta 
nenhuma, ou floreado de noção. Mas eu não podia. Tudo 
dentro de mim não podia. Dou vendido em pecas riquezas o 
que eu cansei naquela hora, minhas caras deviam de estar 
pegando fogo. Que se eu contasse, não contasse, essas ânsias. 
Eu não podia, como um bicho não pode deixar de comer a 
avistada comida, como uma bicha-fêmea não pode fugir 
deixando suas criazinhas em frente da morte. Eu devia? Não 
devia? Vi vago o adiante da noite, com sombras mais 
apresentadas. Eu, quem é que eu era? De que lado eu era? Zé 
Bebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De 
ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria 
querer contar. 
Falei e refalei inútil, consoante; e quer ver que Titão Passos 
aceitava aquilo assim? Me acreditava. Lembrei que ainda tinha, 
guardada estreito comigo, aquela lista, de nomes e coisas, de Zé 
Bebelo, num caderno. Alguma valia aquilo tinha? Não sei, sabia 
não. Andando, peguei, oculto, rasguei em pedacinhos, taquei 
tudo no arrojo dum riacho. Aquelas águas me lavavam. E, de 
tudo que a respeito do resto eu sabia, cacei em mim um esforço 
de me completo me esquecer. Depois, Titão Passos disse: – 
“Você pode ser de muita ajuda. Se a gente topar com a 
zebelância, você entra de bico – fala que é um deles, que esta 
tropa você está levando...” Com isso, me conformei. Aos poucos, 
mesmo compunha uma alegria, de ser capaz de auxiliar e pôr 
efeito, como o justo companheiro. A que, no bando de loca 
Ramiro, eu havia de prestar toda a minha diligência e coragem. E 
nem fazia mal que eu não relatasse a respeito de Zé Bebelo mais, 
porquanto o prejuízo que disso se tivesse, por ele eu também 
padecia e pagava. No caso, em vista de que agora eu estava 
também sendo um ramiro, fazia parte. De pensar isso, eu 
desfrutei um orgulho de alegria de glória. Mas ela durou curta. 
Oi, barros de água do Jequitaí, que passaram diante de minha 
fraqueza. 
Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: – “Tudo 
temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia de que você 
fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar 
imediato, por culpas de desertor...” Ouvi retardado, não pude dar 
resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que 
maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo 
lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia me levando sem 
data. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem 
diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas 
é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já 
principia com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o 
aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver 
sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo. 
Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas – que de repente 
podia cursar por ali gente zebebela armada, me pegavam: por al, 
por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, sem salves, 
atirado para morrer com o chão na mão. Devia de me lembrar de 
outros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódios daqueles 
homens querentes de ver sangues e carnes, das maldades deles 
capazes, demorando vingança com toda judiação. Não pude, não 
pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um 
vapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto. 
E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo: 
grande vão eu atravessava. 
A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de 
mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais 
gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam 
mais de mim, de minha companhia. Por quê? Nunca falo queixa, 
de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha 
alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o 
Reinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: – 
“Riobaldo, puxa as orelhas do teu jumento...” Mas amuado eu 
não estava. Respondi somente: – “Amigo...” – e não disse nem 
mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de 
sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me 
ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas 
estreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a 
tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como 
eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo 
algum desespero. 
Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que 
alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo 
enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o 
gole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha de ouro. E 
conheci o que é socorro. 
Com o senhor me ouvindo, eu deponho. Conto. Mas 
primeiro tenho de relatar um importante ensino que recebi do 
compadre meu Quelemém. E o senhor depois verá que naquela 
minha noite eu estava adivinhando coisas, grandes idéias. 
Compadre meu Quelemém, muitos anos depois, me 
ensinou que todo desejo a gente realizar alcança – se tiver ânimo 
para cumprir, sete dias seguidos, a energia e paciência forte de só 
fazer o que dá desgosto, nojo, gastura e cansaço, e de rejeitar 
toda qualidade de prazer. Diz ele; eu creio. Mas ensinou que, 
maior e melhor, ainda, é, no fim, se rejeitar até mesmo aquele 
desejo principal que serviu para animar a gente na penitência de 
glória. E dar tudo a Deus, que de repente vem, com novas coisas 
mais altas, e paga e repaga, os juros dele não obedecem medida 
nenhuma. Isso é do compadre meu Quelemém. Espécie de reza? 
Bem, rezar, aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem 
pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de se ter 
algum costume. Mas foi aquele grão de idéia que me acuculou, 
me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos 
pouquinhos, é que a gente abre os olhos; achei, de per mim. E 
foi: que, no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por forte que 
fosse o vício de minha vontade. E não ia dormir, nem descansar 
sentado nem deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, 
nem conversa, o que de tudo mais prezava. Resolvi aquilo, e me 
alegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhas pernas. O 
medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa tapera, nas 
Lagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons. O 
que resolvi, cumpri. Fiz. 
Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras 
aragens. Cabeça alta – digo. Esta vida está cheia de ocultos 
caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me 
entenderá. Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. O que 
há, que se diz e se faz – que qualquer um vira brabo corajoso, se 
puder comer cru o coração de uma onça-pintada. É, mas, a 
onça, a pessoa mesma é quem carece de matar; mas matar à mão 
curta, a ponta de faca! Pois, então, por aí se vê, eu já vi: um 
sujeito medroso, que tem muito medo natural de onça, mas que 
tanto quer se transformar em jagunço valentão – e esse homem 
afia sua faca, e vai em soroca, capaz que mate a onça, com muita 
inimizade; o coração come, se enche das coragens terríveis! O 
senhor não é bom entendedor? Conto. De não pitar, me vinham 
uns rangidos repentes, feito eu tivesse ira de todo o mundo. 
Agüentei. Sobejante saí caminhando, com firmes passos: bis, 
tris; ia e voltava. Me deu vontade de beber a da garrafa. Rosnei 
que não. Andei mais. Nem não tinha sono nenhum, desmenti 
fadiga. Reproduzi de mim outro fôlego. Deus governa grandeza. 
Medo mais? Nenhum algum! Agora viesse corja de zebebelos ou 
tropa de meganhas, e me achavam. Me achavam, ah, bastantemente. 
Eu aceitava qualquer vuvu de guerra, e ia em cima, 
enorme sangue, ferro por ferro. Até queria que viessem, duma 
vez, pelo definitivo. Aí, quando os passos escutei, vi: era o 
Reinaldo, que vindo. Ele queria direto, comigo se conferir. 
Eu não podia tão depressa fechar meu coração a ele. Sabia 
disso. E ele curtia um engano: pensou que eu estava amofinado, e 
eu não estava. O que era sisudez de meu fogo de pessoa, ele 
tomou por mãmolência. Queria me trazer consolo? – “Riobaldo, 
amigo...” – me disse. Eu estava respirando muito forte, com 
pouca paciência para o trivial; pelo tanto respondi alguma palavra 
só. Ele, em hora comum, com muito menos que isso a gente 
marfava. Na vez, não se ofendeu. – “Riobaldo, não calculei que 
você era genista...” – ainda gracejou. Dei a nenhuma resposta. 
Momento calados ficamos, se ouvia o corrute dos animais, que 
pastavam à bruta no capim alto. O Reinaldo se chegou para perto 
de mim. Quanto mais eu tinha mostrado a ele a minha dureza, 
mais amistoso ele parecia; maldando, isso pensei. Acho que olhei 
para ele com que olhos. Isso ele não via, não notava. Ah, ele me 
queria-bem, digo ao senhor. 
Mas, graças-a-deus, o que ele falou foi com a sucinta voz: 
– “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de 
contar a você, e que esconder mais não posso... Escuta: eu não 
me chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, 
inventado por necessidade minha, carece de você não me 
perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete 
voltas – se diz. A vida nem é da gente...” 
Ele falava aquilo sem rompante e sem entonos, mais antes 
com pressa, quem sabe se com tico de pesar e vergonhosa 
suspensão. 
– “Você era menino, eu era menino... Atravessamos o rio 
na canoa... Nos topamos naquele porto. Desde aquele dia é que 
somos amigos.” Que era, eu confirmei. E ouvi: 
– “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... 
Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente 
estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, 
Riobaldo...” 
Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em 
minha mente as palavras, modo de me acostumar com aquilo. E 
ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. 
Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de 
grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos 
– logo eu disse: – “Diadorim... Diadorim!”com uma força de 
afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí 
tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida: 
eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me 
perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam. Diadorim. 
Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali, para o Canabrava e o Barra. 
Aquele dia fora meu, me pertencia. Íamos por um plaino de 
varjas; lua lá vinha. Alimpo de lua. Vizinhança do sertão – esse 
Alto-Norte brabo começava. – Estes rios têm de correr bem! – 
eu de mim dei. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo 
certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada. 
Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome 
dele – foi como dissesse notícia do que em terras longes se 
passava. Era um nome, ver o quê. Que é que é um nome? Nome 
não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi 
curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de 
alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o 
ele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro 
pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não 
queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade 
dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, 
feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. 
Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até 
aquela-alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de 
voar, mas bate suas asinhas no chão. 
Hoje em dia, verso isso: emendo e comparo. Todo amor 
não é uma espécie de comparação? E como é que o amor 
desponta. Minha Otacília, vou dizer. Bem que eu conheci 
Otacília foi tempos depois; depois se deu a selvagem desgraça, 
conforme o senhor ainda vai ouvir. Depois após. Mas o primeiro 
encontro meu com ela, desde já conto, ainda que esteja contando 
antes da ocasião. Agora não é que tudo está me subindo mais 
forte na lembrança? Pois foi. Assim que desta banda de cá a 
gente tinha padecido toda resma de reveses; e que soubemos que 
os judas também tinham atravessado o São Francisco; então nós 
passamos, viemos procurar o poder de Medeiro Vaz, única 
esperança que restava. Nos gerais. Ah, buriti cresce e merece é 
nos gerais! Eu vinha com Diadorim, com Alaripe e com João Vaqueiro 
mas Jesualdo, e o Fafafa. Aos Buritis-Altos, digo ao 
senhor – vereda acima – até numa Fazenda Santa Catarina se 
chegar. A gente tinha ciência de que o dono era favorável do 
nosso lado, lá se devia de esperar por um recado. Fomos 
chegando de tardinha, noitinha já era, noite, noite fechada. Mas o 
dono não estava, não, só ia vir no seguinte, e sor Amadeu o graça 
dele era. Quem acudiu e falou foi um velhozinho, já santificado 
de velho, só se apareceu no parapeito da varanda – parece que 
estava receoso de nossa forma; não solicitou de se subir, nem 
mandou dar nada de comer. mas disse licença d’a gente dormir 
na rebaixa do engenho. Avô de Otacília esse velhinho era, se 
chamava Nhô Vô Anselmo. Mas, em tanto que ele falava, e 
mesmo com a confusão e os latidos de muitos cachorros, eu 
divulguei, qual que uma luz de candeia mal deixava, a doçura de 
uma moça, no enquadro da janela, lá dentro. Moça de carinha 
redonda, entre compridos cabelos. E, o que mais foi, foi um 
sorriso. Isso chegasse? Às vezes chega, às vezes. Artes que morte 
e amor têm paragens demarcadas. No escuro. Mas senti: me 
senti. Águas para fazerem minha sede. Que jurei em mim: a Nossa 
Senhora um dia em sonho ou sombra me aparecesse, podia ser 
assim – aquela cabecinha, figurinha de rosto, em cima de alguma 
curva no ar, que não se via. Ah, a mocidade da gente reverte em 
pé o impossível de qualquer coisa! Otacília. O prêmio feito esse 
eu merecia? 
Diadorim-dirá o senhor: então, eu não notei viciice no 
modo dele me falar, me olhar, me querer-bem? Não, que não – 
fio e digo. Há-de-o, outras coisas... O senhor duvida? Ara, 
mitilhas, o senhor é pessoa feliz, vou me rir... Era que ele gostava 
de mim com a alma; me entende? O Reinaldo. Diadorim, digo. 
Eli, ele sabia ser homem terrível. Suspa! O senhor viu onça: boca 
de lado e lado, raivável, pelos filhos? Viu rusgo de touro no alto 
do campo, brabejando; cobra jararacuçu emendando sete botes 
estalados; bando doido de queixadas se passantes, dando febre 
no mato? E o senhor não viu o Reinaldo guerrear!... Essas coisas 
se acreditam. O demônio na rua, no meio do redemunho... Falo! 
Quem é que me pega de falar, quantas vezes quero?! 
Assim ao feito quando logo que desapeamos no acampo do 
Hermógenes; e quando! Ah, lá era um cafarnaum. Moxinife de 
más gentes, tudo na deslei da jagunçagem bargada. Se estavam 
entre o Furado-de-São-Roque e o Furado-do-Sapo, rebeira do 
Ribeirão da Macaúba, por fim da Mata da Jaíba. A lá chegamos 
num de-tardinha. Às primeiras horas, conferi que era o inferno. 
Aí, com três dias, me acostumei. O que eu estava meio transtornado 
da viagem. 
A ver o que eu contava: quem não conhecia o Reinaldo, 
ficou pronto conhecendo. Digo, Diadorim. Nós tínhamos em 
fim chegado, sem soberba nenhuma, contentes por topar com 
tanto número de companheiros em armas: de todos, todos eram 
garantia. Entramos no meio deles, misturados, para acocorar e 
prosear caçamos um pé de fogo. Novidade nenhuma, o senhor 
sabe – em roda de fogueira, toda conversa é miudinhos tempos. 
Algum explicava os combates com Zé Bebelo, nós o nosso: 
roteiro todo da viagem, aos poucos para se historiar. Mas 
Diadorim sendo tão galante moço, as feições finas caprichadas. 
Um ou dois, dos homens, não achavam nele jeito de macheza, 
ainda mais que pensavam que ele era novato. Assim loguinho, 
começaram, aí, gandaiados. Desses dois, um se chamava de alcunha 
o Fancho-Bode, tratantaz. O outro, um tribufu, se dizia 
Fulorêncio, veja o senhor. Mau par. A fumaça dos tições deu 
para a cara de Diadorim – “Fumacinha é do lado – do 
delicado...” – o Fancho-Bode teatrou. Consoante falou soez, 
com soltura, com propósito na voz. A gente, quietos. Se vai lá 
aceitar rixa assim de graça? Mas o sujeito não queria pazear. Se 
levantou, e se mexeu de modo, fazendo xetas, mengando e 
castanhetando, numa dança de furta-passo. Diadorim se esteve 
em pé, se arredou de perto da fogueira; vi e mais vi: ele 
apropriar espaços. Mas esse Fancho-Bode era abusado, vinha 
querer dar umbigada. E o outro, muito comparsa, lambuzante 
preto, estumou, assim como fingiu falsete, cantarolando pelo 
nariz: 
Pra gauder, Gaudêncio... 
E aqui pra o Fulorêncio?... 
Aquilo lufou! De rempe, tudo foi um ão e um cão, mas, o 
que havia de haver, eu já sabia... Oap!: o assoprado de um 
refugão, e Diadorim entrava de encontro no Fancho-Bode, 
arrumou mão nele, meteu um sopapo: – um safado nas queixadas 
e uma sobarbada – e calçou com o pé, se fez em fúria. Deu com 
o Fancho-Bode todo no chão, e já se curvou em cima: e o punhal 
parou ponta diantinho da goela do dito, bem encostado no gogó, 
da parte de riba, para se cravar deslizado com bom apoio, e o 
pico em pele, de belisco, para avisar do gosto de uma boa-morte; 
era só se soltar, que, pelo peso, um fato se dava. O fechabrir de 
olhos, e eu também tinha agarrado meu revólver. Arre, eu não 
queria presumir de prevenir ninguém, mais queria mesmo era 
matar, se carecesse. Acho que notaram. Ao que, em hora justa e 
certa, nunca tive medo. Notaram. Farejaram pressentindo: como 
cachorro sabe. Ninguém não se meteu, pois desapartar assim é 
perigoso. Aquele Fulorêncio instantâneo esbarrou com os 
acionados indecentes, me menos olhou uma vez, daí não quis me 
encarar mais. – “Coca, bronco!” – Diadorim mandou o Fancho 
se levantasse: que puxasse também a faca, viesse melhor se 
desempenhar! Mas o Fancho-Bode se riu, amistoso safado, como 
tudo tivesse constado só duma brincadeira: – “Oxente! Homem 
tu é, manovelho, patrício!” Estava escabreado. Dava nojo, ele, 
com a cara suja de maus cabelos, que cresciam por todo lado. 
Guardei meu revólver, respeitosamente. Aqueles dois homens 
não eram medrosos; só que não tinham os interesses de morrer 
tão cedo assim. Homem é rosto a rosto; jagunço também: é no 
quem-com-quem. E eles dois não estavam ali muito estimados. 
Comprazendo conosco, outros companheiros deram ar de 
amizade. E mesmo, por gracejo cordial, o Fulorêncio me 
perguntou: – “Mano Velho, me compra o que eu sonhei hoje?” 
Divertindo, também, para o ar dei resposta: – “Só se for com 
dinheiro da mãe do jacaré...” Todos riram. De mim não riram. O 
Fulorêncio riu também, mas riso de velho. Cá pensei, silencioso, 
silenciosinho: “Um dia um de nós dois agora tem de comer o 
outro... Ou, se não, fica o assunto para os nossos netos, ou para 
os netos dos nossos filhos...” Tudo em mais paz, me ofereceram: 
bebi da januária azulosa – um gole me foi; cachaça muito 
nomeada. Aquela noite, dormi conseguintemente. 
Sempre disse ao senhor, eu atiro bem. 
E esses dois homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a 
bota no primeiro fogo que se teve com uma patrulha de Zé 
Bebelo. Por aquilo e isso, alguém falou que eu mesmo tinha 
atirado nos dois, no ferver do tiroteio. Assim, por exemplo, no 
circundar da confusão, o senhor sabe: quando bala raciocina. 
Adiante falaram que eu aquilo providenciei, motivo de evitar que 
mais tarde eles quisessem vir com alguma tranquibérnia ou 
embusteria, em fito de tirarem desforra. Nego isso, não é 
verdade. Nem quis, nem fiz, nem praga roguei. Morreram, 
porque era seu dia, deles, de boa questão. Até, o que morreu foi 
só um. O outro foi pego preso – eu acho – deve de ter acabado 
com dez anos em alguma boa cadeia. A cadeia de Montes Claros, 
quem sabe. Não sou assassino. Inventaram em mim aquele falso, 
o senhor sabe como é esse povo. Agora, com uma coisa, eu 
concordo: se eles não tivessem morrido no começo, iam passar o 
resto do tempo todo me tocaiando, mais Diadorim, para com a 
gente aprontarem, em ocasião, alguma traição ou maldade. Nas 
estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas 
constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito 
e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, 
no costumeiro real, esses floreados não servem: o melhor 
mesmo, completo, é o inimigo traiçoeiro terminar logo, bem 
alvejado, antes que alguma tramóia perfaça! Também, sei o que 
digo: em toda a parte, por onde andei, e mesmo sendo de ordem 
e paz, conforme sou, sempre houve muitas pessoas que tinham 
medo de mim. Achavam que eu era esquisito. 
Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem: que vivo 
ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e 
gatilho. Por meu bom, de desde mocinho. Alemão Vupes pouco 
me ensinou. Naquele tempo, já eu era. Dono de qualquer cano 
de fogo: revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno, trabuco, 
clavinote ou rifle. Honras não conto alto, porque acho que acerto 
natural assim é de Deus, dom dado. Pelo que compadre meu 
Quelemém me explicou: que eu devo de, noutra vida, por certo 
em encarnação, ter trabalhado muito em mira em arma. Seja? 
Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na idéia. O 
menos é no olho, compasso. Aquele Vupes era profeta? Certa 
vez, entrei num salão, os companheiros careciam que eu jogasse, 
mor de inteirar a parceiragem. Bilhar – quero dizer. Eu não sabia, 
total. Tinha nunca botado a mão naquilo. – “Faz mal nenhum” – 
o Advindo disse. – “Você forma comigo, que sou tão no taco. 
João Nonato, com o Escopil, jogam de contra-lado...” Aceitei. 
Combinado ficou que o Advindo pudesse me superintender e 
pronunciar cada toque, com palavras e noção de conselhos, mas 
sem licença de apoiar mão em minha mão ou braço, nem 
encostar dedo no taco. É de ver que, mesmo do jeito, não 
bobeei um ceitil: o Advindo me lecionava o rumo medido da 
vantagem, e eu encurvava o corpo, amolecia barriga e taqueava 
o meu chofre, querendo aquilo no verde . era o justo repique – 
umas carambolas de todos estalos, retruque e recompletas, com 
recuanço, ladeio perfeito, efeito produzido e reproduzido; por 
fim, eu me reprazia mais escutando rebrilhar o concoco 
daquelas bolas umas nas outras, deslizadas... E pois, conforme 
dizia, por meu tiro me respeitavam, quiseram pôr apelido em 
mim: primeiro, Cerzidor, depois Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas 
firme não pegou. Em mim, apelido quase que não pegava. Será: 
eu nunca esbarro pelo quieto, num feitio? 
No que foi, no que me vi, no acampo do Hermógenes. 
Cabralhada. Tiba. De boa entrada, ao que me gasturei, no 
vendo. Aqueles eram mais de cento e meio, sofreúdos, que 
todos curtidos no jagunçar, rafaméia, mera gente. Azombado, 
que primeiro até fiquei, mas daí quis assuntação, achei, a meu 
cômodo. Assim, isto é, me acostumei com meiosó meu coração, 
naquele arranchamento. Propriamente, pessoal do Hermógenes. 
Digo: bons e maus, uns pelos outros, como neste mundo se pertence. 
Por um que ruim seja, logo mais para adiante se encontra 
outro pior. E a situação nossa era de guerra. Mesmo com isso, a 
peito pronto, ninguém se perturbou com perigos de tanta 
gravidade. Se vivia numa jóvia, medindo mãos, em vavavá e 
conversa de festa, tomando tempo. Aqueles não 
desamotinavam. A ajunta, ali, assim, de tantos atrás do ar, na vagagem: 
manga de homens, por zanzar ou estar à-toa ou parar 
formando rodas; ou uns dormindo, como boi malha; ou 
deitados no chão sem dormir – só aboboravam. Assaz toda 
espécie de roupa, divulguei: até sujeito com cinta larga de lã 
vermelha; outro com chapéu de lebre e colete preto de fino 
pano, cidadão; outros com coroça e bedém, mesmo sem chuva 
nenhuma; só que de branco vestido não se tinha: que com terno 
claro não se guerreia. Mas jamais ninguém ficasse nu-de-Deus 
ou indecente descomposto, no meio dos outros, isso não e não. 
Andando que sentados, jogando jogos, ferrando queda de braço, 
assoando o nariz, mascando fumo forte e cuspindo longe, e 
pitando, picando ou dedilhando fumo no covo da mão, com 
muita demora; o mais, sempre no proseio. Aventes baldrocavam 
suas pequenas coisas, trem objeto que um tivesse e menos 
quisesse, que custou barato. E ninguém furtava! Furtasse, era 
perigar morte. Cantavam cantarol, uns, aboiavam sem bois. Ou 
cuidavam do espírito da barriga. O serviço que cumpriam era 
alimpar as armas bem – marcadas as cruzes nas feições das 
coronhas. E tudo o mais que faziam, que fosse coisa de sem-oque-
fazer. Por isso – se dizia – que ali corresse muita 
besouragem, de falação mal, de rapa-tachos. Tinham lá até 
cachorros, vadiando geral, mas o dono de cada um se sabia; 
convinha não judiar com cão, por conta do dono. 
Ao às-tantas me aceitaram; mas meio atalhados. Se o que 
fossem mesmo de constância assim, por tempero de propensão; 
ou, então, por me arrediarem, porquanto me achando deles 
diverso? Somente isto nos princípios. Sendo que eu soube que 
eu era mesmo de outras extrações. Semelhante por este 
exemplo, como logo entendi: eles queriam completo ser 
jagunços, por alcanço, gala mestra; conforme o que avistei, 
seguinte. Pois não era que, num canto, estavam uns, 
permanecidos todos se ocupando num manejo caprichoso, e 
isto que eles executavam: que estavam desbastando os dentes 
deles mesmos, aperfeiçoando os dentes em pontas! Se me 
entende? Senhor ver, essa atarefação, o tratear, dava alojo e 
apresso, dava até aflição em – aflito, abobante. Os que lavravam 
desse jeito: o Jesualdo – mocinho novo, com sua simpatia –, o 
Araruta e o Nestor; os que ensinavam a eles eram o Simião e o 
Acauã. Assim um uso correntio, apontar os dentes de diante, a 
poder de gume de ferramenta, por amor de remedar o aguçoso 
de dentes de peixe feroz do rio de São Francisco – piranha 
redoleira, a cabeça-de-burro. Nem o senhor não pense que para 
esse gasto tinham instrumentos próprios, alguma liminha, ou 
ferro lixador. Não: aí era à faca. O Jesualdo mesmo se fazia, 
fazia aquilo sentado num calcanhar. Aviava de encalcar o corte 
da faca nas beiras do dente, rela releixo, e batia no cabo da faca, 
com uma pedra, medidas pancadas. Sem espelho, sem ver; ao 
tanto, que era uma faca de cabo de niquelado. Ah, no abre-boca, 
comum que babando, às vezes sangue babava. Ao mais gemesse, 
repuxando a cara, pelo que verdadeiro muito doía. Agüentava. 
Assim esquentasse demais; para refrescar, então ele bochechava 
a breve, com um caneco de água com pinga. Os outros dois, 
também. O Araruta procedia sozinho, igual, batendo na faca 
com a prancha de outra. O Nestor, não: para ele, o Simião, com 
um martelinho para os golpes, era quem raspava; mas decerto o 
Nestor ao outro para isso algum tanto pagasse. Abrenunciei. – 
“Arrenego!” – eu disse. – “Deveras? Então, mano-velho, pois tu 
não quer?” – o Simão, em gracejo, me perguntou. Me fez careta; 
e – acredite o senhor: ele, que exercia lâmina nos do outro, ele 
não possuía, próprio, dente mais nenhum nas gengivas – 
conforme aquela vermelha boca banguela toda abriu e me 
mostrou. Repontei: – “Eu acho que, para se ser valente, não 
carece de figurativos...” O Acauã, que já era bom conhecido 
meu, assim mesmo achou de se reagir: – “São gostos...” Mas, 
um outro, que chegando veio, falou o mais seco: – “Tudo na 
vida são gostos, companheiro. Mas não será o meu!” Olhei para 
esse, que me deu o apoio. E era um Luís Pajeú – com a facapunhal 
do mesmo nome, e ele sendo de sertão do mesmo nome, 
das comarcas de Pernambuco. Sujeito despachado, moreno bem 
queimado, mas de anelados cabelos, e com uma coragem 
terrivelmente. Ah, mas o que faltava, lá nele, que ele mais não 
tinha, era uma orelha, – que rente cortada fora, pelo sinal. Onde 
era que o Luís Pajeú havia de ter deixado aquela orelha? – “Será 
gosto meu não, de descasear dentaduras...” – conciso declarou, 
falava meio cantado, mole, fino. Alto e forte, foi outro falar, de 
outro, que no instante também ouvi: – “Uê, em minha terra, se 
afia guampa, é touro, ixi!” E esse um, trolado demais franco, e 
desempenado cavaleiro, era o Fafafa. Fiz conhecença. Dele 
tenho, para mais depois. 
Ao que lá não faltava a farta comida, pelo que logo vi. 
Gêneros e bebidas boas. De donde vinha tudo, em redondezas 
tão pobrezinhas, a gente parando assim quase num deserto? E a 
munição, tanta, que nem precisaram da que tínhamos trazido, e 
que foi levada mais adiante, para os escondidos de Joca Ramiro, 
perto do arraial do Bró? E a jorna, para satisfazer àquela 
cabroeira vivente, que estavam ali em seu emprego de cargo? Ah, 
tinham roubado, saqueado muito, grassavam. A sebaça era a 
lavoura deles, falavam até em atacar grandes cidades. Foi ou não 
foi? 
Mas, mire e veja o senhor: nas eras de 96, quando os 
serranos cismaram e avançaram, tomaram conta de São 
Francisco, sem prazo nem pena. Mas, nestes derradeiros anos, 
quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá, quase 
com homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de São Francisco 
soube, se reuniram, e deram fogo de defesa: diz-que durou 
combate por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na 
boca das ruas – com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores 
cortadas, de través – brigaram como boa população! Daí, aqueles 
retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda, 
conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns 
soldados, cercados numas duas ou três casas e um quintal, 
guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque antes o Major 
Amaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele. 
Andalécio – o que, de nome real: Indalécio Gomes Pereirahomem 
de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava 
sempre com tremores: de quando, no tiroteio de inteira noite, 
Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz: – “Sai pra 
fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!...” Tudo 
gelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socorro, para salvar o 
Major, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo às 
pressas de Januária, com punhadão de outros jagunços, de 
fazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram, 
mandaram desenterrar, para contar bem, mais de sessenta 
mortos, uns quatorze juntos numa cova só! Essas coisas já não 
aconteceram mais no meu tempo, pois por aí eu já estava retirado 
para ser criador, e lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi 
ainda atual agora, recentemente, quase, isto é; foi logo de se 
emendar depois do barulhão em Carinhanha – mortandades: 
quando se espirrou sangue por toda banda, o senhor sabe: 
“Carinhanha é bonitinha...” – uma verdade que barranqueiro 
canta, remador. Carinhanha é que sempre foi de um homem de 
valor e poder: o coronel João Duque – o pai da coragem. 
Antônio Dó eu conheci, certa vez, na Vargem Bonita, tinha uma 
feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupo 
calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de 
jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. 
Acaba? 
Atinei mal, no começo, com quem era que mandava em 
nós todos. O Hermógenes. Mas, perto duns cinqüenta – nesse 
meio o Acauã, Simão, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa – 
obedeciam a João Goanhá, eram dele. E tinha um grupo de 
brabos do Ricardão. Onde era que estava o Ricardão? Reunindo 
mais braços-de-armas, beira da Bahia. Se esperava também a 
vinda de Só Candelário, com os seus. Se esperava o chefe 
grande, acima de todos – Joca Ramiro – falado aquela hora em 
Palmas. Mas eu achava aquilo tudo dando confuso. Titão 
Passos, cabo-de-turma com poucos homens à mão, era 
nãostante muito respeitado. E o sistema diversiava demais do 
regime com Zé Bebelo. Olhe: jagunço se rege por um modo 
encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim 
– sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum 
falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e 
certo, com semelho, mal comparando, com o governo de bando 
de bichos – caititu, boi, boiada, exemplo. E, de coisas, faziam 
todo segredo. Um dia, foi ordem: ajuntar todos os animais, de 
sela e de carga, iam ser levados para amoitamento e pasto, entre 
serras, no Ribeirão Poço Triste, num varjal. Para mim, até o 
endereço que diziam, do lugar, devia de ser mentira. Mas tive de 
entregar meu cavalo, completo no contragosto. Me senti, a pé, 
como sem segurança nenhuma. E tem as pequenas coisas que 
aperreiam: enquanto estava com meu animal, eu tinha a 
capoteira, a bolsa da sela, os alforjes; podia guardar meus trecos. 
De noite, dependurava a sela num galho de árvore, botava por 
debaixo dela o dobro com as roupas, dormia ali perto, em paz. 
Agora, eu ficava num descômodo. Carregar os trens não podia – 
chegava o peso das armas, e das balas e cartuchame. Perguntei a 
um, onde era que tudo se depositava. – “Eh, bereu... Bota em 
algum lugar... Joga fora... Oxe, tu carrega ouro nesses dobros?...” 
Quê que se importavam? Por tudo, eram fogueiras de se 
cozinhar, fumaça de alecrim, panela em gancho de mariquita, e 
cheiro bom de carne no espeto, torrada se assando, e batatas e 
mandiocas, sempre quentes no soborralho. A farinha e 
rapadura: quantidades. As mantas de carne-ceará. Ao tanto que a 
carne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíam alguns e 
retornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos misturavam 
a jacuba pingando no coité um dedo de aguardente, eu nunca 
tinha avistado ninguém provar jacuba assim feita. Os usares! A 
ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão, ajuntava 
ali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedação de carne 
escorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a ponta do 
facão, só pelo chiar. Disso, definitivo não gostei. A saudade 
minha maior era de uma comidinha guisada: um frango com 
quiabo e abóbora-d’água e caldo, um refogado de caruru com 
ofa de angu. Senti padecida falta do São Gregório – bem que a 
minha vidinha lá era mestra. Diadorim notou meus males. Me 
disse consolo: – “Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, 
estamos acuados em buraco...” Assistir com Diadorim, e ouvir 
uma palavrinha dele, me abastava aninhado. 
Mas, mesmo, achei que ali convinhável não era se ficar 
muito tempo juntos, apartados dos outros. Cismei que 
maldavam, desconfiassem de ser feio pegadio. Aquele povo 
estava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era falado a 
todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi 
quando estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era de 
pessoal dos gerais – gente mais calada em si e sozinha, moradores 
das grandes distâncias. Mas, por fim, um se acostuma; isto é, eu 
me acostumei. Sem receio de ser tirado de meu dinheiro: que eu 
empacotava ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempre me pagou 
no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quis que 
soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver: – 
“Tatarana, põe o dez no onze...” – me pediam, por festar. De 
duzentas braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num 
aquele alvo só – as todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com 
que me aperreavam, os coscuvilhos. – “Se alguém falou mal de 
mim, não me importo. Mas não quero que me venham me 
contar! Quem vier contar, e der notícias, é esse mesmo que não 
presta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!...” – eu 
informei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer – 
meu pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, 
não se esquecerem, eu pegava o rifle – tive rifle de winchester, 
até, de quatorze tiros – e dava gala de entremez. – “Corta aquele 
risco Tatarana!” – me aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei. 
Para rebater, reproduzia tudo a revólver. – “Vem um cismo de 
fio de cabelo no ar, que eu acerto.” Sobrefiz. Social eu andava 
com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas sempre. Ao 
que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado. 
Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive – que era o de 
destruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir: seu riso tem 
siso. Eu sei. Eu quero é que o senhor repense as minhas tolas 
palavras. E, olhe: tudo quanto há, é aviso. Matar a aranha em teia. 
Se não, por que era que já me vinha a idéia desejável: que joliz 
havia de ser era se meter um balaço no baixo da testa do 
Hermógenes? 
A bronzes. O ódio pousa na gente, por umas criaturas. Já 
vai que o Hermógenes era ruim, ruim. Eu não queria ter medo 
dele. Digo ao senhor que aquele povo era jagunços; eu queria 
bondade neles? Desminto. Eu não era criança, nunca bobo fui. 
Entendi o estado de jagunço, mesmo assim sendo eu marinheiro 
de primeira viagem. Um dia, agarraram um homem, que tinha 
vindo à traição, espreitar a gente por conta dos bebelos. 
Assassinaram. Me entristeceu, aquilo, até ao vago do ar. O 
senhor vigie esses: comem o cru de cobras. Carecem. Só por 
isso, para o pessoal não se abrandar nem esmorecer, até Só 
Candelário, que se prezava de bondoso, mandava, mesmo em 
tempo de paz, que seus homens saíssem fossem, para 
estropelias, prática da vida. Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, 
carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o 
tempo, todo o mundo envenenava do juízo. Eu tinha receio de 
que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era 
feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus. 
– “E Deus, Diadorim?” – uma hora eu perguntei. Ele me olhou, 
com silenciozinho todo natural, daí disse, em resposta: – “Doca 
Ramiro deu cinco contos de réis para o padre vigário de 
Espinosa...” 
Mas o Hermógenes era fel dormido, flagelo com frieza. 
Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo. Nem contava 
valentias, vivia dizendo que não era mau. Mas, outra vez, quando 
um inimigo foi pego, ele mandou: – “Guardem este.” Sei o que 
foi. Levaram aquele homem, entre as árvores duma capoeirinha, 
o pobre ficou lá, nhento, amarrado na estaca. O Hermógenes não 
tinha pressa nenhuma, estava sentado, recostado. A gente podia 
caçar a alegria pior nos olhos dele. Depois dum tempo, ia lá, 
sozinho, calmoso? Consumia horas, afiando a faca. Eu ficava 
vendo o Hermógenes, passado aquilo: ele estava contente de si, 
com muita saúde. Dizia gracejos. Mas, mesmo para comer, ou 
falar, ou rir, ele deixava a boca própria se abrir alta no meio, 
como sem vontade, boca de dor. Eu não queria olhar para ele, 
encarar aquele carangonço; me perturbava. Então, olhava o pé 
dele – um pé enorme, descalço, cheio de coceiras, frieiras de 
remeiro do rio, pé-pubo. Olhava as mãos. Eu acabava achando 
que tanta ruindade só conseguia estar naquelas mãos, olhava para 
elas, mais, com asco. Com aquela mão ele comia, aquela mão ele 
dava à gente. Entremeando, eu comparava com Zé Bebelo aquele 
homem. Nessa hora, eu gostava de Zé Bebelo, quase como um 
filho deve de gostar do pai. As tantas coisas me tonteavam: eu 
em claro. De repente, eu via que estava desejando que Zé Bebelo 
vencesse, porque era ele quem estava com a razão. Zé Bebelo 
devia de vir, forte viesse: liquidar mesmo, a rãs, com o inferno da 
jagunçada! E eu estava ali, cumprindo meu ajuste, por fora, com 
todo rigor; mas estava tudo traindo, traidor, no cabo do meu 
coração. Alheio, ao que, encostei minhas costas numa árvore. Aí 
eu não queria ficar doido, no nem mesmo. Puxei conversa com 
Diadorim. Por que era que Joca Ramiro, sendo chefe tão subido, 
de nobres costumes, consentia em ter como seu alferes um sujeito 
feito esse Hermógenes, remarcado no mal? Diadorim me 
escutou depressa, tal duvidou de meu juízo: – “Riobaldo, onde é 
que você está vivendo com a cabeça? O Hermógenes é duro, mas 
leal de toda confiança. Você acha que a gente corta carne é com 
quicé, ou é com colher-de-pau? Você queria homens bemcomportados 
bonzinhos, para com eles a gente dar combate a Zé 
Bebelo e aos cachorros do Governo?!” A espichado, nesse dia 
calei. Assim uma coisa eu estava escondendo, mesmo de 
Diadorim: que eu já parava fundo no falso, dormia com a traição. 
Um nublo. Tinha perdido meu bom conselho. E entrei em 
máquinas de tristeza. 
Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom. 
Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber, 
constante comer. – “Comeu, lobo?”E vozear tantas asneiras, 
mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, um disse: 
– “Eh, esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o 
Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados 
pesares...” Desentendi, mediante meu querer. Mas não me 
adiantou. Dai, persistentemente, essa história me remoía, esse 
nome de um Leopoldo; Tomava por ofensa a mim, que 
Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo 
companheiro. Até que, vai, cresci naquela idéia: que o que estava 
fazendo falta era uma mulher. 
E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem 
mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. – “Saindo por 
aí”, – dizia um – “qualquer uma que seja, não me escapole!” Ao 
que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, 
aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. – “Mulher é 
gente tão infeliz...” – me disse Diadorim, uma vez, depois que 
tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando estavam 
precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, 
manejavam. Deus me livrou de endurecer nesses costumes 
perpétuos. A primeira, que foi, bonita moça, eu estava com ela 
somente. Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, e as 
unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça – fechados os olhos – 
não bulia; não fosse o coração dela rebater no meu peito, eu 
entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto, de 
repente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos, aceitou 
minha ação, arfou seus prazeres, constituído milagre. Para mim, 
era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levava essa moça 
comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova, foi 
uma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou fria estendida, 
para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eu nos 
medonhos fosse – e, o senhor crê? – a mocinha me agüentava 
era num rezar, tempos além. Às almas fugi de lá, larguei com ela 
o dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto que nunca 
mais abusei de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, 
ofereço que Deus me dê alguma minha recompensa. O que eu 
queria era ver a satisfação – para aquelas, pelo meu ser. Feito 
com a Rosa ‘uarda, sempre formosa, a filha de Assis Wababa, 
sonhos meus, turcamente; e que a qual, não lhe disse: o pai dela, 
que era forte negociante, em todo tempo nanja que não 
desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá, filha de Ana 
Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu estar glosando 
assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: 
o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso. 
Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com 
uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme 
que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, 
por todos, estes: Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos 
gerais de São Felipe; Fonfredo – que cantava todas as rezas de 
padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia 
de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfredo, desse 
já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o 
Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que 
já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito “o Caridoso”, 
queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com 
vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catocho, 
mulato claro – era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minasnovense, 
com mania de aforrar dinheiro. O Diolo, preto de 
beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; 
para que que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o 
Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo... 
Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é 
demônio de ruim, ele ria de não querer ser, capaz até de nessa 
raiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais 
difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, 
mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até 
no rabo da palavra. Ezirino matou um companheiro, que Batatinha 
se chamava, o pobre dum cafuz magrelo, só que tinha o 
danado defeito de contrariar qualquer coisa que a gente falava. 
Ezirino caiu no mundo. Daí, começou voz que ele tinha fugido 
para se bandear com os zé-bebelos, pago por sua traição, e que 
Batatinha somente morreu porque disso sabia. Todo o mundo 
andava encrespo, forjicavam muita cilada e enredos de 
desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais a coberto, 
em distância: obra de sete léguas, para a parte do poente. Muito 
vi que não estávamos fazendo isso por escapulir; mas que o 
Hermógenes, Titão Passos e João Goanhá, antes acharam de 
combinar aquilo, em suas conversas – era o arrumo para 
melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, lá chegaram, com 
satisfação de todos, dez homens, a Só Candelário pertencidos. 
Traziam cargueiros com mais sal, bom café e uma barrica de 
bacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o Luzié, alagoano 
de Alagoas. Nesse dia, eu saí, com esquadra, fomos rondar os 
caminhos de porventura dos bebelos, andamos mais de três 
léguas e tanto, no meio da noite retornamos. 
De manhã cedo, eu soube: tinham até dançado, aquela 
véspera. – “Diadorim, você dança?” – logo, perguntei. – 
“Dança? Aquilo é pé de salão...” – quem respondeu foi o 
Garanço, o de olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrou um 
enjôo. O Garanço, era um mocorongo mermado, com estúrdias 
feições, e pessoa muito agradável de seu natural. Ele tinha idéias, 
às vezes parecia criança pequena. Punha nome em suas armas: o 
facão era torturum, o revólver rouxinol, a clavina era berra-bode. 
Com ele, a gente ria, sempremente. Mais o Garanço dava de 
procurar a companhia nossa, minha e de Diadorim; aquele 
tempo ele vinha costumeiro para perto. Às vezes, como naquilo, 
ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não dizia nada, 
estava deitado de costas, num pelego, com a cabeça num feixe 
de capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia – Diadorim 
menos gostava de rede. O Garanço era sanfranciscano, 
dum lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente 
escutasse ele recontar compridas passagens de sua vida. Aquilo 
aborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos violeiros, que tocavam 
sentimento geral. Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma 
parte. Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele, guapo 
tão aposto – surgido sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e 
com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido 
com aroeira-brava e campestre. De repente, uma coisa eu 
necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo dito pelego, na 
cama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara posta no 
próprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com o violeiro 
somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu 
pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não 
presenciava nada, nem escutava possuído – fiquei sonhejando: o 
ir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório? A bem, no 
São Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do 
poço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha 
grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos 
currais adiante, da varanda de ver nuvens. O senhor sabe?: não 
acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, 
com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu 
coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o 
rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não 
houve. As vezes não é fácil. Fé que não é. 
Mire veja: naqueles dias, na ocasião, devem de ter 
acontecido coisas meio importantes, que eu não notava, não 
surpreendi em mim. Mesmo hoje não atino com o que foram. 
Mas, no justo momento, me lembrei em madrugada daquele 
nome: de Siruiz. Refiro que perguntei ao Garanço, por aquele 
rapaz Siruiz, que cantava cousas que a sombra delas em meu 
coração decerto já estava. O que eu queria saber não era próprio 
do Siruiz, mas da moça virgem, moça branca, perguntada, e dos 
pés-de-verso como eu nunca tive poder de formar um igual. Mas 
o Garanço já tinha respondido. – “Eh, eh, ô... O Siruiz já morreu. 
Morreu morto no tiroteio, entre o Morcego e o suaçuapara
passado para cá o Pacuí...” Do choque com que ouvi essa 
confirmação de notícia, fui arriando para um desânimo. Como se 
assim ele tivesse falado: “Siruiz? Mas não foram vocês mesmos 
que mataram?...” Eu, não. Nessa vez, eu tinha restado longe por 
fora, na PedraBranca, não vi combate. Como era que eu podia? 
O Garanço tomava rapé. Era um sujeito de intenções muito 
parvas. Perguntou se o Siruiz não seria meu amigo, meu parente. 
– “Quem sabe se era...” – eu respondi, de toleima. O Garanço, vi 
que não gostou. Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na 
face dos olhos. Nem eu quis indagar o mais, certo estava de que 
ele Garanço não sabia nada do que tivesse valor. Mas eu 
guardava triste de cor a canção recantada. E Siruiz tinha morrido. 
Então me instruíram na outra, que era cantiga de se viajar e 
cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida: 
“Olererêêê, baiana... Eu ia e 
não vou mais: Eu faço 
que vou lá dentro, oh baiana, e volto 
do meio p’ra trás...” 
O senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de 
ruindade, lá como quem diz. Sou ruim não, sou homem de gostar 
dos outros, quando não me aperreiam; sou de tolerar. Não tenho 
a caixeta da raiva aberta. Rixava com nenhum, ali, aceitava o 
regime, na miudez das normas. Vai, daí, comigo erraram. Um, 
errou. Um pai-jagunço chamado Antenor, acho que era coração 
– de-jesusense, começou a temperar conversa, sagaz de fiúza, 
notei. Ele era homem chegado ao Hermógenes – se sabia dessa 
parte. De diz em diz, rodeava a questão. Queria saber que apreço 
eu tinha por loca Ramiro, por Titão Passos, os outros todos. Se 
eu conhecia Só Candelário, que estava por chegar? O giro dos 
assuntos – ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar, vinha 
querendo deixar em mim uma má vazante: me largar em dúvida. 
Não era? Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre 
louvando e vivando Joca Ramiro, acabou por me dar a entender, 
curtamente, o em conseguinte: que Joca Ramiro talvez fazia mal 
em estar tanto tempo por longe, alguns de bofe ruim já 
calculavam que ele estivesse abandonando seu pessoal, em horas 
de tanta guerra; que Joca Ramiro era rico, dono de muitas posses 
em terras, e se arranchava passando bem em casas de grandes 
fazendeiros e políticos, deles recebia dinheiro de munição e paga: 
seô Sul de Oliveira, coronel Caetano Cordeiro, doutor Mirabô de 
Melo. Que era que eu achava? 
Eu escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para achar nenhuma 
coisa. Não tinha nascido no ontem, cedo tomei experiência de 
homens por homens. Disse só que decerto Joca Ramiro estava 
formando gente e meios para vir em ajuda de nós, jagunços em 
lei, e nesse meio-tempo punha toda confiança no Hermógenes, 
em Titão Passos, João Goanhá – fortes no fato valor e na 
lealdade. Gabei o Hermógenes, principal; bispei. Com isso, 
aquele Antenor concordou. A bem dizer, aprovou o quanto eu 
disse. Mas realçou mais altamente a fama do Hermógenes, e do 
Ricardão, também – esses dois seriam os chefes de encher a 
mão, em paz regalada mas por igual nos combates. Esse sujeito 
Antenor sabia coçar queixo de cobra e semear sal em roças 
verdes. Vulto perigoso, nas ações – o Garanço me preveniu, 
com a boa noção vinda de sua redondice de atinar. Ações? O 
que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma 
palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai 
rompendo rumo. Aquele Antenor já tinha depositado em mim o 
anúvio de uma má idéia: disidéia, a que por minhas costas logo 
escorreu, traiçoeirinha como um rabo de gota de orvalho. Que 
explicação dou ao senhor? Acreditar, no que ele tinha suso dito, 
não acreditei. Mas, em mim, para mim, aquilo tudo era – era 
assim como um lugar com mau-cheiro, no campo, uma árvore: 
lugar fedido, onde é que alguma jaratataca acuou, por se defender 
do latido dos cachorros. E grande aviso, naquele dia, eu tinha 
recebido; mas menos do que ouvi, real, do que do que eu tinha 
de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu acho que, 
quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas 
só para se ter consolo legal, depois que o castigo passou e veio. 
Aviso? Rompe, ferro! 
Cacei Diadorim. Mas eu estreava umas ânsias. Como fosse, 
falei, do novo e do velho; mal foi que falei: em zanga – 
desrazoadamente – e de primeira entrada. Acho que, por via 
disso, Diadorim não deu a devida estimação às minhas palavras. 
Alheio, eh. Só ojerizado em estilos ele esteve, um raio de 
momento, foi de ouvir que alguém pudesse duvidar do proceder 
de loca Ramiro: loca Ramiro era um imperador em três alturas! 
loca Ramiro sabia o se ser, governava; nem o nome dele não 
podia à toa se babujar. E aqueles outros: o Hermógenes, 
Ricardão? Sem Joca Ramiro, eles num átimo se desaprumavam, 
deste mundo desapareciam – valiam o que pulga pula. O 
Hermógenes? Certo, um bom jagunço, cabo-de-turma; mas 
desmerecido de situação política, sem tino nem prosápia. E o 
Ricardão, rico, dono de fazendas, somente vivia pensando em 
lucros, querendo dinheiro e ajuntando. Diadorim, do Ricardão 
era que ele gostava menos: – “Ele é bruto comercial...” – disse, e 
fechou a boca forte, feito fosse cuspir. 
Eu então disse, pelo conseguinte: – “A bom e bem, 
Diadorim. Mas, se é ou se não é, por que é que não vamos levar 
informação sutil a loca Ramiro, para o enfim?” Aí, refalei muito, 
ao tanto que escondi minha raiva. Quem sabe Joca Ramiro, na lei 
da caminhação, não estava esquecido de conhecer os homens, 
deixando de farear o mudar do tempo? Viesse, Joca Ramiro 
podia detalhar o podre do são, recontar seus brabos entre as 
mãos e os dedos. Podia, devia de mandar embora aquele monstro 
do Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse – eh, uai: se 
matava!... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi que com um 
espanto reprovador, não me achasse capaz de estipular tanta 
maldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? – ele disse? Nem 
cobra serepente malina não é. Nasci devagar. Sou é muito 
cauteloso. 
Mais em paz, comigo mais, Diadorim foi me desinfluindo. 
Ao que eu ainda não tinha prazo para entender o uso, que eu 
desconfiava de minha boca e da água e do copo, e que não sei 
em que mundo-de-lua eu entrava minhas idéias. O Hermógenes 
tinha seus defeitos, mas puxava por Joca Ramiro, fiel – punia e 
terçava. Que, eu mais uns dias esperasse, e ia ver o ganho do sol 
nascer. Que eu não entendia de amizades, no sistema de jagunços. 
Amigo era o braço, e o aço! 
Amigo? Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para 
mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e 
receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que 
sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só 
isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o 
igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só 
isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente 
seja, mas sem precisar de saber o por que é que é. Amigo meu era 
Diadorim; era o Fafafa, o Alaripe, Sesfredo. Ele não quis me 
escutar. Voltei da raiva. 
Digo ao senhor: nem em Diadorim mesmo eu não firmava 
o pensar. Naqueles dias, então, eu não gostava dele? Em pardo. 
Gostava e não gostava. Sei, sei que, no meu, eu gostava, 
permanecente. Mas a natureza da gente é muito segundas-e – 
sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em amizade de amor. 
Antes o que me atazanava, a mor – disso crio razoável 
lembrança – era o significado que eu não achava lá, no meio 
onde eu estava obrigado, naquele grau de gente. Mesmo 
repensando as palavras de Diadorim, eu apurava só este resto: 
que tudo era falso viver, deslealdades. Traição? Traição minha, 
fosse no que fosse. Quase tudo o que a gente faz ou deixa de 
fazer, não é, no fim, traição? Há-de-o, a alguém, a alguma coisa. 
E eu não tardei no meu querer: lá eu não podia mais ficar. Donde 
eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de preço, me 
sujeitava àquilo? Eu iame embora. Tinha de ir embora. Estava 
arriscando minha vida, estragando minha mocidade. Sem rumo. 
Só Diadorim. Quem era assim para mim Diadorim? Não era, 
aquela ocasião, pelo próprio dito de estar perto dele, de conversar 
e mais ver. Mas era por não agüentar o ser: se de repente tivesse 
de ficar separado dele, pelo nunca mais. E mesmo forte era a 
minha gastura, por via do Hermógenes. Malagourado de ódio: 
que sempre surge mais cedo e às vezes dá certo, igual palpite de 
amor. Esse Hermógenes – belzebu. Ele estava caranguejando lá. 
Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu nunca soube 
tanto disso, como naquele tempo. O Hermógenes, homem que 
tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. 
Aí, arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno é mesmo 
possível. Só é possível o que em homem se vê, o que por homem 
passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de 
mim, vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito 
duras. Nas larguezas do sono da gente. 
A já, que ia m’embora, fugia. Onde é que estava Diadorim? 
Nem eu não imaginava que pudesse largar Diadorim ali. Ele era 
meu companheiro, comigo tinha de ir. Ah, naquela hora eu 
gostava dele na alma dos olhos, gostava da banda de fora de 
mim. Diadorim não me entendeu. Se engrotou. Assaz, também, 
acho que me acuso: que não tive um ânimo de franco falar. Se 
fosse eu falasse total, Diadorim me esbarrava, no tolher, não me 
entendia. A vivo, o arisco do ar: o pássaro – aquele poder dele. 
Decerto vinha com o nome de Joca Ramiro! Joca Ramiro... Esse 
nem a gente conseguia exato real, era um nome só, aquela graça, 
sem autoridade nenhuma avistável, andava por longe, se era que 
andava. Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? 
Foi outra? Alguma, foi; me alembro. Meu corpo gostava de 
Diadorim. Estendi a mão, para suas formas; mas, quando ia, 
bobamente, ele me olhou – os olhos dele não me deixaram. 
Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam. Vi 
– ele mesmo não percebeu nada. Mas, nem eu; eu tinha 
percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava do corpo 
dele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor de nós, 
como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os braços 
na testa, ficar assim, lorpa, sem encaminhamento nenhum. Que é 
que queria? Não quis o que estava no ar; para isso, mandei vir 
uma idéia de mais longe. Falei sonhando: – “Diadorim, você não 
tem, não terá alguma irmã, Diadorim?” – voz minha; eu 
perguntei. 
Sei lá se ele riu? O que disse, que resposta? Sei quando a 
amargura finca, o que é o cão e a criatura. De tristeza, tristes 
águas, coração posto na beira. Irmã nem irmão, ele não tinha: – 
“Só tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo...” – ele 
declarou. Hê, de medo, coração bate solto no peito; mas de 
alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na 
parede. – “Diadorim, então quem foi esse moço Leopoldo, que 
morreu seu amigo?” – eu indaguei, de sem-tempo, nem sei 
porquê; eu não estava pensando naquilo. Antes já eu estava para 
trás de ter perguntado, palavras fora da boca. – “Leopoldo? Um 
amigo meu, Riobaldo, de correta amizade...” – e Diadorim desfez 
assoprado um suspiro, o que muda melhor. – “Até te falaram 
nele, Riobaldo? Leopoldo era o irmão mais novo de loca Ramiro...” 
Aquilo, eu já soubesse demais – que Joca Ramiro se 
realçasse por riba de tudo, reinante. Mas pude ter a língua 
sofreada. – “Vamos embora daqui, juntos, Diadorim? Vamos 
para longe, para o porto do de-Janeiro, para o sertão do baixio, 
para o Curralim, São-Gregório, ou para aquele lugar nos gerais, 
chamado Os-Porcos, onde seu tio morava...” De arrancar, de 
meu falar, de uma sede. Aos tantos, fui abaixando os olhos – 
constando que Diadorim me agarrava com o olhar, corre que um 
silêncio de ferro. Assombrei de mim, de desprezo, desdenhado, 
de duvidar da minha razão. O que eu tinha falado era umas 
doideiras. Diadorim esperou. Ele era irrevogável. Então, eu saí 
dali, querendo esquecer ligeiro o atual. Minha cara estava 
pegando fogo. 
Andei, em dei, até que lembrei: o Garanço. Bom, o 
Garanço, esse ia comigo, me seguia em tudo, era pobre homem 
à espera de qualquer ordem cordial. Isto ele mesmo nem sabia, 
mas era: que carecia era de alguma amizade. Estava lá, curvado, 
cabeçudo como uma cigarra. Estava cozinhando pequis, numa 
lata. – “Eh, eh, nós!...” – ele assim dizia. Ladeei conversa. Ele 
me ouvia, com anuídos, e fazendo uma cara de entender. Não 
conseguia. Só conseguia demonstrar os tamanhos de sua cabeça. 
Ao que bastava um meu maior cochicho, e o Garanço vinha, 
servia de companheiro para fugirmos. O mais que pudesse 
haver, era ele primeiro perguntar: – “E o Reinaldo?” ; porque já 
estava acostumado com eu e Diadorim sermos dois, e ele querer 
ser o três. Então, eu respondi: – “Segredo, eh, Garanço. 
Segredo, eh, e vamos!” – e que Diadorim era para vir depois. O 
Garanço tinha alguma diferença, por alguma banda de sua 
natureza ele se desapartava da jagunçagem.  
Mas eu não cheguei a falar, não quis, não expliquei nada. 
Que era que eu ia fazer, às fugas com aquele prascóvio, pelo sul e 
pelo norte, nos sertões da Jaíba? Ele só sabia cumprir obediência, 
no que eu riscasse, governado por meu querer e por minha idéia; 
um companheiro assim não aumentava segurança minha 
nenhuma. Quero sombra? Quero eco? Quero cão? Não, com ele 
eu não me fazia, melhor esperar; eu ia ficando. Desse no que 
desse; mais um tempo. Algum dia, podia Diadorim mudar de 
tenção. Em Diadorim era que eu pensava, de fugir junto com ele 
era que eu carecia; como o rio redobra. O Garanço se regalava 
com os pequis, relando devagar nos dentes aquela polpa amarela 
enjoada. Aceitei não, daquilo não provo: por demais distraído 
que sou, sempre receei dar nos espinhos, craváveis em língua. – 
“Eh, eh, nós...” – o Garanço reproduzia, tão satisfeito. Minha 
amizade sobrou um pouco para ele, que era criatura de simples 
coração. Digo ao senhor: naquele dia eu tardava, no meio de 
sozinha travessia. 
Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu 
desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que 
se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – 
de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi 
exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas 
horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo 
recruzado. Se eu fosse filho de mais ação, e menos idéia, isso sim, 
tinha escapulido, calado, no estar da noite, varava dez léguas, 
madrugada, me escondia do largo do sol, varava mais dez, 
passava o São Felipe, as serras, as Vinte-e-Uma-Lagoas, 
encostava no São Francisco bem de frente da Januária, passava, 
chegava em terra cidadã, estava no pique. Ou me pegassem no 
caminho, bebelos ou Hermógenes, me matassem? Morria com 
um bé de carneiro ou um au de cão; mas tinha sido um mais 
destino e uma mor coragem. Não valia? Não fiz. Quem sabe nem 
pensei sério em Dia~ dorim, ou, pensei algum, foi em vezo de 
desculpa. Desculpa para meu preceito, mesmo. Quanto pior mais 
baixo se caiu, maismente um carece próprio de se respeitar. De 
mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas 
eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga. 
As razões de não ser. O que foi que eu pensei? Nas 
terríveis dificuldades; certamente, meiamente. Como ia poder 
me distanciar dali, daquele ermo jaibão, em enormes voltas e 
caminhadas, aventurando, aventurando? Acho que eu não tinha 
conciso medo dos perigos: o que eu descosturava era medo de 
errar – de ir cair na boca dos perigos por minha culpa. Hoje, sei: 
medo meditado – foi isto. Medo de errar. Sempre tive. Medo de 
errar é que é a minha paciência. Mal. O senhor fia? Pudesse tirar 
de si esse medode-errar, a gente estava salva. O senhor tece? 
Entenda meu figurado. Conforme lhe conto: será que eu mesmo 
já estava pegado do costume conjunto de ajagunçado? Será, sei. 
Gostar ou não gostar, isso é coisa diferente. O sinal é outro. Um 
ainda não é um: quando ainda faz parte com todos. Eu nem 
sabia. Assim que o Paspe tinha agulhas grandes, fio e sovela: 
consertou minhas alpercatas. Lindorífico me cedeu, por troco de 
espórtula, um bentinho com virtudes fortes, dito de sãossalavá e 
cruz-com-sangue. E o Elisiano caprichava de cortar e descascar 
um ramo reto de goiabeira, ele que assava a carne mais gostosa, 
as beiras tostadas, a gordura chiando cheio. E o Fonfredo 
cantava loas de não se entender, o Duvino de tudo armava 
risada e graça, o Delfim tocando a viola, Leocádio dançava um 
valsar, com o Diodolfo; e Geraldo Pedro e o Ventarol que 
queriam ficar espichados, dormindo o tempo todo, o Ventarol 
roncasse – ele possuía uma rede de casamento, de bom algodão, 
com chuva de rendas rendadas... Aí e o Jenolim e o Acrísio, e 
João Vaqueiro, que depunham por mim com uma estima 
diferente, só porque se tinha viajado juntos, vindo do das- 
Velhas: – “Viva, companheiro tropeiro...” – saudavam. Ao que 
se jogava truque, e douradinha e douradão, por cima de couros 
de rês. Aí a troça em beirada de fogueiras, o vuvo de falinhas e 
falas, no encorpar da noite. Artes que havia uma alegria. Alegria, 
é o justo. Com os casos, que todos iam contando, de combates e 
tiroteios, perigos tantos vencidos, escapulas milagrosas, altas 
coragens... Aquilo, era uma gente. Ali eu estava no entremeio 
deles, esse negócio. Não carecia de calcular o avante de minha 
vida, a qual era aquela. Saísse dali, tudo virava obrigação minha 
trançada estreita, de cor para a morte. Homem foi feito para o 
sozinho? Foi. Mas eu não sabia. Saísse de lá, eu não tinha 
contrafim. Com tantos, com eles, gente vivendo sorte, se 
cumpria o grosso de uma regra, por termo havia de vir um 
ganho; como não havia de ter desfecho geral? Por que era que 
todos ficavam ali, por paz e por guerra, e não se desmanchava o 
bando, não queriam ir embora? Reflita o senhor nisso, que foi o 
que depois entendi vasto. 
Desistir de Diadorim, foi o que eu falei? Digo, desdigo. 
Pode até ser, por meu desmazelo de contar, o senhor esteja 
crendo que, no arrancho do acampo, eu pouco visse Diadorim, 
amizade nossa padecesse de descuido ou míngua. O engano. 
Tudo em contra. Diadorim e eu, a gente parava em som de voz e 
alcance dos olhos, constante um não muito longe do outro. De 
manhã à noite, a afeição nossa era duma cor e duma peça. 
Diadorim, sempre atencioso, esmarte, correto em seu bom  
proceder. Tão certo de si, ele repousava qualquer mau ânimo. 
Por que é, então, que eu salto isso, em resumo, como não devia 
de, nesta conversa minha abreviã? Veja o senhor, o que é muito e 
mil: estou errando. Estivesse contando ao senhor, por tudo, 
somente o que Diadorim viveu presente mim, o tempo – em 
repetido igual, trivial – assim era que eu explicava ao senhor 
aquela verdadeira situação de minha vida. Por que é, então, que 
deixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe 
estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que 
é bonito e bom. Seja? E, aquele Garanço, olhe: o que eu dele 
disse, de bondade e amizade, não foi estrito. Sei que, naquela vez, 
não senti. Só senti e achei foi em recordação, que descobri, 
depois, muitos anos. Coitado do Garanço, ele queria relatar, me 
falava: – “Fui almocreve, no Serem. Tive três filhos...” Mas, que 
sorte de jagunço recluta era ele – assim meninoso, jalofo e bom. 
– “Eta, e você já matou seus muitos homens, Garanço?” – pois 
perguntei. O riso dele ficava querendo ser mais grosso: – “Eh, 
eh, nós... Sou algum medroso? E mecê encomenda o que, no rifle 
que está em minha mão, mano velho! Eh, não desprevino, não 
lhe envergonho o desse...” O Garanço, mesmo afirmo, acho que 
nunca duvidou de coisa nenhuma. Toda tardeza dele não deixava. 
E só. Comum de benquistar e malquistar. 
O senhor entenderá? Eu não entendo. Aquele 
Hermógenes me fazia agradados, demo que ele gostava de mim. 
Sempre me saudando com estimação, condizia um gracejo 
amistoso ou umas boas palavras, nem parecia ser o bedegueba. 
Por cortesia e por estatuto, eu tinha de responder. Mas, em mal. 
Me irava. Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão que 
revém de locas profundas. Nem olhei nunca nos olhos dele. 
Nojo, pelos eternos – razão de mais distâncias. Aquele homem, 
para mim, não estava definitivo. E arre que ele não desconfiava, 
não percebia! Queria conversa, me chamava; eu tinha de ir – ele 
era o chefe. Fiquei de ensombro. Diadorim notou; me deu 
conselho: – “Modera esse gênio que você tem, Riobaldo. As 
pessoas não são tão ruins agrestes.” – “Dele não me temo!” – eu 
respondi. Eu podia xingar com os olhos. Aí, o Hermógenes me 
presenteou com um nagã, e caixas de balas. Estive para nem 
aceitar. Eu já possuía revólver meu, carecia algum daquele, de 
tanto só cano, tão enorme? Por insistências dele, mesmo, com 
aquilo fiquei. Cuspi, depois. Dado que eu nunca ia retribuir! 
Queria eu lá viver perto de chefes? Careço é de pousar longe das 
pessoas de mando, mesmo de muita gente conhecida. Sou peixe 
de grotão. Quando gosto, é sem razão descoberta, quando 
desgosto, também. Ninguém, com dádivas e gabos, não me 
transforma. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de 
criaturas filhos-de-deus – felão de mau. Meus ouvidos 
expulsavam para fora a fala dele. Minha mão não tinha sido feita 
para encostar na dele. Ah, esse Hermógenes – eu padecia que 
ele assistisse neste mundo... Quando ele vinha conversar 
comigo, no silêncio da minha raiva eu pedia até ao demônio 
para vir ficar de permeio entre nós dois, para dele me apartar. Eu 
podia rechear de balas aquele nagã próprio, e descarregar nele 
tiros, entre os todos olhos. O senhor tolere e releve estas palavras 
minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu 
era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais. 
Do ódio, sendo. Acho que, às vezes, é até com ajuda do 
ódio que se tem a uma pessoa que o amor tido a outra aumenta 
mais forte. Coração cresce de todo lado. Coração vige feito 
riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. 
Coração mistura amores. Tudo cabe. Conforme contei ao 
senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos gerais, 
Buritis Altos, nascente de vereda, Fazenda Santa Catarina. 
Que quando só vislumbrei graça de carinha de riso e boca, e os 
compridos cabelos, num enquadro de janela, por o mal aceso de 
uma lamparina. Mas logo fomos para acomodar, numa rebaixa de 
engenho-de-pilões, lá pernoitamos. Eu, com Diadorim, Alaripe, 
João Vaqueiro e Jesualdo, e o Fafafa. No que repontávamos de 
dura viagem: tudo o que era corpo era bom cansaço. Mas eu 
dormi com dois anjos-da-guarda. 
O que lembro, tenho. Venho vindo, de velhas alegrias. A 
Fazenda Santa Catarina era perto do céu – um céu azul no 
repintado, com as nuvens que não se removem. A gente estava 
em maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, 
as flores no campo, os finos ventos maiozinhos. A frente da 
fazenda, num tombado, respeitava para o espigão, para o céu. 
Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma 
restinga de cerrado, de donde descem borboletas brancas, que 
passam entre as réguas da cerca. Ali, a gente não vê o virar das 
horas. E a fogo-apagou sempre cantava, sempre. Para mim, até 
hoje, o canto da fogo-apagou tem um cheiro de folhas de assapeixe. 
Depois de tantas guerras, eu achava um valor viável em 
tudo que era cordato e correntio, na tiração de leite, num papudo 
que ia carregando lata de lavagem para o chiqueiro, nas galinhasd’angola 
ciscando às carreiras no fedegoso-bravo, com 
florezinhas amarelas, e no vassoural comido baixo, pelo gado e 
pelos porcos. Figuro que naquela ocasião tive curta saudade do 
São Gregório, com uma vontade vã de ser dono de meu chão, 
meu por posse e continuados trabalhos, trabalho de segurar a 
alma e endurecer as mãos. Estas coisas eu pensava repassadas. E 
estava lá, outra vez, nos gerais. O ar dos gerais, o senhor sabe. 
Tomamos farto leite. Trouxeram café para nós, em xicrinhas. Ao 
que ficamos por ali, à-toa, depois de uma conversa com o 
velhozinho, avô. Otacília eu revi já foi na sobremanhã. Ela 
apareceu. 
Ela era risonha e descritiva de bonita; mas, hoje-em-dia, o 
senhor bem entenderá, nem ficava bem conveniente, me dava 
pejo de muito dizer. Minha Otacília, fina de recanto, em seu 
realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença. Fui eu 
que primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei mão em mel, 
regrei minha língua. Aí, falei dos pássaros, que tratavam de seu 
voar antes do mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele 
assunto de Deus, Dioadorim era quem tinha me ensinado. Mas 
Diadorim agora estava afastado, amuado, longe num emperreio. 
Principal que eu via eram as pombas. No bebedouro, pombas 
bando. E as verdadeiras, altas, cruzando do mato. – “Ah, já 
passaram mais de vinte verdadeiras...” – palavras de Otacília, 
que contava. Essa principiou a nossa conversa. Salvo uns risos e 
silêncios, a tão. Toda moça é mansa, é branca e delicada. 
Otacília era a mais. 
Mas, na beira da alpendrada, tinha um canteirozinho de 
jardim, com escolha de poucas flores. Das que sobressaíam, era 
uma flor branca – que fosse caeté, pensei, e parecia um lírio – 
alteada e muito perfumosa. E essa flor é figurada, o senhor sabe? 
Morada em que tem moças, plantam dela em porta da casa-defazenda. 
De propósito plantam, para resposta e pergunta. Eu 
nem sabia. Indaguei o nome da flor. 
– “Casa-comigo...” – Otacília baixinho me atendeu. E, no 
dizer, tirou de mim os olhos; mas o tiritozinho de sua voz eu 
guardei e recebi, porque era de sentimento. Ou não era? Daquele 
curto lisim de dúvidas foi que minou meu maisquerer. E o nome 
da flor era o dito, tal, se chamava – mas para os namorados 
respondido somente. Consoante, outras, as mulheres livres, 
dadas, respondem: – “Dorme-comigo... “Assim era que devia de 
haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha de 
Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de mim e 
eu dela gostei. Ah, a flor do amor tem muitos nomes. Nhorinhá 
prostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo de meninopequeno. 
Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucuia 
vai se levar no mar. 
Porque, no meio do momento, me virei para onde lá estava 
Diadorim, e eu urgido quase aflito. Chamei Diadorim – e era um 
chamado com remorso – e ele veio, se chegou. Aí, por alguma 
coisa dizer, eu disse: que estávamos falando daquela flor. Não  
estávamos? E Diadorim reparou e perguntou também que flor 
era essa, qual sendo? – perguntou inocente. – “Ela se chama é 
liroliro...” – Otacília respondeu. O que informou, altaneira disse, 
vi que ela não gostava de Diadorim. Digo ao senhor que alegria 
que me deu. Ela não gostava de Diadorim – e ele tão bonito 
moço, tão esmerado e prezável. Aquilo, para mim, semelhava um 
milagre. Não gostava? Nos olhos dela o que vi foi asco, 
antipatias, quando em olhar eles dois não se encontraram. E 
Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. O que é 
dose de ódio – que vai buscar outros ódios. Diadorim era mais 
do ódio do que do amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, 
nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um 
pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de 
ver um corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, 
tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no 
branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos’ meio 
fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um 
destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E 
tantos anos já se passaram. 
 Desde esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de 
Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme. O 
senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar 
escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. Que 
Diadorim tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu já sabia, 
fazia tempo, até. Quase desde o princípio. E, naqueles meses 
todos, a gente vivendo em par a par, por altos e baixos, 
amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguia esconder, 
bem que se esforçava. Vai, e vem, me intimou a um trato: que, 
enquanto a gente estivesse em oficio de bando, que nenhum de 
nós dois não botasse mão em nenhuma mulher. Afiançado, 
falou: – “Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito 
jurado nos Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado aveio 
servem só para tirar da gente o poder da coragem... Você cruza e 
jura?!” Jurei. Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do 
corpo, malandragem. Mas Diadorim dava como exemplo a regra 
de ferro de Joãozinho Bem-Bem – o sempre sem mulher, mas 
valente em qualquer praça. Prometi. Por um prazo, jejuei de nem 
não ver mulher nenhuma. Mesmo. Tive penitência. O senhor 
sabe o que isso é? Desdeixei duma roxa, a que me suplicou os 
carinhos vantajosos. E outra, e tantas. E uma rapariga, das de 
luxo, que passou de viagem, e serviu aos companheiros quase 
todos, e era perfumada, proseava gentil sobre as sérias 
imoralidades, tinha beleza. Não acreditei em juramento, nem 
naquilo de seo Joãozinho Bem-Bem; mas Diadorim me vigiava. 
De meus sacrifícios, ele me pagava com seu respeito, e com mais 
amizade. Um dia, no não poder, ele soube, ele quase viu: eu tinha 
gozado hora de amores, com uma mocinha formosa e dianteira, 
morena cor de doce-de-buriti. Diadorim soube o que soube, me 
disse nada menos nada. Um modo, eu mesmo foi que uns dias 
calado passei, na asperidão sem tristeza. De déu em demos, 
falseando; sempre tive fogo bandoleiro. Diadorim não me acusava, 
mas padecia. Ao que me acostumei, não me importava. Que 
direito um amigo tinha, de querer de mim um resguardo de 
tamanha qualidade? Às vezes, Diadorim me olhasse com um 
desdém, fosse eu caso perdido de lei, descorrigido em bandalho. 
Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas pesadas. – “Não sou 
o nenhum, não sou frio, não... Tenho minha força de homem!” 
Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saiu para longe de mim; 
desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para eu ter 
pena? Homem não chora! – eu pensei, para formas. Então, eu ia 
deixar para a boca dos outros aquela menina que se agradou de 
mim, e que tinha cor de doce-deburiti e os seios tão grandes?! 
Ah, essa agora não estava a meu dispor, tínhamos viajado muito 
para longe de onde ela morava. Mas entramos num arraial maior, 
com progresso de bordel, no hospedado daquilo usufruí muito, 
sou senhor. Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, 
me lembro. Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, 
numa venda, perguntou se não tinham chá de mate seco, 
comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato. Se 
chamava o lugar: São João das Altas. 
Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem. O senhor 
releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as 
lembranças da mocidade. Não estou contando? Pois minha vida 
em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. 
Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu – 
como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu 
criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia 
com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim. 
E ainda falhamos dois dias na Fazenda Santa Catarina. 
Naquele primeiro dia, eu pude conversar outras vezes com 
Otacília, que, para mim, hora em mais hora embelezava. Minha 
alma, que eu tive; e minha idéia esbarrada. Conheci que Otacília 
era moça direta e opiniosa, sensata mas de muita ação. Ela não 
tinha irmão nem irmã. Sor Amadeu chefiava largo: grandes gados 
em léguas de alqueires. Otacília não estava noiva de ninguém. E 
ia gostar de mim? De moça-de-família eu pouco entendesse. A 
ser, a Rosa’uarda? Assim igual eu Otacília não queria querer; 
salvante assente que da Rosa’uarda nunca me lembrei com 
desprezo: não vê, não cuspo no prato em que o bom já comi. 
Sete voltas, sete, dei; pensamentos eu pensava. 
Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas 
coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria – como em 
fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O 
que uma mocinha assim governa, sem precisão de armas e 
golpes, guardada macia e fina em sua casa-grande, sorrindo 
santinha no alto da alpendrada... E ela queria saber tudo de mim, 
mais ainda me perguntava. – “Donde é mesmo que o senhor é, 
donde?” Se sorria. E eu não medi meus alforjes: fui contando que 
era filho de Seô Selorico Mendes, dono de três possosas 
fazendas, assistindo na São Gregório. E que não tinha em minhas 
costas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente por 
cálculos de razoável política era que eu vinha conduzindo aqueles 
jagunços, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel de todos 
estes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu era diferente 
deles. 
Fiquei esperando o que ela desse em resposta. Nem nada 
não acreditava? Mas Otacília mudou para séria a feição do rosto, 
não queria mais de minha vida só assim meiamente indagar. Os 
de todos lindos olhos dela estavam me assinalando o céu com 
essas nuvens. Eu tinha renegado Diadorim, travei o que tive 
vergonha. Já era para entardecendo. Vindo na vertente, tinha o 
quintal, e o mato, com o garrulho de grandes maracanãs 
pousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o sol 
dourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul, com 
aquelas peças nuvens sem movimento. Mas, de parte do poente, 
algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, como que com 
eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos 
Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucuia, e 
nesse céu sertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava 
a tomar raias feito de ferro quente e sangues. Digo, porque até 
hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a 
mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu senhor? Lhe ensino: 
porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo 
logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do 
que senti. O sol entrado. 
Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na 
rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras – nem se tinha 
o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu 
não queria conversa, as idéias que já estavam se acontecendo 
eram maiores. Assim eu ouvindo o ciciri dos grilos. Na beira da 
rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve 
lá, mexendo em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo; Fafafa e 
João Vaqueiro não esbarravam de falar, mais o Alaripe também, 
repesavam as vantagens da Santa Catarina. No que eu pensava? 
Em Otacília. Eu parava sempre naquela meia-incerteza, sem 
saber se ela sim-se. Ao que nós todos pensávamos as mesmas 
coisas; o que cada um sonhava, quem é que sabia? 
– “Aquilo é poço que promete peixe...” – o Jesualdo disse. 
Dela devia de ser. – “Amigo, não toque no nome dessa moça, 
amigo!...” – eu falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a 
sério fatal, deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por 
longe, a mão-da-lua suspirou o grito: – Floriano, foi, foi, foi... – 
que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava 
se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, 
apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim, 
Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um 
entredizer, percebi que ele ansiava raiva. De repente. 
– “Riobaldo, você está gostando dessa moça?” 
Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro 
do rosto dele me procurando. Deu para eu ver que ele estava 
branco de transtornado? A voz dele vinha pelos dentes. 
– “Não, Diadorim. Estou gostando não...” – eu disse, 
neguei que reneguei, minha alma obedecia. 
– “Você sabe do seu destino, Riobaldo?” 
Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio 
ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros 
percebessem a má loucura de tudo aquilo. Tremi não. 
– “Você sabe do seu destino, Riobaldo?” – ele 
reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira de mim. 
– “Se nanja, sei não. O demônio sabe...” – eu respondi – 
“Pergunta...” 
Me diga o senhor: por que, naquela extrema hora, eu não 
disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da 
cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo 
obedece – vivo no momento. Diadorim encolheu o braço, com o 
punhal, se defastou e deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele 
dançar produziam, de estar brilhando. E ele devia de estar 
mordendo o correiame de couro. 
Assisado, me enrolei bem no cobertor; mas não adormeci. 
Eu tinha dó de Diadorim, eu ia com meu pensamento para 
Otacília. Me balanceei assim, adiantado na noite, em tanto gaio, 
em tanto piongo, com todas as novas dúvidas e idéias, e 
esperanças, no claro de uma espertina. Com muito, me levantei. 
Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a lua subia estada, 
abençoando redondo o friinho de maio. Era da borda-do-campo 
que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto de árvores da 
mata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se sumiam para 
dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar. Ao que 
fiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só 
olhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília 
deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençóis 
lavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti 
que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava. 
Diadorim, fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio. 
Nunca posso ter medo das pessoas de quem eu gosto. Digo. 
Esperei mais, outro tempo. Daí, vim voltando. Mas lá não estava 
pessoa nenhuma, entre claridade e sombras. Ilusão minha, a 
fantasiação. Bebi água do rego, com o frio da noite ela corria 
morna. Tornei a entrar na rebaixa. Diadorim permanecia lá, 
jogado de dormir. De perto, senti a respiração dele, remissa e 
delicada. Eu aí gostava dele. Não fosse um, como eu, disse a 
Deus que esse ente eu abraçava e beijava. E, com o vago, devo 
de ter adormecido – porque acordei quando Diadorim no mexe 
leve se levantou, saiu sem rumor, levando a capanga, ia tomar seu 
banho em poço de córrego, das barras no clarear. Desde o que, 
depressa eu tornei a me dormir. 
Mas, cedo no amanhecer, o sor Amadeu tinha chegado, e 
com notícia urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz 
recruzava, de lá a quinze léguas, da Vereda-Funda para a 
Ratragagem, e nós tínhamos de seguir, sem folga, 
supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu um dito 
afeiçoado e diferente – entendi que o velhozinho sabia de alguma 
coisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar neto dele. Nós 
almoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João 
Vaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei 
melhor coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria 
minha, disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo 
que carecesse me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, 
eu pudesse vir com jus. Saí de lá aos grandes cantos, 
tempo-doverde no coração. Por breve – pensei – era que eu me 
despedia daquela abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes 
produções. Não que eu acendesse em mim ambição de teres e 
haveres; queria era só mesma Otacília, minha vontade de amor. 
Mas, com um significado de paz, de amizade de todos, de 
sossegadas boas regras, eu pensava: nas rezas, nas roupagens, na 
festa, na mesa grande com comedorias e doces; e, no meio do 
solene, o sor Amadeu, pai dela, que apartasse – destinado para 
nós dois – um buritizal em dote, conforme o uso dos antigos. 
Vim. Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas 
pegava pesada de orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam. 
O melosal maduro alto, com toda sua roxidão, roxura. Mas, o 
mais, e do que sei, eram mesmo meus fortes pensamentos. 
Sentimento preso. Otacília. Por que eu não podia ficar lá, desde 
vez? Por que era que eu precisava de ir por adiante, com 
Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte, nestes 
Gerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota 
abatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, 
com Otacília. Destino. Pensava nela. Às vezes menos, às vezes 
mais, consoante é da vida. Às vezes me esquecia, às vezes me 
lembrava. Foram esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por 
onde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensava em 
Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria. 
Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de 
avanço, em minha história. O senhor tolere minhas más devassas 
no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, 
quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o 
compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer 
não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa. 
Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – me escutando 
com devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a 
contar corrigido. E para o dito volto. Como eu estava, com o 
senhor, no meio dos Hermógenes. 
Destaque feito: Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por nós. 
E tivemos notícia: a légua dali, eles estavam chegando, no meio 
do dia, patrulhão de cavaleiros. Légua, não era verdade – mas, 
obra de seis léguas, o sim. E eram só uns sessenta, por aí. Todo 
o tempo eu vinha sabendo que nosso fim era esse, mas mesmo 
assim foi feito surpresa. Eu não podia imaginar que ia entrar em 
fogo contra os bebelos. De certo modo, eu prezava Zé Bebelo 
como amigo. Respeitava a finura dele – Zé Bebelo: sempre 
entendidamente. E uma coisa me esmoreceu a torto. Medo, não, 
mas perdi a vontade de ter coragem. Mudamos de acampo, para 
perto, para perto. – “É agora! É hoje!...” O Hermógenes reunia 
o pessoal, todos. A gente carecia de levar o préstimo maior de 
 - Grande Sertão: Veredas 
– 275 – 
munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um gesto, me 
cortou de fazer mais perguntas. Às armas. Diadorim ia, para 
aquilo, prezável de passeata. Ah, uma coisa não referi ao senhor. 
Que era que, aquele tempo, no arranchamento do Hermógenes, 
minha amizade com Diadorim estava sendo feito água que corre 
em pedra, sem pepa de barro nem pó de turvação. Da voz de 
homens e do tinir de armas em má véspera, não se podia deixar 
de receber um lufo de dureza, de mais próprio respeito, e muita 
coisinha se empequenava. – “Zé Bebelo é arisco de aviso, 
Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em esconso, deve de 
ter outra tropa de guerra, prontos para virem dar retaguarda. Eu 
sei bem – essa a norma dele... Carece de prevenir o 
Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos...” – eu não retive, e 
disse. – “Eles sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa...” – 
Diadorim me respondeu. E eu estava sabendo que eu já dizer 
aquilp era traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinha de 
zelar por vida e pela dos companheiros. Mas era, traição, isto 
também sim: era, porque eu pensava que era. Agora, depois 
mais do tudo que houve, não foi? 
Agarrei minha mochila, comi fria a minha jacuba. Tudo 
estava sendo determinado decidido, até o que a gente tinha de 
fazer depois. Aí João Goanhá apartava o pessoal em punhados 
de quinze ou vinte: cada um desses, acabado o fogo, devia de se 
reunir em lugar certo comum. Daquela hora em diante, íamos ter 
de brigar em pequenas quantidades. Pelas caras dos homens, eu 
via que estavam satisfeitos, parecia muito e pouco. Com regozijo, 
um golinho se bebeu. – “Toma este breve, Riobaldo. Foi minha 
mãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu carrego dois...” 
Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava rifle de três 
canos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nunca tinha dado 
fé daquele Feijó? – “A vamos. Hoje se faz o que não se faz...” – 
um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus. Quem 
quisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos, 
acompanhavam. Outros ainda comiam, zampando, limpavam a 
boca com as duas mãos. – “Não é medo não, amigos, é o trivial 
do corpo!” – explicavam alguns, que ainda careciam de ir por 
suas necessidades. Restantes risadas davam. Ao que faltava nem 
meia-hora para o sol ir entrando. Daquele lugar, vazio de 
moradas e de terras lavradias, a gente ouvia o gugo da juriti como 
um chamado acabado, junto com lobo guará já dando gritos de 
penitência. – “Presta uma demão, aqui...” Ajudei. Era um montesclarense 
– acho que o cujo nome esqueci – que queria passar 
tiras de pano, por sola das alpercatas e peito dos pés, reforçando. 
Terminou, e fez os passos de dança, maneiro nas juntas, 
assobiava. Aquele rapaz pensava alguma coisa? – “Riobaldo?” – 
Diadorim me disse – “arruma jeito de mudar de lugar, na hora, 
sempre que puder. E põe cautela: homem rasteja por entre as 
moitas, e vem pular nas costas da gente, relampeando faca.” 
Diadorim sorria sério. Um outro me esbarrou, quando passava. 
Era o Delfim, violeiro. Onde era que a viola ele ia poder guardar? 
Eu apertei a mão de Diadorim, e queria sair, andar, gastar. 
Conto que chegou o Hermógenes. A voz do Hermógenes, 
dando ordens de guerra – já disse ao senhor? – ficava clara e 
correta; um podia dizer: que até ficava. Ao menos ele sabia 
aonde ia levar a gente, e o que queria. Deu resumo do traço. 
Que todos cumprissem, que todos soubessem! A partida dos 
zebebelos estava com posição no Alto dos Angicos – 
tabuleirinho de chã. Podiam ter espalhado sentinelas muito 
longe, até na beira do córrego Dinho, ou para lá, em volta, nas 
contravertentes. Mas, disso, logo se ia saber, porqual os espias 
nossos rondavam. O que se tinha era de chegar, já como o 
escuro, e engatinhar às ladeiras, no durado da noite, na arte 
vagarosa. Só íamos abrir fogo, de surpresa, no clarearzinho da 
madrugada. Cada um de seu Ponto melhor. Tudo tinha de valer 
Pm cnnsagato e finice, até se carecia de respirar só por metade. 
Se algum topasse com inimigos, por má-sorte, antes, ele que 
escorresse como pudesse, ou dependesse na faca: atirar com 
arma é que não podendo. Sendo que podendo, mas só depois do 
Hermógenes – que era quem era o dono: – o primeiro tiro ele 
dava. Como cada qual tinha de atirar com sangue-frio, de matar 
exato. Porque nosso prazo seria acabar com todos, com 
brevidade; mais antes que outros deles pudessem vir, para um 
reforço. Mesmo assim, Titão Passos ia com uns trinta 
companheiros reguardar o caminho de vinda, à emboscada, num 
tombador de pedra. Já vai que o Hermógenes explicava, devagar, 
e tudo repetia, com paciência: o dever absoluto era que até o 
mais tonto aprendesse, e estava definido o rumo de tarefa por 
onde cada um devia de se pôr no chão e começar a engatinhar, 
virada arriba. Mas, eu, catei o sentido de tudo já na primeira 
razão, e, de cada vez que ele repetia, eu reproduzia – em minha 
idéia os acontecimentos se passando, eu já estava lá, e rastejava, 
me aprontava. Peguei a sentir. Me fiz fácil nas armas. 
Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O 
Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras, mochilão, 
rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava 
parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem. 
Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens 
bons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentir ao  
senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo 
aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, 
agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que 
digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que 
vida é : é para se envergonhar... 
Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que 
espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu mesmo 
senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a 
minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem 
apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei 
meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no 
couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava 
amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um 
nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por 
cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro. 
Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia 
àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu, Riobaldo, eu!” 
Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca Ramiro 
parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei 
nele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca 
Ramiro!...” A arga que em mim roncou era um despropósito, 
uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio 
nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e 
desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater 
de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida. 
Aí, ele tinha que eu escolhesse os para vir juntos. Eu? Ele 
estava me experimentando? E não tardei: – “O Garanço...” – eu 
disse. – “... e este, aqui!” – completei, para aquele 
montesclarense apontando. Bem que eu queria também o Feijó; 
mas deviam de ser só dois, a conta já estava. E Diadorim? – o 
senhor perguntará. Ah, por Diadorim era que eu não dizia, o 
pensamento nele me repassava. O tempozinho todo, naquele 
soflagrante. E estúrdio: eu principalmente não queria Diadorim 
perto de mim, para as horas. Por quê? Por que, é o que eu 
mesmo não sabia. Seria que me desvalesse a presença dele 
comigo, pelos perigos que eu visse virem a ele, no meio do 
combate; ou seria que a lembrança de ter Diadorim junto, naquilo, 
me desgostasse, por me enfraquecer, agora eu assim, duro 
ferro diante do Hermógenes, leão coração? Se sei, sei. Porque 
era como eu estava. E assim respondi: que então o Garanço e o 
Montesclarense iam com a gente. 
Como saímos, viemos vindo, desfeitos aos dois, aos três, 
aos sozinhos. Já a já, era noite. Noite da Jaíba dá de uma asada, 
uma pancada só. Há-de: que se acostumar com o escuro nos 
olhos. Conto tudo ao senhor. O caminhar da gente se media em 
silencioso, nem o das alpercatas não se ouvia. De tantos matos 
baixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só. Por lá a 
coruja grande avoa, que sabe bem aonde vai, sabe sem barulho. A 
quando o vulto dela assombrava em frente da gente no ar, eu 
fechava os olhos três vezes. O Hermógenes rompia adiante, não 
dizia palavra. Nem o Garanço também, nem o Montesclarense. 
Isso, em meu sentir, eu a eles agradecia. Quem vai morrer e 
matar, pode ter conversa? Só esses pássaros de pena mole, 
gerados da noite – tantos bacuraus insensatos: o sebastião que 
chamava a fêmea, com grandes risadas, pedindo tabaco-bom. 
Digo ao senhor o que eu ia pensando: em nada. Só esforçava 
tenção numa coisa: que era que devia de guardar tenência simples 
e constância miúda, esperando a novidade de cada momento. 
Minha pessoa tomava para mim um valor enorme. Aquele 
pássaro mede-léguas erguia vôo de pousado no meio da estrada, 
toda vez ia se abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, 
conforme de comum esses fazem. Bobice dele – não via que o 
perigo torna a vir, sempre? 
Digo tudo, disse: matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo 
era que eu não pensava. Descarecia. Era assim: eu ia indo, 
cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas; 
acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina? Nanja 
não queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Com meia-légua 
andada, por um trilho. É preciso não roçar forte nas ramagens, 
não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jura sabença: o 
que preza o chão – o pé que adivinha. A gente imagina uns buracões 
disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhas estrelas 
dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor: a noite é da 
morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu 
mais pensei. No seguinte: como é que curiango canta. Que o 
curiango canta é: Curí-angú! 
A obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes 
esbarrou. Con chegamos. E com as mãos apalpávamos uns os 
outros. Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes, 
puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam 
de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem o de 
suindara. Cada um com punhal a ponto, atravessamos o córrego, 
pulando pelas alpondras; mais para baixo, sabíamos de uma 
estiva, mas lá se temia que tivessem botado sentinelas. Ali era o 
lugar pior: um estremecimento me desceu, senti o espaço da 
minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No outro lado, 
o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás 
duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, 
passante por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir 
horas, dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles 
acordam com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego. 
Acender cigarro e pitar, não se podia. A noite é uma grande 
demora. Ah o que os mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, 
direi, era que Hermógenes tinha escolhido ali: que ninguém 
pegasse no sono, que a mosquitada não deixava? Mas não seria 
de mim que pudesse ferrar no sono assim perto daquele homem, 
príncipe das tantas maldades. O que eu queria era que tudo 
sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de terminada. – 
“Tá aqui, toma...” – ouvi. Era o Hermógenes, um taco de fumo 
me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar. 
Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de 
comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do 
serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os 
mosquitos deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me 
divertindo de beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í. 
Daí, os pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu 
não sou capaz de dar narração: retrato de pessoas diversas, 
ressalte de conversas tolas, coisas em vago das viagens que eu 
tinha feito. A noite durava. 
Haja de contar o que foi – o todo de se escorregar para 
cima a encosta – até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de 
ser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem se arraiga em 
terra, no capim, no chão, e vai, vai – sendo serepente – de gatoem-
caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo, semelhante 
fosse nadando; cotovelo e joelho é que transpõem. Tudo um ai 
de vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não vale arranco de 
pressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, por mais de. 
As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Se coça a 
canela com o calcanhar; – estando com polaina não adianta. De 
cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta. 
Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro 
pousado em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao 
inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos 
gritos, no mesmo lugar – dão muito aviso. Aí quando é tempo de 
vaga-lume, esses são mil demais, sobre toda a parte: a gente mal 
chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor é 
uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra – é o pior aviso. 
O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, 
coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal 
travessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna. Às guardas, 
qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigo vindo dele. 
Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a 
barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é 
melhor se calcar no estrepe firme com gosto – que é o que mais 
defende d’ele não se cravar. O inimigo pode estar engatinhando 
também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro de 
terra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a cara. E uns 
gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu figurava que era 
das estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhas costas. 
Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da noite, 
lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, 
se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavel, numa certa 
morte dessas. Pior é a surucucu, que passeia longe, noturnazã, 
monstro: essa é o que há com mais doida ligeireza neste mundo. 
Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, 
da macega, das folhas, – é o que digo ao senhor; me desgostava. 
Raio de um repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu 
encolhi. Era um tatu, que ia entrando no buraco, fungou e escutei 
o esfrego de suas muxibas. Tatu-peba, e eu no rés dele. Que 
modo quê? Rastejando de minha banda da direita, o Hermógenes 
rompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultar deitado de 
bicho duro, braço por braço. O Garanço e o Montesclarense 
espigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando de sem-
menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo – me 
cochichou de mão em concha. – “É aqui mesmo...” – ele redisse. 
Onde era que estavam as estrelas dianteiras, e os macios pássaros 
da noite? – pensei. Eu tinha fechado os olhos. O cheiro dum 
araçá-branco formava bolas. Quietei. 
Até que o dia deu, que é que foi do meu tempo, que horas 
que se passaram? Aí eu podia medir, pelas estrelas que vão em 
movimento, descendo no rumo de seu poente, elas viravam. Mas, 
digo ao senhor, eu não olhei para o céu. Não queria. Não podia. 
Assim espichado, no escabro, um sofre o festo da noite, o chão 
esfriava. Pensei: será se eu fosse adoecer?; um longe de dor-dedente 
já me indispondo. Aquilo que cochilei – dormir, eu em 
firme rejeitava. O Hermógenes, um homem existente encostado 
no senhor, calado curto, o pensamento dele assanha – feito um 
berreiro. Aquelas mortes, que eram para daí a pouco, já estavam 
na cabeça do Hermógenes. Eu não tinha nada com aquilo, 
próprio, eu não estava só obedecendo? Pois, não era? Ao que, o 
meu primeiro fogo tocaieiro. Danado desuso disso é o antes – 
tanto antes, ror. O senhor acha que é natural? Osgas, que a gente 
tem de enxotar da idéia: eu parava ali para matar os outros – e 
não era pecado? Não era, não era, eu resumi: – Osgas... Cochilei, 
tenho; Por descuido de querer. Dormi, mesmo? Eu não era o 
chefe. loca Ramiro queria aquilo? E o Hermógenes, mandante 
perto, em sua capatazia. Dito por uns: no céu, coisa como uma 
careta preta? É erro. Não, nada, oi. Nada. 
Eu ia matar gente humana. Dali a pouco, o madrugar 
clareava, eu tinha de ver o dia vindo. Como era o Hermógenes? 
Como vou dizer ao senhor..? Bem, em bró de fantasia: ele 
grosso misturado – dum cavalo e duma jibóia... Ou um cachorro 
grande. Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse. 
Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, por conta 
nenhuma. Eu nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva 
nenhuma deles. Pessoal de Zé Bebelo, povo reunido na beira do 
Jequitaí, por ganhar seu dinheirinho fiel, feito tropa de soldo. 
Quantos não iam morrer por minha mão? Andante que 
perpassou um vento, entre ele o crico de grilos e tantos 
bichinhos divagados. Assaz, a noite, com sombras vermelhas. O 
exemplar da morte, dessa, é que é num átimo, tão ligeira, tão 
direitinha. As coisas que eu nem queria pensar, mas pensava 
mais, elas vinham. Vezo de falar do Geraldo Pedro, que disse: – 
“Aquele? Hoje ele não existe mais, virou sombração... Matei...” 
E o Catocho, contando doutro: – “... Lá tem uns órfãos meus, lá 
... Tive de matar o pai deles...” Por que era que falavam essas 
perversidades... Por que é que falavam... Por que era que eu 
tinha de obedecer ao Hermógenes? Ainda estava em tempo: se 
eu quisesse, sacanhava meu revólver, gastava nele um breve tiro, 
bem certo, e corria, ladeira abaixo, às voltas, caçava de meu 
sumir nesse vai-te-mundo. Ah, nada: então, aí mesmo era que o 
fogo feio começava, por todas as partes, de todo jeito morresse 
muita gente, primeiro de todos morria eu. Mesmo estava sem 
remédio. O Hermógenes mandava em mim. Que que quer, ele 
era mais forte! Pensei em Diadorim. O que eu tinha de querer 
era que nós dois saissemos sobrados com vida, desses todos 
combates, acabasse a guerra, nós dois largávamos a jagunçada, 
íamos embora, para os altos Gerais tão ditos, viver em grande 
persistência. Agora, aqueles outros, os contrários, não estavam 
também com poder de me matar? À asneira. E eu ia, numa 
madrugadinha, a cavalo, por uma estrada de areia branca, no 
Buriti-do-Á, beira de vereda, emparelhado com um capiauzinho  
bondoso, companheiro qualquer, a gente ria, conversava de 
tantas miúdas coisas, sem maldade, se pitava, eu ia levando meio 
saco de milho na garupa, ia para um moinho, para uma fazenda, 
para berganhar o milho por fubá... – sonhos que pensava. À fé: 
aqueles zebebelos também não tinham varado o Norte para destruir 
gente? E pois?! O que tivesse de ser, somente sendo. Não 
era nem o Hermógenes, era um estado de lei, nem dele não era, 
eu cumpria, todos cumpriam. “Vou para os Gerais! Vou para os 
Gerais!” – eu dizia, me dizia. Numa minha perna, então torci o 
de dar cãibra. Depois, tirei a dureza dos dedos. A ver, Diadorim, 
a gente ia indo, nós dois, a cavalo, o campo cheirava, dez metros 
de chão de flor. Por que que eu ia ter pena dos outros? Algum 
tinha pena de mim...? Cabeça de homem é fraca, repensava. O 
que se carecia justo de fazer era acabar logo com a guerra, 
acabar com aqueles zebebelos. Pensar em Diadorim, era o que 
me dava cordura de paz. Ah, digo ao senhor: dessa noite não me 
esqueço. Posso? Aos poucos, fui ficando soporado, nem bom 
nem ruim. Matar, matar, que que me importava? Dessa noite 
esquecer não posso. Garoou, para a aurora. 
Como clareia: é aos golpes, no céu, a escuridão puxada aos 
movimentos. A gente estava de costas para as barras do dia. Me 
lembro do que me lembro: o Hermógenes cruzou, adiante, 
chato no chão, relando barriga em macio. Aquele homem era 
danado de tigre, estava cochichando na cabeça do Garanço, 
depois com o Montesclarense – mostrava a eles os lugares em 
que deviam-de. Arre, voltou para perto de mim, agora veio da 
outra banda. Disse: – “Tento, Riobaldo...” Eu vi quando o 
Garanço rojou, indo, indo, pegou postura na proteção dum 
cupim grande; obra de cinco metros para a minha frente,  
pouquinho para esta banda da esquerda. No não longe, rumo a 
rumo, divulguei o Montesclarense. Eu ainda mudei distância de 
uns passos: aproveitei tapação duma árvore de boa grossura – 
um araçáde-pomba, fechado. De sovigia, o Hermógenes não me 
largava. Doesse na gente, mesmo aquele principiozinho de 
madrugada. Apertava a necessidade. Por que não se avançava de 
uma vez, para tudo, vir às brabas? Ah, não se podia. Só logo no 
primeiro entremear com os bebelos, nós quatro havíamos de 
restar mortos, cosidos nas parnaíbas. E, dos companheiros, 
outros, não se sabia. Sendo somente que o acampamento dos 
bebelos devia de estar a uma hora dessas cercado exato, em boa 
distância, à roda toda. Tudo era paciência. Vinha um 
ventozinho, folheando. Tantos homens amoitados , que só 
espiavam: na obrigação – refleti. Até achei bonito, agora. Aí 
passarinhos que já vão voando, com o menorzinho ralo de luz 
eles se contentam, para seu só isso de caçar o de comer. Triste, 
triste, um tiriri cantou. Alegre, para mim, a peitica. Olhei 
adiante, curto, lá era que eles estavam: por entre umas árvores 
pequenas, dava réstia de claridade, e um formato de homem, 
contravisto. Ele ia acender fogo. E apareceram vultos de outros, 
levantantes. Com pouco, alguns podiam vir descendo, buscar 
mais água no corguinho, se carecessem. Asneiras que pensei: 
será que eles gastaram muita água? Será que um esmorece, por 
medo ter? Eu não campeava a morte. Seguro nasci, sou feito. 
D’o Hermógenes ali junto estar, naquela hora, digo ao senhor, 
gostei. – “Riobaldo, Tatarana! É o é...” – ele me governou, de 
repente. Aceitei. Desamarrei mão, de vez pronta: eu já tinha 
resumido pontaria: eu tive consolo duma coisa, que era que 
aquele homem alto não podia ser Zé Bebelo... Não tremi, e 
escutei meu tiro, e o do Hermógenes; e o homem alto caiu certo 
morto, rolou na má poeira. Me deu uma raiva, dele, deles todos. 
E em toda a parte, a sobre, o tiroteio tinha começado. 
Estrondou. Falavam os rifles e outros: manlixa, granadeira 
e comblém. Festa de guerra. 
Mais digo ao senhor? Atirei, minhas vezes. Aí, tomei ar. O 
senhor já viu guerra? A mesmo sem pensar, a gente esbarra e 
espera: espera o que vão responder. A gente quer porções. 
Demais é que se está: muito no meio de nada. A morte? A coisa 
que o que era xô e bala. Que qual, agora não se podia mais ter 
outros lados. Agora era só gritar ódio, caso quisesse, e o ar se 
estragou, trançado de assovios de ferro metal. O senhor ali não 
tem mãe, não vê que a vida é só brabeza. Revém ramo cortado 
de árvore, aí e o comum que cavacam poeiras e terras. Digo ao 
senhor, dou conversa. Aquilo era. Artes que carreguei o rifle, 
escorei, repetente. Aquele povo inimigo nosso esperdiçava muita 
munição, atiravam com nervosia. Não queriam morrer por nossa 
mão, não queriam. Ri me ri, e o Hermógenes me chamou com 
assombro. Em isso ele me crendo endoidado. Mas eu estava era 
de repente pensando em meu padrinho Selorico Mendes. 
“Agora, tu mesmo vai lá, vai! Tu não quer?!” – foi o que 
arranjei vontade de gritar com o Hermógenes. Cão, que ele. Ri 
mais. Homem sozinho, com sua carabina em mãos, o 
Hermógenes era um como eu, igual, igual, até pior atirava. E 
aqueles bebelos tinham feito madrugada para levar fogo. Fiquei 
meu. “... Se todos passam mão em arma e fecham volta de 
tiroteio, uns contra os outros, então o mundo se acaba...” – acho 
que pensei. Eram só tolicezinhas, que por minha mente 
marinhavam. Os tiros peguei a querer contar. Aquilo como 
durou, demorava um oco. O dia tinha clareado saído: eu todo 
podendo descrever o Montesclarense, atrás dum toro de pau e 
moitas de anduzinho. Para que conto isto ao senhor? Vou longe. 
Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São 
coisas que não cabem em fazer idéia. 
Combate quanto, combate grande. Ser menos, que a gente 
não rastejava alterando de lugar, que não era o caso. Quase que 
só quando se pega no defendimento é que isso é de se fazer: para 
pensarem que se vai em número maior que a verdade. Como 
não, mais valia garantir o bom do posto, sem desguar. Tiro de lá 
chama tiro de cá, e vira em vira. Disparo que eu dava, era 
catando mover alheio, cujo descuido, como malandro 
malandreia. Nem cento – e-cinqüenta braças era o eito, jaculação 
minha. Aquilo servia até para carga de bocamorte. E mais de um, 
eu etcétera, aí, pelo que sei, pelo que vejo. Mas só aqueles que 
para morrer estavam com dia marcado. Minto? O senhor releve 
idéias. Era assim. 
Deu vez de, os muitos tiros se assanhavam, de prão, em 
riba dum trecho só. Queriam costurar. Aí, e as horas não 
acabavam. O sol encostava na nuca da gente. Sol, solão, debaixo 
eu suava, transpirava dos cabelos, e pelo dentro das roupas, de 
sentir as cócegas grossas no meio do lombo; e essas dormências 
numas partes do corpo. Então, eu atirava. Não se ia avançar? 
Não, nem. Os outros picavam forte, o fogo deles não 
desmerecia. Cachorrada! Xingar, mesmo, ia servir só para 
mostrar mais alvo. Ao que, eu descansava meus olhos nas costas 
do Garanço, ali quase em minha frente. O Garanço tinha 
arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só 
com a camisa de xadrezim. Eu vi o suor minar em mancha, na 
camisa, no meio das costas dele, Garanço, aquela nódoa escura 
ia crescendo, arredondada, alargada. O Garanço disparava, 
sacudia o corpo, ele era amigo meu, com minúcia de valentia. 
Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade. Então, eu 
atirava, também. “Bala e chumbo...” – eu peguei a dizer. “Bala e 
chumbo... Bala e chumbo...” O lugar do coração me apertando 
– eu era carne muita e calor bravo – “O que foi? Que é?” – o 
Hermógenes me perguntou. – “Nada não!” – respondi. “Bala e 
chumbo... Chumbo e bala...” Estrumes! Pelo que foi, de repente: 
bem apartado, da banda esquerda de nós, uns homens dos 
nossos deram figura, se pulando para diante, aos gritos, 
investiram – contra o contra! 
Ao que, eram dois... Três... – “Diá!” – o Hermógenes 
rosnou: – “Deu a fúria nesses, bute!” Raspa que eles por lá 
entraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou, suspendemos 
fôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o 
Montesclarense – coitado! – também tinha crescido para avante, 
no igual, e, de lá, nele balearam. Caiu, catando cacos. Pobre. Deu 
doidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando no vespeiro 
dos bebelos, roncavam em poeira deles, decerto se acabavam 
estraçalhados que nem coelho com a cainça. Tomara tivessem 
aprontado seus alguns! Assim aquilo sossegou, povo nosso 
demos raiva de fogo – aí é que foi atirar. O Hermógenes me 
resignou os ímpetos: – “Tatarana, te trava, não dá de esquentar 
arma, gasta munição não. Só os tiros bons poucos. Só cobrar o 
dizmo.” Aquele homem fazia frio, feito caramujo de sombra. A 
ver que tive sede, mas minha cabaça não dava gota mais. Guardei 
meu cuspe. 
Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra que não se sabe 
terminar? Assunto que apostaram os mil tiros para cima de nossa 
redondez de lugar, esses assoviaços. Triplavam. No ferrenho, tive 
um tempo de coisa, espécie de mais medo, o que um não 
confessa: vara verde, ver. Mas, morresse, eu descansava. 
Descansava de todo desânimo. Andando que aquele ataque 
nosso não servia para resultado nenhum, e eu carecia de avistar 
os outros, saber de qualquer contagem de balanço, de quantos 
tinham morrido ou estavam mal. Eu queria saber, dos deles e dos 
nossos. Combate sem cabimento! Só o tiroteio, repetido 
reproduzido. Meio peguei um pensamento: se o Hermógenes 
sungasse raiva, se o Ele desse nele, por um vir? Que mandasse 
avançasse, a fino de faca, nós todos tínhamos de avançar? Então, 
eu estava ali era feito um escravo de morte, sem querer meu, no 
puto de homem, no danadório! E eu não podia virar só o corpo 
um pouco, abocar minha arma nele Hermógenes, desfechar? 
Podia não, logo senti. Tem um ponto de marca, que dele não se 
pode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo 
só, minha coragem regulada somente para diante, somente para 
diante; e o Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado – 
era feito fosse eu mesmo. Ah, e toda hora ele estavas sempre 
estava. Que me disse: – “Tatarana, toma, come, e agradece ao 
corpo um poucado...” Há-de que estava me oferecendo a 
capanga, paçoca de carnes. 
Tanto que os tiros tinham esbarrado quase em completo, 
em partes. Eu, tendo comida minha, de matula, no bornal. Aí, e 
munição minha de balas, no surrão. Eu carecia lá do 
Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, que mastiguei 
daquela carne, nem fome acho que não tinha direito, engoli 
daquela farinha? E pedi água. – “Mano velho, bebe, que esta é 
competente...” – ele riu. O que estava me dando, na cabacinha, 
era água com cachaça. Bebi. Limpei os beiços. Escorei o cano 
do rifle, num duro de moita. Eu olhava aquele bom suor, nas 
costas do Garanço. Ele atirava. Eu atirava. A vida era assim 
mesmo, coração quejando. Até me caceteou uma lombeira. 
E, daí, deu-se. Da banda de longe – lá pelo tombador de 
pedra, onde nossa gente com Titão Passos estavam escondidos 
para a esparrela – foi um tirotear forte, fogo por salvas. Ah, 
então era outra partida de zé-bebelos que deviam de estar 
chegando, drongo deles, cavaleiros. O Hermógenes esticou o 
pescoço, rijo ouvindo. Soante que atiravam, sucedidos, o tiroteio 
foi mudando de feição. – “Tou gostando não...” – o que o 
Hermógenes disse. Mais disse: – “O diabo deu em erro...” 
Homem atilado, cachorral. – “Seja que sabidos vieram, eh, 
pressentiram! Sei se, por ora, o trabalho está desandado...” Aí, 
eu estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do 
Garanço, ela, a mancha, estava ficando de outra cor... O suor 
vermelho... Era sangue! Sangue que empapava as costas do 
Garanço – e eu entendi demais aquilo. O Garanço parado 
quieto, sempre empinado com a frente do corpo, semelhando 
que o cupim ele tivesse abraçado. A morte é corisco que sempre 
já veio. Ânsias, ao em que bola me vinha goela arriba, do 
arrocho grosso, imposto, que às vezes em lágrimas nos olhos se 
transforma. A bobagem... 
– “Tu, Tatarana, Riobaldo: agora é a má hora!” – era o 
Hermógenes prevenindo. – “Demo!” – eu repontei. Mas ele não 
entendeu minha soltura. Soprou: – “A muita cautela. Temos,  
que se foge em boa ordem: os que estão chegando vêm rodear a 
gente, vão dar retaguarda.” E era. Como que esse maldito tudo 
sabia, adivinhava o seguinte vivo das coisas, esse Hermógenes, 
trapaças! Mas ainda me prezei: quem é que me segurava de ir?! – 
rastejei de esquinado, os metros, em afogo, carecia de ver se o 
Garanço podia ter ajuda. – “A p’a trás, mano. Te cuida!” – ouvi 
o rispe do Hermógenes – que eu não me desgraçasse. Mas não 
se deixa um cristão amigo deitar seu sangue no capim das 
moitas, feito um traste roto, caititu caçado. Peguei, com meus 
braços: não adiantava – era corpo. Ele estava defunto de não 
fechar boca – aí, defunto airado. Todo vejo, o sangue dele a 
mofos cheirasse. Anda que vinham vôo os mosquitos 
chupadores, e mosca-verde que se ousou, sem o zumbo frisso, 
perto no ar. Porque os tiros. E nem um momento de vela acesa 
o Garanço não ia poder ter. – “Vem, tu vem, que estamos no 
amém estreitos!” – que, enfezado, o Hermógenes chamou. Dei 
para trás. O perigo saca toda tristeza. E a vez era esta: que o 
Hermógenes encheu os peitos, e soltou um rinchado zurro, dos 
de jumento velho em beira de campo. Três tantos. Ele estava 
dando a retirada. Por outros lados, mais longe, outros o mesmo 
onco-e-rincho copiavam. – “Arre, fogo, agora, forte fogo!” – o 
Hermógenes me mandou. Atirei. Atiramos, teúdo. Ao que os 
companheiros todos atiravam. Assaz à retirada se estava 
rinchando, mas os inimigos não sabiam: carecia que eles 
pensassem que a gente ia dar um ataque final. Acharam? E sei. 
A bala com bala ripostavam. Mas, nós, nesse entrequanto, 
rompemos o arvoredo, aqui e ali, rojamos para baixo, embora, 
mesmo. Desunir, assim, verga pior do que avançar. A lanço a 
lanço, fui, pulei, nos abertos entre árvores, acompanhei o 
Hermógenes. Aí, eu já estava para lá dele; mas virei e esperei. 
Porque, na desordem de mente do alvoroço, aquela hora era só 
no Hermógenes que eu via salvamento, para meu cão de corpo. 
Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, 
cumpre também. Vim. Ainda divulguei, nas sofraldas descentes, 
homens que corriam, meus iguais, às vezes se subiam do 
bamburral baixo, feito acãoada codorniz. Viemos. Repassamos o 
corguinho do Dinho, beiramos uma ipueira. Entramos no 
cerrado. – “Tu tem tudo, Tatarana? Munição, as armas?” – o 
Hermógenes me indagou. – “Tenho, se tenho!” – eu respondi, 
bem. E ele para mim: – “Então, está certo...” Agora ele falasse 
grosseado, com modo de chefe e mando, era assim. E fomos 
para cinco léguas, entre o norte e o poente, no Cansanção, lugar 
aonde um punhado dos da gente devia de se engrupar. Para lá 
fomos, de rastros apagados. Caminhamos prazo dentro de 
riacho, depois escolhemos para pisar pedras, de nosso pisado 
com ramos as marcas desmanchamos, e o mais do caminho se 
seguiu por muitos diversos rodeios. 
De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha 
vida em dobrados passos; servia para quê? Quero é armar o 
ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí, 
então, careço de que o senhor escute bem essas passagens: da 
vida de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa 
noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço 
Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não 
quero ser. Deus esteja! 
E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou o nosso 
bom esconder, num boqueirãozinho, já achamos companheiros 
outros, diversos, vindos de armas, e que chegavam 
separadamente, naquela satisfação de vida salva. Um era o Feijó. 
Será, se tinha avistado o Reinaldo sem perigo? A meio 
perguntei. Por causa que só em Diadorim era que eu pensava. O 
Feijó em tanto tinha notado: Diadorim, na retirada, bem 
conseguido; depois se retrasou, por uma cacimba de grota. – “... 
Estava com sangue numa perna de calça. Para mim, foi nada, 
arranho à-toa...” O que me ensombreceu – então Diadorim 
estava ferido. Aí, eu mesmo esbarrei, beirávamos o riachinho do 
Jio, eu quis lavar os pés, que muito me doíam. Acho que, de 
cansado, estava também com dores redondas de cabeça, molhei 
minhas fontes. Cansaço faz tristeza, em quem dela carece. 
Diadorim estivesse ali, somentemente, espaço disso me alegrava, 
eu não havia de querer conversar reportório de tiros e combates, 
eu queria calado a conseqüência dele. Ao modo que eu nem 
conhecia bem o estorvo que eu sentia. Pena. Dos homens que 
incerto matei, ou do sujeito altão e madrugador – quem sabe era 
o pobre do cozinheiro deles – na primeira mão de hora varado 
retombado? Em tenho que não. Dó que me dava era do 
Garanço, e o Montesclarense. Quase com um peso, por minha 
culpa dos dois – eles eu era quem tinha escolhido, para conduzir, 
e depois tudo. Logo esses – o senhor sabe, o senhor segue 
comigo. Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, 
daqui, vereda abaixo, tigre canguçu estragou e arruinou a perna 
do Sizino Ló, um que foi desse rio de São Francisco, foguista de 
vapor; depois cá herdou uns alqueires. Comprou-se para ele, 
então, uma boa perna-de-pau. Mas, assim, talvez por se ter 
sacolejado um pouco do juizo, ele nunca mais quer sair de casa, 
nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: – “Ai, 
quem tem dois tem um, quem tem um não tem nenhum...” Todo 
o mundo ri. E isso é remorso? Desgraça a mando era que eu 
cumpria, azo de que tivesse perdido alguma coisa. Porque dó de 
amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era. E cheguei 
no CansançãoVelho, chamado também o Jio, dito. 
Lá, com pouco, a gente era doze. Os alguns faltavam, dos 
que eram para se reunir ali, mas decerto ainda vinham vir. Num 
ponto me agradei: então, em guerra, quase não se morre? E, 
mesmo, nas más horas é que vem bom consolo: para o Jio tinha 
tocado, de antevéspera, o Braz, nessa antecedência em dois 
jumentos ele tinha trazido mantimento de feijão e arroz, e toucinho 
para torresmos, e pratos e panela, se cozinhou um jantar. 
Tanto que comi, deitei. Dormi impado. Que caso que eu carecia 
de pensar, que não fosse que na morte do Garanço e do 
Montesclarense eu não devia nenhum dolo; e que Diadorim ia 
chegar a vir também, aonde estávamos, mais tardar no romper da 
aurora? Dormi. Mas daí a logo acordei, mão no rifle, como se vez 
fosse. E não havia a coisa nenhuma, nem vulto nem barulho. Os 
outros no estar, pesados no sono, cada um em seu recanto, 
estufando suas redes penduradas de árvore em árvore. 
Só vi um, o Jõe Bexiguento, sobrechamado o Alpercatas 
esse era homem de estranhez em muitos seus costumes, 
conforme se dizia e era notado. Jõe Bexiguento parecia não estar 
querendo ir dormir, tinha ficado na beira do fogo, remexendo as 
brasas; num fusco em vermelho, dava para a cara dele se divulgar. 
E ele pitava. Meigo repus o rifle, virei para o outro lado. 
Adormecer, pude; mas, com outros minutos, tornei naquele mau 
susto de acordar. Isso aconteceu três vezes, reformadas. Jõe 
Bexiguento reparou em meu dessossego, veio para o pé de minha 
rede, sentou no chão. – “Horas destas, tem galo já cantando, 
noutros lugares...” – ele falou. Não sei se dei alguma resposta. 
Agora eu estava cismado. 
Ou se fosse que algum perigo se produzia por ali, e eu 
colhia o aviso? Não é que, com muitos, dose disso sucedesse? Eu 
sabia, tinha ouvido falar: jagunços que pegam esse condão, 
adivinham o invento de qualquer sobrevir, por isso em boa hora 
escapam. O Hermógenes. João Goanhá, mais do que todos, era 
atreito a esses palpites de fino ar, coraçãoados. Atual isso 
comigo? Que os bebelos rodeavam para ali, quem sabe perto já 
rastejavam. Zé Bebelo mandava neles. Em todos o momentos, 
em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de 
passagens emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição a ele, 
ditado e leitura, as contas de juros; depois, de noite, na sala 
grande, na mesa grande, se comia canjica temperada com leite,
queijo, coco-da-baía, amendoim, açúcar, canela e manteiga-devaca. 
– “Fofo faço, e em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez 
com essa cambada canalha de jagunços!” – ele referia, com 
rompante e festa no dizer, bebendo seu coité de chá-decongonha, 
que de tão quente pelava. Então, agora, era eu 
também – Zé Bebelo vinha de lá, comandando armas de esquadrões, 
e o que ele tinha jurado, naquela ocasião, ficava sendo 
também de acabar comigo, com minha vida. Mas eu prezava Zé 
Bebelo, minha simpatia é uma só, dada definitiva às altas, sempre 
fui assim. Sendo que não fosse ele em sua pessoa, se ele no meio 
não estivesse, tudo tinha outra ordem: eu podia pôr meu afinco o 
– farto destravado, no querer combater. Mas, brigar, cruzando 
morte, com Zé Bebelo, eu vi que era isso que me dava uma repugnância, 
em minha inteligência. Levantei da rede, e convidei 
Jõe Bexiguento para se botar mais lenha no fogo. Ele disse: – 
“Convém não. Ocasiões assim, convém acender nem vela de cera 
preta...” Enrolei um cigarro. 
Contei ao Jõe o que eu estava sentindo estúrdio; se não era 
agouramento? E ele me apaziguou: que anjo aviso não vinha 
desse jeito, antes era uma certeza que minava fininha, de dentro 
da idéia da gente, sem razoado nem discussão. O que eu purgava 
era ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nas horas de 
tiroteio. – “Comigo, assim, depois de cada forte fogo, me dá esse 
porém. É uma coceira na mente, comparando mal. Faz regular 
uns seis anos, que estou na jagunçagem, medo de guerra não 
conheço; mas, na noite, passado cada fogo, não me livro disso, 
essa desinquietação me vem...” 
Pela causa, me disse, era que ele não vencia dormir nem um 
pisco, naquela comprida noite, e nem experimentava. Jõe 
Bexiguento achava que não tinha mais sustância para ser jagunço; 
duns meses, disse, andava padecendo da saúde, erisipelava e 
asmava. – “Cedo aprendi a viver sozinho. P’ra o Riachão vou, 
derrubo lá um bom mato...” Era o projeto em tal, que ele 
formava vez em quando. – “Trabalhar de amassar as mãos... Que 
isso é que sertanejo pode, mesmo na barra da velhice...” 
– “Você era amigo do Garanço, Jõe?” – em manso 
perguntei. – “Assim, o dito, pela rama. Que foi com ele? Deu o 
fim, mesmo, legal? Acho que esse sempre se esteve meio 
caipora... Ele mesmo sabia que era...” Ainda ouvindo as palavras, 
conheci que tinha perguntado pelo Garanço só para depois 
perguntar por Diadorim, digo: o Reinaldo. Mas outra coragem 
não tive. Faltou razão para mim. Que desconversei: – “Caipora 
se cura, Jõe? Você sabe rezas fortes?” – por aí devo que indaguei; 
bobéia minha, assunto. – “A que cujo, se caipora não curasse? 
Todo o mundo dela tem, nos tempos...” – ele me repositou. – “... 
Mas desses ensalmos quis aprender não. Memória que Deus me 
deu não foi para palavrear avesso nele, com feitas ofensas...” 
Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com 
Deus? Jagunço podia? Jagunço – criatura paga para crimes, 
impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e 
roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura 
toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro 
peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, 
assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de 
Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. 
– “Uai?! Nós vive...” – foi o respondido que ele me deu. 
Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, 
duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, 
sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um 
bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse, 
aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois 
do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um, que estava com sua 
rede ali a próximo, de certo acordou com meu vozeio, e xingou 
xiu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que 
sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja 
bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o 
branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe 
da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que 
posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas 
transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao 
que, este mundo é muito misturado... 
Mas Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem 
jagunço, como ele no cerne era, a idéia dele era curta, não 
variava. – “Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, 
jagunceio...” – ele falasse. Tudo poitava simples. Então – eu 
pensei – por que era que eu também não podia ser assim, como o 
Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe Bexiguento, no 
sentir da natureza dele, não reinava mistura nenhuma neste 
mundo – as coisas eram bem divididas, separadas. – “De Deus? 
Do demo?” – foi o respondido por ele – “Deus a gente respeita, 
do demônio se esconjura e aparta... Quem é que pode ir divulgar 
o corisco de raio do borro da chuva, no grosso das nuvens 
altas?” E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era 
engraçado. Naquele tempo, também, eu não tinha tanto o estrito 
e precisão, nestes assuntos. E o Jõe contava casos. Contou. Caso 
que se passou no sertão jequitinhão, no arraial de São João Leão, 
perto da terra dele, Jõe. Caso de Maria Mutema e do Padre 
Ponte. 
Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria 
Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma 
noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. 
Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais 
vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal 
nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde 
apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que 
podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa 
manhã, o marido foi bem enterrado. 
Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito 
sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou 
a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se 
diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota 
foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à 
igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se 
confessava. Dera em carola – se dizia – só constante na salvação 
de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher 
que não ria – esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os 
olhos do padre. 
O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de 
meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos 
bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma 
pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, 
simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e 
também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a 
Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo 
nessa situação – com a ignorância dos tempos, antigamente, essas 
coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bemcriados 
e bonitinhos, eram “os meninos da Maria do Padre”. E 
em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia, 
cumpridor e caridoso, pregando cora muita virtude seu sermão e 
atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos 
roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santosóleos. 
Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas 
partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três 
em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o 
Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido 
naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser 
por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, 
das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, 
terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava 
de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma 
santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se 
viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de 
verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a 
Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a 
poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós. 
E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no 
decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para 
morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o 
modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de 
palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por 
diante, mesmo quando veio outro padre para o São João Leão, 
aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem 
por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva 
soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém não 
alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava. 
Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e 
chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres 
estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradando sermão 
forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado 
de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, 
confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados 
exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião 
deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e 
com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto 
poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só 
que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança. 
Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no 
seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral 
e glória santa. E foi de noite, acabada a benção, quando um dos 
missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de 
começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que 
a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia 
em igreja; por que foi, então, que deu de vir? 
Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria 
Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um 
susto: porque a salve-rainha é oração que não se pode partir em 
meio – em desde que de joelhos começada, tem de ter suas 
palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionário retomou a 
fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no 
amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa
vermelho, debruçado, deu um soco no pau do peitoril, parecia 
um touro tigre. E foi de grito: 
– “A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p’ra 
fora, já, já, essa mulher!” 
Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema. 
– “Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus 
e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então 
pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... 
Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério! Que 
vá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois 
defuntos enterrados!...” 
Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da 
igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em 
fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e 
meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se 
ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam. 
E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, 
deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que 
faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que 
da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência, 
antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre 
prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se 
confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer 
exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava 
gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto 
comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha 
matado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado 
do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, 
aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, 
causa nenhuma ; por que, nem sabia. Matou – enquanto ele 
estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido 
dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O 
marido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – do sono 
para a morte; e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi 
ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, 
também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no 
confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por 
causa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogo de 
amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela 
não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, 
ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava 
de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de 
modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. 
Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais 
declarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de 
desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, 
e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, 
se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela 
levantava. 
Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, 
louvado seja! – e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para 
as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, 
porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre 
para os ouvintes senhores homens, como conforme. 
E no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado 
com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes 
muitos, missa cantada, procissão – mas todo o mundo só 
pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na 
casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, 
clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem 
para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela – 
exclamava – tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram 
da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a 
caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto 
por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão 
ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora. 
Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa 
e júri, na cadeia de Araçuaí. Só que, nos dias em que ainda esteve, 
o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos 
rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do 
Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bemestar 
e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela 
principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria 
Mutema estava ficando santa. 
E foi isso que Jõe Bexiguento a mim contou, e que de certo 
modo me divagasse. Mas, foi ele acabar de contar, e escutamos o 
assovio combinado dos nossos, e demos resposta: era um que 
chegava – o Paspe – se aparecendo macio dos escuros, com 
alpercatas sem barulho e o rifle em bandoleira. Ele tinha 
formado, para a esparrela, com Titão Passos, agora vinha trazer 
notícia dos dele, seguidos para se ajuntarem ao covo do Capão; e 
pedir ordens. Rio de homem, esse Paspe: que não temia nem se 
cansava. Contou: que, aquilo que era para estratagemas, deu foi 
em por água-abaixo, porque os bebelos tinham botado espiação, 
ou tomado o faro. Assim, o inimigo contornando, em vez de vir  
simples: e tochando resposta antes de pergunta, fogo feio – dois 
mortos, dos titão-passos, companheiros bons; mais três muito 
feridos. Guerra tinha disso também. 
– “Ah, e Zé Bebelo mesmo estava lá, no comando 
daqueles, em sua dita pessoa?” – perguntei. 
– “Decerto que estava. A cujo!” – o Paspe falou; e pediu 
logo quem tivesse um golinho de cachaça. 
Devo, então, que perguntei por Diadorim. Puro por 
perguntar, sem esperanças de informação. E mesmo, más 
notícias eu ainda tinha o receio de ouvir. Serviço que me foi, o 
Paspe me respondeu: 
– “Vi, esse por mim passou, até me deu um recado, uail: e 
para você mesmo: – Vai, diz por mim ao Riobaldo Tatarana: que eu 
tenho um quefazer, ao que vou, por dias poucos, com breve estou de 
volta... – foi o que falou. Assim passou, a cavalo – onde terá sido 
que arrumou montada? Decerto conseguiu algum animal dos 
bebelos mesmo, que restou no meio de tirotei’...” 
Ouvi e não cri. Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mim então, 
não podia ser ele, foras de norma. E ao Paspe reperguntei, 
pedindo o exato. Era. Mas não seria, então, que ele estivesse 
ferido, numa perna? 
Ao que nem não nem sim – mais pelo não que pelo sim... – 
o Paspe completou. Não tinha reparado, no relance de tempo. Só 
viu que o arreio era um socadinho, quase novo, e o cavalo alto, 
desbarrigado, mas pronto de si, riscando com todas as ferraduras, 
murzelo -andrino... 
Aí, ai, oi, espécie de dor em meus cantos, o senhor sabe. 
Agora eu pateteava. Que que era ser fiel; donde estava o amigo? 
Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minha companhia. 
Às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro. 
Ah, ele, que de tudo sabia em tudo, agora assim de tenção me 
largava lá sem uma palavra própria da boca, sem um abraço, 
sabendo que eu tinha vindo para jagunço só mesmo por conta 
da amizade! Acho que me escabreei. De sorte que tantos 
pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas 
do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, 
de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto, 
que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com 
água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado 
febre de estupor. Foi assim. 
Vou reduzir o contar: o vão que os outros dias para mim 
foram, enquanto. Desde que da rede levantei, com aquele peso 
anoitecido, amanhecido nos olhos. Tempo de minha vazante. A 
ver como veja: tem sofrimento legal padecido, e mordido e 
remordido sofrimento; assim do mesmo que tem roubo 
sucedido e roubo roubado. Me entende? Dias que marquei: foram 
onze. Certo que a guerra ia indo. Demos um tiroteio 
mediano, uma escaramucinha e um meio-combate. Que isso 
merece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhor quiser, dou 
descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o que é: 
esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja. 
Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – 
o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece 
longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas 
principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser 
que o senhor saiba. Agora, o senhor exigindo querendo, está 
aqui que eu sirvo forte narração – dou o tampante, e o que forde 
trinta combates. Tenho lembrança. Pelo tempo durado de 
cada fogo, se é capaz até do cálculo da quantidade de balas. 
Contar? Do que se agüentou, de arvoados tiros, e a gente 
atirando a truz, no meio de pobre roça alheia, canavial cortante, 
eito de verde feliz ou palhada de milho morto, que se pisava e 
quebrava. De vez em que rifle trauteava tanto, e eram os estalos 
passando, repassando, que, vai, se aconchava mão em orelha, 
sem saber por que, feita uma esperança de se conseguir milagre 
de algum barulhinho diverso outro, qualquer, que aquele não 
fosse, na ensurdescência. E quando toró de chuva deu bomba, 
desmanchando a função de briga e empapando todos, 
ensolvando as armas. De se olhar em frente o morro, sem 
desconfiança, e, de repente, do nu do morro, despejarem 
descarga. De um entrar em poço, atravessando, e mesmo com 
água quase até pelos peitos, ter de se virar em direção, e 
desfechar. De como, no prazo duma hora só, careci de ir me 
vendo escorando rifle e alvejando, em quentes, em beira de 
mato e campo, em virada de espigão, descendo e subindo ramal 
de ladeirinhas pequenas, e atrás de cerca, debaixo de cocho, 
trepado em jatobá e pequizeiro, deitado no azul duma laje 
grande, e rolando no bagaço doce de cana, e rebentando por 
dentro de uma casa. E de companheiro em sopas de sangue 
mais sujeira de suas tripas, lá dele, se abraçando com a gente, de 
mandado da dor, para morrer só mesmo, seja que amaldiçoando, 
em lei, toda mãe e todo pai. E como quando, no refervo, 
combatendo no dano da mormaceira, a raiva de fúria de repente 
igualava todos, nos mesmos urros e urros, uns e uns, contras e 
contrários – chega se queria combinar de botar fora as armas-defogo, 
para o aproximaço de se avir em mãos às duras brancas, 
para se oferecer fim, oferecer faca. Isso é isto. Sobejidão. O 
senhor mais queria saber? Não? Eu sabia que não. Menos 
mortandades. Aprecio uns assim feito o senhor-homem sagaz 
solerte. 
Vir voltemos. Aqueles dias eu empurrei, mudando em raiva 
falsa a falta que Diadorim me fazia. Aí, curti amargos. Por me ver 
casca em chão, que é o figurado de desprezo, e mais tudo o que 
em ocasiões dessas se sente, conforme o senhor decerto conhece 
e sabe. Mas o pior era o que eu mesmo mais sentia: feito se do 
íntimo meu tivessem tirado o esteio-mor, pé-decasa. E, conforme 
sempre se dá, segundo se está assim em calibre de cão, e 
malquerente, repuxei idéias. Me alembrei do que tinha soprado 
em intriga o Antenor, e dei razão à cisma dele: quem sabe, 
mesmo, Joca Ramiro estava no propósito de deixar a gente se 
acabar ali, na má guerra, em sertão plano? E então Diadorim 
disso sabia, estava no enredo, agora tinha ido para junto de loca 
Ramiro – que era a única pessoa que ele bastantemente prezava? 
Fiquei em mim desiludido, caí numa lazeira. Mas cuspi três vezes 
forte no chão, e risquei de mim Diadorim. Homem como eu não 
é todo capaz de guardar a parte de amor, em desde que recebe 
muitas ofensas de desdém. Só que, depois, o que há, é a alma 
assim meio adoecida. Digo, fiquei lazo. Me veio de pensar em 
falar com o Antenor. Não fiz. Dúvidas dessas, eu não ia repartir 
com estranhas pessoas. E não gostei nunca de homem intrujão, 
com esses não começo conversa: não hio e não chio. Tanto que 
mesmo foi o Hermógenes que um dia me chamou, veio 
caçoando: – “Eh, valente tu é, Tatarana! Gosto dessa sua 
bizarria...” 
– “S’as ordens, s’or...” – eu só falei. Porque, ele, pelo jeito, 
logo entendi que ia me fazer algum espontâneo obséquio, ou me 
dar alguma boa notícia; todo que um, assim, nessas horinhas, 
logo muda de modo: antes, aproveita um tico para falar de cima, 
jeitoso de dono bom ou de pai que cede. E foi que não errei. O 
que o Hermógenes queria me prometer era que em breve iam 
estar acabados aqueles riscos de trabalho e combate, com 
liquidados os bebelos, e então a gente ficava livre para lidar 
melhormente, atacando bons lugares, em serviço para chefes 
políticos. E que, nessa ocasião, ele queria me escolher para 
comandar uma parte dos seus, por ser isso de minha rija 
competência – cabo-de-turma. 
Tanto gabado elogio que não me mudou, não me fez. 
Descarei. Experimentando o homem, só aproveitei foi para uma 
deixa: – “Joca Ramiro...” – eu disse, com uma risadazinha minha 
velhaca, que entre dois podia pegar qualquer incerto significado. 
E me esperei. Mas o Hermógenes se saiu em só dizer, sério, 
confioso: que Joca Ramiro era maludo capitão, vero, no real. 
Sonsice de Hermógenes? Não, senhor. Sei e vi, que o sincero. 
Por que era que todos davam assim tantas honras a Joca Ramiro, 
esse louvo sereno, com doado? Isso meio me turvava. Mas, do 
Hermógenes, então, me atormentou sempre aquele meu receio, 
que eu carecia de pôr em raiva. Assim, por isso, falei em mim 
comigo: – “A ele nego água, na boca do pote!” Esconjurar desse 
jeito leve me trouxe sossego. Ao que eu carecia. Tanto mesmo 
que eu não queria ter de pensar naquele Hermógenes, e o pensamento 
nele sempre me vinha, ele figurando, eu cativo. Ser que 
pensava, amiúde, em ele ser carrasco, como tanto se dizia, senhor 
de todas as crueldades. No começo, aquilo me corria só os 
calafrios de horror, a idéia minha refugava. Mas, a pouco, peguei 
às vezes uma ponta de querer saber como tudo podia ser, eu 
imaginava. Digo ao senhor: se o demônio existisse, e o senhor 
visse, ah, o senhor não devia de, não convém espiar para esse, 
nem mi de minuto! – não pode, não deve-de! São se só as coisas 
se sendo por pretas – e a gente de olhos fechados. 
Ao tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo 
que me dava entrante uma tristeza no geral, um prazo de 
cansado. Mas eu não meditava para trás, não esbarrava. Aquilo 
era a tristonha travessia, pois então era preciso. Água de rio que 
arrasta. Dias que durasse, durasse; até meses. Agora, eu não me 
importava. Hoje, eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da 
gente volteia, mas em certos modos, rodando em si mas por 
regras. O prazer muito vira medo, o medo vai vira ódio, o ódio 
vira esses desesperos? – desespero é bom que vire a maior 
tristeza, constante então para o um amor – quanta saudade... ; aí, 
outra esperança já vem... Mas, a brasinha de tudo, é só o mesmo 
carvão só. Invenção minha, que tiro por tino. Ah, o que eu 
prezava de ter era essa instrução do senhor, que dá rumo para se 
estudar dessas matérias... 
Daí, eu caçava o jeito de me espairecer, junto com todos. 
Conversas com o Catocho, com Jõe Bexiguento, com o Vove, 
com o Feijó – de mais sisudez – ou com Umbelino – o de cara 
de gato. Se ria, fora de aperreio de combate muito se vadiava. 
Assim-assei, naquela influição. Vinha ordem, então a gente se 
reunia em bando grande, depois tornava a em grupozinhos se 
apartar. A guerra era a igual. E ali dava de se sentir o faltoso e o 
imperfeito, como no mais acontece, em quantidade maior. O 
São Francisco não é turvo sempre? E o que se falava mais era 
em mulher? Isso fazia muito boa falta. Cada um queria delas, no 
que só pensava. As mocinhas próprias de se provar, ou rua 
alegre cheia de alegria – o bom sempre melhor, o bom. Amigo 
meu, o Umbelino – esse que dizia: que, por não ter mulher ali, 
se tinha de muito lembrar. Ele era do Rio Sirubim, de um lugar 
para trás das cachoeiras. Valia como companheiro, capaz 
d’armas. Que que pequeno, era bom. Relembrava: – “Já tive 
uma mulher amigável só minha, na Rua-do-Alecrim, em São 
Romão, e outra, mais, na Rua-do-Fogo...” Essas conversas, com 
o calor. Calor em que cão pendura a língua, o senhor sabe. Já viu, 
por aí? Em Januária ou São Francisco, tinha estação de tempo 
em que não se podia deixar um ovo guardado: com umas duas ou 
três horas, já se estragava. Todos contavam estórias de raparigas 
que tinham sido simples somente; essas senvergonhagens. Mas, 
de noite – é de crer? – a gente sabia dos que queriam qualquer 
reles suficiente consolo. E eram brabos sarados guerreiros, que 
nunca noutro ar. Coisas. Canta que cantavam, de dia, nenhum 
sabia pé-de-verso direito, ou não queriam ensinar, era só aquela 
invenção, e cantando fanhoso no nariz. Ou ficavam dizendo 
graças e ditérios. Nem feito meninos não sendo. Por esse semquefazer, 
a gente ainda mais comia, quase que por divertimento. 
Os uns iam torar palmito, colher mandioca em mandiocalzinho 
sem dono, dono tinha fugido longe. Gostei de favas do mato, 
muito murici, quixaba e jaca. O Fonfredo tinha um blilbloquê, a 
gente brincava de jogar. Tudo jogado a dinheiro baixo. Os 
espertos, teve quem pôs a jogo até bentinho de pescoço, sem 
dizer desrespeito. E faziam negócio desses breves, contado que 
alguns arrumavam até escapulários falsos. Deus perdoa? O 
senhor podia perguntar: Deus, para qualquer um jagunço, sendo 
um inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas, outras 
horas, sem espécie nenhuma, desandava de lá – proteção se 
acabou, e – pronto: marretava! Que rezavam. Jõe Bexiguento, 
mesmo, quis que diversos tomassem parte em novena, numa mal 
rezada novena, a santo de sua redobrada tenção, e a qual ele nem 
teve persistência para nos dias medidos completar. 
E – mas – o Hermógenes? Sobreveja o senhor o meu 
descrever: ele vinha por ali, à refalsa, socapa de se rir e se divertir 
no meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo o raposo 
meco. Naqueles dias ele andava de pé-no-chão, mais com uma 
calça apertada nas canelas e encurtada, e mesmo muito 
esmolambado na camisa. Até que de barba grande, parecia um 
pedidor. E caminhava com os largos passos, mais o muito nas 
pontas, vinha e ia com um sorrizinho besteante, rodeava por toda 
a parte. Nem eu no achar mais que ele era o ferrabrás? O que 
parecia, era que assim estivesse o tempo todo produzindo alguma 
tramóia. 
Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele 
homem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado, com 
mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento 
constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de 
todas, a inocência daquela maldade. A qual que me aluava. O 
Hermógenes, numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele 
fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava 
ensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás do 
quê? A cruz o senhor faça, meu senhor! Aí eu acreditei que 
tivesse de haver mesmo o inferno, um inferno; precisava. E o 
demônio seria: o inteiro, louco, o doido completo – assim 
irremediável. 
Ah, me aluei? O Hermógenes, esquipático, diverso. 
Comigo eu começava numa espécie, o ror, vontade de ir para 
perto, reparar em tudo que fazia, dele escutar suas causas. Aos 
poucos, o incutido do incerto me acostumando, eu não tirava 
isso da cabeça. O Hermógenes – ele dava a pena, dava medo. 
Mas, ora vez, eu pressentia: que do demônio não se pode ter 
pena, nenhuma, e a razão está aí. O demônio esbarra manso 
mansinho, se fazendo de apeado, tanto tristonho, e, o senhor 
pára próximo – aí então ele desanda em pulos e prezares de 
dança, falando grosso, querendo abraçar e grossas caretas – 
boca alargada. Porque ele é – é doido sem cura. Todo perigo. E, 
naqueles dias, eu estava também muito confuso. 
– “Será, o Hermógenes também gosta de mulheres?” – eu 
careci de saber, perguntei. – “Eh. Apreceia não. Só se não 
gosta...” – um disse. – “Quá. Acho que ele gosta demais é só nem 
dele mesmo, demais, demais...” – algum outro atalhou. Que ele 
era assim – eu fiquei em pausas –: e os companheiros todos 
sabiam do ser; e achavam então que ato assim era possível 
natural?! Como que não achavam? Até, por eu ter o assunto, já 
um vinha: – “Daqui a seis léguas, é a baixada do Brejinho – lá 
tem logradouro. Tem fêmeas...” Esse que disse era o Dute, me 
parece; ou foi outro. Mas o Catocho desafirmou: que tinha 
estado lá, não viu ar de mulher-davida nenhuma, só uma 
vendinha de roça e uma velha pitando cachimbo, no batente 
duma porta, pitando cachimbo e trançando peneiras. Que que-
riam mulheres principalmente a fim, estava certo; eu também. Eu 
queria, com as faces do corpo, mas também com entender um 
carinho e melhorrespeito – sempre a essas do mel eu dei louvor 
de meu agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos: 
graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres 
que são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas 
belas bondades. Mas o Lindorífico lembrava um pagode, em 
algum ao lugarejo, para baixo de lá: do que batucavam, o propuxado 
das sanfonas, cachaça muita, as mulheres vinham dar 
umbigadas, tiravam a roupa, cavalheiros levavam damas nas 
moitas, no escuro do sebo; outros desafiavam outros para brigar. 
Para quê? Por que não gozar o geral, mas com educação, sem as 
desordens? Saber aquilo me entristecia. Tem coisas que não são 
de ruindade em si, mas danam, porque é ao caso de virarem, feito 
o que não é feito. Feito a garapa que se azeda. Viver é muito 
perigoso, já disse ao senhor. No mais, mal me lembro, mas sei 
que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que 
eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre 
supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara 
de doença – e que devia de ser de figado. Pode que seja, tenha 
sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de 
macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo, nenhuma eu 
não tinha. Somente perrengueava. 
Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de 
uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com 
raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em 
outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, 
soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia 
pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo 
jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras 
horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro 
do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, 
o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha 
significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me 
crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela 
raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, 
como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela 
hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito 
mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será 
que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O 
senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum 
conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que 
era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva 
mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte 
raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa 
própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o 
sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e 
fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto – 
inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, 
em força para não esparramar raivas. Lembro que naquela manhã 
também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz – 
com vontade de alegria – como se estimasse recebendo um aviso. 
Demorei bom estado, sozinho, em beira d’água, escutei o fife 
dum pássaro: sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei: era 
Diadorim que chegando, ele já parava perto de mim. 
Ele mesmo me disse, com o sorriso sentido: 
– “Como passou, Riobaldo? Não está contente por me 
ver?” 
A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo. Ao 
que, pela pancada do meu coração. Aí, mas um resto de dúvida: a 
inteira dúvida, que me embaraçava real, em a minha satisfação. 
Eu era o que tinha, ele o que devia. Retente, então, permaneci; 
não fiz mostra nenhuma. Esperei as primeiras palavras dele. Mais 
falasse; retardei, limpei a goela. 
– “A pois. Por onde andou, se mal pergunto?” – aí falei. 
Aquela amizade pontual, escolhida para toda a vida, dita a 
minha nos grandes olhos, ele pronunciando: 
– “Você também não está bom de saúde, Riobaldo, estou 
vendo. Você derradeiramente não tem passado bem?” 
– “Vivendo minha sorte, com lutas e guerras!” 
Ao que Diadorim me deu a mão, que malamal aceitei. E ele 
disse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias sozinho, 
recolhido nas brenhas, para se tratar dum ferimento, tiro que 
pegara na perna dele, perto do joelho, sido só de raspão. Menos 
entendi. A real que estando ofendido, por que era que não havia 
de vir para o meio da gente, para receber ajuda e ter melhor cura? 
Doente não foge para um recanto, ou mato, solitário consigo, 
feito bicho faz. Aquilo podia não ser verdade? Afiguro, aí bem 
que criei suspeitas: aonde Diadorim não teria andado ido, e que 
feia ação para aprontar, com parte na fingida estória? As 
incertezas que tive, que não tive. Assaz ele falava assim afetuoso, 
tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer 
bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce. Magro ele 
estava, quasso, empalidecido muito, até ainda um pouco man-
cava. Que vida penosa não era capaz de ter levado, tantos dias, 
sem o auxílio de ninguém, tratando o machucado com 
emplastros de raízes e folhas, comendo o quê? Assunto de fome 
e toda sorte de míngua devia de ter penado. E de repente eu 
estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do 
que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo 
todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A 
pois, o que sempre não é assim? 
Além do que era sazão de sentimento sereno: arte que a 
vida mais regateia. A vida não dá demora em nada. Nos 
seguintes, logo tornamos para tornar em guerra, com 
assanhamentos. De formas que perdi o semelhar de tantos 
manejos e movimentos e a certa razão das ordens que a gente 
cumpria. Mas fui me endurecendo às pressas, no fazer meu 
particípio de jagunço, fiquei caminhadiço. Agora eu tinha 
Diadorim assim perto de afeto, o que ainda valia mais no meio 
desses perigos de fato. Sendo que a sorte também prevalecia do 
nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será? 
Ao que, com João Goanhá de testa-chefe, saímos, uns 
cinqüenta, pegar uma tropa de cargueiros dos bebelos, que 
vinham ao descuidado, de noite, no Bento-Pedro – lugar num 
braço de brejo, arrozal. Surpreender custou barato, bobearam as 
sentinelas, sem se haver um grito-de-armas, foi só pôr em fugida. 
Aquela carga era enorme, maior em dobro, uma riqueza – tinha 
de tudo, até cachaça de pago imposto: as caixas de quarenta-eoito 
garrafas cada. Ao tanto levamos os lotes de burros para 
esconder no Capão dos Ossos, onde tem carrascais e caminhos 
de caatinga pobre, com lagoas secando: as ipueiras verdolengas. 
Daí, tivemos mando, no Poço-Triste, de tornar a amontar nos 
animais. Aquilo era uma alegria. Minha alma estava: o troteio, a 
poeirada que levantavam, os cavalos que rinchavam bem. Acinte 
bebi água de de-dentro dum gravatá em flor. Aquelas aranhas 
grandes armavam de árvore para árvore velhices de teia. Parecia 
que a guerra já tinha se terminado bem. – “Berimbau!” – um 
disse – “Agora é gozar gozo...” Mas. – “Ah, e Zé Bebelo?” – 
perguntei. Um Federico Xexéu, que vinha de recado, botava o 
fácil desânimo: – “Ih! Zé Bebel’? Evém ele, com gentes de 
nuvens gentes...” A desléguas, se guerreava. A gente recebia a noticia. 
Aí – cavalaria chusma, arruá que chegando, aos estropes, 
terras arribavam: – “Eta, é?!” Sendo que era não. Só era Só 
Candèlário, de repente. Apareceu, com aqueles muitos homens. 
Sus, esbarrou o cavalo tão de repente, que o corpo dele se 
encurtou pela metade. Só Candelário. Esse era alto, trigueiro azul, 
quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso, homem 
de fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente 
de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o 
Hermógenes parecia um diabo coitado. Só Candelário era o para 
enfrentar Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo. Se apeou, 
ficou um demorado tempo de costas para a gente. 
Saudei o Fafafa, que era homem também dele: com os de 
Só Candelário, o Alaripe e o Fafafa tinham outra vez aparecido. 
O Fafafa, o que ele pois então me falou, numa ocasião terrível... 
Ah, mas o que eu antes não contei: o do preso. Antes, como foi 
que se passou, como estávamos em bons escondidos, em volta 
da casa dum sitiante, no Timba-Tuvaca, casa caiada, casa-detelhas. 
Uns em grota, uns em altos de árvores, tinha gente até 
dentro de chiqueiro, na lama dos porcos. Aí chegaram os bebelos 
– uns trinta? Tiroteamos na suspensão deles, os quantos que 
matamos, matamos, os mais fugiram sem após. Um ficou preso. 
Nem tinha nenhum ferimento. – “Que é que vão fazer com ele?” 
– eu perguntei. Será que iam matar? – “É verdade, acho que sim. 
Pois, amigo, a gente tem lá meios para guardar prisioneiro vivo? 
Se degola é da banda da direita para a esquerda...” – o que o 
Fafafa me respondendo. No que dizia, ele tinha razão. Mas, 
quem seria que ia cumprir de dar o fim n’aquele pobre moço? O 
Hermógenes? Decerto era ele. Cocei os olhos, eu queria saber e 
não saber. Sabia nem o nome, como se chamava o rapaz, que ia 
morrer, assim no meio de toda boa ordem, por necessidade nossa 
– porque, se solto, ele tornava a se juntar com os outros, dar 
relatórios. Vim para a beira do córrego. Vendo como levavam o 
rapaz, como ele caminhava normal, seguindo para aquilo com 
seus dois pés. Essa injustiça não podia ser! Assim, os que 
passavam, depois, que decerto iam para matar, eram outros, não 
vi o Hermógenes. Um, um Adílcio, com vaidade de ser capaz da 
maldade qualquer, pavão de penas. O outro, Luís Pajeú. 
Imaginado, a que iam matar o homem, lá nas primeiras árvores 
da capoeira, assim. Ânsia de dó, apalpei o nó na goela, ardi. 
Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse, então 
eu carecia de uma realidade no real, sem divago! Ajoelhei na 
beirada, debrucei, bebi água com encostando a boca, com a cara, 
feito um cachorro, um cavalo. A sede não passava, minha barriga 
devia de estar inchada, igual a de um sapo, igual um saco de todo 
tamanho. A umas cem braças para cima, onde o córrego 
atravessava a capoeira, estavam esfaqueando o rapaz, e eu espiava 
para a água, esperando ver vir misturado o sangue vermelho dele 
– e que eu não era capaz de deixar de beber. Acho que eu estava 
com uma febre. 
Aquele grande gritar, de se estremecer. Diadorim me 
puxou. Só Candelário subido em sela, aforçurado regendo: a 
pronto ele queria o punhadão de homens, se ia para o É-Já, p’ra 
lá do Bró, em todo o seguir. – “Vamos, Riobaldo! É para se 
esperar Joca Ramiro...” Assim Diadorim me empurrou. Montei. 
Sem tento, pisei um estribo, o outro o meu pé não achava. – 
“Tocar ligeiro, Riobaldo!” – Diadorim me atanazando. Aquilo 
que lavorava em minha cabeça – ah, mas, aí, quem é que eu vi? 
O rapaz, aquele, o preso, vivo e exato. Também montado num 
cavalo. Assim o que me contaram: que não ia morrer, não, iam 
matar não, Só Candelário tinha favorecido perdão a ele, por 
causa de sua mocidade. – “Ele é baiano, para a Bahia volta, 
vamos levar mais adiante, para se soltar, para lá...” Me alegrei de 
estrelas. Conforme mais me deram explicação, aquele não 
oferecia perigo mais de tornar a se juntar com os outros bebelos 
e vir outra vez de armas contra a gente: porque se tinha 
providenciado de rezar nele uma reza de tirar a coragem de 
guerra, feito ato, mandraca de se abobar! Tudo tinha graça. Mas, 
e o Luís Pajeú e o Adílcio, então, do modo que vi? Pois, esses 
passaram com as facas-de-arrasto, mas porque iam ajudar a 
retalhar o porco, porção que se levava, dali, em carne e 
toucinhos. Ah, eu tinha bebido àtoa gorgol d’água. Se deu 
galope. Me pareceu que daí adiante, a partir disso, o tudo era 
para só ser a desatinada doidice. Só Candelário galopava em 
frente de todos. Se ia – feito o rei dos ventos. 
O lugar onde esbarramos, no É-Já, era logo depois da 
ponte de pau, que estando esburacada: atravessamos mais 
embaixo, mau vau, por espirro de águas e escorrego em lisas 
pedras soltadas, no ribeirão lajeal. Ter, lá, ainda não tinha 
ninguém; até me deu desengano. Mas tudo, no redor, era verde 
capim em beira fresca, aguada e pastos bons. Atrevi que quis: – 
“E Joca Ramiro?” Mas Diadorim se compôs: – “Agora, aqui, 
Riobaldo, é o ponto: inimigo vindo, morremos; mas nem um 
bebelo não tem licença quieta de passar!” Diadorim a tanto 
impante, eu debiquei: – “Ah, me importa! Não é o que é se ver 
Joca Ramiro? Pois eu estou vendo.” – “Rezinga não, Riobaldo. A 
horas destas, Joca Ramiro deve de estar investindo aqueles, e 
tudo destralhado vencendo...” – foi o que ele perfez. Atrás disso, 
eu em ojeriza: – “Você sabe, hem, sabe. Os grandes segredos...” 
– fui falei. Mas, em passos desses, Diadorim sempre me apeava. 
Como o que reprovou: – “Sei de nada. Sei o que você pode saber 
também, Riobaldo. Mas conheço Joca Ramiro, sozinho que 
pensa as partes. Conheço Só Candelário – que só comparece é 
em fecho de forte decisão...” 
Ao que era. Nos dias em que tivemos de montar guarda 
nos lajeiros e lajeados, aprendi os rasgos daquele homem. Só 
Candelário – como vou explicar ao senhor? Ele era um. Acho 
que nem dormia, comia o nada, nada, às pressas, pitava o tempo 
todo. E olhava para os horizontes, sem paciência neles, parecia 
querer mesmo: guerra, a guerra, muita guerra. Donde ele era, 
donde vindo? Me disseram: desses desertos da Bahia. Passava, 
não me olhava. Ocasião, então, Diadorim a ele me mostrou: – 
“Este é o meu amigo Riobaldo, chefe...” Aí, Só Candelário me 
divisou, sempre me viu. Rir sorrir ele não sabia – mas sossegava 
um modo nos olhos, que tomavam um sério bom, por um seu 
instante, apagando de serem aqueles olhos encarniçados: e isso 
figurava de ser um riso. Que conhecia Diadorim, e prezando 
muito, desde vi. – “Riobaldo, Tatarana, eu sei...” – ele falou – 
“Tu atira bem, tem o adestro d’armas...” E foi andando; acho que 
dele ainda ouvi: ...”amizade nas festas...”? Conseguia nem ficar 
parado. E, por um ponto ou outro, que eu não divulguei bem, ele 
tinha algum estilo de ar de parecença com o próprio Zé Bebelo. 
Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos 
sabiam e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E 
bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por quê? Digo 
ao senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. Pai dele 
tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois, 
os que eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: ai é que o 
homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê? Disso é 
que decerto sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de 
idéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é 
que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. 
Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a 
camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de 
em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele 
furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gente sabia que 
ele tomava certos remédios – acordava com o propor da aurora, 
o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para 
a beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos 
dava. Hoje, que penso, de todas as pessoas Só Candelário é o que 
mais entendo. As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta 
futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito, 
forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado 
que mandava mortes, e matava. Doido, era? Quem não é, 
mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. 
Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo. 
Tanto que o inimigo não dava de vir, pois bem, a gente 
ficava em nervosias. Alguns, não. Feito aquele Luzié, que cantava  
sem mágoas, cigarra de entre-chuvas. Às vezes, pedi que ele 
cantasse para mim os versos, os que eu não esqueci nunca, 
formal, a canção de Siruiz. Adiantes versos. E, quando ouvindo, 
eu tinha vontade de brincar com eles. Minha mãe, ela era que 
podia ter cantado para mim aquilo. A brandura de botar para se 
esquecer uma porção de coisas – as bestas coisas em que a gente 
no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão, mas sem 
fidalguia. Diadorim, quando cuidava que sozinho estivesse, 
cantarolava, fio que com boa voz. Mas, próximo da gente, nunca 
que ele queria. A ver que também fiquei sabendo que os outros 
não consideravam naqueles versos de Siruiz a beleza que eu 
achava. Nem Diadorim, mesmo. – “Você tem saudade de seu 
tempo de menino, Riobaldo?” – ele me perguntou, quando eu 
estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha 
saudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, 
naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo que eu já estava 
crespo da confusão de todos. Em desde aquele tempo, eu já 
achava que a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés 
nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser 
como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto 
seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava. 
Ao do jeito de Só Candelário? Esse variava raja. – “Arre, 
que vê, estamos sem noticias, não sei... A notícia, a gente tem de 
ir por ela, mesmo entrar no mundo para se buscar!” – isso Só 
Candelário quase exclamava. Mandou três homens que saíssem a 
cavalo, estrada avante, até a uma légua, colher do que houvesse, 
espiar os espias. Me mandou, também. Mas, a bem dizer, fui eu 
quem quis: na hora, à frente dei o passo, olhei muito para ele, 
encarado. – “Tu Tatarana, vai...” Quando ele falava Tatarana, eu 
assumia que ele estava sério prezando minha valia de atirador. 
Montei, fui trotando travado. Diadorim e o Caçanje iam já mais 
longe, regulado umas duzentas braças. Arte que perceberam que 
eu vinha, se viraram nas selas. Diadorim levantou o braço, bateu 
mão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope, para logo 
alcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo filosofou: refugou baixo e 
refugou alto, se puxando para a beira da mão esquerda da 
estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era, que 
estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que 
sobre se viu quase nos olhos e nas orelhas dele. Do vento. Do 
vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe – a 
briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, 
o doido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no 
alto, o ponto às voltas, folharada, e ramaredo quebrado, no 
estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti 
meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A 
gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam 
lá adiante, por me esperar chegar. – “Redemonho!” – o Caçanje 
falou, esconjurando. – “Vento que enviesa, que vinga da banda 
do mar...” – Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que 
fosse: redemunho era d’Ele – do diabo. O demônio se vertia ali, 
dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na 
hora, não ri? Pensei. O que pensei: o diabo, na rua, rio meio do 
redemunho... Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas 
palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. A 
gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim se riram 
também. Aí, tocamos. 
Até à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeira de 
escadinhas. Nem pensei mais no redemoinho de vento, nem no 
dono dele – que se diz – morador dentro, que viaja, o Sujo: o 
que aceita as más palavras e pensamentos da gente, e que 
completa tudo em obra; o que a gente pode ver em folha dum 
espelho preto; o Ocultador. Ao então, chegamos na barra dos 
riachinhos, na cachoeira; ficamos lá até o sol entrar. Como é que 
se podia trazer notícias, para Só Candelário? Notícia é coisa que 
se tira, a desejo, do fim do sol? Lá tinha um capão-de-mato. Ou 
era mata, muito velha. Os coatis desciam espirrando, de sua 
sesta deles, nas árvores, e os jacus voavam para outras árvores, 
se empoleirando para o sono da noite, com um escarcéu de 
galinheiro. Tristeza é notícia? Tanto eu tinha um aperto de desânimo 
de sina, vontade de morar em cidade grande. Mas que 
cidade mesma grande nenhuma eu não conhecia, digo. Assim eu 
aproveitei para olhar para a banda de donde ainda se praz 
qualquer luz da tarde. Me lembro do espaço, pensamentos em 
minha cabeça. O riacho cão, lambendo o que viesse. O coqueiro 
se mesmando. A fantasia, minha agora, nesta conversa – o 
senhor me atalhe. Se não, o senhor me diga: preto é preto? 
branco é . branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo 
de dentro da mocidade. Noitezinha, viemos. Primeira coruja que 
a ãoar, eu era capaz de acertar nela um tiro. 
Mas Só Candelário não era tolo nas meças. No outro dia, 
notícias tivemos. E que! Dali a lá, as notícias todas andaram de 
vir, em lote e réstia. Um Sucivre, que fino chegou, esgalopado. 
Disse: – “Nhô Ricardão deu fogo, no Ribeirão do Veado. Titão 
Passos pegou trinta e tantos deles, num bom combate, no 
esporão da serra...” Os bebelos se desabelhavam zuretas, debaixo 
de fatos machos e zuo de balas. A tanto, a gente em festa 
se alegrava Só Candelário subiu no jirau de varas-que tinha 
mandado fazer, nele era que dormia sem repousar – e assim 
espiou esquecido tempo, espiava as paradas distâncias, feito um 
gavião querendo partir em vôo. Agora, era a guerra, mesmo, 
estariam rompendo as aleluias, lá por lá. Donde, daí, veio o 
Adalgizo: – “Seô Hermógenes passou, obra de seis léguas, vai 
dar combate...” Nossa hora de fogo estava perto. Assim os 
bebelos tinham de passar de fugida por ali no É-Já, resvés. Só 
Candelário chega exclamava, chorava: dizia que nunca tinha 
chefiado pessoal tão valente feito nós, com tantas capacidades. 
E queria, logo, logo, o inimigo vindo. Todas as horas tocaiadas; 
e de noite com um olho só se ia dormir, que das armas não se 
largava. A redobrar as sentinelas, em ave-marias e alvorada. 
Combate vem é feito raio cai. Tudo era alarme dado, cuquiada: 
um pontapé em tição, o punhado de terra jogado para apagar as 
fogueiras, de repente, e se assobiava cruzado. Vez, deram até 
tiros: mas nada não era, só um boi loango, com muita fome e 
pouco sono, que veio sozinho pastando e deu a cara comprida, 
ali foras d’hora, no capinzal bom. – “Tudo que é estúrdio 
comparece em tempo de guerra... Vote, vais!” – algum disse. E 
teve gente que se riu disso, até à beira da madrugada. Daquilo 
tudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo a achar 
graça no dessossego. Aprendi a medir a noite em meus dedos. 
Achei que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso que 
vem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça aos goles, 
dormida com a gente encostado em coronha de sua arma. O que 
carece é acompanheiragem de todos no simples, assim irmãos. 
Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma formava. 
Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem. Só 
Candelário era o chefe ao meu gosto, como eu imaginava. Ah, e 
Joca Ramiro? 
Antes foi uma coisa acontecida repentina: aquele alvoroço, 
na cavalhada geral. Aí o mundo de homens anunciando de si e 
sobre o vasto chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro! – 
“Doca Ramiro!” – se gritava. Só Candelário pulou em sela, 
assim como ele sempre era: mola de aço. Deu um galope, em 
encontro. Nós todos, de começo, ficamos atarantados. Vi um 
sol de alegria tanta, nos olhos de Diadorim, até me apoquentou. 
Eu tinha ciúme? – “Riobaldo, tu vai ver como ele é!” – 
Diadorim exclamou, se abraçou comigo. Parecia uma criança 
pequena, naquela bela resumida satisfação. Como era que eu ia 
poder raivar com aquilo? E, no abre-vento, a toda cavaleirama 
chegando, empiquetados, com ferragem de cascos no 
pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudo manosvelhos 
baianos, gente nova trazida. Gritavam vivas para a gente, 
saudavam. E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo 
branco – cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela 
bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas 
bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem 
de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. 
Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? 
O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha 
mais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sem pousar 
os olhos. A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da 
vida, do serão, machucasse aquele homem maior, ferisse, 
cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como 
agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, 
nem tristeza. Uma voz que continuava. 
Sobre o no meio daquele rebuliço, menos colhi de ver e de 
escutar. Os chefes tinham apeado dos cavalos, e os homens, 
todos, em balbúrdia com sensatez. Só Candelário não arredava 
pé de Joca Ramiro, e explicava as diversas coisas, com grandes 
gestos, quase ele não dava conta de se falar. A demora era 
pouca. Aí o forte bando tinha de se aluir para adiante, em redobro 
de marcha – iam para ferrar fogo, em lugar e hora 
determinados – semelhante se soube. Tempo de beberem um 
café. Mas Joca Ramiro veio de lá, em alargados vagarosos  
passos, queria correr o acampamento, saudar um e outro, a 
palavrinha que fosse, um dito de apreço e apraz. O andar dele-vi 
certo: alteado e imponente, como o de ninguém. Diadorim olhava; 
e também tinha lágrimas vindo por caso. Decidido, deu um 
à-frente, pegou a mão de Joca Ramiro, beijou. Joca Ramiro, que 
firme contemplando, só um instante, seja, mas o docemente 
achável, com um calor diferente de amizade. A quantia que ele 
gostava de Diadorim! – e pousou nas costas dele um abraço. Ao 
que, se virou para nós, que estávamos. E eu fiz como Diadorim 
– nem sei porquê: peguei a mão daquele homem, beijei também. 
Todos, os que eram mais moços, beijavam. Os mais velhos 
tinham vergonha de beijar. – “Este aqui é o Riobaldo, o senhor 
sabe? Meu amigo. A alcunha que alguns dizem é Tatarana...” 
Isto Diadorim disse. A tento, Joca Ramiro, tornando a me ver, 
fraseou: “Tatarana, pêlos bravos... Meu filho, você tem as 
marcas de conciso valente. Riobaldo... Riobaldo...” Disse mais: – 
“Espera. Acho que tenho um trem, para você...” Mandou vir o 
dito, e um cabra chamado João Frio foi lá nos cargueiros, e 
trouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão de cavalaria. 
Com aquilo, Joca Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor: 
minha satisfação não teve beiras. Pudessem afiar inveja em mim, 
pudessem. Diadorim me olhava, com um contentamento. Me 
chamou de lado. Vi que, mesmo sendo assim querido e escolhido 
de Joca Ramiro, ele procedia mais de ficar de longe, por 
ninguém se queixar, não acharem que ali havia afilhadagem. – 
“Não é que ele é mesmo o chefe de todos? Não é que é 
mandante?” – Diadorim me perguntava. Era. Mas eu não 
percebi o vivo do tempo que passava. Eles já estavam indo de 
saída. Montado no cavale branco, Joca Ramiro deu uma 
despedida. Vi que ele com os olhos caçou Diadorim. Só 
Candelário gritou: – “Viva Jesus, em rotas e vantagens!” E, num 
bufúrdio, todos esporaram, andaram, ao assaz. A alta poeira, que 
demorava. Aquilo parecia uma música tocando. 
Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, 
noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas 
armas: Joca Ramiro entrava direto em combate, então ia ser o 
fim da guerra! – “Só Candelário queria ir também, mas teve de 
aceitar ordem de ficar...” – Diadorim me explicou. Segundo 
disse – que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de 
avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de 
tudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui 
o mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado: 
que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatro piquetes, 
para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas. Diadorim e eu 
fizemos parte duma turma dessas, duns quinze homens, chefia 
de João Curiol – fomos para a baixa dos Umbuzeiros, lugar feio, 
com os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra. Partindo 
desse vau, a gente pega uma chapadinha – a Chapada-da- 
Seriema-Correndo. A que parecia mesmo de propósito. Porque 
foi lá, com todo o efeito, que a cara da caça se apareceu. Aquilo, 
terrível. Conto já ao senhor, duma vez. 
Terrível, tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio. 
Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em espera: 
dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que é. Tão de repente. 
O vento vinha bom, da parte d’eles chegarem, de formas que o 
galope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim que eles 
eram uns vinte. Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a 
água se esguichou farta, vero bonito aquilo no sol. Demos fogo. 
Do que podia suceder. Vi homem despencado demais, os 
cavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho podia 
fugir, mas os homens no chão, no cata, cata. Ao que, a gente 
atirava! Se morria, se matava, matava? Os cavalos, não. Mas teve 
um, veio, à de se doidar, se espinoteava, o cavaleiro não 
agüentava na rédea, chegaram até perto de nós, aí todos os dois 
morreram de repente. Meu senhor: tudo numa estraga 
extraordinária. Mas aqueles eram homens! Trampe logo que 
puderam, os sobrantes deles se desapearam e rastejaram, 
respondendo ao fogo. Ah, puderam tomar oculto atrás de outras 
fragas de pedra, nisso a gente não conseguiu ter mão. Ainda 
deviam de ser uns dez, ou uns oito. Afa que gritavam, em febre 
de ódio, xingando todo nome. A gente, também. Anhãnhãe, 
berrávamos fogo, quando sinal de homem tremeluzia. As balas 
rachavam as pedras, só partiam escalhas. Um se mostrou, caiu 
logo. Munição deles era pouca. Fugir, mesmo, não podiam. A 
gente atirava. Aí deviam de ser uns seis – que é a meia-dúzia. – 
“Aoê, sabe quem está lá, comandando?” – o rastejador Roque 
me disse. – “Sabe quem?” Ah, eu sabia. Eu tinha sabido, o em 
desde o primeiro momento. Era quem eu não queria para ser. 
Era Zé Bebelo! 
Assim eu condenado para matar. 
Aqui eu não sei o que o senhor não sabe. – “A fogo! A 
crevo!” – isto João Curiol gritava. Antes do depois, neles a gente 
ia ir a pano de facão. – “Tralha! Lá vai obra, cão, carujo! 
Roncolho!” – isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu não gritei. 
Diadorim também atirava calado. Munição deles – quase 
nenhuma. Eles deviam de ser uns quatro, ou três. O cano do 
meu rifle esquentava demais. – “Roncolho! Toma...” Um 
Freitas, nosso, gritou, caiu muito ferido. A bala era de Zé 
Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo. Respondiam 
pouco. Deviam de ser... os quantos? Digo ao senhor: eu gostava 
de Zé Bebelo. Redigo – que. eu menos atirava do que pensava. 
Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um 
homem daquela qualidade, o corpo dele, a idéia dele, tudo que 
eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre – Zé 
Bebelo – a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em 
si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras 
pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava? 
Arresto gritei: – “Joca Ramiro quer esse homem vivo! loca Ramiro 
quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...” A que 
nem não sei como tive o repente de isso dizer – falso, 
verdadeiro, inventado... 
Gritei firme, repeti. 
Os outros companheiros aceitavam aquilo, diziam 
também, até João Curiol: – loca Ramiro quer este homem vivo!” 
– “É ordem de Joca Ramiro!” De lá não atiravam mais. Só bala 
ou outra, só. – “Arre, à unha, chefe?” – o Sangue-de-Outro 
perguntou. João Curiol respondeu que não. Eles deviam de estar 
reservando balas para um final. – “Ordem de loca Ramiro: é 
pegar o homem vivo...” – ainda eu disse. Ali Zé Bebelo eu salvasse. 
Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agora vai não 
me entendes, O como são as coisas. Todos me aprovaram – e, 
aí, extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas, 
então, eu não tinha pensado tudo, o real?! O que era que eu 
estava fazendo, que era que eu estava querendo – que pegassem 
vivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois judiarem com 
ele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raiva deu em 
mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo 
sempre’ por minha culpa! E daí pedi tudo ao rifle é às 
cartucheiras. Eu atirava, atirava: queria, por toda a lei, alcançar 
um tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem 
martírio de sofrimentos. – “Tu está louco, Riobaldo?” – 
Diadorim gritou, rastejando para perto de mim, travando em 
meu braço. – “Joca Ramiroquer o homem vivo! Joca Ramiro 
quer, deu ordem!” – todos agora me gritavam. Assim contra 
mim, assim todos. O que eu havia de desmentir? E não vi 
direito, o fato. O que vi foi Zé Bebelo aparecendo, de repente, 
garnisé. O que ele tinha numa mão, era o punhal; na outra uma 
garrucha grande, fogo-central. Mas descarregou a garrucha, 
atirando no chão, perto dos pés dele, mesmo. Arrancou poeira. 
Por trás daquela poeira ele reapareceu, dava pensamento assim – 
aprumado, teso; de briga. Lampejou com o punhal, e esperou. 
Ele mesmo estava querendo morrer à brava, depressamente. 
Olhei, olhei. De atirar nele, de todo jeito não tive coragem. Ah, 
não tinha! E um dos nossos, não sei quem, jogou o laço. Zé 
Bebelo mal ainda bateu com um pé, por se firmar, e caiu, 
arrastado, voz que gritou: – “Canalha! Canalha!” Mas todos 
foram nele, desarmaram do punhal. Eu parei quieto, vago, se me 
estranho. Não queria, ah não queria que ele me reconhecesse. 
Sobrevinha o tropel grande de cavaleiros. Aos quais: era 
Joca Ramiro; com sua gente total. Subiu pó e pó, por ouros, 
poeira de entupir o narii e os olhos. Agarrei de mim, sentado lá, 
no mesmo meu lugar, atrás do pedação de pedra. O que eu 
estava era envergonhado. O fuzuê se fez um enorme. Sendo 
que chegavam também os outros grupos nossos, escutei os 
brados de Só Candelário. A roda de cavaleiros tantos, no raso, 
sempre maior. Algum soprou o buzo do corno de boi. Tocavam 
para o acampamento. Mas Diadorim estava me caçando, e mais 
João Curiol, pelos mortos e feridos que também tínhamos, e 
também ali ele devia de ter perdido algum trem seu, objeto. – 
“Homem danado...” – ouvi o que um dizia. Meus olhos 
firmavam no chão, agora eu via que tremia. – “Ipa! Zé Bebelo, 
oxém, ganhou patente. É estragador!” Eu falei: – “É?” – e neste 
entretanto. Ao menos Diadorim raiava, o todo alegre, às quase 
danças: – “Vencemos, Riobaldo! Acabou-se a guerra. A mais, 
Joca Ramiro apreciou bem que a gente tivesse pegado o homem 
vivo...” Aquilo me rendia pouco sossego. E depois? – “Para que, 
Diadorim? Agora matam? Vão matar?” Mal perguntei. Mas o 
João Curiol virou e disse: – “Matar não. Vão dar julga; mento...” 
– “Julgamento?” – não ri, não entendi. 
– “Aposto que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O 
homem estúrdio! Foi defrontar com Joca Ramiro, e, assim 
agarrado preso, do jeito como desgraçado estava, brabo gritou: 
– Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo 
julgamento correto legal!... e foi. Aí Joca Ramiroconsentiu, 
apraz-me, prometeu julgamento já...” – isto o que falou João 
Curiol, para me dar a explicação. 
Agradeci mesmo isso, a cisma não era para pôr peso em 
meus peitos. Saímos ainda com João Concliz, a ir em longe 
arredor, prevenir os que faltavam. A vinda geral. A gente de 
Titão Passos e do Hermógenes mandava aviso de estarem em 
caminho. Os do Ricardão já aos tantos chegavam. Saí, com esses 
de João Concliz. Fui. Fiz questão. Eu não queria retornar logo, 
com os outros, não enxergar Zé Bebelo eu achava melhor. 
Montamos e sumimos por aqueles campos, essa estrada, esses 
pequizeiros. – “Homem engraçado, homem doido!” – Diadorim 
ainda achava. – “Sabe o que ele falou, como foi?” E me deu 
notícia. 
Tinha sido aquilo: Joca Ramirochegando, real, em seu alto 
cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, 
sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro 
por dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo empinou o 
queixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse: 
– “Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o 
grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!” 
– “O senhor se acalme. O senhor está preso...” – Joca 
Ramiro respondeu, sem levantar a voz. 
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou 
de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento: 
– “Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, 
então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é 
o que o senhor vai ver...” 
– “Vejo um homem valente, preso...” – aí o que disse Joca 
Ramiro, disse com consideração. 
– “Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...” – “O que, 
mano velho?” 
“... É, é o mundo à revelia!...” – isso foi o fecho do que Zé 
Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas. 
Assim isso. Toleimas todas? Não por não. Também o que 
eu não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele não era 
criatura que se prende, pessoa coisa de se haver às mãos. 
Azougue vapor... 
E ia ter o julgamento. 
Tanto que voltamos, manhã cedinho estávamos lá, no 
acampo, debaixo de forma. Arte, o julgamento? O que isso tinha 
de ser, achei logo que ninguém ao certo não sabia. O 
Hermógenes me’ ouviu, e gostou: – “É e é. Vamos ver, vamos 
ver, o que não sendo dos usos...” – foi o que ele citou. – “Ei, 
agora é julgamento!” – os muitos caçoavam, em festa fona. 
Cacei de escutar os outros. – “Está certo, está direito. Joca 
Ramirosabe o que faz-..” – foi o que disse Titão Passos. – 
“Melhor, mesmo. Carece de se terminar o mais definitivo com 
essa cambada!” – falou Ricardão. E só Candelário, que agora não 
se apeava, vinha exclamando: – “Julgamento É isto! Têm de 
saber quem é que manda, quem é que pode!” Ao espraia as 
margens. 
Agora estavam todos mais todos reunidos, estávamos no 
acampamento do É-Já, onde ali mal tanto povo cabia, e lotes e 
pontas de burros, a cavalhada pastando, jagunços de toda raça e 
qualidade, que iam e vinham, co, miam, bebiam, bafafavam. Só 
Candelário tinha remetido dois homens, longe, no São José 
Preto, só para comprarem foguetes, que no fim teriarA de 
pipocar. E onde estava Zé Bebelo? Apartado, recolhido de toda 
vista, numa tenda de lona – essa única que se tinha, porque Joca 
Ramiro mesmo se desacostumava de dormir em barraca, por o 
abafo do calor. Não se podia ver o prisioneiro, que ficava lá 
dentro, feito guardado. Contaram que ele aceitava comida e água, 
e estivesse deitado num couro de vaca, pitando e pensando. 
Gostei. O de que eu carecia era de que ele não botasse olhos em 
mim. Eu apreciava tanto aquele homem, e agora ele não havia de 
ser meu pesadelo. – “Aonde é que vamos? Onde é que esse 
julgamento vai ser?” – perguntei a Diadorim, quando surpreendi 
os suspensos de se ter saída. – “Homem, não sei...” –; Diadorim 
disso não sabia. Só depois se espalhou voz. Ao que se ia para a 
Fazenda Sempre-Verde, depois da Fazenda Brejinho-do-Brejo, 
aquela a do doutor Mirabô de Melo. 
Mas, por que causa iam dar com aquele homem tamanha 
passeata? Carecia algum? Diadorim não me respondeu. Mas, pelo 
que não disse e disso, tirei por tino. Assim que Joca Ramiro fazia 
questã de navegar três léguas a longe com acompanhamento de 
todos os jagunços e capatazes e chefes, e g prisioneiro levado em 
riba dum cavalo preto, e todas as tropas, com munição, coisas 
tomadas, e mantimentos de comida, rumo do Norte – tudo por 
glória. O julgamento, também. Estava certo? Saímos, de trabuz. 
No naquele, a gente podia ver resenho de toda geração de 
montadas. Zé Bebelo lá ia, rodeado por cavaleiros de guarda, 
pessoal de Titão Passos, logo na cabeça do cortejo. Ia com as 
mãos amarradas, como de uso? Amarrar as mãos não adiantava. 
Eu não quis ver. Me dava travo, me ensombrecia. Fui ficando 
para trás. Zé Bebelo, lá preso demais, em conduzido. Aquilo com 
aquilo – aí a minha idéia diminuía. Tanto o antes, que fiz a 
viagem toda na rabeira, ladeando o bando bonzinho de jegues 
orelhudos, que fechavam a marcha. A pobreza primeira deles me 
consolava – os jumentinhos, feito meninos. Mas ainda pensei: – 
ele bom ou ele ruim, podiam acabar com Zé Bebelo? Quem tinha 
capacidade de pôr Zé Bebelo em julgamento?! Então, ressenti um 
fundo desânimo. Sem mais Zé Bebelo, então, o restado consolo 
só mesmo podia ser aqueles jericos baianos, que de nascença 
sabiam todas as estradas. 
Assim passamos pelo Brejinho-do-Brejo, assim chegamos 
na Sempre Verde. Aí fomos chegando. Que me deu, de repente? 
Esporeei e galopeis para dianteira, fomentado, repinchando 
dessas angústias. Vim. Eu queriá sobressalto de estar ali perto, 
catar tudo nos olhos, o que acontecia maior. Nem não importei 
mais que Zé Bebelo me visse. Passei quase para a frente de todos. 
Estavam pensando que eu viesse com um recado. – “Que foi, 
Riobaldo, que foi?” – gritou para mim Diadorim. Dei nenhuma 
resposta. pessoa ali não me entendia. Só mesmo Zé Bebelo era 
quem pudesse me entender. 
A Fazenda Sempre-Verde era a casa enorme, viemos saindo 
da estrada e entrando nas cheganças, os currais-de-ajuntamento. 
Aquele mundo de gente, que fazia vulto. Parecia um mortório. 
Antes passei, afanhou a porteira, aí fomos enchendo os currais, 
com tantos os nossos cavalos. A casade-fazenda estava fechada. 
– “Não carece de se abrir... Não carece de se abrir...” – era uma 
ordem que todos repetiam, de voz em voz. Ave, não 
arrombassem, aquilo era de amigos, o doutor Mirabô de Melo, 
mesmo ausente. Esbarramos no eirado, liso, grande, de tanto 
tamanho. Aí tinham apeado Zé Bebelo do cavalo, ele estava com 
as mão amarradas, sim, mas adiante do corpo, feito algemas. – 
“Ata amarra os pés também!” – algum enfezado gritou. Outro se 
chegou, com uma boa peia, de couro de capivara. Que era que 
aquela gente pensavam? Que era que queriam? Doideira de 
todos. Daí, Joca Ramiro, Só Candelário, o Hermógenes, o 
Ricardão, Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidos no 
meio do eirado, numa confa. Mas Zé Bebelo não estava 
aperreado. Tomou corpo, num alteamento – feito quando o peru 
estufa e estoura – e caminhou, em direitura. Que que pequeno, 
era bom: homem às graças. Caminhou, mesmo. – “Oxente!” Para 
diante de Joca Ramiro, no meio do eirado, tinham trazido um 
mocho, deixado botado lá; era um tamborete de tripés, o assento 
de couro. Zé Bebelo, ligeiro, nele se sentou. – “Oxente!” – se 
dizia. A jagunçama veio avançando, feito um rodear de gado – 
fecharam tudo, só deixando aquele centro, com Zé Bebelo 
sentado simples e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé, Só 
Candelário em pé, o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos, 
todos! Aquilo, sim, que sendo um atrevimento; caso não, o que, 
maluqueira só. Só ele sentado, no mocho, no meio de tudo. Ao 
que, cruzou as pernas. E: 
– “Se abanquem... Se abanquem, senhores! Não se 
vexem...” – ainda falou, de papeata, com vênias e acionados, e 
aqueles gestos de cotovelo, querendo mostrar o chão em roda, o 
dele. 
Arte em esturdice, nunca vista. O que vendo, os outros se 
franziram, faiscando. Acho que iam matar, não podiam ser assim 
desfeiteados, não iam aturar aquela zombaria. Foi um silêncio, 
todo. Mandaram a gente abrir muito mais a roda, para o espaço 
ficar sendo todo maior. Se fez. 
Mas, de repente, Joca Ramiro, astuto natural, aceitou o 
louco oferecimento de se abancar: risonho ligeiro se sentou, no 
chão, defronte de Zé Bebelo. Os dois mesmos se olharam. 
Aquilo tudo tinha sido tão depressa, e correu por todos um 
arruído entusiasmado, dando aprovação. Ah, Joca Ramiro para 
tudo tinha resposta: Joca Ramiro era lorde, homem acreditado 
pelo seu valor. 
A modo que – Zé Bebelo – sabe o senhor então o que ele 
fez? Se levantou, jogou para um lado o tamborete, com pontapé, 
e a esforço se sentou no chão também, diante de Joca Ramiro. 
Foi aquele falatório geral, contente. De coisas de tarasco, assim, a 
gente não gostava? E até os outros chefes, todos, um por um, 
mudaram de jeito: não se sentaram também, mas foram ficando 
moleados ou agachados, por nivelar e não diferir. Ao que o 
povaréu jagunço, com ansiedade de ver e ouvir o que se desse, se 
espremendo em volta, sem remangar das armas. Aquele povo – 
rio que se enche com intervalo dos estremecimentos, regular, 
como o piscar de olho dum papagaio. Vigiei o Hermógenes. Eu 
sabia: dele havia de vir o pior. Com o que, todo o mundo parado, 
formaram uns silêncios. Menos no mais, Joca Ramiro ia falar as 
palavras consagradas? 
– “O senhor pediu julgamento...” – ele perguntou, com 
voz cheia, em beleza de calma. 
– “Toda hora eu estou em julgamento.” 
Assim Zé Bebelo respondeu. Aquilo fazia sentido? Mas ele 
não estava lorpa nem desfeliz, bom para a forca. Que até capivara 
se senta é para pensar – não é para se entristecer. E rodou 
aprumada a cara, vistoriando as caras de tantos homens. Ar que 
inchou o peito e o queixo levantou, valendo se valendo. Criatura 
assim sente tudo adivinhado, de relâmpago, na ponta dos olhos 
da gente. Eu tinha confiança nele. 
– “Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez. 
Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso...” – Joca Ramiro fraseou. 
– “Com efeito! Se era para isso, então, para que tanto 
requifife?” – Zé Bebelo repostou, com toda a ligeireza. 
De ouvir, dividi o riso do siso. A pois! Ele mesmo tinha 
inventado exigido esse julgamento, e agora torcia o motivo: 
como se em fim de um julgamento ninguém competisse de ser 
fuzilado... Saranga ele não era. Mas estava brincando com a 
morte, que para cada hora livrava. Ao que bastava Joca Ramiro 
perder um ponto da paciência, um pouco. Só que, por sorte, paciência 
Joca Ramiro nunca perdia; motejou, não mais: 
– “Adianta querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá 
para cima – me disseram. Mas, de repente, chegou neste sertão, 
viu tudo diverso diferente, o que nunca tinha visto. Sabença 
aprendida não adiantou para nada... Serviu algum?” 
– “Sempre serve, chefe: perdi – conheço que perdi. Vocês 
ganharam. Sabem lá? Que foi que tiveram de ganho?” 
O puro lorotal. E atrevimento, muito. Os jagunços em roda 
não entendiam o escutado; e uns indicavam por gestos que Zé 
Bebelo estava gira da idéia, outros quadrando um calado de mau  
sinal. Até o que disse: – “De lá não sai barca!” Assim se diz. Joca 
Ramiro não reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas. Só, daí: 
– “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os 
sertanejos de seu costume velho de lei...” 
– “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho 
valeu enquanto foi novo...” 
– “O senhor não é do sertão. Não é da terra...” 
– “Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca – que 
galinha come e cata: esgaravata!” 
Que visse o senhor os homens: o prospeito. Aqueles 
muitos homens, completamente, os de cá e os de lá, cercando o 
oco em raia da roda, com as coronhas no chão, e as tantas caras, 
como sacudiam as cabeças, com os chapéus rebuçantes. Joca 
Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha. 
Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, 
debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante, com um 
modo manso muito proveitoso: – “Meus meninos... Meus 
filhos...” Agora, advai que aquietavam, no estatuto. Nanja, o 
senhor, nessa sossegação, que se fie! O que fosse, eles podiam 
referver em imediatidade, o banguelê, num zunir: que vespassem. 
Estavam escutando sem entender, estavam ouvindo missa. Um, 
por si, de nada não sabia; mas a montoeira deles, exata, soubesse 
tudo. Estudei foi os chefes. 
Naquela hora, o senhor reparasse, que é que notava? Nada, 
mesmo. O senhor mal conhece esta gente sertaneja. Em tudo, 
eles gostam de alguma demora. Por mim, vi: assim serenados 
assim, os cabras estavam desejando querendo o sério 
divertimento. Mas, os chefes cabecilhas, esses, ao que menos: 
expunham um certo se aborrecer, segundo seja? Cada um 
conspirava suas idéias a respeito do prosseguir, e cumpriam seus 
manejos no geral, esses com suas responsabilidades. Uns 
descombinavam dos outros, no sutil. Eles pensavam. Conforme 
vi. Só Candelário duma banda de Joca Ramiro, com Titão Passos 
e João Goanhá; o Ricardão da outra, com o Hermógenes. Atual 
Zé Bebelo foi começando a conversar comprido, na taramelagem 
como de seu gosto – aí o Ricardão armou um bocejo; e Titão 
Passos se desacocorou, com a mão num ombro, que devia de ter 
algum machucado. O Hermógenes fez beiço. João Goanhá, 
aquele ar sonsado, quase de tolo, no grosso do semblante. O 
Hermógenes botava pontas de olhar, some escuro, nuns visos. Só 
Candelário, ficado em pé, sacudia o moroso das pernas. 
Joca Ramiro deve de ter percebido aquele repiquete. Porque 
ele sobre se virou, para Só Candelário, ao de indagar: 
– “Meu compadre, que é que se acha?” 
Sô Candelário fungou, e logo abriu naqueles sestros que 
tinha, movimental. Sendo por ele querer se desengonçar e não 
podendo: como era alto e magro duro aquele homem! Sarre os 
onhos olhos amarelos de gavião, dele, hem. Não achou as 
palavras para dizer, disse: 
– “Ao que a ver! Ao que estou, compadre chefe meu...” 
A lesto que Joca Ramiro assentiu, com cabeça, conforme 
se Só Candelário tivesse afirmado coisas de sincera importância. 
Zé Bebelo abriu muito a boca, tirando um ronco, como que de 
propósito. Alguns, mais riram dele. Em menos Joca Ramiro 
esperou um instante: 
– “A gente pode principiar a acusação.” 
Aprovaram, os todos, todos. Até Zé Bebelo mesmo. 
Assim Joca Ramiro refalou, normal, seguro de sua estança, por 
mais se impor, uma fala que ele drede avagarava. Dito disse que 
ali, sumetido diante, só estava um inimigo vencido em 
combates, e que agora ia receber continuação de seu destino. 
Julgamento, já. Ele mesmo, Joca Ramiro, como de lei, deixava 
para dar opinião no fim, baixar sentença. Agora, quem quisesse, 
podia referir acusação, dos crimes que houvesse, de todas as 
ações de Zé Bebelo, seus motivos; e propor condena. 
Rés o que começasse, quem? O Hermógenes limpou a 
goela. De primeira entrada eu vinha sabendo – esse 
Hermógenes precisava de muitas vinganças. 
Ele era sujeito vindo saindo de brejos, pedras e cachoeiras, 
homem toda cruzado. De uns assim, tudo o que escapa vai em 
retinge de medo ou de ódio. Observei, digo ao senhor. Carece 
de não se perder sempre o vezo da cara do outro; os olhos. 
Advertido que pensei: e se eu puxasse meu revól-. ver, berrasse 
fogo nele? Se acabava um Hermógenes – estava ali, são no vão, 
e num átimo se via era papas de sangue – ele voltava para o 
inferno! Que era que me acontecia? Eu tomava castigo mortal, 
de mão de todos? Deixasse que tomasse. Medo não tive. Só que 
a idéia boa passou muito fraca por mim, entrada por saída. 
Fiquei foi querendo ouvir e ver, o que vinha mais. Demarcava 
que iam acontecendo grandes fatos. Desde, Diadorim, 
conseguindo caminho por entre o povo, aí chegou, se encostou 
em mim; tão junto, mesmo sem conversar, mas respirava, como 
era com a boca tão cheirosa. Há-de haja! – o Hermógenes tinha 
levantado, para falar: 
– “Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar 
este cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar atravessado 
no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele – a ver se 
vida sobrava, para não sobrar!” 
– “Quá?!” – Zé Bebelo debicou, esticando o pescoço e 
batendo com a cabeça para diante, diversas vezes, feito pica-pau 
em seu oficio em árvore, Mas o Hermógenes com aquilo não 
somou; foi pondo: 
– “Cachorro que é, bom para a forca. O tanto que 
ninguém não provocou, não era inimigo nosso, não se buliu 
com ele. Assaz que veio, por si, para matar, para arrasar, com 
sobejidão de cacundeiros. Dele é este Norte? Veio a pago do 
Governo. Mais cachorro que os soldados mesmos... Merece ter 
vida não. Acuso é isto, acusação de morte. O diacho, cão!” 
– “Ih! Arre!” – foi o que Zé Bebelo ponteou. Assim 
contracenando, todo o tempo – medo do Hermógenes 
remedou, de feias caretas. 
– “É o que eu acho! É o que eu acho!” – O Hermógenes 
então quase gritou, por terminar: – “Sujeito que é um tralha!” 
– “Posso dar uma resposta, Chefe?” – Zé Bebelo 
perguntou, sério, a joca Ramiro. Joca Ramiro concedeu. 
- “Mas, para falar, careço que não me deixem com as mãos 
amarradas...” 
Nisso não havendo razão ou dúvida. E Joca Ramiro deu 
ordem. João Frio, que de perto dele não se apartava, veio de lá, 
cortou e desatou a manupeia nas juntas dos pulsos. Que era que 
Zé Bebelo ia poder fazer? Isto: 
– “P’r’ aqui mais p’r’ aqui, por este mais este cotovelo!...” 
– disse, batendo mão e mão, com o acionado de desplante. E riu 
chiou feito um sõim, o caretejo. Parecia mesmo querer fazer 
raiva no outro, em vez de tomar cautela? Vi que tudo era 
enfinta; mas podia dar em mal. O Hermógenes pulou passo, fez 
menção de reluzir faca. Se teve mão em si, foi por forte 
costume. E Joca Ramiro também tinha atalhado, com uma 
aspação: – “Tento e paz, compadre mano-velho. Não vê que ele 
ainda está é azuretado...” 
– “Ei! Com seu respeito, discordo, Chefe, maximé!” – Zé 
Bebelo falou. – “Retenho que estou frio em juízo legal, 
raciocínios. Reajo é com protesto. Rompo embargos! Porque 
acusação tem de ser em sensatas palavras – não é com afrontas 
de ofensa de insulto...” – Encarou o Hermógenes: – “Homem: 
não abusa homem! Não alarga a voz!...” 
Mas o Hermógenes, arriçado, crível que estivesse todo no 
poder bravo de uma coceira, falou para Joca Ramiro – e para 
todos que estávamos lá – falou, numa voz rachada em duas, voz 
torta entortada: 
– “Tibes trapo, o desgraçado desse canalha, que me 
agravou! Me agravou, mesmo estando assim vencido nosso e 
preso... Meu direito é acabar com ele, Chefe!” 
Vi a mão do perigo. Muitos homens resmungaram em 
aprovo, ali rodeando, os tantos, dez ou vinte círculos, anéis de 
gente. Rentes os do bando do Hermógenes chegaram a dar altas 
palavras, de calca pá. Questionou-se a respeito disso? Tinham 
barulhos na voz. Mesmo os chefes entre si cochicharam. Mas 
Joca Ramiro sabia represar os excessos, Joca Ramiro era mesmo 
o tutumumbuca, grande maioral. Temperou somente: 
– “Mas ele não falou o nome-da-mãe, amigo...” 
E era verdade. Todo o mundo concordou, pelo que vi de 
todos. Só para o nome-da-mãe ou de “ladrão” era que não havia 
remédio, por ser a ofensa grave. Com Joca Ramiro explicar 
assim, não havia jagunço que não aceitasse o razoável da 
ponderação, o relembrado. O Hermógenes mesmo se melou na 
atrapalhação das ligeirezas, e aí tinha de condizer. Nada ele não 
disse: mas abriu quadrada a boca, em careta de quem provou 
pedra de sal. E Zé Bebelo mesmo aproveitou para mudar o 
aspecto – para uma certa circunspecção. Se via que ele pensava a 
curto ganho no estreito, por detrás daquele sonsar. Trabalho de 
idéia em aperto, pelo pão de salvar sua vida da estrosca. 
Imediato, Joca Ramiro deu a vez a Só Candelário, não 
deixando frouxura de tempo para mais motim: – “Hê, e você, 
compadre? Qual é a acu. sação que se tem?” 
Sobre o que, sobreveio Só Candelário, arre avante, aos 
priscos, a figura muita, o gibão desombrado. Sobrava fala: – 
“Com efeito! Com efeito!...” – falou. Vai, vai, forteou mais a voz: 
– “Só quero pergunta: se ele convérn em nós dois resolvermos 
isto à faca! Pergunto para briga de duelo... É o que acho! Carece 
mais de discussão não... Zé Bebelo e eu – nós dois, na faca!...” 
Só Candelário mais longe não conseguia de dizer, só repetia 
aquilo, desafio, e no mais se mexer, feito com são-guido ou 
escaravelho. Sem raiva quase nenhuma – notei; mas também sem 
nenhuma paciência. Só Candelário sendo assim. Mas aí Joca 
Ramiro remediou, dizendo, resistencioso, e escondeu o de que 
ria: 
– “Resultado e condena, a gente deixa para o fim, 
compadre. Demore, que logo vai ver. Agora é a acusação das 
culpas. Que crimes o compadre indica neste homem?” 
– “Crime?... Crime não vejo. É o que acho, por mim é o 
que declaró com a opinião dos outros não me assopro. Que 
crime? Veio guerrear, como nós também. Perdeu, pronto! A 
gente não é jagunços? A pois: jagunço com jagunço – aos peitos, 
papos. Isso é crime? Perdeu, rachou feito umbuzeiro que boi 
comeu por metade... Mas brigou valente, mereceu... Crime, que 
sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado... não 
cumprir a palavra...” 
– “Sempre eu cumpro a palavra dada!” – gritou de lá Zé 
Bebelo... Só Candelário olhou encarado para ele, rente repente, 
como se nos instantes antes não soubesse que ele estava ali a três 
passos. Só assim mesmo prosseguiu: 
– “... Pois, sendo assim, o que acho é que se deve de tornar 
a soltar este homem, com o compromisso de ir ajuntar outra vez 
seu pessoal dele e voltar aqui no Norte, para a guerra poder 
continuar mais, perfeita, diversificada...” 
Ressaltados, os homens, ouvindo isso, rosnaram de bem, cá 
e lá: coragem sempre agradava. Diadorim apertou meu braço, 
como sussurrou: – “Doideira, dele. Riobaldo, Só Candelário está 
doido varrido...” Aí podia ser. Mas eu tinha relanceado um afio 
de onde ódio que ele mirou no Her-, mógenes, enquanto falando; 
e entendi: Só Candelário não gostava do Hermógenes! Sendo que 
ele podia até nem saber disso, não ter noção firme de que não 
gostava; mas era a maior verdade. Sucinto, só por conta disso, eu 
apreciei demais aquele rompante. 
Só Candelário esbarrou de falar, secado. Só aos bufos, 
surdo de se ver que ele tinha feito o grande esforço todo, 
sopitante. Se afundava para os altos. 
– “Apraz ao senhor, compadre Ricardão?” – Joca Ramiro 
solicitou, passando a vez. 
Aquele retardou tanto para começar a dizer, que pensei 
fosse ficar para sempre calado. Ele era o famoso Ricardão, o 
homem das beiras do Verde Pequeno. Amigo acorçoado de 
importantes políticos, e dono de muitas posses. Composto 
homem volumoso, de meças. Se gordo próprio não era, isso só 
por no sertão não se ver nenhum homem gordo. Mas um não 
podia deixar de se admirar do peso de tanta corpulência, a coisa 
de zebu guzerate. As carnes socadas em si – parecia que ele 
comesse muito mais do que todo o mundo – mais feijão, fubá de 
milho, mais arroz e farofa –, tudo imprensado, calcado, sacas e 
sacas. Afinal, ele falou: fosse o Almirante Balão: 
– “Compadre Joca Ramiro, o senhor é o chefe. O que a 
gente viu, o senhor vê, o que a gente sabe o senhor sabe. Nem 
carecia que cada um desse opinião, mas o senhor quer ceder alar 
de prezar a palavra de todos, e a gente recebe essa boa prova... 
Ao que agradecemos, como devido. Agora, eu sirvo a razão de 
meu compadre Hermógenes: que este homem Zé Bebelo veio 
caçar a gente, no Norte sertão, como mandadeiro de políticos e 
do Governo, se diz até que a soldo... A que perdeu, perdeu, mas 
deu muita lida, prejuízos. Sérios perigos, em que estivemos; o 
senhor sabe bem, compadre Chefe. Dou a conta dos 
companheiros nossos que ele matou, que eles mataram. Isso se 
pode repor? E os que ficaram inutilizados feridos, tantos e 
tantos... Sangue e os sofrimentos desses clamam. Agora, que 
vencemos, chegou a hora dessa vingança de desforra. A ver, 
fosse ele que vencesse, e nós não, onde era que uma hora destas 
a gente estava? Tristes mortos, todos, ou presos, mandados em 
ferros para o quartel da Diamantina, para muitas cadeias, para a 
capital do Estado. Nós todos, até o senhor mesmo, sei lá. 
Encareço, chefe. A gente não tem cadeia, tem outro despacho 
não, que dar a este; só um: é a misericórdia duma boa bala, de 
mete-bucha, e a arte está acabada e acertada. Assim que veio, não 
sabia que o fim mais fácil é esse? Com os outros, não se fez? Lei 
de jagunço é o momento, o menos luxos. Relembro também que 
a responsabilidade nossa está valendo: respeitante ao seo Sul de 
Oliveira, doutor Mirabô de Melo, o velho Nico Estácio, 
compadre Nhô Lajes e coronel Caetano Cordeiro... Esses estão 
agüentando acossamento do Governo, tiveram de sair de suas 
terras e fazendas, no que produziram uma grande quebra, vai 
tudo na mesma desordem... A pois, em nome deles, mesmo, eu 
sou deste parecer. A condena seja: sem tardança! Zé Bebelo, 
mesmo zureta, sem responsabilidade nenhuma, verte pemba, 
perigoso. A condena que vale, legal, é um tiro de arma. Aqui, 
chefe – eu voto!...” 
A babas do que ele vinha falando, o povaréu jagunço movia 
que louvava, confirmava. Aí, nhães, pelos que davam mais 
demonstração, medi quantidade dos que eram do Ricardão 
próprio. Zé Bebelo estava definito – eu pensei – qualquer 
rumorzinho de salvação para ele se mermando, se no mel, no 
p’ra passar. Mire e veja o senhor: e o pior de tudo era que eu 
mesmo tinha de achar correto o razoado do Ricardão, 
reconhecer a verdade daquelas palavras relatadas. Isso achei, 
meio me entristeci. Por quê? O justo que era, aquilo estava certo. 
Mas, de outros modos – que bem não sei – não estava. Assim, 
por curta idéia que eu queira dividir: certo, no que Zé Bebelo 
tinha feito; mas errado no que Zé Bebelo era e não era. Quem 
sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é 
sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado. Eh, 
bê. Mas, para o escriturado da vida, o julgar não se dispensa; 
carece? Só que uns peixes tem, que nadam rio-arriba, da barra às 
cabeceiras. Lei é lei? Loas! Quem julga, já morreu. Viver é muito 
perigoso, mesmo. 
Nisso, Joca Ramiro já tinha transferido a mão de fala a 
Titão Passos – esse era como um filho de Joca Ramiro, estava 
com ele nos segredos simples da amizade. Abri ouvidos. Idéia me 
veio que ia valer vivo o que ele falasse. Aí foi: 
– “Ao que aprecio também, Chefe, a distinção minha desta 
ocasião, de dar meu voto. Não estou contra a razão de 
companheiro nenhum, nem por contestar. Mas eu cá sei de toda 
consciência que tenho, a responsabilidade. Sei que estou como 
debaixo de juramento: sei porque de jurado já servi; uma vez, no 
júri da Januária... Sem querer ofender ninguém – vou afiançando. 
O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem 
crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e 
juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é 
sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis vir guerrear, veio – 
achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora, ele 
escopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, 
na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí 
estava certo, estava feito. Mas o refrego de tudo já se passou. 
Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não. Matar, não. 
Suas licenças...” 
Coração meu recomprei, com as palavras de Titão Passos. 
Homem em regra, capaz de mim. Cacei jeito de sorrir para ele, 
aprovei com a cabeça; não sei se ele me viu. E mais não houve 
rebuliço. Só que notei estopim os homens ficando diferentes. 
Agora tomavam mais ânsia de saber o que era que iam decidir os 
manantas. O pessoal próprio de Titão Passos era que formavam 
o bando menor de todos. Mas gente muito valente. Valentes 
como aquele bom chefe. “De que bando eu sou?” – comigo 
pensei. Vi que de nenhum. Mas, dali por diante, eu queria 
encostar direto com as ordens de Titão Passos. – “Ele é meu 
amigo...” – Diadorim no meu ouvido falou – “... Ele é bisneto de 
Pedro Cardoso, trasneto de Maria da Cruz!” Mas eu nem tive 
surto de perguntar a Diadorim o resumo do que ele pensasse. 
loca Ramiro agora queria o voto de João Goanhá – o derradeiro 
falante, que rente dificultava. 
João Goanhá fez que ia levantar, mas permaneceu agachado 
mesmo. Resto que retardou um pouco no dizer, e o que disse, 
que digo: 
– “Eu cá, ché, eu estou p’lo qu’ o ché pro fim expedir...” 
– “Mas não é bem o caso, compadre João. Vocês dão o 
voto, cada um. Carece de dar...” – foi o que Joca Ramiro explicou 
mais. 
A tanto João Goanhá se levantou, espanou com os dedos 
no nariz. Daí, pegou e repuxou seu canhão de cada manga. 
Arrumou a cintura, com as armas, num propósito de decisão. 
Que ouvi um tlim: moveu meus olhos. 
– “Antão pois antão...” – ele referiu forte: – “meu voto é 
com o compadre Só Candelário, e com meu amigo Titão Passos, 
cada com cada... Tem crime não. Matar não. Eh, diá!...” 
Rezo que ele falou aquilo, aquele capiau peludo, renasceu 
minha alegria. Rezo que falou, grosso, como se fosse por um 
destaque de guerra. De ripipe, espiei o Hermógenes: esse preteou 
de raiva. O Ricardão não acabava de cochilar, cara grande de 
sapo. O Ricardão, no exatamente, era quem mandava no 
Hermógenes. Cochilava fingido, eu sabia. E agora? Que é que 
tinha mais de ter? Não estava tudo por bem em bem terminado? 
Ah, não, o senhor mire e veja. Assim Joca Ramiro era 
homem de nenhuma pressa. Se abanava com o chapéu. Ao em 
uma soberania sem manha de arrocho, perpasseou os olhos na 
roda do povo. Ant’ante disse, alto: 
– “Que tenha algum dos meus filhos com necessidade de 
palavra para defesa ou acusação, que pode depor!” 
Tinha? Não tinha. Todo o mundo se olhava, num 
desconcerto, como quem diz lá: cada um com a cara atrás da sela. 
Para falar, ali não estavam. Por isso nem ninguém tinha esperado. 
Com tanto, uns fatos extraordinários. Haja veja, que Joca Ramiro 
repetiu o perguntar: 
– “Que por aí, no meio de meus cabras valentes, se terá 
algum que queira falar por acusação ou para defesa de Zé Bebelo, 
dar alguma palavra em favor dele? Que pode abrir a boca sem 
vexame nenhum...” 
Artes o advogo – aí é que vi. Alguém quisesse? Duvidei, foi 
o que foi. Digo ao senhor: estando por ali para mais de uns 
quinhentos homens, se não minto. Surgiu o silêncio deles todos. 
Aquele silêncio, que pior que uma alarida. Mas, por que não 
davam brados, não falavam todos total, de torna vez, para Zé 
Bebelo ser botado solto?... me enfezei. Sus, pensei, com um 
empurrão de força em mim. Ali naquel’horinha – meu senhor – 
foi que eu lambi idéia de como às vezes devia de ser bom ter 
grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo 
rodar e cumprir os desejos bons da gente. De sim, sim, pingo. 
Acho que eu tinha suor nas beiras da testa. Ou então – eu quis – 
ou, então, que se armasse ali mesmo rixa feia: metade do povo 
para lá, metade para cá, uns punindo pelo bem da justiça, os 
outros nas voltas da cauda do demo! Mas que faca.e fogo 
houvesse, e braços de homens, até resultar em montes de mortos 
e pureza de paz... Sal que eu comi, só. 
Abre que, ah, outra vez, Joca Ramiro reproduziu a 
pergunta: – “Que se tiver algum...” – e isto e aquilo, tudo o 
mais. Me armei dum repente. Me o meu? Eu agora ia falar – por 
que era que não falava? Aprumei corpo. Ah, mas não acertei em 
primeiro: um outro começou. Um Gu, certo papa-abóbora, 
beiradeiro, tarraco mas da cara comprida; esse discorreu: 
– “Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasa opinião. 
Que é – se vossas ordens forem de se soltar esse Zé Bebelo, isso 
produz bem... Oséquio feito, que se faz, vem a servir à gente, 
mais tarde, em alguma necessidade, que o caso for... Não ajunto 
por mim, observo é pelos chefes, mesmo, com esta vênia. A 
gente é braço d’armas, para o risco de todo dia, para tudo o 
miúdo do que vem no ar. Mas, se alguma outra ocasião, depois, 
que Deus nem consinta, algum chefe nosso cair preso em mão de 
tenente de meganhas – então também hão de ser tratados com 
maior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades... A guerra 
fica sendo de bem-criação, bom estatuto...” 
Aquilo era razoável. A ver, tinha saído tão fácil, até Joca 
Ramiro, em passagens, animou o Gu, com acenos. Tomei 
coragem mais comum. Abri a minha boca. AI, mas, um outro 
campou ligeiro, tomou a mão para falar: Era um denominado 
Dosno, ou Dosmo, groteiro de terras do Cateriangongo – entre o 
Ribeirão Formoso e a Serra Escura – e ele tinha olhos muito 
incertos e vesgava. Que era que podia guardar para dizer um homem 
desses, capiau medido por todos os capiaus  do meu Norte? 
Escutei. 
– “Tomém pego licença, sós chefes. Em que pior não veja, 
destorcendo meu desatino. É-que, é-que... Que eu acho que seja 
melhor, em antes de se remitir ou de se cumprir esse homem, 
pois bem: indagar de fazer ele dizer ond’é que estão a fortuna 
dele, em cobre... A mó que se diz – que ele possederá o bom 
dinheiro, em quantia, amoitado  por aí... É só, por mim, é só, com 
vosso perdão... Com vosso perdão...” 
Riram, uns; por que é que riram? – rissem. Dei como um 
passo adiante, levantei mão e estalei dedo, feito menino em 
escola. Comecei a falar. Diadorim ainda experimentou de me 
reter, decerto assustado: – “Espera, Riobaldo...” – tive o siso da 
voz dele no ouvido. Aí eu já tinha principiado. O que eu acho, 
disse, supri neste mais menos fraseado: 
– “Dê licença, grande chefe nosso, Joca Ramiro, que 
licença eu peço! O que tenho é uma verdade forte para dizer, que 
calado não posso ficar...” Digo ao senhor: que eu mesmo notei 
que estava falando alto demais, mas de me abrandar não tinha 
prazo nem jeito – eu já tinha começado. Coração bruto batente, 
por debaixo de tudo. Senti outro fogo no meu rosto, o salteio de 
que todos a finque me olhavam. Então, eu não aceitei niw guém, 
o que eu não queria era ver o Hermógenes. Não pôr as capas dos 
olhos nem a idéia no Hermógenes – que Hermógenes nenhum 
neste mundo não tivesse, nenhum para mim, nenhum de si! Por 
isso, prendi minhas vistas só num homem, um que foi o 
qualquer, sem nem escolha minha, e porque estava bem por 
minha frente, um pardo. Pobre, esse, notando que recebia tanto 
olhar, abaixou a cara, amassado de não poder outra coisa. No eu 
falando: 
–... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do 
lado dele, nunca menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de 
lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com as 
ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi que 
briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora, 
eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que 
honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primei-
ra, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que 
prende, nem consentir de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi. 
Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido 
escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... E isto 
digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e cumprindo 
a licença dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e por 
meu cabo-chefe Titão Passos!...” 
Tirei fôlego de fôlego, latejei. Sei que me desconheci. 
Suspendi do que estava: 
–... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu 
este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, 
em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras 
partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois 
então, xente, hão de se dizer que aqui na SempreVerde vieram se 
reunir os chefes todos de bandos; com seu cabras valentes, 
montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro – só 
para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho – se 
condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? 
Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...” 
– “Para mim, é vergonha...” – o que em brilhos ouvi: e 
quem falou assim foi Titão Passos. 
– “Vergonha! Raios diabos que vergonha é! Estrumes! A 
vergonha danada, raios danados que seja!...” – assim; e quem 
gritou, isto a mais, foi Só Candelário. 
Tudo tão aos traques de-repente, não sei, eu nem acabei o 
relance que me arrepiou minha idéia: que eu tinha feito grande 
toleima, que decerto ia ser para piorar – o que foi no eu dizer que 
Zé Bebelo não matava os presos; porque, se do nosso lado se 
matava, então não iam gostar de escutar aquilo de mim, que 
podia parecer forte reprovação. Aos brados bramados de Sô 
Candelário, temi perder a vez de tudo falar. Aí, nem olhei para 
Joca Ramiro – eu achasse, ligeiro demais, que Joca Ramiro não 
estava aprovando meu saimento. Aí, porque nem não tive tempo 
– porque imediato senti que tinha de completar o meu, assim: 
– `... A ver. Mas, se a gente der condena de absolvido: 
soltar este homem Zé Bebelo, a mãvazias, punido só pela 
derrota que levou – então, eu acho, é fama grande. Fama de 
glória: que primeiro vencemos, e depois soltamos...” ; em tanto 
terminei de pensar: que meu receio era tolo: que, jagunço, pelo 
que é, quase que nunca pensa em reto: eles podiam achar 
normal que da banda de cá os inimigos presos a gente matasse, 
mas apreciavam também que Zé Bebelo, como contrário, tivesse 
deixado em vida os companheiros nossos presos. Gente airada... 
– “... Seja fama de glória! Só o que sei... Chagas de 
Cristo!...” – eta Só Candelário tornou a atalhar. Desadorou-se! 
Senhor de bofe bruto, sapateou, de arrompe: os de perto se 
afastando, depressa, por a ele darem espaço. Agora o 
Hermógenes havia de alguma coisa dizer? O Hermógenes 
experimentava os dentes nos beiços. Ricardão fazia que 
cochilava. Só Candelário era de se temer inteiro. 
Somente que, em vez do trestampo, que a gente esperasse, 
e que ninguém bridava, ele Só Candelário espiou para cima, às 
pasmas, consoante sossegado estúrdio recitou, assim em tom – a 
bonita voz, de espírito: 
– “... Seja a fama de glória... Todo o mundo vai falar nisso, 
por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e 
lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair até 
divulgado em jornal de cidade...” – Ele estava mandarino, 
mesmo. 
Aí eu pensei, eu achei? Não. Eu disse. Disse o verdadeiro, o 
ligeiro, o de não se esperar para dizer: – “... E, que perigo que 
tem? Se ele der a palavra de nunca mais tornar a vir guerrear com 
a gente, decerto cumpre. Ele mesmo não há de querer tornar a 
vir. É o justo. Melhor é se ele der a palavra de que vai-s’embora 
do Estado, para bem longe, em desde que não fique em terras 
daqui nem da Bahia...” – eu disse; disse mansinho mãe, mansice; 
caminhos de cobra. 
– “Tenho uns parentes meus em Goiás...” – Zé Bebelo 
falou, avindado de repente. E falou quando não se aguardava, e 
também assim com tanta vontade de falar, que alguns muito se 
riram. Eu não ri. Tomei uma respiração, e aí vi que eu tinha 
terminado. Isto é, que comecei a temer. Num esfrio, num átimo, 
me vesti de pavor. O que olhei – Joca Ramiro teria estado a 
gestos? – Joca Ramiro fazendo um gesto, então queria que eu 
calasse absolutamente a boca; eu não possuía vênia para discorrer 
no que para mim não era de minha alta conta. Eu quis, de 
repentemente, tornar a ficar nenhum, ninguém, safado 
humildezinho... 
Mas Titão Passos trucou, senhor-moço. Titão Passos 
levantava a testa. Ele, que no normal falava tão pouco, pudesse 
dar capacidade de tantas constâncias? 
Titão Passos disse: – “... Então, ele indo para bem longe, 
está punido, desterrado. É o que eu voto por justo. Crime maior 
ele teve? Pelos companheiros nossos, que morreram ou estão 
ofendidos passando mal, tenho muito dó...” 
Só Candelário disse: – “... Mas morrer em combate é coisa 
trivial nossa; para que é que a gente é jagunço?! Quem vai em 
caça, perde o que não acha...” 
Titão Passos disse: – “... E mortes tantas, isso não é culpa 
de chefe nenhum. Digo. E mais que esses grandes de nossa 
amizade: doutor Mirabô de Melo, coronel Caetano, e os outros – 
hão de concordar com a resolução que a gente tome, em desde 
que seja boa e de bom proveito geral. É o que eu acho, Chefe. Às 
ordens...” – Titão Passos terminou. 
O silêncio todo era de Joca Ramiro. Era de Zé Bebelo e de 
Joca Ramiro. 
Ninguém não reparava mais em mim, não apontavam o eu 
ter falado o forte solene, o terrivelmente; e então, agora, para 
todos os de lá, eu não existisse mais existido? Só Diadorim, que 
quase me abraçava: – “Riobaldo, tu disse bem! Tu é homem de 
todas valentas_” Mas, os outros, perto de mim, por que era que  
não me davam louvor, com as palavras: – Gostei de ver! 
Tatarana! Assim é que é assim! Só, que eu tinha pronunciado 
bem, Diadorim mais me disse: e que tinha sido menos por 
minhas tantas palavras, do que pelo rompante brabo com que 
falei, acendido, exportando uma espécie de autoridade que em 
mim veio. E para Zé Bebelo eu não tinha olhado. Que era que 
ele de mim devia de estar pensando? E Joca Ramiro? Esses se 
fronteavam: um ao outro, e o em meio, se mediam. 
Rente que nesse resto de tempo decerto cruzaram palavras, 
que não deram para eu ouvir. Pois porque Zé Bebelo teve ordem 
de falar, devia de ter tido. A licença. Principiou. Foi discorrendo 
vagaroso, de entremeado, coisa sem coisa. Vi e vi: ele estava só 
apalpando o vau. Sujeito finório. Aí o qualquer zunzo que 
houvesse, ele colhia e entendia no ar – estava com as orelhas por 
isso, aquela cabeça sobrenadando. Já um pouco descabelado. Mas 
serenou sota, para diante. 
– `... Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, 
este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de 
medo nenhum, nem agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é 
meu nome: José Rebelo Adro Antunes! Tataravô meu Francisco 
Vizeu Antunes – foi capitão-de-cavalos... Demarco idade de 
quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar 
Pacheco Antunes e Maria Deolinda Rebelo; e nasci na bondosa 
vila mateira do Carmo da Confusão...” 
Oragos. Para que a tanta sensaboria toda, essas filosofias? 
Mas porém ele pronunciava com brio, sem as papeatas de em 
antes, sem o remonstrar nem os reviretes: 
– “... Agradeço os que por mim bem falaram e puniram... 
Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à 
frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente, 
contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu 
exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem- 
Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui 
presentes, outros que não estão... Briguei muito mediano, não 
obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me 
reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou 
pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa 
que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, 
depois, de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por 
um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes 
políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao 
grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para 
votarem em mim, para deputado... Ah, este Norte em 
remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria 
nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não 
tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do 
sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso. 
Mudei para adiante! Perdi – isto é – por culpa de má-hora de 
sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De ter sido 
guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de julgamento, isto é 
que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos jagunços 
do Norte são civilizados de calibre: que não matam com o 
distrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são 
essas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas. Estimei. 
Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantes de seus 
terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou de 
altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...” 
Anda que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao 
que, de vez, foi grandeúdo: 
– “... Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. 
Não vim socolor de disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por 
um desguardo. Não por má chefia minha! Não devia de ter 
querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de. Não 
confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo que fiz, 
valeu por bem feito. É meu consueto. Mas, hoje, sei: não deviade. 
Isto é: depende da sentença que vou ter, neste nobre julgamento. 
Julgamento, digo, que com arma ainda na mão pedi; e que 
deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia... 
Julgamento – isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para 
quê? Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste 
julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena 
for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu 
receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço. 
Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para 
escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte. Mas 
agradeço, fortemente. Também não posso me oferecer de servir 
debaixo d’armas de Joca Ramiro – porque tanto era honra, mas 
não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as 
mil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem 
mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe. Chefes.” 
Digo ao senhor, foi um momento movimentado. 
Zé Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinho ficou, 
repequeno, pequenininho, encolhido ao mais. Já um pouco 
descabelado. Era uma bolinha de gente. Fechou-se um homem. 
Olhei, olhei. Só a gente mal ouvisse o sussurro de todos lá; que 
foi bom: conheci que era. – “O sujeito machacá! Assopres!” – 
“Arre, maluco é – mas frege... Capaz que castra garrote com as 
unhas dos dedos...” Não o que Diadorim não disse – mas ele 
estava assim por pálido. Vai, vi os chefes. Eles conversaram um 
circuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o Ricardão – e Joca 
Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O Ricardão e o 
Hermógenes – eles dois eram chouriço e morcela. Só Candelárioconforme 
seus conformes, avançante-Joca Ramirosorriu para Só 
Candelário. O jeito de João Goanhá – richarte. Só Titão Passos 
espiava desolhadamente, ele tão aposto homem tão bom, tão 
sério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente da barriga – só 
esperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. Joca Ramiro ia 
decidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia se debruçar, 
para um dizer em orelha. Mas Joca Ramiro encurtou tudo num 
gesto. Era a hora. O poder dele veio distribuído endireito em Zé 
Bebelo. O quando falou: 
– “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo 
este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos 
políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença 
vale. A decisão. O senhor reconhece?” 
– “Reconheço” – Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, 
ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até: – 
“Reconheço. Reconheço! Reconheço...” – estreques estalos de 
gatilho e pinguelo – o que se diz: essas detonações. 
– “Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, 
o senhor põe a palavra, e vai?” 
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, 
pois: 
– “A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor 
determine minha ida em modo correto, como compertence.” 
– “A falando?” 
– “Que: se ainda tiver homens meus vivos, presos também 
por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo, 
igualmente...” 
Ao que Joca Ramiro disse: – “Topo. Topo.” 
– “ ... E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia 
nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-desela 
arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma 
munição, mais o de-comer para os três dias, legal...” 
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: – “Topo. Topo!” 
– “... Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a 
pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem 
voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, três anos?” 
– “Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...” 
– Joca Ramiro ai disse, em final. E se levantou, num de repente. 
Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia – as 
pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao 
em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, ou 
um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de 
alegria: todo o mundo já estava com cansaço de dar julgamento, 
e se tinha alguma certa fome. 
Diadorim me chamou, fomos caminhando, no meio da 
queleléia do povo. Mesmo eu vi o Hermógenes: ele se amargou, 
engolindo de boca fechada. – “Diadorim” – eu disse – “esse 
Hermógenes está em verde, nas portas da inveja...” Mas 
Diadorim por certo não me ouviu bem, pelo que começou 
dizendo: – “Deus é servido...” Não sosseguei. Aquele pessoal 
tribuzava. O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha: 
panelas grandes e caldeirões, cozinhando de tudo o que vale a 
valer. Tinha sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo, não por 
nada não, mas pelo exato ser: eu tinha estalando nos meus olhos 
a lembrança do Hermógenes, na hora do julgamento. De como 
primeiro ele, soturno, não se sobressaía, só escancarava muito as 
pernas, facãozão na mão; mas depois ficou artimanhado, com 
uma tristeza fechada aos cantos, como cão que consome raivas. 
E o Ricardão? Esse: uma pesadureza na cara toda, mas, quando 
esbarrou de cochilar, aqueles olhos grossos, rebolando que nem 
apostemados, sem bom preceito. Assente, enfim, tudo estava 
passado, terminado. Estava? Pois, pedi espera a Diadorim, na 
beira do rego, eu queria cuidar do meu cavalo, dissesse, 
desarrear e escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, a bem, eu 
cacei onde estava o Hermógenes, tempo parei perto dele. 
Virando que eu quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizer ouvi: – 
... “Mamãezada...” Ao que seria? O Hermógenes não era 
nenhum toleimado, para desfazer na decisão de Joca Ramiro. 
“Mamãezada”?Mais não ouvi, relembro que não sei direito. Com 
pouco, Zé Bebelo estava dando as despedidas. Se viu, montado 
num bom cavalo de duas cores, arreado com sela boa de Minas- 
Velhas. Deram que levasse carabina, suas outras armas, e cruzcruz 
cartucheiras. Aí já tinha jantado. E o bornal com 
matlotagem. Sobre o cavalo se houve, se upou na sela. Se foi. 
Saiu em marcha de estrada, sem olhar para trás, o sol na beira. 
Só o Triol devia de prestar acompanhamento a ele, por o uso de 
resguardado território, de uma légua. Me deu certa tristeza. Mas 
a minha satisfação ainda era maior. 
Daí, estávamos todos pegando o que comer, que eram 
essas grandes abundâncias. Angu e couve, abóbora-moranga 
cozida, torresmos, e em toda fogueira assavam mantas de 
carnes. Quem quisesse sopa, era só ir se aquinhoar na porta-dacozinha. 
A quantidade de pratos era que faltava. E assaz muita 
cachaça se tomou, que Joca Ramiro mandou satisfazer goles a 
todos – extraordinária de boa. O senhor havia de gostar de ver 
aquela ajuntação de povo, as coisas que falavam e faziam, o jeito 
como podiam se rir, na vadiação, todos bem comidos, 
entalagados. Daí, escureceu. Homens deitados no chão, 
escornados até quase debaixo do mijo dos cavalos pastantes. Eu 
estava que impava, queria um bom sono. A ver, fui com Diadorim 
para o rumo dos pés de fruta, seguindo o rego. Com a 
entrada da noite, o passar da água canta friinho, permeio, 
engrossa, e a gente aprecia o cheiro do musguz das árvores. Zé 
Bebelo tinha ido embora, para sempre, no cavalo de duas cores, 
fez pouca poeira. Nós estávamos no jaz ali, repimpados, 
enfunando as redes. Disso não esqueço? Não esqueço. A gente 
estava desagasalhados na alegria, feito meninos. 
Eu tinha vindo para ali, para o sertão do Norte, como 
todos uma hora vêm. Eu tinha vindo quase sem mesmo notar 
que vinha – mas presado, precisão de agenciar um resto melhor 
para a minha vida. Agora me expulsassem? Do jeito, isto é, 
tinham repelido para trás Zé Bebelo. Não me esqueci daquelas 
palavras dele: que agora era “o mundo à revelia...” Disse a 
Diadorim. Mas Diadorim menos me respondeu. Ao dar, que 
falou: – “Riobaldo, você prezava de ir viver n’Os-Porcos, que lá 
é bonito sempre – com as estrelas tão reluzidas?...” Dei que sim. 
Como ia querer dizer diferente: pois lá n’Os-Porcos não era a 
terra de Diadorim própria, lugar dele de crescimento? Mas, 
mesmo enquanto que essas palavras, eu pensasse que Diadorim 
podia ter me respondido, assim nestas fações: – “... Mundo à 
revelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo 
sempre esteve...” Toleima, sei, bobéia disso, a basba do 
basbaque. Que eu dizia e pensava numa coisa, mas Diadorim 
recruzava com outras – “... Zé Bebelo, Diadorim: que é que 
você achou daquele homem?” – ainda indaguei. – “Para ele, de 
agora, não tem dia nem noite: vai seu rumo, fazendo a viagem... 
Teve sorte! Entestou foi com Joca Ramiro – com sua alta 
bondade...” – foi o que Diadorim me respondeu. E ficou 
pensando, ficamos. Aí quando eu acabei até à pontinha meu 
cigarro, ainda perguntei: – “A ver, quem salvou Zé Bebelo da 
morte?” Diadorim, o que quis me dizer foi em tanto segredo, 
que ele puxou a beira da minha rede, para a gente falar quase 
cara a cara: – “Ah, quem salvou Zé Bebelo de morte? Pois, 
abaixo de Joca Ramiro, por começar foi ele Zé Bebelo mesmo. 
Depois, numa ponta do dito de Zé Bebelo, tomou figura Só 
Candelário – homem esquipático e enorme de si, mas fiel, e que 
põe mais de trezentas armas. Cabras que, por um gesto dele, 
avançam e matam e matam...” Eu queria que ele tivesse explicado 
o fato de outro jeito. Mas Diadorim estava prosseguindo: – 
“... A ser que você viu o Hermógenes e o Ricardão, gente 
estarrecida de iras frias... Agora, esses me dão receio, meu 
medo... Deus não queira...” Depois, ele terminou assim: – “... 
Ao enquanto Joca Ramiro pode precisar da gente, você mesmo 
me prometeu, Riobaldo: a gente persiste por aqui.” Prometi 
outra vez, confirmei. Desde, no sereno da noite, não se 
conversou mais, não me recordo. 
Diadorim estava triste, na voz. Eu também estive. Por 
quê? – há-de o senhor querer saber. Por causa de Zé Bebelo ter 
ido embora; e aquilo era motivo? Depois de Paracatu, é o 
mundo... Zé Bebelo ido, sei lá bem porque, tirava meu poder de 
pensar com a idéia em ordem, e eu sentia minha barriga demais 
cheia, demais de tantas comidas e bebidas. Só o que me 
consolava era ter havido aquele julgamento, com a vida e a fama 
de Zé Bebelo autorizadas. O julgamento? Digo: aquilo para mim 
foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão 
de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias 
de palavras. – “O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só 
uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem 
senso, neste meio do sertão...” – o senhor dirá. Pois: por isso 
mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas, no centro do 
sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de 
mais juizo! Daquela hora em diante, eu cri em Joca Ramiro. Por 
causa de Zé Bebelo. Porque, Zé Bebelo, na hora, naquela 
ocasião, estava sendo maior do que pessoa. Eu gostava dele do 
jeito que agora gosto de compadre meu Quelemém; gostava por 
entender no ar. Por isso, o julgamento tinha dado paz à minha 
idéia – por dizer bem: meu coração. Dormi, adeus disso. Como é 
que eu ia poder ter pressentimento das coisas terríveis que vieram 
depois, conforme o senhor vai ver, que já lhe conto? 
Curtamente: dali da Sempre-Verde, com um dia mais, 
desapartamos. O bando muito grande de jagunços não tem 
composição de proveito em ocasião normal, só serve para 
chamar soldados e dar atrásamento e desrazoada despesa. 
Constava que João Goanhá torasse para a Bahia, e que o Antenor 
seguindo rumo em beira do Ramalhada, com um punhado dos 
Hermógenes. Novas ordens, muitas ordens. Alaripe ia vir com 
Titão Passos. Titão Passos chamou a gente: Diadorim e eu. Se 
tinha um roteiro, sendo para ser: o mais encostado possível no 
São Francisco, até para lá do Jequitaí, e mais. Aquilo, por quê? A 
gente não ia junto com Joca Ramiro, em caso de lhe a ele 
podermos valer, em caso, com maior ajuda, mão a mão? Ah, mas 
nossa tarefa era de muito encoberto empenho e valor: pelo que 
tínhamos de estanciar em certos lugares, com o fito de receber 
remessas; e em acontecer de vigiar algum rompimento de 
soldados, que para o Norte entrassem. Arreamos, montamos, 
saímos. Naquela mesma da hora, Joca Ramiro dava partida 
também, de volta para o São João do Paraíso. Lá ia ele, deveras, 
em seu cavalão branco, ginete – ladeado por Só Candelário e o 
Ricardão, igual iguais galopavam. Saíam os chefes todos – assim 
o desenrolar dos bandos, em caracol, aos gritos de vozear. Ao 
que reluzia o bem belo. Diadorim olhou, e fez o sinal-da-cruz, 
cordial. – “Assim, ele me botou a benção...” – foi o que disse. Dá 
sempre tristezas algumas, um destravo de grande povo se 
desmanchar. Mas, nesse dia mesmo, em nossos cavalos tão bons, 
dobramos nove léguas. 
As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amargoso. E sete, 
para chegar numa cachoeira no Gorutuba. E dez, arranchando 
entre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas: sertão 
sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de 
repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando 
menos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao 
quando um belo dia, a gente parava em macias terras, 
agradáveis. As muitas águas. Os verdes já estavam se gastando. 
Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros. O marrequim, a 
garrixa-do-brejo, frangos-d’água, gaivotas. O manuelzinho-dacroa! 
Diadorim, comigo. As garças, elas em asas. O rio desmazelado, 
livre rolador. E aí esbarramos parada, para demora, 
num campo solteiro, em varjaria descoberta, pasto de muito 
gado. 
Lugar perto da Guararavacã do Guaicuí: Tapera Nhã, nome 
que chamava-se. Ali era bom? Sossegava. Mas, tem horas em que 
me pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do 
sertão. Ali era bonito, sim senhor. Não se tinha perigos em vista, 
não se carecia de fazer nada. Nós estávamos em vinte e três 
homens. Titão Passos determinou uma esquadrazinha deles – 
com Alaripe em testa: fossem para a outra banda do morro, 
baixada própria da Guararavacã, esperar o que não acontecesse. 
Nós ficamos. 
O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era: 
bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito 
a mil do pássaro rexenxão – que vinham voando, aquelas 
chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de 
mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as 
malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de 
acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no 
meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando 
não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom 
peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o 
Paspe – fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também 
razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos, 
nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormi, sestas 
inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se 
esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam para a 
beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro 
d’água. Às vezes chegavam a nado até em cima duma ilha 
comprida, onde o capim era lindo verdejo. O que é de paz, cresce 
por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só 
ser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do 
não-saber. E eu não tinha notícia de ninguém, de coisa nenhuma 
deste mundo – o senhor pode raciocinar. Eu queria uma mulher, 
qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente, tanto, que 
até um referver de mau desejo, no meio da quebreira, serve como 
beneficio. 
Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a 
vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E 
marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi 
e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei 
um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados 
– e ali era vau de gado. “Quanto mais ando, querendo pessoas, 
parece que entro mais no sozinho do vago...” – foi o que pensei, 
na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de 
tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em 
mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão demotivo; 
que, quando notei que estava com dorde-cabeça, e achei 
que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de 
bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem 
aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que 
defrontei – um riachim à-toa de branquinho – olhou para mim e 
me disse: – Não... – e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não 
ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O 
bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, 
baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, 
deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira 
pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, 
repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro 
tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para 
reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de 
campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um 
diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o 
romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, 
alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, 
nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é 
absurdo – Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, 
a uns dois passos de mim, me vigiava. 
Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta 
vida. Tinha notado minha idéia de fugir, tinha me rastreado, me 
encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também não falei. O 
calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o 
verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus 
lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, 
tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas 
que a idéia da gente não dá para se entender – e acho que é por 
isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado 
ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era 
engraçado, era para se dar feliz risada. Não dei. Nem pude nem 
quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: – 
Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para 
mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... – que era como se 
Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando. E, 
digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: que foi 
que, em hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de 
rir dele. 
A Guararavacã do Guaicuí: o senhor tome nota deste 
nome. Mas, não tem mais, não encontra – de derradeiro, ali se 
chama é Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres. Naquele 
tempo, não dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar, no 
tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um 
ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? 
Travessia de minha vida. Guararavacã – o senhor veja, o senhor 
escreva. As grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, o 
mundo quer ficar sem sertão. Caixeirópolis, ouvi dizer. Acho qqe 
nem coisas assim não acontecem mais. Se um dia acontecer, o 
mundo se acaba. Guararavacã. O senhor vá escutando. 
Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de 
Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. 
Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. 
Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. 
Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimento dum 
rancho velho de tropeiro, eu estava deitado numa esteira 
de taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, 
reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte 
em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum 
mesmo jeito, se podia mandar o amor? O rancho era na bordada-
mata. De tarde, como estava sendo, esfriava um pouco, por 
pejo de vento – o que vem da Serra do Espinhaço – um vento 
com todas almas. Arrepio que fuxicava as folhagens ali, e ia, lá 
adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão 
branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o joão-pobre, 
pardo, banhador. Me deu saudade de algum buritizal, na ida 
duma vereda em capim tem-te que verde, termo da chapada. 
Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dos Gerais. 
O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, 
quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento 
é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo. 
Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Mas, lá na 
Guararavacã, eu estava bem. O gado ainda pastava, meu vizinho, 
cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem, aos casais, 
corriam, catavam, permeio às reses, no liso do campo claro. Mas, 
nas árvores, pica-pau bate e grita. E escutei o barulho, vindo do 
dentro do mato, de um macuco – sempre solerte. Era mês de 
macuco ainda passear solitário – macho e fémea 
desemparelhados, cada um por si. E o macuco vinha andando, 
sarandando, macucando: aquilo ele ciscava no chão, feito galinha 
de casa. Eu ri – “Vigia este, Diadorim!” – eu disse; pensei que 
Diadorim estivesse em voz de alcance. Ele não estava. O macuco 
me olhou, de cabecinha alta. Ele tinha vindo quase endireito em 
mim, por pouco entrou no rancho. Me olhou, rolou os olhos. 
Aquele pássaro procurava o quê? Vinha me pôr quebrantos. Eu 
podia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não dei. Peguei só 
num pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu um susto, 
trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder a cabeça, 
cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até de costas, 
fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçar poleiro para o 
bom adormecer. 
O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em 
mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente – 
“Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo? 
Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter 
vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu 
figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por 
fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de 
todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entreonde-
os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus 
mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava 
com meu corpo aquele Diadorim-que não era de verdade. Não 
era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia 
de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra 
pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas – de 
dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me 
fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu 
pudesse morrer, não me importava. 
O que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes 
meses, de estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e 
quase sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre 
em mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em 
dormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum 
costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. 
Era e era. Sobrestive um momento, fechados os olhos, 
sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí, levantei. 
Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era 
firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé – isso é que 
vale. Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, 
com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de 
carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do 
outro Diadorim, que eu tinha inventado. – “Hê, Riobaldo, eh, 
uê, você carece de alguma coisa?” – ele me perguntou, quemme-
vê, com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendi um 
cigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. “Se 
é o que é” – eu pensei – “eu estou meio perdido...” Acertei 
minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato 
daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento 
daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de 
quebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de 
minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia 
– virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as 
estradas. Rangi nisso – consolo que me determinou. Ah, então 
eu estava meio salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro – 
no mato – um tiraço que ribombou. – “Ao que foi?” – me 
gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. – “Acho que 
um macaquinho miúdo, que acho que errei...” – eu expendi. 
Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim, 
encarando, para duro, calado comigo, me dizer: “Nego que 
gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...” Assaz 
mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso, 
sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo 
acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor 
não fosse sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais longe: 
nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho 
de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor 
dorme em sobre um rio? 
Segundo digo, o tempo que paramos na Guararavacã do 
Guaicuí regulou em dois meses. Bom ermo. De lá, a gente 
cruzou as vizinhanças todas, fizemos grande redondeza. Todo 
dia, trocávamos recado de avisos com o pessoal do Alaripe. 
Notícia, nenhumas. Nada não chegava em envio, do que fosse 
para chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queima dos 
campos: quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças. 
De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em labaredas 
e brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duas léguas, 
tinha uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que era amigo 
nosso. – “Ah, se ele quisesse alugar a mulherzinha dele para a 
gente, bem caros preços que eu pagava...” – assim o que dizia o 
Paspe, suspiroso. Mas quem vinha eram os meninos do 
lavrador, montados num cavalo magro, traziam feixes de cana, 
para vender para a gente. Às vezes, vinham em dois cavalos 
magros, e eram cinco ou seis meninos, amontados, agarrados 
uns nos outros, uns mesmo não se sabia como podiam, de tão 
mindinhos. Esses meninozinhos, todos, queriam todo o tempo 
ver nossas armas, pediam que a gente desse tiros. Diadorim 
gostava deles, pegava um por cada mão, até carregava os menorzinhos, 
levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio. – 
“Olha, vigia: o manuelzinho-da-troa já acabou de fazer a 
muda...” Um dia, em que tínhamos caçado uma paca bem gorda, 
o Paspe pitou de sal um quarto dela, enrolou em folhas, e deu 
ao menino mais velho: – “P’ra tu leva de presente, dá à tua mãe, 
fala que quem mandou fui eu...” – ele recomendou. A gente ria. 
Os meninos receavam o gado: ali no meio tinha reses muito 
bravas, um dia uma vaca deu corrida em alguém, querendo 
bater. Mas, depois, com o secar, de magros e fracos os bois se 
atolavam no embrejado, até morreram alguns. Os urubus 
espaceavam, quando o céu empoeirado. Pousavam no pindaibal 
do brejo. João Vaqueiro chamava a gente, ia desatolar os bois 
que podia. Uns eram mansos: por um punhado de sal, se 
chegavam, lambiam o chão nos pés da gente. João Vaqueiro 
sabia tudo. Chega passava a mão nas tetas de uma vaca – capins 
tão bons, o senhor crê? – algumas ainda guardavam leite 
naqueles peitos. – “A gente carecia era de dar um fogo, de sair 
por aí, por combate...” – sensato se dizia. Que jagunço amolece, 
quando não padece. 
A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de 
demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do 
cerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muito forte, 
geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só 
um de nós era que ia lá – para não desconfiarem. Ia o Jesualdo. 
A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o 
que queria. Diadorim mandou comprar um quilo grande de 
sabão de coco de macaúba, para sé lavar corpo. O dono da 
venda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava carecia 
de explicar à gente, de dia é de noite, como elas eram, 
formosuramente. – “Ei, que quando vier o tempo, que de guerra 
se tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou 
lá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virar mulher...” – o 
Vove disse. – “O que tu não faz! Porque o que eu quero é o 
exato: que eu vou’ lá, prezado peço em casamento, e nóivo...” – 
o Triol contestou. E o Liduvino e o Admeto cantavam coisas de 
sentimento, cantavam pelo nariz. 
Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz? Mas eles não 
sabiam. – “Sei não, gosto não. Cantigas muito velhas...” – eles 
desqueriam. 
Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras 
revoavam. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, 
folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho . E vieram uns 
campeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame, levaram 
as novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão 
simples, pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias 
de chover cheio foram se emendando. Tudo igual – às vezes é 
uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças 
é que praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range 
cincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas 
avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, 
a gente se ria, no friinho de entrechuvas. Dada a primeira 
estiada, voltou aquele vaqueiro Bernabé, em seu cavalinho 
castanho; e vinha trazer requeijão, que se tinha incumbido a ele, 
e que por dinheirinho bom se pagou. – “A vida tem de mudar 
um dia para melhor” – a gente dizia. Requeijão é com café bem 
quente que é mais gostoso. Aquele vaqueiro Bernabé voltou, 
outras diversas vezes.  
Ah, e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da estrada 
que saía do mato, o cavalinho castanho dava toda pressa de 
vinda, nem cabeceava. Achamos que fosse mesmo ele. Aí, não 
era. Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião- 
Cujo, que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas 
chuvas, que tudo era lamas, dos copos do freio à boca da bota, e 
pelos vazios do cavalo. Esbarrou e desapeou, num pronto ser, 
se via que estava ancho com muitas plenipotências. O que era? 
O Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo não saiu, ele 
gaguejou ar e demorou – decerto porque a notícia era urgente 
ou enorme. – “Ar’uê, então?!” – Titão Passos quis. – “Te 
rogaram alguma praga?” O Gavião-Cujo levantou um braço, 
pedindo prazo. À fé, quase gritou: 
– “Mataram Joca Ramiro!...” 
Aí estralasse tudo – no meio ouvi um uivo doido de 
Diadorim : todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, 
feras! Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído de nuvens. 
Se gritava – o araral. As vertentes verdes do pindaibal 
avançassem feito gente pessoas. Titão Passos bramou as ordens. 
Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo 
por João Vaqueiro. 
Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto 
estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, 
para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma 
cuia d’água, que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo. 
Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para 
desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num 
alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio de ninguém, 
sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais 
vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos 
olhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o 
Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor. Ao 
que não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se 
desgovernava. 
– “Repete, Gavião!” 
– “Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...” – 
“Quem? Adonde? Conta!” 
Arre, eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços. 
Secou todo cuspe dentro do estreito de minha boca. Até 
atravessado, na barriga, me doeu. Antes mais, o pobre 
Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço, orço que outros 
olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo tinha vindo 
por cima de nós, feito um relâmpago em fato. 
– “... Matou foi o Hermógenes...” 
– “Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demônio! 
Traição! Que me paga!...” – constante não havendo quem não 
exclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armava um pojar 
para estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiam ter 
matado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinho surdo 
nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da tempestade. 
Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto, para 
retardar o surgir do medo – e a tristeza em cru – sem se saber 
por que, mas que era de todos, unidos malaventurados. 
– “... O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O 
Antenor... Muitos... 
– “Mas, adonde onde!?” 
– “A desgraça foi num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê, 
beira da Jerara – lá onde o córrego da Jerara desce do morro do 
Vôo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-se que foi 
sido de repente, não se esperava. Aquilo foi à traição toda. 
Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente. Aí, 
mortos: João Frio, o Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o 
Cambó, Leite-de-Sapo, Zé Inocêncio... uns quinze. Até se deu 
um tiroteio terrível; mas o pessoal do Hermógenes e do 
Ricardão era demais numeroso... Dos bons, quem pôde, fugiram 
corretamente. Silvino Silva conseguiu fuga, com vinte e tantos 
companheiros...” 
Mas Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração, ele 
agarrou o Gavião-Cujo pelos braços: 
– “Hem, diá! Mas quem é que está pronto em armas, para 
rachar Ricardão e Hermógenes, e ajudar a gente na vingança 
agora, nas desafrontas? Se tem, e ond’é então que estão?!” 
– “Ah, sim, chefe. Os todos os outros: João Goanhá, Só 
Candelário, Clorindo Campelo.,. João Goanhá pára com 
porçanheira de homens, na Serra dos Quatis. Aí foi ele quem me 
mandou trazer este aviso... Só Candelário ainda está para o 
Norte, mas o grosso dos bandos dele se acha nos pertos da 
Lagoa-do-Boi, em juramento... Já foi portador para lá. Sendo 
que se despachou um positivo também para dar parte a Medeiro 
Vaz, nos Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei que o sertão pega 
em armas, mas Deus é grande!” 
– “Louvado. Ah, então: graças a Deus! Ao que, então, está 
bem...” – Titão Passos se cerrou. 
E estava. Era a outra guerra. A gente ficávamos aliviados. 
Aquilo dava um sutil enorme. 
– “Teremos de ir... Teremos de ir...” – falou Titão Passos, 
e todos responderam reluzentemente. Tínhamos de tocar, sem 
atraso, para a Serra dos Quatis, a um lugar dito o Amoipira, que 
é perto de Grão Mogol. Artes que o Gavião-Cujo ainda contava 
mais, as miúcias – parecia que tinha medo de esbarrar de contar. 
Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviam ajustado 
entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou Joca 
Ramiro de Só Candelário, com falsos propósitos, conduziu Joca 
Ramiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes, mais o 
pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelas costas, 
carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu sem 
sofrer. – “E enterraram o corpo?” – Diadorim perguntou, numa 
voz de mais dor, como saía ansiada. Que não sabia-o Gavião- 
Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado, conforme 
cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto empalidecesse; 
ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão 
Passos não queria ter as lágrimas nos olhos. – “Um homem de 
tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais 
cedo mais tarde, vivendo no meio de gente tão ruim...” – ele me 
disse, dizendo num modo que parecia ele não fosse também 
jagunço, como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava 
terminado, só restava a guerra. Mão do homem e suas armas. A 
gente ia com elas buscar doçura de vingança, como o rominhol 
no panelão de calda. Joca Ramiro morreu como o decreto de 
uma lei nova. 
A daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro, pela 
gente do Alaripe. – “Pois vamos, Riobaldo!” – Diadorim se pôs. 
Vi que ele fervia ali assim no pego do parado. Selamos os 
cavalos. Serra acima, fomos. Ao no galope, cada um engolia suas 
palavras. A mesmo estava o céu encoberto, e um mormaço. 
Mas, na descambada, Diadorim me reteve, me entregou á ponta 
do cabresto para segurar. – “De tudo nesta vida a gente esquece, 
Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra dele?” 
– me perguntou. Devo que retardei muito em responder, com 
cara de não compreensão. Porque Diadorim completou: – “... 
dele, a glória do finado. Do que se finou...” E dizia aquilo com 
uma misturação de carinho e raiva, tanto desespero que nunca 
vi. Desamontou, foi andando sem governar os passos, tapado 
pelas moitas e árvores. Eu restei ficando tomando conta do ca-
valo. Pensei que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas 
demorou tanto a volta, que eu resolvi tocar atrás, para o que 
havia ver, esporei e vim puxando o cavalo dele adestro. E aí o 
que vi foi Diadorim no chão, deitado debruços. Soluçava e 
mordia o capim do campo. A doideira. Me amargou, no cabo da 
língua. – “Diadorim!” – chamei. Ele, sem se aprumar, virou o 
rosto, apertou os olhos no choro. Falei, falei, meus consolos, e 
ele atendia, em querelenga, me pedindo que sozinho fosse, 
deixasse ele ali, até minha volta. – “Joca Ramiro era seu parente, 
Diadorim?” – eu indaguei, com muita cordura. – “Ah, era, 
sim...” – ele me respondeu, com uma voz de pouco corpo. – 
“Seu tio, será?” – Que era... – ele deu, em gesto. Entreguei a ele 
o cabresto do cavalo, e continuei ida. Em certa distância, para 
prevenir os alaripes, e evitar atraso, esbarrei e disparei tiros, para 
o ar, umas vezes. Cheguei lá, estavam todos reunidos, por meu 
feliz. E estava chovendo, de acordo com o mormaço. – “Trago 
notícia de grande morte!” – sem desapear eu declarei. Eles todos 
tiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei: – “Viva a 
fama do nosso Chefe Joca Ramiro... “ E, pela tristeza que 
estabeleceu minha voz, muito me entenderam. Ao que quase 
todos choraram. – “Mas, agora, temos de vingar a morte do 
falecido!” – eu ainda pronunciei. Se aprontaram num átimo, 
para comigo vir. – “Mano velho Tatarana, você sabe. Você tem 
sustância para ser um chefe, tem a bizarria...” – no caminho o 
Alarípe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era o que eu 
tinha menos vontade. 
Mas assim se deu que, no seguinte dia, no romper das 
barras, saímos tocando, Diadorim do meu lado, mudado triste, 
muito branco, os olhos pisados, a boca vencida. Deixamos para 
trás aquele lugar, que disse ao senhor, para mim tão célebre – a 
Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais. 
Redeando, rumamos, em tralha e torto, por aquele afora – 
a gente ia investir o sertão, os mares de calor. Os córregos 
estavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas 
embrejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam a cacunda 
daquelas serras. A terrível notícia tinha se espalhado assaz, em 
todas as partes o povo fazia questão de obsequiar à gente, e falavam 
muito bem do falecido. Mas nós passávamos, feito flecha, 
feito faca, feito fogo. Varamos todos esses distritos de gado. 
Assomando de dia por dentro de vilórios e arraiais, e ocupando 
a cheio todas as estradas, sem nenhum escondimento: a gente 
queria que todo o mundo visse a vingança! Alto do Amoipira, 
quando terminamos lá, os cavalos já afracavam. João Goanhá, 
em toda economizada estatura, foi ver a gente vindo e abriu seus 
bons braços. Ele estava com próprios trezentos guerreiros. E 
sempre outros chegavam. – “Meu irmão Titão Passos... Meu 
irmão Titão Passos...” – ele falou, crescente. – “E vocês todos, 
valentes cabras... Agora é que vai ser a grande briga!” Disse que 
com três dias se saía em armas. João Goanhá ia na vaca e no 
boi: não estava com por’oras. E Só Candelário, onde era que 
estava? Só Candelário, piorado doente, devia de estar um tempo 
desses nos Lençóis, para onde portador seguira, com pressa de 
chamado. Mesmo assim, João Goanhá desnecessitava de esperar 
por ele, para aos dois judas traidores dar batalha. No que 
achamos bom conselho. E outros vinham chegando, oferecendo 
peito de ajuda, com prestança em ponta. Veio até quem não se 
imaginou: como aquele Nhão Virassaia, com seus trinta e cinco 
cacundeiros – o que carregava nome de fama por todo o Rio 
VerdeGrande. E o velho Ludujo Filgueiras, montesclarense, com 
vinte e dois atiradores. E o grande fazendeiro coronel Digno de 
Abreu, que mandou, seus, trinta e tantos capangas, também, por 
Luís de Abreuzinho comandados, que era dele filho-natural. E o 
gado em pé que se provia, para se abater e se comer, chegava a 
ser uma boiada. Com sacas de farinha, surrão de sal, e açúcar 
preto e café – até em carro-de-bois os mantimentos de fubá e 
arroz e feijão entregados. Só em quantidades de munição era que 
a gente não produzia luxo, e Titão Passos se entristeceu de não 
poder ter trazido a nossa, na Guararavacã tão em vão esperada. 
Mas a lei de homem não é seus instrumentos. Saímos em guerra. 
Ãhã, do norte, da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha 
também o bastante da rapaziada dos baianos, debaixo do 
comando de Alípio Mota, cunhado de Só Candelário. A simples 
íamos cercar bonito os Judas, não tinham escape. Aindas que se 
escapassem para o poente, atravessassem o rio, ah, encontravam 
ferro e fogo: lá estava Medeiro Vaz – o rei dos Gerais! 
Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das 
desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, hora de paga e 
perdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo se diz. 
Tudo o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não 
devia de ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não 
estávamos forte em frente, com a coragem esporeada? Estávamos. 
Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o 
morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, do pé-depato, 
o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que não existe, 
que não, que não, é o que minha alma soletra. E da existência 
desse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a 
barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia! Ah, só Ela 
me vale; mas vale por um mar sem fim... Sertão. Se a Santa puser 
em mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao 
senhor, e digo: paz. Mas, naquele tempo, eu não sabia. Como é 
que podia saber? E foram esses monstros, o sobredito. Ele vem 
no maior e no menor, se diz o grão-tinhoso e o cão-miúdo. Não 
é, mas finge de ser. E esse trabalha sem escrúpulo nenhum, por 
causa que só tem um curto prazo. Quando protege, vem, protege 
com sua pessoa. Montado, mole, nas costas do Hermógenes, 
indicando todo rumo. Do tamanho dum bago de aí-vim, dentro 
do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinho no lume 
dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas. O 
Hermógenes, que – por valente e valentão – para demais até ao 
fim deste mundo e do juízofinal se danara, oco de alma. Contra 
ele a gente ia. Contra o demo se podia? Quem a quem? Milagres 
tristes desses também se dão. Como eles conseguiram fugir das 
unhas da gente, se escaparam – o Ricardão e o Hermógenes – os 
Judas. Pois eles escapuliram: passaram perto, légua, quarto-delégua, 
com toda sua jagunçama, e não vimos, não ouvimos, não 
soubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e impedir. 
Avançaram, calados, escorregando pelos matos, ganhando o mais 
poente, para o São Francisco. Atravessaram por nós, sem a gente 
perceber, como a noite atravessa o dia, da manhã à tarde, seu 
pretume dela escondido no brancor do dia, se presume. Quando 
pudemos saber, a distância deles já era impossível. Nós 
estávamos pegando o ar. Duro de desanimável, hem? E pois 
demore o senhor para o pior: o que veio em sobre!: os soldados 
do Governo. Os soldados, soldadesca, tantas tropas. Surgiram de 
todos os lados, de supetão, e agatanhavam, naquela sanha, é ver 
cachorrada caçante. Soldados do Tenente Plínio – companhia de 
guerra. Tenente Reis Leme, outra. E veio depois, com muitos 
mais outros, um capitão Carvalhais, maior da marca, esse bebia 
café em cuité e cuspia pimenta com pólvora. Sofremos, rolamos 
por aí aqui, se rolou. vida é vez de injustiças assim, quando o 
demo leva o estandarte. Pois – aquela soldadama viera para o 
Norte era por vingar Zé Bebelo, e Zé Bebelo já andava por 
longes desterrado, e nisso eles se viravam contra a gente, que 
éramos de Joca Ramiro, que tinha livrado a vida de Zé Bebelo 
das facas do Hermógenes e Ricardão; e agora, por sua ação, o 
que eles estavam era ajudando indireto àqueles sebaceiros. Mas, 
quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em 
máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras 
para o pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só 
geringonciável na capital do Estado? 
De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado 
de ouvir narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem. 
Combatemos o quanto mais pudemos – está aí. Consoante 
começou, no Curral de Vacas, perto do Morro do Cocuruto, 
onde nos pegaram num relaxo. Fugimos, depois de grande fogo. 
Fogo demos daí no Cutica, na Chapada Simão Guedes: mas 
rodaram com a gente, de retruz. Serra da Saudade: a gente se 
desarranjou, fugimos, bem. Ah, e: Córrego Estrelinhas, Córrego 
da Malhada Grande, Ribeirão Traçadal – tudo foram as feiezas. 
Recito frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mim ficaram em 
assento de sustos e sofrimento. Nunca me queixei. Sofrimento 
passado é glória, é sal em cinza. De tanta maneira Diadorim 
assistia comigo, como um gravatá se fechou. Semeei minha presença 
dele, o que da vida é bom eu dele entendia. Tomando o 
tempo da gente, os soldados remexiam este mundo todo. Milho 
crescia em roças, sabiá deu cria, gameleira pingou frutinhas, o 
pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, 
pitanga e caju nos campos. Ato que voltaram as tempestades, 
mas entre aquelas noites de estrelaria se encostando. Daí, 
depois, o vento principiou a entortar rumo, mais forte – porque 
o tempo todo das águas estava no se acabar. Tenente Reis Leme 
nos escaramuçando: queria correr com a gente a pano de sabre. 
Matou-se montanha de bons soldados. Estávamos em terras que 
entestam com a Bahia. Em Bahia entramos e saímos, cinco 
vezes, sem render as armas. Isto que digo, sei de cor: brigar no 
espinho da caatinga pobre, onde o cãcã canta. Chão que queima, 
branco! E aqueles cristais, pedra-cristal quase de sangue... 
Chegamos até no cabo do mundo. 
Quadrante o que havia, me esconjuro. Parecia que a gente 
ia ter de passar o resto da vida guerreando com os praças? Mas 
nosso constar era outro, com sangue de urgência – aquela luta de 
morte contra os Judas – e que era briga nossa particular. Não se 
tendo recurso competente. Ah, Diadorim mascava. Para ódio e 
amor que dói, amanhã não é consolo. Eu mesmeava. Mas, dando 
um dia, a gente teve certas notícias: os do Hermógenes estando 
senhores arranchados, conforme retouçavam, da banda de lá do 
Rio do Chico: nas vertentes da beira da mão direita do 
Carinhanha, no Chapadão de Antônio Pereira. Questionou-se 
nisso. Se pensou e falou em tudo por fazer e não fazer. Resultado 
foi este: que o principal era a gente mandar reforço, para Medeiro 
Vaz, uns cinqüenta ou cem homens, repartidos em miúdos 
grupos, caçando jeito de safança por entre os lugares perigáveis. 
Enquanto tanto, João Goanhá, Alípio Mota e Titão Passos, cada 
qual de lado seu, deviam de ir desmanchar os rastos na caatinga, 
e depois se esconderem, por uns tempos, em fazendas de donos 
amigos, até que a soldadesca se espairecesse. E era bom e era 
justo. Era certo. Deus em armas nos guardava. 
De mim, vim, com Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João 
Vaqueiro, e o Fafafa. Era para o outro lado, era para os meus 
Gerais, eu vinha alegre contente. E saímos, com o seguinte risco: 
o Imbiruçu, a Serra do Pau-d’Arco, o Mingu, a Lagoa dos 
Marruás, o Dôminus-Vobíscum, o Cruzeiro-das-Embaúbas, o 
Detrás-das-Duas-Serras. O Brejo dos Mártires, a Cachoeirinha 
Roxa, o Mocó, a Fazenda Riacho-Abaixo, a Santa Polônia, a 
Lagoa da Jabuticaba. E daí, por uns atalhos: o Córrego 
Assombrado, o Sassapo, o Poço d’Anjo, o Barreiro do Muquém. 
Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra: faceirei. 
Severgonhei. Estive com o melhor de mulheres. Na Malhada, 
comprei roupas. O vau do mundo é a alegria! Mas Diadorim não 
se fornecia com mulher nenhuma, sempre sério, só se em 
sonhos. Dele eu ainda mais gostava. E então se deu que 
tínhamos esbarrado em frente da Lagoa Clara. Já era o do Chico 
– o poder dele – largas águas, seu destino. A ver, o porto-debalsa, 
que distava pouco. Travessia, ali, podia ser perigosa, com 
tantos soldados vizinhantes. A gente se apartar? Ah, mas o que 
bastava o balseiro se chamar: – “Hô, passador! Hô, passador!...” 
– ele viesse. Assim, para uma invenção, que se teve. O balseiro só 
avistando João Vaqueiro e o Fafafa – estes ele então podia 
passar, com cinco dos cavalos, falavam que era para uns 
caçadores. Da outra banda, João Vaqueiro e o Fafafa fossem 
levando os cavalos para um lugar para cima da barra, no Urucuia, 
chamado o Olho-d’Agua-das-Outras. Lá a gente se encontrava. 
Somente ficados com um cavalinho só, Alaripe e eu, 
Diadorim e Jesualdo, andamos beira-rio, no vagarosamente. A 
gente esperava o que acontecesse. Ali mais adiante, era um portode-
lenha. – “Você tem receio, Riobaldo?” – Diadorim me 
perguntou. Eu?! Com ele em qualquer parte eu embarcava, até na 
prancha de Pirapora! – “Vau do mundo é a coragem...” – eu 
disse. E, com os rifles escorados, acenamos para uma grande 
barca – aquela, a cara-de-pau que tinha no bico da frente era uma 
cabeça de touro, boa-sorte nos dava. O barqueiro tocou um 
berro no buzo, encostaram. A gente os quatro, com o cavalo, era 
nada – as arrobazinhas. E nós entramos, depois que o patrão nos 
saudou, em nome de Nosso Senhor CristoJesus, e disse: – “Eu cá 
sou amigo de todos, segundo a minha condição...” E o Alaripe 
aceitou dele um gole de cachaça, aceitamos. Jesualdo disse, repostando: 
– “Amigo de todos? Rio-abaixo, na canoa, quem 
governa é o remador!” Bem que rio-acima é que era, mas com 
remeiros muito bons esforçados. Aí constante, o velejo, vento 
em pano – nem remeiro com o varejão não carecia de fazer 
talento. Pediram notícias do sertão. Essa gente estava tão 
devolvida de tudo, que eu não pude adivinhar a honestidade 
deles. O sertão nunca dá notícia. Eles serviram à gente farta 
jacuba. – “Por onde os senhores vieram?” – o patrão indagou. – 
“Viemos da Serra Rompe-Dia...” – respondemos. Mentiras 
d’água. Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de São Felipe. O 
barqueiro não acreditou, deu o zé de ombros. Mas levou a gente 
travessia fácil, frenteando a boca do Urucuia. Ah, o meu Urucuia, 
as águas dele são claras certas. E ainda por ele entramos, subindo 
légua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Rios bonitos 
são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em 
caminho para se encontrar com o sol. E descemos num pojo, 
num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor 
– roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-desangue; 
o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi 
meus Gerais! 
Aquilo nem era só mata, era até florestas! Montamos 
direito, no Olhod’Agua-das-Outras, andamos, e demos com a 
primeira vereda – dividindo as chapadas –: o flaflo de vento 
agarrado nos buritis, franzido no gradeai de suas folhas altas; e, 
sassafrazal – como o da alfazema, um cheiro que refresca; e 
aguadas que molham sempre. Vento que vem de toda parte. 
Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade. 
Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre 
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma 
verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém 
não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem 
ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? 
Lengalenga. Fomos, fomos. 
Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas 
marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê 
brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando 
somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho 
caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos, por seu 
resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia – 
todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E que, com 
nosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de Deus 
nas serras dos Gerais, viemos subindo até chegar de repente na 
Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda. 
Que’s borboletas! E era em maio, pousamos lá dois dias, flor de 
tudo, como sutil suave, no conhecimento meu com Otacília. O 
senhor me ouviu. Em como Otacília e eu ficamos gostando um 
do outro, conversamos, combinados no noivável, e na 
sobremanhã eu me despedi, ela com sua cabecinha de gata, alva 
no topo da alpendrada, me dando a luz de seus olhos; e de lá me 
fui, com Diadorim e os outros. E de como viemos, em cata do 
grosso do bando de Medeiro Vaz, que dali a quinze léguas 
recruzava, da Ratragagem para a Vereda-Funda, e com eles nos 
ajuntamos, economizando rumo, num lugar chamado o Bom- 
Buriti. Me alembro, meu é. Ver belo: o céu poente de sol, de 
tardinha, a roséia daquela cor. E lá é cimo alto: pintassilgo gosta 
daquelas friagens. Cantam que sim. Na Santa Catarina. Revejo. 
Flores pelo vento desfeitas. Quando rezo, penso nisso tudo. Em 
nome da Santíssima Trindade. 
O que o seguinte foi este: o encontro da gente com 
Medeiro Vaz, no Bom-Buriti, num ressaco, conforme já disse, ele 
no meio de seus fortes homens, exatos, naquela bocaina de 
campo. Medeiro Vaz, retrata], barbaça, com grande chapéu 
rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as 
velhices, sem nem velho ser. Cujo eu me disse: – “É bom homem...” 
E ele beijou a testa de Diadorim, e Diadorim beijou 
aquela mão. A um assim, a gente podia pedir a benção, se prezar. 
Medeiro Vaz tomava rapé. Medeiro Vaz, mandando passar as 
ordens. E tinha quartel-mestre. Subindo em esperança, de lá 
saímos, para chão e sertão. Sertão bravo: as araras. O só que 
Medeiro Vaz comandou foi isto: – “Aleluia!” Diadorim tinha 
comprado um grande lenço preto: que era para ter luto 
manejável, funo guardado em sobre seu coração. Chapadão de 
duro. Daí, passamos um rio vadoso – rio de beira baixinha, só 
buriti ali, os buritis calados. E a flor de caraíba urucuiã – roxo 
astrazado, um roxo que sobe no céu. Naquele trecho, também 
me lembro, Diadorim se virou para mim – com um ar quase de 
meninozinho, em suas miúdas feições. – “Riobaldo, eu estou 
feliz!...” – ele me disse. Dei um sim completo. E foi assim que a 
gente principiou a tristonha história de tantas caminhadas e vagos 
combates, e sofrimentos, que já relatei ao senhor, se não me 
engano até ao ponto em que Zé Bebelo voltou, com cinco 
homens, descendo o Rio Paracatu numa balsa de talos de buriti, e 
herdou brioso comando; e o que debaixo de Zé Bebelo fomos 
fazendo, bimbando vitórias, acho que eu disse até um fogo que 
demos, bem dado e bem ganho, na Fazenda São Serafim. Mas, 
isso, o senhor então já sabe. 
Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o 
senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eu podia 
pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o 
que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, 
remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada à-toa: 
só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. 
Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. 
O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um 
bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias: repensando. 
Assentado nesta boa cadeira grandalhona de espreguiçar, que é 
das de Carinhanha. Tenho saquinho de relíquias. Sou um 
homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente 
percebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas águas, a lume de 
lua... 
Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as 
igrejas, antiqüíssimo – para morarem famílias de gente. Serve 
meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter 
remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe real. 
Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que 
chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando 
foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia? 
Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho. 
Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? 
Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini o alvará 
do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha padroeira 
é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-
caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios 
– bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da 
noite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem 
parar. Saí, vim, destes meus Gerais; voltei com Diadorim. Não 
voltei? Travessias... Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo 
esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com 
lua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao buriti; e o que 
ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se 
aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem 
sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que 
todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez? 
Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do 
Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, 
entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São 
Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigri, minha 
mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse 
de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe? 
Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda. 
Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra 
feio; conforme já comparei, uma vez: touro preto todo urrando 
no meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e 
voltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás de raio 
veloz como o pensamento da idéia – mas a água e o chão não 
queriam saber dele. Compadre meu Quelemém outrotanto é 
homem sem parentes, provindo de distante terra – da Serra do 
Urubu do Indaiá. Assim era Joca Ramiro, tão diverso e reinante, 
que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já 
estivesse constando de falecido. Só Candelário? Só Candelário 
se desesperou por forma. Meu coração é que entende, ajuda 
minha idéia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou que 
se desfez, enterrado lá no meio dos carnaubais, em chão 
arenoso salgado. Só Candelário não era, de certo modo, parente 
do compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me veio, 
de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei 
mal? E em Otacília eu sempre muito pensei; tanto que eu via as 
baronesas amarasmeando no rio em vidro – jericó, e os lírios 
todos, os lírios-do-brejo – copos-de-leite, lágrimas-demoça, sãojosés. 
Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no camarim 
do Santíssimo. A Nhorinhá – nas Aroeirinhas – filha de 
Ana Duzuza. Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? De dentro 
das águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador. Nonada! A 
mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela. E 
ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A 
mocinha Miosótis? Não. A Rosa’uarda. Me alembrei dela; todas 
as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são 
passados vão indo em fila para o sertão. Voltam, como os 
cavalos: os cavaleiros na madrugada – como os cavalos se 
arraçoam. O senhor se alembra da canção de Siruiz? Ao que 
aquelas troas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista e vai 
guardando para trás. Diadorim vivia só um sentimento de cada 
vez. Mistério que a vida me emprestou: tonteei de alturas. Antes, 
eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas – 
percebi para sempre. O manuelzinho-da-troa. Tudo isso posso 
vender? Se vendo minha alma, estou vendendo também os 
outros. Os cavalos relincham sem causa; os homens sabem 
alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: 
quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? Mas aquele 
menino, o Valtei, na hora em que o pai e a mãe judiavam dele 
por lei, ele pedia socorro aos estranhos. Até o Jazevedão, 
estivesse ali, vinha com brutalidade de socorro, capaz. Todos 
estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e 
as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, 
muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar 
a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o 
sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver 
perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a 
gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um 
descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era 
Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e 
Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos 
remansos do Urucuia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre 
longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra 
dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dançada – só o 
debulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo – 
conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. 
Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por 
uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, 
a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que 
já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num 
cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua... 
Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas 
coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O 
que eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que 
eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto? 
Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de 
ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um 
morrer em vez do outro – e o de um viver em vez do outro, 
então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus 
mesmo – posso? – então não desmancha na rãs tudo o que em 
antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem 
que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa 
tem o homem? Às vezes não aceito nem a explicação do 
Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta. 
Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É 
preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente 
com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa – 
uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que 
esse faça. Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa. 
Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão 
bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente 
saber tudo, formar alma, na.consciência; para penar, não se 
carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porquê. Digo ao 
senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas; 
também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente 
sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? 
Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o “Que-Diga” 
existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, 
em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias 
onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que 
Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quero 
dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo. 
Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir. 
Vemos voltemos. O Buriti-Pintado, o Oi-Mãe, o rio 
Soninho, a Fazenda São Serafim; com outros, mal esquecidos, 
seja. Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios 
tantos, ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo de 
chuva e mais chuva, a gente se fervia – debaixo desses 
extraordinários de Zé Bebelo – a gente lambia guerra. Zé Bebelo 
Vaz Ramiro-viva o nome! A gente vinha sobre o rastro deles, dos 
Hermógenes – por matar, por acabar com eles, por perseguir. No 
borrusco, o Hermógenes corria, longes, de nós, sempre. Às artes 
que fugiam. Mas eu com aquilo já tinha inteirado costume. Era 
ruim e era bom. 
Aí quando muito vento abriu o céu, e o tempo deu 
melhora, a gente estava na erva alta, no quase liso de altas terras. 
Se ia, aos vintes e trintas, com Zé Bebelo de bota-fogo. Assim 
expresso, chapadão voante. O chapadão é sozinho – a largueza. 
O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal. 
As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A 
diversos que passavam abandoados de araras – araral – conversantes. 
Aviavam vir os periquitos, cota o canto-clim. Ali chovia? 
Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz 
lama: a chuva inteira se soverse em minuto terra a fundo, feito 
um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse 
rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, 
chapadão,chapadão. 
De dia, é um horror de quente, mas para a noitinha 
refresca, e de madrugada se escorropicha o frio, o senhor isto 
sabe. Para extraviar as mutucas, a gente queimava folhas de 
arapavaca. Aquilo bonito, quando tição aceso estala seu fim em 
faíscas – e labareda dalalala. Alegria minha era Diadorim. 
Soprávamos o fogo, juntos, ajoelhados um frenteante o ao outro. 
A fumaça vinha, engasgava e enlagrimava. A gente ria. Assim que 
fevereiro é o mês mindinho: mas é quando todos os cocos do 
buritizal maduram, e no céu, quando estia, a gente acha reunidas 
as todas estrelas do ano todo. Mesmas vezes eu ria. Homem 
dorme com a cabeça para trás, dois dedos no queixo. Era o 
Pitolô. Um Pitolô, sei lá, cabra destemido, com crimes nos 
maniçobais perto para cima de Januária; mas era nascido no 
barranco. No Carinhanha, rio quase preto, muito imponente, 
comprido e povooso. Ademais que ele contava casos de muito 
amor; Diadorim às vezes gostava. Mas Diadorim sabia era a 
guerra. Eu, no gozo de minha idéia, era que o amor virava 
senvergonhagem.Turvei, tanto. – “Andorinha que vem e que vai, 
quer é ir bem pousar nas duas torres da matriz de Carinhanha...” 
– o Pitolô falava. Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de 
passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que 
era um escondido. E em Otacília, eu não pensava? No escasso, 
pensei. Nela, para ser minha mulher, aqueles usos-frutos. Um dia, 
eu voltasse para a Santa Catarina, com ela passeava, no laranjal de 
lá. Otacília, mel do alecrim. Se ela por mim rezava? Rezava. Hoje 
sei. E era nessas boas horas que eu virava para a banda da direita, 
por dormir meu sensato sono por cima de estados escuros. 
Mas levei minha sina. Mundo, o em que se estava, não era 
para gente: era um espaço para os de meia-razão. Para ouvir 
gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar 
as grandes emas e os veados correndo, entrando e saindo até dos 
velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso, 
quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para 
aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por 
aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e 
aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a 
um tiro de pistola – isto resumo mal. Ou o zabelê choco, 
chamando seus pintos, para esgaravatar terra e com eles os 
bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando. 
Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas. No mais, nem mortalma. 
Dias inteiros, nada, tudo o nada – nem caça, nem pássaro, nem 
codorniz. O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num 
rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso 
diferente, sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os 
olhos, toda firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da 
aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos. A alma deles. Mas Zé 
Bebelo, andante, estava esperdiçando o consistir. E que o 
Hermógenes só fizesse por se fugir toda a vida, isso ele não 
entendia. – “Vai cavacando buraco, vai, que tu vê!” – oco da 
paciência, ele resmungou. Ainda que, nesses dias, ele menos 
falasse; ou, quando falava, eu não queria ouvir. Digo que, no cível 
trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma 
conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que 
estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em 
doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na 
beira dos acontecimentos – em decisões de necessidade forte e 
vida virada – horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente 
de prosa já me aborrecia. 
A monte andante, ao adiável, aí assim e assaz eu airei meu 
pensamento. Amor eu pensasse. Amormente. Otacília era, a 
bem-dizer, minha noiva? Mas eu carecia era de mulher 
ministrada, da vaca e do leite. De Diadorim eu devia de 
conservar um nojo. De mim, ou dele? As prisões que estão refincadas 
no vago, na gente. Mas eu aos poucos macio pensava, 
desses acordados em sonho: e via, o reparado – como ele 
principiava a rir, quente, nos olhos, antes de expor o riso daquela 
boca; como ele falava meu nome com um agrado sincero; como 
ele segurava a rédea e o rifle, naquelas mãos tão finas, 
brancamente. Esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo 
tão grande, repondo a gente pequenino. Como se eu estivesse 
calçando par de chinelo muito flote; e eu queria um sinapismo, 
botim reiúno, duro, redomão. 
Agora – e os outros? – o senhor dirá. Ah, meu senhor, 
homens guerreiros também têm suas francas horas, homem 
sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o 
Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas 
moitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. 
– “É essa natureza da gente...” – ele disse; eu não tinha 
perguntado explicação. O que eu queria era um divertimento de 
alívio. Ali, com a gente, nenhum cantava, ninguém não tinha 
viola nem nenhum instrumento. No peso ruim do meu corpo, eu 
ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz? 
Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no nãoacontecido 
nos passados. O senhor me entende? 
De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber 
os sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, 
por quê? Eu estava calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem 
tremer. Porque eu desconfiava mesmo de mim, não queria existir 
em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que 
tinha era uma esperança? Mesmo parava tempos no pensar numa 
mulher achada: Nhorinhá, a minha moça Rosa’uarda, aquela 
mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim tonto sonho 
se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito 
neblina noruega movente no frio de agosto. 
A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não 
dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força 
esperdiçada; de tudo me prostrei. 
Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu 
corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno 
novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor. 
Anda que levantei, a pé caminhei em redor do arrancho, antes do 
romper das horas d’alva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, 
pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se madruga com céu 
esverdeado. Zé Bebelo podia pautear explicação de tudo: de 
como a gente ia alcançar os Hermógenes e dar neles grave 
derrota; podia referir tudo que fosse de bem se guerrear e reger 
essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é que aquilo 
me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da vereda. 
Consegui com o frio, esperei a escuridão se afastar. Mas, quando 
o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti – 
tetéia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para 
ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci 
– aquele Siruiz – eu estava pensando. Versos ditos que foram 
estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que 
sejam sem razoável valor: 
Trouxe tanto este dinheiro 
o quanto, no meu surrão, 
p’ra comprar o fim do mundo 
no meio do Chapadão. 
Urucuia – rio bravo 
cantando à minha feição: 
é o dizer das claras águas 
que turvam na perdição. 
Vida é sorte perigosa 
passada na obrigação: 
toda noite é rio-abaixo, 
todo dia é escuridão... 
Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não 
valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque 
eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem 
de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso 
dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na 
estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; 
pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o 
que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha 
tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, 
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. 
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar 
alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no 
meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, 
de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. 
Ao clarear do dia. 
Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, 
em beira do café. Assim, também, por que se agüentava aquilo, 
era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação 
sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive 
questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me 
ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava 
folga nem cansaço; o Reinaldo-que era Diadorim: sabendo 
deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de 
ouro, e de carne e osso, e de minha melhor estimação; Marcelino 
Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de 
muito respeito; João Concliz, que com o Sesfredo porfiava, 
assoviando imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se 
esquecia de nada; o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num 
dia suas quinze léguas, cavalos que haja; Joaquim Beiju, 
rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente; o Tipote, 
que achava os lugares d’água, feito boi geralista ou buriti em 
broto de semente; o Suzarte, outro rastreador, feito cão 
cachorro ensinado, boa pessoa; o Queque, que sempre tinha saudade 
de sua rocinha antiga, desejo dele era tornar a ter um 
pedacinho de terra plantadeira; o Marimbondo, faquista, perigoso 
nos repentes quando bebia um tanto de mais; o Acauã, um roxo 
esquipático, só de se olhar para ele se via o vulto da guerra; o 
Mão-de-Lixa, porreteiro, nunca largava um bom cacete, que nas 
mãos dele era a pior arma; Freitas Macho, grão-mogolense, 
contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse, e assim 
descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse verdade; o 
Conceiço, guardava numa sacola todo retrato de mulher que ia 
achando, até recortado de folhinha ou de jornal; José Gervásio, 
caçador muito bom; José ]itirana, filho dum lugar que se 
chamava a Capelinha-do-Chumbo: esse sempre dizia que eu era 
muito parecido com um tio dele, Timóteo chamado; o Preto 
Mangaba, da Cachoeira-do-Choro, dizia-se que entendia de toda 
mandraca; João Vaqueiro, amigo em tanto, o senhor já sabe; o 
Coscorão, que tinha sido carreiro de muito ofício, mas constante 
que era canhoto; o jacaré, cozinheiro nosso; Cavalcânti, 
competente sujeito, só que muito soberbose ofendia com 
qualquer brincadeira ou palavra; o Feliciano, caolho; o Marruaz, 
homem desmarcado de forçoso: capaz de segurar as duas pernas 
dum poldro; Guima, que ganhava em todo jogo de baralho, era 
do sertão do Abaeté; Jiribibe, quase menino, filho de todos no 
afetual paternal; o Moçambicão – um negro enorme, pai e mãe 
dele tinham sido escravos nas lavras; Jesualdo, rapaz cordato – a 
ele fiquei devendo, sem me lembrar de pagar, quantia de dezoito 
mil-réis; o Jequitinhão, antigo capataz arrieiro, que só se dizia por 
ditados; o Nélson, que me pedia para escrever carta, para ele 
mandar para a mãe, em não sei onde moradora; Dimas Doido, 
que doido mesmo não era, só valente e esquentado; o Sidurino, 
tudo o que ele falava divertia a gente; Pacamã-de-Presas, que 
queria qualquer dia ir cumprir promessa, de acender velas e 
ajoelhar adiante, no São Bom Jesus da Lapa; Rasga-em-Baixo, 
caolho também, com movimentos desencontrados, dizia que 
nunca tinha conhecido mãe nem pai; o Fafafa, sempre cheirando 
a suor de cavalo, se deitava no chão e o cavalo vinha cheirar a 
cara dele; Jõe Bexiguento, sobrenomeado “Alparcatas”, deste qual 
o senhor, recital, já sabe; um José Quitério: comia de tudo, até 
calango, gafanhoto, cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um, 
José Félix; o Liberato; o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo 
tinha trazido: aquele Pantaleão, um Salústio João, os outros. E – 
que ia me esquecendo – Raimundo Lê, puçanguara, entendido de 
curar qualquer doença, e Quim Queiroz, que da munição dava 
conta, e o Justino, ferrador e alveitar. A mais, que nos dedos 
conto: o Pitolô, José Micuim, Zé Onça, Zé Paquera, Pedro Pintado, 
Pedro Afonso, Zé Vital, João Bugre, Pereirão, o Jalapa, Zé Beiçudo, 
Nestor. E Diodolfo, o Duzentos, João Vereda, Felisberto, o Testa-em- 
Pé, Remigildo, o Jósio, Domingos Trançado, Leocádio, Pau-na-Cobra, 
Simião, Zé Geralista, o Trigoso, o Cajueiro, Nhô Faísca, o Araruta, 
Durval Foguista, Chico Vosso, Acrísio e o Tuscaninho Caramé. 
Amostro, para o senhor ver que eu me alembro. Afora algum de 
que eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo 
tranqüilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E 
bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta terra. 
A verdade que com Diadorim eu ia, ambos e todos. Além 
de que Zé Bebelo comandava. – “Ao que vamos, vamos, meu 
filho, Professor: arrumar esses bodes na barranca do rio, e impor 
ao Hermógenes o combate...” – Zé Bebelo preluzia, comedindo 
pompa com sua grande cabeça. Assim de loguinho não aprovei, 
então ele imaginou que eu estava descrendo. – “Agora coage tua 
cisma, que eu estou senhor dos meus projetos. Tudo já pensei e 
repensei, guardo dentro daqui o resumo bem traçado!” – e ele 
pontoava com dedo na testa. Acreditar eu acreditasse, não 
duvidei. O que eu podia não saber era se eu mesmo estava em 
ocasiões de boa-sorte. 
A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, a 
gente tinha topado com turma de inimigos, retornados para lá 
por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz, 
na carne do braço, perdi muito sangue. Raimundo Lê banhou 
com casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem, 
com pano duma camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele. 
Atual, todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo vinha 
a ser até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me 
doía inteiro e inchava, sei que a inchação me cansasse muito, 
sempre eu queria esbarrar pra água beber. – “Se eu tiver de atirar, 
então como é que faço? Não posso...” – era outro meu receio. 
Admirei, porque o José Félix também tinha tido ferimento, na 
coxa e na perna, mas a natureza dele era limpa, o ofendido secava 
por si, nem parecendo ser. Assim a primeira vez que me sucedia 
um a-mal, isso me perturbasse. O que me sofria até nas margens 
do peito, e nos dedos da mão, não me concedendo movimentos. 
Muito temi por meu corpo. “Ah, minha Otacília” – eu gemi em 
mim. – “Pode que nunca mais você me veja, e então nem viúva 
minha você não vai ser...” Uns recomendavam arnica-do-campo, 
outros aconselhavam emplastro de bálsamo, com isso rente se 
sarava. Aí Raimundo Lê garantiu cura com erva-boa. Mas onde 
era que erva-boa se ia achar? 
À Fazenda dos Tucanos chegamos, lá esbarramos – é na 
beira da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxu. Visitamos o 
fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico 
longe não se estava. Assim então por que era que não se avançar 
logo, às duras marchas, para atacar? – “Sei de mim, sei...” – Zé 
Bebelo menos disse, sem explicação. Desconheci. Cacei um catre, 
cama-de-vento, num quarto meio escuro; com coisa nenhuma 
não me importei. – “Retém as forças, Riobaldo. Vou campear o 
remédio, nesses matos...” – Diadorim falou. A gente nos 
Tucanos ia falhar dois dias, ali ficamos comendo palmito e 
secando em sol a carne de dois bois. 
No primeiro dia, de tardinha, apareceu um boiadeiro, que 
com seus camaradas viajando. Vinham de Campo-Capão- 
Redondo, em caminhada para Morrinhos. Por que tinham 
riscado aquela grande volta? – “O senhor dá paz à gente, Chefe?” 
– o boiadeiro perguntou. – “Dou paz, damos, amigos...” – Zé 
Bebelo respondeu. A quieto, o boiadeiro então achou que devia 
de as novidades relatar. Que se estava em meio de perigos. Sim. 
Os soldados! – “Os que soldados, esses, mano velho?” 
Soldadesca pronta, do Governo, mais de uns cinqüenta. Assim 
onde era que estavam? – “Ao que estão em São Francisco e em 
Vila Risonha, e mais outros deles vão vindo chegando, Chefe; é o 
que eu ouvi dizer...” Zé Bebelo, escutando, redondamente. Só 
quis mais saber. Se isso, se aquilo. Se o boiadeiro sabia o nome 
do Promotor de Vila Risonha, e do juiz de Direito, do Delegado, 
do Coletor, do Vigário. O do Oficial comandante da tropa, o 
boiadeiro não acertava dizer. Aquele boiadeiro era homem sério, 
com palavra merecida e vontade de estar bem com todos. Tinha 
uma garrafa de vinho depurativo na bagagem, me presenteou 
com um gole, me fez bem. Pousou lá, no outro dia se foram, 
muito cedo. 
Nesse entremear, eu senti meu braço melhor, e estive mais 
disposto. Andei andando, vi aquela fazenda. Essa era enorme – 
o corredor de muitos grandes passos. Tinha as senzalas, na raia 
do pátio de dentro, e, na do de fora, em redor, o engenho, a 
casa-dos-arreios, muitas moradas de agregados e os depósitos; 
esse pátio de fora sendo largo, lajeado, e com um cruzeiro bem 
no meio. Mas o capim crescia regular, enfeite de abandono. Não 
de todo. Pois tinham desamparado um gato, ali esquecido, o 
qual veio para perto do jacaré cozinheiro, suplicar comida. Até 
por dentro do eirado, mansejavam uns bois e vacas, gado 
reboleiro. Aí João Vaqueiro viu um berrante bom, pendurado na 
parede da sala-grande; pegou nele, chegou na varanda, e tocou: 
as reses entendiam, uma ou outra respondendo, e entraram no 
curral, para a beira dos cochos, na esperança de sal. – “Não faz 
mês que o povo daqui aqui ainda estava...” – João Vaqueiro 
declarou. E era verdade, com efeito, pois na despensa muita 
coisa se encontrando aproveitável. Nos Tucanos, valia a pena. 
Os dois dias ficaram três, que tão depressa passaram. 
Madrugada, no em que se ia partir dali, eu acordei ainda 
com o escuro, no amiudar. Só assim acordei, por um rumor, seria 
o Simião, que estava dormindo no mesmo cômodo e tacteando 
se levantava. Mas me chamou. – “A gente vai pegar a cavalhada. 
Vamos?” – ele disse. Não gostei. – “Estou enfermo. Então vou?! 
Quem é que rala a minha mandioca?” – repontei, áspero. Virei 
para o canto; assim eu estava apreciando aquele catre de couro. 
O Simião decerto ia, mais o Fafafa e Doristino, estavam bons 
para o orvalho dos pastos. Diadorim, que dormia num colchão, 
encostado na outra banda, já tinha se levantado antes e 
desaparecido do quarto. Ainda persisti numa madorna. Aquela 
moradia hospedava tanto – assim sem donos – só para nós. 
Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes 
grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, 
o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo 
alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos. 
Pensei bobagens. Até que escutei assoviação e gritos, tropear de 
cavalaria. “Ah, os cavalos na madrugada, os cavalos!...” – de 
repente me lembrei, antiqüíssimo, aquilo eu carecia de rever. 
Afoito, corri, compareci numa janela – era o dia clareando, as 
barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. Os cavalos 
enchiam o curralão, prazentes. Respirar é que era bom, tomar 
todos os cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares. E 
deram um tiro. 
Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que eu soube. 
Sempre sei quando um tiro é tiro – isto é – quando outros vão 
ser. Deram muitos tiros. Apertei minha correia na cintura. 
Apertei minha correia na cintura, o seguinte emendando: que 
nem sei como foi. Antes de saber o que foi, me fiz nas minhas 
armas. O que eu tinha era fome. O que eu tinha era fome, e já 
estava embalado, aprontado. 
Às tantas o senhor assistisse àquilo: uma confusão sem 
confusão. Saí da janela, um homem esbarrou em mim, em 
carreira, outros bramaram. Outros? Só Zé Bebelo – as ordens, de 
sobrevoz. Aonde, o quê? Todos eram mais ligeiros do que eu? 
Mas ouvi: – “... Mataram o Simião...” Simião? Perguntei: – “E o 
Doristino?” – “Ãã? Homem, não sei...” – alguém me 
respondendo. – “Mataram o Simião e o Aduvaldo...” E eu ralhei: 
– “Basta!” Mas, sobre o instante, virei: – “Ah, e o Fafafa?” O que 
ouvi: – “Fafafa, não. Fafafa está é matando!...” Assim era, real, 
verdadeiramente de repente, caído como chuva: o rasgo de 
guerra, inimigos terríveis investindo. – “São eles, Riobaldo, os 
Hermógenes!” – Diadorim aparecido ali, em minha frente, isto 
falou. Atiraram um horror, duma vez, tiros e tiros que estavam 
contra nós desfechando. Atiravam nas construções da casa. Diadorim 
sacripante se riu, encolheu um ombro só. Para ele olhei, o 
tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu. 
Respirei os pesos. “Agora, agora, estamos perdidos sem 
socorro...” – inventei na mente. 
E raciocinei a velocidade disto: “Ser pego, na tocaia, é 
diverso de tudo, e é tolo...” Assim enquanto, eu escutando, na 
folha da orelha, as minúcias recontadas: as passadas dos 
companheiros, no corredor; o assoviar e o dar das balas – que 
nem um saco de bagos de milho despejado. Feito cuspissem – o 
pôr e pôr! Senti como que em mim as balas que vinham estragar 
aquela morada alheia de fazenda. Medo nem tive, não deu para 
ter – foi outra noção, diferente. Me salvei por um espetar de 
pensamento: que Diadorim, cenho franzindo, fosse mandar eu 
ter coragem! Ele nem disse. Mas eu me inteirei, ligeiro demais, 
num só destorcer. – “Eh, pois vamos! É a hora!” – eu declarei, 
pus a mão no ombro dele. Respirei depressa demais. Aquele me 
apatetar – saiba o senhor – não deve de ter durado nem os 
menos minutos. No átimo, supri a claridade completa de idéia, o 
sanguefrio maior, essas comuns tranqüilidades. E, por aí, eu sabia 
mesmo exato: a gente já estava debaixo de cerco. 
Achei especial o jeito de João Concliz vir, ansiado 
cauteloso. Ação em que qualquer um anda – nessas semelhantes 
ocasiões – só encostado nas paredes – “Você fica aqui, mais 
você, e você... Você dessa banda... Você ali, você-aí acolá...” – 
arrumação ele ordenava. – “Riobaldo, Tatarana: tu toma conta 
desta janela... Daqui não sai, nem relaxa, por via nenhuma...” 
Arredado, lá embaixo avistei Marcelino Pampa indo para as 
senzalas, com uns cinco ou seis companheiros. Com outros, 
Freitas Macho corria para a tulha; e para o engenho uns junto 
com Jõe Bexiguento, dito “Alparcatas”. Meus peitos batendo 
tresdobro forte, eu dividido naquela alarida. A grave escorei meu 
rifle, limpo, arma minha, amásia. Ainda reconheci o Dimas 
Doido e o Acauã, deitados atrás do cruzeiro do pátio. Um 
daqueles urucuianos apareceu, mais outro, traziam balaio 
grande, com algodão em rama. Mais homens, com sacos de 
sabugos; foram buscar outros sacos, carregavam um caixote 
também. Tudo eles estavam transportando, por entranqueirar o 
pátio de fora: tábuas, tamboretes, cangalhas e arreios, uma mesa 
de carapina retombada. Arranjos de guerra – esses são 
engenhados sempre com uma graça variada, diversa dos 
aspectos de trabalho de paz – isto vi; o senhor vê: homens e 
homens repulam no afã tão unidamente, sujeitos maneiros, feito 
o meigo do demo assoprasse neles, ou até mesmo os espíritos! 
Suspirei, de bestagem. Ao menos alguém fungou e me cutucou, 
era o Preto Mangaba, mandado guarnecer ali, comigo junto. 
Preto Mangaba me oferecia dum pão de doce-de-buriti, repartia, 
amistoso. Eu então me alembrei de que estava com fome. Mas 
Quim Queiroz trazia mais munição, ele ajudado por alguns; 
arrastavam um couro, o couro esse cheio repleto de munição, 
arrastavam no assoalho do corredor. Da janela da outra banda, 
pus o olhar, espiei o desdém do mundo, distâncias. Abalavam 
fogo contra a gente, outra vez, contra o espaço da casa. Ixe de 
inimigo que não se avistava. Somente eu queria saber era se 
agüentava manejar, como era que estava sentindo meu braço. Aí 
ergui mão para coçar minha testa, aí me cismei: e fiz, com todo o 
respeito, o pelo-sinal. Sei que o cristão não se concerta pela má 
vida levável, mas sim porém sucinto pela boa morte – ao que a 
morte é o sobrevir de Deus, entornadamente. 
Atirei. Atiravam. 
Isso não é isto? 
Nonada. 
A aragem. Diadorim onde estivesse? Soube que ele parava 
em outro ponto, em seu posto em praça. Sustentava, picando 
alvos a para a frente, junto com o Fafafa, o Marruaz, Guima e 
Cavalcânti, na barra da varanda. Todo lugar não era lugar? Não 
se podendo esbarrar, de jeito nenhum, no arrebentar, nas 
manivelas da guerra. Aprendi os momentos. Assim, assazmente, 
João Concliz tornava a vir, zelante, com Alaripe, José Quitério e 
Rasga-em-Baixo. – “Espera!” – ele mandou. Pelo que vinham 
também o Pitolô e o Moçambicão, puxando uns couros de boi. 
Esses couros inteiros eram para a gente pregar lá em riba, nas 
padieiras, ficarem dependurados de cortinado bambo, nos vãos 
das janelas. Depois, o Pacamã-de-Presas mais o Conceiço, 
socavando com ferramenta, a fito de abrir torneiras nas paredes – 
por onde buraco de se atirar. Aquela guerra ia durar a vida inteira? 
O que eu atirava, ouvia menos. Mas o dos outros: assovios 
bravos, o achispe, isto de ferro – as balas apedrejadas. Eu e eu. 
Até meus estalos, que a cada, no próprio do coração. À mira de 
enviar um grão de morte acertado naquelas raras fumaças 
dançáveis. Assim é que é, assim. 
Ah! E então, aí, no súbito aparecer, Zé Bebelo chegou, se 
encostou quase em mim. – “Riobaldo, Tatarana, vem cá...” – ele 
falou, mais baixo, meio grosso – com o que era uma voz de 
combinação, não era a voz de autoridade. A de ver, o que ele 
quisesse de mim? Para eu passar avante na posição, me transpor 
para um lugar onde se matar e morrer sem beiras, de maior 
marca? Andei e segui, presente que, com Zé Bebelo, tudo carecia 
mais era de ser depressa. Mesmo me levou. Mas me levou foi 
para um outro cômodo. Ali era um quarto, pequeno, sem cama 
nenhuma, o que se via era uma mesa. Mesa de madeira vermelha, 
respeitável, cheirosa. Desentendi. Dentro daquele quarto, como 
que não entrava a guerra. Mas o pensar de Zé Bebelo – ansiado 
eu sabia – era coisa que estralejava, inventaste e forte. 
– “Mais antes larga o rifle aí, deposita...” – ele falou. O 
depor meu rifle? Pois botei, em cima da mesa, esquinado de 
través, botei com o todo cuidado. Ali se tinha lápis e papel. – 
“Senta, mano...” – ele, pois ele. Ofereceu a cadeira, cadeira alta, 
de pau, com recosto. Se era para sentar, assentei, em beira de 
mesa. Zé Bebelo de revólver pronto na mão, mas que não contra 
mim – o revólver era o comando, o constante revirar e remexer 
da guerra. E ele nem me olhou, e me disse: 
– “Escreve...” 
Caí num pasmo. Escrever, numa hora daquelas? O que ele 
explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil 
do que entender. Era? Não sou cão, não sou coisa. Antes isto, 
que sei, para se ter ódio da vida: que força a gente a ser filho- 
pequeno de estranhos... “Ah, o que eu não entendo, isso é que é 
capaz de me matar...” – me lembrei dessas palavras. Mas palavras 
que, em outra ocasião, quem tinha falado era Zé Bebelo, mesmo. 
– “Escreve...” 
O zunzum da guerra acontecendo era que me estorvava de 
direito pensar. E Zé Bebelo não estava ali não era para isso, para 
pensar por todos? Como que fosse, o papel, para o que carecia, 
era pouco. Tinham de caçar mais papel, qualquer, por ali devia de 
ter. Enquanto isso, eu cumprisse de escrever, na seca mão da 
necessidade. 
E ouvimos praga de dor. 
– “Ao que foi?” Uns gemidos, despautados, de sorrogo. – 
“Companheiro ofendido. O Leocádio...” – ouvimos. Sem-modos 
se precipitado, Zé Bebelo avançou para ali, para ver. Sem 
determinação tomada de ir, eu também já estava lá, atrás dele. O 
homem, o primeiro ferido, caído sentado, as pernas estendidas 
para diante, as costas amparadas na parede; com a mão esquerda 
era que ele suportava sua testa, mas com a direita ainda segurava 
o rifle, que o asno rifle ele não tinha largado. Conforme 
Raimundo Lê já tinha exigido, alguns vinham da cozinha, 
trazendo as latas d’água. Raimundo Lê lavava a cara do homem 
ensangüentada, do Leocádio. Esse estava atirado pelas queixadas, 
má bala que lhe partira o osso, o vermelho brabotava e pingava. 
– “Meu filho, tu agüenta ainda brigar?” – Zé Bebelo quis saber. 
O Leocádio, que fez careta, garantiu que podia: – “O que posso. 
Em nome de Deus e de meu São Sebastião guerreiro, o que 
posso!” Sempre sendo a careta sem gracejo; pois falar era o que 
para ele custava e maltratava. – “E da Lei... E da lei, também... 
Ah, então, vamos, faz vingança, menino, faz vingança!” – Zé 
Bebelo aforçurou. Semelhante só botasse apreço nos fatos por 
resultar. Zé Bebelo se endemoninhava. 
Segurou meu braço, suscitado de se voltar para a mesa, 
para se escrever, amanuense. Pelo discorrer, revólver na mão, às 
vezes achei, em minha fantasia, que ele estava me ameaçando. – 
“Ei, ai, vamos ver. Que tenho esquadrão reiúno: esses é que vão 
vir me dar retaguarda!” – ele falasse. Eu escrevesse, com mais 
urgência. Os bilhetes – missiva para o senhor oficial 
comandante das forças militares, outro para o excelentíssimo 
juiz da comarca de São Francisco, outro para o presidente-dacâmara 
de Vila Risonha, outro para o promotor. – “Apresta. A 
massa do volume deles também dá valor...” – ele regendo. 
Acertei. Escrevi. O teor era aquilo mesmo, o simples: que, se os 
soldados no soflagrante viessem, de rota abatida, sem esperdiçar 
minuto, então aqui na Fazenda dos Tucanos pegavam caça 
grossa, reunida – de lobo, jaguatirica e onça – de toda a 
jagunçada maior reinante no vezvez desses gerais sertões. A rasa, 
à justa, e cerrar com fecho formal: Ordem e Progresso, viva a 
Paz e a Constituição da Lei! Assinado: José Rebelo Adro Antunes, 
cidadão e candidato. 
No pique dum momento, perdi e achei minha idéia, e 
esbarrei. A em pé, agora formada, eu conseguia a alumiação 
daquela desconfiança. Assim. Em que maldei, foi: aquilo não 
seria traição? Rasteiro, tive que olhei Zé Bebelo, no grude dos 
olhos. Daí, tão claro e aligeirado pensei – os prefácios. Aquele 
tinha sido homem pago estipendiado pelo Governo, agora os 
soldados do Governo com ele se encontravam. E nós, todos? 
Diadorim e eu, os tristes e alegres sofrimentos da gente, a célebre 
morte de Medeiro Vaz, a vingança em nome de Joca Ramiro? 
Nem eu sabia ao certo, depois, no correr de tantos meses, o 
extrato da vida de Zé Bebelo, o que ele tinha realmente feito, 
somenos se cumprida a viagem de ida até em Goiás. Soubesse, o 
pior, era que ele, por oficio e por espécie, não podia esbarrar de 
pensar, não podia esbarrar de pensar inventado para adiante, sem 
repouso, sempre mais. A gente estava por conta dele – e sem 
repouso nenhum também, nenhum – o portanto. E ele tinha 
trazido o bando cá para perto do São Francisco, tinha querido 
falhar os três dias naquela fazenda atacável. Quem sabe, então, o 
recado para os soldados virem, ele mesmo já não teria enviado, 
desde tempos? Idéia, essa. Arre de espanto – ah, como quando 
onça de-lado pula, quando a canoa revira, quando cobra 
chicoteia. Desse de ser? Ao caminho dos infernos – para prazo! 
Aí, careci de querer a calma. O tiroteio já redobrava. Ouvi a 
guerra. 
Decerto eu estava exagerado. Antes Zé Bebelo havendo de 
ser mesmo o chefe para a hora, safado capaz. Nem se desprazia. 
– “Oi, xô! P’ra esses, munição não falta?...” – ele escarnecendo 
disse, quando as descargas vieram em salva mais forte – o fiufiu e 
os papocos. Ah as balas que partiam telhas e que as paredes todas 
recebiam. Cacos caindo, do alto. – “Te apressa, Tatarana, que 
nós dois temos também de atirar!” Alegre dito. Na janela, ali, 
tinham pendurado igualmente um daqueles couros de boi: bala 
dava, zaque-zaque, empurrando o couro, daí perdia a força e 
baldava no chão. A cada bala, o couro se fastava, brando, no ter 
o choque, balangava e voltava no lugar, só com mossa feita, sem 
se rasgar. Assim ele amortecia as todas, para isso era que o couro 
servia. “Traição?” – eu não queria pensar. Eu já tinha preenchido 
três cartas. Não é do tutuco nem do zumbiz das balas, o que 
daquele dia em minha cabeça não me esqueço; mas do bater do 
couro preto, adejante, que sempre duro e mole no ar se repetia. 
Advindo que algum me trouxe mais papel, achado por ali, 
nos quartos, em remexidas gavetas. Só coisa escrita já, de tinta 
firme; mas a gente podendo aproveitar o espaço embaixo, ou a 
banda de trás, reverso dita. Que era que estava escrito nos 
papéis tão velhos? Um favor de carta, de tempos idos, num 
vigente fevereiro, 11, quando ainda se tinha Imperador, no nome 
dele com respeito se falava. E noticiando chegada em poder, 
de remessa de ferramenta, remédios, algodão trançado tinto. A 
fatura de negócios com escravos, compra, os recibos, por 
Nicolau Serapião da Rocha. Outras cartas... – “Escreve, filho, 
escreve, ligeiro...” A traição, então? Altamente eu escutava os 
gritos dos companheiros, xingatório, no meio da desbraga do 
quanto combate, na torração. Aqui mesmo, esgueirados para a 
janela, o Duzentos e o Rasga-em-Baixo agora ombreavam 
armas, seu vez-em-quando a ponto atiravam. Assim como não 
pude, eu esbarrei, outra vez – e encarei Zé Bebelo sem final. 
– “Que é? Que é lá?!” – ele me perguntou. Devia ter me 
deduzido, dos meus olhos, mesmo melhor do que o que eu sabia 
de mim. 
– “A pois... Por que é que o senhor não se assina, ao pé: 
Zé Bebelo Vaz Ramiro... como o senhor outrora mesmo 
declarou?...” – eu cacei contra, reperguntando. 
Ato visível, que ele esteve pego, no usual de seu modo, 
assim, de se espantar no ar. Conheci. Às vezes, também, um 
atraiçoa, sem nem saber o que é que está produzindo-às falsas 
hajas! Mas ele não tinha surpreendido a verdade do meu indagar, 
a expedição de minha dúvida. Conforme, prazido consigo, 
recachou, e me disse, me engambelando: 
– “Ah, hã-an... Também pensei. Tanto que pensei; mas, 
não se pode... Muito alta e sincera é a devoção, mas o exato das 
praxes impõe é outras coisas: impõe é o duro legal...” 
Aí, fui escrevendo. Simples, fui, porque fui; ah, porque a 
vida é miserável. A letra saía tremida, no demoroso. Meu outro 
braço também recomeçava a doer, quase’que. “Traição”... – sem 
querer eu fui lançando no papel a palavra; mas risquei. Uma bala 
no couro assoviou soco, outra entrou atrás, entrou com o couro 
levantado, deu na parede defronte, ricocheteou e veio cair, 
quente, perto da gente. Ali na parede, tinha um chifre de boi de 
se dependurar roupa; até armador de rede era de chifre de boi, 
naquela Casa. Sumamente, eu esperei o pispissiu de alguma outra 
bala, eu queria. Soubesse por quê? O pensar caladíssimo de Zé 
Bebelo me perturbava. 
Mas ele disse: – “Que é que é?” – se debruçando. – “Que 
erro que foi?” Não viu, porque eu já tinha riscado. Mas, então, 
ele muito falou. Ia explicando. De noite, no escuro feito, ia 
mandar dois cabras, dos mais espertos viajeiros, para rastejarem 
por ali, furando o cerco, cada um levava ruma igual daquelas 
cartas. Assim, Deus azado ajudasse, e eles ou ao menos um deles 
conseguisse, então era resumo certo que a soldadesca se movimentava 
de vir. Apareciam, os trapezavam, apropositavam, 
arrebentavam com os Hermógenes! 
– “E a gente?” – eu perguntei. 
– “Ãe? A gente? A ver, que você não me entendeu? A 
gente obra jeito de se escapar, no cererê da confusão...” 
Antes, tanto, que era muito difícil – eu repostei. 
– “Ah, sim, dificultoso é, meu filho. Mas pego, é o nosso 
recurso. Se não, se outra, que saldo é que temos?” – e Zé Bebelo, 
do dito, sagaz se rigozijava. 
Então, com respeito, eu disse que a gente podia 
experimentar de fazer isso mesmo agora: furar uma saída, por 
entre os Hermógenes, brigando e matando. Eu disse isso. Mas 
tinha esquecido que estava era encostado em Zé Bebelo, no 
questionar. Aí quem era que podia com a idéia daquele homem, 
quem era que se sustentava? A foro, pois, assim ele me 
respondeu: 
– “Pois era, Tatarana? Olhe: escuta, pensa – esses 
Hermógenes não são mais valentes do que nós, nem estão em 
quantidade maior; mas fato é que eles chegaram a surdas, e nos 
cercaram, tomaram tudo quanto há de melhor, nessas posições. 
Asseados, é que estão. Agora, nesta hora, a gente forçar um 
escape, pode ser que se tenha sorte – mas mesmo assim sofrendo 
muitas mortes, e sem meios para descontar essas, sem alcance 
nenhum para se matar um bom poucado desses inimigos. Tu 
entende? Mas, se os soldados chegarem, têm de dar o forte fogo 
primeiro contra os Hermógenes, fazendo neles muito estrago. Aí, 
se foge, com tenção só na escapula. Ao menos, algum lucro se  
teve... Ah, tu vê o que se quer? Ah, o que tu também quer, pois 
não quer?!...” 
Não nas artes que produzia, mas no armar de falar assim – 
ele era razoável. Se riu, qual. Riu? Eu sendo água, me bebeu; eu 
sendo capim, me pisou; e me ressoprou, eu sendo cinza. Ah, não! 
Então, eu estava ali, em chão, em a-cu atôo de acuado?! Um ror 
de meu sangue me esquentou as caras, o redor dos ouvidos, 
cachoeira, que cantava pancada. Eu apertei o pé na alpercata, 
espremi as tábuas do assoalho. Desconheci antes e depois – uma 
decisão firme me transtornava. E eu vi, fiquei sabendo: me 
queimassem em fogo, eu dava muitas labaredas muito altas! Ah, 
dava. O senhor acha que menos acho? Mais digo. Mais fiz. Antes 
veja, o que eu pensei – o que seguinte ia ser, e ficou formado um 
decreto de pedra pensada: que, na hora de os soldados 
sobrechegarem, eu parava perto de Zé Bebelo; e que, ele fizesse 
feição de trair, eu abocava nele o rifle, efetuava. Matava, só uma 
vez. E, daí... Daí eu tomava o comandamento, o 
competentemente – eu mesmo! – e represava a chefia, e forçando 
os companheiros para a impossível salvação. Aquilo por amor do 
rijo leal eu fazia, era capaz; pelo certo que a vida deve de ser. 
Mesmo não gostando de ser chefe, descrendo do enfado de 
responsabilidades. Mas fazia. “Aí, pego a faca-punhal e o facão 
grande...” – tornei a pensar. Até chegar a hora, eu não ia falar 
disso com pessoa nenhuma, nem com Diadorim. Mas fazia, 
procedia. E eu mesmo senti, a verdade duma coisa, forte, com a 
alegria que me supriu: – eu era Riobaldo, Riobaldo, Riobaldo! A 
quase que gritei aquele este nome, meu coração alto gritou. Arre 
então, quando eu experimentei os gumes dos meus dentes, e 
terminei de escrever o derradeiro bilhete, eu estive todo 
tranqüilizado e um só, e insensato resolvido tanto, que mesmo 
acho que aquele, na minha vida, foi o ponto e ponto e ponto. E 
entreguei o escrito a Zé Bebelo – minha mão não espargiu 
nenhum tremor. O que regeu em mim foi uma coragem 
precisada, um desprezo de dizer; o que disse: 
– “O senhor, chefe, o senhor é amigo dos soldados do 
Governo...” 
E eu ri, ah, riso de escárnio, direitinho; ri, para me constar, 
assim, que de homem ou de chefe nenhum eu não tinha medo. E 
ele se sustou, fez espantos. 
Ele disse: – “Tenho amigo nenhum, e soldado não tem 
amigo...” Eu disse: – “Estou ouvindo.” 
Ele disse: – “Eu tenho é a Lei. E soldado tem é a lei...” Eu 
disse: – “Então, estão juntos.” 
Ele disse: – “Mas agora minha lei e a deles são às diversas: 
uma contra a outra...” 
Eu disse: – “Pois nós, a gente, pobres jagunços, não temos 
nada disso, a coisa nenhuma...” 
Ele disse: – “Minha lei, sabe qual é que é, Tatarana? É a 
sorte dos homens valentes que estou comandando...” 
Eu disse: – “É. Mas se o senhor se reengraçar com os 
soldados, o Governo lhe repraz e lhe premeia. O senhor é da 
política. Pois não é? Õ gente – deputado...” 
Ah, e feio ri; porque estava com vontade. Aí pensei que ele 
fosse logo querer o a gente se matar. A sorte do dia, eu cutucava. 
Mas ruim não foi. Zé Bebelo só encurtou o cenho, no carregoso. 
Fechou a boca, pensou bem. 
Ele disse: – “Escuta, Riobaldo, Tatarana: você por amigo eu 
tenho, e te apreceio, porque vislumbrei tua boa marca. Agora, se 
eu achasse o presumido, com certeza, de que você está 
desconcordando de minha lealdade, por malícias, ou de que você 
quer me aconselhar canalhagem separada, velhaca, para vantagem  
minha e sua... Se eu soubesse disso, certo, olhe...” Eu disse: – 
“Chefe, morte de homem é uma só...” 
Eu tossi. Ele tossiu. 
Diodolfo, correndo vindo, disse: – “O Jósio está morrendo, 
com um tiro no pescoço, lá dele...” 
Alaripe entrou, disse: – “Eles estão querendo pôr mãos e 
pés no chiqueiro e na tulha. Se assanham!” 
Eu disse: – “Dê as ordens, Chefe!” Eu disse gerido; eu não 
disse copiável. Sei que Zé Bebelo sorriu, aliviado. 
Zé Bebelo botou a mão no meu ombro; era o da banda do 
braço que doía. – “A vamos, a vamos, com macacos e bananas! 
A cá, na sala-dejantar, meu filho...” – ele instou. À janela. 
Agachei, e escorei meu rifle, arma capital. Agora, era obrar. E 
aqueles sujeitos estavam loucos? 
Cabeça de um se bolou, redondante, feito um coco, por 
cima da palha de buriti que cobria uma casa de vaqueiro. 
Adesfechei: e vi arrebentar em pedaços o casco daquilo. Daí, a 
dor me doeu no ferimento do braço, mordi meus beiços por essa 
causa. Mas cacei. Outro afundei logo, cujo varei os peitos, com 
outra bala certeira, duas balas. Ave, que afoitos! Ao tanto eu 
gemia, e apontava. Eles, em um e um, caíam, aceitavam o poder 
da morte que eu mandava. Fiz conta: uns seis, sei, até a hora do 
almoço – meiadúzia. Essas coisas, não gosto de relatar, não são 
para que eu alembre; não se deve, de. Ao senhor, só, agora, sim: é 
de declaração, é até ao desamargado dos sonhos... Que eu ali, 
jajão. Conheço quando homem só disfarça, quando se encolhe 
somente ferido, ou mas quando retomba mesmo por 
desmanchado. Mortes diferentes, mortes iguais. Pena, se tive? Vá 
se ter dó de canguçu, dever finezas a escorpião! Pena de errar 
algum, eu ter podia; ah, mas não errava. Deixa que deixavam só 
uns dois dedos de corpo em descoberto lateral – e minha bala se 
comportava. Como aquele meu braço me doendo, ai dor doía, de 
arrancado, parecendo que um fogo desenraizava tudo, dos ocos, 
respondia até na barriga. A cada que eu dava um tiro, forcejava 
minha careta, chorejava. Ria, despois. – “Aperta esta minha parte 
de natureza, com um cabresto, com um pano, companheiro!” – 
eu supliquei. Alaripe, servente, rasgou uma colcha de cama, me 
passou dobras daquelas tiras, arrochadas. Também, doesse que 
doesse, que me importava? – arrasos em redor de mim. 
Trastanto, derrubei mais um, mais vizinho. Os outros uns. Esse, 
urubu já bicou. Esse ia pulando em lanço, para um canto da 
cerca, esse repulou no ar, esse deu um grito soltado. Menos, veja 
e mire, eu catasse de querer espécies de homens, para alvejar, 
feito se por cabeça ganhasse prêmio de conto-de-réis. Mas mais, 
de muitos, a vida salvei: pelo medo que de mim tomavam, para 
não avançar nos lugares – pelos tirázios. Ainda demos um 
tiroteio varredor, ainda batemos. Aí, eles desistiram para trás, 
desandavam. Assim pararam, o balançar da guerra parou, até para 
o almoço, em boa hora. E então conto o do que ri, que se riu: 
uma borboleta vistosa veio voando, antes entrada janelas a 
dentro, quando junto com as balas, que o couro de boi 
levantavam; assim repicava o espairar, o vôo de reverências, não 
achasse o que achasse – e era uma borboleta dessas de cor azulesverdeada, 
afora as pintas, e de asas de andor. – “Ara, viva, 
maria boa-sorte!” – o Jiribibe gritou. Alto ela entendesse. Ela era 
quase a paz. 
A comida para mim, ali mesmo me trouxeram, todos em 
minha pontaria punham prezado valor. O imaginar o senhor não 
pode, como foi que eu achei gosto naquela comida, às ganas, que 
era: de feijão, carne-seca, arroz, maria-gomes e angu. Ao que bebi 
água, muita, bebi restilo. O café que chupo. E Zé Bebelo, 
revindo, me gabou: – “Tu é tudo, Riobaldo Tatarana! Cobra 
voadeira...” Antes Zé Bebelo me ofereceu mais restilo, o tanto 
também bebeu, às saúdes. Seria só por desconto de um começo 
de remorso, por me temer em consciências? A gente sabe mais, 
de um homem, é o que 
ele esconde. – “Ah: o Urutu Branco: assim é que você devia 
se chamar... E amigos somos. A ver, um dia, a gente vai entrar, 
juntos, no triunfal, na forte cidade de Januária...” – aprontado ele 
falou. Ao que resposta não dei. Amigo? Eu, ali, do lado de Zé 
Bebelo; mas Zé Bebelo não estava do lado de ninguém. Zé 
Bebelo – cortador de caminhos. Amigo? Eu era, sim senhor. 
Aquele homem me sabia, entendia meu sentimento. A ser: que 
entendia meu sentimento, mas só até uma parte – não entendia o 
depoisdo-fim, o confrontante. Assemelhado a ele, pensei. Pensei: 
eu visse que traindo ele estivesse, ele morria. Morria da mão de 
um amigo. Jurei, calado. E, desde, naquela hora, a minha idéia se 
avançou por lá, na grande cidade de Januária, onde eu queria 
comparecer, mas sem glórias de guerra nenhuma, nem 
acompanhamentos. Alembrado de que no hotel e nas casas de 
família, na Januária, se usa toalha pequena de se enxugar os pés; e 
se conversa bem. Desejei foi conhecer o pessoal sensato, eu no 
meio, uns em seus pagáveis trabalhos, outros em descanso 
comedido, o povo morador. A passeata das bonitas moças 
morenas, tão socialmente, alguma delas com os cabelos mais 
pretos rebrilhados, cheirando a óleo de umbuzeiro, uma flor 
airada enfeitando o espírito daqueles cabelos certos. À Januária 
eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente 
esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, 
cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim essas 
cachaças – a vinte-e-seis cheirosa – tomando gosto e cor 
queimada, nas grandes dornas de umburana. 
Ao menos, daí desajoelhei e vim para a alpendrada, avistar 
o que se passava com Diadorim; e eu estipulava meu direito de 
reverter por onde que eu quisesse, porque meu rifle certeiro era 
que tinha defendido de tomação o chiqueiro e a tulha, nos 
assaltos, e então até a Casa. Diadorim guerreava, a seu 
comprazer, sem deszelar, sem querer ser estorvado. Datado que 
Deus, que me livrou, livrava também meu amigo de todo 
comezinho perigo. As raivas, naquela varanda, vinham e caíam, 
demasiadas, vi. Tiros altos, revoantes: eram os bandos de balas. 
Assunto de um homem que estava deitado mal, atravessado, 
pensei que assim em pouco descanso. – “Vamos levar para a 
capela...” – Zé Bebelo mandou. Assunto que era o Acrísio, morto 
no meio; torto. Devia de ter se passado sem tribulação. Agora 
não caçavam uma vela, para em provisão dele se acender? – 
“Quem tem um rosário?” Mas, no sobrevento, o Cavalcânti se 
exclamou 
– “A que estão matando os cavalos!...” 
Arre e era. Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada 
nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não 
tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem temor de Deus 
nem justiça de coração, se viravam para judiar e estragar, o 
rasgável da alma da gente – no vivo dos cavalos, a torto e direito, 
fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo. Alt’-e-baixos – entendendo, 
sem saber, que era o destapar do demônio – os cavalos 
desesperaram em roda, sacolejados esgalopeando, uns saltavam 
erguidos em chaça, as mãos cascantes, se deitando uns nos 
outros, retombados no enrolar dum rolo, que reboldeou, batendo 
com uma porção de cabeças no ar, os pescoços, e as crinas 
sacudidas esticadas, espinhosas: eles eram só umas curvas 
retorcidas! Consoante o agarre do rincho fino e curtinho, de raiva 
– rinchado; e o relincho de medo – curto também, o grave e 
rouco, como urro de onça, soprado das ventas todas abertas. 
Curro que giraram, trompando nas cercas, escouceantes, no 
esparrame, no desembesto – naquilo tudo a gente viu um não 
haver de doidas asas. Tiravam poeira de qualquer pedra! Iam 
caindo, achatavam no chão, abrindo as mãos, só os queixos ou os 
topetes para cima, numa tremura. Iam caindo, quase todos, e 
todos; agora, os de tardar no morrer, rinchavam de dor – o que 
era um gemido alto, roncado, de uns como se estivessem quase 
falando, de outros zunido estrito nos dentes, ou saído com custo, 
aquele rincho não respirava, o bicho largando as forças, vinha de 
apertos, de sufocados. 
– “Os mais malditos! Os desgraçados!” 
O Fafafa chorava. João Vaqueiro chorava. Como a gente 
toda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez, não 
havia remédio. À tala, eles, os Hermógenes, matavam conforme 
queriam, a matança, por arruinar. Atiravam até no gado, alheio, 
nos bois e vacas, tão mansos, que, desde o começo, tinham 
querido vir por se proteger mais perto da casa. Onde se via, os 
animais iam amontoando, mal morridos, os nossos cavalos! 
Agora começávamos a tremer. Onde olhar e ouvir a coisa 
inventada mais triste, e terrível – por no escasso do tempo não 
caber. A cerca era alta, eles não tiveram fuga. Só um, um cavalão 
claro, que era o de Mão-de-Lixa e se chamava Safirento. Se 
aprumou, nas alças, ficou suspenso, cochilasse debruçado na 
régua – que nem que sendo pesado em balança, um ponto – as 
nádegas ancas mostrava para cá, grossas carnes; depois tombou 
para fora, se afundou para lá, nem a gente podia ver como 
terminava. A pura maldade! A gente jurava vinganças. E, aí, não 
se divulgava mais cavalo correndo, todos tinham sido 
distribuídos derrubados! 
Aquilo pedia que Deus mesmo viesse, carnal, em seus 
avessos, os olhos formados. Nós rogávamos as pragas. Ah, mas a 
fé nem vê a desordem ao redor. Acho que Deus não quer 
consertar nada a não ser pelo completo contrato: Deus é uma 
plantação. A gente – e as areias. Aturado o que se pegou a ouvir, 
eram aqueles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, 
aquele rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a 
espada de aflição: e carecia de alguém ir, para, com pontaria 
caridosa, em um e um, com a dramada deles acabar, apagar o 
centro daquela dor. Mas não podíamos! O senhor escutar e saber 
– os cavalos em sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos 
outros, para morrer e não morrer, e o rinchar era um choro 
alargado, despregado, uma voz deles, que levantava os couros, 
mesmo uma voz de coisas da gente: os cavalos estavam sofrendo 
com urgência, eles não entendiam a dor também. Antes estavam 
perguntando por piedade. 
– “Arre, eu vou lá, eu vou lá, livrar da vida os 
pobrezinhos!...” – foi o que o Fafafa bramou. Mas não deixamos, 
porque isso consumava loucura. Não dava dois passos no eirado, 
e ele morria fuzilamento, em balas se varava, ah. Agarramos 
segurado o Fafafa. A gente tinha de parar presa dentro de casa, 
combatendo no possível, enquanto a ruindade enorme acontecia. 
O senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente 
engrossa e acusa buracões profundos, e às vezes dão ronco quase 
de porco, ou que desafina, esfregante, traz a dana deles no 
senhor, as dores, e se pensa que eles viraram outra qualidade de 
bichos, excomungadamente. O senhor abre a boca, o pêlo da 
gente se arrupeia de total gastura, o sobregelo. E quando a gente 
ouve uma porção de animais, se ser, em grande martírio, a 
menção na idéia é a de que o mundo pode se acabar. Ah, que é 
que o bicho fez, que é que o bicho paga? Ficamos naquelas 
solidões. Alembrar que tão bonitos, tão bons, inda ora há pouco 
esses eram, cavalinhos nossos, sertanejos, e que agora 
estraçalhados daquela maneira não tinham nosso socorro. Não 
podíamos! E que era que queriam esses Hermógenes? De certo 
seria tenção deles deixar aqueles relinchos infelizes em roda da 
gente, dia-e-noite, noite-e-dia, dia-e-noite, para não se agüentar, 
no fim de alguma hora, e se entrar no inferno? Senhor então 
visse Zé Bebelo: ele terrivelmente todo pensava – feito o carro e 
os bois se desarrancando num atoleiro. Mesmo mestremente ele 
comandava: – “Apuremos fogo... Abaixado...” –; fogo, daqui, 
dali, em ira de compaixão. Adiantava nada. Com pranchas de 
munição que a gente gastasse, não alcançávamos de valer aos 
animais, com o curral naquela distância. Atirar de salva, no 
inimigo amoitado , não rendia. No que se estava, se estava: o 
despoder da gente. O duro do dia. A pois, então, me subi para 
fora do real; rezei! Sabe o senhor como rezei? Assim foi: que 
Deus era fortíssimo exato – mas só na segunda parte; e que eu 
esperava, esperava, esperava, como até as pedras esperam. “A faz 
mal, não faz mal, não tem cavalo rinchando nenhum, não são os 
cavalos todos que estão rinchando – quem está rinchando 
desgraçado é o Hermógenes, nas peles de dentro, no sombrio do 
corpo, no arranhar dos órgãos, como um dia vai ser, por meu 
conforme... Assim, d’hoje-em-diante doravante, sempre temos de 
ser: ele o Hermógenes, meu de morte – eu militão, ele guerreiro...” 
Assim o relincho em restos, trescortado. Aqueles cavalos 
suavam de derradeira dor. 
Agarrávamos o Fafafa, segurado, disse ao senhor. Mas, 
mais de repente, o Marruaz disse: – “A bom, vigia: olha lá...” O 
que era. Que eles – quem havia de não crer? – que eles mesmos 
agora estavam atirando por misericórdia nos cavalos 
sobreferidos, para a eles dar paz. Ao que estavam. – “As graças 
a Deus!...” – exclamou Zé Bebelo, alumiado, com um alívio de 
homem bom. – “Ah, é marmo!” – o Alaripe exclamou também. 
Mas o Fafafa nem nada não disse, não conseguia: o quanto 
pôde, se assentou no chão, com as duas mãos apertando os 
lados da cara, e cheio chorou, feito criança – com todo o nosso 
respeito, com a valentia ele agora se chorava. Aí, então, se 
esperou. Durado de um certo tempo, descansamos os rifles, nem 
um tirozinho não se deu. O intervalo para deixar a eles folga de 
matarem em definitivo nossos pobres cavalos. Mesmo quando o 
arraso do último rincho no ar se desfez de vez, a gente ainda se 
estarrecia quietos, um tempo grande, mais prazo – até que o som 
e o silêncio, e a lembrança daquele sofrer, pudessem se enralecer 
embora, para algum longe. Daí, depois, tudo recomeçou de novo, 
em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do 
mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe 
– mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e 
maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma. 
Deus é um gatilho? 
Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não 
contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias 
nossas. Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com 
espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo – 
mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim, 
passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, 
pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro! 
– nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que 
minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um 
tempo. Só que alargou demora de anos – às vezes achei; ou às 
vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zuo 
de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso 
me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança 
demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de 
decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um 
rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem 
me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à 
gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é 
furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isto, já aprendi. 
A bobéia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba – é lavar 
ouro. Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa 
e real verdade? 
A ser que aqueles dias e noites se entupiram emendados, 
num ataranto, servindo para a terrível coisa, só. Aí era um tempo 
no tempo. A gente povoava um alvo encoberto, confinado. O 
senhor sabe o que é se caber estabelecido dessa constante 
maneira? Se deram não sei os quantos mil tiros: isso nas minhas 
orelhas aumentou – o que azoava sempre e zinia, pipocava, 
proprial, estralejava. Assentes o reboco e os vedos, as linhas e 
telhas da antiga casarona alheia, era o que para a gente antepunha 
defesa. Um pudesse narrar – falo para o senhor crer – que a casagrande 
toda ressentia, rangendo queixumes, e em seus escuros 
paços se esquentava. Ao por mim, hora em que pensei, eles iam 
acabar arriando tudo, aquela fazenda em quadradão. Não foi. 
Não foi, como logo o senhor vai ver. Porque, o que o senhor vai 
é – ouvir toda a estória contada. 
Morreu mais o Berósio. Morreu o Cajueiro. O Moçambicão 
e Quim Queiroz, para a gente se sortir, traziam as quantidades de 
balas. Rente Zé Bebelo andava em toda a parte, mandando se 
atirar economizado e certeiro. – “Ah, oé, meus filhos: não vão 
desperdiçar. Matem só gente viva!” – ele trestampava – “... É 
coragem, e qué’pe-te! que o morto morrido e matado não agride 
mais...” Aí cada um gritava para os outros valentia de exclamação, 
para que o medo não houvesse. Aí os judas 
xingávamos. Para não se ter medo? Ah, para não se ter medo é 
que se vai à raiva. A sebo! De dor do calor de inchação, aquele 
meu braço sempre piorava. Alaripe me cedeu, de bondoso, uma 
vasilha com água fria, carreou para mim; em entremeio de atirar, 
eu molhava bem um pano, torcia por cima do braço, o gotejado 
frescor de alívio. Um companheiro sempre me ajudando, conforme 
agradeci. Um urucuiano, daqueles cinco urucuianos de Zé 
Bebelo. Isso, no instante, estranhei. Notei, de repente: aquele 
homem, fazia tempo que não se arredava de mim, sempre me 
seguindo, por perto. 
Solevei uma desconfiança. Sempre o vulto presente daquele 
homem; seria só por acasos? O urucuiano, deles, que o Salústio 
se chamava. O que tinha os olhos miudinhos em cara redonda, 
boca mole e sete fios de barba compridos no queixo. Arreliado 
falei: – “Que que é? Tu amigou comigo?! Tatu – tua casa...” – 
para ele. Semi-sério ele se riu. Comparsa urucuiano dos olhos 
verdes, homem muito feioso. Ainda nada não disse, coçou a barriga 
com as costas dobradas da mão – gesto de urucuiano. Eu 
bati com a minha mão direita por cima da canhota, que pegava o 
rifle, e deixei deixada – gesto de jagunço. Apertei com ele: – “Ao 
que me quer?” Me deu resposta: – “Ao assistir o senhor, sua 
bizarrice... O senhor é atirador! É no junto do que sabe bem, que 
a gente aprende o melhor...” A verdade com que ele me louvava. 
Se riu, muito sincero. Não desgostei da companhia dele, para os 
bastantes silêncios. Assim é o que digo: que, quando o tiroteio 
batia forte, de lá, e daí de repente estiava – aquilo servia um 
pesado, salteação. Surdo pensei: aqueles Hermógenes eram gente  
em tal como nós, até pouquinho tempo reunidos companheiros, 
se diz – irmãos; e agora se atravavam, naquela vontade de 
desigualar. Mas, por quê? Então o mundo era muita doideira e 
pouca razão? De perto, a doideira não se figurava transcrita. Pois 
o urucuiano Salústio João mais olhei. Ali, ajoelhado, ele mirava e 
atirava. Atirava e fechava os olhos. Quando abria outra vez, queria 
ver alguém vivo? 
Sosseguei. Aí eu não devia de pensar tantas idéias. O 
pensar assim produzia mal – já era invocar o receio. Porque, 
então, eu sobrava fora da roda, havia de ir esfriar sozinho. 
Agora, por me valer, eu tinha de me ser como os outros, a força 
unida da gente mamava era no suscenso da ira. O ódio quase 
sem rumo, sem porteira. Do Hermógenes e do Ricardão? Neles 
eu nem pensava. Antes pensei outra vez foi no embuste do 
urucuiano. Atual ele se ajoelhava dobroso, com a perna muito 
para trás, a outra muito para diante. Aquele homem – achei – 
estava mandado por Zé Bebelo, para espreitar meus atos. 
A prova que era: de que Zé Bebelo despachava traição. As 
espumas dele me espirravam. Será que fosse para o urucuiano 
Salústio no primeiro descuido meu me amortizar? Tanto, não; 
apostei. Zé Bebelo me queria vigiado, para eu não contar aos 
outros a verdade. Ora bem, que uns companheiros tinham 
avistado os bilhetes eu escrever – o fato esquisito, assim, em hora 
de começo de fogo; mas por certo pensavam que era para fazendeiros 
amigos nossos, chefes de homens, rogando que viessem, 
com retaguarda e reforço. Agora, Zé Bebelo temia que eu 
candongasse. Aí mandou o urucuiano fazer a minha sombra. Mas 
Zé Bebelo carecia de mim, enquanto o cerco de combate desse 
de durar. Traidor mesmo traidor, e eu também não precisava dele 
– da cabeça de pensar exato? Ao que, naquele tempo, eu não 
sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia 
pensar com poder – por isso matava. Eu aqui – os de lá do lado 
de lá. A anhanga que em riba da gente despejavam, balaços de 
tantos rifles, balas que quebram tetos e portas. Ah, isso era 
desgraça sem mão mandante, ofensa sem nenhum fazedor – 
quase feito uma chuva-de-pedra, acontecer de trovões e raios, 
tempestade – parecesse? Eu ia ter raiva dos homens que não 
enxergava? Podia ter? Tinha, toda, era dos que eu matava bem. 
Mas nem bem não era mesmo raiva; era só confirmação. 
Desse jeito foi que entardeceu, o sol piscou; a gente tendo 
perdido a certeza dos horários do dia. Afã de dessossego, era só. 
Daí, pegava um cansaço. Fechasse a noite, o perigo podia vir a 
ser maior. Os Hermógenes não iam investir, mediante trevas, 
para um fim ali dentro, de coronha e faca? Morreu mais o 
Quiabo. Outros atestavam uns ferimentos. Por se necessitar da 
capela, os defuntos a gente foi levando para um cômodo 
pequeno e sem janela, que era pegado na escadinha do corredor. 
Alaripe apareceu com uma vela, acendeu, enfiada numa garrafa. 
Vela sozinha, para eles todos. Aí as lamparinas e candeias não 
bastavam? Debaixo dum alumiar de candeia, Zé Bebelo estava 
me convidando. Arte que logo entendi. Ele tinha mandado vir 
Joaquim Beiju e o Quipes, para um segredado. 
Agora, aqueles dois, era para surtirem, saindo rastejando, 
conforme o quiçá; e cada um levava seu punhado de bilhetes, 
enviados. Por uma banda um, o outro da outra: o que Deus 
aprovasse, chegava. Assim eles aceitaram de cumprir, e motivos 
não perguntaram. Tudo em encoberto. Então – se Zé Bebelo 
guardava uma tenção honesta – por que, dito e feito, era que não 
punha todo o mundo ciente do tramado? Ainda esperei. Mas – 
dirá o senhor – por que era que eu também não delatava aquilo, 
os efeitos e projetos, ao menos a Diadorim e Alaripe eu não 
contava? Deponho que não sei. Aos perigos, os perigos. Só duma 
coisa eu forte sabia... Só que eu ia vigiar sempre Zé Bebelo. Ele 
trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de 
natureza – que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver. 
Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se 
estrapafar. 
Joaquim Beiju e o Quipes ainda foram na cozinha, cortar 
um de-comer, arranjar matula. Por essa volta, o jacaré mesmo 
combatia também, às vezes em que não estava cozinhando, e 
vinha atirar, da beira duma janela, com o Mijafogo. A noite 
breava própria; o mais escuro ia ser regulando em antes das dez 
horas, que quando depois podia subir um caco de lua. Aos 
poucos, foi dando um tão respeitável silêncio, não se atirava de 
parte nem de outra, a gente mesma ficava na cautela de não se 
fabricar rumor nenhum, de não se pautear sem necessidade. De 
noite, o clarão das pólvoras marca denúncia do lugar do atirador. 
– “Noite é p’ra surpresas de estratagemas, noite é de bicho no 
usável...” – o Alaripe baixo falou. O cearense bom: esse permanecia 
em tudo igual, com ele a gente desproduzia qualquer 
remorso, o brigar parava sendo obrigação de vivente, conciso 
dever de homem. Por uns assim, eu punia. Por uns, assim, eu 
devia de ser inteiro leal, eu mesmo. Mas, então, eu carecia de 
encostar Zé Bebelo, o espremer na franca fala. A que ele 
soubesse de minha lei: a que ele sem um aviso não se 
desgraçasse. Mesmo por causa da gente – porque Zé Bebelo era a 
perdição, mas também só ele podia ser a salvação nossa. Então, 
com ele eu ia falar, o quieto desafio. Adiantava? Aí não 
adiantasse. Mas, então, eu carecia de armar um poder, carecia de 
subir para cima daquele homem. Eu tinha de encher de medo as 
algibeiras de Zé Bebelo. Só isso era o que valia. 
Contra o quanto, ele lavorava em firmes, pelo mais 
pensável, não descumpria de praxe nenhuma. Determinou o 
pessoal, para sono e sentinela, revezados. Onde perto de cada um 
dormindo, um parava acordado. Outros rondavam. Zé Bebelo, 
mesmo, ele não dormia? Sendo esse o segredo dele. Dava o ar de 
querer saber o mundo universo, administrava. Ao quase, que. A 
água para a serventia da casa vinha num rego, que beirava a cozinha, 
encostado, no lateral, descia e passava ainda por baixo da 
coberta. A gente podia encher as latas, sem arrisco. – “O que eles 
hão-de, é de demover o rego, lá em riba, botar fácil a gente a 
seco...” – Zé Bebelo ponderou. Mandou reservar quantia repleta: 
as vasilhas achadas e procuradas. Fizemos. Mas, de destorcerem 
o veio do rego, nunca que sucedeu aquilo. Até o derradeiro final, 
correu água bastante, todo o tempo, fresca abarulhava. Ao se 
fossem também empeçonhar o de beber? Toleima. Aonde iam 
ter sortimento de veneno, para águas correntes corromper? 
Deus escritura só os livros-mestres. Na noite Zé Bebelo 
saiu, engatinhando por mais escuro, e revestido com as roupas 
bem pretas que arranjou, dum e doutro. Ele devia de ter ido até 
longe, como rato em beira de paiol – que coruja come. Queria 
era farejar com os olhos o reprofundo. Voltou, aí deu ordem de 
outra coisa: que todos aproveitassem o sem-lua para suas 
necessidades boçais, aquelas tapadas estâncias. A gente ia, num 
vão de buracos, da banda das senzalas. Assim Zé Bebelo 
instruiu; e se virou para mim. – “Inimigo que faz igual 
numeração, ou menor do que a nossa. 
Por via disso é que não tomam coragem de dar assalto, e é 
também que eles não conhecem o interior desta boa casa...” 
Falou o tanto, comigo. Por que era que ele me escolhia, para os 
sussurros segredar? Me achava comparsa? – “... Os beócios, sem 
idéias... Não chegam a ser contrários para mim!” – ele muxoxou, 
até desapontado. A modo que eu, em Zé Bebelo, quase que tinha 
perdido toda minha fiança. A amizade dele eu para longe de mim 
já encostava – porquanto que, por mão minha, no incerto, ele 
podia ainda vir a precisar de ser matado. Eu estava em claro. Eu 
tinha preenchido aqueles bilhetes e cartas, amanuense, os 
linguados de papel – eu compartia as culpas. A invencionice de 
ambicioneiro. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem comigo, porque tu é 
ponteiro bom, fica de estado-maior meu...” – ele avolumou. Me 
inteirei. Ali, era a vez. 
Ali era a alçada para eu fazer e falar o que já disse, que eu 
estava com essa razão na cabeça. Se tanto, pensei: “É a minha 
viveza...” Pelo que repontei: 
– “É. Eu vou, com o senhor, e o urucuiano Salústio vem 
comigo. Vou com o senhor, e esse urucuiano Salústio vem 
comigo, mas é na hora da situação... Aí, na hora horinha, estou 
junto perto, para ver. A para ver como é, que será vai ser... O que 
será vai ser ou vai não ser...” – alastrei, no mau falar, no 
gaguejável. Senhor sabe por quê? Só porque ele me mirou, ainda 
mais mor, arrepentinamente, e eu a meio me estarreci – apeado, 
goro. Apatetado? Nem não sei. Tive medo não. Só que 
abaixaram meus excessos de coragem, só como um fogo se 
sopita. Todo fiquei outra vez normal demais; o que eu não 
queria. Tive medo não. Tive moleza, melindre. Agüentei não falar 
adiante. 
Zé Bebelo luziu, ele foi de rajada: 
– “Ao silêncio, Riobaldo Tatarana! Eh, eu sou o Chefe!?...” 
Saiba o senhor – lá como se diz – no vertiginosamente: 
avistei meus perigos. Avistei, como os olhos fechei, 
desvislumbrado. Aí como as pernas queriam estremecer para 
amolecer. Aí eu não me formava pessoa para enfrentar a chefia 
de Zé Bebelo? 
Agora, pois. Mas agora não tinha outro jeito. Ah? Mas, aí, 
nem sei, eu não estava mais aceitando os olhos de Zé Bebelo me 
olhar. “No mundo não tem Zé Bebelo nenhum... Existiu, mas 
não existe... Nem nunca existiu... Tem esse chefe nenhum... Tem 
criatura nem visagem nenhuma com essa parecença presente 
nem com esse nome...” – eu estabeleci, em mansas idéias. Aceitei 
os olhos dele não, agarrei de olhar só para um lugarzinho, 
naquele peito, pinta de lugar, titiquinha de lugar – aonde se podia 
cravar certeira bala de arma, na veia grossa do coração... Imaginar 
isso, no curto. Nada mais nada. Tive medo não. Só aquele 
lugarzinho mortal. Teso olhei, tão docemente. Sentei em cima de 
um morro de grandes calmas? Eu estava estando. Até, quando 
minha tosse ouvi; depois ouvi minha voz, que falando a dável 
resposta: 
– “Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou 
nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a 
coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma 
nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De 
nada. De nada... De nada...” 
Ao dito, falei; por quê? Mas Zé Bebelo me ouviu, 
inteiramente. As surpresas. Ele expôs uma desconfiança 
perturbada. Esticou o beiço. Bateu três vezes com a cabeça. Ele 
não tinha medo? Tinha as inquietações. Sei disso, soube, logo. 
Assim eu tinha acertado. Zé Bebelo então se riu, modo generoso. 
Adiantava? Ainda falou: – “Ah, qual, Tatarana. Tu vale o melhor. 
Tu é meu homem!...” – para alargamentos. Murmurei o sosso de 
coisa, o que nem era palavras. – “A bem, vamos animar esses 
rapazes...” – amém, ele disse, espetaculava. Daí desapartamos, eu 
para a cozinha, ele para a varanda. O que eu tinha feito? Não por 
saber – mas somente pelo querer – eu tinha marcado. Agora, ele 
ia pensar em mim, mas meditado muito. Achei. Agora, ele ia não 
poder trair, simples, mas havia de raciocinar as vezes, dar de 
rédea para trás – do avançado para traição. A certa graça, a 
situação dele, aparvada. Eu estava com o bom jogo. 
Aquela noite, meu quinhão dormi; no amiudar-do-galo o 
tiroteio já principiava renovado. Mas só os tiros espaços – para 
não esperdiçar, e render – porque eles estavam procedendo 
como nós, o igual imediato. A guerra fina caprichada, bordada 
em bastidor. Fui ver o madrugar a manhã: uma brancura. O 
senhor sabe: no levante, clareou o céu com o sol das barras. Mas 
o curralão já estava pendurado de urubus, os usos como eles 
viajam de todas as partes, urubu, passarão dos distúrbios. E, 
quando dava que rondava o vento, o curral fedia. Mas – 
perdoando Deus – tresandava mais era dentro da casa, mesmo 
sendo enorme: os companheiros falecidos. Se taramelou o 
quarto, por tapar a soleira da porta se forrava com algodão em 
rama e aniagens. O fedor revinha surgindo sempre, traspassava. 
A tanto, depois, a gente ouviu miados. – “Sape! O gato está lá...” 
– algum gritou. Ah, era o gato, que sim. Saiu, soltado, 
surripiadamente, foi tornar a se ocultar debaixo dum catre, 
noutro cômodo. Carecia de se oferecer a ele de comer, que 
quem bem-trata gato consegue boa-sorte. No menos, na saladefora, 
ocupei meu oficio, de mosquetear. A ganho, conforme as 
vazas, mais de um homem derrubei, que rolou, em réu, sei que 
defini. Avistante que os urubus já destemiam o se combater dos 
tiros, assaz eles baixavam, para o chão do curral, rebicavam 
grosso, depois paravam às filas, na cerca, acomodados acucados. 
Quando pulavam de asas, abanassem aquele fedor. O dia 
andando, a catinga no ar aumenta. Aí eu não queria provar de 
sal, roi farinha seca, com punhado de rapadura. Na casa toda, 
como que não se achava um litro de cal, um caneco de creolina, 
por vil remédio. Morreu o Quim Pidão, se botou o corpo por 
cima dum banco na sala, provisório: ninguém não queria mais 
coragem de ir abrir com presteza o quarto dos defuntos. O dia 
envelhecia. A roubo, estive perto de Diadorim, quase só para 
espiar, quase sem a conversação. De ver Diadorim, com agrado, 
minha tenência pegava a se enfraquecer. Outros receios eu 
concebendo. O prazo que ali assim íamos ter de tolerar, no 
carrego da guerra. A gente até carecesse, no derradeiro durar, de 
comer somente os couros assados – conforme o caso terrível de 
Dutra Cunha, de um diabo, que, em sua fazenda do Canindé, 
resistiu ao cerco de Cosme de Andrade e Olivino Oliviano. Esse 
Dutra Cunha era o homem de um olho só. Zé Bebelo bem sabia 
a história dele. Agora, de Zé Bebelo eu risse. Montante de 
outras coisas ainda podiam suceder, de desde a madrugadinha 
até à viração da tarde? Mas ninguém falava em Joaquim Beiju e 
no Quipes. A uma hora dessas, ou eles já estavam arriados pelo 
inimigo, ou então, traquejando nos caminhos, a rumo de 
cidades. Assim – entardecer, anoitecer – galopassem em algum 
cavalo arranjado nos campos, e o tempo da gente eles 
estendiam. Será que haviam de vir os soldados? Aquele outro 
dia, morreu mais o Acerejo. A tudo, o cheiro de morte velha. – 
“O mau-fétido que vai terminar mazelando a gente...” – sempre 
um dizer. A dita morrinha, até a água que se bebia pegava na 
boca da gente, e rançava. A Casa dos Tucanos agüentava as 
batalhas, aquela casa tão vasta em grande, com dez janelas por 
banda, e aprofundada até em pedras de piçarrão a cava dos 
alicerces. A Casa acho que falava um falar – resposta ao 
assovioso – a quando um tiro estrala em dois, dois. De 
embiricica, entrantes as balas vinham, puxavam um fio de ar. 
Eh, lascassem! Mas os companheiros por conta à-toa riam, não 
acrescentavam cangalha aos pesares. Mesmo, quando se 
sobrecarregava um rir, os que estavam mais longe mandavam 
saber o porquê, ou gritavam por perguntar, em empenho de 
combate. A resto, um Zé Vital deu ataque: o qual era um acesso 
sacramentado de feioso, principiando depois que ele se queixava 
de sentir o nariz quente, ele mesmo já sabia a data – e daí 
proclamava um grito de porco com frio, e caía estatelado no 
chão, duro como um cano de arma; mas atazanava batendo com 
os braços e pernas, querendo às ânsias coisa ou criatura em que 
se agarrar, o onde esbugalhava os olhos, a boca aspumada, 
escumando. Se disse: – “Isto é doença velha pertencida, isto não 
é fato de guerra...” Acesso que passava a estado meio 
semimorto, num vago – pois deitaram o Zé Vital numa canastra 
de couro. Ao para a tarde, para a noite. Aí tudo navegava. A 
Casa estava se enchendo de moscas, dessas de enterro, as 
produzidas. A cada que cada, elas presumiam o sujo, em penca 
maior, pretejavam. Para as coisas que há de pior, a gente não 
alcança fechar as portas. Desdenhei Diadorim. De ver 
Diadorim, que, em febre de acertar e executar, não tomava 
consigo muita cautela, só forcejava por vingança – punições 
maravilhosas. Diadorim, mesmo, a cara muito branca, de da 
alma não se reconhecer, os olhos rajados de vermelho, o 
encovo. Aquilo era o crer da guerra. Por que causa? Porque Joca 
Ramiro constava de assassinado morrido? A razão normal de 
coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja. Arreneguei do que 
é a força – e que a gente não sabe – assombros da noite. A 
minha terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é 
sem lugar. A Bigri, mulher minha mãe, não tinha me rogado 
praga. Alta manhã – em tudo repetido o igual: o cantar do 
rifleio, afora o feder ruim dos mortos e cavalos, e a moscaria, 
que se esparramava. Mesmo com a minha vontade toda de paz e 
descanso, eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquela 
diversidade, despropósitos, com a morte da banda da mão 
esquerda e da banda da mão direita, com a morte nova em 
minha frente, eu senhor de certeza nenhuma. Sem Otacília, 
minha noiva, que era para ser dona de tantos territórios 
agrícolas e adadas pastagens, com tantas vertentes e veredas, 
formosura dos buritizais. O que era isso, que a desordem da 
vida podia sempre mais do que a gente? Adjaz que me 
aconformar com aquilo eu não queria, descido na inferneira. 
Carecia de que tudo esbarrasse, momental meu, para se ter um 
recomeço. E isso era. Pela última vez, pelas últimas. Eu queria 
minha vida própria, por meu querer governada. A tristeza, por 
Diadorim: que o ódio dele, no fatal, por uma desforra, parecia 
até ódio de gente velha – sem a pele do olho. Diadorim carecia 
do sangue do Hermógenes e do Ricardão, por via. Dois rios 
diferentes – era o que nós dois atravessávamos? Do lado de 
Diadorim restei, um tanto, no afã de escopetear. O inimigo 
nunca se via, nem bem o malmal, na fumacinha expelida, de 
cada uma pólvora. Arte, artimanha: que agora eles decerto 
andavam disfarçados de mbaiá – o senhor sabe – isto é, 
revestidos com moitas verdes e folhagens. Adequado que, 
embaiados assim, sempre escapavam muito de nosso ver e 
mirar. Ah, mas, deles, tiros vinham, bala estripitriz, e o trapuz de 
nossas telhas se despencando. A mãe morte. Quem devia mais, 
esse morria? – “Õ xente! Não é que pegaram em mim, e eu  
estou passando, estou ficando cegado?...” – exclamou o Evaristo 
Caitité, quando descuidou a meia-banda e levou em si uma carga 
total. Ele já estava sem jogo nenhum no corpo, as partes das 
pernas se esfriavam. Antes quase rindo se acabou; ficou tão de 
olhos. – “O que é que ele vê? Vê a vitória!...” – Zé Bebelo se 
cresceu no dizer. A vitória e os urubus, que a farto comiam, e o 
Manuelzinho-da-Croa, meu cavalinho pedrês, que eu nele não ia 
poder nunca mais amontar. Assustava era o alopro dos 
companheiros, que não se sujeitavam mais de dormir, estavam 
pertencidos perturbados. A caso de se ter mão na nervosia deles, 
que queriam dar saída e lanços, avançar no ar. Doidagem desses 
comuns repentes, o desfazer do ajuntado. – “A firmeza, meus 
filhos. Fôlego e paciência, a gente sempre tem – é só requerer e 
repuxar, mais um dedo e outro dedo dobrado...” – Zé Bebelo 
media os modos de valer. Assim sendo, agora, só o remedeio, 
com as esperanças, extraordinárias. A um jeito de se escapar 
dali, a gente, a salvos? Zé Bebelo era a única possibilidade para 
isso, como constante pensava e repensava, obrava. E eu cri. Zé 
Bebelo, que gostava sempre de deixar primeiro tudo piorar bem, 
no complicado. Um gole de cachaça me deu bom conselho. Sem 
a vinda dos soldados – se viessem – a gente não estava perdidos? 
Zé Bebelo não era quem tinha chamado os soldados? Ah, mas, 
agora, Zé Bebelo não ia mais trair, não ia – e isso só por minha 
causa. Zé Bebelo carecia de rédeas de um outro diverso poder e 
forte sentir, que tomasse conta, desse rumo a ele. Assim eu 
estava sendo. Eu sabia. Zé Bebelo, mesmo nos relances de me 
olhar, fingia não conhecer minha vigiação, afetava. Mas ele se 
estreitava em meus palpos, conscienciado. Agora, ele tinha de 
especular, de afinar a cabeça, para o trabalho de imaginar maior, 
achar alguma outra invenção – para resolver o final com acerto 
para a vitória de nós todos – sem traição nem airagem. A tanto, 
cri, acreditado. Sabia que Zé Bebelo era muito capaz. Só não ri. 
“Ao menos outro deles, dos Hermógenes, quero ver se resgato 
de abater, até vir o sereno do anoitecido...” – eu meditei. Não 
deu. Não pude. O que houve, o conseguinte, foi que Zé Bebelo 
pegou em meu ombro. Ele mudou de lugar, e pôs a cara no meio 
da luz. – “Aí, está ouvindo, Tatarana Riobaldo, está ouvindo?” – 
ele disse, com um sorriso de tão grandes brilhos, que não era de 
ruindade e nem de bondade. Aquilo foi num dia, devia de estar 
sendo por volta de umas três da tarde, pelo rumo do sol. Ouvi! 
Mas, então, a soldadesca tinha vindo, alcançada, estavam 
chegando? Era. Era! Remexendo um rebuliço, de nós todos, 
mesmo porque os mais não conheciam aquele motivo, de nada 
não soubessem o tencionado. Os praças? O tiroteio deles, 
pegando os Hermógenes de supetão, surpresa bruta, de 
retaguarda. Os tiros, que eram: ... a bala, bala, bala... bala, bala, bala... 
a bala: bá!... – desfechavam com metralhadora. Aí 
arrejarrajava, feito um capitão de vento. Até destroçavam 
também nas custas da Casa? – “Apre, meninos, faz mal não. A 
vantagem do valente é o silêncio do rumor...” – Zé Bebelo 
sentenciava. Zé Bebelo trepava em altas serras. Duvidava de 
nada. Que vencia! Quem vence, é custoso não ficar com a cara 
de demônio. 
Dele de perto não saí, a atenção e ordem ele recomendava. 
O cano de meu rifle era tutor dele? Antes de minha hora, no 
que ele mandasse opor e falasse eu não podia basear dúvidas. 
Mas, desde vez, aquilo a vir gastava as minhas forças. Ali – sem 
a vontade, mas por mais do que todos saber – eu estava sendo o 
segundo. Andando que Zé Bebelo falecesse ou trastejasse, eu 
tinha de tomar assumida a chefia, e mandar e comandar? Outro 
fosse – eu não; Jesus e guia! É baixo, os homens não iam me 
obedecer; nem de me entender eles não eram capazes. Capaz de 
me entender e de me obedecer, nos casos, só mesmo Zé Bebelo. 
A jus – pensei – Zé Bebelo, somente, era que podia ser o meu 
segundo. Estúrdio, isso, nem eu não sabendo bem por que, mas 
era preciso. Era; eu o motivo não sabendo. Se fiz de saber, foi 
pior. O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos 
dos ouvidos e dos olhos? Mas as pernas não estavam. Ah, fiquei 
de angústias. O medo resiste por si, em muitas formas. Só o que 
restava para mim, para me espiritar – era eu ser tudo o que fosse 
para eu ser, no tempo da quelas horas. Minha mão, meu rifle. As 
coisas que eu tinha de ensinar à minha inteligência. 
Agora, o que era que se esperava? Só Zé Bebelo decerto 
podia responder, mas ele não dava senha de mudança. Onde o 
normal. Aí já se via o dia quase em fim, com as cores do sol. 
Voavam uns guaxes. Dos soldados e dos judas, quase que não se 
ouvia empipoco de arma, só os tiros salteados, a cá e lá, como se 
escasso quisessem briga. A gente sobrossosa, nesse ensino de 
onça, traiçoeiros todos. Astúcias que manobrando em esconso 
deviam de estar, para trás e para os lados, pelo jeito melhor de 
pegarem o encoberto dos lugares, querendo enrolar os outros, 
para o remate de dar bote. – “Soldado pede é cautela, e o dobrosoldo...” 
– acho que um disse. Aquela era a ocasião mais 
arriscada. Ao que jagunço é isto – o senhor ponha letreiro. Ao 
encosto no rifle e apreparo nas patronas – isso era o que bastava. 
Nenhum dos companheiros estava desinquieto, nem ralava 
apreensão. Nenhum conversava precisando de saber a maneira 
de escapulir vivos dali, da Fazenda dos Tucanos. Com a chegada 
da soldadesca, o que parecia moagem era para eles era festa. 
Assim uns gritaram feito araras machas. Gente! Feito meninos. 
Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles 
todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no 
meio executando um erro. Tudo receei. Eles não pensavam. Zé 
Bebelo, esse raciocinava o tempo inteiro, mas na regra do 
prático. E eu? Vi a morte com muitas caras. Sozinho estive – o 
senhor saiba. Mas, nisso, conforme o acontecido exato, uma 
coisa muito inesperada se deu. Da banda do mato, de repente, 
por cima das moitas de lobolobo, alguém levantou um pano 
branco, na ponta de uma vara. 
A gente não tinha licença de abrir fogo no alvo daquele 
trapo. Apraz que a gente ia consentir em negócio com os judas? 
Aqueles, para mim, guardavama definitiva marca, e só o que 
podiam trazer era a maldição. Mas Zé Bebelo, maneiro em 
presteza, já tinha amarrado um grande lenço branco na ponta de 
um rifle, e mandou que o Mão-de-Lixa aquilo erguesse e 
sacudisse no ar. – “A regra que é regra!” – Zé Bebelo disse. – “A 
solenidade de embaixador sempre se tem de consentir; até para 
herege, até para bugre...” Aprovavam, os outros, deram razão. 
Achei que estavam com a vontade de saber que notícias eram, o 
que vir vinha. Com o que mais admirei: a mensagem daqueles 
panos brancos, de lá e de cá, durou um certo tempo. Como tudo 
nesta vida carece de se acertar direito. 
Depois, um sujeito apareceu, do capim, e veio, devia de ter 
passado por um rombo feito na cerca. A certa distância estava, 
no eirado, e um dos nossos disse, reconhecendo: – “Ah, é o 
Rodrigues Peludo, homem devoto do Ricardão...” Que era, que 
era – os outros companheiros concordaram. Atrás desse, meio 
engatinhando também, surgiu mais um: – “É o Lacrau!” E o 
Rodrigues Peludo virava para trás, falava qualquer coisa, parecia 
que estava mandando o Lacrau ir s’embora. Mas o Lacrau 
teimava, seguia acompanhando o outro. – “Xente, dond’ é que 
está se comparecendo esse Lacrau? Faz tempo que não se tinha 
ciência nenhuma dele...” O qual era dos Gerais do Bolor, terra 
jequitinhonha, e homem de certa valia. Caboclo claro. E que, ele 
sendo réu, tinha esfaqueado na sala de júri um promotor, em 
outroras. De ver os dois, perto, assim pessoas, escada acima, e 
presentes em pé, diante da gente, nas decididas condições, achei 
muita esquisitice. Rodrigues Peludo levantou os olhos, feito se a 
gente estivesse no céu, e saudou normal. Daí disse: 
– “Seô Chefe...” 
– “Homem, te vira de costas!” – Zé Bebelo regrou. 
No assim simples eles obedeceram, tanto um, tanto o 
outro. Mas estavam muito armados. Momentos que foram, eu 
louvei a coragem calma daqueles dois, que de qualquer longe 
recanto um soldado talvez estivesse em poder de derrubar por 
belprazer. Porque os soldados não pertenciam nessa cerimônia. 
Afiguro o que pensei. 
E Zé Bebelo perguntou, impondo ordem de resposta: que 
mandatela eles traziam? Do lado meu, o Diodolfo chiava boca 
num dente, conforme sestro dele, e o José Gervásio sussurrou: – 
“Tramóia...” Mas Zé Bebelo regia tudo, mão em revólver. Um 
homem falar seu recado, de costas, no meio dos contrários, na 
boca de tantas armas – o senhor já presenciou essas 
circunstâncias? Assim o Rodrigues Peludo deu conta, sem rasgo 
de tremor na voz: 
– “Com sua licença dada, e nos usos, estou trazendo estas 
palavras, Seô Chefe, que para repetir ao senhor fui mandado: – 
Que, em vistas desses soldados, e do mais, que é contra todos, se 
não era mais aproveitável, para uma parte e outra, de se fazer 
trato de paz, por uns tempos... E por essa oferta é que venho, 
por ordens. Que – se serve, ou valor tem, o dito – pergunta faço; 
e se o senhor há de estar ou não de acordo, me dando a resposta 
que queira dar, para eu levar para os meus chefes...” 
– “Que chefes?” – Zé Bebelo indagou, sem tom de 
nenhuma malícia. Rodrigues Peludo demorou um ponto, fazendo 
menção de virar o rosto, mas o que deixou em tempo de fazer. E 
contestou: 
– “Nhô Ricardão. E seô Hermógenes...” – “E eles então 
estão querendo paz?” 
– “Estão propondo um acordo correto...” 
Em boa distância, do mato do grotal, estralejou um tiro, 
que era de fuzil. E uns outros, muito estampidos. O que aquilo 
me constou era que era falta de respeito. Tiros que não beiravam 
por aqui. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo disse: 
– “Homem, vocês podem abaixar o corpo.” 
Rodrigues Peludo, sempre de costas, se agachou, 
depositou o rifle no chão; o Lacrau meio ajoelhado ficou. Agora 
eles estavam entre trincheiras. Agora a roda nossa, ajuntados os 
muitos companheiros brabos, com a bafagem da boa cachaça: o 
Marruaz que representou a dedo o sino-salomão no peito, no 
rumo do coração; o Preto Mangaba, que, mudando de estar, 
esbarrou em mim – do que me lembro e sei, porque doeu em 
meu braço; e Diodolfo cuspiu forte – soluçou dos estômagos. E 
o Fafáfa, repontante: – “Em paz, quem é que devolve vida em 
nossos cavalos?!” Aí o Moçambicão, atrás de mim, me 
ressoprou, como um boi reconhecendo minhas costas. Mas 
minha mão, por si, pegou a mão de Diadorim, eu nem virei a 
cara, aquela mão é que merecia todo entendimento. Mão assim 
apartada de tudo, nela um suave de ser era que me pertencia, um 
calor, a coisa macia somente. São as palavras? Mas aí espiei para 
Diadorim, e ele despertou do que tinha se esquecido, deixado, 
de sua mão, que ele retirou da minha outra vez, quase num 
repelão de repugno. E ele estava sombrio, os olhos riscados, 
sombrio em sarro de velhas raivas, descabelado de vento. 
Demediu minha idéia: o ódio – é a gente se lembrar do que não 
deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente. – “O 
palavreado, destes!” – Diadorim chiou, por detrás dos dentes. 
Diadorim queria sangues fora de veias. E eu não concordava 
com nenhuma tristeza. Só remontei um pasmo e um consolo 
expedito; porque a guerra era o constante mexer do sertão, e 
como com o vento da seca é que as árvores se entortam mais. 
Mas, pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira 
d’água, esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre  
de correr. E Alaripe buliu no bissaco, estava recheando de novo 
as suas cartucheiras. Mas isto tudo, que conto ao senhor, se 
compartiu de caber em pouquinhos minutos instantes. E do 
modo de um prosseguir sem partes. Porque Zé Bebelo, as mãos 
na cinta, se encurtava frio em siso, feito uma a cobra. O que 
disse, o quanto: – “Homem, e o que mais?” 
– “Era tudo o que eu já falei, Chefe, seô. Ao que peço 
vossa resposta, para conduzir. E em caso de algum acordo, que é 
de bom respeito, as ordens tenho, para com meu juramento 
fechar trato...” – foi a resposta de Rodrigues Peludo, com a clara 
voz de quem está mais cumprindo do que querendo. Até inveja 
eu tive dele: porque, para viver um punhado completo, só 
mesmo em instâncias assim. 
– “Antes bem” – Zé Bebelo glosou, – “quem é que está 
rodeando e vexando os outros, e atacando?” 
– “O em usos... – é a gente... Isto é...” – o Rodrigues 
Peludo compôs o confessar. 
– “Ah. Isto era. Ah, e então?!” 
– “Ao que vim ajustar é propostas. Ao para salvo e lucro 
das nulas partes. As ambas. Caso se Ossa Seoria se concorde...” 
Somenos aprumo, nem o tom. Mas, de tudo seja, também, 
o que gravei, aí, desse Rodrigues Peludo, foi um ter-tem de 
existidas lealdades. Assim que, inimigo, persistia só inimigo, 
surunganga; mas enxuto e comparado, contra-homem sem o 
desleixo de si. E que podia conceber sua outra razão, também. 
Assim que, então, os de lá – os judas – não deviam de ser somente 
os cachorros endoidecidos; mas, em tanto, pessoas, 
feito nós, jagunços em situação. Revés – que, por resgate da 
morte de J oca Ramiro, a terrível que fosse, agora se ia gastar 
o tempo inteiro em guerras e guerras, morrendo se matando, 
aos cinco, aos seis, aos dez, os homens todos mais valentes do 
sertão? Uma poeira dessa dúvida empoou minha idéia – como 
a areia que a mais fininha há: que é a que o rio Urucuia rola 
dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno. 
Ali, dos meus companheiros, tantos mortos. Acaso, que 
companheiros eram; e agora o que se depositava deles era o 
assunto de lembranças, e aquele amassado e envelhecido 
feder, que às horas repontava. Constado que produziam isso, 
mesmo estando amontoados no cômodo soturno, entrapadas 
as frestas da porta, e cá fora se torrando couros com folhas 
polvreadas. Mediante os estoques desse mau-cheiro, por certo 
Rodrigues Peludo e o Lacrau iam orçar a boa conta de nossos 
mortos, afora os feridos, leves e graves. Mas Zé Bebelo anteteve 
de mandar chamar Marcelino Pampa, João Concliz e 
muitos diversos outros, e o apinho e apessoar, nosso, ombros 
em ombros, aprazava efeito de bando significado, numeroso. 
Com os vivos é que a gente esconde os mortos. Aqueles 
mortos – o Jósio, entortado prestes, com pedaços de sangue 
pendurados do nariz e dos ouvidos; o Acrísio, repousado 
numa agência quieta, que ele não havia de em vida; o Quim 
Pidão, no pormiúdo de honesto, que nunca nem tinha 
enxergado tremde-ferro, volta-e-outra a perguntar como seria; 
e Evaristo Caitité, com os altos olhos afirmados, esse sempre 
sido prazenteiro no meio de todos. Tudo por culpa de quem? 
Dos malguardos do sertão. Ali ninguém não tinha mãe? 
Redigo ao senhor: quando o raio, quando arraso, o Gerais responde 
com esses urros. A culpa daquele Rodrigues Peludo, 
por um exemplo? Desmenti. O ódio de Diadorim forjava as 
formas do falso. Odio a se mexer, em certo e justo, para ser, 
era o meu; mas, na dita ocasião, eu daquilo sabia só a 
ignorância. À-toa, até, que estava relembrando o Hermógenes. 
Assim, pensando no Hermógenes – só por precisão de com 
alguém me comparar. E, com Zé Bebelo, eu me comparar, 
mais eu não podia. Agora, Zé Bebelo, eu – eu, mesmo eu – era 
quem estava botando debaixo de julgamento. Isso ele 
soubesse? Ah, naquela cabeça grande, o que Zé Bebelo 
pensava era o útil, o seco, e a pressa. De curto ponto, ele 
disse, concedendo um foral: 
– “Resolvo. Sendo em séria fiança, eu aceito o intervalo 
de armas, com o prazo demarcado de três dias. De três dias: 
digo! Agora, homem, tu vai – remete isto ao que estiver o seu 
chefe, seja lá quem.” 
– “A vou...” – o Rodrigues Peludo se prometeu. 
– “Se sendo em séria fiança, então de lá um dê três tiros, 
pra o trato fechado. Assim assente para esta noite: no instinto 
em que a primeirinha estrela se frisar!” 
– “A vou.” 
O Rodrigues Peludo repuxava bandoleira do rifle e 
salvava saudação. Às vozes do ruído, reponho que nenhum de 
nós não sabendo se a decisão de Zé Bebelo era justa e 
convinhável, ninguém disse mote de dúvida nem de aprovo. 
Nisso, no olho do silêncio, ainda era só o que me prevalecia. 
Rodrigues Peludo botou o rifle no sovaco, já no jeito de que ia 
engatinhar descendo a escada. Mandava a vontade de um, 
sabente de si. Zé Bebelo mandava, ele tinha os feios olhos de 
todo pensar. A gente preenchia. Menos eu; isto é – eu 
resguardava meu talvez. 
Mas, aí, de abalo, o Lacrau, que tinha persistido quieto 
feito ouvindo santa-missa perto do altar, ele surge se viravirou, 
pelo repente, a traque disse: 
– “Aqui, eu, eu fico no meio de vós, meu Chefe! – a que 
vim para isto. Sou homem que sempre fui: do estado de Joca 
Ramiro – ele é o das próprias cores... Agora, meu braço 
ofereço, Chefe. A por tudo quanto, se sepreponha o senhor de 
me aceitar...” 
A acarra daquilo, tão exclamaste, a forte palavra. Assomo 
assim de frechar surpresa, a gente capistrou, grossamente, e 
sem fala. Tudo o que ele disse, o Lacrau se empinou em-pé. 
Onde mais, deixou o silêncio se perfazer da questão anterior – 
a suplicação, o concitado. O que era fato imponente, digo ao 
senhor; mire veja, mire veja. Ânimo nos ânimos! A quanto, 
semelhavelmente, esse Lacrau não se comportava sem 
consciência sisuda, no amor mais à-mão, para se segurar com 
trincheiras; mas, assim mesmo, a gente em aperto de cerco, ele 
tinha querido vir, para sócio. Alguém ficou como pasmado? 
Zé Bebelo, não. 
– “Aqui me praz, que te aceito, rapaz!” – Zé Bebelo 
deferiu. 
A guerra tem destas coisas, contar é que não é plausível. 
Mas, mente pouco, quem a verdade toda diz. Trás isso, o 
Rodrigues Peludo esbarrou, o instante, mas endurecendo a 
cabeça, para não se virar para espiar para o Lacrau. Em tanto 
que o Lacrau, meio mostrando o rifle, pronunciou: – “Estou 
na regra, tio mano, que na regra estou, como senhor de 
minhas ações, contra quem eu seja. E a carabina – porque 
sempre foi minha de posse, arma que de patrão não ganhei. 
Estou inteiro...” Ninguém respondeu palavra. Sendo que o 
Rodrigues Peludo deixou de contravir, e, puxando pelo sair 
assim, escorregou adiante o corpo, se foi. 
Numa roda-morta, se esperou, ré que de lá, da dobrada 
duma ladeirinha, os três tiros eles deram, somando o 
aprovado. A tanto, tresmente, também se respondeu 
desfechando. Aí, para a gente Zé Bebelo disse: – “Sou lá o 
maluco? Aqueles outros não têm a constância de observar, 
não merecem a palavra dada. O que fiz, foi encaminhar o que 
vamos pôr em obra. E aceitei nossa vitória!” 
Seja ou não se aquele negócio entendessem, os 
companheiros aprovavam. Até Diadorim. Seja Zé Bebelo 
levantava a idéia maior, os prezados ditos, uma idéia tão 
comprida. O teatral do mundo: um de estadela, os outros 
ensinados calados. Sempre sendo, em todo o caso, que Zé 
Bebelo me semiolhava espreitado avulso, sob receios e respeito. 
Só eu, afora ele, ali, misturava as matérias. Só eu era que guardava 
minha exata esperaçao, o que me engraçava. O que era que Zé 
Bebelo ia proceder, nas horas vespertinas, no posto-que? Do que 
ele tinha pensado e principiado – as tramóias de trair – ia poder 
largar, e achar feição para outro salvamento, agora, nessa conjunção? 
Mas, porém, não nego que eu, mesmo por estima, queria 
que ele bem acertasse na tarefa de meter seu siso, de remerecer. 
O raciocínio, que dele eu gostava, constante de admiração; e pela 
necessidade. Medonho e esquisito achei, que fosse para ter de 
matar completo Zé Bebelo. Como é que? Mas ele abria lugar 
demais, o perto demais, sobre papel que não era o pra ele, a meu 
parecer. Pelo que eu tinha precisão de me livrar, daquele movimento 
sem termo nem nenhumas outras ociosidades. O senhor 
me organiza? Saiba: essas coisas, eu pouco pensei, no lazer de um 
momento. 
– “Amigos, agora eu louvo e a todos gabo, cada um qual 
melhor. E então vamos voltados: papocar fogo, pra paga, até a 
noitinha se ilustrar!” – Zé Bebelo determinou, tão versado. A este 
ponto, que, por se possuir basta munição, a gente se prezasse de 
atirar, por sustos e estragos, primeiramente para o aviável do 
matinho dos pastos e da baixada, e dos morrotes cerradeiros, 
onde existiam uns valos. Com o que, no ablativo do mandado, 
Marcelino Pampa ia retornar para as senzalas, o Freitas Macho 
para a tulha, e para o engenho o Jõe Bexiguento, sobrenomeado 
“Alparcatas”. Mas Zé Bebelo reservou que eu estivesse com ele e 
mais Alaripe, por se pôr o Lacrau em conversa deposta. 
Onde o que o Lacrau teve para relatar era pouco, pouco. 
Deu razão das coisas perguntadas. Dizendo que o inimigo se 
formava em tanto de uns cem, mas a quanta parte deles de 
jagunços mal assentados, sem quilates; ainda aguardavam outra 
gente por vir, de refrescos, que decerto em pronto não viessem, 
por estorvo dos soldados. Nisso não sabia contar das pessoas 
nem dos maiores motivos do Hermógenes e do Ricardão, nem 
acerca da morte de loca Ramiro aumentava passagens mais do 
que as de todos já entendidas. Daí, no que Zé Bebelo e Alaripe se 
afastaram no corredor, ele Lacrau aliviado se gracejou de rosto, 
como falou: – “O esmarte homem que é este chefe nosso 
Zebebéo! Outro não vi, para espiritar na gente o pavor e a ação 
de acerto...” As agudezas. A vez da má verdade. 
Fomos. Fui. Para o recanto duma janela, nesse comenos. A 
pra efetuar fogo. A ordem não era-de? Desígnios esses, de Zé 
Bebelo. Sucinto em cada puxada de gatilho, relembrei o dito do 
Lacrau: que Zé Bebelo o que era. Sendo que uma criatura, só a 
presença, tira o leite do medo de outra. Aí, Diadorim mesmo, 
que era o mais corajoso, sabia tanto? O que o medo é: um 
produzido dentro da gente, um depositado; e que às horas se 
mexe, sacoleja, a gente pensa que é por causas: por isto ou por 
aquilo, coisas que só estão é fornecendo espelho. A vida é para 
esse sarro de medo se destruir; agunço sabe. Outros contam de 
outra maneira. 
A ordem de se jantar, o jacaré veio avisando. Comi a pura 
farinha. Tomei mais. – “Os soldados?” – era o que mais se 
perguntava. Tinham esbarrado tiroteio, a gente não escutava o 
costurar. Medido nas suas partes, o dia estava gastado; beirava o 
prazo da decisão. Excogitei – “Diadorim, esta noite, no começo 
da hora, você vem para perto, me assiste, comigo.” Mas 
Diadorim contradisse de querer saber que modos meus que 
eram, as tantas espécies. Ainda pensei no Alaripe. A ele me fiz. – 
“A de paga, amigo. Ora veja...” – o Alaripe divertido me achou. 
De qual deles, agora, eu ia cobrar e arrecadar? Acauã ou o Mãode-
Lixa, ou Diodolfo? Todos seguiam caminho de seus 
costumes; no novo não conseguiam de se nortear. Três tristes de 
mim! Ali eu era o indez? Noção eu nem acertava, de reger; eu 
não tinha o tato mestre, nem a confiança dos outros, nem o 
cabedal de um poder – os poderes normais para mover nos 
homens a minha vontade. Mesmo meu braço do ferimento, que 
já estava muito melhorado por si, aí tornou a doer, no injusto, em 
tanto que isto se passava. Adrede, no retorcer do vento, apurei o 
ruto de nossos cavalos, os ossos de feder, só a lástima. Será que 
eu tivesse por dever de peitar pessoas? Ah, nos curtos 
momentos, eu não ia explicar a eles coisas tão divagadas, e que 
podiam mesmo não vir a ter fundamento nenhum. Porque – eu 
digo ao senhor – eu mesmo duvidava. Tivesse de vigiar no 
estreito Zé Bebelo, atravessar o projeto dele se o caso fosse, que 
modo que eu ia enfrentar um homem assim? Ah, o julgamento 
no Sempre-Verde tinha sido relaxado em brando – para valer 
preços. Zé Bebelo, sozinho por si, em outro sobrecalor de 
regimento, servisse para governar os arrancos do sertão? “Não 
me importo... Não me importo...” – eu quis, com outras palavras 
tais. Ali eu não tinha risco. Ali alguém ia me chamar de Senhormeu-
muito-rei? Ali nada eu não era, só a quietação. Conto os 
extremos? Só esperei por Zé Bebelo: – o que ele ia achar de 
fazer, ufano de si, de suas proezas, malazarte. 
Deu comigo. – “Riobaldo, Tatarana...” Anda que me 
encarava, os sagazes olhos piscados. Aquele, me entendia; me 
temesse? – “Riobaldo, Tatarana, vem comigo, quero ver a 
opinião, sem sinal nem prova...” Ali me levou para uma janela da 
cozinha, de lá a grande espaço se tinha vista para o morro, com 
seus matos. Zé Bebelo pegou o caneco, que encheu no pote 
d’água. Também bebi. Assim escutei: ele falava comigo, com o 
efeito de uma amizade. 
– “Rapaz, você é um que aceita o matar ou morrer, simples 
igualmente, eu sei, você é desabusado na coragem melhor – que é 
a da valentia produzida...” 
Só mostrei meus ombros; seja que eu secundei. 
– “A tão bom: que é que eles agora vão fazer, os da banda 
contrária?” – aí ele indagou de mim. 
– “Ora... O que não sei, e saber quero, é – a gente ; o que 
é que a gente agora vai fazer?” – perguntei para cima. Outro tal, 
repontei: – “Estou em claro. E estou em dúvida. Todo tempo 
me gasta...” – isto assim dito. 
Só que Zé Bebelo queria não ouvir, a seu seguro: 
– “Te põe no lugar. Hem? O que eles fazem é que, a estas 
horas, estão no desembargar, para aquele morro, que é aonde 
soldados não apertam cerco. De lá foram por esse sul abaixo, via 
torta; de madruga já por lá, no Buriti-Alegre, que foram surgir, 
escrevo. Agora, hem, maximé? – e os soldados? Andam tomando 
contas daí, que são lugares rededores, salvante a sapata do morro, 
e dela os pertos – a cava –, porque lá, conforme a boa regra de 
razão, paravam com os tiros sobre si. Oh, se sabe!” 
Noves e nada eu não dissesse. 
– “A bem. Ã e nós?” – Zé Bebelo tornou a indagar. 
A resposta não dei. Aquilo tudo eu estava pondo de 
remissa. 
– “Ah, tempo de partida! A gente, nós, vamos é rente por 
essa cava, Riobaldo, meu filho. Sem tardada-porque daqui a pois 
sai é a lua, declaradamente...” 
Ao que, já se estava no ponto. Anoitecido. A uma estrela se 
repicava, nos pretos altos, o que vi em virtude. A estrelinha, 
lume, lume. Assim – quem era que tinha podido mais? Zé 
Bebelo, ou eu? Será, quem era que tinha vencido? 
Quite com isso, no cumprir, entreguei os destinos. 
O truztruz. Com pouco, nesse passo, os todos homens se 
apessoando, no corpo daquele corredor – as fileiras em mexemexe 
desde a sala-defora até à cozinha, sobre mais entre os 
conspirados silêncios, os movimentos com energias. Arte e tanto, 
Zé Bebelo expunha o que recomendava. Sempre uma ou outra 
lamparina se acendeu, para os companheiros empalidecidos. 
Agora a gente ia romper a pé, sem os recursos, dava dó era a 
quantia de munição de se largar ali, no se pôr em salvo. Assaz, 
então, tudo o que possível se encheu, de balas e caixas – os 
bornais e capangas, patronas e cartucheiras. Mas não bastava. A 
ser que, daí, um inventou uma fronha de cama: a que, presada 
com correia ou corda, para tiracol, concabia tiros em boa dose; e 
muitos assim aproveitavam, logo não restou fronha a dispor. 
Mesmo, a alguma matula, também, se devia, por garantir. Desde 
aí, no concorrer, se saía por uma porta. O quanto a noite se 
atravava de bom grosso. Adiante primeiro foram mandados João 
Concliz, Moçambicão e Suzarte, para reconhecerem se estava 
limpo o caminho, rumo de fuga, sem o estorvável. Ponto que os 
poucos feridos, que havendo, se queixavam em condições, 
mesmo o Nicolau, que se escorava no rifle e às vezes se retardava. 
Só ficando na Casa os mortos, que não careciam de se rezar a 
eles adeus, os soldados amanhã que viessem, que enterrassem. 
Soformamos diversos golpes, acho que cinco, Diadorim e eu 
entramos no derradeiro, com o comando do próprio Zé Bebelo; 
e com o Acauã, o Fafafa, Alaripe e Sesfredo, que acompanhavam 
comigo. Saíram os de primeiramente, iam um ante outro – como 
um rio a buscar baixo; ou um cão, cão. A gente demorava. 
Aquela cozinha grande, no cabo do negócio, muito aprisionava, 
de sobreleve; e contei os companheiros, as respirações. Saíram 
outros e outros. Dos dianteiros, nem se percebia rumor. Toda a 
hora eu esperava um tiro e um grito de alto-lá-o-rei! Mas era só o 
tremer daquela paz em proporção. Admirei Zé Bebelo. A vez 
nossa chegada, ali o acostumar os olhos com o outro mudar. 
Abaixamos, e saímos também. Semoveu-se. 
Livrados! No escuso, o tudo ajudando, fizemos passagem, 
avante mais. Tempo que andamos, contracalados, soprando o 
sangue para se esfriar; até que se cobrou veras de perigo não 
haver, no regozijo de poupados de qualquer espreita ou 
agredimento. Se esbarrou, para ar, um sueto de uns momentos. – 
“Não é que o gato ficou lá...” – um, risonho, falou. – “Ah, 
demais. A lá é a Casa...” – outro se pôs. Aquela à-morte fazendagrande 
dos Tucanos. Vai, eu, o cheiro fartado, bom, de folhas 
folhagens e do capim do campo, enunciou em meu lembrar o 
mau-cheiro dos defuntos, que agora próprio no meu nariz eu 
nem não aventava mais. E Zé Bebelo, segredando comigo, 
espiou para trás, observou assim, pegando na minha mão: – 
“Riobaldo, escuta, botei fora minha ocasião última de engordar 
com o Governo e ganhar galardão na política...” Era verdade, e 
eu limpei o haver: ele estava pegando na mão do meu caráter. Aí, 
aclarava – era o fornido crescente – o azeite da lua. Andávamos. 
Saiba o senhor, pois saiba: no meio daquele luar, me lembrei de 
Nossa Senhora. 
A de entre, entramos, pela esquerda e rumo do norte. 
Desde o depois, o do poente mesmo. Com foras e auroras, 
estávamos outra vez no público do campo. Antes da manhã, 
agora se passava a Vereda-Grande, no Vaudos-Macacos. Ao que, 
em rompendo a luz toda da manhã, se chegou no sítio dum 
Dodó Ferreira, onde a gente bebeu leite e os meus olhos 
pulavam nas árvores. Aquilo, de verdade, e eu em mim – como 
um boi que se sai da canga e estrema o corpo por se prazer. 
Assim foi que, nesse arraiar de instantes, eu tornei a me exaltar de 
Diadorim, com esta alegria, que de amor achei. Alforria é isso. 
Sobre mesmo a pé, e com o peso completo, caminhar pelos 
Gerais parecia que pouquinho me cansava. Diadorim – o nome 
perpetual. Mas os caminhos é que estão se jazendo em tudo no 
chão, sempre uns contra os outros; retorce que os falsíssimos do 
demo se reproduzem. O senhor vá me ouvindo, vá mais me 
entendendo. 
No sítio desse Dodó Ferreira, o Nicolau e o Leocádio iam 
ficar acoitados lá, até que pudessem sarar de todo somenos. 
Nós, não. De que desde dali, rifles nas costas, riscamos de rota 
abatida para o Currais-do-Padre, para renovame; porque lá se 
tinha resguardada uma boa cavalaria. À força de inchar pé e 
esmorecer pernas, pelo que aquilo nem foi viagem: era rojão de 
escabrear, menção de cativeiros. Desgraça de estrada, as pedras 
do mundo, minhas léguas arrependidas. De que serve eu lhe 
contar minuciado – o senhor não padeceu feliz comigo – ? Saber 
as revezadas do capim? Ah, então, que foram: mimoso, sempreverde, 
marmelada, agrestes e gramade-burro... A caminhada é 
assim, é ser: despesa grossa, o abalo. Contra a mera vontade, que 
meio me lembro, aquelas ladeiras de chapadas. Subindo para 
terreno concertado, cada tabuleiro que o fim dele é dificultoso, 
pior do que batoqueira de caatingal. Os muitos campos, com 
tristeza agora bota valesse menos que alpercata. O vento 
endureceu. Aí passa gavião, apanha guincho, de todas as estirpes 
deles – o que gaviãozinho quiriquitou! E lá era que o senhor 
podia estudar o juízo dos bandos de papagaios. O quanto em 
toda vereda em que se baixava, a gente saudava o buritizal e se 
bebia estável. Assim que a madotagem desmereceu em acabar, 
mesmo fome não curtimos, por um bem: se caçou boi. A mais, 
ainda tinha araticum maduro no cerrado. Mas, para balear uma 
rês da solta, era o mister de toda sorte e diligência, por ser um 
gado estruso, estranhador. O fumo de pitar se acabando 
repentino na algibeira de uns e outros – bondade dos 
companheiros era que acudia. E deu daquele vento trazedor: 
chegou chuva. A gente se escondendo, divididos, embaixo dos 
pequizeiros, que tempesteava. Dormir remolhado, se dormia, 
com a lama da friagem. De madrugar, depois, se achava era pé de 
onça, circulando as marcas. E a gente ia, recomeçado, se andava, 
no desânimo, nas campinas altas. Tão território que não foi feito 
para isso, por lá a esperança não acompanha. Sabia, sei. O pobre 
sozinho, sem um cavalo, fica no seu, permanece, feito numa croa 
ou ilha, em sua beira de vereda. Homem a pé, esses Gerais 
comem. 
Diadorim vinha constante comigo. Que viesse sentido, 
soturno? Não era, não, isso eu é que estava crendo, e quase dois 
dias enganoso cri. Depois, somente, entendi que o emburro era 
mesmo meu. Saudade de amizade. Diadorim caminhava correto, 
com aquele passo curto, que ó dele era, e que a brio pelejava por 
espertar. Assumi que ele estava cansado, sofrido também. Aí 
mesmo assim, escasso no sorrir, ele não me negava estima, nem 
o valor de seus olhos. Por um sentir: às vezes eu tinha a cisma de 
que, só de calcar o pé em terra, alguma coisa nele doesse. Mas, 
essa idéia, que me dava, era do carinho meu. Tanto que me vinha 
a vontade, se pudesse, nessa caminhada, eu carregava Diadorim, 
livre de tudo, nas minhas costas. Até, o que me alegrava, era uma 
fantasia, assim como se ele, por não sei que modo, percebesse 
meus cuidados, e no próprio sentir me agradecendo. O que 
brotava em mim e rebrotava: essas demasias do coração. Continuando, 
feito um bem, que sutil, e nem me perturbava, porque a 
gente guardasse cada um consigo sua tenção de bem-querer, com 
esquivança de qualquer pensar, do que a consciência escuta e se 
espanta; e também em razão de que a gente mesmo deixava de 
excogitar e conhecer o vulto verdadeiro daquele afeto, com seu 
poder e seus segredos; assim é que hoje eu penso. Mas, então, 
num determinado, eu disse: 
– “Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e 
de que nunca fiz menção...” – o qual era a pedra de safira, que do 
Araçuaí eu tinha trazido, e que à espera de uma ocasião sensata 
eu vinha com cautela guardando, enrolada numa pouca de 
algodão, dentro dum saquitel igual ao de um breve, costurado no 
forro da bolsa menorzinha da minha mochila. 
De desde que falei, Diadorim quis muito saber o presente 
qual era, assim apertando comigo com perguntas, que sem 
aperreio deixei de responder, até de tarde, quando fizemos 
estância. A parança que foi – conforme estou vivo lembrado – 
numa vereda sem nome nem fama, corguinho deitado demais, de 
água muito simplificada. Aí, quando ninguém não viu, eu saquei a 
mochila, desfiz a ponta de faca as costuras, e entreguei a ele o mimo, 
com estilo de silêncio para palavras. 
Diadorim entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem 
querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os 
olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos. 
Ao que, se sofreou no bridado, se transteve sério, apertou os 
beiços; e, sem razão sensível nem mais, tornou a me dar a 
pedrinha, só dizendo: 
– “Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de 
aceitar um presente assim, agora. Aí guarda outra vez, por um 
tempo. Até em quando se tenha terminado de cumprir a 
vingança por Joca Ramiro. Nesse dia, então, eu recebo...” 
Isso, de arrevés, eu li com hagá; e mesmo antes, quando 
apontou no rosto dele, para o avermelhar de cor, a palidez de 
espécie. Delongando, ainda restei com a pedra-de-safira na mão, 
aquilo dado-e-tomado. Donde declarei: 
– “Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que já 
é o depois-de-véspera, que os vivos também têm de viver por só 
si, e vingança não é promessa a Deus, nem sermão de 
sacramento. Não chegam os nossos que morremos, e os judas 
que matamos, para documento do fim de loca Ramiro?!” 
Ah foi ele me ouvir e se encurtar, em duro que revi, que 
nem ossos. Ao crespo de um com a afronta a meia-goela – e os 
olhos davam o que deitavam. O que durou só um átimo, tanto 
que ele teve mão em seu gênio, conciso com um suspiro; mas 
mesmo me retrouxe remoque: 
– “Riobaldo, você teme?” 
Tomei sem ofensa. Mas muita era minha decisão, que eu já 
tinha aperfeiçoado lá na Fazenda dos Tucanos, e que só vinha 
esperando para executar com mais regimento de ordem, quando 
se tivesse chegado no Curraisdo-Padre, conforme meu sistema 
nesses procedimentos. 
– “Tem que temerei! Você, aí faz o que em seu querer 
esteja. Eu viro minha boa volta...” 
Dar o mal por mal: assim. Eu tinha a quanta razão. Eu 
guardei a pedrinha na algibeira, depois melhor botei, no bolso do 
cinto; contei minhas favas, refavas. Diadorim respirava muito. 
Dele foi o relance: 
– “Riobaldo, você pensa bem: você jurou vinga, você é 
leal. E eu nunca imaginei um desenlace assim, de nossa 
amizade...” – ele botou-se adiante. – “Riobaldo, põe tento no que 
estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas 
que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas 
encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, 
a guerra varia de figura...” 
Arredei: – “Tu diz missa, Diadorim. Isso comigo não me 
toca...” 
Da maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável 
diguice, queria abrandar minha opinião. Então eu ia crer? Então 
eu não me conhecia? Um com o meu retraimento, de nascença, 
deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros – eu era o 
contrário de um mandador. A pra, agora, achar de levantar em 
sanha todas as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos 
instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era 
para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à 
força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam 
de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai 
virando tigre debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão! 
Me desinduzi. Talento meu era só o aviável de uma boa pontaria 
ótima, em arma qualquer. Ninguém nem mal me ouvia, achavam 
que eu era zureta ou impostor, ou vago em aluado. Mesmo eu 
não era capaz de falar a ponto. A conversa dos assuntos para 
mim mais importantes amolava o juizo dos outros, caceteava. Eu 
nunca tinha certeza de coisa nenhuma. 
Diadorim disse: – “Ei, retenteia! Coragem faz coragem...” 
Demais eu disse: – “Sou Capitão-General?!...” 
Antes tantas astúcias, em empalhar que eu não fosse 
embora, que eu ficasse preso naquele urjo de guerra, sem cabo 
nem ponta, sem costas nem frente, e que maçava. Recachei. A 
mão dele, doçura de dada, de leve na minha. Temi afracar. E em 
duro repostei, com outra ombrada: 
– “Vou e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do- 
Padre. Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E trovejo no 
mundo...” 
Verdadeiro meu propósito era esse, como está dito. Eu não 
caturrava. Eu sou assim amor-com-amor, e ingratidão não. E 
bem por isso Diadorim não persistiu, com palavras cordatas; mas 
por fim disse, de motejo, zombariazinha: 
– “Então, que quer mesmo ir, vai. Riobaldo, eu sei que 
você vai para onde: relembrado de rever a moça clara da cara 
larga, filha do dono daquela grande fazenda, nos gerais da Serra, 
na Santa Catarina... Com ela, tu casa. Cês dois assentam bem, 
como se combinam...” 
Nonde nada eu não disse. Se menos pensei em Otacília. 
Nem maldisse Diadorim, de que não se calava. A mais, pirraçou: 
– “Vai-te, pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de 
presente de noivado...” 
Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do 
cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente 
parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a 
caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs 
dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a 
vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti 
revira altas palmas. A por perto, se ouvia a algazarra dos 
companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera de 
Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira 
arara já revoava. 
– “... Ou quem sabe você resolve melhor mandar de dádiva 
para aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da 
feiticeira... Arte que essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do 
mundo, dá açúcar e sal a todo passante...” 
Não era na Rama-de-Ouro – era na Aroeirinha. Mas, por 
que era que ele falava no nome de Nhorinhá, com tão cravável 
lembrança? Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que 
eu produzia no coração, o encoberto e o esquecido. Nhorinhá – 
florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... E tudo 
neste mundo podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio. 
Por isso era que eu gostava dele em paz? No não: gostava por 
destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta dos prazeres 
e sofrimentos. Igual gostava de Nhorinhá – a sem-mesquinhice, 
para todos formosa, de saia cor-de-limão, prostitutriz. Só que, de 
que gostava de Nhorinhá, eu ainda não sabia, filha de Ana 
Duzuza. O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus 
cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as 
águas mesmas replantam; dai o buritizal, de um lado e do outro 
se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo. 
– “... Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa 
Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, 
reconheço, gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha 
sempre muito amor... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, 
prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as 
mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas 
rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...” 
Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar 
mel de flor. E me embebia – o que estava me ensinando a gostar 
da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, 
feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. 
Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali 
ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada 
dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e 
perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos 
gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de 
nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando 
ajoelhada diante de imagem, e já aprontada para a noite, em 
camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às festas da 
cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de 
molmol. Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo 
eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só 
ficava ouvinte, descambava numa sonhice. Com o coração que 
batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro 
que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez 
– alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia 
inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. No tempo, não 
apareci no meio daquilo. Assim foi que foi. Até que vieram uns 
companheiros, com João Concliz, Sidurino e João Vaqueiro, que 
ajuntaram lenhas e armaram um fogo bem debaixo do paratudo. 
Ao relançar das labaredas, e o refreixo das cores dando lá acima 
nos galhos e folhas, essas trocavam tantos brilhos e rebrilhos, de 
dourado, vermelhos e alaranjado às brasas, essas esplendências, 
com mais realce que todas as pedras de Araçuaí, do Jequitinhonha 
e da Diamantina. Era dia-de-anos daquela árvore? Ao 
quando bem anoiteceu, foi assim. A gente só sabe bem aquilo 
que não entende. 
O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria 
recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do 
trivial; mas não posso. Coisas que se deitaram, esqueci fora do 
rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo nenhum. 
Acho que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e 
eu gostava demais dele. 
Na surgida manhã, saímos, para a parte final da caminhada. 
Zé Bebelo, certa hora, me chamou. Inda que avante, Zé Bebelo 
mesmo devia de estar curtindo más e piores: fio que ele amargava 
a vitória que tinha inventado. Noção dos inimigos nossos, que, 
seja lá por onde, puxavam posse de sua munição e de suas 
montadas e cargas, socorridos de tudo quanto careciam. – “Um 
Hermógenes quer tomar conta do sertão dos Gerais...” – eu tirei 
liberdade para dizer. Mesmo mais indiretas disse; e isso me 
realiviou, no dizer, pouco somente, que era só por picardia. 
Direto, disso, Zé Bebelo não me respondeu; ele pensava as mil 
coisas. Em tanto, nesses cálculos de meditação, ele ligeiro 
sobrezumbia com os beiços, e balangava às esquerdas-edireitas as 
abas enfunadas do chapéu; e às vezes assoprava sem ser por can-
saço de marcha. O que das idéias sobrava, era que ele referia: – 
“Ainda não entendo... Ainda não entendo... Até agora, 
reconheço, ele tem tido uma sorte... Sapo sem-colarinho, reigordo... 
Mas, deixa a gente ir e vir, que os ovos e dúzias ele 
paga!...” Do Hermógenes discursava – orçamento do 
Hermógenes. E, de ouvir que a sorte do Hermógenes existia alta, 
isso me penou, tanto me certificava. Aí fiquei a menos. Nem eu 
não queria arreliar Zé Bebelo. Mas, para mim, ele estava muito 
errado: pelos passos e movimentos, porque gostava prático da 
guerra, do que provava um muito forte prazer; e por isso não 
tinha boa razão para um resultado final. Assim achei, espiando o 
alto céu, que é com as nuvens e os urubus repartido. Deponho: 
de que é que aquilo me adiantava? E chuvas dadas, derramadas. 
Aí, vai, chegamos no Currais-do-Padre. 
O lugar que não tinha curral nenhum, nem padre: só o 
buritizal, com um morador. Mas o ao em redor, em grandes 
pastos, era o capim melhor milagroso – que o que deixava de ser 
provisório rico era o meloso de muito óleo, a não ver uns fios 
de santa-luzia azul, e do duro-do-brejo, nas baixadas, e, nos altos 
com pedregal, o jasmim-da-serra. De lá vinham saindo 
renascidos, engordados, os nossos cavalos, isto é, os que tinham 
sido de Medeiro Vaz, e que agora herdávamos. Regozijei. 
Escolhi um, animal vistoso, celheado, acastanhado murzelo, que 
bem me pareceu; e dei em erro, porque ele era meio sendeiro e 
historiento. Daqui veio que o nome que teve foi de “Padrim 
Selorico”. Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, 
assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se 
chamava o “Senclér das Ilhas”, e que pedi para deletrear nos meus 
descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance, 
porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei 
outras verdades, muito extraordinárias. 
Além de que, tudo o que eu tivesse de resolver, de minha 
vida, fui deixando para os seguintes. Dia de ser de chuva, que 
madrugou tarde: boi nos cinzentos. E os pássaros de passagem 
precisavam de gritar muito uns para os outros. Diadorim 
moderava o falar comigo, e me ver, recolhido em certo vexame, 
receoso; eu achei. Já disse ao senhor? – dia a dia ele raiava, em 
formosura. E chuva alta, que envinha, estava mandando urubu 
voar para casa. Os cavalos pastavam com mais pressa. Nunca, em 
todos meus tempos, eu vi inverno tamanho demorado. Era para 
espera. Mesmo assim, Zé Bebelo pôs ordem de se ir. Porque 
estávamos quase todos montados em pêlo, carecíamos de tocar 
para o Curral Caetano, onde se tinha quantidade grande de arreios guardados. Depois, daí, para buscar munição, na Virgem-
Mãe. Prazo não se perdia. Aos caminhos barrancosos, de sopega, 
feito torrão de açúcar preto se derretendo, empapados. Aos 
barros fomos, como perdidas criaturas, de se rir, se chorar. E – 
mas o senhor sabe o que isso é? – aqueles nossos cavalos não 
tinham ferraduras. 
Pra mais onde? Ah, aonde os altos bons: o Chapadão do 
Urucuia, em que tanto boi berra. Mas nunca chegamos nem na 
Virgem-Mãe. Afiguro, desde o começo desconfiei de que 
estávamos em engano. Rumos que eu menos sabia, no viável. 
Como a serra que vinha vindo, enquanto para ela eu ia indo, em 
tantos dias: longe lá, de repente os olhos da gente percebem um 
fio de tremor – se vê é um risquinho preto, que com léguas 
andadas vira cinzento e vira azul – daí, depois, parede de morro 
se faz. No arquear dali, foi que se pegou o primeiro caminho 
achado, para se passar. Bem baixamos. Os rios estavam sujos, 
em espumas. Não havendo a ajuda de Joaquim Beiju, que estava 
dando para dela se sentir falta. Zé Bebelo, em assarapanto, até 
os dedos da mão dele não deixavam de se perpassar, contando 
rosário nas tiras da rédea. Que andávamos desconhecidos no 
errado. Disso, tarde se soube – quem que guiava tinha enredado 
nomes: em vez da Virgem-Mãe, creu de se levar tudo para a 
Virgem-da-Laje, logo lugar outro, vereda muito longe para o sul, 
no sítio que tem engenho-de-pilões. Mas já era tarde. 
Trovoou truz, dava vento. E chuvas que minha língua 
lambeu. Nelas mais não falo. Mas, quando estiou o tempo, de 
vez, não sei se foi melhor: porque bateu de começo a fim dos 
Gerais um calor terrível. Aí, quem sofreu e não morreu, ainda se 
lembra dele. Esses meses do ar como que estavam 
desencontrados. Doenças e doenças! Nosso pessoal, montão 
deles, pegou a mazelar. Mas isto eu refiro depois. O senhor já 
que me ouviu até aqui, vá ouvindo. Porque está chegando hora 
d’eu ter que lhe contar a$ coisas muito estranhas. 
Quadrante que assim viemos, por esses lugares, que o nome 
não se soubesse. Até, até. A estrada de todos os cotovelos. 
Sertão, – se diz –, o senhor querendo procurar, nunca não 
encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão 
vem. Mas, aonde lá, era o sertão churro,,o próprio, mesmo. Ia 
fazendo receios, perfazendo indagação. Descemos por umas 
grotas, no meio de serras de parte-vento e suas mães árvores. O 
pongo de um ribeirão, o boqueirão de um rio. O Abaeté não era; 
se bem fosse que parecia: largo rio Abaete, no escalavrado, beiras 
amarelas. Aquele rio fazia uma grande volta, acolá, clareado, com 
a vista de uns coqueiros. Ali era um lugar longe e bonito, como 
que me acenava. Mas não endireitamos para ele, porque o rumo 
determinado era outro, torando desviado muito, consoante. E 
mais maninhava. Topar um vivente é que era mesmo grande 
raridade. Um homenzinho distante, roçando, lenhando, ou uma 
mulher= zinha fiando a estriga na roca ou tecendo em seu tear de 
pau, na porta de uma choça, de buriti toda. Outro homem quis 
me vender uma arara mansa, que a qual falava toda palavra que 
tem á. Outra velha, que estava fumando o pito de barro. Mas ela 
enrolou a cara no xale, não se ajuizaram os olhos dela. E o gado 
mesmo vasqueava: só por pouco acaso um boi ou vaca, de 
solidão, bicho passeado sem dono. Veado, sim, vi muitos: tinha 
vez que pulavam, num sonhoso, correndo, de corta campo, tanto 
tantos – uns dois, uns três, uns vinte, em grupos – mateiros e 
campeiros. Faltava era o sossego em todo silêncio, faltava rastro 
de fala humana. Aquilo perturbava, me sombreava. já depois, 
com andada de três dias, não se percebeu mais ninguém. Isso foi 
até onde o morro quebrou. Nós estávamos em fundos fundos. 
Isto é, nos arrampadouros. Tinha uma estrada, aí na subida 
dela houvesse coisas. Uns galhos de árvores colocados – 
ramalhos e jaribaras – forma de sinal: para não se passar. Mas 
esse aviso havia de ser particular, para o uso de outros, não para 
o nosso destino. Não respeitamos, de jeito nenhum. Fomos indo. 
No entrar numa guapira, se redobrou o achado daquelas ramas 
verdes, que não obedecemos. Eu vinha adiante, com o Acauã e o 
Nélson, instruindo o caminho. Já estávamos pelas rédeas, para 
outra subida de ladeira: mas aí escutamos o latir de cachorros. E 
enxergamos um homem – no alto da virada – uns homens. Esses 
estavam com espineardas. 
Os quantos homens, de estranhoso aspecto, que agitavam 
manejos para voltarmos de donde estávamos. Por certo não 
sabiam quem a gente era; e pensavam que três cavaleiros menos 
valessem. Mas, entendendo que do caminho não desgarrávamos, 
começaram a ficar estramontados. Um eu vi, que dava ordens: 
um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os 
outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que 
não possuíam o respeito de roupas de vestir. Um, aos menos 
trapos: nem bem só o esporte de uma tanga esfarrapada, e, em 
lugar de camisa, a ver a espécie de colete, de couro de 
jaguacacaca. Eram uns dez a quinze. Não consegui sentido no 
que eles ameaçavam, e vi que estavam aperrando as armas. 
Queriam cobrar portagem? Andavam arrumando alguma 
jerimbamba? Não convinha avançar assim por cima deles, logo, 
mas também dar recuada podia ser uma vergonha. Esbarramos, 
neles quase encostados. Íamos esperar o resto do pessoal. E eles, 
ali confrontes, não explicavam razão nenhuma. Só um disse: 
– “Pode não... Pode não...” 
E renuía com a cabeça, o banglafumém, mesmo quando 
falava, com uma voz de qualidade diversa, costumada daquela 
terra de lugar; e os outros renuindo também: – “Ah, pode não... 
Pode não...” – com o vozeio soturno. 
Nos tempos antigos, devia de ter sido assim. 
Gente tão em célebres, conforme eu nunca tinha 
divulgado nem ouvido dizer, na vida. O das esporas foi se 
amontar num jumento – esse era o único animal-de-sela que ali 
tinham. Acho que montou para oferecer à gente maior vulto de 
respeito; tocava batendo palma de mão na anca do jegue, veio 
vindo, para primeiro se presenciar. Olhei para todos. Um tinha a 
barba muito preta, e aqueles seus olhos permeando. Um, 
mesmo em dia de horas tão calorosas, ele estava trajado com 
uma baeta vermelha, comprida, acho que por falta de outra 
vestimenta prestável. Ver a ver o sacerdote! – “Ih! Essa gente 
tem piolho e muquiranas...” – o Nélson disse, contrabaixo. 
Todos estavam com alguma garantia: que eram lazarinas, bo-
cudas baludas, garruchas e bacamartes, escopetas e trabucão – 
peças de armas de outras idades. Quase que cada um era escuro 
de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, 
amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam 
bêbados, de beber tanta saeta. Um, zambo, troncudo, segurava 
somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no 
manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado 
chato o formo do nariz, estragada a boca grande demais, em 
três. Outro, que tinha uma foice encabada muito comprido, e 
um porongo pendurado a tiracol por uma embira, cochichava 
com os restantes uma séria falação: a qual uma espécie de 
pajelança. Artes vezes ele guinchava, feito o demônio 
gemedeiro. Esse, que por nome de Constantino acudia. Todos 
eles, com seus saquinhos chumbeiros e surrões, e polvorinhos 
de corno, e armamento tão desgraçado, mesmo assim não 
tomavam bastante receio de nossos rifles. Para o nosso juízo, 
eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, 
podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o 
que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem 
salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum 
sertão, os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que explicou, 
o Acauã sabia deles. Que viviam tapados de Deus, assim nos 
ocos. Nem não saíam dos solapos, segundo refleti, dando cria 
feito bichos, em socavas. Mas por ali deviam de ter suas casas e 
suas mulheres, seus meninos pequenos. Cafuas levantadas nas 
burguéias, em dobras de serra ou no chão das baixadas, beira de 
brejo; às vezes formando mesmo arruados. Aí plantavam suas 
rocinhas, às vezes não tinham gordura nem sal. Tanteei pena 
deles, grande pena. Como era que podiam parecer homens de 
exata valentia? Eles mesmos faziam preparo da pólvora de que 
tinham uso, ralado salitre das lapas, manipulando em panelas. 
Que era uma pólvora preta, fedorenta, que estrondava com 
espalhafato, enchendo os lugares de fumaceira. E às vezes essa 
pólvora bruta fazia as armas rebentarem, queimando e matando 
o atirador. Como era que eles podiam brigar? Conforme podiam 
viver? 
E enfim os companheiros apontaram em vinda, e subiram 
a primeira ladeira, aquele tropeado de guerreiros, em tão grande 
número numeroso. Quase eu queria me rir, do susto então dos 
catrumanos. Mas foi não, porque eles não se aluíram do ponto 
onde estavam, só que olhavam para o chão, calados, acho que 
porque essa é a forma de declararem seus espantos. O do jegue, 
Teofrásio, que era quem capitaneava, deu alguma intimação para 
o da foice, esse que o Dos-Anjos se chamava, era o falador; e 
que foi quem veio adiante, saudar Zé Bebelo e render 
explicação: 
– “Ossenhor uturje, mestre, a gente vinhemos, no 
graminhá... Ossenhor uturje...” 
Ossos e queixos; e aquela voz que o homem guardava nos 
baixos peitos, era tôo que nem de se responder em ladainha dos 
santos, encomendação de mortos, responsório. 
– “Ossenhor uturje, mestre... Não temos costume... Não 
temos costume... Que estamos resguardando essas estradas... De 
não vir ninguém daquela banda: povo do Sucruiú, que estão 
com a doença, que pega em todos... Ossenhor é grande chefe, 
dando sua placença. Ossenhor é Vossensenhoria? Peste de 
bexiga preta... Mas povoado da gente é o Pubo – que traslada do 
brejão, ossenhor com os seus passaram perto de lá, valor distante 
meia-légua... As mulheres ficaram, cuidando, cuidando... A 
gente vinhemos, no graminhá. Faz três dias... Cercar os 
caminhos. O povo de Sucruiú – estão dizendo : nem não estão 
enterrando mais os defuntos deles... Pode querer vir algum, com 
recado, trazendo a doença, e esta é a razão... Veio um, querendo 
pedir auxílios, relatar bobagens, essas mogúncias e brogúncias... 
Mas teve de voltar, deveras retornou, não demos passa  
gem. Estão com a maldição, a urros. Castigo de Deus 
Jesus! Povo do Sucruiú, gente dura de rúim... Ossenhor uturje, 
mestre: convém desemendar deste lado, não passar no Sucruiú, 
respraz... Bexiga da preta!...” 
E aquele homem o Dos-Anjos tinha largado a foice no 
chão, botou o pé em riba; e abria os braços, depois ficou de 
mãos postas, acho que estava produzindo algum feitiço, com os 
olhos todos fechados. Ele era magro, magro, da vista da gente 
não se ter. Os outros deles, devagarosamente tinham vindo se 
chegando também. Zé Bebelo, seguro que por não se rir sem 
caridade, armou rosto reverso, aquele semblante serioso; e eles 
desconfiaram. Porque um, que era velhusco e estava com o 
chapéu-de-palha corroído nas todas beiras, apareceu com um 
dinheiro na palma da mão, oferecendo a Zé Bebelo, como em 
paga por perdoamento. A que era um dobrão de prata, antigo 
do Imperador, desses de novecentos – e-sessenta réis em cunho, 
mas que na Januária por ele dão dois mil-réis, ainda com 
senhoriagem de valer até os dez, na capital. Mas Zé Bebelo, com 
alta cortesia, rejeitou aquele dado dinheiro, e o catrumano velho 
não bem entendeu, pelo que permaneceu um tempo, com ele 
ofertado na mão. Assim os outros não entrediziam palavras, que 
só arregalados espiavam, para Zé Bebelo e para a moeda, 
olhavam como se estivessem prestando conta de suas fortes 
invejas. O jeito de estremecer, deles, às vezes, era todo, era de 
banda; mas aquilo sendo da natureza constante do corpo, e não 
temor – pois, quando pegavam receio, iam ficando era mais 
escuros, e respiravam com roncado rumor, quietos ali. Que 
aqueles homens, eu pensei: que nem mansas feras; isto é, que no 
comum tinham medo pessoal de tudo neste mundo. 
Como que o senhor visse os catrumanos rir! O da foice 
tornou a apanhar a foice, o no jegue ficou segurando o chapéu 
em respeito, o velho beobobo sumiu seu dobrão de prata em 
alguma algibeira. A mais eles todos riram, as tantas grandes 
bocas, e não tinham quase nenhum dente. Riam, sem motivo 
justo, agora mas para nos agradar. Cônscio, o da foice criou 
ânimo, mesmo indagou: 
– “O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor 
está servido de estando vindo, chefe cidadão, com tantos 
agregados e pertences?” 
– “Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, 
alta graça. – “Vim departir alçada e foro: outra lei – em cada 
esconso, nas toesas deste sertão...” 
O velho agiu o pelo-sinal. Ia remenicar alguma outra coisa. 
Mas Zé Bebelo, completo de escutar e ver, deu não com a mão, 
e abriu a marcha. Tocamos. Ora vi as derradeiras caras daqueles 
catrumanos, que mostravam por nossa causa muitos pasmos de 
admiração, e a cobiça que tinham de fazer cento-e-dobro de 
perguntas, que por receio de atrevimento nunca perguntavam. 
Só dos rifles: – “Úixe-te, isto é lazarinha moderna?...” Donde um 
deles, o montado no jegue, ainda gritou um conselho: que a 
gente então principiasse volta, no buritizal duma lagoazinha, da 
banda da mão direita – por via de se evitar de passar por dentro 
do Sucruiú – e que, retomada a estrada, no quebrar da mão 
esquerda, num vau perto da mata virgem, era só se andar as sete 
léguas, num sítio se chegava, de um tal de seor Abrão, que era 
hospitaleiro... Isso aquele homem recomendou, não por serviço 
de préstimo, eu pelo tom e jeito bem entendi: gritou, no fim 
assim, a fito somente de que os seus outros vissem que ele bem 
possuía coragem também de dar voz, perante presença nossa, de 
tantos grandes jagunços donos de arejo d’armas. Mas Zé 
Bebelo, descrendo de temer o que eles anunciavam, do arraial 
onde estava alastrando a varíola reinante, deu ordem de 
seguirmos, em reto em diante em frente. 
Rir, o que se ria. De mesmo com as penúrias e 
descômodos, a gente carecia de achar os ases naquele povo de 
sujeitos, que viviam só por paciência de remendar coisas que 
nem conheciam. As criaturas. 
Mas eu não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em 
minha vida. Como que marquei: que a gente ter encontrado 
aqueles catrumanos, e conversado com eles, desobedecido a eles 
– isso podia não dar sorte. A hora tinha de ser o começo de 
muita aflição, eu pressentia. Raça daqueles homens era 
diverseada distante, cujos modos e usos, mal ensinada. Esses, 
mesmo no trivial, tinham capacidade para um ódio tão grosso, 
de muito alcance, que não custava quase que esforço nenhum 
deles; e isso com os poderes da pobreza inteira e apartada; e de 
como assim estavam menos arredados dos bichos do que nós 
mesmos estamos: porque nenhumas más artes do demônio 
regedor eles nem divulgavam. Só o mau fato de se topar com 
eles, dava soloturno sombrio. Apunha algum quebranto. Mas 
mais que, por conosco não avirem medida, haviam de ter 
rogado praga. De pensar nisso, eu até estremecia; o que 
estremecia em mim: terreno do corpo, onde está a raiz da alma. 
Aqueles homens eram orelhudos, que a regra da lua tomava 
conta deles, e dormiam farejando. E para obra e malefícios ti-
nham muito governo. Aprendi dos antigos. Capatazia de soprar 
quente qualquer ódio nas folhas, e secar a árvore; ou de rosnar 
palavras em buraco pequeno que abriam no chão, tapando 
depois: para o caminho esperar a passagem de alguém, e a ele 
fazer mal; ou guardavam um punhado de terra no fechado da 
mão, no prazo de três noites e três dias, sem abrir, sem largar: e 
quando jogavam fora aquela terra, em algum lugar, nele com 
data de três meses ficava sendo uma sepultura... De homem que 
não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor 
tenha todo medo! O que mais digo: convém nunca a gente 
entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente. Mesmo 
que maldade própria não tenham, eles estão com vida cerrada 
no costume de si, o senhor é de externos, no sutil o senhor 
sofre perigos. Tem muitos recantos de muita pele de gente. 
Aprendi dos antigos. O que assenta justo é cada um fugir do que 
bem não se pertence. Parar o bom longe do ruim, o são longe 
do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico 
longe do pobre. O senhor não descuide desse regulamento, e 
com as suas duas mãos o senhor puxe a rédea. Numa o senhor 
põe ouro, na outra prata; depois, para ninguém não ver, elas o 
senhor fecha bem. E foi o que eu pensei. Aqueles catrumanos 
pedindo por maldição, como era que eu podia deixar de pensar 
neles? Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu 
apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar minhas 
armas, as coisas e minhas roupas. Amargo que acabavam 
comigo, sem escrúpulos, hom’essa, que nem tinham, porquanto 
eu era desconhecido e forasteiro. De doente, ou ferido 
perdendo meu sangue, que eu estivesse, algum deles ia ser capaz 
de me ceder gole duma cuia d’água? Draste eu duvidava deles. 
Duvidava dos fojos do mundo. E por que era que há de haver 
no mundo tantas qualidades de pessoas – uns já finos de sentir e 
proceder, acomodados na vida, tão perto de outros, que nem 
sabem de seu querer, nem da razão bruta do que por necessidades 
fazem e desfazem. Por quê? Por sustos, para vigiação sem 
descanso, por castigos? E de repente aqueles homens podiam 
ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, 
vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os 
caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como é que iam 
saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, 
mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. 
Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que 
vissem, haviam de uivar e desatinar. Ah, e bebiam, seguro que 
bebiam as cachaças inteirinhas da Januária. E pegavam as 
mulheres, e puxavam para as ruas, com pouco nem se tinha 
mais ruas, nem roupinhas de meninos, nem casas. Era preciso 
de mandar tocar depressa os sinos das igrejas, urgência 
implorando de Deus o socorro. E adiantava? Onde é que os 
moradores iam achar grotas e fundões para se esconderem – 
Deus me diga? Nem me diga o senhor que não – aí foi que eu 
pensei o inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a 
força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só 
para os braços da maior bondade. Isso foi o que eu pensei, 
muito redoído, no estufo do calor vingante. E foi por durante 
quase uma hora, montado no meu cavalo ruim chamado 
Padrim-Selorico, a passo por aqueles ruins campos, até se chegar 
perto do povoado do Sucruiú, onde que estava arranchada a 
horrorosa doença, por cima da pior miséria. Bobéia minha? 
Porque os companheiros, indo cuidando de seu ramerrão 
comum, nenhum não punha tento em dessas idéias. Então era 
só eu? Era. Eu, que estava mal-invocado por aqueles 
catrumanos do sertão. Do fundo do sertão. O sertão: o senhor 
sabe. 
Mas em tanto, então levantei o meu entender para Zé 
Bebelo – dele emprestei uma esperança, apreciei uma luz. Dei 
tino. Zé Bebelo, em testa, chefe como chefe, como executava 
nossa ida. Da marca de um homem solidado assim, que era 
sempre alvissareiro. Por ele eu crescia admiração, e que era 
estima e fiança, respeito era. Da pessoa dele, da grande cabeça 
dele, era só que podia se repor nossa guarda de amparo e 
completa proteção, eu via. Porque Zé Bebelo previa de vir, cá 
embaixo, no escuro sertão, e, o que ele pensava, queria, e 
mandava: tal a guerra, por confrontação; e para o sertão 
retroceder, feito pusesse o sertão para trás! E era o que íamos 
realizar de fazer. Para mim, ele estava sendo feito o canoeiro 
mestre, com o remo na mão, no atravessar o rebelo dum rio 
cheio. – “Carece de ter coragem... Carece de ter muita coragem...” – 
eu relembrei. Eu tinha. Diadorim vindo do meu lado, rosável 
mocinho antigo, sofrido de tudo mas firme, duro de temporal, 
naquelas constâncias. Sei que amava, não amava? Os outros, os 
companheiros outros, semelhavam no rigor umas pobres 
infâncias na relega – que deles a gente precisasse de tomar conta. 
Com Zé Bebelo da minha mão direita, e Diadorim da minha 
banda esquerda: mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era 
ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé Bebelo era o de mais 
armada vista, o maior de todos. Cavalo selado, montado, e muito 
chão adiante. Viajar! – mas de outras maneiras: transportar o sim 
desses horizontes!...  
Desde, porém, como já entrávamos no perto do Sucruiú, 
conforme as léguas que os cascos de nossos cavalos contando, 
era de ver que voz Zé Bebelo dava, se queria em reto ou atalho. 
Ah, em reto, foi. Mas nenhum de nós teve sobrosso. O que era, 
era. Aquele desgraçado lugar devia de estar lá acolá, no pião alto 
do campo, em seu sempre. Obra de um tiro de carabina. E como 
deviam de estar cozinhando, com tanto fogão, porque subia para 
o pedaço de céu um povôo de fumaças, feito andassem por lá 
renovando pastos desfora de tempo. Fazia fole de calor. Mas, 
entre as vertentes, no corguinho rabo serelepe que passamos, de 
beiras de terra preta, só os animais foram que beberam a toda 
sede: que, nós, mesmo da água corrente a gente se receava. 
Donde é que decorre a peste? Até o ver o ar. A poeira e miséria. 
Azul desbotado puído, sem os realces. O sol carregando de 
envelhecer antesmente as folhagens – o começo do mês de junho 
já dava parecença de alto fim de agosto. Aquele ano declarava de 
não se ter nem frio, pelo legal. De que valeram as tantas chuvas? 
Aí este mundo de sertão tinha se perdido – eu mesmo me disse. 
Como que íamos atravessar o Sucruiú, lá se chegava. O qual eram 
as cafuas em suas construções, no entremeio da fumaça. Essas 
choupanas. Gente? Não se divulgava. E certo que não se tinha 
medo maior. Antes todos queriam avistar de perto, de passagem, 
o que aquilo de verdade fosse. Só que se tinha confiança nos 
bentinhos e verônicas. E de repente correu aviso que Jõe 
Bexiguento e o Pacamã-de-Presas sabiam reza para São Sebastião 
e São Camilo de Lélis, que livram de todo mal vago. Como se 
ter? Como se aprender, também? Tempo não dava. Mas – o que 
vieram dizendo, de um em um, se virando para trás nos cavalos: 
que não se carecia. Assim aqueles dois iam praticar resumida a 
oração, e cada um, da gente, consigo reproduzisse, 
constantemente, as fortes ave `orarias e padre-nossos, que isso 
bastava. Assim foi que fizemos. Avante eu rezei. 
Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado 
que era até bem largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Ao 
demais rezando, ao real vendo – eu vim. Casas – coisa humana. 
Em frente delas todas, o que estavam era queimando pilhas de 
bosta seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada e 
esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com 
aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi, 
cuspi, no entrecho de minhas rezas. Voz nem choro não se 
ouviu, nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as 
pessoas mortas, e até os cachorros, cada morador. Mas pessoas 
mor que houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça 
verdolenga se vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que 
branqueavam, tantas máscaras. Aos homens e mulheres, 
apartados tão estranhos, caladamente, seriam os que estavam 
jogando todo o tempo mais rodelas de bosta seca nas fogueiras – 
isso que deviam de ter por todo remédio. Nem davam fé de 
nossa vinda, de seus lugares não saíam, não saudavam. Do perigo 
mesmo que estava maldito na grande doença, eles sabiam ter 
quanta cláusula. Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu 
onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos? 
Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, 
com um fervor. Aquela travessia durou só um 
instantezinho enorme. Mesmo que os cavalos nossos indo iam 
devagar, que é como se vai, quando todos rezando sozinhos em 
cima deles, devagar duma procissão. Não se perturbou palavra. E 
foi que dali acabamos de surgir – da arrepoeira e fumaça de 
estrume, e o corusco de labareda alguma, e a mormaceira. Deus 
que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado 
povo. 
Olhei o ilustre do céu. Dado dava de um estar soto-livre, 
conseguido se soltar das possibilidades horrorosas. Revi todos e 
Diadorim, que era uma cortesia de bondade. Não espiei para 
trás, não ver de enxergar o fim daquelas casas, no vaporoso 
pardo-azulado, no exalante. E o que rogava eram coisas de 
salvação urgente, tão grande: eu queria poder sair depressa dali, 
para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em 
incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos. Eu 
levava Diadorim... Mas, de começo, não vi, não fui sentindo que 
queria poder levar também Otacília, e aquela moça Nhorinhá, 
filha de Ana Duzuza, e mesmo a velha Ana Duzuza, e Zé 
Bebelo, Alaripe, os companheiros todos. Depois, todas as 
demais pessoas, de meu conhecimento, e as que mal tinha visto, 
além de que a agradecida formosura da boa moça Rosa’uarda, a 
mocinha Miosótis, meu mestre Lucas, dona Dindinha, o 
comerciante Assis Wababa, o Vupes – Vusps... Todos, e meu 
padrinho Selorico Mendes. Todos, que em minha lembrança eu 
carecia de muitas horas para repassar. Igual, levava, ah, o povo 
do Sucruiú, e, agora, o do Pubo – os catrumanos escuros. E que 
para o outro lugar levava restantes os cavalos, os bois, os 
cachorros, os pássaros, os lugares: acabei que levasse até mesmo 
esses lugares de campos tão tristes, onde era que então se 
estava... Todos? Não. Só um era que eu não levava, não podia: e 
esse um era o Hermógenes! 
Aí dele me lembrei, na hora: e esse Hermógenes eu 
odiasse! Só o denunciar dum rancor – mas como lei minha 
entranhada, costume quieto definitivo, dos cavos do continuado 
que tem na gente. Era feito um nojo, por ser. Nem, no meu 
juízo, para essa aversão não carecia de compor explicação e 
causa, mas era assim, eu era assim. Que ódio é aquele que não 
carece de nenhuma razão? Do que acho, para responder ao 
senhor: a ofensa passada se perdoa; mas, como é que a gente 
pode remitir inimizade ou agravo que ainda é já por vir e nem se 
sabe? Isso eu pressentia. Juro de ser. Ah, eu. 
Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover 
desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no 
mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam 
– o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos 
outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu – o que 
quero e sobrequero : é que ninguém tem o direito de fazer medo 
em mim! 
São os momentos, se sei. Senti um cansaço. Adiantamos 
ligeiro, depois que passado o vau da mata-virgem, e tenteávamos 
pelo encontrável. O sol ia entrando, vi o céu nos roxos, nos 
vermelhos. Misturamos numa baixada, no capim cacheado. 
Umas lavourinhas. Daí, lá se estava, no retiro do Abrão, onde o 
campo largueia. Era uma boa casa. Mas, de dentro, saíram, de 
repente, por suas portas, uns homens, que fugiam corridos, feito 
ratos se escapulindo do toucinho de um jacá. 
Sendo que Zé Bebelo assim na dianteira sempre cavalhava, 
vente, superintendeu que não perseguíssemos aqueles tais, nem 
neles se atirasse por comprazimento. O que estavam era em 
mão de roubando, se soube; como que tinham até sacos, para 
carregar dentro as coisas. Num átimo, eu reluzi quem que eles 
podiam ser. Só acertei. Pois não foi que um deles, errando no 
abrir da fuga, demorou, e perdeu as facilidades; então, veio do 
nosso lado, embrafustado, quase debaixo dos cavalos. Era um 
pretinho. 
Um rapazola retinto, mal aperfeiçoado; por dizer, um 
menino. Nu da cintura para os queixos. As calças, rotas em 
todas as partes, andavam cai’caindo; ele apertou perna em perna. 
Arfava chiado, como quem, por todo engano de pressa, tivesse 
chupado na boca um gole quente de café demais. Bezerro 
doente, de mal-de-ano, às vezes faz assim. Cuido que por não 
perder de todo as calças como vestimenta, ele se ajoelhou – 
chato no chão, mais deitado do que ajoelhado. – “A benção!” – 
pois disse. E a idéia dele rodou ligeira, pois, quando se notou, 
tinha tirado do bojo do saco o que estava lá: que era um pé de 
alpercata de homem, um candieirozinho pequeno, desses que 
vinham da Bahia, uma escumadeira de cozinha e um arranjado 
envernizado de couro preto, que nem boldrié – que tudo jogou 
fora, para uma banda, o longe que pôde. Seguinte o que, mostrou 
à gente o saco vazio, e com isto dizendo, arquejado: 
– “Tirei não, nada não... Tenho nada... Tenho nada...” 
Isso tudo se deu curto, que nem o mijar dum sapo; e dum 
modo tal inocente, de quem visse risse. E em coisa tão tola 
declarada assim a gente até crê razão, por ser tão afã de absurdo. 
– “Donde é que vocês vieram, dond’é?” – Zé Bebelo 
indarguiu. 
– “A gente quer voltar para casa... Semos, sim, é do 
Sucruiú, nhor sim...” 
Arte que a aproveitar, ele tornou a atar melhor o resumo 
de embira, que cinturava aqueles molambos de calças. E se 
encolhia, temia; e se ria. Que nome era capaz de ter? 
– “Guirigó... Minha graça é essa... Sou filho de Zé Câncio, 
seu criado, sim senhor...” 
Tão magro, trestriste, tão descriado, aquele menino já 
devia de ter prática de todos os sofrimentos. Olhos dele eram 
externados, o preto no meio dum enorme branco de mandioca 
descascada. O couro escuro dele era que tremia, constante, e 
tremia pelo miúdo, como que receando em si o que não podia 
ser bom. E quando espiava para a gente, era de beiços, mostrando 
a língua à grossa, colada no assoalho da boca, mas como se 
fosse uma língua demasiada demais, que ali dentro não pudesse 
caber; em bezerro pesteado, às vezes, se vê assim. Menino muito 
especial. Jagunço distraído, vendo um desses, do jeito, à 
primeira, era capaz da bondade de desfechar nele um tiro certo, 
pensando que padecia agonia, e que carecesse dessa ajuda, por 
livração. 
– “Guirigó, qu’é que vieram caçar aqui? Fala!” 
– “O que qu’ a gente veio caçar, sim senhor? Eles vieram, 
eu também vim... Buscar de comer...” 
– “Ih, que’s, menino! Quem te vê comer essa tralha que 
você amoitou aí no saco...” 
O pretinho espichado no chão sacudia a cabeça, que não 
que não, que parecia ter gosto de poder negar assim. – “Mas o 
de comer todo se acabou...” Havia de negar tudo, renegava: até 
que tivesse tido mãe, nascido dela, até que a doença brava 
estivesse matando o povo do Sucruiú, os parentes todos dele. A 
gente queria que aquele traste de menino sentisse em si, e se 
entristecesse, por tantas suas desditas chorasse uma lágrima, a 
lagrimazinha só, por um momento que fosse. Ah, ele fizesse 
logo isso, a gente ficava desconsolado e legítimo no triste, a 
gente ficava tranqüilizados. Qual, o menino preto negava. O que 
ele afirmava, no descaramento firme de seu gesto, era que nem 
era ninguém, nem aceitava regra nenhuma devida do mundo, 
nem estava ali, defronte dos cascos dos cavalos da gente. Ah, 
queria salvar seu corpo, queria escape. Se abraçava com 
qualquer poeira. De mais, não queria saber. – Que podia, que 
fosse logo embora! – Zé Bebelo consentiu ordem. E ainda 
jogou um pedaço de rapadura, que ele aparou, fácil, como numa 
abocada. – “Pra tu adoçar essa tua tripinha preta!” – foi o que 
Zé Bebelo gritou. E aquele menino, sem fungar, sem olhar para 
trás, pulou em rumo, maneiro e leviano, se sumiu por onde 
carecia de ir. Não pensei que fosse tão pequeno, conforme 
mesmo era. 
– “Coitadinho, os dentes dele estavam alumiando de 
brancos...” – Diadorim disse. 
– “Hem? Hem?” – Zé Bebelo falou. – “O que imponho é 
se educar e socorrer as infâncias deste sertão!” 
Eu ia fazer o sinal-da-cruz, mas com a mão não cheguei a 
bulir, porque isso me pareceu falta de caridade, pensando no 
menino pretinho. 
E, com o determinado costumeiro, de se espalhar os de 
vigia, por todas as quatro bandas, mais o movimento de procura 
dum pasto bem fechado e conveniente, tomamos conta de tudo 
e entramos naquela casa, para ver o visível e se fazer fogo de 
aprontar nosso jantar na fornalha de sua grande cozinha. 
Virgem! – digo ao senhor: o interior dela dava pena, nunca vi 
nada tão remexido e roubado. Total o que era de jeito de se 
carregar, o em arcas e em trouxas, e que no comum duma casa 
remediada se acha, faltava. Não se encontrou uma peça de 
roupa, uma lamparina de folha, uma folhinha na parede, um 
gancho de rede, uma raspadeira, um cabresto pendurado, uma 
esteira, uma vasilha, uma coisa alguma em que se pegar. Eram 
só as mesas, os catres, os bancos. Tinham limpado a carne 
daquele costelame. Por onde andaria o dono? Mas se ficou 
sabendo que o nome dele não era em verdade Abrão, mas 
Habão, que assim se chamava. Consoante o diploma de patente, 
que no chão, num canto, avistei, lavrado preenchido cerimonial, 
de que esse Habão era Capitão da Guarda-Nacional, em válidos 
títulos. Aquele retiro se chamava o Valado. Com pouco mais 
uns dias que se passassem, o pessoal do Sucruiú era capaz de 
desmanchar até o prédio da casa, por seus esteios e caibros. Para 
não falar que, de gado, galinhas e porcos, e cachorros e o mais, 
nem sinal se divulgava. Sobravam só os passarinhos, soltos, 
como de toda parte no igual, que piaram uns momentos, pelo 
acabar da tardinha, alegres assim no empobrecido. 
Vai, dentro de lá, num quarto, muito recanto, sediava, no 
escuro que já fazia, um oratório em armariozinho, construido 
pregado na parede; que estava com suas poucas imagens e um 
toco para se acender, de vela-benta. Nisso não tinham 
desrespeitado de mexer. E nós, então, cada um depois dum, 
viemos ao quarto-do-oratório beijar a santa maior, que era no 
seu manto como uma boneca muito perfeita, que era a Minha 
Nossa Senhora Mãe-de-Todos. Se comeu, se dormiu. 
Se acordou, bem o digo. Cada dia é um dia. E o tempo 
estava alisado. Triste é a vida do jagunço – dirá o senhor. Ah, 
fico me rindo. O senhor nem não diga nada. “Vida” é noção 
que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma idéia 
falsa. Cada dia é um dia. Ora, mais, ordens já para antes do vir 
da aurora se cumprir, dali Zé Bebelo já tinha dado. E foi se 
saber: o Suzarte e o Tipote, e outros, com o João Vaqueiro, 
rastreavam redobrados, onde em redor, remediando o mundo a 
alho e faro. Tudo eles achavam, tudo sabiam; em pouquinhas 
horas, tudo tradiziam. O chão, em lugares, guardava molde 
marcado dos cascos de muitíssimas reses, calcados para um 
rumo só – um caminho eito. Aqueles rastros tinham vigorado 
por cima da derradeira lama da derradeira chuva. E – de 
quantidade e de quanto tinha chovido – eles liam, no capim e 
nos regos de enxurradas, e na altura da cheia já rebaixada, a 
deixa, beiradas do ribeirão. Pelo comido pastado das reses, 
também, muito se reconhecia. Aos passos dos cavaleiros e 
cachorros. As pessoas da casa tinham viajado para a banda de 
oestes. Mas o gado, escolhendo por si e sem tocada, mas depois 
de solto por boa regra, pegara ida espaçada mais virante acima, 
aonde devia haver, para se lamber, salinas de barreiro. E 
bastantes outras coisas eles decifravam assim, vendo espiado o 
que de graça no geral não se vê. Capaz de divulgarem até os 
usos e costumes das criaturas ausentes, dizer ao senhor se aquele 
seô Habão era magro ou gordo, seria forreta ou mão-aberta, 
canalha inteirado ou razoável homem-de-bem. Porque, dos 
centos milhares de assuntos certos que parecem mágica de 
rastreador, só com o Tipote e o Suzarte o senhor podia rechear 
livro. E ainda antes do meio-dia subir, desemalocaram duas 
gordas novilhas, carneadas fartas para a nossa refeição. Um bom 
entendedor, num bando, faz muita necessidade. 
E aquele lugar, o Valado, eu aceitei – o senhor preste 
atenção! ; para ficar, uns meus tempos, ali, ainda me valia. Senti 
assim, meu destino. Dormindo com um pano molhado em cima 
dos olhos e com a nuca repousada numa folha de faca, de noite 
o destino da gente às vezes conversa, sussurra, explica, até pede 
para não se atrapalhar o devido, mas ajudar. Crendice? Mas 
coração não é meio destino? Permanecer, ao menos ali, eu quis. 
Mas Zé Bebelo duvidou de ficar. Zé Bebelo suscitado 
determinou, que a gente fosse mais para adiante. Ele concebia 
medo. Conheci. Estava. 
Zé Bebelo pegou a principiar medo! Por quê? Chega um 
dia, se tem. Medo dele era da bexiga, do risco de doença e 
morte: achando que o povo do Sucruiú podiam ter trazido o 
mau-ar, e que mesmo o Sucruiú ainda demeava vizinho justo 
demais. Tanto ri. Mas ri por de dentro, e procedi sério feito um 
pau do campo. Assim mesmo, em errei; disso não sabia. Mas o 
cabedal é um só, do misturado viver de todos, que mal vareia, e 
as coisas cumprem norma. Alguém estiver com medo, por 
exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; 
mas, se o senhor firme agüentar de não temer, de jeito nenhum, 
a coragem sua redobra e tresdobra, que até espanta. Pois Zé 
Bebelo, que sempre se suprira certo de si, tendo tudo por 
seguro, agora bambeava. Eu comecei a tremeluzir em mim. 
Pelo que umas cinco léguas andamos. De modo, meio, 
conforme decerto, aquele algum seô Habão também tinha se 
ido. Carecíamos? Merecer logo ao menos uma semana de 
quieto, é que era justo; pois nenhum não estava mais em sua 
saúde. Esses homens do Sucruiú, cercados da banda outra pelos 
catrumanos, ei que só podiam achar espaço por estes lados, eles 
sim. Nós, no nosso. Eu sei que um se mexer a esmo é sempre 
fácil; e que com o cansaço é que se tapa o desânimo. Mas, o que 
eu queria, real, era estar sarado de alguma demorada doença, 
comendo aos poucos o meu caldo com angu, e, em invernia de 
chuva fria esfriada, me esquentando perto do borralho de um 
fogão, e galo de manhã cantando em algum terreiro. Era para ir? 
Fôssemos. Disso deslavava. Descemos a Vereda do Porco-Espim, 
que não tinha nome verdadeiro anterior, e assim chamamos, 
porque um bicho daqueles por lá cruzou. Chapadas de ladeira 
pouca. Depois, uma lomba, com o cerradão. E por fim viemos 
esbarrar em lugar de algum cômodo, mas feio, como feio não se 
vê. – Tudo é gerais... – eu pensei, por consolo. Um homem, que 
com a machadinha na mão e sua cabaça a tiracol tratava de 
desmelar cortiço num pau do mato, esse indicou tudo necessário 
e deu a menção de onde é que estávamos. Na Coruja, um retiro 
taperado. 
E ali, redizendo o que foi meu primeiro pressentimento, eu 
ponho: que era por minha sina o lugar demarcado, começo de 
um grande penar em grandes pecados terríveis. Ali eu não devia 
nunca de me ter vindo; lá eu não devia de ter ficado. Foi o que 
assim de leve eu mesmo me disse, no avistar o redondo daquilo, 
e a velhice da casa. Que mesmo como coruja era – mas da 
orelhuda, mais mor, de tristes gargalhadas; porque a suindara é 
tão linda, nela tudo é cor que nem tem comparação nenhuma, 
por cima de riscas sedas de brancura. E aquele situado lugar não 
desmentia nenhuma tristeza. A vereda dele demorava uma 
agüinha chorada, demais. Até os buritis, mesmo, estavam presos. 
O que é que buriti diz? É: – Eu sei e não sei... Que é que o boi diz: 
– Me ensina o que eu sabia... Bobice de todos. Só esta coisa o 
senhor guarde: meia-légua dali, um outro corgo-vereda, parado, 
sua água sem-cor por sobre de barro preto. Essas veredas eram
duas, uma perto da outra; e logo depois, alargadas, formavam um 
tristonho brejão, tão fechado de moitas de plantas, tão 
apodrecido que em escuro: marimbus que não davam salvação. 
Elas tinham um nome conjunto – que eram as Veredas-Mortas. 
O senhor guarde bem. No meio do cerrado, ah, no meio do 
cerrado, para a gente dividir de lá ir, por uma ou por outra, se via 
uma encruzilhada. Agouro? Eu creio no temor de certos pontos. 
Tem, onde o senhor encosta a palma-da-mão em terra, e sua mão 
treme pra trás ou é a terra que treme se abaixando. A gente joga 
um punhado dela nas costas – e ela esquenta: aquele chão 
gostaria de comer o senhor; e ele cheira a outroras... Uma 
encruzilhada, e pois! – o senhor vá guardando... Aí mire e veja: as 
Veredas Mortas... Ali eu tive limite certo. 
Os ruins dias, o castigo do tempo todo ficado, em que 
falhamos na Coruja, conto malmente. A qualquer narração dessas 
depõe em falso, porque o extenso de todo sofrido se escapole da 
memória. E o senhor não esteve lá. O senhor não escutou, em 
cada anoitecer, a lugugem do canto da mãe-da-lua. O senhor não 
pode estabelecer em sua idéia a minha tristeza quinhoã. Até os 
pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou 
são os tempos, travessia da gente? 
Daí, despropositou o frio, vezmente. E quase que todos os 
companheiros já estavam adoecidos. 
Refiro ao senhor que, da bexiga-brava, não. Mas de outras 
enfermidades. Febres. Em algum trecho, por falta de sinal, a 
gente devia de ter arranchado no sezonático. Agora, a maior 
parte dos companheiros tremiam em prazos, com a intermitente. 
Remédio que valesse, de todo faltava. Aquilo afracava, no diário; 
os homens perdiam a natureza. E um andaço de defluxo, que 
também me baqueou. Pior não estive; mas, eu, de mim, sei. 
Todos, de em antes, me davam por normal, conforme eu era, e 
agora, instantantemente, de dia em dia eu ia ficando demudado. 
Com uma raiva, espalhada em tudo, frouxa nervosia. – “É do 
fígado...” – me diziam. Dormia pouco, com esforços. Nessas 
horas da noite, em que eu restava acordado, minha cabeça estava 
cheia de idéias. Eu pensava, como pensava, como o quem-quem 
remexe no esterco das vacas. Tudo o que me vinha, era só 
entreter um planejado. Feito num traslo copiado de sonho, eu 
preparava os distritos daquilo, que, no começo achei que era 
fantasia; mas que, com o seguido dos dias, se encorpava, e ia 
tomando conta do meu juízo: aquele projeto queria ser e ação! E, 
o que era, eu ainda não digo, mais retardo de relatar. Coisa 
cravada. Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água 
das beiras do rio finge que volta para trás, como a baba do boi cai 
em tantos sete fios. 
Ah, mas aquilo, por terrível que fosse, eu tinha de levantar, 
mas tinha! Em tal já sabia do modo completo, o que eu tinha de 
proceder, sistema que tinha aprendido, as astúcias muito sérias. 
Como é? Aos poucos, pouquinhos, perguntando em conversa a 
uns, escutando de outros, me lembrando de estórias antigo 
contadas. A maneira que quase sem saber o que eu estava 
fazendo e querendo. De em desde muito tempo. Custoso pior 
não sendo, no arrevesso. Só o que demandava era uma fúria de 
quente frieza, dura nos dentes, um rompante de grande coragem. 
Ao que era por tanto negrume e carregume, a mais medonha 
responsabilidade possível – ato que só raro mas raro um homem 
acha o querer para executar, nesses sertões todos. 
Vai, um dia, eu quis. Antes, o que eu vinha era adiando 
aquilo, adiando. Quis, assim, meio às tantas, mesmo desfazendo 
de esclarecer no exato meus passos e motivos. Ao que, na 
moleza, eu tateava. Digo! comecei. Tinha preceito. O que seja – 
primeiro, não se coma, não se beba, e é; se bebe cachaça... Um 
gole que era fogo solto na goela e nos internos. Não quebrava o 
jejum do demo. No que eu confiei que estava pronto para ir 
avante: no que eram obras de chão e escuridão. Engano meu. A 
aguardar, até à hora, eu carecia de não deixar que nem um 
fiozinho de idéia comum em mim esvoaçasse. Deixei. Aí foi um 
instante: Diadorim estava perto de mim, vivo como pessoa, com 
aquela forte meiguice que ele denotava. Diadorim conversou, 
aceitei a companhia dele. Logo larguei meu começo de mão, 
relaxei aqueles propósitos. Cacei comida. Comi tanto, zampei, e 
meu corpo agradecia. Diadorim, com as pestanas compridas, os 
moços olhos. Desde aí, naquelas outras coisas não queria pensar, 
e ri, pauteei, dormi. A vida era muito normal, mesma, e certa bem 
que estava. 
Tanto o engano. Os três dias passados, eu reproduzi tudo 
com uma qualidade de remorsos, aquelas decisões. Sonhei coisas 
muito duras. O porque era pior, agora, que eu tomei sombra 
vergonhosa, por ter começado e não ter tido firmeza para levar a 
acabado. E a herança de minhas queixas antigas. Conforme eu 
pensava: tanta coisa já passada; e, que é que eu era? Um raso 
jagunço atirador, cachorrando por este sertão. O mais que eu 
podia ter sido capaz de pelejar certo, de ser e de fazer; e no real 
eu não conseguia. Só a continuação de airagem, trastejo, trançar o 
vazio. Mas, por quê? – eu pensava. Ah, então, sempre achei: por 
causa de minha costumação, e por causa dos outros. Os outros, 
os companheiros, que viviam à-toa, desestribados; e viviam perto 
da gente demais, desgovernavam todaa-hora a atenção, a certeza 
de se ser, a segurança destemida, e o alto destino possível da 
gente. De que é que adiantava, se não, estatuto de jagunço? Ah, 
era. Por isso, eu tinha grande desprezo de mim, e tinha cisma de 
todo o mundo. Apartado. De Zé Bebelo, mais do que de todos. 
Zé Bebelo doente não estava. Doença, com ele? Sendo o 
que a um assim não podia permitido; só se perdesse de todo o 
siso. A não ser por essa malacafa. Ei, pois, ele estava caipora. 
Logo vi. Daí tinha conta a nossa reles perdição, aquele 
atrasamento geral. Zé Bebelo, para mim, tinha gastado as 
vantagens. Zé Bebelo murchava muda na cor, não existia mais 
em viço para desatinos, nada que falava era mais de se 
reproduzir, aqueles exageros bonitos e tamanhos rasgos. Só 
dizendo que tínhamos de esperar mesmo ali, até que os 
adoecidos sarassem. Assim em impossibilidades. Tudo o que 
acontecia, era a má-sorte. Não digo por um Zé Vital, que tornava 
a dar ataque, dos de entortar boca escumante e se esbracejar e 
espernear com madeira de braços-e-pernas que de quem eram. 
Mas uma jararaca picou o Gregoriano: era aquela, a rastejo no 
capim e nas folhas caídas, nem chegava a quatro palmos – e com 
poder de acabar – e o Gregoriano morreu, em pobres horas. E 
mais conto o que com um Felisberto se dava. Assaz em 
aparências de saúde, mas tendo sido baleado na cabeça, fazia já 
alguns anos; uma bala de garrucha – a bala de cobre, se dizia – 
que estava encravada na vida de seus encaixes e carnes, em ponto 
onde ferramenta de doutor nenhum não alcançava de 
escrafunchar. Aí, com o intervalo dos meses, e de repente, sem 
razão entendível nenhuma, a cara desse Felisberto se esverdeava, 
até os dentes, de azinhavres, ficava mal. Ao que os olhos inchavam, 
tudo fuscado em verde, uma mancha só, o muito grande. O 
nariz entupia, inchado. Ele tossia. E horror de se ver, o metal do 
esverdeio. Daí, feito flor de joaninha-silva em muito sol, do 
meio-dia para a tarde, virava era azul. Aquilo era para poder 
sarar? Quando que? A tosse dum garrote entisicado. Dizia 
naquelas horas que estava sem visiva, nada não enxergava. A 
maior felicidade era ele não saber quem tinha acertado nele 
aquela bala, não carecer de imaginar onde era que tal pessoa 
estava, nem de ódio constante de repensar nela. 
Mas que em desregra a gente se comportava, então, de 
parar ali envelhecendo os dias, na Coruja, como fosse menos-emais 
para aproveitar a carne fresca e de-sol que na campeação se 
conseguia, as boiadas daqueles sertões. Sempre Zé Bebelo não 
desistia de palavrear, a raleza de projetos, como faz-de-conta. A 
mó de moinho, que, nela não caindo o que moer, mói assim 
mesmo, si mesma, mói, mói. As doenças se curassem? Minhas 
dúvidas. Aí, quem não pegara a maleita padecia por outros 
modos – malde-inchar, carregação-do-peito, meias-dores; teve 
até agravado de estupor. Adiantemente, me desvali. O que me 
coçava, que nem se eu tivesse provado lombo de capivara no cio. 
A ser, o fígado, que me doía; mas não me certifiquei: apalpar 
lugar de meu corpo, por doença, me dava um desalento pior. 
Raimundo Lê cozinhou para mim um chá de urumbeba. 
Era um recurso para aliviar meu achaque, e era dado com 
bondade. Isso mesmo foi o que eu disse a Raimundo Lê, 
agradecido: – “É um recurso para aliviar meu achaque, e estou 
vendo que é dado com bondade...” Alaripe pegou a gabar a 
virtude mezinheira das mais raízes e folhas. – “Até estas aqui, 
duvidar, devem de poder servir, em doses, de remédio para algum 
carecer, só que não se sabe...” – ele disse, por uma moita 
rosmunda de frei-jorge, esfiada em tantos espetos, e a pavoã por 
perto crescida. Ali, naquela hora, eu conferi como era usual a 
gente estimar os companheiros, em ajuntado. Diadorim – que 
graças-a-Deus estava de todo são – com os cuidados todos 
depunha assisado por mim. E o Sidurino disse: – “A gente 
carecia agora era de um vero tiroteio, para exercício de não se  
minguar... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, 
vadiando...” Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo 
com o sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei de pronunciar, 
eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de 
arpejo; e o que me picou foi uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram 
com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com 
sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não 
refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma 
ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, 
de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães – eles 
achavam questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, 
por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror 
que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo de homem 
humano. 
A verdade dessa menção, num instante eu achei e 
completei: e quantas outras doideiras assim haviam de estar 
regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de 
acertar com elas todas, de uma vez! Aí, para mim – que não 
tenho rebuço em declarar isto ao senhor – parecia que era só 
eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança 
eu mais não depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a 
Deus era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, 
por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse 
eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em 
povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, 
então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam 
chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. 
Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que 
agora eles podiam estar meus amigos?! O senhor releve o 
tanto dizer, mas assim foi que eu pensei, e pensei ligeiro. Ah, 
eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para 
poder ser instruído e inteligente! E tudo conto, como está 
dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, 
para mim, é quase igual a perder dinheiro. 
Ateado no que pensei, eu sem querer disse alto: – “... Só 
o demo...” E: – “Uém?...” – um deles, espantado, me indagou. 
Aí, teimei e inteirei: – “Só o Que-Não-Fala, o Que-Não-Ri, o 
Muito-Sério – o cão extremo!” Eles acharam divertido. Algum 
fez o pelo-sinal. Eu também. Mas Diadorim, que quando 
ferrava não largava, falou: – “O inimigo é o Hermógenes.” 
Disse, me olhou. Seja, fosse, para agradar o meu espírito. 
Arte de docemente, o que eu não pensei, o que eu reproduzi, 
firme: 
– “Que sim, certo! O inimigo é o Hermógenes...” 
Vigiei Diadorim; ele levantou a cara. Vi como é que 
olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto já 
estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar 
os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro 
de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós 
dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a 
gente acabava de fazer, entestando nos fundos, 
definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes. 
Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes – como ele se 
chamava; hoje, neste sertão, todo o mundo sabe, até em escritos 
no jornal já saiu o nome dele. Mas quem me instruiu disso, na 
ocasião, foi o Lacrau, aquele que à custa de riscos conseguira 
nos Tucanos se baldear para o meio de nós, consoante relatei. A 
ele dei de perguntar, ao mau respeito, muitas coisas. Assaz de 
contente, ele me respondia. Se era verdade, o que se contava? 
Pois era – o Lacrau me confirmou – o Hermógenes era positivo 
pactário. Desde todo o tempo, se tinha sabido daquilo. A terra 
dele, não se tinha noção qual era; mas redito que possuía gados 
e fazendas, para lá do Alto Carinhanha, e no Rio do Borá, e no 
Rio das Fêmeas, nos gerais da Bahia. E, veja, por que sinais se 
conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha 
proteção? Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca 
perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, 
no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para 
corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro. E como 
era a razão desse segredo? – “Ah, que essas coisas são por um 
prazo... Assinou a alma em pagamento. Ora, o que é que vale? 
Que é que a gente faz com alma?...” O Lacrau se ria, só por 
acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, 
não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem 
respeitasse honestidade neste mundo. – “Pra matar, ele foi 
sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo 
rebatizou a cabeça dele com sangue certo: que foi o de um 
homem são e justo, sangrado sem razão...” Mas a valência que 
ele achava era despropositada de enorme, medonha mais forte 
que a de reza-brava, muito mais própria do que a de 
fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de 
todos. – “Você, que não cede nenhum valor à alma, você, 
Lacrau, era capaz de fechar desse pacto?” – eu indaguei. – “Ah, 
não, mano, quero lá não navegar por detrás das coisas... 
Coragem minha é para se remedir contra homem levado feito 
eu, não é para marcar a meia-noite nessas encruzilhadas, 
enfrentar a Figura...” Calado, considerei comigo. Esse Lacrau 
tirava a sensatez da insensatez. Outras informações ele disse. O 
senhor não é como eu? Sem crer, cri. 
Às parlendas, bobéia. O medo, que todos acabavam 
tendo do Hermógenes, era que gerava essas estórias, o quanto 
famanava. O fato fazia fato. Mas, no existir dessa gente do 
sertão, então não houvesse, por bem dizer, um homem mais 
homem? Os outros, o resto, essas criaturas. Só o Hermógenes, 
arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, 
para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido 
capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em tantas alturas. 
Assim eu discerni, sorrateiro, muito estudantemente. Nem 
birra nem agarre eu não estava acautelando. Em tudo 
reconheci: que o Hermógenes era grande destacado daquele 
porte, igual ao pico do serro do Itambé, quando se vê quando 
se vem da banda da Mãe-dos-Homens – surgido alto nas 
nuvens nos horizontes. Até amigo meu pudesse mesmo ser; 
um homem, que havia. Mas Diadorim era quem estava certo: 
o acontecimento que se carecia era de terminar com um. 
Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a 
roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu ânimo 
para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa 
afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para 
dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, 
que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim. 
Mas em tanto, com as mudanças e peripécias, no afinco de 
tudo lhe referir, ditas conforme digo – não toco no nome de 
Otacília? Nela eu queria pensar, na ocasião; mas mal que, cada 
vez, achava mais custoso. A ser que se nublando a sustância da 
recordação, a esquecida formosura. Assim a nossa conversação 
de amor, lá na Santa Catarina, não consistisse mais do que em 
uma estória alheia, escutada de outra pessoa contar. Sei que eu 
queria uma saudade. Para isso rezei, a todas as minhas Nossas 
Senhoras Sertanejas. Mas rebotei de lado aquelas orações, na 
água fina e no ar dos ventos. Elas, era feito eu lavrasse falso, não 
me davam nenhuma cortesia. Só um vexame, de minha extração 
e da minha pessoa: a certeza de que o pai dela nunca havia de 
conceder o casamento, nem tolerar meu remarcado de jagunço, 
entalado na perdição, sem honradez costumeira. As quantias por 
paga! O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois, no 
estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia: um 
dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação. 
Mas eu achei, aí, a possibilidade capaz, a razão. A razão maior, 
era uma. O senhor não quer, o senhor não está querendo saber?  
Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar. 
Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que 
fosse. – “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...” – era como 
eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só 
para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar 
aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na 
verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. 
Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? 
Aquilo, o resto... Aquilo – era eu ir à meia-noite, na 
encruzilhada, esperar o Maligno – fechar o trato, fazer o pacto! 
Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade. 
Também tive. Ah, hoje, ah – tomara eu ter! Rir, antes da hora, 
engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: 
aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura 
dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar. 
E veio mesmo outra manhã, sem assunto, eu decidi 
comigo: – É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem 
motivo para sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não 
é que, não foi de medo. Nem eu cria que, no passo daquilo, 
pudesse se dar alguma visão. O que eu tinha, por mim – só a 
invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que 
algum tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais – 
é peta! – nonada. Do Tristonho vir negociar nas trevas de 
encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de 
pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí 
erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, 
beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando 
chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia 
documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, 
depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo 
quando estremecia. T’arreneguei. 
Com isso, o tempo mais parava. Também, fazia mais de 
mês que a gente estava naquela tapera de retiro, cujo a Coruja 
era que era o nome, por um desses impossíveis de Zé Bebelo. 
Ao que mais foi que aconteceu ali? Bem, passa um bando de 
papagaios, o senhor pensa que eles levaram de sua pessoa 
alguma diversão. Mas os papagaios estão voando já longe, e o 
rumor deles, conforme o vento, faz que nem estivessem 
retornando. Diadorim, esse, nunca teve instante desiludido. 
Sempre eu gostava muito dele. Só que não falasse; por aquele 
tempo eu quase não abria boca para conversação. 
E se deu que chegaram lá dois homens, quando não se 
esperava, um deles se vendo que sendo patrão, e o outro algum 
vaqueiro de seu serviço. Aí logo se soube: era o dono daqueles 
lugares, do retiro do Valado, principalmente; e ele, conforme já 
disse, seô Habão se chamava. Ali, quando dei fé, ele já tinha se 
apeado; estava curvado para o chão, mas seguro com a mão 
esquerda na rédea de seu cavalo. Era um homem de boa idade, 
vestido com brim azul encorpado escuro, e calçando pretas 
botas joelhudas. Quando levantou o olhar, outra vez, notei que 
tinha boa catadura. Mas o cavalo – esse me entusiasmou: era um 
animal gateado, grande, com imponência e todo brio, de rabejo 
vasto; e mais tarde o senhor verá o que ele era; cavalo de cara 
alta, de beiço mole, cavalo que debruça bem e que em poço 
bebia remolhando a testa. Ele sabia olhar redor-mirado a gente, 
com simpatias ou com desprezos, e respirava para dentro dos 
peitos a maior quantidade de ar que desejava, por quantas ventas 
tão largas ele tinha. Bem, dele depois lhe conto. 
Seô Habão estava conversando com Zé Bebelo. Admirei a 
noção dele: que era uma calma muito sensata e firmada, junto 
com um miúdo comportamento. E vigiava os traços simples do 
arredor, não perdendo azo de reparar em todas as coisas, como 
era que estavam em que pé. Olhares de dono – o senhor sabe. E 
assim foi que ele declarou a Zé Bebelo que, na ocasião, estava 
desprevenido, não transportava consigo o dinheiro razoável. 
Mas que, se a gente desse a ele o gosto de seguirmos até à 
verdadeira sua fazenda-grande que possuía, na vertente do 
Resplandor, dali a umas vinte léguas de lonjura, ele havia de 
fornecer ademais um auxílio, em espórtulas. E ele falou aquilo 
com tantas sinceras medidas – a gente se capacitando do 
profundo que o dinheiro para ele devia de ter valor. Por aí, vi 
que ele era adiantado e sagaz. Porque: ema, no chapadão, é a 
primeira que ouve e se sacode e corre – e mesmo em quando 
tenha razão. 
Mas, com seus modos guerreiros, Zé Bebelo abriu um 
gesto, à fidalgamente, nem deixando o outro estipular: 
– “Ah, isso não, patrício meu amigo, he, mas 
absolutamente! A gente não é gente da desordem... E favor, de 
sobra, nós já devemos ao senhorpela pousada em suas terras e 
pelas cabeças de gado de sua posse, que temos carneado, por 
precisão de sustento...” 
O homem depressa pronunciou que tinha prazer naquilo, 
que sua boiada toda estava às ordens; mas, como por uma regra, 
perguntou assim mesmo quantas cabeças, mais ou menos, a 
gente já tinha consumido. Assim ele dava balanço, inquiria, e 
espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão, 
homem carecesse de cuidar comercial. Eu pensei: enquanto 
aquele homem vivesse, a gente sabia que o mundo não se 
acabava. E ele era sertanejo? Sobre minha surpresa, que era. 
Serras que se vão saindo, para destapar outras serras. Tem de 
todas as coisas. Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, 
é só a fazer outras maiores perguntas. 
Fiquei notando. Em como Zé Bebelo aos poucos mais 
proseava, com ensejos de ir mostrando a valia declarada que 
tinha, de jagunço chefe famoso; e daí, sutil, se reconhecia da 
parte dele um certo desejo de agradar ao outro. Por causa que o 
outro era diferido, composto em outra séria qualidade de 
preocupações. E seô Habão, que escutava com respeito, devagarzinho 
pegava a fazer perguntas, com a idéia na lavoura, nos 
trabalhos perdidos daquele ano, por desando das chuvas 
temporãs e do sol grave, e das doenças sucedidas. O que me dava 
a qual inquietação, que era de ver: conheci que fazendeiro-mor é 
sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser 
homem muito provisório. 
E Zé Bebelo mesmo se cansava de falar demonstrado. 
Porque seô Hahão, mansoso e manso, sem glória nenhuma, era 
um toco de pau, que não se destorce, fincado sempre para o seu 
arrumo. Ele só entendia de assuntos triviais, mas cuidava deles 
com uma força vagarosa, verdadeira, de boi-decoice. E, no mais, 
nem ouvia, apesar de toda a cortesia de respeito, quando se falava 
em loca Ramiro, no Hermógenes e no Ricardão, em tiroteios 
com os praças e na grande tomada, por quinhentos cavaleiros, da 
formosa cidade de São Francisco – que é a que o Rio olha com 
melhor amor. Daí, assim ia sendo que, mesmo sem sentir, o 
próprio Zé Bebelo se via principiando a ter de falar com ele em 
todas as pestes de gado, e nas boas leiras de vazante, no feijãoda-
seca e nos arrozais cacheando, em que os passarinhos de 
Deus viram em a má praga. Com efeito, nos intervalos daquela 
dividida conversa, não sei o que Zé Bebelo sentia nem achava. 
Eu, digo – me disse: que um homem assim, seô Habão, era para 
se querer longe da gente; ou, pois, então, que logo se exigisse e 
deportasse. Do contrário, não tinha sincero jeito possível: porque 
ele era de raça tão persistente, no diverso da nossa, que somente 
a estância dele, em frente, já media, conferia e reprovava. 
Mas, sei lá, só por um doente desejo de necessidade de ver 
bem se aquilo era, o certo foi que não sosseguei até poder me 
presenciar com ele, perto a perto, e inventar conversação. E nem 
custoso não me foi, porque ele passou ali com a gente muitas 
horas, quase que o dia todo. Dei um jeito, fazendo como se 
menos quisesse, e vim em fala. Seô Habão me olhou com tantã 
norma desusada, que eu senti minhas falsidades. E esqueci as 
palavras primeiras, que tinha aprontado para declarar. 
– “Seô Capitão Habão...” – eu disse; e num relance eu 
conheci que estava também tendo de falar o p’r’ agradar. 
Assim, o que dissertei foi que eu sabia do título de capitão 
que ele usufruía, por ter relido o diploma, na casa do Valado, 
que de roubos a furtos a gente do Sucruiú tinha devastado. E 
contei a ele que a referida patente eu tinha por cautela apanhado 
do chão e guardado dentro do oratório, por detrás das imagens 
dos santos. 
Ele nem deu ar de interesse no fato, não me agradeceu por 
isso; perguntou nada. Disse: 
- “A bexiga do Sucruiú já terminou. Estou ciente dos que 
morreram: foram só dezoito pessoas...” 
E o que indagou foi se eu soubesse se tinham feito muitos 
estragos nos canaviais. – “... O que eles deixaram em pé, e que 
lobo ou mão-pelada não roeram, sempre há-de dar uns carros, 
se move moagem...” Agora ele conservava os olhos sem olhar, 
num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles capítulos. Disse 
que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de 
rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles 
do Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos 
redobrados. De ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, 
sem calor nenhum, deu em mim, de repente, foram umas 
nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em 
canga, criaturas de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha 
raiva desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era 
antipático. Eu tinha era um começo de certo desgosto, que seria 
meditável. – “Para o ano, se Deus quiser, boto grandes roças no 
Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz...” Ele repisava, que 
o que se podia estender em lavoura, lá, era um desadoro. E 
espiou para mim, com aqueles olhos baçosos – aí eu entendi a 
gana dele: que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os 
companheiros, que a gente pudesse dar os braços, para capinar e 
roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até enjoei. Os jagunços 
destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô 
Habão olhava feito o jacaré no juncal: cobiçava a gente para 
escravos! Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a idéia dele 
não arrumava o assunto assim à certa. Mas a natureza dele 
queria, precisava de todos como escravos. Ainda confesso 
declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seô Habão. 
Porque ele era um homem que estava de mim em tão grandes 
distâncias. A raiva não se tem duma jibóia, porque jibóia 
constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de 
reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, 
com a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao 
senhor que não esperdiçava nem o átomo dumas felpas. A 
alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: 
vinte, trinta carros de milho, ah, os mil alqueires de arroz... Zé 
Bebelo, que esses projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de 
ficar cheio de influência: exclamar que assim era assim mesmo, 
para se transformar aquele sertão inteiro do interior, com 
benfeitorias, para um bom Governo, para esse ô-Brasil! Em 
peta, que, um seô Habão, esse não se entusiasmava. Era só os 
carros-de-bois carreando a cana. E ele dava ordens. Ordem que 
dava, havia de ser costumeira e surda, muito diferente da de 
jagunço. Cada pessoa, cada bicho, cada coisa obedecia. Nós 
íamos virando enxadeiros. Nós? Nunca! Mas, então, eu antes 
queria ver chegar duma vez os do Hermógenes, em galopadas e 
gritos, berrando rifles em todo fogo, e ai para se ouvir, e sangue 
para quem ver pudesse. Aí era que iam saber o que sebaceiro é! 
E, por um despique, foi que acertei meu correão com as armas; e 
pronunciei: 
– “Duvidar, seô Habão, o senhor conhece meu pai, 
fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!” 
Pensei que ele nem fosse acreditar. Mas, juro ao senhor: ele 
me olhou com muitos outros olhos. Aquele olhar eu agüentei, 
facilitado. Seô Habão sacudia em sim a cabeçona, surpreendido 
mas circunstante. – “Dou notícia... Dou notícia...” – ele quase 
que se lastimou. Nem sei se ele sabia que meu Padrinho Selorico 
Mendes fosse, como era, muito mais fornecido de renome e 
avultado em posses, conforme até por estes sertões do gerais se 
contava. Regozijei, devagar; mas não regozijei completo. Do que 
destapei: que um desses, com a estirpe daquele seô Habão, 
tirassem dele, tomassem, de repente, tudo aquilo de que era dono 
– e ele havia de choramingar, que nem criancinha sem mãe, e 
tatear, toda a vida, feito ceguinho catando no chão o cajado, feito 
quem esquenta mãos por cima dum fogo fumacento. A 
misericórdia, também, eu quase tive. Natureza da gente não cabe 
em nenhuma certeza. De ver o homem, em pé, diante de mim, 
recrescer e tornar a minguar – isto tudo no meu juízo – nem sei 
de que estimas me esquecia e de que outras me lembrava. E, com 
pouco, no rebaixar do sol, ele tornou a amontar no seu cavalo 
gateado, belo, e se foi, de rompido, no rumo torto do Valado. 
Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de 
animação, fato que ao senhor retardei: devido que mesmo um 
contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de 
uma vez. Pois foi que o vaqueiro tal, que acompanhava o seô 
Habão, em conversa distraída com algum ou com outro, por 
acasos mencionou que um bando de uns dez homens, jagunços 
também, pelo dito e visto, andavam parapassando, como que à 
espera de destino, em entre o Fazendão Felício – que é na beira 
da estradamor para esse poente todo – e o Porto velho da 
Remeira, no rio Paracatu – aonde, menos dia, mais dia, todo o 
mundo acaba vindo chegando. Depressa então falaram o assunto 
ciente para Zé Bebelo, que reconheceu, pela descrição: – “Chagas 
de Cristo! É eles, ei, egüei... Só pode que pode ser é mesmo o 
João Goanhá, com uns outros...” E instantâneo expediu, para lá, 
dois próprios, que tocassem ligeiro como sem senões e voltassem 
trazendo os comparsas amigos. Isso com a certa alegria se ouviu, 
porque eram novidades acontecendo. 
Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que tomei 
em consciência. O aquilo. Ah, que – agora eu ia! Um tinha de 
estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que 
não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por quê? Tem alguma 
ocasião diversa das outras? Declaro ao senhor: hora chegada. Eu 
ia. Porque eu estava sabendo – se não é que fosse 
naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão. 
Senti esse intimado. E tanto mesmo nas idéias pequenas que já 
me aborrecendo, e por causa de tantos fatos que estavam para 
suceder, dia contra dia. Eu pensava na vinda de João Goanhá, e 
que a gente carecia de sair de novamente por ali, por terras e 
guerras. Pensei naquele seô Habão, que nem num transtorno? 
Mais não sei. E essas coisas desconvinham em mim, em espécie 
de necessidade. A não me apartar à-toa dali – das Veredas- 
Mortas! 
Sombra de sombra, foi entardecendo; fuscava. Ao que eu 
estivesse destemido, soberbo? Da mão peluda, eu firme estava. 
Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em arrojo. Dou: 
que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente com a 
alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações. 
Retrocedi de todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de 
desconfiar, dizer o que era desordens que cabeça de homem não 
cogita. De Diadorim refugi. Ah, deixa a agüinha das grotas 
gruguejar sozinha. E, no singular de meu coração, dou dito: o 
que eu gostava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo – queria 
que ele permanecesse longe de toda confusão e perigos. Há-de, 
essa lembrança branda, de minha ação, minha Nossa Senhora 
ainda marque em meu favor. Deus me tenha! 
Adjaz o campo, então eu subi de lá, noitinha – hora em que 
capivara acorda, sai de seu escondido e vem pastar. Deus é muito 
contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer, 
como fui. 
Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; 
depois, tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado. 
Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as 
estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu 
tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. 
Aí, friazinha. E escolher onde ficar. O que tinha de ser melhor 
debaixo dum pau-Cardoso – que na campina é verde e preto 
fortemente, e de ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, 
como nenhuma outra árvore nomeada. Ainda melhor era a 
capa-rosa – porque no chão bem debaixo dela é que o Careca 
dança, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que não 
cresce nem um fio de capim; e que por isso de caparosa-dojudeu 
nome toma. Não havia. A encruzilhada era pobre de 
qualidades dessas. Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua 
escondida. Medo? Bananeira treme de todo lado. Mas eu tirei de 
dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um 
homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes. 
Desengasguei outras perguntas. Minha opinião não era de ferro? 
Eu podia cortar um cipó e me enforcar pelo pescoço, pendurado 
morrendo daqueles galhos: quem-é-que quem que me 
impedia?! Eu não ia temer. O que eu estava tendo era o medo 
que ele estava tendo de mim! Quem é que era o Demo, o 
Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes de comida 
da terra, não possuía sangue derramável. Viesse, viesse, vinha 
para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, 
eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o 
ázimo do espírito da gente? Como podia? Eu era eu – mais mil 
vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance 
tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada. 
Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu 
não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas 
do escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O 
chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado. 
Arrepia os cabelos das carnes. 
E não conheci arriação, nem cansaço. 
Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. Tinha 
de vir, demorão ou jajão. Mas, em que formas? Chão de 
encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. 
De repente, com um catrapuz de sinal, ou momenteiro com o 
silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode- 
Preto? O Morcegão? O Xu? E de um lugar – tão longe e perto de 
mim, das reformas do Inferno – ele já devia de estar me vigiando, 
o cão que me fareja. Como é possível se estar, desarmado de si, 
entregue ao que outro queira fazer, no se desmedir de tapados 
buracos e tomar pessoa? Tudo era para sobrosso, para mais 
medo; ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença 
de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não 
fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria 
me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto 
fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da 
primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o 
que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de 
tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa,° esta coisa: eu 
somente queria era – ficar sendo! 
E foi assim que as horas reviraram. – A meia-noite vai 
correndo... – eu quis falar. O cote que o frio me apertava por 
baixo. Tossi, até. – “Estou rouco?” – “Pouco...” – eu mesmo 
sozinho conversei. Ser forte é parar quieto; permanecer. Decidi o 
tempo – espiando para cima, para esse céu: nem o setestrelo, 
nem as três-marias, – já tinham afundado; mas o cruzeiro ainda 
rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A vulto, quase encostada 
em mim, uma árvore mal vestida; o surro dos ramos. E 
qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de se 
ver. 
Ao que não vinha – a lufa de um vendaval grande, com 
Ele em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro. 
O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o 
desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, 
eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um 
velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? 
Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar 
melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não 
fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudo 
o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! – “Acabar 
com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!...” –; e isso figurei 
mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma 
razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava 
– feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, 
em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da 
gente – entre o pé e o pisado. Eu muxoxava. Espremia, p’r’ ali, 
amassava. Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar 
comigo – eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d’Ele – e 
lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra 
antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra 
desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu 
queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do 
pé-devento – o ró-ró girado mundo a fora, no dobar, funil de 
final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do 
redemunho... Ah, ri; ele não. Aheu, eu, eu! “Deus ou o Demo – 
para o jagunço Riobaldo!” A pé firmado. Eu esperava, eh! De 
dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu 
repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de 
fôlego – da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a 
mando, de setenta e setentas distâncias do profundo mesmo da 
gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem 
sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer 
pássaro. 
Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada 
sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? 
Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo 
direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às nãovezes, 
é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. 
Remordi o ar: 
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo. 
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que 
principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão 
arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de 
passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono. 
– “Lúcifer! Satanás!...” 
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a 
gente mesmo, demais. 
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!” 
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. 
E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que 
é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me 
ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que 
medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o 
arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um 
gozo de agarro, daí umas tranqüilidades-de pancada. Lembrei 
dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei 
o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, 
eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente 
mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. 
Aragem do sagrado. Absolutas estrelas! 
Pois ainda tardei, esbarrado lá, no burro do lugar. Mas 
como que já estivesse rendido de avesso, de meus íntimos 
esvaziado. – “E a noite não descamba!...” Assim parava eu, por 
reles desânimo de me aluir dali, com efeito; nem firmava em 
nada minha tenção. As quantas horas? E aquele frio, me 
reduzindo. Porque a noite tinha de fazer para mim um corpo de 
mãe – que mais não fala, pronto de parir, ou, quando o que fala, 
a gente não entende? Despresenciei. Aquilo foi um buracão de 
tempo. 
A mor, bem na descida, avante, branquejavam aqueles 
grossos de ar, que lubrinam, que corrubiam. Dos marimbus, das 
Veredas-Mortas. Garoa da madrugada. E, a bem dizer por um 
caminho sem expedição, saí, fui vindo m’embora. Eu tinha tanto 
friúme, assim mesmo me requeimava forte sede. Desci, de 
retorno, para a beira dos buritis, aonde o pano d’água. A claridadezinha 
das estrelas indicava a raso a lisura daquilo. Ali era 
bebedouro de veados e onças. Curvei, bebi, bebi. E a água até 
nem não estava de frio geral: não apalpei nela a mornidão que 
devia-de, nos casos de frio real o tempo estar fazendo. Meu 
corpo era que sentia um frio, de si, frior de dentro e de fora, no 
me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão 
duma friagem assim. E se aquele gelado inteiriço não me largasse 
mais. 
Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o 
esboço no céu, no mermar da d’alva. As barras quebrando. Eu 
encostei na boca o chão, tinha derreado as forças comuns do 
meu corpo. Ao perto d’água, piorava aquele desleixo de frio. 
Abracei com uma árvore, um pé de breubranco. Anta por ali 
tinha rebentado galhos, e estrumado. – “Posso me esconder de 
mim?...” Soporado, fiquei permanecendo. O não sei quanto 
tempo foi que estive. Desentendi os cantos com que piam, os 
passarinhos na madrugança. Eu jazi mole no chato, no folhiço, 
feito se um morcegãocaiaria me tivesse chupado. Só levantei de lá 
foi com fome. Ao alembrável, ainda avistei uma meleira de 
abelha aratim, no baixo do pau-de-vaca, o mel sumoso se 
escorria como uma mina d’água, pelo chão, no meio das folhas 
secas e verdes. Aquilo se arruinava, desperdiçado. Senhor, senhor 
– o senhor não puxa o céu antes da hora! Ao que digo, não digo? 
Cheguei no meio dos outros, quando o jacaré estava 
terminando de coar café. – “Tu treme friúra, pegou da maleita?” 
– algum me perguntou. – “Que os carregue!” – eu arrespondi. E 
mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede. 
Arte – o enfim que nada não tinha me acontecido, e eu queria 
aliviar da recordação, ligeiro, o desatino daquela noite. Assim eu 
estava desdormido, cisado. Aí mesmo, no momento, fui 
ecogitando: que a função do jagunço não tem seu que, nem p’ra 
que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, 
não. O demônio é o Dos-Fins, o Austero, o Severo-Mor. 
Aporro! 
Sabendo que, de lá em diante, jamais nunca eu não sonhei 
mais, nem pudesse; aquele jogo fácil de costume, que de 
primeiro antecipava meus dias e noites, perdi pago. Isso era um 
sinal? Porque os prazos principiavam... E, o que eu fazia, era 
que eu pensava sem querer, o pensar de novidades. Tudo agora 
reluzia com clareza, ocupando minhas idéias, e de tantas coisas 
passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos 
em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que 
fosse por minha própria vontade. Até eu não puxava por isso, e 
pensava o qual, assim mesmo, quase sem esbarrar, o todo 
tempo. 
Nos começos, aquilo bem que achei esquipático. Mas, com 
o seguinte, vim aceitando esse regime, por justo, normal, assim. 
E fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita, 
contente com o viver, mas apressadamente. A dizer, eu não me 
afoitei logo de crer nessa alegria direito, como que o trivial da 
tristeza pudesse retornar. Ah, voltou não; por oras, não voltava. 
– “Uai, tão falante, Tatarana? Quem te veja...” – me 
perguntaram; o Alaripe perguntou. Será que de mim debicavam. 
Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados 
umas passagens de meus tempos, e depois descrevendo, por 
diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam 
desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, 
eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos. 
Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os 
sestros de Zé Bebelo. E eles, os companheiros, não me  
entendiam. Tanto, que foi só entenderem, e logo pegaram a rir. 
Aí riam, de miséria melhorada. 
– “Os mestres, que está certo, amigo...” – o Àlaripe 
dissesse. - “Deveras, está certo, mano-velho...” – outro, o Rasgaem-
Baixo, inteirou. 
Aquilo não tolerei. Esse vesgueiro Rasga-em-Baixo, o qual 
entornava de lado a cabeça, gastando ar demais, o que respirava 
três vezes forte, e fuxicando o nariz, numa fungação. Desentendi 
e impliquei. 
– “Certo de que, nesta vida? Pois eu nem costumo nunca 
xingar ninguém de filho daquela ou dessa, por receio de que seja 
mesmo verdade...” Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam, 
apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz 
enlouquecido devagar, nos Aiáis, não longezinho da Vereda-da- 
Aldeia: o qual não queria adormecer, por um súbito medo que 
nele deu, de que de alguma noite pudesse não saber mais como 
se acordar outra vez, e no inteiro de seu sono restasse preso. 
Mais me acudiam dessas fantasias. E eu relanceei, de 
repente, e falei o que era que a gente precisava: 
– “Urgentemente é se mandar portador, a lugar de 
farmácia, comprar adquirido remédio forte, que há, para se 
terminar com a maleita, em definitividade!” 
Disse, e daí todos aprovaram; mais Zé Bebelo com aquilo 
concordou, de imediato. Portador foi. 
Eu tinha enjôo de toda pasmacez. Com Zé Bebelo, falei: 
– “Chefe, o que se tem de obrar: enviar algum comparsa 
esperto, que cace de entrar para o bando dos Judas, para no meio 
deles observar o serviço que se passa, e remeter para a gente as 
notícias e deixar traço nos lugares. Ou que mesmo dê jeito de 
liquidar mãomente o Hermógenes – proporcionando venenos, 
por um exemplo...” 
– “A maluqueira, Tatarana, isso que você está 
definindo...” – Zé Bebelo me contestou. 
– “Maluqueiras – é o que não dá certo. Mas só é 
maluqueira depois que se sabe que não acertou!” – eu atalhei, 
curto; porque eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior; e 
porque, que alguém falasse contra, por cima das minhas 
palavras, me dava raiva. 
Zé Bebelo retardou em me rever. Do fim, o dizer: 
– “Um homem, para a façanha assim, só mesmo se...” 
– “Sol procura é as pontas dos aços...” – eu cortei, sem 
meio medir o razoado. Ao tanto que Zé Bebelo completava: 
–... Só eu... ou você mesmo, Tatarana. Mas a gente 
somos garrotes remarcados.” 
Mas, daí, me entendendo bem, ele fechou assim: – 
“Riobaldo, tu é um homem de estúrdia valia...” 
A dado sincero; eu senti. Ao perante diante de minhas 
presenças, todos tinham mesmo de ser sinceros. Só nos olhos 
das pessoas é que eu procurava o macio interno delas; só nos 
onde os olhos. 
O José Vereda cachimbava, sentado perto de seus 
pertences. O Balsamão estava ali junto. Esse era maneirasgrossas, 
homem de muito sobrecenho. Derradeiramente eles 
estavam muito amigos, mesmo porque os dois eram da mesma 
terra – geralistas das campinas. Má vontade me veio, de dizer, 
eu disse: – “Assunto aí não é capaz que haja? Torto, torto, 
nasceu morto... Olh’ lá, caso se um de vocês tem mulher 
bonita e nova, quando retornarem para casa...” Isso podia ser 
razão de desguisado. Eu queria rixar? Figuro de cientificar ao 
senhor: o costume meu nunca tinha sido esse. Agora, era que 
eu me espiritava só para arrelias e inconveniências. E, aí, 
quando uns estavam querendo tirar oração, por ser dia de 
domingo, não estive que não falasse: – “Reza é começo de 
quaresma...” Os que riram, riram. Foram deixando de lado 
aquela mexida igrejeira. Apondo em balança, que é que isso 
me representava? Tudo eu palpava com os pés, nisso eu 
respingava um tardar. 
Daqui veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles 
meus modos. A entender me deu, e eu reminiquei, com soltura 
de palavras: como é que ia tolerar conselho ou contradição? 
Agravei o branco em preto. Mas Diadorim perseverou com os 
olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no 
encantado daquilo – num vem-vem de amor. Amor é assim – 
o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão! 
Conferindo que nem vergonha eu tive. Não ter vergonha 
como homem, é fácil; dificultoso e bom era poder não se ter 
vergonha feito os bichos animais. O que não digo, o senhor 
verá: como é que Diadorim podia ser assim em minha vida o 
maior segredo? De manhã, naquele mesmo dia, ele tinha 
conversado, de me dizer: 
– “Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido 
parente meu...” Isso dava para alegria, dava para tristeza. O 
parente dele? Querer o certo, do incerto, coisa que significava. 
Parente não é o escolhido – é o demarcado. Mas, por cativa 
em seu destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços. 
Diadorim pertencia a sina diferente. Eu vim, eu tinha escolhido 
para o meu amor o amor de Otacília. Otacília – quando 
eu pensava nela, era mesmo como estivesse escrevendo uma 
carta. Diadorim, esse, o senhor sabe como um rio é bravo? É, 
toda a vida, de longe a longe, rolando essas braças águas, de 
outra parte, de outra parte, de fugida, no sertão. E uma vez ele 
mesmo tinha falado: – “Nós dois, Riobaldo, a gente, você e 
eu... Por que é que separação é dever tão forte?...” Aquilo de 
chumbo era. Mas Diadorim pensava em amor, mas Diadorim 
sentia ódio. Um nome rodeante: Joca Ramiro – José Otávio 
Ramiro Bettancourt Marins, o Chefe, o pai dele? Um mandado 
de ódio. No que eu sabia. Não venci as ácidas picuinhas, no 
relembrar: 
– “Aquele, hora destas, deve de andar lá por entre o 
Urucuia e o Pardo... O Hermógenes...” 
Ele acinzentou a cara. Tremeu, aos pingos, no 
centrozinho dos olhos. Revi que era o Reinaldo, que guerreava 
delicado e terrível nas batalhas. Diadorim, semelhasse maninel, 
mas diabrável sempre assim, como eu agora eu estava 
contente de ver. Como era que era: o único homem que a 
coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja 
toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e 
ferro. 
E, em relance em mais, eu já estava carecendo de 
declarar aos companheiros todos os erros que vínhamos 
pagando, por motivo do ultimamente, conforme agora eu 
ladino deduzia. Disse, com modos, ao próprio Zé Bebelo, que 
isto de mim escutou: 
– “... Sem tenção de descrédito ou ofensa, Chefe, mas 
duvido de que bem fizemos em restar todos aqui, comprando 
cura de doenças. Mais ajuizado certo não seria se ter remetido 
meia-dúzia de cabras, dos sãos, que tivessem ido buscar a 
munição nesse lugar, a Virgem-Mãe, e trazer? Munição já 
estava aqui, e a gente estava mais garantidos...” 
Zé Bebelo em mal amargo – ele espinoteou com a 
cabeça, arejou os queijos. Desde, depressinha, me explicou a 
maior razão, com palavras baixas. Porque ele de tudo já 
soubesse: foi então que me disse que o extravio nosso tinha 
sido mais completo; porque a gente tinha vindo em má rota, 
em vez da Virgem-Mãe para a Virgem-da-Laje. Eu escutei, tei. 
Em outras ocasiões, uma notícia dessas era capaz de me 
perturbar. Mas, dessa viagem, eu achava até divertido. Figuro 
explicando ao senhor: desde por aí, tudo o que vinha a 
suceder era engraçado e novo, servia para maiores movimentos. 
Com essas levezas eu seguia a vida. 
Quando, então, trouxeram reunidos todos os animais, 
estavam ajuntando a cavalhada. Regulava subida manhã, orçado o 
sol, e eles redondeavam no aprazível – tropilha grande, pondo 
poeira, dado o alvoroço de muitos cascos. Fiz um rebuliz? Dou 
confesso o que foi: era de mim que eles estavam espantados. Aí 
porque a cavalaria me viu chegar, e se estrepoliu. O que é que 
cavalo sabe? Uns deles rinchavam de medo; cavalo sempre 
relincha exagerado. Ardido aquele nitrinte riso fininho, e, como 
não podiam se escapulir para longe, que uns suavam, e já 
escumavam e retremiam, que com as orelhas apontavam. Assim 
ficaram, mas murchando e obedecendo, quando, com uma raiva 
tão repentina, eu pulei para o meio deles: - “Barzabu! Aquieta, 
cambada!” – que eu gritei. Me avaliaram. Mesmo pus a mão no 
lombo dum, que emagreceu à vista, encurtando e baixando a 
cabeça, arrufava a crina, conforme terminou o bufo de bufor. 
Notei que os companheiros reparavam a estranhez daquilo, 
dos cavalos e as minhas maneiras. Só que se riam, formados no 
costume de jagunços, que é de frouxas essas leviandades. - 
“Barzabu!” – ô gente!, feito fosse minha certeza, o Das-Trevas. E 
eu parava, rente, no meio de todos, que de volta aceitavam minha 
presença, esses cavalos. 
-“Tu sendo peão amansador domador?!” – que o Ragásio 
caçoou comigo. Mas eu me virei, e já se ouvia outro tropel: era 
aquele seô Habão, que chegava. Vinha com três homens, 
estroteantes – gentinha trabalhosa. E o animal dele, o gateado 
formoso, deu que veio se esbarrar ante mim. Foi o seô Habão 
saltando em apeio, e ele se empinou: de dobrar os jarretes e o 
rabo no chão; o cabresto, solto da mão do dono, chicoteou alto 
no ar. - “Barzabu!” – xinguei. E o cavalão, lão, lão, pôs pernas 
para adiante e o corpo para trás, como onça fêmea no cio mor. 
Me obedecia. Isto, juro ao senhor: é fato de verdade. 
O seô Habão estava ali, me desentendeu nos olhos. Ele 
ficou a vermelho. Mas eu acho que, homem só vendido ao 
dinheiro e ao ganho, às vezes são os que percebem primeiro o 
atiço real das coisas, com a ligeireza mais sutil. Ele não gaguejou. 
Melhor me disse: - “Se este praz ao senhor... Se ele praz ao 
senhor... Lhe dou, amigavelmente, com bom agrado: assim como 
ele está, moço, ele é seu...” 
Não acreditei? Reafirmo ao senhor: meu coração não 
pulsou dúvidas. Agradeci, com meu brio; peguei a ponta do 
cabresto. Agora, daquela hora, era meu o cavalo grande, com 
suas manchas e riscas – ah, como ele pisava peso no chão, e 
como ocupava tão grande lugar! Até passeei um carinho nas faces 
dele, e pela tábua-do-pescoço a fora. Meu o bicho era, por posse, 
e assim revestido, conforme estava – que era com um Bocadinho 
bom, com caçambas de pau. Mas sendo que, dividido o instante, 
eu já ali pensei: por que seria que o seô Habão se engraçava de 
me presentear de repente com uma prenda dum valor desse, eu 
que não era amigo nem parente dele, que não me devia 
obrigação, quase que nem me conhecia? Aos que projetos ele 
engenhava em sua mente, que possança minha ele adivinhava? A 
pois, fosse. Aquele homem me temia? Da admiração de meu 
povo todo, dei fé, borborinho com que me rodeavam. Certo, 
deviam de estar com invejas. Fosse! E a mãe!... A primeira coisa, 
que um para ser alto nesta vida tem de aprender, é topar firme as 
invejas dos outros restantes... Me rejo, me calejo! Só por causa 
daquele cavalo, até, eu fui ficando mais e mais, enfrentava. Não 
me riram. 
-“É deveras... Animal de riqueza: graúdo, farto e 
manteúdo...” - “Sorte é isto. Merecer e ter...” 
- “Ainda bem que foi bem empregado...” 
Só dissessem. Disfarcei meu regozijo. Disse logo foi a 
tenção de maiores idéias em desejos – segundo a como apeirado 
aquele eu já queria: que arreado à gaúcha, com peitoral com 
pratas em meia-lua, e as peças dos arreios chapeadas de belo 
metal. 
- “Ara, que assim ouvi, Tatarana: o nome que ele vai se 
chamar é mesmo Barzabu?” – algum caçoou de me perguntar. 
- “A não, meu compadre torto! Sossega a velha... Nome 
que dou a ele, d’ora em diante, conferido, é este – quem que 
aprender, aprende! – que é: o cavalo SiruizL..” – assim foi que eu 
respondi, sem tempo nenhum para pensamento. Montei. 
Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, 
ladroalmente. Pois Zé Bebelo estava aparecendo ali, e eu atinei, 
ligeiro, com o que não tinha refletido. Ao que: oferecer e receber 
um presente daquele, naquelas condições, era a mesma coisa que 
forte ofender Zé Bebelo. Um dom de tanto quilate tinha de ser 
para o Chefe. Reconheci, aí. Mas não tirei para trás. Não 
desapeei. É de ver que, conforme em mim, nesses enquantos, eu 
já devia de estar fitando Zé Bebelo com um certo desprezo. Ia 
haver o que ia haver, e eu não me importei. Um qualquer chefe 
de jagunço havia de ter ímpeto de resolver aquilo fatal. Aí, 
esperei. Teria sido uma tenção dessas, de arder a desordem no 
meio nosso, a razão do seô Habão? Pensei o dito, num ínterim. E 
pensei pontudo em minhas armas. 
Mas Zé Bebelo, acabando de saber o acontecido, mirou em 
mim, somente, poupado risonho: - “Tal te fica bem, Professor, 
amontado nesse estampo, queremos havemos de te ver garboso, 
guerreando as boas batalhas... Em hora!...” – foi o que ele disse, 
se me seja que gostou pouco. Choveu para o meu arrozal! Ah, 
mesmo só inteligência, só, era que que era aquele homem. 
Desapeei. 
Como por um rasgo, para solércias, dei o cabresto ao 
Fafafa. Disse: – “Tu desarreia, amilha e escova, tu trata dele...” ; e 
isso fiz, porque o Fafafa, que tanto gostava simples de cavalos, 
era o prestante para cuidar dum animal, em mesmo que dele não 
sendo. Mas eu tinha dado uma ordem. Assim me refiz. E o seô 
Habão tinha trazido também boa quantidade de remédio para se 
tomar pela maleita, das pastilhas mais amargosas. Todo o mundo 
recebia. 
Saí, uns passos. Eu estava dando as costas a Zé Bebelo. Ele 
podia, num relance, me agredir de morte, me atirar por detrás... – 
atentei. Esbarrei em meu caminhar, fiquei assim parado, assim 
mesmo. O medo nenhum: eu estava forro, glorial, assegurado; 
quem ia conseguir audácias para atirar em mim? As deles haviam 
de amolecer e retombar, com emortecidos braços; eu podia dar 
as costas para todos. O que o Drão – o demonião – me disse, 
disse: seria só? Olhei para cima: pegaram nas nuvens do céu com 
mãos de azul. Aquela firme possança; assim permaneci, outro 
tempo, acendido. Eu leve, leve, feito de poder correr o mundo ao 
redor. Ao senhor eu conto, direto, isto como foi, num dia tão 
natural. Será que, de cousas tão forçosas, eu ia poder me 
esquecer? Aquele dia era uma véspera. 
Em tanto o seô Habão jantou com a gente. Raimundo Lê 
repartiu com os carecidos as pastilhas de remédio. Diadorim meu 
amigo estava. Zé Bebelo me chamou adeparte, me expondo 
especializado diversas coisas que pretendia reformar de fazer. 
Alaripe conversou comigo. E dessa derradeira conversa quero 
referir ao senhor. Foi que, eu puxando, eu desejando saber, se 
falou muito nessas orações de curar a gente contra bala de morte, 
e em breves que fecham o corpo. Alaripe então contou uma 
estória, caso sucedido, fazia tempos, no giro do sertão. O qual era 
o seguinte. 
Um José Misuso uma vez estava ensinando a um 
Etelvininho, a troco de quarenta mil-réis, como é que se faz a 
arte de um inimigo ter de errar o tiro que é destinado na gente. 
Do que deu o preceito: - “... Só o sangue-frio de fé é que se 
carece – pra, na horinha, se encarar o outro, e um grito pensar, 
somente: Tu erra esse tiro, tu erra, tu erra, a bala sai vindo de 
lado, não acerta em mim, tu erra, tu erra, filho de uma cã!...” 
Assim ele ensinou ao Etelvininho, o Misuso. Mas, aí, o 
Etelvininho reclamou: - “Ara, pois, se é só isso, só issozinho, 
pois então eu já sabia, mesmo por mim, sem ninguém me ensinar 
– já fiz, executei assim, umas muitas vezes...” - “E fez igualzinho, 
conforme o que eu defini?” – indagou o José Misuso, duvidando. 
- “Igualzinho justo. Só que, no fim, eu pensava insultado era: ... 
seu filho duma cuia!...” – o Etelvininho respondeu. - “Ah, pois 
então” – o José Misuso cortou a questão - “... pois então basta 
que tu me pague só uns vinte mil-réis...” 
A gente muito rimos todos. A hora a ser de satisfa, alegrias 
sobejavam. Se caçoou, se bebeu, um cantou o sebastião. 
Mansinho, mãe, chegaram as voltas da noite. Dormi com a cara 
na lua. 
Acordei. A madrugada com luar, me lembro, acordei com o 
rumor de cavaleiros que vinham chegando, no esquipado, e que 
travavam repentino com áspero estremecimento os cavalos: 
br’r’r’uuu... Calculei: uns dez. Ao que eram. Levantei, pulando de 
minha rede, quem podiam esses ser? Todos os companheiros nos 
rifles, e eu não tinha escutado aviso de sentinelas. 
Madrugada essa boa claridade. Luar que só o sertão viu. 
Vim dele. 
- “Aí é o nosso João Goanhá, com os cabras...” – disse 
Diadorim, que tinha a rede dele armada da minha a uns três 
passos. Assim era. João Goanhá, o Paspe, Drumõo, o compadre 
Ciril, o Bobadela, o Isidoro... Tornar a encontrar companheiros 
desses, aí é que se põe significado na vida, se encompridando se 
encurtando. O João Goanhá, gordo, forte, barbudo. Era a dele 
uma barba muito fechada, muito preta. Veio do luar, chegou 
bom. Todo o mundo falava, a gente se abraçava. Com pouco o 
fogo se acendia, para o café, para algum almoço. Enquanto isso, 
Zé Bebelo, formado em pé, o mais rompante que pudesse, pedia 
notícias por interrogação. 
Antes, as verdades, essas, as coisas comuns, conforme foi 
que se passaram. Mais não sei? Mesmo não tinha botado idéia na 
cabeça, acabando de despertar de meu sono. Diadorim era o que 
estava alegrinho especial: só se ele tinha bebido. Diadorim, de 
meu amor – põe o pezinho em cera branca, que eu rastreio a flor 
de tuas passadas. Me recordo de que as balas em meu revólver 
verifiquei. Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como 
os rios não dormem. O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer 
é chegar a ser mais grosso, mais fundo. O Urucuia é um rio, o rio 
das montanhas. Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, 
veredas, marimbus, a sombra separada dos buritizais, ele. 
Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? Um 
buraquinho d’água mata minha sede, uma palmeira só me dá 
minha casa. Casinha que eu fiz, pequena – ô gente! – para o 
sereno remolhar. O Urucuia, o chapadão derredor dele. Estas 
árvores: essas árvores. Conversa, Zé Bebelo: conversa, com as 
marrecas chocas, no meio das varas do juncal. Mesmo na hora 
em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele 
corre. O que eu fui, o que eu fui. E esses velhos chapadões – 
dele, dos Couros, de Antônio Pereira, dos Arrepiados, do Couto, 
do Arrenegado. Um homem é escuro, no meio do luar da lua – 
lasca de breu. Dentro de mim eu tenho um sono, e mas fora de 
mim eu vejo um sonho – um sonho eu tive. O fim de fomes. Ei, 
boto machado em toda árvore. Eu caminhei para diante. Em, ô 
gente, eu dei mais um passo à frente: tudo agora era possível. 
Não era de propósito, o senhor não julgue. Nem não 
fizeram espantos. Não exclamei, não pronunciei; só disse. 
- “Ah, agora quem aqui é que é o Chefe?” 
Só perguntei. Sei por quê? Só por saber, e quem-sabe por 
excessos daquela minha mania derradeira, de me comparecer 
com as doidivãs bestagens, parlapatal. De forma nenhuma eu não 
queria afrontar ninguém. Até com preguiça eu estava. A verdade, 
porém, que um tinha de ser o chefe. Zé Bebelo ou João Goanhá. 
Um para o outro olharam. 
- “Agora quem é que é o Chefe?” 
Somente eu estava por cima da surpresa deles? Zé Bebelo – 
o pensante, soberbo e opinioso. João Goanhá – duro homem tão 
simples, vindo por meio de dificuldades e distâncias, desde a 
outra banda do rio, caçar a lei da companhia da gente, como um 
costume necessário, que sem isso ele não conseguia direito se 
pertencer. Com meus olhos, tomei conta. 
- “Quem é que é o Chefe?!” – repeti. 
Me olharam. Saber, não soubessem, não podiam como 
responder: porque nenhum deles não era. Zé Bebelo ainda fosse? 
Esse pardejou. E, o João Goanhá, eu vi aquele mestre quieto se 
mexer, em quente e frio, diante das minhas vistas-nem não tinha 
ossos: tudo nele foi encurtando medidagesto, fala, olhar e estar. 
Nenhum deles. E eu – ah – eu era quem menos sabia – porque o 
Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo! Olharam para mim. 
- “Quem é qu’...” 
E... Ao que o pessoal, os companheiros todos, convocados, 
fechavam roda. Eu felão. Não me entendessem? Foi que alguns 
dos homens rosnaram. E foi esse Rasga-em-Baixo, o principal 
deles, esse, pelo que era, pelo visto, oculto inimigo meu – que 
buliu em suas armas... Sanha aos crespos, luziu faca, no a-golpe... 
Meu revólver falou, bala justa, o Rasga-em-Baixo se fartou no 
chão, semeado, já sem ação e sem alma nenhuma dentro. E aí o 
irmão dele, José Félix: ele tremeu muito lateral; livrou o ar de sua 
pessoa; outro tiro eu também tinha dado... 
- “ ... é o Chefe?!...” 
Ato de todos quietos permanecidos, esbarrados com tanta 
singelez de choques. Ah, eu, meu nome era Tatarana! E 
Diadorim, jaguarado, mais em pé que um outro qualquer, se 
asava e abava, de repor o medo mor. Ele veio marechal. Se 
viram, se sentiram, decerto que acertaram: pelos altos de nós 
dois; e porque logo aí Alaripe, o Acauã, o Fafafa, o Nélson, 
Sidurino, Compadre Ciril, Pacamã-de-Presas – e outros e outrosjá 
formavam do lado da gente. – Tenho de chefiar! – eu queria, 
eu pensava. Isso eu exigia. Assim. João Goanhá se riu para mim. 
Zé Bebelo sacudiu uns ombros. 
Ali, era a hora. E eu frentemente endireitei com Zé Bebelo, 
com ele de barba a barba. Zé Bebelo não conhecia medo. Ao 
então, era um sangue ou sangues, o etcétera que fosse. Eu não 
aceitava muita parlagem: - “Quem é que é o Chefe?” – eu quis. 
Se quis, foi com muita serenidade. Zé Bebelo retardou. Eu 
social, encostado. Conheci que ele tardava e pensava, para ver o 
que fazer mais vagarosamente. 
- “Quem é-que?” – eu brando apertei. 
Eu sabia do respirar de todos. Durasse mais, aquilo eu já 
largava, por me cansar, por estar achando cacete. Minha vontade 
estroina de paliar: – Seu Zé Bebelo, velho, tu me desculpe... – eu 
calei. Zé Bebelo se encolheu um pouco, só. Aí ele não tremeu, no 
sucinto dos olhos. 
- “A rente, Riobaldo! Tu o chefe, chefe, é: tu o Chefe fica 
sendo... Ao que vale!...” – ele dissezinho fortemente, mesmo 
mudado em festivo, glo riando um fervor. Mas eu temi que ele 
chorasse. Antes, em rosto de homem e de jagunço, eu nunca 
tinha avistado tantas tristezas. 
- “Sendo vós, companheiros...” – eu falei para em volta. 
Tantos, tantos homens, os nos rifles, e eles me aceitavam. 
Assim aprovaram. O Chefe Riobaldo. Aos gritos, todos 
aprovavam. Rejuravam, a pois. A esses resultados. No que eram 
com solenidade, sinceridade. Tudo dado em paz. Só aqueles dois 
amaldiçoados irmãos, baldeados mortos, na ponta de unha. Ali, 
enterrar aqueles dois seria faltar a meu respeito. Amém. Tudo me 
dado. O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum 
fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um falso 
narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é: as coisas que acontecem, é 
porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; 
e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento. 
Assim. Arte que virei chefe. Assim exato é que foi, juro ao 
senhor. Outros é que contam de outra maneira. 
Ao fim, depois que João Goanhá me aprovou, revi os 
aspectos de Zé Bebelo. Acertar com ele. 
- “O senhor, agora...” – eu quis dizer. 
- “Não, Riobaldo...” – ele me atalhou. - “Tenho de tanger 
urubu, no m’embora. Sei não ser terceiro, nem segundo. Minha 
fama de jagunço deu o final...” 
Daí, riu, e disse, mesmo cortês: - “Mas, você é o outro 
homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu 
branco...” 
O nome que ele me dava, era um nome, rebatismo desse 
nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos. Contanto 
que logo gritavam, entusiasmados: - “O Urutu-Branco! Ei, o 
Urutu-Branco!...” 
Assim era que, na rudeza deles, eles tinham muita 
compreensão. Até porque mais não seria que, eu chefe, agora 
ainda me viessem e dissessem Riobaldo somente, ou aquele 
apelido apodo conome, que era de Tatarana. Achei, achava. 
Vai, e eu, por um raio de momento, eu tinha concebido que 
carecesse de tirar a vida a Zé Bebelo, por maior sossego de meu 
reger, no futuramente; e agora eu estava quase triste, com pena 
de ver que ele ia-s’embora. O divertido havia de ser, sim isso, de 
levar Zé Bebelo comigo, de sotenente, através desse através. Ah, 
homem como aquele, não se matava. Homem como aquele, 
pouco obedecia. A ele mandei fornecer mais um cavalo, e um 
cargueiro – com mantimento, coisas, munição melhor. Dali a 
hora, mesmo, ele pegou caminho. Para o sul. Vi quando ele se 
despediu e tocou – com o bom respeito de todos ; e fiquei me 
alembrando daquela vez, de quando ele tinha seguido sozinho 
para Goiás, expulso, por julgamento, deste sertão. Tudo estava 
sendo repetido. Mas, da vez dessa, o julgamento era ele, ele 
mesmo, quem tinha dado e baixado. Zé Bebelo ia s’embora, 
conseguintemente. Agora, o tempo de todas as doideiras estava 
bicho livre para principiar. 
De seguida, parado persisti, para um prazo de fôlego. Aí 
vendo que o pessoal meu já me obedecia, prático mesmo antes 
da hora. Como que corriam e mexiam, se aprontando para saída, 
sacudiam no ar os baixeiros, selavam os cavalos. Tantos e tantos, 
eu sabia o nome e o defeito maior de cada um daqueles homens, 
e tantos seus braços e tantos rifles e coragens. Aí eu mandava. Aí 
eu estava livre, a limpo de meus tristes passados. Aí eu 
desfechava. Sinal como que me dessem essas terras todas dos 
Gerais, pertencentes. Por perigos, que por diante estivessem, eu 
aumentava os quilates de meu regozijo. À fé, quando eu 
mandasse uma coisa, ah, então tinha de se cumprir, de qualquer 
jeito. - “Tenho resoluto que!” – e montei, com a vontade muito 
confiada. Dali a gente tinha logo de sair, segundo ã regra exata. 
Estradeei. Nem olhei para trás. Os outros me viessem? Cantava o 
trinca-ferro. Uma arara chiou cheio; levou bala, quase. Atrás de 
mim, os cabras deram vivas. Eles vinham, em vinham. Eu 
contava, prazido, o tôo dos cascos. 
Dei galope. No Valado chegamos, conforme íamos 
retornar, por assim. De galope, como está dito. Gente, gentinha, 
nos rodeou, roceiros em seu serviço. Aquele seô Habão, incluso, 
muito estarrecido. Esbarramos parada. O que eu carecia era de 
uns instantes sempre meus, para estribar meu uso. Era primeira 
viagem saída, de nova jagunçagem; e as extraordinárias cousas, 
para que todos admirassem e vissem, eu estava em precisão de 
fazer. E vi um itambé de pedra muito lisa; subi lá. Mandei os 
homens ficassem embaixo, eles outros esperavam. Minha 
influência de afã, alegria em artes, não padecesse de se estorvar 
em monte de pessoas nenhumas. De despiço, olhei: eles nem 
careciam de ter nomes – por um querer meu, para viver e para 
morrer, era que valiam. Tinham me dado em mão o brinquedo 
do mundo. 
Fiquei lá em cima, um tempo. Quando desci, umas coisas 
eu resolvia. Aonde se ia; em cata do Hermógenes? Ah, não. 
Antes, primeiro, para o Chapadão do Urucuia, onde tanto boi 
berra. Ao que me seguissem. Ah, mas, assim, não. O que foi o 
que eu pensei, mas que não disse: – Assim não... 
E veio perante minha presença o seô Habão, mais 
antecipado que todos; macio, atarefadinho, ele já me sussurrava. 
Homem, esse! Ele queria me oferecer dinheiro, com seus meios 
queria me facilitar. Ah, não! de mim ele é que tinha de receber, 
tinha de tomar. Agarrei o cordão de meu pescoço, rebentei, com 
todas aquelas verônicas. As medalhas, umas delas que eu tinha de 
em desde menino. Fiz gesto: entreguei, na mão dele. O senhor 
havia de gostar de ver o ar daquele seô Habão, forçado de aceitar 
pagamento do que nem eram correntias moedas de tesouro do 
rei, mas costumeiras prendas de louvor aos santos. Ele estava em 
todos tremores – conforme esses homens que não têm vergonha 
de mostrar medo, em desde que possam pedir à gente perdão 
com muita seriedade. Digo ao senhor: ele beijou minha mão! Ele 
devia de estar imaginando que eu tinha perdido o siso. Assim 
mesmo, me agradeceu bem, e guardou com muito apreço as 
medalhas na algibeira; até porque, não podia obrar de outra 
forma. Matar aquele homem, não adiantava. Para o começo de 
concerto deste mundo, que é que adiantava? Só se a gente 
tomasse tudo o que era dele, e fosse largar o cujo bem longe de 
lá, em estranhas terras, adonde ele fosse preta-e-brancamente 
desconhecido de todos: então, ele havia de ter de pedir esmolas... 
Isso, naquela hora, pensei. Ah, não. E nem não adiantava: 
mendigo mesmo, duro tristonho, ele havia ainda de obedecer de 
só ajuntar, ajuntar, até à data de morrer, de migas a migalhas... 
As verônicas e os breves ele vendesse ou avarasse para os 
infernos. Comigo só o escapulário ainda ficou. Aquele 
escapulário, dito, que conservava pétalas de flor, em pedaço de 
toalha de altar recosturadas, e que consagrava um pedido de 
benção à minha Nossa Senhora da Abadia. Que, mesmo, mais 
tarde, tornei a pendurar, num fio oleado e retrançado. Esse eu 
fora não botava, ah, agora podia desdeixar não; inda que ele me 
reprovasse, em hora e hora, tantos meus malfeitos, indas que 
assim requeimasse a pele de minhas carnes, que debaixo dele meu 
peito todo torcesse que nem pedaço quebrado de má cobra. 
E, num reverter de mão, eu já estava pensando: o que eu ia 
fazer com ele, com o seô Habão, por alguma alvíssara de mercê. 
Porque, em fato, ele merecia, e eu a ele devia. Porque ele tinha 
vesprado em reconhecer meu poder, antes de outro qualquer; e 
mesmo um barão de presente dele tinha sido, e era, aquele meu 
formoso cavalo Siruiz, em qual eu estava amontado. 
Aí, me lembrei, de uma coisa, e isso era próprio encargo 
para ele, cabendo em sua marca de qualidade. Me lembrei da 
pedra: a pedra de valor, tão bonita, que do Araçuaí eu tinha 
trazido, fazia tanto tempo. Tirei o embrulhinho, da bolsa do 
cinto. Apresentei a ele. Eu falei: - “Seô Habão, o senhor escute, o 
senhor cumpra: pega este mimo, zelando com os dedos todos de 
suas mãos... já e já, o senhor viaje, num bom animal, siga rumo 
dos Buritis Altos, cabeceira de vereda, para a Fazenda Santa 
Catarina...” 
E mais disse: que era para entregar, de minha parte, à moça 
da casa, que Otacília se chamava, a qual era minha sempre noiva. 
Mas não dando razão de nomear minha pessoa pelos altos 
títulos, nem citando chefia de jagunços... Mas somente prezar 
que eu era Riobaldo, com meus homens, trazendo glória e justiça 
em território dos Gerais de todos esses grandes rios que do 
poente para o nascente vão, desde que o mundo mundo é, 
enquanto Deus dura! 
Ah, não: em Deus não falasse. Seô Habão pôs atenção; 
perturbado mas sisudo, ele cogitava. O que ele dizia, carecia de 
ser repetido, esfiando o as sunto nas pontas dos dedos, tostões. 
Ser rico é um diverso dissabor? Que um pudesse se acautelar 
assim, me atanazava. Quem era? O que por primeira vez reparei: 
que ele tinha as orelhas muito grandes, tão grandonas; até, sem 
querer, eu tive de experimentar com a mão o tamanho medido 
das minhas. Melhor trazer esse sujeito comigo, perto mais perto, 
para poder vigiar, por todas as partes? Melhor, não; o melhor 
seria desmanchar a presença dele em definitivas distâncias. – Não 
vou comer teus peitos, teu nariz, teus duros olhos moles... – eu 
pensei. Mas ele também tinha alguma espécie de chefia. Eu virei 
a cara, andei três passos, dando com Diadorim. - “O que eu 
tolero e desentendo, esse homem: que é, porque, dele, não se 
consegue ter raiva nem ter pena...” – falei. Mas vi um adejo 
sombrio no meu amigo, condenado que era de tristeza que não 
quer ceder suas lágrimas. O quanto, por causa da pedra de 
topázio? – eu reconheci. Eu não tinha tido dó de Diadorim. 
“Dei’stá’, tem tempo, Diadorim, tem tempo...” – pensei, a meio. 
Da amizade de Diadorim eu possuía completa certeza. E mais 
não me amofinei. De manhã cedo, o senhor esbarra para pensar 
que a noite já vem vindo? O amor de alguém, à gente, muito 
forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada. E eu 
estava naquelas impaciências. Trasmente que, em Otacília, 
mesmo, verdadeiro eu quase nem cuidava de sentir, de ter 
saudade. Otacília estava sendo uma incerteza – assunto longe 
começado. Visse, o que desse, viesse. O seô Habão ia, levava a 
pedra de topázio, a vida do mundo ia vivendo, coração dá tantas 
mudanças; meus dízimos eu pagava. O pássaro que se separa de 
outro, vai voando adeus o tempo todo. Ah, não, eu não – rio, 
riachos! – não me amofinava. Aquela tristeza de Diadorim eu não 
aceitei, nem ceitil não recebi. Ingratidão, para o mais-tarde. 
Mas o seô Habão não queria ter terminado: negócio que 
carecia ainda de algum ponto. Dei licença. Ele perguntou, 
sonseante: ... se eu não prazia de enviar por ele algum recado 
também para o senhor meu pai, Selorico Mendes, dono do São 
Gregório, e de outras boas e ricas fazendas?... Eu achei graça, 
acenei que sim: disse que fosse, reproduzisse a minha saudação... 
E então foi que o seô Habão levantou a cara, aquietado – até 
mediante sorriso. De sorte que, para corrigir em siso a 
tranqüilidade daquilo, eu determinei: - “O senhor vá logo, logo, 
de rota abatida... E de lá não quero nenhuma resposta...” – 
enquanto ri, de ver como ele me obedecia expresso, sem 
necessidade de caráter. 
Onde que, mal dele livre me vi, gritei, despachado, pelos 
demais. Dand’ ordens: - “A rodar por aí, me trazerem os 
homens!” 
Que’s homens? Os todos que fossem e houvesse. - “Quem 
tiver instrumento – a toque! Quem gostar de dançar, arre melhor! 
P’r’ apreparo, trazer as mulheres também... Com que as músicas, 
de lá, lá lá...” Tudo tinha de semelhar um social. Ao pois, quem 
era que ordenava, se prazia e mandava? Eu, senhor, eu: por meu 
renome, o Urutu-Branco... Ah, não. Festa? 
Eu já estava resolvendo o contrário. Mas reunir aquela 
porção de homens, e formar todos de guerreiros. A com a gente, 
a que viessem. Aquilo valia? Os outros não falaram, decerto não 
acharam ou acharam. Ou quanto mais que, eles, os meus, só 
mesmo o mover por me agradar, só, era o que de si desejavam; e 
aquela minha lei era divertida. Saíram, espalhados sendo, em 
caçar, em boa alarida. 
Mas trouxeram. Me trouxeram, rebanhal, os todos 
possíveis. Do Sucruiú, uns pouquinhos – alguns com as caras 
secando os brotes das bexigas, más marcas, feito mijo na areia; 
outros um ou outro de semblante liso fresco, esses escapos de 
não terem tido a doença. Os que fingiam não me temer, achavam 
mais favorável querer ter vindo por próprio conselho; malabriam 
boca em risos. Dei que pronto todos provassem gol 
d’alguma cachaça. Aquela gente depunha que tão aturada de 
todas as pobrezas e desgraças. Haviam de vir, junto, à mansa 
força. Isso era perversidades? Mais longe de mim-que eu 
pretendia era retirar aqueles, todos, destorcidos de suas misérias. 
Até que fiz. Ah, mas, mire e veja: a quantidade maior eram 
aqueles catrumanos – os do Pubo. Eles, em vozes. Ou o senhor 
não pode refigurar que estúrdia confusão calada eles paravam, 
acho que, de ser chamados e reunidos, eles estavam alertando em 
si o sair de um pavor. Ao depois, quando dei brado, queriam se 
alinhalinhar, mesmo, solertes, como se por soldados 
reconhecidos. Seriam eles assim bons no ruim, para guerra 
serviam, para meter em formatura? Tanto todo o mundo achava 
graça, meus jagunços queriam pagode. Ah, os catrumanos iam de 
ser, de refrescos. Iam, que nem onças comedeiras! Não 
entendiam nada, assim atarantados, com temor ouviam minha 
decisão. - “Filhos-da-mãe!” – eu declarei. Tive de repente fé 
naqueles desgraçados, com suas desvalidas armas de toda 
antiguidade, e cabaças na bandola, e panelas de pólvora escura e 
fedor de fumaça ceguenta. Adivinhei a valia de maldade deles; 
soube que eles me respeitavam, entendiam em mim uma visão 
gloriã. Não queriam ter cobiças? Homens sujos de suas peles e 
trabalhos. Eles não arcavam, feito criminosos? - “O mundo, 
meus filhos, é longe daqui!” – eu defini. – Se queriam também 
vir? – perguntei. Ao vavar: o que era um dizer desseguido, 
conjunto, em que mal se entendia nada. Ah, esses melhor se 
sabiam se mudos sendo. Dei brado. Indaguei dum. Tomou um 
esforço de beira de coragem, para me responder. Esse aquele era 
o do chapéu encartuchado, rapaz moço. Respondeu que 
Sinfrônio se chamava; e indicou outro – que era o pai. Aquele 
outro, o pai, era um homem sem pescoço. Respondeu que se 
chamava Assunciano. E indicou outro. Mais adiante não deixei. 
Deixasse, iam de dedo em dedo me passando para o daquelas 
pernas de fora, que Osirino era, as pernas forradas de lama seca; 
ou para o que coçava suas costas em pau de árvore, feito um 
bezerro ou um porco. Visli a sorrateira malícia nos jeitos deles. E 
mais o do jegue – no jegue amontado, permanecendo de perfil, 
aquele bronzeado jumento – que tinha, o ho mam por nome 
Teofrásio; e só não desamontava do jegue por ordem minha, que 
em antes eu tinha-dado. Ele me disse: - “Dou louvor. Em tudo, 
chefe, vos obedecemos...” – ele disse; e de lá se virou o focinho 
branco do jumento. O homem Teofrásio limpou a goela; mas 
com respeito. - “Assim vós prazido, chefe. Pedimos vossa 
benção...” E eu concedi – que o Teofrásio, meio chefim deles, o 
do jegue: que o jegue pudesse trazer. Daí houve porém. Que um, 
o sem pescoço, baixinho descoroçoou, na desengraça, observou: 
- “... Quem é que vai tomar conta das famílias da gente, nesse 
mundão de ausências? Quem cuida das rocinhas nossas, em 
trabalhar pra o sustento das pessoas de obrigação?...” O que 
falou, tinha falado por todos. - “... Pra os roçados? Pra os 
plantios...” E mesmo um outro, de mãos postas como que para 
rezar, choramingou: - “Dou de comer à mea mul’é e treis fi’o’, 
em debaixo de meu sapé...” – e era um homem alto, espingolado, 
com todos os remendos em todos os molambos. - “Como é a tua 
graça, seô?” – indaguei. Se chamava Pedro Comprido. Mas, aí, eu 
já tinha pensado. - “Pois vamos! As famílias capinam e colhem, 
completo, enquanto vocês estiverem em glórias, por fora, 
guerreando para impor paz inteira neste sertão e para obrar 
vingança pela morte atraiçoada de loca Ramiro!...” – eu 
determinei. – I j’ Maria, é ver, nós, de Cristo, jagunceando...” – 
escutei, dum. Daí, declarei mais: - “Vamos sair pelo mundo, 
tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda 
valia... E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já 
tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças sacudidas, p’ra 
o renovame de sua cama ou rede!...” Ah, ô gente, oh e eles: que 
todos, quase todos, geral, reluzindo aprovação. Mesmo os meus 
homens. Fiz gesto, com meu contentamento. Queria o que só me 
faltou – que foi que o jumento do homem zurrasse. Eu ia 
transformar os regimentos desses foros. Convoquei todos nas 
armas. - “E o Borromeu? E o Borromeu?” – ainda perguntavam. 
Quem era que esse Borromeu? Mandei vir. Um cego; ele era 
muito amarelo, escreiento, transformado. - “Responde, tu velho, 
Borromeu: que é que tu faz?” - “Estou no meu canto, cá, meu 
senhor... Estou me acostumando com o momentozinho de 
minha morte...” Cego, por ser cego, ele tinha direito de não 
tremer. - “Tu é devoto?” - “Pecador pior. Pecador sem o que 
fazer, pede preto, pede padre...” Apontou com o dedo. Levei os 
olhos. Não vi nada. É assim, a esmo, que os cegos fazem. Aquele 
era o bom rumo do Norte. - “Ah, meu senhor, eu sei é pedir 
muitas esmolas...” Pois, então, que viesse também o Borromeu, 
viesse. Mandei que montassem o dito num cavalo manso, que da 
banda da minha mão direita devia sempre de se emparelhar. 
Alguns riram. E, pelo que riram, de certo não sabiam – que um 
desses, viajando parceiro com a gente, adivinha a vinda das 
pragas que outros rogam, e vão defastando o mau poder delas; 
conforme aprendi dos antigos. E, por nada, mais me lembrei, de 
repentinamente, do menino pretozinho, que na casa do Valado a 
gente tinha surpreendido, que furtando num saco o que achava 
fácil de carregar. E tiveram de campear esse menino. Ele estava 
amoitado , o tempo todo, com a boca no chão, no meio do 
mandiocal. Quando foi pego, xingava, mordia e perneava. Ele se 
chamava Guirigó; com olhares demais, muito espertos. - 
“Guirigó, tu vem vestido, ou nu?” Como que não vinha? 
Aprontaram um cavalo para ele só, que devia de se emparelhar 
com o meu, da banda de minha mão esquerda. Há-de há, meu 
povo! Todos tocamos. Cavalos que chegassem, bastados, tinha 
não; mas, por diante, animais alheios a gente topasse, para se 
assenhorear, a laço e mãos. Os muitos vinham a pé, aqueles 
catrumanos ainda meio vigiados. Ver o seguinte. Eu queria esses 
campos. Pernoitamos, com marcha de dez léguas, assim mesmo. 
Terçando um total de projetos, com os entusiasmos, no topo da 
cabeça minha, poder não pude dormir, mesmo com o cansaço 
em que estava, na noite não preguei os olhos. Mas conversei 
surgidamente com os que paravam, espalhados, de sentinelas, e 
mandei acender foguinhos de assar mandioca e fogueiras de 
iluminar. Ah, a gente ia encher os espaços deste mundo adiante. 
Aonde é que jagunço ia? À vã, à vã. Tinha minha vontade, 
de estar em toda a parte. Mas, quadrando que primeiro, mais para 
o norte: para o Chapadão do Urucuia, aonde tanto boi berra. 
Que eu recordava de ver o rio meu – beber em beira dele uma 
demão d’água... Ah, e essas estradas de chão branco, que dão 
mais assunto à luz das estrelas. Eu pensei, eu quis. E o 
Hermógenes, os Judas? Ara, inimigo, o senhor dê um passo, em 
que rumo qualquer, lá em sua frente o senhor encontra o mau... 
Eu não tinha todo tempo? Safra em cima, eu em minha lordeza. 
Mesmo deitado, eu sentia que estava caminhando, galopando. 
Quando a madrugada bateu as asas, eu já estava abotoando a 
espora. Outra vez, eu digo: tem botim novo flote, e chinelo velho 
redomão. O dia ia ser lindo de leveza! – pelas beiradas do céu. 
Forramos o estômago; e saímos, deslizando com a manhã, com o 
merujo do orvalho. O que eu via: altos de mata e além! As coisas 
todas eu pensava, e nada nenhuma não me sombreasse. Algum 
medo não palpitava frio por detrás de meus olhos; e, por via 
disso, eu de todos era o chefe, mesmo em silêncio singular. 
Conforme assim, chegamos, no Pé-da-Pedra, fazenda da 
Barbaranha. Em perto de sete léguas. E o que aí foi, lhe conto. 
Ao entrementes, eu achei graça: em que o Alaripe, João 
Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, e mesmo Diadorim, e 
outros mais velhos, não carecessem de formar conselho. As 
lérias. Meu direito era contrariar as regras todas do chefe que 
antes fora; para mim, só mesmo o que servia era à solta a lei da 
acostumando. Aí, não viessem me dizer que a gente estava só 
com três dias de farinha e carne-seca. Toleima. Todo boi, 
enquanto vivo, pasta. Razão e feijão, todo dia dão de renovar. A 
coragem que não faltasse; para engolir, a polpa de buriti e carnes 
de rês brava. Às léguas, eu indo, eles me seguindo. - “Tu está 
vendo o tamanho do mundo, Guirigó? Que é que tu acha de 
maior boniteza?” Assim eu perguntei, àquele sacizinho de duas 
pernas, que preto reluzente afora os graúdos olhos brancos, me 
remedando, da banda de minha mão canhota sempre viesse, 
encarapitado sobre seu alto cavalo. E ele, a cuja senvergonhice: - 
“De todas as coisas, boniteza melhor é dessa faquinha enterçada, 
de metal, que o senhor travessa na cintura...” Segundo tinha 
botado desejo no meu punhal puxável de cabo de prata, o 
dioguim. - “A pois: no primeiro fogo que se der, se tu não abrir 
boca e choro bué, por medos, a dita faca tu ganha, 
presenteada...” eu prometi. A falta de mantimentos, por isso eu ia 
encurtar rédeas, travar o passo? A toleima. A outra receita que 
descumpri, era a de repartir o pessoal em turmas. Cautelas... Que 
não. Eu fosse ter cautela, pegava medo, mesmo só no começar. 
Coragem é matéria doutras praxes. Aí o crer nos impossíveis, só. 
- “Seo Borromeu, está gostando destes Gerais, hem seo 
Borromeu?” – ao cego, da minha outra banda, perguntei, por 
desfrute. - “Ah, Chefe: é sempre amanhecendo manhã, e aqui a 
gente merece tudo – vento que não vareia de ser... Mas vento que 
vem dos amáveis...” – ele me respondeu. - “... O que não vejo, 
não devo; não consumo...” – continuou respondendo. Ele 
gostava de conversar, mas também preparava no silêncio. Ia 
sacolejando em cima da sela do animal, noutra quietação diversa. 
Podia dar conselho? - “Arte de jagunço, meu Chefe? Isto é ofício 
bonito, para o vivo.” O ditado desses, só somente para rir eu 
aceitava. Mas, dividir minha gente, por oras, eu detestava de 
obrar. Por causa que o que me prazia mais era contemplar o 
volume profundo da ida deles, de esquadrão. 
De a de lado. Todos eles passarem, tropeando, nós todos, o 
rumor constante dos cascos. Cavalo, cavalaria! Cortejo que fazia 
suas voltas, pelos ermos, pelos ocos, pelos altos, a forma duma 
mistura de gente amontada, uma continuação grande, solevando 
para adiante o aprumo de meus homens, os chapéus deles quase 
todos bem engraxados com sebo de boi e nata de leite, em ponta 
os canos dos rifles de guerra, a tiracol. Com qual seguimento? Só, 
o que esperava a gente, era o pouso para jantar; passeata para a 
estrela-da-tarde. Mas, do que um falava, outro mal ouvia e ria; do 
que esses se riam, outros ainda falavam. Prosapeavam. Me prazia. 
Me prazia o ranger o couro das jerebas, aquele chio de carne em 
asso. A poeira avermelhava e branqueava: poeiras que punham o 
vento mais áspero. Uns homens em cavalos e armas. Quem visse, 
fuga fugia, corria: tinham de temer, vigiando com seus olhos 
escondidos no mato em beiras de estrada. Até os bichos, do 
cerradão, que escutam o começo de tudo, de seu longe e de seu 
perto, e logo sabem esperar, ocultos no rareamento, assim não se 
viam, nenhuns, não se achavam; os pássaros sempre já tinham 
revoado. Ah, não, eu bem que tinha nascido para jagunço. Aquilo 
– para mim – que se passou: e ainda hoje é forte, como por um 
futuro meu. Eu estou galhardo. Naquilo, eu tinha amanhecido. 
Comi carne de onça? Esquipando, eu queria que a gente entrasse, 
daquele jeito, era em alguma grande verdadeira cidade. 
Só às vezes, em repente de receio, eu ainda olhei em vão – 
com as presenças de Zé Bebelo me cismava. Se o que sei. Com 
um arranco de freio, raciocinado. Mas, dando de rédeas sem 
descanso, derrubei dos ombros aquele meu costume, Zé Bebelo 
terminara. Só os meus homens. Escutava, olhava – e eram 
aqueles: que muitas estrepolias ainda iam decerto agir, e muita má 
gente matar. Aos dez e dezes, digo, afirmo que me lembro de 
todos. Esses passam e transpassam na minha recordação, vou 
destacando a contagem. Nem é por me gabar de retentiva 
cabedora, nome por nome, mas para alimpar o seguimento de 
tudo o mais que vou narrar ao senhor, nesta minha conversa 
nossa de relato. O senhor me entende? A mesmice dos cabras 
jagunços – no contemplar a cavalhada – no passo, os animais 
dando dos quartos, comuns assim, que não fazem penachos, que 
não tiram arredondamentos da magreza. Os filhos nascidos de 
distritos de lugares diversos, mas agora debaixo da minha estima 
completa, dever de coração enérgico. Até os capiaus e os 
catrumanos copiavam o comportamento, uns amontados, outros 
restantes apressados mesmo a pé, e iam pegando o exato. Até o 
catrumano Teofrásio, em seu jegue, que, como prestável 
jumento, cumpria bem seu ir, desde que tinha companhia de 
outros animais. E o Guirigó e o Borromeu, eu meando os dois, 
ao alcance de qualquer minha mão. Sempre, mesmo como 
sempre. Mas, um, era Diadorim – montado à baiana, gineta, com 
estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu 
argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos 
conforme como a noite – Diadorim, que era o Menino, que era o 
Reinaldo. E eu. Eu? Nos estribos de ferro, freio de ferro, silha 
forte e silha mestra – e o par de coldres! Assaz, então, cantaram: 
Olererê, Baiana, 
eu ia e não vou mais... 
Eu faço 
que vou 
lá dentro, oh Baiana, 
e volto do meio p’ra trás... 
Ao demais eu ouvi, soturno sorridente. 
Ora vez, que, desse jeito, fomos entortando, entre as duas 
chapadas, encalço da estrada do rio; e se chegou na fazenda 
cercã, que era por lá, a Barbaranha dita, em um lugar redondo e 
simples, no Pé-da-Pedra. O que eu já disse ao senhor, respeitante. 
Mas acrescento que o dono, no atual, era um seo Ornelas – 
Josafá Jumiro Ornelas, por nome todo. 
- “De uns três dias foi o São João, então amanhã é o São 
Pedro...” – alguém disse, de voz. 
Soubessem que esse seo Ornelas era homem bom 
descendente, posseiro de sesmaria. Antes, tinha valido, com 
muitos passados, por causa de políti ca, e ainda valesse, 
compadre que era do Coronel Rotílio Manduca em sua Fazenda 
Baluarte. 
- “Ao que ele tem, mas tem, mesmo, muita coragem?!” – eu 
me fiz. - “Aí falam em sessenta ou oitenta mortes contáveis...” o 
Marcelino Pampa afiançou “... e ainda não esmoreceu os 
ânimos...” 
Chegamos, com proceder seguro, e o céu por cima dali 
estava muito sereno. Na fazenda tinfiam levantado um mastro, 
na frente do pátio; vi movimentos de gente. As mulheres, na 
boca do forno fumaçando, mexiam com feixes verdes de mariana 
e vassourinha e carregavam as latas pretas de assar biscoitos. Só 
aqueles formosos cheiros das quitandas e do forno quente 
varrido, já confortavam meu estômago. No mastro, que era 
arvorado para honra de bandeira do santo, eu amarrei o cabresto 
do meu cavalo. 
Mas não desordeei nem coagi, não dei em nenhuma 
desbraga. Eu não estava com gosto de aperrear ninguém. E o 
fazendeiro, senhor dali, de dentro saiu, veio saudar, convidar para 
a hospedagem, me deu grandes recebi, mentos. Apreciei a 
soberania dele, os cabelos brancos, os modos calmos. Bom 
homem, abalável. Para ele, por nobreza, tirei meu chapéu e 
conversei com pausas. 
- “Amigo em paz? Meu chefe, entre, a valer: a casa velha é 
sua, vossa...” – ele pronunciou. 
Eu disse que sim. Mas, para evitar algum acanhamento e 
desajeito, mais tarde, também falei: - “Dou todo respeito, meu 
senhor. Mas a gente vamos carecer de uns cavalos...” Assim logo 
eu disse, em antes de vir a amolecer as situações e estorvar o 
expediente negócio a boa conversação cordial. O homem não 
treteou. Sem se franzir nem sorrir, me respondeu: - “O senhor, 
meu chefe, requer e merece, e com gosto eu cedo... Acho que 
tenho para coisa de uns cinco ou sete, em estado regular.” 
E eu entrei com ele na casa da fazenda, para ela pedindo em 
voz alta a proteção de Jesus. Onde tive os usuais agrados, com 
regalias de comida em mesa. Sendo que galinha e carnes de 
porco, farofas, bons quitutes ceamos, sentados, lá na sala. 
Diadorim, eu, João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, 
Alaripe e uns outros, e o menino pretinho Guirigó mais o cego 
Borromeu – em cujas presenças todos achavam muita graça e 
recreação. 
A dona fazendeira era mulher já em idade fora de galas; mas 
tinham três ou quatro filhas, e outras parentas, casadas ou moças, 
bem orvalhosas. Aquietei o susto delas, e nenhuma falta de 
consideração eu não proporcionei nem consenti, mesmo porque 
meu prazer era estar vendo senhoras e donzelas navegarem assim 
no meio nosso, garantidas em suas honras e prendas, e com toda 
cortesia social. A ceia indo principiando, somente falei também 
de sérios assuntos, que eram a política e os negócios da lavoura e 
cria. Só faltava lá uma boa cerveja e alguém com jornal na mão, 
para alto se ler e a respeito disso tudo se falar. 
Seo Ornelas me intimou a sentar em posição na cabeceira, 
para principal. - “Aqui é que se abancava Medeiro Vaz, quando 
passou...” – essas palavras. Medeiro Vaz tinha regido nessas 
terras. Verdade era? Aquele velho fazendeiro possuía tudo. 
Conforme jagunço de meio-oficio tinha sido, e amigo 
hospedador, abastado em suas propriedades. De ser de linhagem 
de família, ele conseguia as ponderadas maneiras, cidadão, que se 
representava; que, isso, ainda que eu pelejasse constante, tarde 
seria para bem aprender. Na verdade. Aquela hora, eu, pelo que 
disse, assumi incertezas. Espécie de medo? Como que o medo, 
então, era um sentido sorrateiro fino, que outros e outros 
caminhos logo tomava. Aos poucos, essas coisas tiravam minha 
vontade de comer farto. 
- “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é 
achado...” – ele seo Ornelas dizia. - “O sertão é confusão em 
grande demasiado sossego...” Essa conversa até que me agradou. 
Mas eu dei de ombros. Para encorpar minha vantagem, às vezes 
eu fazia de conta que não estava ouvindo. Ou, então, rompia fala 
de outras diversas coisas. E joguei os ossinhos de galinha para os 
cachorros, que ali nas margens esperavam, perto da mesa com 
toda atenção. Cada cachorro sungava a cabeça, que sacudia, 
chega estalavam as orelhas, e aparava certeiro seu osso, bem 
abocava. E todos, com a maior devoção por mim, e simpatias, 
iam passando os ossos para eu presentear aos cachorros. Assim 
eu mesmo ria, assim riam todos, consentidos. O menino Guirigó 
comeu demais, cochilava afundado em seu lugar, despertava com 
as risadas. Aquele menino já tinha pedido que um dia se 
mandasse costurar para ele uma roupa, e prover um chapéu-decouro 
para o tamanho de sua cabeça dele, que até não era 
pequena, e umas cartucheiras apropositadas. - “Tu é existível, 
Guirigó... Vai pelos proveitos e preceitos...” – eu caçoava. Aí 
caçoei: - “Duvidar, é só dar um saco vastoso na mão dele, e 
janela para pular, para dentro e para fora: capaz de supilar os 
recheios e pertences todos duma casa-grande de fazenda, feito 
esta, salvo que seja...” E eu bem que já estava tomando afeição 
àquele diabrim. Pois, com o Guirigó, as senhoras e moças 
conversavam e brejeiravam, como que só com ele, por criança, 
elas perdessem o acanhamento de falar. Mas o seo Ornelas 
permanecia sisudo, faço que ele afetava de propósito não reparar 
no menino. Pelo tudo, era como se ele reprovasse minha decisão 
de trazer para a mesa semelhantes companhias. O menino e o 
cego Borromeu – aqueles olhos perguntados. - “As colheitas...” – 
seo Ornelas supracitava. Homem sistemático, sestronho. O 
moderativo de ser, o apertado ensino em doutrinar os cachorros, 
ele obrava tudo por um estilo velhoso, de outras mais arredadas 
terras – sei se sei. E quase não comia. Só, vez outra, jogava na 
boca um punhado seco de farinha. 
- “Oxalá, o senhor vai, o senhor venha... O sertão carece... 
Isto é, um homem forte, ambulante, se carece dele. O senhor 
retorne, consoante que quiser, a esta casa Deus o traga...” 
Solei um vexame, por não saber a resposta concernente, 
nuns casos como esse – resposta que eu achava que devia de ser 
uma só, e a justa, como em teatral em circo em pantomima bem 
levada. O que é igual quase um calar. À puridade, eu sentia assim: 
feito se estivesse pego numa ignorância – mas que não era de 
falta de estudo ou inteligência, mais uma minha falta de certos  
estados. O que são bobéias: limpei goela, mudei de cara. - “... 
Amigo meu Medeiro Vaz, a outra ocasião, travou combates, no 
ContaBoi, daqui a duas léguas... Contra os de um Tolomeu 
Guilherme. Defunto amigo Medeiro Vaz, que a alma dele Deus 
haja... Adiante comandava em frente, para o exemplo... 
Enterramos os melhores mortos...” – o homem descrevia. - “Eu 
sei!” – eu disse, mesmo nada tencionando dizer. A ver: e que é 
que achava de mim aquele surdo velho? Ah, ele expunha os 
cabelos brancos, mas faltava em barba que cofiasse. - “Senhor 
saiba, ao que Medeiro Vaz mesmo foi que entre todos me 
escolheu, nos olhos da morte, me determinou para capitanear e 
dar governo... Tolomeu Guilherme, que conheço, é um que deve 
de estar presentemente embarcando cargas, no porto em 
Pirapora... Mas sou, de mim, o Urutu-Branco, Riobaldo que 
Tatarana já fui; o senhor terá ouvido? Aí o mais esse sertão tem 
de ver, quem mais abre e mais acha!” – assim eu disse, um pouco 
enfurecido. - “Pois maior honra é a minha, meu Chefe: que em 
posto de dono, na pobreza desta mesa, somente homens de alta 
valentia e valia de caráter se sentaram...” – ele glosou, sem 
sobrosso de perturbação. Dobrei, de costas, castanheteei para os 
cachorros. Assim ele havia de sentir o perigo de meu desprazer; 
havia de recear, de mim, aquilo – como o outro diz: ... quando o 
burro dá as ancas!... 
Aí, no rever do instante, percebi os olhos de Diadorim, que 
me juntavam com uma das mocinhas de lá, das que estavam 
servindo, a mais vistosa de todas. A mocinha essa de saia preta e 
blusinha branca, um lenço vermelho na cabeça – que para mim é 
a forma mais assentante de uma mulher se trajar. Ela estava 
parada, em pé, no meio das outras, quase encostada na parede. O 
olhar de Diadorim era que estava me indicando: que para aquela 
mocinha ia meu admirar. Administrado, chamei: - “A senhora 
meninazinha, chega aqui mais perto, me faça obséquio da 
bondade...” E ela avermelhou as faces; mas veio; reparei que 
tinha as mãos aperfeiçoadas bonitas, mãos para tecer minha rede. 
A ela perguntei a graça. 
- “É minha neta...” – foi seo Ornelas quem disse. E mal 
nem ouvi o nome com que ela me respondeu. Assussurrada, só 
gostei de ver como ela se mexia por ficar quieta – vergonhosa 
como uma coalhada no prato. 
Mas, nos tons do velho Ornelas, eu tinha divulgado um 
extravago de susto, recuante, o leve medo de tremor. Isso foi o 
que me satisfez. Aquele homem, visconde e portoso em tudo, ah, 
pelo mulheriozinho de sua casa ele não encobria o comprado, eh, 
sua família dele. A avaliar o de Diadorim, por igual, como 
mostrava – outros olhos – o arregalo de ciúmes. Aqui digo: que 
se teme por amor; mas que, por amor, também, é que a coragem 
se faz. 
Deu silêncio. Aquilo tardou assim: feito o tamanduá a 
língua põe, feito quem quer comungar. A mocinha me tentando, 
com seu parado de águas; a boniteza dela esteve em minhas 
carnes. Ela perigou. Não perigou: no instante, achei em minha 
idéia, adiada, uma razão maior – que é o sutil estatuto do homem 
valente. Aquela formosura, aquela delicadezazinha, então podiam 
mesmo ser assim, em toda segurança, feito ela fosse, por um 
exemplo, filha minha. A mocinha, eu de repente queria, eu 
gostava de dar a ela muito forte proteção. Diadorim não 
imaginasse isso. Os olhos de Diadorim não me reprovavam – os 
olhos de Diadorim me pediam muito socorro. Seo Ornelas 
empalidecido. Certo que, num rebimbo de raio, eu – pronto! – o 
Ornelas estava caído muito a morto, com uma bala entrolheolho, 
antes de notar sequer que eu tinha pensado em arisco de mover 
nas armas. Diadorim, caso fosse, ele eu desarmava; e meus 
homens estariam ali, todos de pé, fechando praia de mar. A 
menina-mocinha, que eu agarrava nos braços, era uma quanta-
coisa primorosa que se esperneia... Mas eu não quis! Ah, há-de-o, 
quanto e qual não quis, digo ao senhor: e Deus mesmo baixa a 
cabeça que sim: ah, era um homem danado diverso, era, eu – 
aquele jagunço Riobaldo... Donde o que eu quis foi oferecer 
garantia a ela, por sempre. Ao que debati, no ar, os altos da 
cabeça. Segurei meus cornos. Assim retido, sosseguei – e melhor. 
Como que, depois do fogo de ferver, no azeite em corpo de meu 
sangue todo, agora sochupei aquele vapor fresco, fortíssimo, de 
vantagens de bondades. 
- “Menina, tu há de ter noivo correto, bem apessoado e 
trabalhador, quando for hora, conforme tu merece e eu rendo 
praça, que votos faço... Não vou estar por aqui, no dia, para 
festejar. Mas, em todo tempo, vocês, carecendo, podem mandar 
chamar minha proteção, que está prometida – igual eu fosse 
padrinho legítimo em bodas!” 
Alto estive, atrás do que falei. Ela se assustou, outra vez, 
sem capacidade nenhuma, ainda mais ao avermelhar. E eu 
também mercês colhi – da alegria veraz, nos meus olhos de 
Diadorim. Será que será, que por contentar profundo Diadorim 
eu tinha feito aquilo resoluto? Ou por outra, por aquele próprio 
velho homem, seo Ornelas, que nesse intervalo de instantes 
dizendo estava: - “Agradece, minha filha, as todas palavras deste 
grande Chefe, que é declarado sagrado nosso amigo, perante as 
voltas todas que o mundo dá e der!” 
Realmente, então eu virei para ele. E, daí, deveras foi afoito 
que eu quis com ele outras conversas, e prezei a amizade daquele 
homem dos sertões transatos. O quanto fiz perguntas. Aceitei o 
chá de laranjeira, com que sempre dei bem, numa tigela grande, 
com capricho desenhada. Minha gente junto comigo escutava. 
- “O senhor tem noção de quem Zé Bebelo é?” – eu 
indaguei, uma hora, por me confirmar. 
- “Zé Bebelo? Pode ser, não digo... Mas figuro que, esse 
nome, nunca ouvi, não, meu senhor...” – foi o que ele respondeu. 
Ao que – isso era um fato possível? Ele não sabia. De Zé 
Bebelo, nem do Ricardão, nem do Hermógenes, ele não sabia 
nem a preposição. Mas, então, tudo naquela parte dos Gerais era 
ilusão de haver e não se saber. O mundo ali tinha de ser de se 
recomeçar... - “Sou de pouca política, me desfiz de ser...” – ele 
externou. O chefe próprio dele, ele não citou; feito se eu 
ignorasse o qual era. Célebre, esse, também – e que o senhor 
pode ter conhecido igualmente, pois era um que viajava amiúde 
até no Rio de janeiro, se bem que famanado homem de cabras 
em armamentos, na política de jagunçagem. Aquele – sequinho, 
espigadinho, vestido cidadão, com mãozinhas pequenas, 
pezinhos – e do ar sempre assustado constantemente. Dele 
sozinho, o que se diz: umas duzentas mortes! Conheceu, o 
senhor? No barranco do São Francisco – o Coronel Rotílio 
Manduca – em sua Fazenda Baluarte! Agora, paz. 
Mas aí eu perguntei a respeito daquele seô Habão, só mais 
para variação de conversa, mudando o propósito. Em resposta 
assim ouvi: - “Esse um, vem a ser até parente de minha mulher, e 
longe meu aparentado... Mas de desde mais de uns dez anos que 
cortamos conhecimento.” 
E como eu atalhei o assunto, por convinhável nas boas 
normas, pois a lembrança dum inimigo deixa qualquer homem 
agastado, o seo Ornelas relatou à gente diversos casos. E o que 
em mente guardei, por esquipático mesmo no simples, foi o 
seguinte, conforme vou reproduzir para o senhor. O qual se deu 
da parte da banda de fora da cidade da Januária. 
Seo Ornelas, nessa ocasião, tinha amizade com o delegado 
dr. Hilário, rapaz instruído social, de muita civilidade, mas 
variado em sabedoria de inventiva, e capaz duma conversação tão 
singela, que era uma simpatia com ele se tratar. - “Me ensinou um 
meio-mil de coisas... A coragem dele era muito gentil e 
preguiçosa... Sempre só depois do final acontecido era que a 
gente reconhecia como ele tinha sido homem no acontecer...” 
Ao que, numa tarde, seo Ornelas – segundo seu contar – 
proseava nas entradas da cidade, em roda com o dr. Hilário mais 
outros dois ou três senhores, e o soldado ordenança, que à 
paisana estava. De repente, veio vindo um homem, viajor. Um 
capiau a pé, sem assinalamento nenhum, e que tinha um pau 
comprido num ombro: com um saco quase vazio pendurado da 
ponta do pau. - “... Semelhasse que esse homem devia de estar 
chegando da Queimada Grande, ou da Sambaíba. Nele não se via 
fama de crime nem vontade de proezas. Sendo que mesmo a 
miseriazinha dele era trivial no bem-composta...” Seo Ornelas 
departia pouco em descrições: - “... Aí, pois, apareceu aquele 
homenzém, com o saco mal-cheio estabeleci do na ponta do pau, 
do ombro, e se aproximou para os da roda, suplicou informação: 
– O qual é que é, aqui, mó que pergunte, por osséquio, o senhor 
doutor delegado?-ele extorquiu. Mas, antes que um outro desse 
resposta, o dr. Hilário mesmo indicou um Aduarte Antoniano, 
que estava lá – o sujeito mau, agarrado na ganância e falado de 
ser muito traiçoeiro. – O doutor é este, amigo... – o dr. Hilário, 
para se rir, falsificou. Apre, ei – e nisso já o homem, com 
insensata rapidez, desempecilhou o pau do saco, e desceu o dito 
na cabeça do Aduarte Antoniano – que nem fizesse questão de 
aleijar ou matar... A trapalhada: o homenzinho logo sojigado 
preso, e o Aduarte Antoniano socorrido, com o melor e sangue 
num quebrado na cabeça, mas sem a gravidade maior. Ante o 
que, o dr. Hilário, apreciador dos exemplos, só me disse: – Pouco 
se vive, e muito se vê... Reperguntei qual era o mote. – Um outro 
pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem 
convém... – o dr. Hilário completou. Acho que esta foi uma das 
passagens mais instrutivas e divertidas que em até hoje eu 
presenciei...” 
Tal, e outras, contou o seo Ornelas, senhor de prosa muito 
renovada. Pelo que, por todo o seroar, deixei com ele a mão; 
ainda que às vezes eu ficasse em dúvida: se competia, sendo eu 
um chefe, aturar que um outro fiasse e tecesse, guiando a fala. E 
também, com o tardio da noite, veio a hora de se desapear da 
mesa, e eu teimei em rejeitar oferta de cama em catre em quarto 
ou sala, mas fui fora, caçar o meio da minha gente; por sinal que 
armei rede por entre cajueiro e jenipapeiro, perto dos currais, e, 
para o segundo sono, mudei de rearmar, de faveira para faveira, 
lá para dentro duma cerca. Mas, na mesa, aquele menino Guirigó,  
na senvergonhice inocente de sua pouca geração, tinha 
adormecido completo antecipadamente, e eu consenti que as 
mulheres carregassem o coitadinho diabinho, pesado como um 
de maioridade, e levassem para dormir sei lá onde, por entre 
colchão e lençol. A vida inventa! A gente principia as coisas, no 
não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – 
porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e 
temperada. Assim eu tinha trazido o pretinho Guirigó, do 
Sucruiú, e agora ele estava indo para se deitar no limpo e fofo, 
nos braços das jovens e donzelas carregado. Somente que, 
inteirado no sono, ele mesmo disso não soubesse, nem 
aproveitasse, do que em sua existência dele era que estava se 
sucedendo. - “A pois, boa noite o senhor tenha, Chefe, com um 
aprazível amanhecer...” – assim seo Ornelas me saudou. Ao que 
eu, regozijado e bem servido, retribuí a ele, quase com aquelas 
mesmas palavras. 
As partes, que se deram ou não se deram, ali na 
Barbaranha, eu aplico, não por vezo meu de dar delongas e 
empalhar o tempo maior do senhor como meu ouvinte. Mas só 
porque o compadre meu Quelemém deduziu que os fatos 
daquela era faziam significado de muita importância em minha 
vida verdadeira, e entradamente o caso relatado pelo seo Ornelas, 
que com a lição solerte do dr. Hilário se tinha formado. Aí, narro. 
O senhor me releve e suponha. 
No outro dia, acordei com a boca amarga e doce, e o través 
de baixar alguma ordem comandando; esse dia com essa noite 
não se pertencia. Achamos, de recrutagem, os cavalos que 
pudemos – o que foram os dez, os burros e mulas também 
contados. O seo Ornelas honrava os atos. Além do que quis que 
eu falhasse, para a festa, com o meu povo; mas achei mais 
sobressaído ir mesmo embora, exato. Semeei para trás de mim o 
bom ensejo, para poder ser de vir a colher, mais para diante, 
outros assim tão bons e melhores. Sincero o dito, a gente 
agradeceu, subindo todos em selas, e a limpo seguimos – a 
manhã ainda com diversas claridades. Seo Ornelas externou as 
despedidas, com o x’totó de foguetes, conforme se lembrou de 
mandar começar a soltação, cujos por bem uma meia-dúzia. O 
pessoal deu vivas, gloriando o mastro com a bandeira do santo. 
Ao que, pelo mais, puxei em frente, pondo meu cavalo: com 
espora, rédea e pernas. Deciso. 
Rompemos umas duas léguas, em estradas de muita areia. 
Mas eu já estava agastado. O que nesta vida muda com mais 
presteza: é lufo de noruega, caminhos de anta em setembro e 
outubro, e negócios dos sentimentos da gente. Assim, de repente, 
eu achei: que a conversa com aquele seo Ornelas tinha me 
rebaixado. Aos poucos eu tivesse perdido a vigiação de minha 
alçada, no acaso da presença dele, debaixo daqueles telhados. A 
opinião das outras pessoas vai se escorrendo delas, sorrateira, e se 
mescla aos tantos, mesmo sem a gente saber, com a maneira da 
idéia da gente! Se sério, então, um tinha de apertar os dentes, 
drede em amouco, opor seus olhos. A cuspir para diante. Alguma 
instância, das outras pessoas, pegava na gente, assim feito 
doença, com retardo. Apartado de todos – era a norma que me 
servia – no sutil e no trivial. A culpa minha, maior, era meu 
costume de curiosidades de coração. Isso de estimar os outros, 
muito ligeiro, defeito esse que me entorpecia. O tanto que, daí 
depois, essas pessoas andavam em minha desilusão: de repente 
todos estavam endoidecendo... Do agravo, como ia em pensar, 
achei asperezas até na goela; e o cuspe não cabia em minha boca, 
salgado como um suadouro de cangalha. Aí então, estou 
lembrado, vendo como vi o Alaripe de mim a curta distância – e 
que, em tudo comedido, guardava o balanceio brando no coxim 
da sela, de vaqueiro de gado tangedor. Chamei para ele vir. 
- “Ah, o velho entregou os cavalos, hem, Alaripe? Coração 
dele aguou...” – blasonei. - “... Deu por paz. Alaripe, ei, essa paz 
não te enjoa?” - “Ah, é deveras... A uns, é o que sucede...” - “Mas 
a paz não é boa? Então, como é que ela enjoa, assim mesmo?” - 
“Natureza da gente, mal completada...” - “Tudo tu vê, Alaripe: eu 
acho que o enjôo da paz será também algum outro medo da 
guerra...” - “Pode que seja.” - “E mas só o medo da guerra é que 
vira valentia...” - “Mal bem não entendo, meu chefe, mas deve de 
ser...” - “Pois não é? Só quando se tem rio fundo, ou cava de 
buraco, é que a gente por riba põe ponte...” 
Assaz essas coisas, eu inventava em fala, para ter meus 
eixos, meus aços. A boca do boi quer sal – o sal do barro 
vermelho. Eu estava chamando umas bizarrias. Força dessa 
minha maneira: eu estava pelo calor de tudo. E a gente ia indo, 
aquela comprida cavalhada. Um ribeirão raso e estreito se passou 
– nem bem seis braças. Riacho desses que os que vão morrer 
chamam de rio-Jordão. Todo o mundo passou, por tanto, diante 
de mim, eu esbarrado em pé – isto é, a cavalo. 
A virar o ar, viemos; em caminho não se descansou um dia. 
Agora eram os brejos da beira do Paracatu. Mas eu tinha 
conseguido encher em mim causas enormes. Dispor do ror 
daquilo eu não conciliava, conforme perseguia, custoso, 
vermelho meu. Somente quis, nem podia dizer aos outros o que 
queria, somente então uns versos dei, que se puxaram, os meus, 
seguintes: 
Hei-de às armas, fechei trato 
nas Veredas com o Cão. 
Hei-de amor em seus destinos 
conforme o sim pelo não. 
Em tempo de vaquejada 
todo gado é barbatão: 
deu doideira na boiada 
soltaram o Rei do Sertão... 
Travessia dos Gerais 
tudo com armas na mão... 
O Sertão é a sombra minha 
e o rei dele é Capitão!... 
Arte que cantei, e todas as cachaças. Depois os outros à 
fanfa entoaram – mesmo sem me entender, só por bazófias – 
mas rogando no estatuto daquela letra e retornando meu 
rompante; cantavam melhor cantando. De todos, menos vi 
Diadorim: ele era o em silêncios. Ao de que triste; e como eu ia 
poder levar em altos aquela tristeza? Aí – eu quis: feito a 
correnteza. Daí, não quis, não, de repentemente. Desde que eu 
era o chefe, assim eu via Diadorim de mim mais apartado. 
Quieto; muito quieto é que a gente chama o amor: como em 
quieto as coisas chamam a gente. E já se estava antefrente do 
Paracatu – que também recovava o pouco e escasso. Esbarrei 
não, nem examinei o adiante. Demiti meu cavalo n’água. Os 
outros me acompanharam. Assim atravessamos. 
Vai, viemos, viemos. Esses dias em ondas. Sei só as 
encostas que subi, a festo. O Chapadão: céu de ferro. E era a luanova. 
Aquelas pedras brancas, que de noite tanto esfriam. As 
caraíbas estavam dando flor. Por ponto de meu corpo, medi o 
enrolar dos longes ventos. Aí se viu, em seus couros, um 
vaqueiro pessoalmente. A esse, perfiz: - “Amigo o amigo, aqui é 
aqui?” Ao que ele confirmou: - “Aqui, o senhor, meu senhor, os 
senhores estão nos andares do rio Urucuia...” Aos campos. Sentei 
que estava. Estrela gosta de brilhar é por cima do Chapadão. 
Tanta doideira fiz? A prazo. Como aquela vista reta vai longe, 
longe, nunca esbarra. Assim eu entrei dentro da minha liberdade. 
Oi, grita, arara, araraúna, para a tua voz desenrouquecer! O 
Chapadão é uma estada, estando. Somente eu sabia respirar. 
Sumo bebi de mim, e do que eu não me tonteava. Só estive em 
meus dias. E ainda hoje, o suceder deste meu coração copia é o 
eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o 
senhor arranque, declara o real daquilo, daquilo – sem traslado... 
Ali eu diante de portas abertas, por livre ir, às larguras de 
claridade... Acho que foi assim. 
Assim. Mas alguém me impediu. Ou era que mesmo desse 
jeito tinha de ser? Urubus perpassaram, extremamente, e para o 
poente vinham. Diadorim me chamou, pegando em meu braço. 
Diadorim vigiou aquelas diferenças: ele temeu; temeu por minha 
salvação, a minha perdição. Ou foi que minha Nossa Senhora da 
Abadia mandou que assim tivesse de ser? Mas Diadorim tirou o 
açoite de minha ação, ele me puxou, eu segurado, o propósito 
para trás. Nas grimpas, naquelas, o significado duma coisa tive, 
que depois lhe relato. Ah, só no azul do anoitecer é que o 
Chapadão tem fim. 
Foi na descida de algumas ladeiras, no se costear um 
barrocão. Diadorim disse: - “Estou aqui, te vejo mesmo, 
Riobaldo!” 
Eu disse: - “Ah, não. Ah, paz!” 
Ele disse: - “A uma coisa eu te digo, Riobaldo...” Eu disse: - 
“Pois, fala.” 
Diadorim disse – a voz dele se paliava: - “Por querer bem é 
que eu falo, Riobaldo...” – feito o sussurro, nessas veredas, mão 
mansa, de tardinha, descabelando o buritizal. 
Eu disse: - “Vai dizendo!” ; falei uma segunda palavra. 
A testa dele merujava, coisas grossas gotas – mesmo me 
temesse? – aquele suor devia de se gelar. Aí era um aviso, que ele 
queria me fornecer? Aí eu não queria ouvir o que fosse, de 
repente eu não queria, eu não queria, fiz de ficar indignado. No 
eu no meu, não tivessem de me dar a toda aprovação? Ao redor 
de mim, assim obedecessem. A chefia sabe chefiar. Por certo, 
que, para a jagunçagem, os Gerais mal serviam. A pobreza 
daquelas terras, só pobreza, a sina tristezinha do pouco povo. 
Aonde o povo no rareado, pelo que faltava de água naquelas 
chapadas; e a brabeza do gado, que caminhava em triste achar. 
Desejar de minha gente, seria que se atravessasse o do-Chico – ir 
em cata de vilas e grandes arraiais, adonde se ajustar pagas e 
alugar muitos divertimentos. Conforme no renovável servisse: ir 
aonde houvesse política e eleição. Sabia disso. Eu não era 
pascácio. 
Um chefe carece de saber é aquilo que ele não pergunta. E 
mesmo eu sempre tive diversas saudades. 
Reprazia, para mim, um dia reverter para o rio das Velhas, 
cujos campais de gado, com coqueiral de macaúbas, meio do 
mato, sobre morro, e o grande revôo baixo da nhaúma, e o 
mimoso pássaro que ensina carinhos – o manuelzinho-da-troa... 
Diadorim, eu gostava dele? Tem muitas épocas de amor. Amor 
em perto, às vezes sossega, em muitos adiamentos – ao homem 
da branca barba. - “Tempo de guerrear!” – eu disse, para Alaripe, 
o Pacamã-de-Presas, o Acauã e o Fafafa: meus contra-guias. Em 
qualquer parte eu não podia arvorar bem fincado meu mastro-deguerra? 
Primeiro, então, por ali mesmo, na areia roxa, para tomar 
o instinto do ar, a gente recruzava. Mas, dirá o senhor: e o 
Hermógenes? A guerra não era para ser contra o Hermógenes, os 
Judas? Sim, sei. Mas, eles, no meu ir eles iam vir, haviam-de. 
Sabia isso era eu no coxim da sela, suor nosso. Seguindo, no raso 
e no monte, das areias tirando brilhos. A mal o mundo serenava, 
de tardinha, quando os jaós cantavam. Ou silêncio tão devassado, 
completo, que nos extremos dele a gente pode esperar o lãolalão 
de um sino. Diadorim não me entendesse? Ele entendia? 
Assim, eu tivesse muito ódio, Diadorim havia de me 
entender. Mas eu estava acontecido. Por exemplo, vinha uma 
boiada, que passou, no bombalanceio. Aqueles vaqueiros, esses 
com os laços enrodilhados nas garupas, e que, por prazer, 
aboiavam. Apreciei de ver como todos souberam jeito de 
esconder o medo que de mim deviam de ter. Boiada com rumo 
na barra do Paracatu, salvante que mudassem de roteiro. Mas a 
gente ia por lados contrários. Deles até carneamos duas reses. Se 
assou carne na moda do povo dos Gerais – que era com espeto 
de vara de folha-miúda, tanto tempo se esbrazeando para 
estorricar, o naco de carne se torrava como um fumo, e o gosto 
daquele cheiro se supria forte, só por si punha a boca da gente 
aguando. Dada a mais cachaça ao menino Guirigó e ao cego 
Borromeu: para eles falarem coisas diferentes do que certas, por 
em si desencontradas, diversas de tudo. Conselhos me davam? 
Mesmo só o igual ao que pudesse dar o cajueiro-anão e o 
araticum, que – consoante o senhor escrito apontará – sobejam 
nesses campos. Mas a minha sina formava o rebrilhar; em tudo, 
digo ao senhor. Conforme fatos houve. 
Da mulher – que me chamaram: ela não estava 
conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, essa 
mulher assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papiri 
à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta – que era simples encostada, 
pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou 
um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá 
fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para 
uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e 
pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se 
jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu 
tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - “Toma, filha de 
Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai 
nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo...” 
Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos 
olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me 
despedir: - “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o 
mundo tornou a começar!...” – e saí para as luas. 
Aquelas obras, então, Diadorim não visse? Ah, conselho de 
amigo só merece por ser leve, feito aragem de tardinha 
palmeando em lume-d’água. O amor dá as costas a toda 
reprovação. E era o que Diadorim agora desfazia em mim, no 
amargoso. 
- “Repuno: que você está diferente de toda pessoa, 
Riobaldo... Você quer dansação e desordem...” 
Mexi meu cuspe dentro da boca. 
- “ ... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o 
que está demudando, em você, é o cômpito da alma – não é 
razão de autoridade de chefias...” 
Diadorim disse, e a voz dele, ecosa, me rodeou; as certas 
sinceridades. Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da 
gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete serras? Aí, 
demorei. Eu ia aceitar essa repreensão? Ah, nunca. E, 
desaguardadamente, eu atinei com outro motivo, para opor: a 
extratada conversa, que Diadorim tinha tido, adeparte, com o 
arrieiro de uma tropa. Perguntei, contra: - “O segredo, com o 
velho arrieiro da tropa, Diadorim, que se falaram – era de minha 
pessoa?” 
Essa tropa, que passara por nós, dias antes, rumava para o 
Abaeté, com carga de fumo, mantas de borracha, couros de onça 
e de lontra e cera de palmeiral, pouca coisa. Fossem atravessar o 
rio, num porto; iam passar por terras minhas conhecidas, nos 
sertões menores... Agora, eu queria saber. 
- “Aquele levou um recado meu. Instruí o homem que 
levasse um recado...” 
- “Um recado, de mim? Aí hei, que?! Malfiz?!...” 
- “Um recado. Mais tu não pergunte, Riobaldo: que, o que 
fiz, foi.” Dizendo, Diadorim se arredou de mim, com uma 
decisão de silêncio. Não vê, que nem precisava. Eu tinha 
guardado meus ouvidos. Eu não queria escutar o reto, naquela 
ocasião, por desânimo de ser. Diadorim tinha citado alma. O que 
ele soubesse, não soubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, 
da arte em que eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas 
Mortas, no ermo da encruzilhada... Aquilo não formava meu 
segredo? E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha 
sucedido, tão pois. O pacto nenhum – negócio não feito. A 
prova minha, era que o Demônio mesmo sabe que ele não há, só 
por só, que carece de existência. E eu estava livre limpo de 
contrato de culpa, podia carregar nômina; rezo o bendito! 
Trastempo, mais outras coisas sobrevinham, mas por roda 
normal do mundo, ninguém podia afiançar o contrário. Apus 
pedra por sobre pedra, não guardo lembrança. Eu era o chefe. 
Vez minha de dar comando e estar por mais alto. Zé Bebelo 
tinha de todo desaparecido. Agora, o que se carecia, era de se 
pegar mais munição. Todos deviam de me obedecer 
completamente. Só eu não queria abusar. Por que não queria? 
Ah, então, eu estava em dúvidas. Até por isso era que eu 
estremecia, fino, no ouvir certas menções. A haver a coisa que de 
longe me ameaçasse, feito o vem-vem das nuvens de chuva. O 
demo, mesmo assim, podia me marcar? Se não fosse, como era 
que Diadorim viesse vir com aquelas palavras? Acho que eu não 
era capaz de ser uma coisa só o tempo todo. 
Do que Diadorim se estranhava, era do seguinte: tinha sido 
o que aconteci com um sujeito senhor, um que disse se chamar 
nhô Constâncio Alves, que topamos no Chapéu-do-Boi. E 
também do desgraçado do homenzinho-na-égua, com o cachorro 
dele, que vieram vindo, três léguas depois daquele. As coisas vãs, 
esparramáveis. 
De que tivesse neste mundo um tal nhô Constâncio Alves, 
o que era que eu ponderava com isso? Mas ele mesmo ali 
loguinho falou: que era nado no pé da serra de Alegres, e sendo 
da minha primeira terra, também. Foi bem tratado. Mas disse que 
podia ser de ter me conhecido, quando eu menino. Isso me disse 
aquele nhô Constâncio Alves. Queria recompensas? Aos 
princípios, não desgostei de prosear com um antigo assim, 
compatrício, asseado em suas roupas e bem-vindo. Aí ele tomou 
café, com a gente. A dar, que o homem foi se avontadeando, 
encompridando as respostas; eu mesmo dava jeito para que ele 
tomasse coragem. 
Até que, um certo momento, o pretinho Guirigó se chegou 
sorrateiro, e emitiu em minha orelha. - “Iô chefe...” – arenga do 
menino Guirigó, que às vezes bem não regulava. O capeta – ele 
falou no capeta? Ou então, só de olhar para ele, e escutar, eu 
pensei no capeta; mas, que era do capeta, eu entendi. Daí, de 
repente, quem mandava em mim já eram os meus avessos. 
Aquele homem tinha quantia consigo: tinha consciência ruim e 
dinheiro em caixa... – assim eu defini. Aquele homem merecia 
punições de morte, eu vislumbrei, adivinhado. Com o poder de 
quê: luz de Lúcifer? E era, somente sei. A porque, sem prazo, se 
esquentou em mim o doido afã de matar aquele homem, 
tresmatado. O desejo em si, que nem era por conta do tal 
dinheiro: que bastava eu exigir e ele civilmente me entregava. 
Mas matar, matar assassinado, por má lei. Pois não era? Aí, 
esfreguei bem minhas mãos, ia apalpar as armas. Aí tive até um 
pronto de rir: nhô Constâncio Alves não sabia que a vida era do 
tamanhinho só menos de que um minuto... 
Ah, mas, então, do sobredentro de minhas idéias – do que 
nem certo sei se seja meu – uma minha-voz, vozinha forte 
demais, de tão fraca, suministrou um cochicho. Foi. Em tão curta 
ocasião que teve, essa vozinha me deu aviso. Ah, um recanto 
tem, miúdos remansos, aonde o demônio não consegue espaço 
de entrar, então, em meus grandes palácios. No coração da gente, 
é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era 
o que a vozinha dizia: - “Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: 
que o diabo fincou pé de governar tua decisão!...” A anteguarda 
que ouvi, e ouvi seteado; e estribei minhas forças energias. Que 
como? Tem então freio possível? Teve, que teve. Aí resisti o 
primeiramente. Só orçava. O instante que é, é – o senhor nele se 
segure. Só eu sei. 
Mas, aquilo de ruim-querer carecia de dividimento – e não 
tinha; o demo então era eu mesmo? Desordenei quase, de minhas 
idéias. Eu matava um tiquinho, só? Em nome de mim, eu não 
matava? Só forcejei por sobrenadar alto em mente o mando 
daquela vozinha. Ru, eh, masquei meus beiços, eu arrebentasse. 
Vi que acabava tendo de matar, e era o que eu mesmo queria. 
Como que tivessem espalhado, ombro com ombro, pelos inteiros 
cabíveis do Chapadão, os diabinhos, mil e mil, tocando lindas 
violas – para acabar com o que eu mesmo me falasse, e de mim 
quisesse por valia me entender, contra o que o demônio-mestre 
tinha determinado... Sendo que mal resisti, nas últimas, saiba o 
senhor. Ah, mas. E é preciso, por aí, o senhor ver: quem é que 
era e que foi aquele jagunço Riobaldo! Pois em instantâneo eu 
achei a doçura de Deus: eu clamei pela Virgem... Agarrei tudo em 
escuros – mas sabendo de minha Nossa Senhora! O perfume do 
nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para uma vida 
inteira... 
Súbito sendo – pois, pois – que um recurso eu tive, e por 
uma greta me saí, levando a salvo comigo o desgraçado nhô 
Constâncio Alves. O conforme foi: que isto eu espiritei: que fazia 
a ele uma pergunta. Respondesse a mal, morresse; mas, de outro 
jeito, recebia perdão. Aí a pergunta seguinte: - “Se sendo que o 
senhor é de minha terra, a pois: conheceu um homem que se 
chamava Gramacedo? Será, o senhor é parente dele?” 
Só esperei. Ele dissesse que tinha conhecido o outro, e, aí, 
morria, por eu não poder não-matar; por quanto a salvação dele 
mermava, que nem morrão de candeia. E assim, com obrigação 
minha mesma, eu tinha para sempre combinado. 
Mas nhô Constâncio Alves era para ganhar, no azo daquilo, 
pelo que deu, de resposta: - “Gramacedo? Sinto dizer, mas esse 
eu nunca vi, nem dele ouvi falar. Tenho parentescos com 
ninguém de tal nome...” 
A minha mão já tinha estado para o revólver, brandamente. 
Nhô Constâncio Alves percebeu o mal-amém. Confuso como se 
rebaixou um pouquinho no tamanho: ele devia de estar abrindo 
os joelhos, por tremor de medo nas pernas. Aí ele mesmo então 
achasse que carecia de muito morrer? – num pingo eu pensei, 
traiçoeiro. O medo mostrado chama castigo de ira; e só para isso 
é que serve. Ah, mas – ah, não! –; eu tinha decidido. Tinha ou 
não tinha. Eu? Assim, noutro repingo: arejei que toda criatura 
merecia tarefa de viver, que aquele homem merecia viver – por 
causa de uma grande beleza no mundo, à repentina. Um anjo 
voou dali? Eu tinha resistido a terceira vez. Agora, nhô 
Constâncio Alves estava delivrado de perigo. Só que eu gritei: - 
“O senhor tem seu dinheiro?” 
Ligeiro, novo, o homem caçou com suas mãos o 
surrãozinho, que abriu: estava cheio de notas, bem enroladas e 
embrulhadas num pano; e assim me dava, me presenteava. Mirei 
aquele triste pescoço. O que em seco ele foi engolindo: que 
podiam ser as contas todas dum terço. 
Aproximei o cobre. O ele, nhô Constâncio Alves, deixei 
que fosse embora. Nem espiei – para dele não ver as costas. Mas, 
aí, então, para me pacificar e enterter o Outro, eu tive de falar 
alto: - “Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas 
estradas, paga!” Eu disse. Eu ia cumprir? 
De seguida, o primeiro veio, logo mais adiante; quase no se 
inteirarem três léguas. Conforme houve fatos, coisa que se 
passou. E foi numa várzea, com uns boizinhos ali bem pastando. 
Demos com um sujeito, aparecido viajor. Ele vinha numa égua. 
Essa égua era acastanhada, com alguma altura. Aqueles arreios
de velhos, era que desfaziam. Um cabo da rédea estava sendo de 
couro, mas o outro de sedenho. A égua também cambaiava. O 
homem tinha cara de focinho, avançando o formato dos ossos da 
boca: não tinha queixo. Desgraçado desse homem, pelo que em 
sua vida ia ser, pelo que seus aspectos indicavam. Nem merecia 
dó, assim achei. Mas, na companhia dele, atrás, vinha também 
um cachorrinho. 
Eles esbarraram. O cachorrinho pegou a latir, nesse ofício 
que quase todo cão tem, de ser presumido valente. O homem 
bambeou de si, em cima da égua, ele estava pecando de pavor. 
Como que, num só relance ele transformou três caras. E para o 
pretinho Guirigó me virei, por perguntar: - “Aqui, este, deveras 
eu mato?” 
- “Senhor mata? Senhor vai matar?” – o pretinho só se saiu 
pelos olhos. 
Ao que escutei queixos e dentes do homem bater. Súdito 
indivíduo assim não tinha ação de voz nem tirava um suplicar. 
Tudo o que não sabia, ele adivinhava. Previsse que ia morrer só 
para indenizar do perdão dum outro, só por preencher o lugar 
que devia de ser o do nhô Constâncio Alves? 
Ah, não. Agora, a vontade de matar tinha se acabado! Sei e 
soube: por certo que o demo, agora, escondia sua intenção, por 
desconfiar de que eu não fosse querer cumprir. Com ele, meu 
senhor, assim é: sempre escolhe seus estilos. Ao mais, dessa vez, 
ele sabia que não carecesse de me azuretar. Sabia que eu estava 
até com enjôo da situação daquele homem da égua, meu gosto 
era permitir que ele fosse s’embora, forro de qualquer castigo. 
Mas sabia igual que eu estava na estrita obrigação de matar – 
porque eu não podia voltar atrás na promessa da minha palavra 
declarada, que os meus cabras tinham escutado e glosado. Ah, o 
demo bem me conhecia! 
Devia de estar no astuto, ali por perto, feitor, se 
pagodeando de mim: querendo ver bem boa execução, do meu 
dever de crime. E o homem da égua o nada de tudo espiava, por 
mais inteiriço não se ser se forcejava, e um espírito de silêncio ele 
gemia. Aí onde era que estava o anjo-da-guarda dele? Aí tinha de  
morrer. Carecia de morrer, porque o diabo, por novas voltas, no 
nó de compromisso tinha me pegado; e porque outro ao-menosremédio 
não havia. O cachorrinho por sua vez entendia isso, e 
latiu, cainhava, ganiz; mais conseguido do que o dono ele sabia 
dar de gemer. Mas eu estava pensando redobrado. 
Como era que eu ia matar aquele sujeito, anunciado de 
pobre, e matar em vez de um outro, sadio em bojo, e rico? 
Aquilo era justiça? Vai ver, ele nem conhecesse o nhô Constâncio 
Alves, nem soubesse quem fosse. Era justiça? Era possível? Eu 
pensei. O que era que Zé Bebelo, numa urgência assim, no arco, 
inventava de fazer? Eu tinha a preguiça de falar perguntas. 
Os outros, parados em volta, esperavam, por apreciar. 
Ninguém não tinha pena do homem da égua, mirei e vi. 
Consideravam de espreitar meu procedimento. A afleima de 
assim loguinho ter de botar e ouvir minhas palavras no ar, me 
agravou. E foi então, para retardar os momentos, que ao cego 
Borromeu eu indaguei: - “Seja o que, companheiro velho? E eh lá 
isso?...” 
Atabafado. Até porque, de pedir avisos a um cego, assim, 
em públicas varas, eu tivesse de me vexar. 
- “Se é se é, Chefe? A-hem? Se é o que mecê sumeteu, 
enhém? Senhor quer que seja que se mate um tal?” – sem-termo 
do cego me respondeu, sem-razão. Ao que eu tinha trazido 
aquele comigo, para a nenhuma utilidade. - “Senhor mesmo é 
que vai matar?” – o menino Guirigó suputou, o diabo falou 
como uma flauta. - “Te acanha, dioguim, não-sei-que-diga! Vai 
sebo...” – eu ralhei. Onde os outros riram rabo. 
Mas, entre isso, o homem condenável, em cima da égua, 
amontado sempre, chorava por si mesmo, sensato sério; chorava, 
decerto, o ter crescido de sua longe meninice. Nem perguntei o 
nome dele, nem donde era que era. Um naqueles casos, de nada 
carecia nem necessitava. A cara dele, pelo malaventurar, se 
quebrava das formas e cor, e perpassava – ele era um ser com a 
cara desmanchada. Aí o Acauã, por um gesto de aviso meu, 
assestava nele, sobrestante; porque, mesmo no magoar do terror, 
por vez um se assopra de adoido, dá bote, dá nas armas. 
Agarrado todo na égua, só encolhido, encarapitado – o pobre. 
- “Vai sebo!” – eu tornei a xingar o menino-de-infância. 
Adforma que eu tinha de resolver. Antes ligeiro, para os 
meus homens não me acharem aparvo. Ou o demo. O demo? 
Ainda que muito eu sei. Agora esse se prespiritava por lá, sabível 
mas invisível; e ele estava se rindo de mim, meu próximo. 
Ah, não! Somei que tive pena do homem? A cachorrinha se 
latia. Mas, como era que eu podia atirar numa triste pessoa 
daquelas, que semelhava com os ombros debaixo de todas 
ventanias? A cachorrinha perturbava os cavalos. Aperto do dever 
que eu tinha de cumprir, de editada palavra. Ou eu temi também 
o Tranjão, o Tibes, o Cujo, que eu mesmo ajustara por meu 
vigiador? Seja o que; hoje mais rezo. O homem nas costas da 
égua, desinquieta, que agora dava debate. Decerto porque, animal 
de montada, no que percebe aquele humano pavor alheio, o todo 
desprezo ao cavaleiro está obrigado a demonstrar. Conseguinte 
que, sobre assim, todos riram mais: - “Oé, eh, ele já está se 
deixando!” – algum reparou. Se via? Se o homem dera de obrar, 
mesmo permeando para a sela, que se sujava? Às caçoadas, 
constavam de querer ver aquilo. Daí, o cachorro, por resguardo 
de seu dono, agrediu os cavaleiros – com qual a latição dele, e os 
arreganhos, os cavalos de uns desgostavam e se empinavam, por 
reboliz. O homem, mesmo, era que se franzia, no não dizer, não 
desbobeava. Ah, e Zé Bebelo! – repentino relembrei, as remotas 
vezes. Os cavalos saltando assim, os cavaleiros bramando: 
recordação de Zé Bebelo. Só Zé Bebelo servia para apurar um 
impedimento desses, no deslindar. Onde ele? Ah! Ah e foi aí – 
então – que estouradamente achei: fortes idéias! Rapatrás, 
fazendo meu cavalo também se arquear e empinar, às patas – eu 
disse. Disse, que bradei – num entusiasmamento daqueles 
mesmos de Zé Bebelo – a fala igual à de Zé Bebelo, na baralhada 
em pompa dos animais, arre crinas, na arroubagem de arruaça. 
Eu pronunciei: - “Rai’-a-puta-pô! Não tenho que matar este 
desgraçado, porque minha palavra prenhada não foi com ele: 
quem eu vi, primeiro, e avistei, foi esse cachorrinho!...” 
Só um assarapanto de silêncio. Daí, me vivavam. Todos 
entenderam, me admiraram. A tanto que sei. Agora, eu, digo ao 
senhor: dele, do Demo – naquele instante – agora era eu quem 
ria! 
- “Ei-ei, gente, segura o cão!” – dei ordem. Num trêstempo 
a cachorrinha estava pega, se esbrabejava. No que uma 
peia, um laço ou um cabresto, eram desconformes para isso, 
então o Pacamã-de-Presas e o Jiribibe arrumaram uma jarda de 
fina corda, com ela se amarrou o bichinho num pé de assa-leitão. 
- “Não deixem ela uivar... Não deixem ela uivar...” – foi o que o 
cego Borromeu disse, pelo modo ele tinha medo de uivado de 
cachorro. - “A bom, cachorro a gente enforca...” – o menino 
Guirigó deu atrevimento de ensinar. Mandei que esse menino 
fosse para mais longe, perder as influências. Deram uma palmada 
na anca do cavalo dele, que o João Vaqueiro puxou, para ir exilar 
os dois em boa conveniente distância. 
- “Um cachorro, quando se enforca, chora lágrimas – os 
olhos dele regulam com os de gente...” – foi o que o Alaripe 
disse, com simples voz. A tudo, pensei. Agora, matar aquela 
cachorrinha? O que menos eu pudesse, só mesmo por pragas. 
Pelo tanto que a cachorrinha se prezava correta, latindo tão 
relatado. Ah, não! Ah, não, não matava. Mais, por aí, eu também 
já tinha aprendido – das sutilezas. Tornei a transdizer: - 
“Adoude!... E nem não foi essa cadela. A égua, essa é que foi – a 
que primeiro deu nas minhas vistas!” 
Real, mudando o propósito – e para que isto bem se 
entenda. Fio que me aprovaram. Divertidos, todos; quem é que 
ia me contrariar? Eu era senhor dali e daqui: eu falando, ficava 
sendo. Do Demo, mesmo, não tirei noção. Agora eu estava com 
outra pressa. - “Desapeiem o homem, mandemos embora, que se 
vá!” – em ato ordenei. Até porque ele se cessava sem 
entendimento das coisas, sem ação. Transes que em instante 
temi: aquele homem morresse, roqueado no medo, rebaixado 
dessa forma – então, ah, aí, então, o destino de lugar, para mim, 
estava definitivo: só sendo nas extremas do fim do Inferno... 
Com jeito, com asco, uns dos meus cumpriram meu mandado, 
desamontaram o homem, e o homem quase nem se impunha de 
ficar em pé. - “Tu foge fora daqui, tu te vai embora!” – eu disse, 
tive de gritar. Aí ele entendeu, e saiu. Por um momento, pensei 
que fosse correr. Mas esbarrou, sem espiar para trás. Agora era 
que achava pranto, com bem de choro: estava chorando soluços 
fortes, igual se fosse criança pequena. Aquilo não tinha nenhuma 
sensatez e me dava gastura, astúcia que remexia com minhas 
resistências. Aborrecidos, os do meu pessoal gritaram com ele, 
que tornou a pegar a correr, ao tom dos brados. Ainda esbarrou, 
outra vez, devia de estar chorando, conforme os ombros dele se 
sacudiam. Arrochei. Assim foi em arrebrusco: sobreveio em mim 
a estúrdia arfagem de chorar também – eu nas margens do mar. 
Não quis e nem pude. Ânsia que meus olhos, para dentro, davam 
em escuro. As graças d’arte – sabe o senhor : na escuridão, não se 
chora, por não se ver, como não se pita cigarro... Com isso, 
desgostei de mim. Ah, no final da vez, o que ria o riso principal 
era ele, o demo. O Tisnado! Assim, por causa da judiação que eu, 
mesmo por querer salvar a vida dele, eu tinha procedido de 
demorar assim, com aquele homem. Antes tivesse logo matado. 
Como é que se podia desrespeitar tudo desse jeito, numa 
desgraçada pessoa, roupeada? Como é? E o homem não tinha 
vislumbrado de espiar para trás, para saber de sua cachorrinha. E 
a cachorrinha estava ali, bem amarrada na dignidade. Tanto ela 
não latia mais, que todos tinham se esquecido dela. Agora eu 
colhi em mim um estado de desânimo. A ser, que, por conta 
daquele homem, por meus desmandos, quem sabe eu ia ter, mais 
para adiante, de pagar, com graves castigos? 
Algum tempo estava se passando, daí já tinham desarreado 
a égua, e o lombilho e os baixeiros botaram dependurados num 
galho de árvore de beira estrada. Ali estava aquele magro animal, 
preso somentemente no cabresto, que o Fafafa segurava; assim 
esperavam que eu desse cabo dela, eu mesmo, ou que mandasse 
outro fazer, segundo tinha sido a minha decisão. A cachorrinha, 
essa, eu pensei: eu dava para Diadorim, que perto todo o tempo 
tinha ficado, calado durante tudo. E, pois, era a hora de minha 
acertação, mesmo com a contrariedade. Ao dito, porque eu tinha 
começado a desastrada estória, que um final razoável carecia de 
ter. Suficiente sacar garrucha, e mirar o tiro na testa da égua, que 
se debruçava de pernas abertas, se acabando. A tanto, pois? 
Ao que o Fafafa, que não teve poder em si de se consentir 
silêncio, virou para mim, e disse: - “Nosso Chefe, com vênia eu 
peço: o senhor aceite de eu pagar em dinheiro o preço deste 
inocente animal, que seja poupado... A egüinha não é de todo 
ruim...” 
Aonde que ele disse, outros secundaram: eu deixasse. 
Repente meu foi meio irado; porque até o Fafafa me atravessava. 
Os demais, a ver que reprovavam minha decisão, de que a égua 
se matasse. A gente revoltosa? Ah, não; que, em seguida, gostei, 
eu mesmo. Instante em que me prazia ouvir o meu pessoal 
discordar daquilo, com a égua, a frio e por fria razão. Do demo 
era que eles discordavam! Rapaziada boa, solerte. Só que, assim, 
como eles queriam, não estava em meu regulamento resolver. 
Vender, não vendia a vida da égua ao Fafafa. Ah, não. Resumi 
um recurso, por aí alerta. O que foi como pronunciei: - 
“Delibero o certo: o primeiro que eu vi, foi essa égua. Ela tinha 
de receber a morte... Ah, mas égua não é gente, não é pessoa que 
existe. E que? Ah, então, não é cabível que se mate a égua, por 
tanto que a minha palavra decidida era de se matar um homem! 
Não executo. A alçada da palavra se perdeu por si e se gastou – 
pois não está dito? Acho e dou que o negócio veio ao 
terminado.” 
Verdadeiramente, com alegria, foi que todos me aprovaram. 
Ou seja que me admiravam em real, pela esperteza de toda 
solução que eu achava; e mesmo nem sabiam que essas minhas 
espertezas eram cobradas da manha do Tentador. Contente, 
tanto, e descontente, comigo, era que eu estava. Porque essas 
coisas, de certo modo, me tiravam o poder do chão. Mas, uma na 
outra, eu limpei o seco de minhas mãos. 
- “Aí, correr alguém, em tempo de campear outra vez esse 
homem...” – eu disse. - “Trazer, a modo de se dar a ele dinheiro, 
se dar de comer e um café, e tornar a entregar a ele o que é 
dele...” 
Eu falava era por devolver a égua. E o Suzarte, José 
Gervásio e Jiribibe, torcendo em galope, foram pelo homem. A 
égua, que se soltou, caçava moitas de capim, para pastar. Com o 
que, já que se estava por descanso e espera, e se tinha boa aguada 
na vereda perto, o jacaré armou a trempe e coou café. Sentei, na 
sombra dum pau-doce, fiquei ouvindo os gabos que os em redor 
de mim me dessem, como arras de procedimentos maiores. 
- “Tal a tal, o Chefe tira mais finíssimas artimanhas do que 
o Zé Bebelo próprio...” – um disse. 
- “À fé, que determina com a mesma justiça que-Medeiro 
Vaz...” – outro falou, mais aduloso. 
Isso, bom louvo, sossegava a minha perturbação. Aquela 
hora, eu estimava meus homens, que vivessem, que falassem. 
Mas, para afirmar idéia e respeito de que eu estava em minha 
chefia independente, mandei que aquietassem, pelo que eu ia 
aproveitar para uma sesta de soneques. Aprazia escutar o 
ventinho do chapadão, com o suave rumor que assopra e faz, nas 
folhas do bate-caixa. A cachorrinha, amarrada mesmo, se 
sujeitava de não latir: figuro que alguém estava dando a ela 
pedaços de carne-seca. Alembro que eu ainda podia caber nesse 
domingozinho de tranqüilidade. O melhor – ah, pensei, o melhor 
de tudo! – era que o Anhangão não aparecesse, não se visse 
porfiando no meio de todos; e que mesmo o mais certo era d’ele, 
demo, não competir, por não ter nenhuma existência. 
Tirei minha madorna, a pouco. Suzarte, Jiribibe e José 
Gervásio já retornavam, com o vazio tido, sem o resultado 
algum. - “... Sujeito se sumiu nesse mundo, carregando com o 
rastro, medo dele era medonho... Só achamos o nada dele...” – 
assim rendiam explicação. Que é que se podia remediar? Seguir 
nossa marcha, sem mais tardanças. A gente largava a égua ali, 
acaso algum dia o homem voltava, ou dela por boca de outros 
tinha notícia. Amontamos. E a cachorrinha? - “Reinaldo, essa tu 
quer?” – perguntei a Diadorim. Meante o que, ele melhor 
respondeu: - “Só convém se soltar a coitadinha, de seguro ela vai 
se encontrar com onde estiver o dono...” E ele mesmo desatou. 
Valia o senhor ver o raio de amor que tangeu a cachorrinhazinha: 
que latiu suas alegrias e airada correu, sem nenhuma demora, 
feito fosse para um pronto destino, há-de asas! Foi ela em longe 
desaparecer, e nós tocamos, no caminho contrário. A égua ficou 
lá, pastando; e o arreios do homem, como um espantalho, 
pendurado no ramo de árvore, até as moscas do campo já se 
ajuntassem nele. 
Do que acontecido, me senti muito livre. Trotei, adiante. 
Eu ia, à meia~ rédea, não me instava, não pensava. Será – mal 
pergunto eu ao senhor – que viajei este sertão com o Outro 
sendo meu sócio? Vá retro! Mas não tenho modo de entender 
como Diadorim estranhou meus semblantes. E por via disso é 
que tinha sido a nossa conversação – por causa do de que agora 
lhe dei conta miudamente. 
Do que discuti com Diadorim, do que derradeiro ele me 
disse, me ficou um retardo. Aquele passo me envergonhava. 
 - Grande Sertão: Veredas 
– 689 – 
Como ser? Eu queria e não queria ouvir – não queria e queria. 
Resto de toda resposta, que tivesse, tinha de ser acusação. E eu 
quis. Deu o que me deu, e eu vim, perguntar forçado; sentido, 
perguntei: - “O recado mandado, Diadorim, tu diz. Teu falar no 
exato, dever de toda lealdade, é que eu a duras exijo – o que me 
reverte!...” 
- “Sou teu amigo. O recado aquele, Riobaldo, pedi ao 
arrieiro para dar a uma mulher...” 
- “Ah, então foi para uma moça, para a filha do fazendeiro 
da Santa Catarina, que Otacília é, e que é minha noiva; será?” 
- “Riobaldo, pois foi. Em que é que você malda?” 
Ao que, por praga, eu relutei no freio. Até o campolino 
meu cavalo assumiu um espanto. Porque surpreendi o mundo 
desequilibrado rústico, o que me pertencia e o que não me 
pertencia. Se a vida coisas assim às horas arranja, então que 
segurança de si é que a gente tem? Diadorim me olhava. 
Diadorim esperou, sempre com serenidade. O amor dele por 
mim era de todo quilate: ele não tartameava mais de ciúme nem 
de medo. Disse assim: - “Pedi a ela que rezasse por você, 
Riobaldo... Assim pela esperança de saudade que ela tivesse, que 
não esbarrasse de rezar, o todo tempo, por costume antigo...” 
No argame, no esquisito desgosto de meu espírito, vi que, 
mesmo antes dele falar, eu já sabia que aquilo era – o que ele não 
evitava de me dizer. Rude que ainda reperguntei, mesmo assim: - 
“Ah, não! Ah, você acha que eu careço de suas rezas orações, por 
minha ajuda, Diadorim?” 
- “Acho, de manhã à noite, Riobaldo... Demais. Nem sei 
mesmo se alguém te botou o malefício... Tua mãe, mesma, que 
estivesse viva, achava...” Mor, mor, aí, recebi surto de meu 
sangue, forte, no corpo da cara e na beira das orelhas, e logo 
doeu no meu beiço o que eu estava me mordendo, assim para 
não insultar Diadorim com nomes que fossem da maior ofensa. 
Com um tapa na rédea, eu tirei de perto dele a cara de meu 
cavalo. 
- “Acha tua vida, rapaz! Careço é de menos amizades...” – 
ainda eu maldisse, me apartando. Ao que bem pensei: – Hás-de! 
Rezas essas, o contra? Atira, tu, em anta, com chumbo fino... – e 
ri mamente. O que era que me transtornava, do meio para o fim, 
por essa fraseação? 
Sendo que, depois logo, quando esbarramos a caminhada 
do dia, eu fiz questão de não querer prosa nem presenças de 
ninguém, para que vissem que eu estava pensativo de projetos, e 
raivoso. Tristonho. A gente parava no findar do Chapadão, longe 
no poente, segundo se ia indo, por meu comando. As muitas 
sérias coisas referi comigo quando eu estava provando a fresca da 
tarde. 
Por curto: minto, se não conto que estava duvidoso. E o 
senhor sabe no que era que eu estava imaginando, em quem. Ele 
é? Ele pode? Ainda hoje eu conheço tormentos por saber isso; 
trastempo que agora, quando as idades me sossegam. E o demo 
existe? Só se existe o estilo dele, solto, sem um ente próprio – 
feito remanchas n’água. A saúde da gente entra no perigo 
daquilo, feito num calor, num frio. Eu, então? Ao que fui, na 
encruzilhada, à meia-noite, nas Veredas Mortas. Atravessei meus 
fantasmas? Assim mais eu pensei, esse sistema, assim eu menos 
penso. O que era para haver, se houvesse, mas que não houve: 
esse negócio. Se pois o Cujo nem não me apareceu, quando 
esperei, chamei por ele? Vendi minha alma algum? Vendi minha 
alma a quem não existe? Não será o pior?... Ah, não: não declaro. 
Desgarrei da estrada, mas retomei meus passos. O senhor 
segurado não acha? Ao que tropecei, e o chão não quis minha 
queda. De hoje em dia, eu penso, eu purgo. Eu tive pena de 
minhas velhas roupas. E rezo. Para a minha reza, Deus dá as 
costas, mas abaixa meio ouvido. Rezo. Queria ver ainda uma 
igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino, no estado do 
Chapadão. Como que algum santo ainda não há de vir, das beiras 
deste meu Urucuia? E o diabo não há! Nenhum. É o que tanto 
digo. Eu não vendi minha alma. Não assinei finco. Diadorim não 
sabia de nada. Diadorim só desconfiava de meus mesmos ares. 
Escuto o claro riso dele, que era raramente; quer dizer: me 
alembro. Compadre meu Quelemém me dá conselhos, de 
tranqüilidade. O que ele renova é: - “... Em presente e futuros...” 
Eu sei. 
Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o 
que eu pelejei para achar, era uma só coisa – a inteira – cujo 
significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que 
era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, 
de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a 
gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, 
sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse 
norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo 
sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e 
cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a 
certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, 
tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, 
o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e 
é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivivel 
mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua 
continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para 
cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num 
papel... 
Ora, veja. Remedeio peco com pecado? Me torço! Com 
essa sonhação minha, compadre meu Quelemém concorda, eu 
acho. E procurar encontrar aquele caminho certo, eu quis, 
forcejei; só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em 
minha mão. Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é 
que ela podia ser minha? O senhor reza comigo. A qualquer 
oração. Olhe: tudo o que não é oração, é maluqueira... Então, 
não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não 
vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu 
vendi a alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é 
este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum 
comprador... 
Divulgo o meu. Essas coisas que pensei assim; mas pensei 
abreviado. O que era como eu tivesse de furtar uma folga nos 
centros de minha confusão, por amor de ter algum claro juizo – 
espaço de três credos. E o resto já vinha. O senhor verá, pois. 
Porém mais além. 
Na Serra do Tatu, o frio ali é tal, que, em madrugadas, a 
gente necessita de uns três cobertores. Na Serra dos Confins, 
meados de julho, lá já está sovertendo o laçaço dos ventos, 
desencontrados, de agosto; como que venta: árvores caídas. 
Aonde eu ia, todos achavam natural. Chefe é chefe. Será que eles 
não sabiam que eu não sabia aonde ia? Isto é – digo – isto é. Não 
soubessem os começos e os finais. Dalgum modo, eu estava indo 
e sabendo. Sobre como é que a coruja conseguiu modo de poder 
voar sem se escutar o rumor do vôo? Ao que eu estava 
sofismado. Menos que não guardei raiva de Diadorim, nem 
sentimentos. O desar que ele tinha falado e feito, aquela ruim 
conversa nossa, não deixou nem nublo: melhor fugiu, de todo, de 
minha lembrança. 
O palpite meu, primeiro, era de chegar até na Serra do Meio 
– cruzar na Cachoeira-do-Urucuia. Daí, desisti. De repente, torci 
direto para o norte; foi no Lagamar, a travessia. Mas, fujo de 
dizer: que, antes, no Lugar-doTouro, se arrecadou a exata 
munição. Ainda antes se dando, dias, que a gente tinha recebido 
uma boa surpresa. O Quipes! 
Assim o Quipes, que retornava, depois de tantos meses. De 
desde que tinha cumprido a ordem de sair por travesso socorro, 
de lá ondonde estávamos cercados em combates, na Fazenda dos 
Tucanos – o senhor se alembrará. Ele vinha certo e alegre. E, de 
ver um companheiro assim se aparecer, de ausências, a gente 
ganhava mais mocidade. 
Lampeiro, o Quipes entrado em boas roupas, montado 
num bom cavalo amarelo, pitando maço de cigarros de fábrica; 
rico feito um Mascarenhas. Arte que puxava um burro e uma 
burra, adestros, e tinha comprado coisas: até trempe e caçarolas, 
e açúcar real e chocolate em pó. Ao fagueiro, pujante, mesmo. 
- “Ara, veja, como passou? E dond’ é que soube de nós?” – 
eu em atiço perguntei. 
- “Ao que pois, Tatarana: em faltas de notícia, formei meu 
pião por aí... Já estive em Ingazeiras, na Barra-da-Vaca, no Oi- 
Mãe, em Morrinhos... O Urucuia não é o meio do mundo?” – 
assim ele se temperou. 
O que não era toda a verdade. O que ele estava era recémchegando. 
E me tratou de Tatarana... O seja que tivesse vivido 
esses tempos tangendo urubu, adformas que vinha agora na 
ignorância de que eu é que era o Chefe. Indagou por Zé Bebelo; 
e pois de Zé Bebelo mesmo ele tudo não sabia. Nem o parar do 
Hermógenes. Nem não tinha nenhum sinal do Joaquim Beiju, 
assim como aviso de outras novidades do mundo não deu. Só, 
por terminar, se gabou de ter tido duas ofertas: para servir de 
jagunço de Dona Adelaide, no Capão Redondo, e do Coronel 
Rotílio Manduca – em sua Fazenda Baluarte. 
- “Ah, entrei, gozando de minha pessoa de paz, até nas 
cidades de Januária e São-Francisco...” – ainda proseou. Devia 
de.ser verdade. Assim como verdade completa que, a burra e o 
burro, e a tralha, ou o dinheiro para tudo adquirir, ele devia de ter 
roubado tomado em terra de riquezas. 
Tal que disse: - “Isto eu bem comprei, na venda do José 
Vassalo...” Desajuizado gastador, esse o Quipes. 
Tanto ouvi, muito macambúzio. Onde que então, eu varava 
mundo, em comando, e ainda não prezava o meu nome. Eu – o 
Urutu-Branco! Ser Chefe de jagunço era isso. Ser o que não dava 
realce – qualquer um podia, fazendeiro com posses, mão em  
políticas. O sertão tudo não aceita? A minha pessoa era nada, 
glória de Zé Bebelo era nada. O que dá fama, dá desdém. O 
menos de me importar. O que eu carecia era de dar primeiras 
batalhas. Suspender a alta coragem, adiante de meus cabras. Ou 
será que já estavam mas era se aplicando no vagavagar? – Cigano 
sou? – eu pensei, enraivecido. Tinha o norte, para a gente. Dei 
ordem. Aí torcemos caminho, numa poeira danã. A reto, viemos 
beirando o Ribeirão da Areia, de rota abatida. O que era que eu 
tencionava fazer? O senhor espere. 
Narro que não rendi melindres do feito de Diadorim, digo 
– o recado enviado. Mas, à vez, balancei uma inquietação, 
daquilo, que era para eu bem estranhar, a decisão dele de tanto 
absurdo. Essas desordenadas da vida da gente: tudo o que 
estoura manso e guampa quieto, e que só tem a razoável 
explicação para quem está mesmo longe dos motivos. Ao meio 
do meio duma coisa eu tinha certeza: que Diadorim não ia me 
mentir. O amor só mente para dizer maior verdade. Diadorim 
me compassava; por força. Mas, para mandar à minha Otacília 
assim aquela embaixada, era porque ele soubesse, no zelo de seu 
coração, que então Otacília me tinha amor. E tanto igual sabia 
também de mim? Naqueles dias, era. Abrandei minha lembrança 
em Otacília, que sincera me aguardasse, em sua casa, em seu 
meigo estar. Agora eu ia indo às avessas de lá, da Santa Catarina, 
mas, de arribada, minha intenção de saudade vinha voltando. 
Tudo, nesta vida, é muito cantável. 
Até, a seguir, por um afino de momento eu me arrepiei por 
trás da testa. Ato do que meio confuso imaginei, por um vão 
imaginar: que, me querendo-bem – a mais de meu merecimento 
– e crendo que eu enfrentava os duros riscos, ela Otacília pudesse 
praticar o estouvamento gentil de se fugir de casa e vir 
aventurada em minha cata, por todos os pousos deste sertão... 
Ah, ela vinha, montada num bom cavalo corcel, aparecia de 
repente, por meu nome perguntando. E eu declarava a grandeza 
real dela, definida bem do meu lado, na frente do grande bando 
de meus homens... Assim, de jeito tão desigual do comum, minha 
vida granjeava outros fortes significados. E isso variou em meu 
pensamento, inesperado de ligeiro supor, que, a bem notado, 
nem foi um pensar. Arremedo de sonho, também, não seria de 
ser. Então, emendando de novo o vero juízo, tive um receio: por 
causa que aquilo podia ser aviso do que estivesse por vir, rumo 
de profecias. 
Otacília – me alembrei da luzinha de meio mel, no demorar 
dos olhares dela. Aquelas mãos, que ninguém tinha me contado 
que assim eram assim, para gozo e sentimento. O corpo – em lei 
dos seios e da cintura todo formoso, que era de se ver e logo 
decorar exato. E a doidice da voz: que a gente depois viajasse, 
viajasse, e não faltava frescura d’água em nenhumas todas as 
léguas e chapadas... Isso tudo então não era amor? Por força que 
era. E pelo sim receei: será tivesse Diadorim falseado fala, e o 
recado na verdade fosse outro – o para ela vir, afoitamente, que 
eu dela muito carecia? Divulgo o desuso disso, que era 
extravagâncias. Mas o senhor acreditando que alguma coisa 
humana é de todo impossível, então é que o senhor não pode 
mesmo ser chefe de jagunço, nem na menor metade só de um 
diazinho, nem somente nos vastos imaginados. Ora essas! – digo. 
Se Otacília viesse, aparecesse lá em no meio de nós – que 
seguimento de coisas havia de suceder? 
A bobéia, toleima. Otacília estava guardada protegida, na 
casa alta da Fazenda Santa Catarina, junto com o pai e a mãe, 
com a família, lá naquele lugar para mim melhor, mais longe 
neste mundo. E eu, sem ser por motivo ou razão, cada dia tocava 
com a minha gente por contrárias bandas, para mais apartado de 
donde ela assistia. Ao cada dia mais distante, eu mais Diadorim, 
mire veja. O senhor saiba – Diadorim: que, bastava ele me olhar 
com os olhos verdes tão em sonhos, e, por mesmo de minha 
vergonha, escondido de mim mesmo eu gostava do cheiro dele, 
do existir dele, do morno que a mão dele passava para a minha 
mão. O senhor vai ver. Eu era dois, diversos? O que não entendo 
hoje, naquele tempo eu não sabia. 
Máximo me lembro é de que, na minguante, se estava no 
veredal das cabeceiras de um córrego, lugar de desmedidas 
pastagens, adonde os cavalos usufruírem descanso. A lá 
esbarramos e paramos, por uns dias. Me lembro, eu quis escrever 
uma carta. 
Essa minha carta, eu podia destacar um homem, dos 
ligeiros, ele ia levava em mão, à Otacília, minha noiva, trazia a 
resposta. O que eu cogitei de escrever era muito singelo: as 
notícias de minha saúde, pergunta de como era que ela e os 
parentes iam passando, saudações de lembranças. Admiro que 
achei natural de não falar coisa de minha glória de chefia, por 
oras. Por quê? Pois. E tive vontade de traçar uns versos também: 
mas que a aragem não ajudava a deduzir. Era uma sinceridade 
muito dificultosa. Escrevi metade. 
Isto é: como é que podia saber que era metade, se eu não 
tinha ainda ela toda pronta, para medir? Ah, viu?! Pois isto eu 
digo por riso, por graça; mas também para lhe indicar importante 
fato: que a carta, aquela, eu somente terminei de escrever, e 
remeti, quase em data dum ano muito depois... Digo o porquê? 
Próprio porque não pude. Guarde o senhor: não pude completo. 
Mas, guarde, por outra: o dia vindo depois da noite-esse é o 
motivo dos passarinhos... 
Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não 
entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez. 
Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto. Já conto, 
já venho – falar no assunto que o senhor está de mim esperando. 
E escute. 
Tinha o Maligno? 
Às vezes, penso. Um boneco de capim, vestido com um 
paletó velho e um chapéu roto, e com os braços de pau abertos 
em cruz, no arrozal, não é mamolengo? O passopreto vê e não 
vem, os passarinhos se piam de distância. Homem, é. O senhor 
nunca pense em cheio no demo. O mato é dos porcos-do-mato... 
O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, 
lá acolá é a caatinga. Quem entende a espécie do demo? Ele não 
fura: rascrava. Demorar comigo ele podia. E, o que não existe de 
se ver, tem força completa demais, em certas ocasiões. A ele 
vazio assim, como é que eu ia dizer: - “Te arreda desta minha 
conversa!”?... Ao que, pois, o que eu ia pondo, na carta, era quase 
que uma ordenada lembrança, a igualzinha repetição daquilo de 
Diadorim: – que ela rezasse por mim, Otacília, orações rezasse... 
Ia. Ah, mas, aí, houve. Amoleci mão antes de coração: não pude. 
Não pude, diabralmente, desarrazoado – por outras fortes 
ordens... –; e então de repente tive vergonha, desgostei de estar 
querendo escrever aquela carta. Desisti, guardei na mochila 
aquela metade. Um homem é um homem, no que não vê e no 
que consome. Ah, não. Otacília, eu não merecia. Diadorim era 
um impossível. Demiti de tudo. 
O demo, tive raiva dele? Pensei nele? Em vezes. O que era 
em mim valentia, não pensava; e o que pensava produzia era 
dúvidas de me-enleios. Repensava, no esfriar do dia. A quando é 
o do sol entrar, que então até é o dia mesmo, por seu remorso. 
Ou então, ainda melhor, no madrugal, logo no instante em que 
eu acordava e ainda não abria os olhos: eram só os minutos, e, ali 
durante, em minha rede, eu preluzia tudo claro e explicado. 
Assim: – Tu vigia, Riobaldo, não deixa o diabo te pôr sela...-isto 
eu divulgava. Aí eu queria fazer um projeto: como havia de 
escapulir dele, do Temba, que eu tinha mal chamado. Ele 
rondava por me governar? Mas, então, governar pudesse, eu não 
era o Urutu-Branco, não vinha a ser chefe de nada, coisa 
nenhuma! Ah, eu carecia dum jeito, dum esperto socorro, para 
tentear com o Sujo em suas próprias portas, e mediante me pôr 
livre de fim fatal. De que modo? 
Mas acontece que o instante entre o sono e o acordado era 
assaz curto, só perpassava, não dava pé. Eu não podia me firmar 
em coisa nenhuma, a clareza logo cessava. Daqueles avisos e 
propósitos, o montante movimento do mundo me delia, igual a 
um secar. E eu mesmo estava contra mim, o resto do tempo. 
Não estava? Todo o mundo, cada dia, me obedecia mais, e mais 
me exaltavam. Com o que peguei, aos poucos, o costume de 
pular, num átimo, da rede, feito fosse para evitar aquela 
inteligencinha benfazeja, que parecia se me dizer era mesmo do 
meio do meu coração. Num arranco, desfazia aquilo – faísca de 
folga, presença de beija-flor, que vai começa e já se apaga – e daí 
já estava inteirado no comum, nas meias-alegrias: a meia-bondade 
misturada com maldade a meio. Agora levantava, puxava e 
arreava meu Siruiz, cavalo para alvoradas. Saía sozinho. 
Sair na escuridão, o senhor sabe: aqueles galhos de árvores 
batendo na cabeça da gente. Sempre eu ia até longe; quando 
voltava, encontrava o pessoal se aprontando, café já coado, 
cavalaria em fila para a viagem. Uma vez, inda mais longe fui, do 
que nas outras. E dei com o lázaro. 
Ele se achava como que tocaiando, no alto duma árvore, 
por se esconder, feito uma cobra ararambóia. Quase levei o 
susto. E era um homem em chagas nojentas, leproso mesmo, um 
terminado. Para não ver coisas assim, jogo meus olhos fora! 
Promovi meu revólver. Aquele de repente se encolheu, tremido; 
e tremeu tanto depressa, que as ramagens da árvore enroscaram 
um rumor de vento forte. Não gritou, não disse nada. Será que 
possuía sobra dalguma voz? Eu tinha de esmagalhar aquela coisa 
desumana. 
Dum fato, na hora, me lembrei: do que tinham me contado, 
da vez em que Medeiro Vaz avistou um enfermo desses num 
goiabal. O homem tinha vindo lamber de língua as goiabas 
maduras, por uma e uma, no pé, com o fito de transpassar o mal 
para outras pessoas, que depois comessem delas. Uns assim 
fazem. Medeiro Vaz, que era justo e prestimoso, acabou com a 
vida dele. Isso contavam, já de dentro do meu ouvido. A quizília 
que em mim, ânsia forte: o lázaro devia de feder; onde estivesse, 
adonde fosse, lambuzava pior do que lesma grande, e tudo 
empestava da doença amaldita. Arte de que as goiabas de todo 
goiabal viravam fruta peçonhenta... – e d’eu dar no gatilho: lei leal 
essa, de Medeiro Vaz... 
- “Ô guaimoré!” – xinguei. E gritei pulhas. Acho que 
insultava era por de certo modo retardar meu dever? Ele não 
respondeu. Em ante mim, assim, ninguém não respondesse? Mas 
fincava de me olhar: ah, ele tinha dois olhos, no meio das folhas 
da folhagem. Muito coitado ele era – o senhor esteja de acordo. 
Mas, aí, foi que vi e repeli o que que é ódio de leproso! Na cabeça 
daqueles olhos, eu armei minha pontaria. 
E ouvi o vir dum cavaleiro. Esperei. Não dissessem que eu 
tinha baleado à traição o maldelazento, com escondidos de não 
ter testemunhas. Quem vinha? Em já madruga-manhã, tudo 
clareado, reconheci: Diadorim! Embolsei a arma, sem razão. 
Diadorim me perseguia? “Vigia, Diadorim: tu pune por este?!” – 
eu havia de indagar, apontando o esconso do leproso. “Estou 
aqui, te vejo é você mesmo, Riobaldo...” – ele ia dizer - “... 
Riobaldo, tem tento!”... A imaginação dessa conversa, eu pensei 
de relance, como uma brasa chia em dentro de vasilha d’água. 
Assim estremeci, eu ente. Porque, do bafo mesmo de minha idéia 
vã, eu estava catando tal anúncio de acusação: – Tu traz o 
Arrenegado... Eu e ele – o Dê?! Então, num sutil, podia mesmo 
ser que ele quisesse estar tomando conta de mim? – Aí, nem 
nunca, nem! – eu rosnei, riso. Espinoteei na sela, feito acordado 
dum cochilo de cão. E Diadorim tropeava chegando. Mas eu 
virei rédea e roseteei, com brado, meu animal cumprindo: 
rompemos em galope que era um abismo... 
-Eh, diogo! dianho!... Eh diogo, eh dião... 
Retos, fomos, desabalando, que um quarto-de-légua quase, 
por doidejo. Nós três? Que eu pensei. E esbarrei, por tanto; meu 
cavalo sacudiu o pescoço todo. Espiei em roda, até com a mão. 
Não vi o demo... Meu espírito era uma coceira enorme. Como eu 
ia poder contra esse vapor de mal, que parecia entrado dentro de 
mim, pesando em meu estômago e apertando minha largura de 
respirar? Aí eu carecia de negar pouso a ele. A nega. Eu quis! Eu 
quis? 
Como olhei, Diadorim estava acolá, estacado parado no 
lugar, perto da árvore do homem. Por certo ele tinha enxergado a 
coisa viva, e estava desentendendo meu espaço, esses desatinos. 
Contemplei Diadorim, daquela distância. Montado sempre, teso 
de consciência, ele me parecia mais alto de ser, e não bulia, por 
mim avistado. E o lázaro? Ah, esse, que se espertasse, que 
fugisse, para não falecer... Que é que adiantava que, àquela hora, 
os passarinhos cantassem, acabando de amanhecer o campo 
sertão? A enquanto sobejasse de viver um lázaro assim, mesmo 
muito longe, neste mundo, tudo restava em doente e perigoso, 
conforme homem tem nojo é do humano. 
Condenado de maldito, por toda lei, aquele estrago de 
homem estava; remarcado: seu corpo, sua culpa! Se não, então 
por que era que ele não dava cabo do mal, ou não deixava o mal 
dar logo cabo dele? Homem, ele já estava era morto. Que o que 
Diadorim dissesse; que dissesse. Que aquele homem leproso era 
meu irmão, igual, criatura de si? Eu desmentia. Como era que, 
sabendo de um lázaro assim, eu ia poder prezar meu amor por 
Diadorim, por Otacília?! E eu não era o Urutu-Branco? Chefe 
não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o 
defeituoso. Esporeei, voltando. “Não sou do demo e não sou de 
Deus!” – pensei bruto, que nem se exclamasse; mas exclamação 
que havia de ser em duas vozes, uma muito diferente da outra. 
Vim feito. Tornei a empunhar o revólver. Mas completei, eu 
mesmo, aquilo que Diadorim decerto ia me responder: 
“Riobaldo, tu mata o pobre, mas, ao menos, por não desprezar, 
mata com tua mão cravando faca-tu vê que, por trás do podre, o 
sangue do coração dele é são e quente...” Encostar nele a ponta 
de minha franqueira de cabo prateante? – Toma! Tu cai no 
chão... Agalopando assim, joguei fora meu revólver. Joguei – ou 
foi um ramo de rompe-gibão que relou arrancando a arma de 
meu pulso. Cheguei, esbarrei. Meu cavalo, tão airoso, batia mão, 
rapava; ele deu um bufo de burro. Vi Diadorim. Mas o leprento 
tinha ganhado para se ir, graças que não assisti à arriação dele: 
decerto descendo às pressas, se escapando de gatas nas moitas de 
feijão-bravo. Desse, tive um cansaço enorme; pode que seja por 
não saber se matava ou não matava, caso ele ainda estivesse lá. 
Do leproso. 
Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, 
reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo 
comum. Os olhos-vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum 
verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio 
se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: 
Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem 
tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... 
Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e 
mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não 
alcança. 
Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava 
separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por 
profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De 
que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, 
macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas 
ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o 
chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou 
o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos 
governa... Aquilo eu repeli? 
Antes que Diadorim mesmo abrisse boca para me sorrir, 
me falar, eu tive de fazer uma coisa. A meio em ânsia, meio em 
astúcia; meio em raiva. Como foi que peguei o vivo de tal idéia, 
em gesto, como se deu de que me alembrei daquilo? Homem, 
não sei. Mas enfiei mão: por entre armas e cartucheiras, e correias 
de mochilas, abri à berra meu jaleco e a minha camisa. Aí peguei 
o cordão, o fio do escapulário da Virgem – que em tanto cortei, 
por não poder arrebentar – e joguei para Diadorim, que aparou 
na mão. Ia me fazer alguma pergunta, que eu não consenti, a voz 
dele era que mais significava. Isto é, porque eu primeiro falei, 
como resumo. - “Hei-á, voltar – que o povoão está de minha 
espera!” – eu enfim disse; eu ainda estava respirando muito 
ligeiro demais. 
Assim eu dava era ordem, como convinha. Eu não estava 
de francamentes. Para mim, um palmo, àquela hora, podia medir 
três braças. Apertei. Nem meu cavalo carecia disso: era eu 
encolher um pé, e ele já via vôo. À paz! Mas Diadorim, vez de 
logo vir, tocou em contrário. Sustentei em esbarro meu Siruiz, a 
ver, querendo as curiosidades. Diadorim estava indo lá, modo de 
caçar e recolher o revólver, que de minha mão tinha caído. Num 
repousozinho de coração, calado eu agradeci à amizade dele essa 
fineza. Daí, vim. Sempre longe em frente, portanto que meu 
cavalo soberbo não dava alcance para ele se emparelhar. Daí, 
cantei. Mesmo mal, me canteipor causa que via que, medeando 
tão grandes silêncios, era que Diadorim tomava mais sorrateiro 
poder em meu afeto, que não era possível concernente. Entre 
isso, chegamos de volta no arranchamento. Mas cheguei lá foi 
para ter ocupação de uma estúrdia novidade. Com os urucuianos. 
O senhor estando lembrado: aqueles cinco, soturnos 
homens, catrumanos também, dos Gerais, cabras do Alto- 
Urucuia. Os primeiros que com Zé Bebelo tinham vindo 
surgidos, e que com ele desceram o Rio Paracatu, numa balsa de 
talos de buriti. Esses sempre mereceram pouca história da gente, 
por quietos e certos, bem procedidos, sujeitos de furtadas 
palavras. Agora eles comigo queriam um entendimento. Um 
Diodato, esse era o cabo deles. Formou em frente dos outros, 
puxando a parlagem. 
Queriam conversa comigo em só, apartada. Eu apreciasse 
aqueles homens. A valentia deles estava por dentro de muita 
seriedade. Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol – o 
povo diz. As lérias. Como contam também que nos Gerais 
goianos se salga o de-comer com suor de cavalo... Sei lá, sei? Um 
lugar conhece outro é por calúnias e falsos levantados; as pessoas 
também, nesta vida. Mas aqueles cinco me condiziam. Admirei 
de ver que eles todos ainda estavam a pé, mas com dobros e 
bissacos nas costas, feito prontos para pedestre viagem. Sisudez 
deles ainda semelhava maior. Então constituí meus ouvidos, para 
o cabecilho, Diodato. 
- “Praz vosso respeito, Chefe, a gente decidiram... A gente 
vamos’embora. Praz vossas ordens...” – o homem me disse, 
assim mesmo, casmurro com serenidade. Tive de ver bem suas 
feições, uma cara assim se examinava aos poucos. 
Entendi, mas reperguntei. O homem não coçou a cabeça. 
Olhos de santo de madeira. O nariz dele era bem grande, nariz 
que não se empinava. Só tinha a barbazinha que tem um queixo 
de cavalo. 
O homem não coçou a cabeça. Firme disse. Queriam irs’embora, 
duma vez; careciam. Ah, eles bem que conheciam a 
regra: que um jagunço sai do bando quando quer – só tem que 
definir a ida e devolver o que ao chefe ou ao patrão pertence. As 
armas, eles não devolviam, porque eram deles; mas, como tinham 
de primeiro vindo a pé, largavam bem agora os cavalos. Pegavam 
era um tanto de matula – trivial de farinha e carne-seca, e 
rapadura, para uns três dias, mal. Mesmo assim, era doideira, 
achei. Doideira tencionarem vagar reto dali donde estávamos, 
alto ermo, distantes brenhas. Por que é que iam, nem esperando 
eu desse minha primeira ganhada? 
- “A isso, meio acontecidos, Chefe... A conforme a gente 
carece, praz vosso respeito, senhor, sim...” – o homem meio 
respondeu, bastante sincero. Reparei no chapéu na cabeça dele, 
que era de couro de veado suaçuapara, com macias abas e 
formato muito composto. A cara dele mesmo dava um ar 
honrável, circunspecto, por mal que com manchas, sarro de 
alguma velha moléstia, semelhando nódoas de caldo de caju. - 
“Sua graça, toda, é Diodato de quê?” – indaguei. - “Diodato 
Nariz, por alcunha...” – ele disse; disse, de brancura. Conheci 
como eu nunca tinha dado tento d’atenção naqueles homens, 
cuja valia. Assim que eles eram, de batismo: e o Pantaleão, 
Salústio João, João Tatu e O-Bispo. Naquela hora, era que eu 
punha tino. Nunca mais tive notícia desses. Hoje, repenso. 
Naquela hora, eu cogitava jeito de conservar todos em 
companhia. Remei minhas perguntas. Donde que eram? 
- “Desses córregos...” Do Buriti-Comprido, Tamboril, 
Cambaúba, Virgens, Mata-Cachorro, das Cobras... Para cima da 
Bazra-da-Vaca, Ari nos... Em sertão são. Isso, que são lugares. E 
que é que me adiantava saber que tinham suas ocas por lá? O que 
eu inventei de conhecer era donde tinham estado, quando Zé 
Bebelo deu com eles, que vinha voltando de Goiás. - “Ah, 
senhor sim, nas beiras... Roças do rio São Marcos, senhor sim, no 
Esparramado... Fazenda duma Dona Mogiana...” Cabras dessa 
Dona Mogiana? Eram. Tinham sido. Mas com sua labuta de 
plantações. Que qualidades de crimes eles tinham feito, para 
principiar, crimes de boa inerência? E por que era que tinham 
querido vir com Zé Bebelo? Isso eu quis perguntar. O que de 
repente perguntei: - “Por via de que é que vocês desespiritaram 
de seguir vinda com a gente?” Falei, e refuguei para não ter 
falado; que gabo e questão não são regra de se negociar. Mas o 
homem Diodato, distanciado duma minha pergunta dessas, 
esbarrou vez, demorão; mesmo, num desajeito, ele fungava. E ele 
comigo não tinha ajuste, mas não queria me ofender sem a razão. 
Chega olhou para os companheiros, que acenavam devagar com 
as cabeças, mas numa maneira brandazinha de sonsa, fora de 
tudo o mais, para não se entender se é sestro ou anuído – que é 
do jeito comum como essa gente costuma. 
- “Ara, senhor, sim...” – por fim ele falou resposta: - “... que 
a influência esmoreceu... A gente gastou o entendido...” ; e estava 
quase meio envergonhado. 
Eu disse: - “A pois?” 
- “Não vê, Chefe, praz vosso respeito: as coisas 
demudaram... Que viemos com siu Zé Bebel’... Vai, a gente 
gastou o entendido...” – ele disse. - “O que Zé Bebelo falou, 
quando chamou vocês?” 
- “A foi. Quando chamou, senhor sim...” - “Ele prometeu 
vantagens?” 
- “Não se diz... Chamou. Falou misturado... A gente 
viemos.” - “E o que é que falou?” 
- “Agora, a gente não sabe mais. Falou muito razoável... 
Falou muito razoável... Agora, com perdão vosso, a gente 
esquecemos, a gente gastou o entendido... Mas muito razoável 
falou...” 
De irritado, de afleima, dei o discutir: - “Pois, por que é, 
então, que não foram logo, com Zé Bebelo, quando Zé Bebelo se 
foi?” 
- “Deixamos o tempo dos outros passar... Não temos 
questão... Não temos questão...” 
Mirei e vi: o que desde de antes me invocava. Aquele 
homem, por uns astutos indícios, se apartando, ele desconfiasse 
de mim. Aqueles outros homens, os do todo sertão, das brenhas, 
os com as ventas largas para baixo, cada-um um cão – o que era 
que eles achavam em meu ser? Repensei: ah! Ah, então, para 
avaliar em prova a dúvida deles, tive um recurso. A manha, como 
de inesperadamente de repente eu muito disse: – Louvado seja 
Nosso Senhor Jesus Cristo! 
Senhor vendo como foi, o supetão de susto que ele teve, 
arregalado conforme me olhava e naquilo ouvido não acreditava, 
o tanto que retardou para responsar, todo baixo, o: ... Para 
sempre... 
Ah. Despedidos estavam, podiam ir. Ah. 
Ah, não. A bobéia. Se ele em fato estranhou, foi somente 
por causa do tom de minha voz. Se foi por minha voz, foi 
porque, no afã de querer pronunciar sincero demais o santíssimo 
nome, eu mesmo tinha desarranjado fala – essas nervosias... 
E eles iam s’embora, conforme desisti de sobreguardar 
esses homens. Do jeito, de que é que me valiam? O contrato de 
coragem de guerreiros não se faz com vara de meirinho, não é 
com dares e tomares. Fino que me abespinhei, por conta. Ao que 
aqueles homens não eram meus de lei, eram de Zé Bebelo. E Zé 
Bebelo era assim instruído e inteligente, em salão de fazenda? 
Desisti, dado. Não baboseio. E o mais? Era como alguém 
dizendo: - “Vai declarar seca, por esse Norte, e homem e mulher 
vão vir...” A vida é um vago variado. O senhor escreva no 
caderno: sete páginas... Aqueles urucuianos não iam em cata de 
Zé Bebelo, conforme sem nem satisfação fiquei sabendo. 
Voltavam de volta para os seus recantos. Quartel de mandioca, 
em qualquer parte se planta; e o senhor derruba um mato, faz um 
chão bom, roça também se semeia... Eles foram embora, deixei 
levarem os cavalos. Reparti com eles alguma quantia, e com 
alegria se arregalaram: dinheiro é sempre amigo-seja... Estúrdio é 
o que digo, nesta verdade – que, eu livre longe deles, desaluídos é 
que eles estavam comigo; mas, eu quisesse com gana o préstimo 
deles, então só me serviam era na falsidade... O senhor me 
entende? E digo que eles eram homens tão diversos de mim, tão 
suportados nas coisas deles, que... por contar o que achei: que 
devia de ter pedido a eles a lembrança de muito rezarem por meu 
destino... Mas, de desertarem de mim, então, será que era um 
agouro? Não sei. Que sei? Tive fé em mim sozinho. O que juro, 
e que sei, é que tucano tem papo!... 
Achava. Adiante, dias de caminho, achei de querer e não 
querer, em contrários instantes: que rezassem por mim, a rogo e 
paga. Reza boa, de outros, singela, que mais me valesse-essas 
avemariazinhas, novenas. Assim conforme Diadorim tinha 
expedido o recado, para minha Otacília, mediante o arrieiro de 
uma tropa. Pelejei por afirmar a idéia nisso, que próprio depois 
eu enxotava. Às vezes as melhores haviam de ser as rezas de mais 
longe, desconhecidamente. Me lembrei de um homem, de minha 
meninice. Um do outro lado do rio. O sujeito que escondia uma 
oração tão entremunhada, desguisada, que duvido mesmo um 
padre aquilo entendesse, e desse licença. Pois, ora, me servia. Ou 
a mulher que teve seu meninozinho parido no chão do rancho
no povoado dos papudos; ela me devia mercês, então não podia 
encaminhar a Deus, por miM, nem um louvamém? - “Só será 
que o arrieiro passa e vai, na Santa Catarina?...” 
Isso perguntei a Diadorim. O que perguntei era por uma 
opinião. Eu queria pensar nisso, de tarde, nos repontos. De 
assento. Mas logo esse sossego manso me largava – nuvenzinha 
dele. Vaqueiro pode laçar o lugar do ar? Às voltas e revoltas, eu 
pelejava contra o meu socorro. Hoje, eu sei; pois sei, porquê. Mas 
eu não falava sozinho. Figuro que estava em meu são juízo. Só 
que andava às tortas, num lavarinto. Tarde foi que entendi mais 
do que meus olhos, depois das horrorosas peripécias, que o 
senhor vai me ouvir. Só depois, quando tudo encurtou. Dei 
decreto de fim em essas esquisitices. 
No que não perguntei, Diadorim me respondeu? - “... A 
muita coragem, Riobaldo... Se carece de ter muita coragem...” 
Ah, eu sabia. A coragem, eu? Aí quem era que me vencesse, 
nesse dever, alirolé, quem podia afrontar minha presença, feito 
morro padastro? Tinha mãos e ações, que davam para lavar meus 
trajes. Mas, o que Diadorim disse, não me fez mossa. Dou 
exemplo. Do que houve e se passou, uma vez, no Carujo, um 
arraial triste, em antigos tempos. O povo dali fugiu, por alguma 
guerra ou pressa, fecharam a igrejinha com um morto lá dentro, 
entre as velas... Eu gostava de Diadorim corretamente; gostava 
aumentado, por demais, separado de meus sobejos. Aquilo, 
davandito, ele tinha falado solto e sem serviço, era só uma 
recordação, assim um fraseado verdadeiro, ditado da vida. O que 
não fosse destinado para ele nem para mim, mas que era para 
todos. Ou, então, sendo para mim, mas em outros passados, de 
primeiro. Ali naquele lugar, o Carujo, no reabrirem, depois de 
uns meses, a igreja, o defunto tinha se secado sozinho... Ao por 
tanto, que se ia, conjuntamente, Diadorim e eu, nós dois, como já 
disse. Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles 
for enorme. Aparecia que nós dois já estávamos cavalhando lado 
a lado, par a par, a vai-a-vida inteira. Que: coragem – é o que o 
coração bate; se não, bate falso. Travessia – do sertão – a toda 
travessia. 
Só aquele sol, a assaz claridade – o mundo limpava que 
nem um tremer d’água. Sertão foi feito é para ser sempre assim: 
alegrias! E fomos. Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, 
avermelhadas campinas. Lá tinha um caminho novo. Caminho de 
gado. 
Arte que eu achei o meu projeto. 
Só digo como foi: do prazer mesmo sai a estonteação, 
como que um perde o bom tino. Porque, viver é muito 
perigoso... Diadorim, o rosto dele era fresco, a boca de amor; 
mas o orgulho dele condescendia uma tristeza. Matéria daquilo 
que me desencontrava; motivo esse que me entristeceu? A 
nenhum. Eu já estava chefe de glórias. Nem Diadorim não 
duvidava do meu roteiro – que fosse para encontrar o 
Hermógenes. Desse jeito a gente ia descendo ladeiras. Ladeiras 
areentas e com pedras, com os abismos dos lados; e tão a pique, 
que podiam rebentar os rabichos dos arreios, no despenhado; no 
ali descer os cavalos muito se agachavam de ancas, feito se os 
pescoços deles se encompridassem; e montões de pedras para 
baixo rola vam. Até ri. Diadorim ainda cria mais no meu fervor 
em se ir perseguir o Hermógenes. Essas ladeiras era que me 
atrasavam. Depois dali, eu ia ter muita pressa demais. 
Agora, o senhor saiba qual era esse o meu projeto: eu ia 
traspassar o Liso do Suçuarão! 
Senhor crê, sem estar esperando? Tal que disse. Ainda hoje, 
eu mesmo, disso, para mim, eu peço espantos. Qu’ é que me 
acuava? Agora, eu velho, vejo: quando cogito, quando relembro, 
conheço que naquele tempo eu girava leve demais, e assoprado. 
Deus deixou. Deus é urgente sem pressa. O sertão é dele. Eh! – o 
que o senhor quer indagar, eu sei. Porque o senhor está 
pensando alto, em quantidades. Eh. Do demo? Se é como 
corujão que se voa, de silêncio em silêncio, pegando rato-mestre, 
o qual carrega em mão curva... No nada disso não pensei; como é 
que pudesse? A invenção minha era uma, os minutos todos, 
tivesse um relógio. A atravessar o Liso do Suçuarão. Ia. Indo, fui 
ficando airoso. 
Por forma como a gente rodeou outra volta, não se 
passando no Vespê e no Bambual-do-Boi, nenhum de meus 
homens não tirou palpite desse propósito. Pasmo deles ia ser. 
Daí, uns desconfiavam, de se estar onde estávamos. Donde a 
perto dele umas poucas cinco léguas: o desmenso, o raso enorme 
– por detrás dos morros. E a gente dava a banda da mão 
esquerda ao Vão-do-Oco e ao Vão-do-Cuio: esses buracões 
precipícios – grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes 
degraus de florestas, o rio passa lá no mais meio, oculto no fundo 
do fundo, só sob o bolo de árvores pretas de tão velhas, que 
formam mato muito matagal. Isto é um vão. E num vão desses o 
senhor fuja de descer e ir ver, aindas que não faltem as boas 
trilhas de descida, no barranco matoso escalavrado, entre as 
moitarias de xaxim. Ao certo que lá embaixo dá onças – que elas 
vão parir e amamentar filhos nas sorocas; e anta velhusca 
moradora, livre de arma de caçador. Mas o que eu falo é por 
causa da maleita, da pior: febre, ali no oco, é coisa, é grossa, 
mesma. Terçã maligna, pega o senhor; a terçã brava, que pode 
matar perfeito o senhor, antes do prazo de uma semana. 
No que eu no meu destino não pensei. Diadorim, em 
sombra de amor, foi que me perguntou aquilo: - “Riobaldo, tu 
achasses que, uma coisa mal principiada, algum dia pode que terá 
bom fim feliz?” 
Ao que eu, abirado, reagi: - “Mano meu mano, te 
desconheço?! Me chamo não é Urutu-Branco? Isto, que hei-de já, 
maximé!” 
Diadorim persistiu calado, guardou o fino de sua pessoa. Se 
escondeu; e eu não soubesse. Não sabia que nós dois estávamos 
desencontrados, por meu castigo. Hoje, eu sei; isto é: padeci. O 
que era uma estúrdia queixa, e que fosse sobrosso eu pensei. 
Assim ele acudia por me avisar de tudo, e eu, em quentes me 
regendo, não dei tino. Homem, sei? A vida é muito discor dada. 
Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras 
todas do Cão, e as vertentes do viver. 
O que na hora achei, foi que Diadorim estivesse me 
relembrando de Medeiro Vaz não ter conseguido cruzar a 
travessia do raso. Mas Diadorim, também, não adivinhou meu 
espírito. Pois, por aquela conta, mesma, era que eu queria. Sobre 
o que eu era um homem, em sim, fantasia forra, tendo em nada 
aqueles perigos, capaz do caso. Para vencer vitória, aonde 
nenhum outro antes de mim tivesse! Respinguei dessas faíscas 
constantes. Eu, não: o cujo do orgulho, de mim, do impossível. 
Descia e subia a fumaça da noite. Esbarramos. Era numa 
curta vereda, duns brejos, buritizalzinho. Acendemos fogo. Aí 
mal dormi, fortíssimo no meu segredo. Um meu primeiro sono, 
sim. O resto, foi ondas. Reprazer cru dessa espiritação – eu ardia 
em mim, e em satisfa contente, feito fosse véspera duma 
patusqueira. 
As forças me amanheceram acordado. 
Adiante da gente, o mangabeiral. Depois, o raso. Aí o Liso 
do Suçuarão – em fundo e largo, as cinqüenta léguas e as quase 
trinta léguas, das mais. Ninguém me fazia voltar a seco de lá. 
Aquela hora, eu só não me desconheci, porque bebi de mim – 
esses mares. Também eu não ia naquilo sem alguma razão, mas 
movido merecido. Por conta do Hermógenes? Nossos dois 
bandos viajavam em guerra e contraguerra, e desenrolando 
caminhos, por esses Gerais, cães, se caçando. Só que o sertão é 
grande ocultado demais. Então, eu ia, varava o Liso, ia atacar a 
Fazenda dele, com família. Ovo é coisa esmigalhável. E a bem. 
Para vencer justo, o senhor não olhe e nem veja o inimigo, volte 
para a sua obrigação. Mas eu dava as costas à cobra e achava o 
ninho dela, para melhor acerto. Ao que, esse não tinha sido o 
arrojo de Medeiro Vaz? 
O dia parava formoso, suando sol, mesmo o vento 
suspendido. Vi o chão mudar, com a cor de velho, e as lagartixas 
que percorriam de leve, por debaixo das moitas de caculucage. O 
pessoal meu não devia de estar com inquietação? Vi uma coruja – 
mas corujinha entortadeira; e coruja só agoura mesmo é em 
centro de noite, quando dá para risã. E cuspi no branco leite 
duma maria-brava, que toda às sãs cheirosa florescia. Era a hora. 
Repuxei os freios, bem esbarrando. Equei os meus homens. 
- “Aqui, gente.” 
Guerreiros em minha presença! Com certo rebuliço, como 
todos vieram, para saber daquela novidade. Declarei a eles. 
Todos me entenderam? Em fila – as caras todas ficando iguais. 
Me seguissem? Ah, nenhum não tinha ar do que ia ser, e que 
fazia tantos dias eu tencionava. Nem João Goanhá, Marcelino 
Pampa, João Concliz, nem o Alaripe. Nem Diadorim. Diadorim 
me olhou tremeluzentemente: de coragem, de disposto. Ele, sim. 
Mas, os outros? Seria que medissem meu mor atrevimento? Era 
feito se eu estivesse aloucado extenso. 
Porque, o que eu estava mandando, nem Medeiro Vaz 
mesmo não teria sido capaz de crer: eu queria tudo, sem nada! 
Aprofundar naquele raso perverso – o chão esturricado, solidão, 
chão aventesma – mas sem preparativos nenhuns, nem 
cargueiros repletos de bom mantimento, nem bois tangidos para 
carneação, nem bogós de couro-cru derramando de cheios, nem 
tropa de jegues para carregar água. Para que eu carecia de tantos 
embaraços? Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, 
quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as 
enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para 
colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e 
tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência? Isso, não 
pensei – mas meu coração pensava. Eu não era o do certo: eu era 
era o da sina! E nem enviei adiante nenhuma patrulha de 
farejadores – nem Suzarte, Nélson ou o Quipes, que tapejassem; 
nem o Tipote para trilhar e entender, ver se divulgava os 
socorros: alguma grota duvidável d’água. 
Se o cada um que se valesse, cada um que me seguisse. - 
“Agora vamos entrar, para pernoitar lá dentro...” – eu determinei. 
Só era se aviar. Mas o menino Guirigó, mal me ouvindo, falou: - 
“A gente? A gente.” 
Esse era um menino, eu não devia de mandar alguém 
conduzir o Guirigó de volta, para que em lugar seguro 
deixassem? No ar não fiz. Se não, por que era então que ele para 
tudo tinha vindo? Os outros, não me cumprissem, eu havia de 
voltar de lá, dar de mão de minha tenção? Nuncas. Só melhor 
sozinho eu ia. Ia, por meus brancos ossos. Transe, tempo, que 
esperei a resposta deles. Dei a palavra! Meus homens. Ah, 
jagunço não despreza quem dá ordens diabradas. 
- “Se amanhã meu dia for, em depois-d’amanhã não me 
vejo.” - “Antes de menino nascer, hora de sua morte está 
marcada!” 
- “Teu destino dando em data, da meia-noite tu vivente não 
passa...” Os que diziam assim eram todos eles, secundando os 
cabecilhas. Valentes que eram, e como foram se animando. Ao 
que me obedeciam, ao meu melhor em redor. A gente andou no 
comum, até ao fim do grameal. Aí, se estava, se esbarrava, frente 
a frente com o Liso. Rédeas às ordens. A gente se moveu. 
Sol em glória. Eu pensei em Otacilia; pensei, como se um 
beijo mandasse. Soltando rédeas, entrei nos horizontes. Aonde 
entrei, na areia cinzenta, todos me acompanhando. E os cavalos, 
vagarosos; viajavam como dentro dum mar. 
O senhor vê e vê? Alguém a alto me levou, alguém, salvo a 
um seguinte. Águas não desmanchavam meu torrão de sal. Ah, 
nem eu não tive incerteza em mente. Assim fomos. Aí eu em 
frente adiante. 
A fortes braços de anjos sojigado. O digo? Os outros, a em 
passo em passo, usufruíam quinhão da minha andraja coragem. 
Rasgamos sertão. Só o real. Se passou como se passou, nem 
refiro que fosse difícil-ah; essa vez não podia ser! Sobrelégios? 
Tudo ajudou a gente, o caminho mesmo se economizava. As 
estrelas pareciam muito quentes. Nos nove dias, atravessamos. 
Todos; bem, todos, tirante um. Que conto. 
O que era – que o raso não era tão terrível? Ou foi por 
graças que achamos todo o carecido, nãostante no ir em rumos 
incertos, sem mesmo se percurar? De melhor em bom, sem os 
maiores notáveis sofrimentos, sem em-errar ponto. O que era, no 
cujo interior, o Liso do Suçuarão? – era um feio mundo, por si, 
exagerado. O chão sem se vestir, que quase sem seus tufos de 
capim seco em apraz e apraz, e que se ia e ia, até nãoonde a vista 
não se achava e se perdia. Com tudo, que tinha de tudo. Os 
trechos de plano calçado rijo: casco que fere faíscas – cavalo 
repisa em pedra azul. Depois, o frouxo, palmo de areia de cinza 
em-sobre pedras. E até barrancos e morretes. A gente estava 
encostada no sol. Mas, com a sorte nos mandada, o céu enuveou, 
o que deu pronto mormaço, e refresco. Tudo de bom socorro, 
em az. A uns lugares estranhos. Ali tinha carrapato... Que é que 
chupavam, por seu miudinho viver? Eh, achamos reses bravas – 
gado escorraçado fugido, que se acostumaram por lá, ou que de 
lá não sabiam sair; um gado que assiste por aqueles fins, e que 
como veados se matava. Mas também dois veados a gente caçou 
– e tinham achado jeito de estarem gordos... Ali, então, tinha de 
tudo? Afiguro que tinha. Sempre ouvi zum de abelha. O dar de 
aranhas, formigas, abelhas do mato que indicavam flores. 
Todo o tanto, que de sede não se penou demais. Porque, 
solerte subitamente, pra um mistério do ar, sobrechegamos 
assim, em paragens. No que nem o senhor nem ninguém não crê: 
em paragens, com plantas. 
De justiça, digo, também: uma regra se teve, sem se saber 
de quem foi que veio a idéia dessa combinação. Qual foi que a 
gente se apartou, em grupos de poucos, jornadeando com a 
maior distância aberta. Mas que, assim, quando um avistasse 
qualquer coisa diversa, podia dar sinal, chamando os outros para 
novidade boa. 
Eu que digo. Mesmo, não era só capim áspero, ou planta 
peluda como um gambá morto, o cabeça-de-frade pintarroxa, um 
mandacaru que assustava. Ou o xiquexique espinharol, 
cobrejando com suas lagartonas, aquilo que, em chuvas, de flor 
dói em branco. Ou cacto preto, cacto azul, bicho luís-cacheiro. 
Ah, não. Cavalos iam pisando no quipá, que até rebaixado, 
esgarço no chão, e começavam as folhagens – que eram urtigão e 
assa-peixe, e o neves, mas depois a tinta-dos-gentios de flor 
belazul, que é o anil-trepador, e até essas sertaneja-assim e a 
maria-zipe, amarelas, pespingue de orvalhosas, e a sinhazinha, 
muito melindrosa flor, que também guarda muito orvalho, 
orvalho pesa tanto: parece que as folhas vão murchar. E ervacurraleira... 
E a quixabeira que dava quixabas. 
Digo – se achava água. O que não em-apenas água de 
touceira de gra vatá, conservada. Mas, em lugar onde foi córrego 
morto, cacimba d’água, viável, para os cavalos. Então, alegria. E 
tinha até uns embrejados, onde só faltava o buriti: palmeira alalã 
– pelas veredas. E buraco-poço, água que dava prazer em se 
olhar. Devido que, nas beiras – o senhor crê? – se via a coragem 
de árvores, árvores de mata, indas que pouco altaneiras: 
simaruba, o anis, canela-do-brejo, pau-amarante, o pombo; e 
gameleira. A gameleira branca! Como outro-tempo se cantava: 
Sombra, só de gameleira, 
na beira do riachão... 
Assim achado, tudo, e o mais, sem sobranço nem desgosto, 
eu apalpei os cheios. O respeito que tinham por mim ia 
crescendo no bom entendido dos meus homens. Os jagunços 
meus, os riobaldos, raça de UrutuBranco. Além! Mas, daí, um 
pensamento – que raro já era que ainda me vinha, de fugida, esse 
pensamento – então tive. O senhor sabe. O que me mortifica, de 
tanto nele falar, o senhor sabe. O demo! Que tanto me ajudasse, 
que quanto de mim ia tirar cobro? - “Deixa, no fim me ajeito...” 
– que eu disse comigo. Triste engano. Do que não lembrei ou 
não conhecesse, que a bula dele é esta: aos poucos o senhor vai, 
crescendo e se esquecendo... 
Daí, mesmo, que, certa hora, Diadorim se chegou, com 
uma avença. Para meu sofrer, muito me lembro. Diadorim, todo 
formosura. 
- “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo...” – ele 
disse; e de medo não tremia, que era de amor – hoje sei. 
- “... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... 
Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma 
coisa, vou contar a você...” Ele disse, com o amor no fato das 
palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e 
dele. Do que Diadorim mais me disse, desentendi metade. 
Só sei que, no meio reino do sol, era feito parássemos numa 
noite demais clareada. Assim figuro. Dentro de muito sol, eu 
estava reparando uma cena: que era um jumentinho, um jegue já 
selvagem caatingano, no limpo do campo caçando o que roer, 
assaz pelos cardos. 
Eu não tinha de tomar tento em coisas mais graves? Mire 
veja o senhor. Picapau voa é duvidando do ar. Que tal Zé Bebelo 
– na hora me lembrei – quando mal irado, ou quando conforme 
querendo impor medo a todos: - “Norte de Minas! Norte de 
Minas...!”-o que bramava. E ele estava com a razão. Mas Zé 
Bebelo era projetista. Eu, eu ia por meu constante palpite. 
Usando de toda ajuda que me vinha, mas prevenido sempre 
contra o Maligno: que o que rança, o que azeda. As traças dele 
são novas sempre, e povoadas tantas, são que nem os tins de 
areia grãoindo em areal. Então eu não sabia?! 
Ah, quase que eu estava cogitando nisso, quando o homem 
rosnou. Quem ele era, digo, em qualidade: um, troncudo, pardaz, 
genista, filho não sei de que terra. Assim, casta de gente? 
Ah, não. Por meu bem, eu estava em todo o meu siso. Até 
mais. “Não faço caso!” – eu disse, isto é: pensei dizendo. Eu não 
queria somar com aquilo nenhum; porque cheirava ao Cujo: esses 
estratagemas. Era do demo... – eu tirei um enredo. “Pois, então, 
paz...” – eu falei, me falei. “... Não faço conta...” – me prometi. 
Eu estava em manhas. Estive que estive no embalançar, em 
equilibrável. Tico tanto pensei. Mas tudo era frisado ligeiro, 
ligeiro, feito cavalo que pressente fúria de boi. 
Aí escutei a voz – a voz dele tremia nervosa, como de 
cabrito; da maneira que gritou – à briga. Um desfeliz. Levei os 
olhos. 
Ah, quem o homem era, eu já sabia, ele se chamava 
Treciziano. O bruto; para falar com ele, só a cajado. Eu sabia. 
Rebém que desconfiei do demo. Ali esse Treciziano era fraco de 
paciências; ou será que estivesse curtindo mais sede do que os 
outros – segundo esse tremor das ventas – e pegou a malucar? 
Diziam que ele criava dor-de-cabeça, e padecia de erupções e 
dartros. Estava falando contra comigo, reclamando, gritou uma 
ofensa. Homem zuretado, esbraseia os olhos. Eu, senhor de 
minhas inteligências, como fica dito. Eu estava podendo refletir, 
em passo de jumento. - “Siô, deixa o padre of recer missa...” – 
falei para mim mesmo. Eu queria tolerar, primeiro: porque o 
demo não era homem para mandar em mim e me pôr em raiva. 
Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de 
energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí 
repreendia esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade 
minha, mas sem pau nem pedra. Que dessa – chefe eu – o O não 
me pilhava... 
Mas – ah! – quem diga: um faz, mas não estipula. O que 
houve, que se deu. Que vi. Com a sede sofrida, um incha, padece 
nas vistas, chega fica cego. Mas vi. Foi num átimo. Como que 
por distraído: num dividido de minuto, a gente perde o tino por 
dez anos. Vi: ele – o chapéu que não quebrava bem, o punhal 
que sobressaía muito na cintura, o monho, o mudar das caras... 
Ele era o demo, de mim diante... O Demo!... Fez uma careta, que 
sei que brilhava. Era o Demo, por escarnir, próprio pessoa! 
E ele endireitou pontudo para sobre mim, jogou o cavalo... 
O demo? Em mim, danou-se! Como vinha, terrível, naquele 
agredimento de boi bravo. Levantei nos estribos. - “E-hê!...” 
Esse luzluziu a faca, afiafe, e urrou de ódio de enfiar e cravar, se 
debruçando, para diante todo. Tirou uma estocada. Cerrei com 
ele... A ponta daquela pegou, por um mau movimento, nas coisas 
e trens que eu tinha na cintura e a tiracol: se prendeu ali, um 
mero. Às asas que eu com a minha quicé, a lambe leal – 
pajeuzeira – em dura mão, peguei por baixo o outro, encorteirecortei 
desde o princípio da nuca – ferro ringiu rodeando em 
ossos, deu o assovião esguichado, no se lesar o cano-do-ar, e 
mijou alto o sangue dele. Cortei por cima do adão... Ele Outro 
caiu do cavalo, já veio antes do chão com os olhos duros 
apagados... Morreu maldito, morreu com a goela roncando na 
garganta! 
E o que olhei? Sangue na minha faca – bonito brilho, feito 
um verniz veludo... E ele: estava rente aos espinhos dum 
mandacaru-quadrado. Conforme tinha sido. Ah-oh! Aoh, mas 
ninguém não vê o demônio morto... O defunto, que estava ali, 
era mesmo o do Treciziano!  
A morte dele deu certo. E era, segundo tinha de ser? E 
tinha de ser, por tanto que o demo não existe! As tramóias, 
armadilhas... Nem nunca mais, daí por diante, eu queria pensar 
nele. Nem no pobre do Treciziano, que estava ali, degolal, que eu 
tinha... Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavores disso 
– da mão da gente ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo. 
Somente todos me gabaram, com elogios e palavras 
prezáveis, porque a minha chefia era com presteza. Fosse de tiro, 
tanto não admiravam a tanto, porque a minha fama no gatilho já 
era a qual; à faca, eh, fiz! E do outro grupo, longe mas que era o 
mais perto, da banda da mão esquerda, um escutou ou viu, e 
veio. Era o Jiribibe, mocinho Jiribibe, num cavalo preto 
galopeiro. Diadorim tinha disparado tiro, só esmo; de nervosia. 
Dentro de pouco, todos iam ficar cientes da proeza daquele 
homem tão morto: das beiras do corte – lá nele – a pele subia 
repuxada, a outra para baixo tinha descaído tamanhamente, quase 
nas maminhas até, deixavam formado o buraco medonho 
horrendo, se aparecendo a toda carnança. Aí Alaripe esclareceu: - 
“Ao que sei, este era da Serra d’Umã...” O de tão longe, o sapo 
leiteiro! Uns estavam remexendo nele – não tinha um pêlo nos 
peitos. Assim queriam desaliviar aquele corpo, das coisas de valor 
principais. Do que alguém disse que ele guardava: um dixe, 
joiazinha de prata; e as esporas eram as excelentes, de bom metal. 
Não turveei. Morte daquele cabra era em ramo de suicídios- 
“A modo que morreu? Ele foi para os infernos?”-indagou em 
verdade o menino Guirigó. Antes o que era que eu tinha com 
isso, como todos me louvaram? Sendo minha a culpa – a morte, 
isso sei; mas o senhor me diga, meussenhor: a horinha em que 
foi, a horinha? Como que o cego Borromeu garrou um fanhoso 
recitar, pelos terços e responsos. Medo de cego não é o medo 
real. Diadorim me olhava – eu estivesse para trás da lua. Só aí, 
revi o sangue. Aquele, em minha roupa, a plasta vermelha fétida. 
Do sangue alheio que grosso me breava, mal me alimpei o 
queixo; eu, desgostoso de sangue, mas deixava, de sinal? Ah, não, 
pois ali me salteou o horror maior. Sangue... Sangue é a coisa 
para restar sempre em entranhas escondida, a espécie para nunca 
se ver. Será por isso também que imensa mais é a oculta glória de 
grandeza da hóstia de Deus no ouro do sacrário – toda alvíssima! 
– e que mais venero, com meus joelhos no duro chão. 
Por mais, o corpo ali ficava, para o ar do raso. Sumimos de 
lá, há-se que tocávamos, adiante. À viajadamente eu ia, 
desconversei meu espírito. Até às aleluias! 
Que, como conto. Aquele Treciziano tinha redobrado 
destino de tristefim de louco. Pois nem bem três léguas andadas, 
daí depois, a gente saía do Liso, como que a ponto: dávamos 
com uma varzeazinha e um esporão da serra; chapadas, digo. 
Apeei na terra cristã. Se estava no para ver esses campos 
crondeubais da Bahia. 
Adiante vim para pedir gole d’água, todo pacífico, no 
rancho de um solteiro; esse deu informação de que, dez léguas 
em volta, o povoal ia existindo sem questão. Somente seguimos. 
Dali antes, a gente tinha passado o Alto-Carinhanha – lá é que o 
Rei-Diabo pinta a cara de preto. Onde chegados na aproximação 
do lugar que se cobiçava. Dado dia e meio – descrevendo no 
rumo que certo achamos logo – se havia de ter a casa da raça do 
Hermógenes! Lei de que íamos dar lá, madrugando madrugada, 
pegando todos desprevenidos, em movível supetão. Pois o 
Hermógenes parava longe, em hora recruzando meus antigos 
rastros, estes rasgos ele não adivinhava. Aí era o meu 
contrabalanço. Ah! – choca mal, quem sai do ninho... 
Ao que, por isso, não tardamos; não tivessem a primeira 
notícia da gente. Não se tomou nem um dia de fôlego. A trote e a 
chouto, vencemos uma grande noite – e demos lá, no luzir d’alva. 
Abarcamos as condições do lugar, em cerco, entendidos uns com 
uns, por meio de avisos: que eram canto de acauã e assovio de 
macaco. Porque sempre eles deviam de ter alguns curimbabas na 
defesa: capangas e carabinas. Daí, só se esperou o listrar da 
primeira barra e a ponta da manhã estremecente. Segundo nosso 
uso. Demos fogo. 
Digo franco: feio o acontecido, feio o narrado. Sei. Por via 
disso mesmo resumo; não gloso. No fim, o senhor me completa. 
Mas, fazia tempo que não se dava combate, e o propor da gente 
era tribuzana, essas ferocidades assim. 
A casa da fazenda – aquele reto claro caiado; mas era um 
casarão acabando o tope do morrete; enganando, até parecia 
torta. Varejamos o total a tiro. Aí, e o que se gritava!: 
azurradamente... 
Aqueles que estavam lá eram homens ordinários – 
derreteram debaixo do pé de meus exércitos. O que foi um 
desbarate! Como que já estavam de asas quebradas, nem 
provaram resistências: deles mal ouvi uns tiros. E a gente, nós, 
estouramos para o centro, a surto, sugre, destrambelhando na 
polvorada, feito rodeio de vento. Assaz. Do que fiz, desisto. 
Todos não fizeram? Volvido, receei que Diadorim não me 
aprovasse; mas Diadorim concordou com os fatos, em armas, em 
frente. O que se matou e estragou – de gente humana e bichos, 
até boi manso que lambia orvalhos, até porco magro em beira de 
chiqueiro. O mal regeu. Deus que de mim tire, Deus que me 
negocie... À vez. 
De seguida, tochamos fogo na casa, pelos quinze cantos 
mortos. Armou incendião: queimou, de uma vez, como um pau 
de umburana branca... E de lá saímos, quando o fogo rareou, 
tardezinha. E, na manhã que veio, acampou-se em beira-d’água 
de sossego. A gente traspassava de cansaços, e sobra de sono. 
Mas, trazida presa, já em muito nosso poder, estava a merecida, 
que se queria tanto – a mulher legal do Hermógenes. 
Aquela mulher sabia dureza; riscava. Ela discordava de todo 
destino. Assim estava com um vestido preto, surrado muito 
desbotado; caiu o pano preto, que tinha enlaçado na cabeça, e ela 
não se importou de ficar descabelada. Deixaram: ela sentar, 
sentou. Nunca encurtou a respiração. Devia de ter sido bonita, 
nos festejos da mocidade; ainda era. Deram a ela de comer, 
comeu. De beber, bebeu. A curto, respondeu a algumas duas ou 
três coisas; e, logo depois de falar, apertava demais a boca 
fechada, estreitos finos beiços. Mas falava quase assoviado. 
Figuro que não mascava fumo nem cachimbava, mas mesmo 
assim cuspia em roda; mas não passava a sola do pé, por cima, 
para alimpar o chão, como é costume de se fazer, nessas 
condições. Adverti que estava descalça, e assim devia de ser fora 
do uso, decerto por causa da hora e confusão em que tinha sido 
pega. Se arranjou para ela par de alpercatas. Ela soubesse que não 
se pertencia com a gente. Aceitou meu olhar, seca, seca, com 
resignação em quieto ódio; pudesse, até com as unhas dos pés 
me matava. Enrolou a cara num xale verde; verde muito 
consolado. Mas eu já estava com ela – com os olhos dela, para a 
minha memória. Magreza, na cara fina de palidez, mas os olhos 
diferiam de tudo, eram pretos repentinos e duráveis, escuros 
secados de toda boa água. E a boca marcava velhos sofrimentos? 
Para mim, ela nunca teve nome. Não me disse palavra nenhuma, 
e eu não disse a ela. Tive um receio de vir a gostar dela como 
fêmea. Meio receei ter um escrúpulo de pena; certo não temi 
abrir razão de praga. Muito melhor que ela não carecesse de vir. 
Ser chefe, às vezes é isso: que se tem de carregar cobras na 
sacola, sem concessão de se matar... E ela ficava assim 
embiocada, sem semblantes, com as mãos abertas, de palmas 
para cima – como se para sempre demonstrar que não escondia 
arma de navalha, ou porque pedisse esmola a Deus. Lembro 
dessa mulher, como me lembro de meus idos sofrimentos. Essa, 
que fomos buscar na Bahia. 
É de ver que não esquentamos lugar na redondez, mas 
viemos contornando – só extorquindo vantagens de dinheiro, 
mas sem devastar nem matar – sistema jagunço. E duro 
capitaneei, animado de espírito. O Jalapão me viu, os todos 
Gerais me viram demais. Aqueles distritos que em outros tempos 
foram do valentão Volta-Grande. Depois, mesmo Goiás a baixo, 
a vago. A esses muito desertos, com gentinha pobrejando. Mas o 
sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não 
vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves 
pesos... Rodeando por terras tão longes; mas eu tinha raiva surda 
das grandes cidades que há, que eu desconhecia. Raiva-porque eu 
não era delas, produzido... E nave guei salaz. Tem as telhas e tem 
as nuvens... Eu podia lá torcer o azul do céu por minhas mãos?! 
Virei os tigres; mas mesmo virei sendo o Urutu-Branco, por 
demais. 
Somente que me valessem, indas que só em breves e 
poucos, na idéia do sentir, uns lembrares e sustâncias. Os que, 
por exemplo, os seguintes eram: a cantiga de Siruiz, a Bigri minha 
mãe me ralhando; os buritis dos buritis – assim aos cachos; o 
existir de Diadorim, a bizarrice daquele pássaro galante: o 
manuelzinho-da-croa; a imagem de minha Nossa Senhora da 
Abadia, muito salvadora; os meninos pequenos, nuzinhos como 
os anjos não são, atrás das mulheres mães deles, que iam apanhar 
água na praia do Rio de São Francisco, com bilhas na rodilha, na 
cabeça, sem tempo para grandes tristezas; e a minha Otacília. 
No sirgo fio dessas recordações, acho que eu bateava outra 
espécie de bondade. Devo que devia também de ter querido 
outra vez os carinhos daquela moça Nhorinhá, nessas ocasiões. 
Por que será que, aí, eu não formei a clareza disso, de apropósito? 
Por lá, adiante, na vastança, era rumo de onde ela 
agora morava. Isso, sim, andadamente. Mas não conheci; e 
demos volta. Tempos escurecidos. O que meus olhos não estão 
vendo hoje, pode ser o que vou ter de sofrer no dia depoisd’amanhã. 
Ao que inventei, enquanto assim se vinha, por pobres 
lugares, aos poucos eu estive amaestrando os catrumanos, o 
senhor está lembrado deles; ensinando aqueles catrumanos, para 
as coisas de armas, do que houvesse de pior. Eles já prometiam 
puxo; eh, burro só não gosta é de principiar viagens. Aprovei, de 
ver o Teofrásio, principal deles, apontando em homem malandro 
inocente, com a velha garrucha que era a dele, com os dois canos 
encavalados. Mas, que atirasse, não consenti. Zé Bebelo havia de 
admitir assim, de se fazer excessos? Ali, quem se lembrava de Zé 
Bebelo eram minhas horas de muita inteligência. Assim, ele ainda 
vivesse, certo havia de ter algum dia notícia do que eu estava 
executando: que a gente trazia a Mulher; com ela agarrada em 
mãos, se ia necessitar o Hermógenes a dar combate. 
Essa mulher, conforme vinha, num definitivo mau silêncio, 
a cara desaparecida pelo xale verde, escanchada em seu cavalo. 
Tinham dado a ela um chapéu-de-palha de ouricuri, por se tapar 
do forte sol baiano. A mais, dela não se ouviu queixa ou 
reclamação; nem mesmo palavra. O que eu desentendia nela era 
aquela suave calma, tão feroz; que seria aferrada em esperar; essa 
capacidade. Se o ódio, só, era que dava a ela certeza de si, o ódio 
então era bom, na razão desse sentido: que às vezes é feito uma 
esperança já completada. Deus que dele me livrasse! 
Mas, o homem em quem o catrumano Teofrásio com sua 
garrucha antiqüíssima apontou, era um velho. Desse, eu digo, 
salvei a vida. Socorrido assim, pelo fato d’eu não conseguir 
conhecer a intenção da existência dele, sua razão de sua 
consciência. Ele morava numa burguéia, em choça muito de 
solidão, entre as touças da sempreviva-serrã e lustro das 
folhagens de palmeira-pindoba. 
Eu, com outros, tinha subido no tope do morro, que era de 
espalhaventos. De lá do alto, a mente minha era poder verificar 
muitos horizontes. E, mire veja: em quinze léguas para uma 
banda, era o São Josezinho da Serra, terra florescida, onde agora 
estava assistindo Nhorinhá, a filha de Ana Duzuza. Assunto que, 
na ocasião, meu espírito me negou, digo o dito. Além, além. Dela 
eu ainda não tinha podido receber a carta enviada. Para mim, era 
só uma saudade a se guardar. Hoje é que penso. Nhorinhá, 
namorã, que recebia todos, ficava lá, era bonita, era a que era 
clara, com os olhos tão dela mesma... E os homens, porfiados, 
gostavam de gozar com essa melhora de inocência. Então, se ela 
não tinha valia, como é que era de tantos homens? 
Mas, no vir de cimas desse morro, do Tebá – quero dizer: 
Morro dos Oficios – redescendo, demos com o velho, na porta 
da choupã dele mesmo. Homem no sistema de quase-doido, que 
falava no tempo do Bom Imperador. Baiano, barba de piaçava; 
goiano-baiano. O pobre, que não tinha as três espigas de milho 
em seu paiol. Meio sarará. A barba, de capinzal sujo; e os cabelos 
dele eram uma ventania. Perguntei uma coisa, que ele não 
caprichou de entender, e o catrumano Teofrásio, que já queria se 
mostrar jagunço decisivo, o catrumano Teofrásio bramou – 
abocou a garruchona em seus peitos dele. Mas, que não deu tujo. 
Esse era o velho da paciência. Paciência de velho tem muito 
valor. Comigo conversou. Com tudo que, em tão dilatado viver, 
ele tinha aprendido. Deus pai, como aquele homem sabia todas 
as coisas práticas da labuta, da lavoura e do mato, de tanto tudo. 
Mas, agora, que tanto aforrava de saber, o derrengue da velhice 
tirava dele toda possança de trabalhar; e mesmo o que tinha 
aprendido ficava fora dos costumes de usos. Velhinho que 
apertava muito os olhos. 
Seria velhacal? Não fio. E isto, que retrato, é devido à 
estúrdia opinião que divulgou em mim esse velho homem. Que, 
por armas de sua personalidade, só possuía ali era uma faquinha e 
um facão cego, e um calaboca – Porrete esse que em parte ocado 
e recheio de chumbo, por valer até para mortes. E ele mancava 
estragado: por tanto que a metade do pé esquerdo faltava, 
cortado – produção por picada de cobra – urutu geladora, se 
supõe. Animado comigo, em fim me pediu um punhado de sal 
grande regular, e aceitou um naco de carne-de-sol. Porque, no 
comer de comum, ele aproveitava era qualquer calango sinimbu,  
ou gambás, que, jogando neles certeiramente o calaboca, sempre 
conseguia de caçar. Me chamou de: - “Chefão cangaceiro...” 
Acabando que, para me render beneficio de agradecimento, 
ele me indicou, muito conselhante, que, num certo resto de 
tapera, de fazenda, sabia seguro de um dinheirão enterrado 
fundo, quantia desproposital. Eu fosse lá... – ele disse ; eu 
escavasse tal fortuna, que merecida, para meus companheiros e 
para mim... - “Aonde, rumo?” – indaguei, por comprazer. Ele 
piscou para o mato. Por lá, trinta e cinco léguas, num RiachodasAlmas... 
Toleima. Eu ia navegar assim para acolá, passar 
matos, furar a caatinga por batoqueiras, por louvar loucura 
alheia? Minha guerra nem não me dava tempo. E, mesmo, se ele 
sabia assim, e verdade fosse, por que era que não ia, muito 
pessoalmente, cavacar o ouro para si? Derri dele, brando. Por 
que é que se dá conselho aos outros? Galinhas gostam de poeira 
de areia – suas asas... E o velho homem – cujo. Ele entendia de 
meus dissabores? Eu mesmo era de empréstimo. Demos o 
demo... E possuía era meu caminho, nos peitos de meu cavalo. 
Siruiz. Aleluia só. 
E o velho, no esquipático de olhar e ser, qualquer coisa em 
mim ele duvidava dela. Mas – que é que era? que é que era?!... Eu 
carecia de indagar. E, mesmo – porque a chefe não convém 
deixar os outros repararem que ele está ansiando preocupação 
incerta – tive de indagar leixo, remediando com gracejo 
diversificado: - “Mano velho, tu é nado aqui, ou de donde? Acha 
mesmo assim que o sertão é bom?...” 
Bestiaga que ele me respondeu, e respondeu bem; e digo ao 
senhor: - “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – 
... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o 
senhor mesmo.” Respondeu com uma insensatez, ar de ir me 
ferir, por tanto; jacaré já! Respondeu, apontando com o dedo 
para o meu peito. Desgostou de meu debique? Dele o dito, eu 
não decifrava. Sertanejo sem remanso. Mas desabandonamos 
aquilo, às pressas, porque o velho assoava o nariz com todos os 
dedos de uma mão, em modo que me deu nojo. Descemos 
flauteando o resto do morro. Quando chegamos cá no acampo, 
as ramas d’árvores já iam pegando o pó da noite. Ermo meu? 
Do que hoje sei, tiro passadas valias? Eli. – fome de 
bacurau é noitezinha... Porque: o tesouro do velho era minha 
razão. Tivesse querido ir lá ver, nesse Riacho-das-Almas, em 
trinta e cinco léguas – e o caminho passava pelo São Josezinho 
da Serra, onde assistia Nhorinhá, lugarejo ditoso. Segunda vez 
com Nhorinhá, sabível sei, então minha vida virava por entre 
outros morros, seguindo para diverso desemboque. Sinto que sei. 
Eu havia de me casar feliz com Nhorinhá, como o belo do azul; 
vir aquém-de. Maiores vezes, ainda fico pensando. Em certo 
momento, se o caminho demudasse – se o que aconteceu não 
tivesse acontecido? Como havia de ter sido a ser? Memórias que 
não me dão fundamento. O passado – é ossos em redor de ninho 
de coruja... E, do que digo, o senhor não me mal creia: que eu 
estou bem casado de matrimônio – amizade de afeto por minha 
bondosa mulher, em mim é ouro toqueado. Mas – se eu tivesse 
permanecido no São Josezinho, e deixado por feliz a chefia em 
que eu era o Urutu-Branco, quantas coisas terríveis o vento-dasnuvens 
havia de desmanchar, para não sucederem? Possível o 
que é – possível o que foi. O sertão não chama ninguém às 
claras; mais, porém, se esconde e acena. Mas o sertão de repen te 
se estremece, debaixo da gente... E – mesmo – possível o que 
não foi. O senhor talvez não acha? Mas, e o que eu estava 
dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinhá, por causa. Dói 
sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia 
se desprezou... Mas, como jagunços, que se era, a gente rompeu 
adiante, com bons cavalos novos para retroco. Sobre os gerais 
planos de areia, cheios de nada. Sobre o pardo, nas areias que 
morreram, sem serras de quebra-vento. 
Com a campina roxa brandamente, vagarosa por onde 
fomos, tocamos, querendo o poente e tateando tudo, chapada 
sem lugar de fim. Só os punhados daquele capim de lá, com sua 
magra dureza. O para bem valer era que, agora, quando alguém 
com o nosso brabo cortejo deparava, seriam gente já distante, 
desconhecida dela, e que não diziam mais: - “Aquela é a dona de 
um seô Hermógenes, que estão remetendo para as enxovias...” 
Essa mesma não dava trabalhos; a mulher ocultada no xale 
verde, como dizer. A mulher sem resgate – isto é dizer: que ia 
para morte de outro homem – à sina sorte. Eu tinha era receio de 
que ela adoecesse. Dei as todas ordens, de bom tratamento. 
Tanto a tanto, decidi disposto que não se entrasse com bruteza 
nos povoados, nem se amolasse ninguém, sem a razoável 
necessidade. Também pelo que aquilo não me dava glória, e eu ia 
para um grande fim. Até estive nervoso. 
Desde as crondeúbas, nascidas em extraordinárias 
quantidades, e os montes de areia quase alvos, com as seriemas 
por cima perpassando, e o mais, tudo eu tinha avistado. Que vi 
córrego que corta e salga, e comi coco de ouricuri. Desordens 
não me tentavam, o assaltar e o rixar. Agora, para essas e outras 
jagunçagens – assim mesmo como para pautear à-toa, de 
abocabaque – eu não tinha interesse de tempo. Não por moleza 
ou falta de hombridade; ah, não: tanto em que durou minha 
chefia, e acho mesmo que de dantes, eu agüentei tudo o que é 
cão e leão. Corrijo e digo: só o frio é que mal tolerei. Quando 
geava, dormi deveras estreito entre diversas fogueiras. O frio 
desdiz com jagunço. A gente indo, ali mesmo nos altos 
tabuleiros, enchemos surrões com talos de canela-de-ema, boa 
acendedora de fogo. A canela-de-ema de qualidade – crescida 
mais de metro, acertante. Depois da madrugada, de guardado eu 
bebia um chá de jurema, me restabelecesse todos os ânimos. Daí 
diante, melhor, foi desamainando a friagem das madrugadas. E já 
fazia tempo que eu não passava navalha na cara, contrário de 
Diadorim. Minha barba luzia grande e preta, conferindo 
conspeito – isto eu mesmo podia fácil ver, mirando na folha da 
água, quando meu cavalo Siruiz se debruçava para beber em 
qualquer riachinho da largura de duas braças. Estórias! 
Consabido que meus homens, por sincera precisão de 
mulher, armavam querer de trazer umas delas, pegadas pelas 
beiras de estradas, me vinham com lelê disso. O que eu, enérgico, 
debelei e reprovei: não se estava ainda em ponto para esse 
desmazelo de bem-passar. Pelo mal de que essas mulheres não 
davam para ser ao menos uma para cada um, e, por via de jus 
dessas condições, a companhia delas podia estragar a lei do viver 
da gente, com arrelias de vuvu e rusgas. O que ajuntávamos, 
trazendo, era cada bom cavalo que se pegasse. E tocamos 
conosco cinqüenta-e-tantas reses, de gado baiano; à-toa. Por 
campos gramados, quando havendo, isso ia mais sem estorvo, 
em conformes. Depois, piorou. Mas outras coisas melhoraram. 
O senhor tenha na ordem seu quinhão de boa alegria, que até o 
sertão ermo satisfaz. 
Digo mesmo de meu expor, falante de mulheres. Quando 
se viaja varado avante, sentado no quente, acaba o coxim da sela 
fala de amores. E eu surgia em sossego assim, passo compasso, o 
chapadão tão alargante. Lá o ar é repousos. Os Hermógenes 
andavam por bem longe. E nunca que pelotão de soldados havia 
de ali vir, por cima de nossas batidas. Sossego traz desejos. Eu 
não lerdeava; mas queria festa simples, achar um arraial bom, em 
feira-de-gado. Queria ouvir uma bela viola de Queluz, e o 
sapateado de pés dançando. Mas, por lei, eu carecia de nudezes 
de mulher. Nesses dias, moderei minha inclinação. Baixei ordens 
severianas: que todos pudessem se divertir saudavelmente, com 
as mulheres bem dispostas, não deixando no vai-vigário; mas não 
obrassem brutalidades com os pais e irmãos e maridos delas, 
consoante que eles ficassem cordatos. Estatuto meu era esse. Por 
que destruir vida, à-toa, à-toa, de homem são trabalhador? Zé 
Bebelo não teria outro reger... E vejo, pergunto: donde era que 
estava então o demo, perseguição? Devo redizer, eu queria 
delícias de mulher, isto para embelezar horas de vida. Mas eu 
escolhia – luxo de corpo e cara festiva. O que via com um 
desprezo era moça toda donzela, leiga do são-gonçalodoamarante, 
e mulher feiosa, muito mãe-de-família. Essas, as 
bisonhas, eu repelia. Mas, daí então, me deram notícia do Verde- 
Alecrim. Joguei de galope. Torei o cavalo para lá. 
Guia era um exato rapaz, vaqueiro goiano do Uruú. Esse 
me discriminou – o Verde-Alecrim formava somente um 
povoado: sete casas, por entre os pés de piteiras, beirando um 
claro riozinho. Meia-dúzia de cafuas coitadas, sapé e taipa-desebe. 
Mas tinha uma casa grande, com alpendre, as vidraças de 
janelas de malacacheta, casa caiada e de telhas, de verdade, essa 
era a das mulheres-damas. Que eram duas raparigas bonitas, que 
mandavam no lugar, aindas que os moradores restantes fossem 
santas famílias legais, com suas honestidades. Cheguei e logo 
achei que lugar tal devia era de ter nome de Paraíso. 
Antes, primeiro, pensei em todos, para o justo quinhão, 
porque eu era chefe. Reparti o pessoal em grupos, determinando 
que saíssem indo adiante, com via por trechos remarcados. Pois, 
mesmo a poucas léguas de lá aonde eu, eles iam achar, por um 
exemplo, dois arraiais – o Adroado e o São Pedro – e até o 
Barro-Branco, que era um vilório. Entanto que, Diadorim, 
conforme conveniente, enviei também expresso – ele 
comandasse os guias tenteadores. Tudo pronto, vim, 
acompanhado só com uma guarda de dez homens. O que eu não 
disse: que o Verde-Alecrim ficava em aprazível fundo, no centro 
de uma serra enrodilhada. Dum alto, se via, duma olhada e olhar. 
Esporeei, desci, de batida. 
Aí cheguei bem de mão. Meus homens, deixei que fossem 
para as casas domésticas, conversar casadas e suas crias. Eu apeei 
na das duas. Escolhi assim. Bom, quando há leal, é amor de 
militriz. Essas entendem de tudo, práticas da bela-vida. Que 
guardam prazer e alegria para o passante; e, gostar exato das 
pessoas, a gente só gosta, mesmo, puro, é sem se conhecer 
demais socialmente... Eu chegasse de noite, e elas estavam com 
casa alumiada, para me admitir. Como que o amor geral conserva 
a mocidade, digo – de Nhorinhá, casada com muitos, e que 
sempre amanheceu flor. E, isto, a torto digo, porque as duas não 
se comparavam com Nhorinhá, não davam nem para lavar os pés 
dela. 
Mas que, porém, beleza a elas também não faltava, isto sim. 
Uma – Maria-da-Luz – era morena: só uma oitava de canela. Os 
cabelos enormes, pretos, como por si a grossura dum bicho – 
quase tapavam o rosto dela mesma, aquela nhazinha-moura. Mas 
a boquinha era gomo, ponguda, e tão carnuda vermelha se 
demonstrava. Ela sorria para cima e tinha o queixo fino e 
afinado. E os olhos água-mel, com verdolências, que me 
esqueciam em Goiás... Ela tinha muito traquejo. Logo me 
envotou. Não era siguilgaita simples. 
A outra, Hortência, meã muito dindinha, era a Ageala, 
conome assim, porque o corpo dela era tão branquinho formoso, 
como frio para de madrugada se abraçar... Ela era ela até no 
recenso dos sovacos. E o fio-dolombo: mexidos em curvos de 
riacho serrano, desabusava. Comprimento exato dele, assim, o 
senhor medir nunca conseguia. No meio delas duas, juntamente, 
eu descobri que até mesmo meu corpo tinha duros e macios. Aí 
eu era jacaré, fui, seja o que sei. 
No meio daquela noite, andei com fome, não quis cachaça. 
Me descansei, comi uma coalhada muito fria. Comi bolo com 
cidrão. Bebi bom café, adoçado com um açúcar de primeira, 
branco igual. Porque as duas minhas-damas eram ricas; dizer: 
deviam de ter muito dinheiro de prata aforrado. Por lá, na casa 
delas, era ponto de pernoite de lavradores de posses, feito 
estalagem, com altas pagas. Mas as duas, mesmas, provinham de 
muito boas famílias, a Ageala Hortência era filha de grande 
fazendeiro paranãnista, falecido. Eram donas de terras, possuíam 
aquelas roças de milho e feijão nas vertentes da serra, nos 
dependurados. Ali mesmo no VerdeAlecrim, delas era toda a 
terra plantável. Por isso, os moradores e suas famílias serviam a 
elas, com muita harmonia de ser e todos os préstimos, 
obsequiando e respeitando – conforme eu mesmo achei bem: um 
sistema que em toda a parte devia de sempre se usar. 
Como se deu que, enquanto se bebia o café, escutamos uma 
tosse, da banda de fora. E era do homem que eu tinha deixado de 
vigia. O qual tinha acontecido de ser o Felisberto – o que, por ter 
uma bala de cobre introduzida na cabeça, vez em quando todo 
verdeava verdejante, como já foi dito. E então elas duas 
pensaram em se mandar o Felisberto entrar para provar do café 
também, dando que não é justo ficar um desconfortado no 
sereno, enquanto os outros se acontecem. Sendo as duas, o 
senhor vê, pessoas muito bondosas. 
Assenti, boamente, nisso, em que elas estavam com a razão. 
Só que, pelo respeito, eu sendo Chefe, não ia poder deixar o 
Felisberto me avistar assim, perfeito descomposto nu, como eu 
estava. Maria-da-Luz aí trouxe uma roupagem velha dela, que era 
para eu amarrar na cintura, tapando as partes. Experimentei. Daí, 
entendi o desplante, me brabeei, com um repelão arredei a 
mulher, e desatei aquilo, joguei longe. Tornei a vestir minhas 
roupas, botei até jaleco. Elas melhor me riam. Eu era algum 
saranga? Eu podia dar bofetadas – não fosse a só beleza e a 
denguice delas, e a estroina alegria mesma, que meio me 
encantava. 
O Felisberto entrou, saudou, comeu e bebeu. Naquela 
ocasião ele estava passando bem, normal. Só assim, ao 
silenciosamente. Entendo que mais fosse para o galhardo que 
para o sem-graça, rapaz desses de que as mulheres se arregalam. 
Em ver, seria mais moço do que eu, mais calmo. Não quisesse 
ardores com damas, quisesse os poucos recantos para devagar se 
resignar. Não cobiçou a qual, ou agrados. Nem na hora reparei 
que a Maria-da-Luz com ele se olhasse. Só bem, o que ela 
refletiu, quando o Felisberto, comido e bebido, tornou a sair, ela 
me disse: – que, se eu no caso dúvida não pusesse, o Felisberto 
podia com ela se introduzir, no outro cômodo, por variação 
dumas duas horas, constante que nesse breve prazo eu ainda 
restava felizardo com a Ageala Hortência. Danado eu disse que 
não; e ela: - “Tu achou a gente casual aqui, no afrutado. Tu veio e 
vai, fortunosamente. Tu não repartindo, tu tem?...” – assim ela 
me modificou. A doidivã, era uma afiançada mulher. No sertão 
tem de tudo. 
E eu tinha falado meu não, era mais somente porque não se 
pode falhar na regra: de só se pandegar com sentinela posta. Eu 
era o chefe. O Felisberto era sentinela. Aquela casa de lugar – as 
delícias que estavam – eu melhores neste mundo não achasse, 
pensei. Eu quisesse reinar lá, pelos meus prazeres. O senhor sabe: 
eu chefe, o outro sentinela. Esse Felisberto, pelo jeito, ia viver tão 
escasso tempo, podia bem que nem fizesse mais conta do ofício. 
Sendo o mais que pensei: eu, sentinela! O senhor sabe. Ah – 
ainda que no nocivo desses andares – eu conseguia meditar 
minhamente: ah, eu não tive os chifres-chavelhos nem os pés de 
cabra... Ali, pelos meus prazeres eu quisesse me reinar, 
descambava para fecho de termo. A morte estava com esse 
Felisberto, coitado desgraçado. A coisa estranha que uma bala de 
arma tinha entrado nos centros da cabeça mesma dele, recessos 
da idéia dele – de lá, de vezes em vezes, perturbava com 
excessos: daí um dia, em curto, era a morte fatal. Agora, podia 
bem ser que ele quisesse largar de mão de ser jagunço? Aquele 
fato daquela bala entrada depositada no dentro de um – e que 
não se podia tirar de nenhum jeito, nem não matava de uma vez, 
mas não perdoava na data – me enticava. Aquele homem, mesmo 
com a valia e bizarria dele, eu pudesse querer mais no meu 
bando? As duas mulheres, belezas assins, dando delícias, 
bilistrocas... Outra idéia eu tive. Só eu sei: eu sentinela! Só não 
posso dar uma descrição ao senhor, do estado que eu pensei, 
achei; só sei em bases. 
Amanheceu claro. Mas Maria-da-Luz não era logrã, isso 
conheci, no ver como ela olhou para o Felisberto, com modos 
mimosos. Quem sabe ele havia de gostar de ficar para sempre 
permanecido ali? Perguntei. O Felisberto se riu, tão incerto feliz, 
que eu logo vi que tinha justo pensado. E elas, demais. – “Deixa 
o moço, que nós prometemos. Tomamos bom cuidado nele, e 
tudo, regalado sustento. Que de nada ele há-de nunca sentir 
falta!” Tanto elas disseram, que tudo transformavam. Mulheres. 
E o Felisberto ia permanecer, a siso, arrecadado na sujeição 
desses deleites; podia ter um remédio de fim de vida melhor? Em 
tal, abracei o companheiro, e abracei as duas, dando para sempre 
a minha despedida e fazendo mostra de falar de farto. Mulheres 
sagazes! Até mesmo que, nas horas vagas, no lambarar, as duas 
viviam amigadas, uma com a outra – se soube. O que, quando eu 
já ia saindo, acharam de me dizer? Isto: 
– “Mas, você já vai, mesmo, nego? Visita-de-médico?...” 
Como não pude sofrear meu rir. 
Reuni meus outros meus homens. Abalei de lá. Bem que eu 
sentia – eu exalava uma certa inveja do Felisberto. Mas, aí, eu 
estimei o Felisberto, como se ele fosse um meu irmão. Como 
Céu há, com esplendor, e aqui beleza de mulher – que é sede. 
Deus que abençoe muito aquelas duas. A pois, me ia, e elas 
ficavam as flores naquele povoadozinho, como se para mim 
ficassem na beira dum mar. Ah: eu sentinela! – o senhor sabe. 
Assim eu queria me esquecer de tudo, terminada aquela 
folga. O dever de minha hombridade. Aí mais, quando tornei a 
rever Diadorim, constante vi, que andava à minha espera com os 
companheiros, num papuã, matando perdizes. E encaminhei para 
Diadorim, com a meia-dúvida. Eu não tinha razão? Porque 
Diadorim já sabia de tudo. Como sabia? Ah, o que era meu logo 
perdia o encoberto para ele, real no amor. – “Riobaldo, você 
vadiou com as do Verde-Alecrim... Você, está comprazido?” – 
ele de franca frente me perguntou. Eu tibes. Corri mão por meu 
peito. Mas admirei que Diadorim não estivesse jeriza. Mesmo, ele 
ao leve se riu, e o modo era de malina satisfação. 
– “Você já está desistido dela?” – em fim ele indagou. 
– “Hem? Hem? Dela quem dela? Tu significa essas 
velhacas palavras...» – eu só fiz que respondi, redatado. 
Mediante porque: aí logo entendi, no instante. E ele cerrou 
a conversa. 
Porque eu entendi: que a referida era Otacília. Minha noiva 
Otacília, tão distante – o belo branco rosto dela aos poucos 
formava nata, dos escuros... Tudo isto, para o senhor, meu 
senhor, não faz razão, nem adianta. Mas eu estou repetindo 
muito miudamente, vivendo o que me faltava. Tão minhas coisas, 
eu sei. Morreu a lua? Mas eu sou do sentido e reperdido. Sou do 
deslembrado. Como vago vou. E muitos fatos miúdos 
aconteceram. Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha 
ponto. 
Pelo que, do trecho, voltamos. Para mais poente do que lá, 
só uruburetamas. E o caminho nosso era retornar por essas gerais 
de Goiás – como lá alguns falam. O retornar para estes gerais de 
Minas Gerais. Para trás deixamos várzeas, cafundão, deixamos 
fechadas matas. O joão-congo piava cânticos, triste lá e ali em 
mim. Isto é, minto: hoje é triste, naquele tempo eram as alegrias. 
suaçuapara corria da gente, com a cabeça empinada quase nas 
costas, protegendo para não prender nas árvores sua galhadura 
dele. Galheiro suaçupucu com sua fêmea suaçuapara. Um dia, 
vez, se matou uma sucuri, de trinta-e-seis palmos, que de ar 
engravidava. Dava lugares, em que, de noite, se estava de repente 
no cabo do revólver, ou em carabinas, mesmo; e carecia de se 
acender maiores fogueiras, porque, no cheio oco do escuro, 
podia vir cruzar permeio à gente algum bicho estranhão: formas 
de grandes onças, que rodeando esturravam, ou a mãe-da-lua, de 
vôo não ouvido, corujante; ou, de supetão, às brutas, com forte 
assovio, vindo do lado do vento, algum macho d’anta, cavalo-rão. 
E foi aí que o Veraldo, que era do Serro-Frio, reconheceu uma 
planta, que se chamasse guia-torto, se certo suponho, mas que se 
chamava candeia na terra dele, a qual se acendia e prendia em 
forquilha de qualquer árvore, ela aí ia ardendo luminosa, clara, 
feito uma tocha. 
Atravessamos campos. Dias, tão claros, céu de toda altura. 
Assaz voavam eram os gaviões. E Goiás estava pondo fogo nos 
seus pastos. Arte que fumaçava, fumaceava, o tisne. O sol roxo 
requeimão. Tive uma saudade de outras audácias. Morreu o 
Pitolô, por bala de arma que disparou sem ser por querer de 
ninguém – caso muito acontecível. Num sítio Padre-Peixoto, 
morreu o Freitas Macho, também, de uma dor forte no vão da 
barriga, banda-da-mão-direita; remédio de chá nele não produziu 
o vero efeito. Alaripe teve uma carregação-dos-olhos. O 
Conceiço destroncou o braço, deu trabalho e dores, para se repor 
no lugar. Advertido que, antes, dessas passagens assim não lhe 
vinha minuciando, e que elas corretamente sempre se dão; mas 
que eram somente as mortes sérias serenas, doutras desgraças 
diversas, ou doenças para molestar. 
E dos fazendeiros remediados e ricos, se cobrava avença, 
em bom e bom dinheiro: aos cinco, dez, doze contos, todos 
tinham mesmo pressa de dar. Com o que, enchi a caixa. E abriam 
para a gente pipotes de cachaça, a qual escanceavam. Se jantava 
banquete, depois um coreto se cantava. As vezes, não sei porque, 
eu pensava em Zé Bebelo, perguntava por ele em outros tempos; 
e ninguém conhecia aquele homem, lá, ali. O de que alguns tivessem 
notícia era da fama antiga de Medeiro Vaz. Daí, me dava 
raiva de ter pensado refletido em Zé Bebelo. Bobéias. E, 
andantemente, só me engracei foi duma mulher, casada essa, que, 
com tremor enorme, me desgostou neste responder: – “Ai, 
querendo Deus, que o meu marido quiser...” Ao que eu atalhei: 
“Ah, pois nem eu não quero mais não, minha senhora dona. Não 
estou de maneira.” E, sem ser de propósito, até botei mauolhado 
num menino pequeno, que estava perto. 
Que assim viemos. Mas, conto ao senhor as coisas, não 
conto o tempo vazio, que se gastou. E glose: manter firme uma 
opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão 
grande, é dificultoso. Vai viagens imensas. O senhor faça o que 
queira ou o que não queira – o senhor todaa-vida não pode tirar 
os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão. O senhor não 
creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. 
Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito 
desastroso. O senhor... 
Tomei mais certeza da minha chefia. Quer ver que eu tinha 
deixado de parte todas as minhas dúvidas de viver, e que 
apreciava o só-estar do corpo, no balanço daqueles dias 
temperados tão bem, quando o céu varreu. Dias tão claros. Tanto 
que as cigarras chiavam em grosas; e de que tal-arte valessem por 
um atraso das chuvas do ano, alguns já queriam desejar. Não foi. 
Mas eu cria por mim nas melhores profecias. E sempre dei um 
trato respeitável amistoso aos homens de valia mais idosa, 
vigentes no sério de uma responsabilidade mais costumeira. 
Esses eram João Goanhá, Marcelino Pampa, João Concliz, 
Alaripe e outros uns restantes – que mereciam de si; e não me 
esqueci das praxes. Tirante que não pedi conselhos. Mas não 
houvesse; mas, pedir conselho – é não ter paciência com a gente 
mesmo; mal hajante... Nem não contei meus projetados. O Rio 
Urucuia sai duns matos – e não berra; desliza: o sol, nele, é que se 
palpita no que apalpa. Minha vida toda... E refiro que fui em 
altos; minha chefia. 
Diadorim mesmo mal me entendeu. Qual que recordo, foi 
num durante de tarde, a incertas horas, quando se vinha por um 
selado, estirão escampante. Nós dois em dianteira, par de 
homens; um diabo de calor; e os cavalos pisavam légua destinada 
de cristal e malacachetas. Céu e céu em azul, ao deusdar. O 
senhor vá ver, em Goiás, como no mundo cabe mundo. 
E o que Diadorim me disse principiou deste jeito assim: 
que perguntou, esconso, se eu queria aquela guerra 
completamente. Tal achei áspero – que ele me condenava o vir 
dando tantas voltas, em vez de reto para topar o inimigo ir. 
Remeniquei: 
– “Uai, Diadorim, pois você mesmo não é que é o dono da 
empreita?!” – e, mais, meio debiquei, com estas: – “Que eu, 
vencendo vou, é menos feito Guy-de-Borgonha...” Acho que, as 
palavras que eu disse, agora não estou trastejando... 
Mas Diadorim repuxou freio, e esbarrou; e, com os olhos 
limpos, limpos, ele me olhou muito contemplado. Vagaroso, que 
dizendo: 
– “Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que 
soubesse, deixei de saber o que sabia...” 
Demorei que ele mesmo por si pudesse pôr explicação. E 
foi ele disse: – “Por vingar a morte de Joca Ramiro, vou, e vou e 
faço, consoante devo. Só, e Deus que me passe por esta, que 
indo vou não com meu coração que bate agora presente, mas 
com o coração de tempo passado... E digo...” 
Afirmo que não colhi a grã do que ele disse, porque naquela 
hora as idéias nossas estavam descompassadas surdas, um do 
outro a gente desregulava. E o tom mesmo de sério que ele 
impunha rumou meu pensamento para outros pontos: o Urucuia 
– lá onde houve matas sem sol nem idade. A Mata-de-São-Miguel 
é enorme – sombreia o mundo... E Diadorim podia ter medo? – 
duvidei. Eu sempre sabia: um dia, o medo consegue subir, faz 
oco no ânimo do mais valente qualquer... Com tanto, eu fui e 
disse: 
– “Tudo na vida cumpre essa regra...” 
Duvidei pouco. Diadorim não temia. O que ele não se 
vexou de me dizer: 
– “Menos vou, também, punindo por meu pai Joca 
Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, 
Riobaldo, no querer e cumprir...’ Nem considerei. – “É, o 
Hermógenes tem de acabar!” – eu disse. Diadorim, ia ter certas 
lágrimas nos olhos, de esperança empobrecida. Me mirava, e não 
atinei. Será que até eu achasse uma devoção dele merecida trivial? 
Certo seja. Não dividi as finuras. Mas, também, afiguro que 
responder mais não pude, por motivos de divertência. Qual que, 
na hora, deu de dar, diante, um desvôo de tanajuras, que pelas 
grandes quantidades delas, desabelhadas, foi coisa muito valente, 
para mim foi o visto nunca visto: em riscos, zunindo como 
enchiam o ar, caintes então, porque a lei delas é essa, como 
porque o corpo traseiro pesa tão bojudo, ovado, bichão maduro, 
elas não agüentam o arco de voar, iam semeando palmos de 
chão, de preto em acobreadas, e tudo mesmo cheirava à natureza 
delas, cheiro cujo que de limão ruivo que se assasse na chapa.  
Bagos dessas, muito mundialmente... Caso que os cavalos se 
espantavam, uns na só cisma até refugando. E o menino Guirigó, 
de ver mais que todos, tocou cá para adiante, com gritos e 
arteirices, tão entusiasmável; como tanto aprovei, porque o 
menino Guirigó do Sucruiú eu tinha botado viajante comigo era 
mesmo para ele saber do mundo. Mas o esbagoar estirante das 
tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, 
chume-chume, fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo 
caíam, e perturbavam, nos ombros dos homens, e no pêlo dos 
animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras 
que depois tive de sacudir fora da croa de meu chapéu, por 
asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem faminto come frita 
com farinhas essa imundície... E os pássaros, eles sim, 
gaviãozinho, que no campo esmeirinhavam, havendo com o que 
encher os papos. Mas bem porém que cada tanajura, mal ia 
dando com o chão, no desabe, sabia que tinha de furar um 
buraco ligeirinho e se sumir desaparecida na terra, sem escolha de 
sorte, privas de suas asas, que elas mesmas já de si picavam 
desfolhadas, feito papelzinho. Isso é dos bichos do mundo; uso. 
Mas, então, quando mirei e não vi, Diadorim se desaportou de 
meus olhos. Afundou no grosso dos outros. Ai-de! hei: e eu tinha 
mal entendido. 
E o senhor tenha bons estribos: que informo que o que 
disse se deu bem em antes dele Diadorim ter tido a conversa com 
a mulher do Hermógenes. Que agora, do que sei, vou tosquejar. 
Como de fato, desamarrou o tempo. Formou muita chuva. 
Com assim, emendados chovidos três dias, então certificamos de 
permanecer esse tempo em prédio, e enchemos a Fazenda 
Carimã, que era de um denominado Timóteo Regimildiano da 
Silva; do Zabudo, no vulgar. Esse constituía parentesco proximado 
com os Silvalves, paracatuanos, cujos tiveram sesmarias, na 
confrontação das divisas, das duas bandas iguais. Do Zabudo: o 
senhor preste atenção no homem, para ver o que é um ser 
esperto. 
Primeiro, encontramos de repente com ele, quando se ia 
por um assente – chapadazinha dessas, de capim fraco. Conciso 
já principiava a chuviscar, e eu estava pensando: que, por ali, 
menos longe, algum rancho ou alguma casa de sitiante havia de 
vagar. Nessa mesma horinha, o tal se apareceu. Conforme vinha, 
num cavalo baio, com uma daquelas engraçadas selas cutucas, 
que eles usam, e introduzido em botas-de-montar muito boas, 
dessas de couro de sucuriju, de que eles faziam antigamente. No 
natural, que foi ele ver a gente e levou choque. 
Instantezinho, porém, se converteu. Isto, que se desapeou, 
ligeiro, e tirou o chapéu, com cortesia mor, com gesto de braço, e 
manifestou: 
– “Senhores meus cavaleiros, podem passar, sem susto e 
com gosto, que aqui está é um amigo...” 
– “Amigo de quem?” – eu revidei. 
– “Vosso, meussenhor cavaleiro... Amigo e criado...” 
Esperança dele era ver a gente pelas costas. Com ele 
apertei: aonde que morasse? – “Lá daquela banda, meussenhor... 
Sitiozinho raso...” – outrarte ele respondeu, nhento, pasmado. 
Atalhei: – “A pois, pra lá vamos, adonde menos chova. O senhor 
mostre.” Aí ele remudou os modos, falando em muito 
aprazimento, em honras de sinceridade. A fazenda era ali, só a 
uns passos. Assim ele já se astuciava. 
Do Zabudo, homem somítico, muito enjoativo e sensato. 
Requeri dele o prêmio – que marquei em arras de sete contos – e 
ele se desesperou, conforme caretas, e suas costas das mãos, 
mesmas, uma e depois a outra, diversas vezes ele beijava. Sempre 
gemendo que não e que sim, pediu vênia de me noticiar como os 
negócios da lavoura para ele nos derradeiros três anos andavam 
desandando, com peste que no gado deu e redeu, e praga no 
canavial: por via dela, nem fervia mais safra. E, tudo que falava, 
explicava e redizia, mesmo se fiou de querer me levar, debaixo de 
temporal, para exemplificar minhas vistas com o pejorativo de 
suas posses. Por causa da caceteação, concedi rebates, acabei 
deixando o estipulado em três-contosquinhentos; e também por 
receio de se pegar em mim a nhaca daquele atraso. Se bem que, 
no repleto de dinheiro ganho goiano, como já se estando, eu 
descarecia de sistema de bruteza com ninguém. E mesmo se 
traçou que o sustento nosso ele por metade fornecia gracioso, 
sem estipêndio; escatimava, mas dava. Ao tanto que o resto eu 
pagava caro, e os percebidos: certas dúzias de ferraduras, o milho 
para os animais, umas mantas de toicinho e dez quartilhos de 
cachaça – que, em justo dizer, nem prestava. Bom, lá, era o fumo 
de rolo. E, já dava de ser: como desemboque, eu pagasse a ele só 
para se comportar calado. Por fim, penso, a falha nossa lá, para 
aquele do-Zabudo, ficou quase de graça. 
E dito e referido, que chovia em Goiás todo, assistimos 
dentro de casa, só saindo no quintal para chupar jabuticabas. A 
gente tinha baralhos, se jogou, rouba-monte e escopa, porque 
truque eu não consentia, por achar que me faltava floreado 
rompante para os motes e gritos, que nesse endiabrado jogo 
compertencem; e mesmo por achar vadiado, para a minha chefia. 
Então bem, enquanto a gente formava essa distração, o do- 
Zabudo ia e vinha, flauteando, excogitando decerto – para 
ratinhar e sisar a gente com mangonhas – outras velhaquices 
choradas. E foi, de repente, ele se chegou com esta, que não se 
esperava por barato nem caro: – Que a nhã senhora, aquela, 
suplicava o favor dum particular com o moço chamado 
Reinaldo... 
Essa, nhã, refiro, era a mulher do Hermógenes; que em 
reserva fechada se tinha, no quarto-do-oratório. E Diadorim, 
saber o senhor tem, era o conhecido por “Reinaldo”. 
Que me invocou – o senhor vai dizer – me causou 
espantos? Haviade. Eu estava na sala-de-jantar, jogando, com 
João Goanhá, João Concliz e Marcelino Pampa. Alaripe, com a 
baciinha de lixívia em areia e com estopa, na soleira da porta para 
o quintal, acendrava as armas. Ele falou: – “Deus que, olh’ lá: que 
se o Reinaldo não dá cabo da criatura...” Descontamos. – “Eh, 
ela será que faz mandraca?” – João Goanhá alvitrou, com essas 
risadas. – “Ara, para obrar bom feitiço, que valha, diz-se que só 
mesmo negra, ou negro...” Isto que Marcelino Pampa deu de 
opinião, enquanto pegava o sete-belo com o sete-de-paus. Eu 
joguei, e João Goanhá somou seis e três, na mesa, conforme 
pegou com um valete, e escopou. Diadorim se tinha 
encaminhado para onde estava a mulher, para ir ouvir o que ela 
queria que ele ouvisse. 
Tocou minha vez de baralhar e repartir cartas. Ou seria 
algum pedido que ela tivesse de fazer a ele, bem. Daí, João 
Goanhá esteve dizendo que a mulher rogava era por sua 
liberdade. E eu desconversei, observando casual, primeiro a 
respeito do luxo de tantos anéis que João Goanhá gostava de 
botar em cheios dedos; e depois chamei atenção para as goteiras 
abertas na telha-vã daquele grande cômodo, que se carecia de 
dispor umas latas em diversos pontos e até uma gamela, no meio 
da mesa, fim de se aparar águas da chuva. Mas, mesmo por mim, 
eu já tinha perdido a simpatia no divertimento do jogo, e me 
ergui de lá, fui ver a coisa nenhuma, no alpendre, onde até 
homens dormiam madraços, aborrecidos com um chover tão 
constante. 
Diadorim não vinha, não dava de sair do quarto-dooratório. 
E, quando foi que veio, não me contou nada. O que 
disse, comum: – “Ah, ela só chorou mágoas...” Não perguntei 
passo. Devido que não perguntei logo à primeira, depois foi não 
ficando bem, para o meu brio, o perguntar. Diadorim se 
atarantava quieto, nem não era correto o que ele estava fazendo – 
escondendo fatos. Palavras que vieram a gume em minha boca, 
foram estas: – Que eu não gostava de hipocrisias... Pensei, e não 
disse. Eu podia duvidar das ações de Diadorim? Lá ele alguma 
criatura para traição? Rosmes! Idéia essa não aceitei, por plausível 
nenhum. Mas, de motivo como me desgostei, assim resolvi a 
saída da gente dali da Carimã, no instante mesmo, e dei ordem. 
Fossem trazer os cavalos, e arrear, atrás do tempo que fizesse – 
enxurradas tais, nuvens grossas, céu nubloso e trovão em ronco. 
Chuvas com que os caminhos se afundavam. 
E assim cumpriram. Mas, aí nem bem os cavalos vieram no 
curral, se deu uma estiada muito repentina – por um montão de 
vento. O céu firmou, e sol, com todos os bons sinais. Ante o que 
– por isso e por tanto – a admiração do pessoal foi de grandes 
mostras. E eu vi que: menos me entendiam, mais me davam os 
maiores poderes de chefia maior. 
Só o do-Zabudo, saiba o senhor, parava fora da roda, sem 
influência nenhuma, feito um tratante. Saiba o senhor que assim 
ele ainda me veio, com visagens e embaraços, por amortecer a 
paga, pedindo ágios de calote e prazos mercantis. Agora – mais 
que tudo – saiba o senhor uma coisa, a que ele, para os fins, 
executou na hora da confusão da saída, no zafamar. Pois de 
repente trouxe e ofertou a Diadorim, de regalo, uma caixeta da 
boa e melhor marmelada goiana, dada a valores: – “Ademais o 
senhor prove o de que demais gostará... A de Santa Luzia, perto 
desta, perde por famosa...” Dando aquilo a Diadorim, ele não 
queria disfarçado me agradar, por vantagens? Se sei. O que é que 
estivesse adedentro das idéias daquele homem? O jeito estúrdio e 
ladino de olhar a gente, outrolhos – e que na hora não me fez 
explicação. Sendo que, mediado esse obséquio a Diadorim, ele 
conseguiu mesmo me adular. Saranga fui, contracontas, contra 
aquele paranãnista lordaço. Ele se saiu quite, por pouco não 
pegou até dinheiro meu emprestado. Mesmo pelos cavalos e 
burros que cedeu, recebeu igual quantidade dos nossos, bem 
melhores, somente que estavam cansados. Teve até permissão de 
conservar o dele próprio, o baio, que disse ser de venerada 
estimação, por herdado pessoal do pai. Nele, amontado prazido, 
naquela dita cutuca, pandegamente, pois ainda veio, por quartode-
légua, fazendo companhia à gente. Coisa assim, não se vê. 
Tanto ambicionava, que nem temia. Sempre me olhava, finório, 
com as curiosidades. E assim. Agora, o senhor prestou toda a 
atenção nesse homem, do-Zabudo? O diabo dele. O senhor me 
diga: o senhor desconfiou de alguma arte, concebeu alguma 
coisa? 
Sumimos de lá. Em cinco léguas, vi o barro se secar. O 
campo reviçava. Mas concedi que a viagem viesse à branda, 
serenada. Queria, quis. O burrinho de Nosso Senhor Jesus Cristo 
também não levava freio de metal... Isso, na ocasião, emendo que 
não refleti. Razão minha era assim de ter prazos, para que meu 
projeto formasse em todos pormenores. Mas – isto afianço ao 
senhor – também eu não sentia açoite de malefício herege nenhum, 
nem tinha asco de ver cruz ou ouvir reza e religião. 
Mesmo, me sobrasse tempo algum de interesse, para reparar 
nesses assuntos? Eu vinha entretido em mim, constante para uma 
coisa: que ia ser. Queria ver ema correndo num pé só... Acabar 
com o Hermógenes! Assim eu figurava o Hermógenes: feito um 
boi que bate. Mas, por estúrdio que resuma, eu, a bem dizer, dele 
não poitava raiva. Mire veja: ele fosse que nem uma parte de 
tarefa, para minhas proezas, um destaque entre minha boa frente 
e o Chapadão. Assim neblim-neblim, mal vislumbrado, que que 
um fantasma? E ele, ele mesmo, não era que era o realce meu – 
?-eu carecendo de derrubar a dobradura dele, para remediar 
minha grandeza façanha! E perigo não vi, como não estava 
cismando incerteza. Tempo do verde! Êpa, eu ia erguer mão e 
gritar um grito mandante – e o Hermógenes retombava. Onde 
era que estava ele? Sabia não, sem nenhuma razoável notícia; 
mas, notícia que se vai ter amanhã, hoje mesmo ela já se serve... 
Sabia; sei. Como cachorro sabe. 
Assim, o que nada não me dizia – isto é, me dizia meu 
coração: que, o Hermógenes e eu, sem dilato, a gente ia se 
frentear, em algum trecho, nos Gerais de Minas Gerais. Eu 
conhecia. A pressa para quê? Ao ir, ao que ir – aí contra a Serra 
das Divisões ou sobre o Rio São Marcos. Estrada-real, estrada do 
mal. Como de fato, aquilo estava impossível, breado de barro 
alto, num reafundo, num desmancho, que comia com engolo as 
ferraduras mesmo cravadas novas, e assujeitava a gente a 
escorregão e tombos, teve animal que rachou canela, quebrou 
pescoço. – “Este caminho tem tripas...” – se dizia bem. Às 
loucuras. E a jorna não rendia, não se podia deszelar o pisar. 
Retardamos. Retardar, mesmo se me dava de agradável. Eu ia 
numa caçada, com o grande gosto, ah. Pois não era? Mais tempo 
se gastou, esbarrados em casas-de-fazendas ou em povoados. 
Melhor – por lá, também, haviam de aprender a referir meu 
nome. De em desde, bem que já cumpriam de me recompensar e 
me favorecer, pela vantagem: porque eu ia livrar o mundo do 
Hermógenes. O Hermógenes – pelejei para relembrar as feições 
dele. Achei não. Antes devia de ser como o pior: odiado com 
mira na gente. – “Diadorim...” – pensei – “... assopra na mão a 
tua boa vingança...” O Hermógenes: mal sem razão... Para poder 
matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e 
gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda a parte? 
Retardamos. Até que, tomando sazão boa no veranico, 
seguimos em fim, estrotejando. Parávamos léguas perto das 
divisas, mandei ir vigias e dianteiros. Conferi meu povo nas 
armas. Tudo prazia. O barranco mineiro ou o barranco goiano. 
Da beira de Minas Gerais, vinha um mato vagaroso. 
E piorou um tico o tempo, em Minas entramos, serraacima, 
com os cavalos esticados. Aí o truvisco; e buzegava. O 
ladeirão, ruim rampa, mas pegamos a ponta da chapada. Foi ver, 
que com o vento nas orelhas, o vento que não vareia de 
músicas. Tudo consabia bem; isto sim, digo; no remedido do 
trivial, espaço de chuva, a gente em avanço por esses tabuleiros: 
fazia rio, por debaixo, entre as pernas de meu cavalo. Sertão 
velho de idades. Porque – serra pede serra – e dessas, altas, é 
que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não 
adianta se dar as costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros 
lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo do sol 
e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões, 
por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se 
alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem 
sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos 
bichos, do fundo dele... 
Com trovôo. Trovoadão nos Gerais, a ror, a rodo... Dali 
de lá, eu podia voltar, não podia? Ou será que não podia, não? 
Bambas asas, me não sei. Bambas asas... Sei ou o senhor sabe? 
Lei é asada é para as estrelas. Quem sabe, tudo o que já está 
escrito tem constante reforma – mas que a gente não sabe em 
que rumo está – em bem ou mal, todo-o-tempo reformando? 
Meus homens adianteiros retornaram, que vindos com 
uma notícia: os Hermógenes, bando enorme, tocavam meio para 
cá – decerto também já cientes de meu caminhar! Era o devido. 
Se estremeceu, de pressas. Vim. Viemos. Trastopamos com uns 
campeiros e outros, que vaquejavam, ou que levando gado de 
volta para o caatingal, por não morrerem suas reses todas, de 
pastar o capim novo dos Gerais, que cresce cheio de areia. Mas 
esses não sabiam de nada coisíssima. A gente contornou, por se 
chegar primeiro no Nestor, na Vereda-Meã, e no Coliorano, 
depois do Mujo. Vãozinho-do-Mujo, esse acho que era certo 
também, o nome. Mas o Coliorano morava num buritizal de 
lagoa, e fazia chapéus-de-palha fabricados; dos melhores. Nele e 
no Nestor, carecia de se chegar, em antes do Hermógenes – que 
lá se tinha coito de munição. Contornamos. Muito brejo e sapal 
já estavam de volta. Os rios andando sujos, e umbuzeiros dando 
flor. Mas a cheia de todo rio carregava muito cuspe de espuma 
por cima – sinal de que ela ia aumentando, com maiores chuvas 
nas nascentes. Assim mesmo assim, não perdemos de breve 
chegar e de arrecadar munição que se queria, total toda. 
Arredondamos. Agora, em hora. Que era que faltava? Comigo – 
redor de mim! – quem quisesse guerra... 
Todos. E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o 
meu pessoal, feito fossem irmãos meus, da semente dum pai e 
na madre de uma mãe gerados num tempo. Meus filhos. Para 
que relembrar, divulgar dum e dum, dar resenhas? Do Dimas 
Doido – que xingava nomes até a galho de árvore que em cara 
dele espanejasse, ou até algum mosquitinho chupador. Do 
Diodolfo – mexendo os beiços num bis-bis: que era que sem 
preguiça nenhuma rezava baixo, ou repetia coisas de mal, da 
vida alheia, conversando com si-mesmo. Do Suzarte – tomando 
olhos de tudo, chão, árvores, poeiras e estilos de vento, para 
guardar em sua memória aqueles lugares em léu. Do Salústio 
João, em ancas de seu burro; e do Araruta – de toda confiança: 
esse homem já tinha para mais de umas cem mortes. Do Jiribibe, 
que a recorrer, da guia à culatra, por necessidade de cada 
coisa ouvir, recontar e saber. Ou do Feliciano – que abria muito 
o olho são, para melhor entender o que a gente dizia? 
Tuscaninho Caramé, que cantava, bonita voz, algúa cantiga 
sentimental. João Concliz, dobrando um assovio comprido sem 
fim, como esses que são dos tropeiros dos campos goianos? Ou 
o José do Ponto com o jacaré – tocando os cargueiros, com sua 
tralha de cozinhar... 
Mas refiro miúdos passos. Coisinhas que a gente vislumbra 
em ocasião de momento, e que quase não esquecem, com pena. 
Pois eu pensasse a breve na responsabilidade que a minha era, 
quando via um homem idosamente respeitável, como Marcelino 
Pampa – e que já tinha sido chefe – seguindo por seu próprio 
gosto, no meio do andamento dos outros, ou esbarrar o cavalo 
nos freios, e, esbarrado assim, mesmo sem virar a cara para 
mim, mas abaixar um pouco a cabeça, e ficar escutando e 
meditando o meu conselho. Ou quando um daqueles jagunços 
mais velhos recomendava a qualquer rapaz como era que 
deviam de ter cautela, no lidar com as armas de conjunto, e com 
a munição nas canastras: pois de tudo calados cuidavam; porque 
então, em sentir, era como se fosse coisa de paz, arranjos 
miúdos em casa da gente. Ou mesmo quando eu avistava um 
daqueles catrumanos, gente toda trazida, deportados por mim 
da terra deles. Esses me davam estima? Ah, acho que me 
achavam. Antes teriam um admirado receio, o medo maior. E 
tinha uns – como digo ao senhor que relembro tudo – esse, 
Assunciano: quando se falava em fogo, ele já ficava com o 
corpo para diante, meio entortado; e que ele era magro, mas 
ovante, barrigudo mediamente; e, de um qualquer um chapéu 
simples, mas um pouco mais enfeitado ou novo, ele já 
demonstrava mirar de boba inveja... Meus filhos. 
Mas, não durava dai, menosmente, eu esquentava outra 
vez meus altos planos, mais forte; eu refervesse. Eu era assim. 
Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutu-Branco – depois de 
ser Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas 
larguei, largaram de mim, na remotidão. Hoje eu quero é a fé, 
mais a bondade. Só que não entendo quem se praz com nada ou 
pouco; eu, não me serve cheirar a poeira do cogulo – mais quero 
mexer com minhas mãos e ir ver recrescer a massa... Outra 
sazão, outros tempos. Eu ia para sofrer, sem saber. E, veja, se 
vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando onça 
e couro... É guerra!...” Todos me aprovavam. Ainda mesmo que 
com o cantar: 
“Olererê Baiana... Eu ia 
e não vou mais... Eu faço 
que vou 
lá dentro, ó Baiana: e volto 
do meio p’ra trás!” 
Assim, aquela outra – que o senhor disse: canção de Siruiz 
– só eu mesmo, meu silêncio, cantava. 
Sofreado de minha soberba, e o amor afirmante, eu senti o 
que queria, conforme declarado: que, no fim, eu casava 
desposado com Otacília – sol dos rios... Casava, mas que nem 
um rei. Queria, quis. – E Diadorim? – o senhor cuida. 
Ingratidão é o defeito que a gente menos reconhece em si? 
Diadorim – ele ia para uma banda, eu para outra, diferente; que 
nem, dos brejos dos Gerais, sai uma vereda para o nascente e 
outra para o poente, riachinhos que se apartam de vez, mas 
correndo, claramente, na sombra de seus buritizais... Outras 
horas, eu renovava a idéia: que essa lembrança de Otacília era 
muito legal e intrujã; e que de Diadorim eu gostava com amor, 
que era impossível. É. Mire e veja: o senhor se entende? Deixe 
avante; conto. Mesmo, nos dias, o que era, era ir – vir, corrijo. 
Até sem ter aviso nenhum, eu me havia do Hermógenes. 
Pressentidos, todos os ventos eu farejava. O Hermógenes, com 
seu pessoal dele – que nem em curvas colombinhando, 
rastejassem, comprido grosso, mas sem bulha, por debaixo das 
folhas secas... Mas eu estava fora de minha bainha. Às vezes, eu 
acordava na metade certa da noite, e estava descansado, como se 
fosse alto dia. Vão da noite, quando o mato pega a adquirir 
rumores de sossegação. Ou quando luava, como nos Gerais dá, 
com estrelas. Luava: para sobressair em azul de luz assim, só 
mesmo estrela muito forte. 
E chegamos! Aonde? A gente chega, é onde o inimigo 
também quer. O diabo vige, diabo quer é ver... A pois! Sincero, 
senhor: os campos do Tamanduá-tão; o inimigo vinha, num 
trote de todos, muito sacudido. Se espandongaram... Campos do 
Tamanduá-tão – o senhor aí escreva: vinte páginas... Nos 
campos do Tamanduá-tão. Foi grande batalha. 
Não se instruiu que. Nem não houve aviso. Dei guerra. 
Como se quis: lei a lei, e fogo a fogo. Era na força da lua. 
Tamanduá-tão é o varjaz – que dum topo de ladeira se 
avistava; e para lá descemos por encanado de cava, quase grota, 
que a vertente entalha. Mas mais de mil bois, ou cavalos e éguas 
uns oitocentos, se carecesse, cabiam de bom pastar ali naquele 
baixadão, de raso em raso. Ao muito escuro, duma banda, 
existia um travessão de mato. Outro braço de mata, da outra 
banda. Com que, contornada essa mata, a gente estava sempre 
naquilo que Tamanduá-tão é: a enorme vargem. Porque, para 
tudo quanto havia, o nome era aquele só – que Mata-Grande do 
Tamanduá-tão, e Mata-Pequena do Tamanduá-tão, e tudo. Por 
mesmo, do Tamanduá-tão era a casa-de-fazenda – de muitos 
antigos tempos, quando tinha tido senzalas e um engenho-depau-
em-pé. Mas já estava esquecida, arruinada em esteios, e com 
restos de parede fechando matagalzinho em cima de montes de 
terra e pedras, em fim de taperada. Bem sim, que, por perto, 
assistia alguma pobre gente vinda, cultivando: o quanto se via 
roça, milharais, feijoal faceiro. Gente, mal se viu. E do 
Tamanduá-tão era a Vereda, com seus buritis altos e a água ida 
lambida, donzela de branca, sem um celamim de barro. Diz-se 
que lá se pesca, e gordas piabas. Por cima dela sei é de muito 
tiro. Tinha um cocho no chão, no campo; o gado ouvia e se 
fugia, bravo. Às beiras daquela, minha gente galopou – a vereda 
toda, susã-jusã – feito estivessem sendo surucuiú sem fêmea, 
percorrente doidada... E o inimigo dava para trás! Não achavam 
esconso... Assim é que se principiou. 
A bem, como é que vou dar, letral, os lados do lugar, 
definir para o senhor? Só se a uso de papel, com grande debuxo. 
O senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, 
e a ponta de cada braço: cada uma é uma... Pois, na de cima, era 
donde a gente vinha, e a cava. A da banda da mão-direita nossa, 
isto é, do poente, era a Mata-Grande do Tamanduá-tão. Rumo a 
rumo, a da banda da mão-esquerda, a Mata-Pequena do 
Tamanduá-tão. A de baixo, o fim do varjaz – que era, em bruto, 
de repente, a parede da Serra do Tamanduá-tão, feia, com 
barrancos escalavrados. Os barrancos cinzentos, divulgando uns 
rebolos e relombos, barrancos muito esquisitos – como as 
costas de fila de muitos animais... Mas, agora, o senhor assinale, 
aqui por entremeio, de onde é a Serra do Tamanduá-tão e a 
Mata-Grande do Tamanduá-tão, mais ou menos, os troços velhos 
da casa-de-fazenda, que tanto se desmantelou toda; e, 
rumo-a-rumo, no caminho da Serra para a Mata-Pequena, essas 
rocinhas de pobres sitiantes. Aí o senhor tem, temos. A Vereda 
recruza, reparte .o plaino, de esguelha, da cabeceira-do-mato da 
Mata-Pequena para a casa-de-fazenda, e é alegrante verde, mas 
em curtas curvas, como no sucinto caminhar qualquer cobra faz. 
E tudo. O resto, céu e campo. Tão grandes, como quando vi, 
quando no fim: que ouvi só, no estradalhal, gritos e os relinchos: 
a muita poeira, de fugida, e os cavalos se azulando... 
Mas, primeiro, antes, teve o começo. E aí teve o antes-docomeço; 
que o que era – a gente vindo, vindo. E vindo bem. Mal 
ao justo, que, para tão cedo, assim, aquilo não se esperava. A 
gente vinha acabando a serra. Serra da Chapada. Somente para 
dali descer, e traduzir essas campinas, a grandeza de vargem. 
Deles, inimigos, não se tinha aviso nenhum, nem espiação. Eu 
podia saber? Eu era uma terrível inocência. E de tudo miúdo eu 
dava de comer à minha alegria. Assim, o por exemplo, quando eu 
quis experimentar a valia de meus catrumanos. Um, o Dos- 
Anjos. Esse degozava de mostrar que tinha tomado 
entendimentos: presto manejava. Achei graça no tirintim ligeiro, 
como ele recarregou a comblém. Mas era uma arma sem trocha, 
e muito envelhecida, abaixo de todas as menos, até com cano já 
gasto. – “X’eu cá ver o arcabuz, mano-velho...” – eu arrecadei. 
Ele nem queria entregar; conforme que disse, triste: – “É a méa 
combléia...” – e excogitava na arma. Esse, merecia. Que fossem 
arranjar para ele uma outra, consentã – rifle chapeado ou 
winchester mão 27, ou carabina qualquer, bala de chumbo. E aí o 
Dos-Anjos me desofereceu o trabuco dele velho; mais que  
avexado, e menino-manso me olhava... Mas Marcelino Pampa – 
acho que foi, – quando a gente acabou de rir, pagou boa lembrança: 
disse que, num brugo, a meio indo para o pique do 
morro, Medeiro Vaz tinha deixado guardado, uma vez, um feixe 
de armamento de soldados. Que eram cinco fuzis máuser, 
oleados bem, num caixote, escondidos no fundo dum grande 
solapo, no paredão. Se dizia. Tanto que lá nem bicho mateiro não 
ia, tirante macaco; e que por tudo, por certo, deviam de estar de 
uso. – “Por que é que Medeiro Vaz escondeu?” – “Por, no 
tempo, não ter servível munição...” – “E agora se tem, que dê?” – 
“A pois.” 
Eu disse ao senhor: eu não sabia do inimigo, nem o inimigo 
de mim, e nós vínhamos para se-encontrar. Então? Ah, mas eu 
parei mais alto – estive muito mais alto, mesmo; e foi assim a sol. 
Pois logo a gente quebrou caminho, trepando encosta, lá para 
aquelas burguéias. Os nenhuns fuzis não achamos, adentro do 
cavernal, que era muito espaçoso, só com uns morcegos, que 
habitavam. E eu, por um querer, disse que ia subir mais, até no 
cume. Poucos foram os que comigo vieram. As alturas. 
Poucos; me lembro do Alaripe. Posto, pois foi porque foi. 
Que estávamos já voltando descendo do ponto do alto, o vento 
bobeando na cara da gente e bela-vista adiante, muito descrita. 
Caminhando, mesmo, a gente tinha enrolado cigarros, que não 
estava sendo azado de acender, por via do encano do ar, que 
ventainhava. Esbarramos. Àlaripe bateu binga. Mas, repronto, ele 
mesmo encolheu o corpo, e apontou, exclamando surdo: – “Há, 
lá: no quembembe...” – o que, quembembe, na linguagem da 
terra dele, vinha a ser: na virada, na tombada... Como com efeito, 
acolá, na Serra do Tamanduá-tão, vertente abaixo, vinha um 
cavaleiro. E eram muitos outros. 
Esses, eles! Mas nós já tínhamos tomado recato. – 
“Maximé...” – eu disse. E o que eu senti, ah, não foi receio, nem 
estupor, nem arrocho. O que eu senti foi nada, coisa nenhuma: 
coisa-nenhuma em branco, ao redor da minha movimentação... 
Quantos com que, assim viessem, se guerreava; mas sempre 
um chefe é uma decisão. Falei. E, quando mesmo dei tento, já 
tinha determinado as ordens justas carecidas; tudo atinado, o 
senhor veja, e tal. Primeiro, que uns três homens fossem levar 
para aquela dita solapa do morro os que não eram mãos-d’armas: 
que o menino Guirigó, o cego Borromeu e a mulher do 
Hermógenes, que lá esperassem o final de tudo. E para isso 
escolhi também o catrumano Dos-Anjos, que logo vi que bem 
escolhi, por tanto que ele, na primeira coisa que pensou, foi na 
quantia de comida que para eles se deixasse. Daí, o da guerra, 
exato, muito singelo: repartir a gente em três drongos, que íamos 
descer a serra em diversas bocainas diferentes. Eu, com o meu, 
normal rente. João Goanhá, da banda da mão direita; Marcelino 
Pampa da banda da mão esquerda: eles fossem para ladear, e 
revir e cometer, dando todas retaguardas! 
Num átimo. Discutido assim, o pessoal se arrumou para ir, 
já indo; jagunço nunca dilata. Mas os de João Goanhá e os de 
Marcelino Pampa, primeiramente, que deviam de longe. Eu, com 
os meus, tinha mais tempo, convinha mesmo retardar. Estive 
contando os cavalos. – “Te arma bem, Diadorim!” – eu disse. – 
“Te arma bem, mano meu mano!” Por que foi que eu disse? 
Então, o senhor me confere: que eu ingrato não era, e que nos 
cuidados de meu amor Diadorim sempre estava. E amor é isso: o 
que bemquer e mal faz? Apalpei meu selim, que minhas pernas 
esquentavam. Empunhei o parabelo. Alguns dos homens ainda 
aproveitavam a espera para comer o que tivessem, e um quis me 
obsequiar com a metade duma broa de brote, de se roer, e outro 
que trazia um embornal-de-couro cheio com cajus vermelhos e 
amarelos. Rejeitei. Por mesmo que naquele dia eu estava de jejum 
quebrado só com uma jacuba. Nem quis pitar. Não por nervoso. 
Mas eu sabia que era o minuto e não era a hora. E o do embornal 
com os cajus, sendo um João Nonato, diamantinense, decidido 
agradável me disse: – “Hoje, Chefe, depois que se ganhar, com o 
bom gol se festeja?” Oi, sim. E de repente eu disse dizer: – “Tu, 
menino, meu filho, tu vem adiante, mano-velho: emparelhado 
comigo... Tu me dá sorte!” Deixamos de esporas. 
Descendo na cava, por feliz a gente vinha em oculto. E, 
justo, já embaixo, no principiar da várzea, era um capim com 
mais viço, capinzal do fresco de pé-de-serra. Capim mais alto do 
que eu – nele à gente se tapava. Coincidido que, permeio o verde 
dos talos, a gente via algumas borboletas, presas num lavarinto, 
batendo suas asas, como por ser. Caiu o açúcar no mel! Porque, 
igual também convim que podíamos ladear um tanto; e, daí, 
separei, de cabeça, um grupo de homens, que iam ir com o 
Fafafa: esses avançarem primeiramente – como a certa isca – 
perturbando o cálculo do inimigo, ao dar o dar. Respiramos 
tempo, naqueles transitórios. De rechego, coçando as caras no 
capim em pontas, que dava vontade de se espirrar. Só o rumor 
que se ouvia era o dos cavalos abocanhando. Eu tinha pressa de 
um final, mas o que ia mor em mim era um lavorar de paciência: 
talento com que eu podia ficar retardando lá, a toda a vida. Safas 
– que eu podia dar também um pulo, enorme, sustirado, 
repentemente. Vi: o que guerreia é o bicho, não é o homem. O 
capinzal repartia tudo diverso: o abafo do ar e o fresco de lugar 
de grota – frio e calor, lado dum doutro, nas finas folhas mesmo 
da folhagem. Mas o calor vinha subindo era pernas acima, no 
meu corpo: o que os meus pés, de tão quentes, suavam. E eu 
não enxergava o chão; mas o cheiro do lugar ali era de barro 
amarelo massal. Suspensos no parar, mesmo, a gente se 
embalançava na sela, banda para banda, na suavidade essa – 
conforme temperação, de que o espírito necessitava. Sendo o 
mundo quieto, para não assustar os pássaros que comem 
sementes no capim, porque o revôo deles havia de dar ao 
inimigo alto aviso no ar. 
Sobre isto, eu tirei um pé do estribo e ajoelhei no coxim da 
sela. Porque era a hora de olhar; mirei e vi. Como o inimigo 
vinha: as listras de homens, récua deles: passante de uns cem. 
Tive mão em tudo, eles ainda estando longe. Fafafa encostou 
dois dedos no meu joelho, como se até às mudas quisesse poder 
receber a ordem. Ele esperava um instante certo de meu 
respirar. Eu brinquei com a mão no arção. Vez de um, vez: 
todos e todos. Falo o dito de jagunço: que eles mesmos não 
conseguiam saber se tinham algum medo; mas, em morte, 
nenhum deles pensava. O senhor xinga e jura, é por sangue 
alheio. 
Daí, reolhei. Avistei que vinham – e tinham destacado em 
galope, festinho adiante, uns tais, que se enviassem de vigiar a 
cava e a passagem de sobe-serra, como cautela. Fechei os olhos, 
e contei. Até dez, agüentei não, que me deu um deciso já em 
sete. – “Tu é tu, Fafafa!” – eu disse. E ele gritou: – “Xé, do 
campo!” –; e correu as esporas. E eu vi o virar dos cavalos – 
partindo rompendo, amassando cama no capinzal. Seja que, os 
homens para acompanharem o Fafafa, eu medi em número e 
soltei, feito em porteira de gado: e pouco passaram de vinte. E 
eu retinha a duro os outros, que queriam também ir. E 
Diadorim, desses. – “Eu!” – que Diadorim disse. Eu disse: – 
“Não!” – como agarrei embaixo a rédea do cavalo dele. Por que 
foi que fiz? Bastava o meu mando. Aquilo não tinha significado. 
Só fiz querer Diadorim comigo; e a gente se cabia entre riscos 
do verde capim, assim eu Diadorim enxergava, feito ele estivesse 
enfeitado. Se escutando os grandes gritos e tiros: que eram os de 
Fafafa destruindo a anteguarda dos contrários. Amontado no 
instante, mas eu mesmo assim tive prazo para 
me envergonhar de mim, e para sentir que Diadorim não 
era mortal. E que a presença dele não me obedecia. Eu sei: 
quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de 
verdade... 
Aí, me alteei, e tive: que era o começo da grande batalha. 
Sobre o soprar, o Fafafa indo em frente, mais os dele, gritando 
alardes! 
No que, os outros, os Hermógenes, também, que primeiro 
formavam mó, depressa alargaram espaço, se abrindo uns dos 
outros – mato de gente. Eles tresfuriavam assim, aos urros 
zurros, quantidade que eram; eh, sabiam vir, à cossa. E tiros 
mesmo pouco ouvi; mas, no liso seco estradai, do meio do 
campo, deu um pano de poeira, empenachada. Eu bebi gotas: 
digo, isto é, que ainda esperei mais. Como o Fafafa, de 
proposital – porque aqueles outros podiam recachar – retardava 
a ida avante, num meio-galope somente, muito enganador. A 
avistar melhor, quase trepei de todo na sela, meu animal 
cumprindo de não bulir, porque era cavalo consciencioso. Mas, 
enquanto isso, saiba o senhor o que foi que fiz! Que fiz o sinalda-
cruz, em respeito. E isso era de pactário? Era de filho do 
demo? Tanto que não; renego! E mesmo me alembro do que se 
deu, por mim: que eu estava crente, forte, que, do demo, do Cão 
sem açamo, quem era era ele – o Hermógenes! Mas com o 
arrojo de Deus eu queria estar; eu não estava?! 
Foi o instante de tempo que era o momento. Só chamei 
João Concliz: – “Agora é agora...” E joguei a rumo. – “Lá vai 
obra!” Meu cavalo saiu às cabeçadas. Todos atrás de mim, no 
arranque; e era o mundo mesmo. Gritei de sussus: – “Vale seis! 
– e toma nove!...” – nas grimpas da voz... E eles meus, gritando 
tão feroz, que semelhavam sobrevindos sobre o ar. Menos vi. 
Mas todo o todo do Tamanduá-tão se alastrou em fogo de 
guerra. 
Suspenso – ouviu? – escapei, à de banda, com meu bom 
cavalo, repuxei as rédeas. Só assim permaneci, eu estava debaixo 
duma árvore muito galhosa; canjoão? Que pensei. E rompeu 
tiro, romperam, na polvorada. Até o capim dava assovio. E, por 
tudo se desejar de ver, tantamente demorava e ficava custoso, 
para em alguma justa coisa se afirmar os olhos. O que era feito 
grande mesa posta, cujos luxos motivos, por dizer, alguém puxa 
a toalha e, vai, derruba... Quem era que ia poder botar naquilo 
uma ordem, para um fim com vitória? E estralou bala... Repisei 
em minhas estribeiras, apertei as pernas nas espendas. Eu tinha 
de comandar. Eu estava sozinho! Eu mesmo, mim, não guerreei. 
Sou Zé Bebelo?! Permaneci. Eu podia tudo ver, com friezas, 
escorrido de todo medo. Nem ira eu tinha. A minha raiva já 
estava abalada. E mesmo, ver, tão em embaralhado, de que é 
que me servia? Conservei em punho meu revólver, mas cruzei 
os braços. Fechei os olhos. Só com o constante poder de 
minhas pernas, eu ensinava a quietidão a Siruiz meu cavalo. E 
tudo perpassante perpassou. O que eu tinha, que era a minha 
parte, era isso: eu comandar. Talmente eu podia lá ir, com todos 
me misturar, enviar por? Não! Só comandei. Comandei o 
mundo, que desmanchando todo estavam. Que comandar é só 
assim: ficar quieto e ter mais coragem. 
Mais coragem que todos. Alguém foi que me ensinou 
aquilo, nessa minha hora? Me vissem! Caso que, coragem, um 
sempre tem poder de mais sorver e arcar um excesso – igual ao 
jeito do ar: que dele se pode puxar sempre mais, para dentro do 
peito, por cheio que cheio, emendando respiração... À fé, que fiz. 
Se não vivei Deus, ah, também com o demo não me peguei – 
refiro ; mas um nome só eu falava, fortemente falado baixo, e 
que pensado com mais força ainda. E que era: – Urutu Branco!... 
Urutu Branco!... Urutu Branco!... Cujo era eu mesmo. Eu sabia, 
eu queria. 
E quando a guerra para o meu lado relambeu, feito 
repentina labareda dum fogo. Uns vieram. E os tiros – deles, – 
bala batia e rebatia. Cortavam capim do chão, que riscavam com 
punhado de terra. Tch’avam partes de ramos da árvore por cima 
de mim, e vagens do angico, que então reconheci por isso. Como 
quieto fiquei. Eu não era o chefe? Mesmo que uma carga de rifle 
se passou em meu chapéu-de-couro-de-vaca, e que outra, zoante, 
em meu jaleco raspou. A mil, que não movi mão, mas dei 
desprezo. Mas, eu tivesse alargado braço e movido mão, para 
com tiros de meu revólver ripostar, e eu mal morto estava – 
ponto que enquadrado de passantes balas, que rentes, até 
quentes. – Urutu Branco... – eu só relembrei, sussurrado ditoso, 
como quando com mocinha meiga se namora. Cachaças que em 
minha alegria. Em vento. E balas, mais, só; num enorme num 
minuto. Mas, bem: que, aluir dali, eu não aluía. Morresse – tive 
preguiça de pensar – mas, morresse, então morria três-em-pé, de 
valente: como o homem maior valente no mundo todo, e na hora 
mais alta de sua maior valentia! À fé, que foi. Dei em lagoa, de 
tão filho tranqüilo... 
E, de arrepelo, tudo demudou. Aqueles torceram os 
cavalos, revertendo para se espraiarem por longe. Que era porque 
os de João Goanhá tinham se avindo de contornar, no cabo do 
mato, e cometiam urrando o grosso do inimigo, por detrás. – 
“Fu!.Fiau!” – que se diz. Que tínhamos de percalçar e de vencer. 
E aqueles dianteiros Hermógenes, que tinham vindo, campavam 
fuga, de batida. E um, do cavalo preto, que bobeou, o Paspe, o 
Sesfredo e o Suzarte foram nele, galopando num embolo! – 
reformaram feia nuvem. E o corpo dele, no retém, foi jogado 
morto, se tangeu duro no ar, ressaltou: feito uma tábua... Assim 
um outro, se desatinando – João Vaqueiro, apeado, acertou nele 
diversas vezes. Esse recurvou – tatu e tal. Ele veio cair, perto 
exato de mim, ferido muito grave, conforme gemia. – “Desarma, 
mas não acaba de matar, mano-velho...” – a João Vaqueiro eu 
disse. Aquele homem inimigo derrubado jeremiava, cris, 
querendo enterrar as unhas na casca dum pau. O queixume que 
ele exprimia: que tinham mesmo de perder, por terem vindo com 
os cavalos deles tão sovados, e avante em surpresa tão contrária... 
De tudo se espiolhava, suave praguejante, aí com três costelas 
derrotadas. Mas, água, ele pedia, cristão. Sede é a situação que é 
uma só, mesmo, humana de todos. Rebaixei o corpo e dei nas 
mãos dele a minha cabaça, quase cheia, e que era boa como um 
cantil. Rústico, fechei os olhos, para não me abrandar com pena 
das desgraças. Nem não escutei; que ouvido também se fecha. 
No cavalo, eu estava levantado. Campo que me competia 
comandar, dito. Tudo em mim, minha coragem: minha pessoa, a 
sombra de meu corpo no chão, meu vulto. O que eu pensei 
forte, as mil vezes: que eu queria que se vencesse; e queria quieto: 
feito uma árvore de toda altura! 
Tiroteio fechava. 
E o pessoal de Marcelino Pampa apareceu também, 
surgindo, para maior mal dos Hermógenes. Matamos neles. 
Pegamos pelos lados. Confiro o que foi. O senhor – só se ouvia 
era carabina, repetindo. Fogo do Tamanduá-tão: o senhor saiba. 
E, pá!, ainda no pior do meio, eu adivinhei sabendo: que meu 
comando tinha dado certo, e que dali a vau tudo estava já ganho, 
desfecho do fim desse final. Somente para colher o maduro, eu 
podia sobreviver. Sei que risquei – joguei de galope, em cima. Ao 
que vim, aonde que tudo se estardalhava. Dei gritos. Arte que 
abria no rifle; e matava. Donde era que estava o Hermógenes? A 
uivos, atrás duns, rompemos em linha na vereda. Todo buriti 
levou bala. 
A mais, o inimigo não tinha o recurso de se apostar – por 
tanto que perdiam os cavalos. Advindo que o baixadão dali não 
dava esconderijos de mato para tocaia à jagunça. E os poucos 
foram os que pegar as distantes brenhas conseguiam, ou o cheio 
do capinzal, aonde não íamos desentocar ninguém. Aqueles 
deviam de estar de faca em fúria na mão, cobrejando; somente 
por meio de cachorros-mestres, afirmados em caça de gente, era 
que podiam ser pegos, o que não se tinha. Os mais, em desrédea, 
meteram doida fuga, enquanto mal pudessem, de debaixo de 
balaços. Menos de poucos passaram. Ao rascampo em viemos, 
soprando a perseguição. Tinha um valo, varamos um mato de 
lobeiras. Aí era para a banda das roças novas. Uns morrinhos; 
demos fogo. Uma tapera, outra tapera. Demos fogo. Poucos dos 
poucos deles escaparam. Os que desladeavam, caíam, por nossos 
esteiras. Era um relanço bem fatal... 
Mas, um homem grande – que como pulou abaixo do 
cavalo grande, que baleado fora – alcançou jeito de correr, e 
encontrou uma cafua, em frente. Entrou. De lá, decerto, ia 
mandar bala. E então nós, a gente, todos, desistindo de mais 
longe perseguir os sobrantes, cercamos por completo aquela 
choupana, de regular distância, caçando jeito de entrincheiramento. 
Ia ser o terrível. Que quem era, aquele homem? – “Ah, o 
Ricardão!” – se gritava. E eu mesmo sabia. Determinei uma 
descarga. Cafua de buriti, que estremeceu, como que se 
entortando de lugar, arreganhada em partes. A gente atirando, 
atirando, com pouco ela ia desaparecer, desmanchada. Mas eu dei 
ordem de paz. – “E adonde estará o Hermógenes, próprio?” – eu 
indaguei. Alguém soubesse. De se ter ouvido algum deles, ferido 
ou agarrado preso: que o Hermógenes não fazia parte atual 
daquele bando – mais acontecia de andar, com outros, muito 
adiantado dali, vinte léguas, avanço no poente. Mas, então? E 
quase nossa gente toda já estava vinda, para apreciarem o 
derradeiro aprumo do Ricardão. Eu dei comando. 
- “Seô Ricardão, o senhor saia para fora!” – eu gritei, do 
protegido donde estava. 
Ele não deu resposta. Daí: – “Pau de fogo, minha gente!” 
– eu procedi. Pipocaram. Durante o que, a cafua começava nas 
últimas. Mas de dentro ninguém não ripostou; nem um tiro, 
nem. Ele estivesse morto? Não tinha munição? Esperei o 
engolir em seco três vezes. Daí, regritei: – “Seô Ricardão, o 
senhor se saia!...” E ele, no esquisito, respondeu: – “Vou sair!” – 
com um grito natural. Enérgico, para o meu povo, eu ordenei 
muita paz. E o todo silêncio. Espiei. 
Lá acolá, o homem abriu devagar os cacos de porta. Saiu, 
deu uns passos. Como vinha, alto, chapéu na cabeça, até meio 
sorridente. Não se esbugalhava. Assim estivesse pensando que ia 
ter julgamento? Achei que. E ele não estava ferido. Caminhou 
mais. Sendo que – e, aí, foi minha idéia? – ah, não; mas vi que 
Diadorim, de ódio, ia pular nele, puxar faca. Só fiz fim: num 
tirte-guarte: atirei, só um tiro. O Ricardão arriou os braços, deu 
o meio do corpo, em bala varado. Como no cair, jogou uma sua 
perna para lá e para lá. Como caiu, se deitou. Se deitou, 
conforme quase não estivesse sabendo que morria; mas nós 
estávamos vendo que ele já morto já estava. 
Acho deveras que todo o mundo respirou com suspiro. 
Digo que esta minha mão direita, quase por si, era que tinha 
atirado. Segundo sei, ele devolveu Adão à lama. Só estas minhas 
artes de dizer – as fantasias... 
– “Não enterrem este homem!” – eu disse. 
A justiça. Mas, mesmo, como é que se ia poder enterrar a 
quantidade deles, mortos naquele dia? 
Ao quando retornávamos para a Serra, eu ia olhava o céu, 
vez em quando. Primeiro urubu que passou – foi vindo dos 
lados do Sungado-do-A – esse se serenou bem, que me parecia 
uma amizade de aceno. Avoeje... Mas – o que ia suceder por 
diante! 
Somenos sei, e conto mal certo, o que os três dias foram, 
no seguinte. Se soalerte o senhor, que estamos descambando: o 
senhor mesmo se prepare; que para fim terrível, terrivelmente. 
Eu podia? Como é que vou saber se é com alegria ou 
lágrimas que eu lá estou encaixado morando, no futuro? 
Homem anda como anta: viver vida. Anta é o bicho mais 
boçal... E eu, soberbo exato, de minha vitória! Conforme prazia 
o dito do cego Borromeu, que não se entristecia: – “Ah, eu 
nunca botei em antes o nariz nestes campos...” Soscrevo. Mas, 
ele, o que carecia de querer saber, às vezes perguntava. Desses 
lugares, o divulgado natural, pedia pergunta. Aí, glosava: 
Macambira das estrelas, 
quem te deu tantos espinhos? 
Tibes! Eu, não. Ia demandar de outros o que eu mesmo 
não soubesse, a ser: nestes meus Gerais, onde eu era o sumo 
tenente? Não me respondiam. Ninguém mesmo ninguém. A 
gente vive não é caminhando de costas? Rezo. O que é, o que é: 
existível como fundo d’água. Agora eu cismo que o cego 
Borromeu também só do que já sabia era que indagava. Se não, 
se não, o senhor verse, como bula santa; a cita não é revelável:? 
Macambira das estrelas, 
xiquexique resolveu: 
– Quixabeira, bem me queira, 
quem te ama, Bem, sou eu... 
Soletrei tudo. Assim ele cantava. Atrás, o menino Guirigó, 
se envelhecendo, sobre outro cavalo. E a mulher do 
Hermógenes, montada também, magra malvaz, como podia 
estar indo em cima duma nuvem. Ela desenrolava a cara, 
daquele xale verde, sem vexame nenhum, e o que espiava da 
gente era por riba do queixo. Quem sabe do orgulho, quem sabe 
da loucura alheia? Ela comia, ela bebia; em um tempo, prazida e 
moça, tinha se casado. Só com desgosto dos prazos da vida foi 
que enxerguei aquela mulher... Coisa dita não disse. A pois. O 
dia estava por dado. Sol rachava os barros. A mulher, o menino 
e o cego – aqueles saíram, tocaram. Estavam por ordem minha 
trazidos do brugo do morro, mas sendo levados, sempre de 
guarda, para o arraial do Paredão: estipados com conduta de dez 
homens. 
Esta é que era a razão: que o Hermógenes, da banda do 
poente, podia vir. Viesse feito! Como que estavam engrossados 
com quantidade de bandidos jagunços – se soube – e alguns 
daqueles, escapes com vida do Tamanduá-tão, já devia de ter ido 
a ele, levasse aviso. Soltei a faro meus vigiadores – para ter as 
distâncias vindo medidas. Ah, mas, demeio a parte-do-poente e 
o Paredão, a passagem certa era um lugar muito plausível, no 
morro, e que se chamava o Cererê-Velho. Aonde fomos. 
Estugados, em boa marcha. Até que o mormaço bateu as 
asas. Deu trovão, com ventos trapes. Dizendo todos, disso, que 
ia breve chover – para minha desvantagem. Em beira do mato, 
no Cererê-Velho, se trabalhou com facão em ramagem e cipó, 
armando tipóias e latadas. Como que melhorou a experiência do 
tempo, adiando; esbarrou o vento rufado. Mas aquele trabalho 
nosso era carecido, folgar não se pôde; nem para palavra minha 
com Diadorim, que era de todo dia; conforme bem alembro. 
Noitou. Conforme fui dormir, recansado de falfa. Dormir por 
pouco. Conforme foi, e que o meu espírito não queria. Que, de 
repente, acordei. 
Madrugada de meia-noite. A lua já estava muito deduzida, o 
morro e o mato misturados. Relanceei em volta. Todo o mundo 
dormindo. Só o chochorro mateiro, que sai de debaixo dos 
silêncios, e um ô-ô-ô de urutau, muito triste e muito alto. Depois, 
ouvi o uivado inteiro dum cão. Os companheiros todos 
dormindo, acordado só eu, alevantado de noite. Pesou por diante 
de meu coração. Devi àquele cão mal-uivante? Idéia tristezinha, 
que me veio. Por que era que só eu tinha acordado, desoras, tão 
antes de todos? 
Mas eu mesmo queria prosperar de olhos abertos, carecia. 
O que produzia, era eu agüentar até passar o arrocho no coração. 
Deus que me punia – que hora tem – ou o demo pegou a 
regatear? E entendi que podia escolher de largar ido meu 
sentimento: no rumo da tristeza ou da alegria – longe, longe, até 
ao fim, como o sertão é grande... 
Arte que espiei arriba, levei os olhos. Aquelas estrelas sem 
cair. As TrêsMarias, o Carretão, o Cruzeiro, o Rabo-de-Tatu, o 
Carreiro-de-São-Tiago. Aquilo me criou desejos. Eu tinha de 
ficar acordado firme. Depois, daí, vi o escuro tapar, de nuvens. 
Eu ia esperar, fazendo uma coisa ou outra, até o definitivo do 
amanhecer, para o sol de todos. Ao menos achei de tirar, do tôo 
da noite, esse de-fim, canto de cantiga: 
Remanso de rio largo... 
Deus ou o demo, no sertão... 
Amanheceu com chuva. Mundo branco, rajava. Deu raio, 
deu trovão, escorremos água; e tudo que se pensou ou se fez foi 
em montes de lama. Diz o senhor, sim: assim é dia-de-véspera? 
Receio meu era só pela fuga de cavalos. Escapulissem – eles 
sabem como o Gerais é espaçoso; como no Gerais tem disso: 
que, passando noite tão serena, desse de manhã o desabe de repente 
daquela chuva... E igual, de feito, que antes do meio-dia 
estiou, calibre que ventava. Sol saído; e é ligeiro, a gente vendo, 
que essa areia seca seus estados... Medi horas. Só o cruzo de 
meus cavaleiros, amontados todos, enchendo e povoando o 
saco-de-campo, como abelhas na umburana... Surjo que sabiam o 
que não sabiam: eles estavam desinquietos em modos. 
E os vigieiros chegando, conforme voltavam da espiação, 
mesmo molhados ensopados. Um disse: – “Por longe, não 
estando viajando para cá... Só se com retardo...” Adonde estava o 
Hermógenes? O céu botava mais nuvens. Daí, outro: – “Deles, 
nada...” E eu expedi ainda outros: que saíssem e fossem e vissem, 
mais mestres, batessem aquelas beiradas de maior mundo. Que 
modo que senseei, do vazio do tempo em redor – e que eu 
entredisse: – “O Sertão vem?” Vinha. Trinquei os dentes. Mordi 
mão de sina. Porque era dia de antevéspera: mire e veja. Mas isso, 
tão em-pé, tão perto, ainda nuveava, nos ocultos do futuro. 
Quem sabe o que essas pedras em redor estão aquecendo, e que 
em uma hora vão transformar, de dentro da dureza delas, como 
pássaro nascido? Só vejo segredos. Mas que o inimigo já estava 
aproximado, eu pressenti: se sabe, pela aperreação do corpo, 
como que se querendo ter mais olhos; e até no que-é do 
arraigado do peito, nas cavas, nas tripas. O Hermógenes estava 
para arremeter, de rancor, se mexendo nos escuros. A guerra 
estava aprazada em batalha, ali no CererêVelho? Mas meus 
homens, os troados brabos jagunços, por uma palavra minha 
desatribulados, agora ao ar que esperavam por mim. 
E aí foi quando veio o Suzarte, que desde depois do 
Tamanduá-tão tinha saído enviado até mais longe, para espreitar 
e espiar, como cachorro correndo os ventos. Chegou, parecia 
galopando num cavalo já morto. Esbarrou. O cavalo baio, como 
desmanchado – que arqueava triste as pernas dianteiras – 
descansou tudo no chão, que da boca e das ventas ajorrava 
sangue: rebentado dos estômagos e dos peitos. Mas o Suzarte, 
que antes do ranger-sela já tinha escapado os pés das estribeiras e 
pulado solerte no chão, tomou um átimo, e relatou: – “Eles 
estão.” E – para o resto – ele apontou com o dedo. 
O Hermógenes, mor maldito! Ele vinha errado de mim, os 
Hermógenes, eles. Davam arte de contornar da banda do norte, 
às tantas. O Suzarte tinha avistado, no dia antes, o movimento 
dos vigias costaneiros, e definido, de remoto, o corpo do bando: 
poeira duns oitenta... Era o Hermógenes. Contornava, feito 
gavião, vonje, como comigo não tinha nenhuma lei de 
combinação; e esse era o direito dele, de às-avessas de guerra! A 
um mal, o mal; mas o perigo de astúcia aquela hora mudava 
maior de lugar. Porque eles podiam vir e sobrevir. Ou menos 
retos; ou, mesmo – enquanto a gente parava ali, oferecidos, em 
cama-de-caça – também eles dispunham de revirar,’de supeto, no 
Paredão, por outra banda, e arrebatar a Mulher, contra meus só 
dez homens, fazer o que quisessem, e para depois emendarem 
caminho para o Cererê-Velho, em nós, com toda retaguarda... 
Revesti isso, num relance. Arvorei a minha chefia. Meus jagunços 
esperavam a certa decisão: aí eles nem me olhavam. – 
“Maximé...” – eu disse. Resumi. Apre, o que eu ia dizendo, no 
meio do som de minha voz, era o que o umbigo de minha idéia, 
aos ligeiros pouquinhos, manso me ensinava. E era o traçado. 
Tanto que dei ordem. Repartição de gente – se carecia –: 
determinei assim. Metade – metade. Os com João Goanhá e João 
Concliz ficavam, altos, no Cererê-Velho, cumprindo espera 
afoita. E chamei os outros, e Marcelino Pampa de soto-comando: 
rompemos para o Paredão. Tudo se quatreou num pronto, no 
volver-voltear dos cavalos. Já um giro dava nos campos, já a 
gente se esquipava. E, Diadorim, que vinha atrás de mim uns 
metros, quando virei o rosto vi meu sorriso nos lábios dele. 
Íamos redeando resolutamente, dando as costas para o solentrando. 
Dividi idéia da guerra que ia ser, no brutalhal. Vindo a 
cavalo assim, era que eu pensava melhor, nas menos margens. 
Do Cererê-Velho até no Paredão, seis léguas; e eu tinha de 
deixar ao menos um homem em cada meia-légua, em estação, 
para em caso serem capazes de traspassar recado, de tudo por 
tudo, com a rapidez da guerra. Eu fiz, só ia sendo. Todo o resto, 
que viesse, todo o igual. E meus homens cumpriam, 
capitalmente. Alegria do jagunço é o movimento galopado. 
Alegria! Eu disse? Ah, não, eu não. O senhor de repente rebata 
essa palavra, devolvida, de volta para os portos da minha boca... 
Que foi, o dito? Novas novidades. 
Conforme vínhamos, a sério tocar, e já a bem uma légua 
do Paredão se estava, quando apareceu o Trigoso. Esse 
retornava de traquejar as beiras da banda do sul, e estivesse 
jejuno virgem de toda nossa ciência derradeira. Do Hermógenes 
nem nada sabia – pois, justo. Mas queria por força relatar. Disse 
coisas sem proveito. Disse. Carecia de impor no meu espírito o 
rebuliço, de esfriar em mim o sangue nas veias?! 
– “... No Saz – uma veredinha, três léguas abaixo – 
Chefe... Vaqueiro que achei, que me disse, remendando 
mensagem: que é um homem, chamado Abrão, com uma moça 
bem arrumada... Que vêm vindo, beiradeando o rio, e a tralha 
deles trazem em dois burros cargueiros, e condução de dois 
camaradas...” 
Ele falou. E foi a coisa mais de repente, na minha vida. 
Otacília! Como tudo neste mundo podia ser, e como a minha 
mente tinha logo puxado de arranco, das palavras do Trigoso, 
todo verdadeiro significado! Inteirei, comigo: – Seô Habão? 
Vigia se ele não traz consigo uma donzela formosíssima, ou se traz 
em-apenas desilusão... E o Trigoso disse, estava dizendo completo. 
Ela era! Otacília. Otacília. Eu tinha de escutar, outra vez, o 
Trigoso da verdade das coisas menos sabia. Imaginar, eu 
imaginava. Otacília – a vinda dela, sertão a dentro, por me 
encontrar e me rever, por minha causa... Mas achava a guerraria 
de todos os jagunços deste mundo, raivando nos Campos- 
Gerais. Terríveis desordens em volta dela, longe saída de casa de 
seu pai, sem garantias nenhumas... Que proteção ia poder dar a 
ela esse seô Habão, com dois pobres camaradas perrengues, 
tudo tão malaventurado, como se estavam? Engoli amargos. Me 
rodeavam meus homens, o silêncio deles me entendia, como 
bem cientes. Reperguntei: quem sabe, se assim paravam na beira 
do rio, se então não deviam de ter retrocedido caminho, se 
encaminhando também para o Paredão? 
– “Ah, que não, Chefe. Vaqueiro me disse: de lá para lá, 
iam indo... Fugindo do perigo para o perigoso... E, no Paredão, 
mesmo dito, já não tem mais pessoas de sede. As famílias todas, 
e os moradores, camparam no pé, desgarrados, assim que o 
medo chegou lá... O medo é demais de grande...” 
Estremeci, mor. Eram as horas. Só de ouvirem falar no 
vago do Paredão, meu povo afastava os cavalos, já querendo 
regalopar. Entendi e mais entendi, rodei mão na cara. Incerteza 
de chefe, não tem poder de ser – eu soubesse bem. Mas, era eu 
ali, em sobregoverno, meus homens me esperando, e lá Otacília 
carecendo do meu amparo. E a guerra que podia dar de 
recomeçar, na boca dum momento, ou antes. Que de mim? Que 
diversas honras diferentes homem tem, umas às outras 
contrárias. Na estreitura, sem tempo meu, eu podia desdeixar 
meus homens? E tinha de ir. Não por bons-e-belos, ah. Mas 
minha Otacília vinha, em hora tão despertencida, de todas a vez 
pior. Eu podia requerer amor: – Me dê primavera? Vi tudo 
indeciso de mim, estarrecido – as pedras pretas no meio do 
capim, o campo esticado. Só fiz que no forte do sentir eu 
pudesse era este ameaço de reza: – Me dê o meu, só, e que é o que 
quero e quero!... – ao Demo ou a Deus... A lá eu ia. Otacília não 
era minha noiva, que eu tinha de prezar como quase minha 
mulher? Meio do mundo. 
Vai, e eu disse: lá ia, no vou e volto; e já mesmo. Se diz – 
era um pulo. Para revir e dar guerra, tempo havia de ter. Os 
outros fossem, para o Paredão, tocassem. Já estava escurecendo. 
Só mais que, nesse propósito, muitos acharam de me 
acompanhar: alegando que, à tal coisa, como chefe, eu carecia de 
não querer sozinho ir. Abanei cabeça. Em assim, aceitei dois: 
Alaripe e o Quipes – companhia que me bastava. Eu não ia 
desarrumar negócio, afracar o forte de minha gente, com mais 
homens arrecadados. E sendo o de ser. Arremessei ordens, 
joguei meu cavalo. 
Porém, porém: e esbarrei, em saída. Esbarrei, para 
repontar Diadorim, que vinha vindo. – A lá, que é?! – eu disse, 
asp’ro. Diadorim quisesse me acompanhar, eu duvidava, de que 
motivos. Não me respondeu. Li nele a forma duma ira, como 
apertou os olhos em direitura do campo. – Tu não vai para o 
Paredão, tu teme? – eu ainda buli. Diadorim me empaliava, a 
certas. O ódio luzente, nele, era por conta de Otacília... Ele me 
ouviu e não disse, ladeando o cavalo. Mirou meio o chão; 
vergonha que envermelhou. Agora ele me servia dáv’diva 
d’amizade – e eu repelia, repelia. Mas, fora de minha razão, eu 
precisei com urgência de ser ruim, mais duro ainda, ingrato de 
dureza. Invocava minha teima, a balda de Diadorim ser assim. – 
Tu volta, mano. Eu sou o Chefe! – pronunciei. E ele, falando de 
um bem-querer que tinha a inocência enorme, respondeu assaz: 
– “Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...” 
Ainda vi como ele – com a mão, que era tão suave em paz 
e tão firme em guerra – amimava o arção do selim. Repostei um 
feio xingo. Bramei isso, porque o azo de Diadorim me 
transtornava. Dei de rédea. Com um raspo de galope, peguei 
junto com Alaripe e o Quipes, que mais adiantados me 
aguardavam. Nem espiei para trás – não ver que Diadorim 
obedecia, mas como devia de parar estacado lá, té que o meu 
vulto desaparecesse. Desjustiça. Mas como a obrigação do dia 
me arrolava. E em tudo não pensei, tocando para ir fazer-eacontecer, 
aos baques do coração. O senhor diria, dirá: como 
naquela hora Diadorim e eu desapartávamos um do outro – 
feito, numa água só, um torrãozinho de sal e um torrãozinho de 
açúcar... Fui, com desejos repartidos. 
Tropear cavalgada – nós três: o Quipes, Alaripe e eu – meio 
a esmo, isso é que se tinha. Refiz o frio da idéia. Mas, nos 
primeiros ares, nem consegui. Eu despropositava. – Diadorim é 
doido... – eu disse. Todo me surripiei, instanteante: tanto porque 
“Diadorim” era nome só de segredo, nosso, que nunca nenhum 
outro tinha ouvido. Alaripe só fez que susteve cara de não 
entender, e disse somente: – Hem? Mas, aí, eu desmanchei o 
encoberto, dado dando o do passado, me desimportava; 
consoante expliquei: – “Diadorim” é o Reinaldo... Alaripe ficou 
em silêncio, para melhor me entender. Mas o Quipes se riu: – 
“Dindurinh’... Boa apelidação... Falava feito fosse o nome de um 
pássaro. Me franzi. – O Reinaldo é valente como mais valente, 
sertanejo supro. E danado jagunço... Falei mais alto. – Danado... – 
repeti. Alaripe, por respeito, confirmou: – Ah, danado é... Por 
que era que não dava outro jeito, dele comigo conversar, que não 
fosse com essas reverências? 
E a noite já tinha completado escuro, sem lua ainda 
aparecida, eu não podia avistar a cara dele como formava 
opinião, as palavras que eu falei ficaram sendo sem dono. – 
Otacília é minha noiva, Alaripe. Se alembra dela? Antes de outros 
silêncios, ele me respondeu: – Alembro... Lá é um fazendão bom... 
Até me desgostava o modo zeloso do Alaripe sempre guiar o 
caminho, cuidados com que separava os galhos e ramagens de 
árvore, para o meu cômodo de seguir. E a gente estava quase a 
passo em passo. Donde de conversar desisti muito. A que a qual 
a escuridão tapava toda boca. 
Aonde para que eu ia? – e carecia de ir, conforme meu 
dever. Mas minha Otacília não devia de ter escolhido justa essa 
ocasião, tão destacada de propósitos, para vir aventurar entre 
homens de morte essa delicadeza, sem proteção nenhuma, filhade-
família... Alaripe e o Quipes não descuidavam de tomar tento 
em tudo, nos lados, no arredor – figurável que era tempo de 
guerra, em brenhas de noite, e algum inimigo menos-se-espera 
podia surgir para o mal. Aonde se ia? Rumo dado, reto em cima 
da Vereda do Saz, ou seguir seguido, rio Paracatu arriba? Tudo 
como que tudo se me dava à raiva – tanto por causa desse 
vaqueiro, trazedor de relatos. Nem eu soubesse certo se era o seô 
Habão, se era Otacília... 
A quase metade do céu tinha suas estrelas, descobertas 
entre os enuveados para chuva. O setestrelo, no poente, a uma 
braça: devia de regular umas nove horas. Nesse ponto, deu de se 
ouvir um rumor grande, para dentro do cerrado, removendo nas 
galharias. Só fizemos que esbarramos, rifles em mãos. – É anta... 
– o Quipes disse, conhecedor alertamente. Alguma onça, à espera 
de lua. Otacília a tudo estava exposta, por culpa de maus 
conselhos. – O seô Habão entregou a ela a pedra de ametista... – eu 
falei. Alto falei; e não queria que o Alaripe ressoasse: “... entregou 
a ela a pedra...” Isto é: a pedra era de topázio! – só no bocal da 
idéia de contar é que erro e troco – o confuso assim. Diadorim 
sofria mais de tudo, quem sabe, por conta da dádiva daquela 
pedra. Otacília não devia de ter vindo. Eu... Essas andanças! 
Agora, aonde era que se ia encontrar viajor, ou aquele beida-mãe 
de vaqueiro, para obrigar a definir notícia? Mas o vaqueiro aquele 
não teria o certo pouso. Só atrás de seu gado urucuiano. Todo o 
mundo se fugia, do Paredão e de toda parte, suas trouxas nas 
costas. A quando se divisou um foguinho adiante no campo, seja 
que pensei: gente arranchada no ar, em caminho para lugar 
nenhum... Não era. Somente foguinhozinho avoável assim 
azulmente, que em leve vento se espalhava: fogo-fá, jan-dla-foz. 
O que não se achava, o que eu pensava. Eu era diferente de 
todos? Era. Susto disso – como me divulguei. Alaripe, o Quipes, 
mesmo o calado deles, sem visagens, devia de ser diverso do 
meu, com menos pensamentos. Era? Sei que eles deviam de 
sentir por outra forma o aperto dos cheiros do cerradão, ouvir 
desparelhos comigo o comprido ir de tantos mil grilos campais. 
Isso me dava ojeriza, mas também com certo consolo – 
misturado. Como quando viajando assim, no escuro da noite, a 
idéia da gente cheia de atormentamentos, e de repente o cavalo 
bufa, batendo o vulto da cabeça branquenta, e chamando atenção 
para o cheiro do suor dele, que vale por uma persistência, com 
paciência de responsabilidade... Aquela noite estava podendo 
mais do que a minha decisão? Soubesse não sei. Noite lembrada 
em mim, de sereno a orvalho. 
Revi madrugar, quando esbarramos, na beira duma vereda 
pagã, por repouso. Aurora: é o sol assurgente – e os passarinhos 
arrozeiros. Cá o céu tomou as tintas. Aí retoquei muita 
lembrança madraça, como se estivesse no antigamente. Fez falta 
foi um café; mas comemos farofa, bebemos gole d’água. O 
Quipes apanhou araticum maduro, ele vivia cuidando de achar as 
frutas em árvores e moitas. E Àlaripe ajuntou gravetos e acendeu 
um fogo; só por calor e costume, só, que não se tinha o que 
quentar nem assar. Medito como aos poucos e poucos um 
passarinho maior ia cantando esperto e chamando outros e 
outros, para a lida deles, que se semelha trabalho. Me passavam 
inveja, de como devia de ser o ninho que fizessem-tão reduzido 
em artinha, mas modo mandado cabido, com o aos-fins-e-fatos. 
E o que pensei: que aquela água de vereda sempre tinha 
permanecido ali, permeio às touças de sassafrás e os buritis dos 
ventos – e eu, em esse dia, só em esse dia, justo, tinha carecido de 
vir lá, para avistar com eles; por que que era? Bobéia... Eu estava 
cansado, com uma dor na ilharga. 
Por desenfastiar, conversei. – A veja, Alaripe: que nome será 
que esta vereda havia de ter, o que merecesse denominado? Alaripe, 
agachado ali mesmo, se virou para mim, esbarrando de assoprar 
o fogo: – Figuro que ela algum nome já tem, só que não se saiba. A 
modo que, pegando algum morador de por perto, se indaga... – ele 
melhor me respondeu. Mas eu contradisse que não se precisava. 
Forrei chão, para um cochilo. De qualquer jeito, a paragem ali 
tinha de ter demora, carecia de se dar um lombo aos cavalos. 
Para o que o dia ia ser, eles requeriam um descanso, e pastar; 
cavalo são desdenha de dormir, o senhor sabe: bicho que só 
come, come, come. O sono me conseguiu. Ferrei em mais de 
umas duas horas. 
Por que tudo refiro ao senhor, de tantas passagens? Ah, 
pelo que quando acordei, retenha o seguinte. Acordei sentido e 
mal à parte. Amargava. Devia de ir ter cólicas. As ânsias essas, 
mesmo com outro cansaço. Feito sem repouso nenhum, 
daquelas horas. Assim: eu sem segurança nenhuma, só as 
dúvidas, e nem soubesse o que tinha de fazer. Acordei foi com o 
vozeio de Alaripe e o Quipes, que já esperavam por mim, e 
estavam naquela pauteação trivial deles, coisas sem nenhum 
fundamento. Depois, Alaripe tirou da capanga um vidro que 
tinha cachaça dentro, me ofereceu o primeiro gole. Era um vidro 
meão, claro, feito remédio de frasco. Com alívio, tomei. Mas era 
um alívio mesmo assim triste, e eu descri; eu quis discorrer 
qualquer noção. – O que é que tu acha do que acha, Alaripe? Ele 
não me conheceu: principiou a definir o Paredão, do Cererê- 
Velho, do Hermógenes. Atalhei: – que não isso; que da vida, 
vagada em si, no resumo? – A pois, isto... Homem, sei? Como que 
já vivi tanto, grossamente, que degastei a capacidade de querer me 
entender em coisa nenhuma... Ele disse, disse bem. Mas eu entiquei: 
– Não podendo entender a razão da vida, é só assim que se pode ser 
vero bom jagunço... Alaripe esbarrou, como ia quebrar em duas 
uma palma seca de buritirana. Me olhou, me falou: – Se só de 
entender, é comigo, eu entendo. Entendo as coisas e as pessoas... 
Respondeu, disse bem. De mim, então, entendia? Desjuízo, que 
me veio. Eu ia formar, em roda, ali mesmo, com o Alaripe e o 
Quipes, relatar a eles dois todo tintim de minha vida, cada desarte 
de pensamento e sentimento meu, cada caso mais ignorável: 
ventos e tardes. Eu narrava tudo, eles tinham de prestar atenção 
em me ouvir. Daí, ah, de rifle na mão, eu mandava, eu impunha: 
eles tinham de baixar meu julgamento... Fosse bom, fosse ruim, 
meu julgamento era. Assim. Desde depois, eu me estava: rogava 
para a minha vida um remir – da outra banda de um outro 
sossego... 
Pensei; quase disse. Aquilo durou o de um pingo no ar. Eu 
havia de? Ah, não, meu senhor. Deu um momento, me tirou 
disso; e tanto bastou. Doidice, tontura de espírito... – eu repensei, 
reposto em pé. Xô! O ypsilone dum jegue eu era – zote, do que 
arrenego, cabeça orelhalmente? Ali eu era era o Chefe, estava 
para reger e sentenciar: eu era quem passava julgamentos! Então, 
falei: 
– “Vão sozinhos, vocês dois, beira-rio, procurando. Eu 
não posso ir mais, por meu dever. Retorno, já, para o Paredão...” 
Alaripe ainda cruzcruzou: – “A gente – pode ser que lá a 
gente faz falta... 
Mas eu fechei. Sendo o que eu mesmo não podia, ao menos 
esses eu mandava. Fossem, já fossem. Eles tinham de encontrar a 
minha Otacília, a ela render boa proteção. Amontamos, os três. 
Ainda esperei a saída deles. 
Até me lembro de que, escabreado, na hora de saudar e 
tocar, Alaripe ainda apontou para a linha de mato, vereda-acima, 
achando: – Como que avisto, por detrás d’árvores, passar a marcha 
dum cavaleiro... Não era. Não era, porque o Quipes não viu, 
conforme confirmou que não viu; e o Quipes tinha olho de 
gavião-grande. Aí, pensei: será, o Alaripe estava sendo um 
homem se envelhecendo? Amigo meu – e meu estranho. Até me 
lembro, pensei assim. 
Retornei, enquanto eles dois iam para a outra banda. Agora 
eu mudava, para motivos: chega estremeci de influência, aos aosares 
de guerra. Deixei de parte a cisma, do mesmo jeito com que, 
ainda fazia pouquinho, eu tinha afrouxado ânimo; ah, a gente 
larga urgente o real desses estados. Agora minha alegria era mais 
minha, por outro destino. Otacília ia ter boa guarda. E então, por 
uma vez, eu peguei o pensamento em Diadorim, com certo 
susto, na liberdade. Constante o que relembrei: Diadorim, no 
CererêVelho, no meio da chuva – ele igual como sempre, como 
antes, no seco do inverno-de-frio. A chuva água se lambia a 
brilhos, tão tanto riachos abaixo, escorrendo no gibão de couro. 
Só esses pressentimentos, sozinho eu senti. O sertão se abalava? 
Desfechei. Naquela corrida, meu cavalo teve as dez pernas. 
E cheguei no Paredão, na derradeira boa-luz da tarde. 
Diadorim, me esperava, demais. Ainda vi a alegria no rosto 
dele. 
O Paredão. O senhor ponha. Como esvoaça mosca gorda, 
de donde se matou boi. Tudo estava perfeito tranqüilo. Diadorim 
– com chapéu xíspeto, alteado. Nele o nenhum negar: no firme 
do nuto, nas curvas da boca, em o rir dos olhos, na fina cintura; e 
em peito a torta-cruz das cartucheiras. Os mais, zelando nas 
armas, corriam os dedos, apalpavam por afago. Conversei com 
todos. Aqui a guerra – que queriam guerra. Assim os meus 
catrumanos: quais as caras deles iam ficando de demônios; mais 
feio no demônio é o nariz e os beiços... 
Conferi as sentinelas. Fui ver onde tinham botado a Mulher 
– ela fechada num quarto, no sobrado. Ficasse remetida lá, sobpé 
de guarda. O sobrado marcava o meio quase da rua. Mas, para a 
gente em armas, de que é que valia aquele arraial inteiro, tão 
vazio? Determinei: deixar lá memo só uns poucos, como vigias. 
Tanto o resto todo, para um ponto viemos, circunstância de 
umas duzentas braças, aonde um lugar mais alto desenhado, que 
seria para porta dos caminhos e apropriado para ali se resistir. 
Formamos bons preparos. Minha mãe vivesse e viesse, ela 
mesma por nenhum descuido mero não havia de poder me 
reprovar. 
Assim apreciei a gente – às mansas e às bravas – a minha 
jagunçada. Agora eles estavam arrumando o mundo de outra 
maneira. Tudo se media munição, e era fuzil e rifle se 
experimentando. A guerra era,de todos. A juízo, eu não devia de 
mestrear demais, tudo prescrevendo: porque eles também tinham 
melindre para se desgostar ou ofender, como jagunço sabe honra 
de profissão. Dos modos deles, próprios, era que eu podia me 
saber, certificado, ver a preço se eu estava para ser e sendo exato 
chefe. Com modos, eu falasse: – “Olh’, vigia, fulano: aí está 
bom; mas lá acolá não é melhor?” – e receava que ele 
respondesse, me explicando por que não era, não. Eu 
questionava, comigo, que eles deviam de lavorar maior raiva. 
Raiva tampa o espaço do medo, assim como do medo a raiva 
vem. Reparei isto: como nenhum não citava o nome do 
Hermógenes. Aí estava direito – que no imigo, em véspera, não 
se proseia. Mal que um disse: – “Ele não é laço: – é argola...” – Ou 
outro, que: – “Ele adoida...” Mas os mais não glosavam. Com o 
que prazi. Gastura que eu tinha era só de que, a ventos vai, um 
fosse acrescentar: –... Ele é pactário... 
Ah. E que fosse? Menção não era de se afirmar, regalia 
nenhuma. Pois o demo não é de todos?! Alt’arte abri o meu 
maior sentir: que eu havia de ter a vitória... Dali, o Hermógenes 
não saía com vida, maneira nenhuma, testamental. Tive ódio 
dele? Muitos ódios. Só não sabia por quê. Acho que tirava um 
ódio por causa de outro, cosidamente, assim seguido de diante 
para trás o revento todo. A modo que o resumo da minha vida, 
em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes 
– naquele dia, naquele lugar. Pelejei para recordar as feições 
dele, e o que figurei como visão foi a de um homem sem cara. 
Preto, possuindo a cara nenhuma, feito se eu mesmo antes 
tivesse esbagaçado aquele oco, a poder de balas... E tudo me 
deu um enjôo. Tinha medo não. Tinha era cansaço de 
esperança. 
Também eu queria que tudo tivesse logo um razoável fim, 
em tanto para eu então largar a jagunçagem. Minha Otacília, 
horas dessas, graças a Deus havia de parar longe dali, 
resguardada protegida. O tudo conseguisse fim, eu batia para lá, 
topava com ela, conduzia. Aí eu aí desprezava o ofício de 
jagunço, impostura de chefe. Sei quem é chefe? Só o gatilho de 
arma-de-fogo e os ponteiros do relógio. Sensato somente eu 
saísse do meio do sertão, ia morar residido, em fazenda perto da 
cidade. O que eu pensei: ... rio Urucuia é o meu rio – sempre 
querendo fugir, às voltas, do sertão, quando e quando; mas ele 
vira e recai claro no São Francisco... Agora, Alaripe e o Quipes, 
regulando, deviam de já ter achado a minha Otacília, demais, 
pelo Paracatu-acima, tão longe; e até semelhasse invenção, isto 
que, na madrugada, eu mesmo também tinha estado em 
caminho de lá, em tão precipitados surtos. Artezinha. Sei o 
grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, 
esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com 
pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias 
todas... 
Nessas e noutras muito extremadas coisas eu tornava a 
pensar, o espírito em meia-mão, por diante permeio os outros 
meus entretimentos deverdade. Agora tudo estava pronto, das 
obrigações – afora a de esperar, que é a que regasta e se recoze. 
A noite foi se esquentando assaz. Ali também, por avisante, não 
se acendia fogueira. Mas o campo esparramava muito vaga-
lume. Os homens formando grupos, acocorados assim, eles 
conversavam. O quase que o legal, agora, era de se caçoarem 
uns dos outros, desafiando quem fosse ser medroso ou 
duvidado na coragem. Razão disso meava uma confiança, a 
mais, eu escutando satisfeito aquelas bobices com que eles 
porfiavam: – “Caranguejinho, sem cachaça tu vai?” – “Eh, não: tu! 
Vai saudar o gado!” Pelos risos e debiques que divertissem, de 
todos eu percebia a forte certeza. Cada cada-um, dali a pouco, ia 
ser perigoso, de nele se encostar, feito um sapo que espirra. – 
“Que te falo: amarra o burro, que a carga é sua...” – “Minha, a carga 
está salva... Mal a bem, oxente, quero é ver o que vou ver...”Assim 
se zé-zombavam. Aos ditos ditados, feito estivessem jogando 
um truque, sem baralhos nenhuns. Por que é que aquilo me 
comprazia? E Diadorim parava calado, próximo de mim, e eu 
concebia o verter da presença dele, quando os nossos dois 
pensamentos se encontravam. Que nem um amor no ao-escuro, 
um carinho que se ameaçava. – “... Tiroteio fervo, se será! Aí é 
que vou ver um mais menino que o J’bibe...” – “Se tu não sabe, você 
vai saber: que eu já fiz minha fama... ““Jiribibe? Pois, aquele, eh: ele 
pede esmola ao rei...” E reproduziam muitas essas gaitagens. 
Agora estavam acostumados com a hora do lugar, e para 
qualquer repente refrescados. Igual a um gado – que vem num 
pasto novo, e anda e fareja, reconhecendo tudo, mas depois 
tudo aceita e então começa a resfeição. Agora, agora, sim, meus 
homens estavam em ponto de fogo. Melhor mesmo não irem 
dormir, antes de forte sono, por se evitar espertina de criatura 
sozinha, em espera de possível má morte. Tive pena deles? 
Disser isto, o senhor podia se rir de mim, declarável. Ninguém 
nunca foi jagunço obrigado. Sertanejos, mire veja: o sertão é 
uma espera enorme. 
Vai, vai, uma hora eu perguntei a Diadorim: – “A Mulher 
dissesse alguma coisa?” Isto eu não sabia por que era que estava 
indagando. Aí eu não queria ciência de se a Mulher tivesse 
falado alguma coisa trivial. Eu quisesse achar de saber – era se 
ela alguma doidice de profecias havia de ter pronunciado? 
Diadorim disse: – “Não.” Mas ele devia de estar curtindo outro 
instar de outro assunto. Sustido eu sabia: o que era dele sempre 
pensar – o imaginável de Otacília... Depois de remedir o 
tamanho de um silêncio, ele mesmo veio: – E o Alaripe, mais o 
Quipes; aonde foi que ficaram? Esse ciúme de Diadorim, não sei 
porque, daquela vez não me deu prazer de vantagem. E eu 
desdenhei, na meia-resposta: – Por aí... – que eu disse. Aí era o 
cão da noite, que meu beiço indicava. Vaga-lumes, mais de 
milhar. Mas o céu estava encoberto, ensombrado. Sofismei. 
Meio arrependido do dito, puxei outra conversa com Diadorim; 
e ele me contrariou com derresposta, com o pique de muita 
solércia. Me lembro de tudo. O que me deu raiva. Mas, aos 
poucos, essa raiva minou num gosto concedido. Deixei em 
mim. Digo ao senhor: se deixei, sem pejo nenhum, era por causa 
da hora – a menos sobra de tempo, sem possibilidades, a espera 
de guerra. Ao que, alforriado me achei. Deixei meu corpo querer 
Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele. 
Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu 
não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da idéia. 
Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto 
carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no 
pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queixo, 
do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o 
formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, 
para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, 
de Diadorim, e calar qualquer palavra. Ela fosse uma mulher, e àalta 
e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão 
e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, 
dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em 
singela conversação – por detrás de tantos brios e armas? Mais 
em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível. Três-
tantos impossível, que eu descuidei, e falei. –... Meu bem, estivesse 
dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... –; o disse, vagável 
num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, 
modo se diz um verso. Diadorim se pôs pra trás, só assustado. – 
O senhor não fala sério! – ele rompeu e disse, se desprazendo. “O 
senhor” – que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em 
mim, furioso com meu patetear. – Não te ofendo, Mano. Sei que tu 
é corajoso... – eu disfarcei, afetando que tinha sido brinca de 
zombarias, recompondo o significado. Aí, e levantei, convidei 
para se andar. Eu queria airar um tanto. Diadorim me 
acompanhou. 
Era uma noite de toda fundura. Estava dando um vento, 
esquisito para aquele tempo, por ser um vento em-hora do lado 
suão, em-hora do norte, conforme se riscando um fósforo, ou 
jogando punhado de areia fina clara para cima, se conhecia. 
Andamos. Mas, agora, eu já tinha demudado o meu sentir, que 
era por Diadorim uma amizade somente, rei-real, exata de forte, 
mesmo mais do que amizade. Essa simpatia que em mim, me aumentava. 
De tanto, que eu podia honestamente dizer a ele o meu 
bemquerer, constância da minha estimação. 
Não disse. Por que que não disse, foi porque o perigo da 
ocasião me invocou: achei que podia ser agouro, em véspera de 
guerra, a conversa afeiçoada assim. Diadorim – em que era que 
ele devia de estar pensando?; é o que eu não soube, não sei, à 
minha morte esta pergunta faço... Como certo é que só do semmais 
de coisas falamos, sem nenhuma expedição. Até que o 
vento revirou: mudando inteiro, que vinha era só do norte, 
conforme neste lado da minha cara ele só se fez quente, 
refrescando. O sertão ventou rouco. Com formas que logo se 
ajuizou de poder supravir chuva forte, e carecido foi que 
determinamos de retornar com tudo, para se ir dormir mesmo 
nas casas do arraial, só uns poucos homens de vigia se deixando 
naquele alto, a padrasto. E isso era o exato, mas me aborreceu 
demais e me cansou, mais do que as outras peripécias. Consabido 
que na noite antes eu tinha viajado em todo regime das estrelas, e 
mais ainda no dia, afora as duas ou três horinhas de sono, de 
madrugada. Foi eu ver um catre, e me trespassei. Ainda disse 
uma recomendação: que, tirante caso resoluto, em hora qualquer 
não me chamassem. Dormi mortalmente. Essa, foi noite que eu 
dormi: sendo o chefe Urutu-Branco, mesmo dizer – o jagunço 
Riobaldo... 
Acordei último. Alteado se podia nadar no sol. Aí, quase 
que não se passavam mais os bandos de pássaros. Mesmo perfiz: 
que o dia ia dever ser bonito, firme. O calor fortalecia, e logo ia 
se secando o chão, umas poças de lama e as árvores com gotejos 
– porque de noite tinha caído uma bruega. Bebi café, comi um 
naco de carne gorda, repassada na farinha, mastiguei um taco de 
rapadura. Enquanto vi, meu pessoal discorria na mesma disposição, 
influentes como antes. Tornamos para o ponto 
demonstrado de espera, cada um caçando seu atrincheirado. 
Chegou o Cavalcânti, vindo do Cererê-Velho, com recado: 
nenhumas novidades. Para o Cererê-Velho recambiei aviso: 
nenhumas novidades, minhas também. O que positivo era, e do 
que os meus vigiadores do rededor davam confirmação. Antes, 
mesmo, por mais, que eu quisesse ficar prevenido, o dia era de 
paz. Todos percebessem. Era uma paz gritável. – Será que não vão 
vir? – algum maldisse, no rifle se escorando. Vez vendo, duvidei. 
Chegou a me dar desânimo, fato que não viessem – e a gente ter 
de adiar fim, recomeço, rodando por esse mundo a fora em vã 
caçada. – Ah, não! – retemperei. Homem nenhum podia deixar a 
mulher sojugada presa em mão de outros, e demorar desistido de 
ataque. Vinha que vinha, mais hora menos hora. Todos esperassem. 
E eu mesmo de todas minhas armas não larguei, quando 
desci para momento de lavar o corpo no rio. Que tão perto era. 
E, de lá, todo movimento dos meus eu avistava. 
Duvido? Desavistei foi na mente, não foi dos olhos. Como 
que o avio de descangar as armas de sobre mim e as cartucheiras, 
e o vagar de tirar a roupa e remolhar os pulsos, e fazer menção 
para entrar na água com conforto – essas ações tiravam conta do 
meu estar, como um alívio de sossego. Eu tinha a certeza de paz, 
por horas. E o demo me disse? Disse; mas foi assim: tiros! 
Choque que levei – foi feito um trovão. Começou a se 
bradar. 
Os gritos, tiros. Que foi, mesmo, que eu primeiro ouvi? 
Primeiro, dum pulo bruto, eu já estava lá, pegando minhas 
roupas, armado prestes. E vi o mundo fantasmo. A minha gente 
– bramando e avisando, e descarregando: e também se 
desabalando de lá, xamenxame de abelhas bravas. Mas, por quê? 
– eu desentendi; e tornei a entender, depressa demais: que o inimigo 
dera de se estourar, todo de-repentemente, da banda outra, 
lugar donde não devia de vir, nem ali possível de ser esperado. 
Eles eram quantidade. Cru e cru que avançavam, avançando, 
como que já iam tomar o Paredão, as casas na ponta do arraial. 
Estarreci. Que, na prema da minha ausência, o muito mundo se 
acabava. Tudo diferente da cartada. E eu sei o que é estupor: que 
eu tinha pegado calça e camisa em mão, e esbarrei, num 
demorado sem termo, no meio de me revestir, e eu num latejo 
frouxo pensando: – Não chego em tempo... Não adianta... Não 
chego em tempo nenhum... 
Sei lá o tanto que isso durou? E eu via o meu pessoal 
avançar também, com brabura e diligência, na outra ponta, a 
modo de impedir que o arraial fosse tomado... Porque o Paredão 
era uma rua só; e aquilo ficou de enfiada – um cano de balas. 
Mas, no mesmo ar de ar em que eu via aquilo, lavorei pensando: 
que eu era tonto, e burro, e idiota as mil vezes, porque agora 
estava perdida irremediavelmente minha ocasião, e a guerra 
descambava, fora do meu poder... E eu acabei de me enroupar, 
mal mal, e escutava essas vozes: – Tu não vai lá, tu é doido? Não 
adianta... Não vai, e deixa que eles mesmos uns e outros resolvam, 
porque agora eles começaram tudo errado e diferente, sem perfeição 
nenhuma, e tu não tem mais nada com isso, por causa que eles 
estragaram a guerra... Assim ouvi, sussurro muito suave, vozinha 
mentindo de muito amiga minha. O meu medo? Não. Ah, não. 
Mas meus pêlos crescendo em todo o corpo. Mas essa 
horrorizância. Daquela doçura nojenta de voz. E senti meu corpo 
muito grande. Me xinguei. Um sujeito vinha correndo, nele eu 
quase atirei. Desertor? Ah, não, esse o Sidurino era, correndo por 
um cavalo. Ah – e bem fosse! – ia voltear para o Cererê-Velho, 
chamar, trazer reforço, para darem retaguarda. E eu casei com 
meu rifle, vim, vim, vim. Desconheci temor nenhum. Vivo em 
vida, me ajuntei com os companheiros. Meus homens! – dei 
ordens. As balas estralejavam. 
Foi fogo posto. Arrasar que vem de para onde não se olha: 
feito forte sol; e vem como sol nascendo! Rachavam lascas, 
espatifavam. Aí podiam descascar os arvoredos de uma dessas, 
floresta toda inteira... Apraz que os ares! 
Ah esses meus jagunços – apragatados pebas – formavam 
trincheira em chão e em tudo. Eles sabiam a guerra, por si, feito 
já tivessem sabido, na mãe e no pai. Só se aos uivos urros, se 
zurrava. Aí – como tomei chegada e peguei postura. Valia ver – 
comandar? Gritei: – “Chagas de Cristo!...” Os meus davam ainda 
outros gritos. A carabina, em mãos, coisa mexedora. A gente 
disparava dentro dos quintais, avançávamos. E de detrás das 
casas. E guardávamos o emboque da rua. Diz que lê?; diz-que 
escreve! Tiro ali era máquina. Aos tantos, juntos, relando – cinco 
deles, cinco dedos, cinco mãos. A gente tinha de caber em 
buracos escavacados. A cabeça da gente é que dá voltas, mesmo 
no esconderijo, como para se desviar. Mas não se tem medo a 
gasto. Eu dizia: fré! – e botava bililica na agulha. – Amanso! Eu 
queria que Diadorim não se descuidasse. Diadorim disse: – 
“Toma cautela, Riobaldo...” Diadorim se descabelou, 
bonitamente, o rosto dele se principiava dos olhos. Eu 
comandava? Um comanda é com o hoje, não é com o ontem. Aí 
eu era Urutu-Branco: mas tinha de ser o cerzidor, Tatarana, o que 
em ponto melhor alvejava. Medo não me conheceu, vaca! Carabina. 
Quem mirou em mim e eu nele, e escapou: milagre; e eu 
não ter morrido: milagremente. A morte de cada um já está em 
edital. Dia de minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor 
escute. Mas o inimigo fuzuavatiroteio total. 
Tudo ali era à maldição, as sementes de matar. De ouvir o 
renje uimuim dessas, perto de nossos cabelos – eles sobem, de si 
–; e chega a doer de nervoso: mas dói real, como se umas 
daquelas atravessassem até buracal do olho da gente, mas feito 
dor que vara do céu-da-boca, por dentro dos ossos, 
pontudamente, igual quando às vezes se come sorvete de gelo... 
Era a cara pura da morte. – Av’ave! Marcelino Pampa, logo esse. 
Nem olhou ninguém. Curvou o corpo quase se quebrando em 
dois, ia encostar testa no chão; e largou tudo, espaireceu as mãos, 
e bofou da boca diversos dois feixes de sangue. Sangue dele. 
Semelhava que um boi nele tivesse pisado... E eu desfechei dez, 
para a frente, vingando fosse. Daí, vigiei. Um homem morre mais 
que vive, sem susto de instantaneamente, e está ainda com remela 
nos olhos, ranho moco no nariz, cuspes na boca, e obra e 
urina e restos de de-comer, nas barrigas... Mas Marcelino Pampa 
era ouro, merecia lágrimas dalguma mulher perto, mão tremente 
que lhe fechasse bem os olhos. Porque não se vê outro assim, 
com tão legítimo valor, capaz de ser e valer, sem querer parecer. 
E uma vela acesa, uma que fosse, ali ao pé, a fim de que o fogo 
alumiar a primeira indicação para a alma dele – que se diz que o 
fogo somente é que vige das duas bandas da morte: da de lá, e da 
de cá... E eu peguei puxei o corpo para não ficar em cima dum 
vestígio de lama – porque ali de noite tinha chovido; e Diadorim 
panhou o chapéude-couro, com qual tapou o rosto do dono. A 
paz no Céu ainda hoje-emdia, para esse companheiro, Marcelino 
Pampa, que de certo dava para grande homem-de-bem, caso se 
tivesse nascido em grande cidade. Ah pápá! falei fogo. Aquilo em 
volta se arrebentava, balalhava. 
Mas a gente tinha conseguido de firmar possessão – 
agarramos mais da metade do arraial, do arruado. O sobrado 
restou nosso. Com anseio, olhei, para muito ver, o sobrado rico, 
da banda da mão direita da rua, com suas portas e janelas 
pintadas de azul, tão bem esquadriadas. Aquela era a residência 
alta do Paredão, soberana das outras. Dentro dela estava sobreguardada 
a Mulher, de custódia. E o menino Guirigó e o cego 
Borromeu, a salvos. Da parte de cima, das janelas, e das portas, 
no rés, vez a vez meus homens descarregavam. Aquele sobrado, 
sobradão, parava lá, sobre sereno – me prazia tudo comandando. 
Ir lá? 
– “Atual, em riba, estão dois: um é o José Gervásio. 
Embaixo, na venda, uns quatro...” – quem me informou disso foi 
o Jiribibe, em meu ouvido carecendo de altear voz, tanto que 
espingardaria estrondava. 
– “Pouco é, para ações. Tu vai lá, Riobaldo...” – quem me 
disse foi Diadorim, em tanto. Surriada zuniu. O tutuco das balas, 
e as que batiam no chão, as raivosas, tirando terra. 
Atirei, seco. Umas três ou quatro vezes. Carreguei em 
novamente. 
– “Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais 
perigoso...” – eu falei, muito alerta. Tudo que Diadorim 
aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que com 
pressentimentos. 
– “Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe. 
Com teu dever, pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu 
mais alcança... Constante que, aqui, o negócio está garantido...” 
– ele disse, mansinho, de me persuadir. 
Troquei o rifle-papo pelo máuser, movi mão, fogo. Nesse 
ato, nem sei se matei. Às artes, lá, o sobrado, que torna mirei e 
admirei. Meu posto? O quanto também olhei Diadorim: ele, 
firme se mostrando, feito veadamãe que vem aparecer e refugir, 
de propósito, em chamariz de finta, para a gente não dar com o 
veadinho filhote onde é que está amoitado ... Aquele sobrado era 
a torre. Assumido superior nas alturas dele, é que era para um 
chefe comandar – reger o todo cantão de guerra! 
– “Eu vou...” –; fui. 
Deixado João Curiol no meu lugar, e esse tinha muita valia. 
Rastejei, tomei saída, conforme tinha de ir: pelos quintais das 
casas. Ainda virei, relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O 
querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse 
meio de vida. 
Avancei, furando os terreiros e as hortas das casas, eu 
debaixo de armas, nos arreios. Toda a parte ali tinha gente 
nossa, que com brados me saudavam: conforme vale, quando 
um chefe mostra mor valentia. Gente com o Jõe Bexiguento, 
sobrechamado o “Alpercatas”. E estava lá o João Nonato – que 
dava boa-sorte, com o bom ar. Avancei, rompi uma cerquinha 
de taquara, contornei um pano de muro, onde o Paspe tinha 
furado os adobes, cavando torneiras. E dei fé: que o Jiribibe 
vinha me acompanhando. O menino bom. Os olhinhos dele a 
gente só via era porque eram inventados de pretos. – “Será, da 
banda de lá, estão bem governando, os clavinoteiros?” – ele me 
disse. Aí, por que me dizia? Soubesse não que o brinquedo 
agora era mortal? Sobre o que, se riu, me apresentando: o que 
era, no fofo da terra, debaixo duma roseira, um gatinho preto-ebranco, 
dormindo seu completo sossego, fosse surdo, 
refestelado: ele estava até de mãos postas... Mas, perto de mim, 
veio grão d’aço – que varou cheiamente um pé de mamoeiro. – 
“Vigia, te abaixa!” – eu ralhei com o Jiribibe. A gente ouvia a 
urração, ou cita seja, destemperada, dos inimigos, e um 
desentoar de cantiga, que toda pessoa era filho-da, segundo a 
qual. Aos canalhas! Mas mais xingava o Jiribibe, ripostando. Daí, 
depressa, ganhamos trincheiras, atrás dum forno de assar 
biscoitos: e berraram punhadão de disparos, para nosso lado, 
chega semelhava rajada de chuva-de-pedra. Lugar danoso! 
Aguardamos, deitados. – “Te foge, Jiribibe, que figuro eles têm 
gente atirando de cima de árvores...” – eu total aconselhei. 
Assim rastejávamos. E pouco faltava para o quintal do sobrado: 
só uma cerca miúda, com um chuchuzeiro dependurado com 
chuchus grandes; eram uns chuchus enormes. – “Vam’ boro, 
Chefe!” – que o Jiribibe gritou. E caiu morto, para pra cá – 
acertado na testa. Não gritei, e rastejei. Ao quando dar o 
derradeiro lance, na porta da cozinha do sobrado, derrubei uma 
bacia grande, que lá em-pé encostada estava. Aí entrei. Aquela 
bacia atrás de mim levou uma carga de tirázios, com a qual 
retiniu toda, lata velha... No eu entrar, os que ali vi me 
saudaram: – “Epa, Chefe!” – Respondi: – “Eh, epa!” E, naquele 
instante, pensei: aquela guerra já estava ficando adoidada. E 
medo não tive. Subi a escada. 
O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O 
senhor avista meus cabelos brancos... Viver – não é? – é muito 
perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é 
que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, 
depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha 
narração? 
Subi aquela escada-de-redor, escutando a madeira nos 
meus passos, e avisando: – “Quem evém sou eu, minha gente!” 
– repetido. Aquilo meio sombrio, o ar que dava era como de ser 
antigo dia-de-domingo. Aí, notei que eu mesmo arfava um 
pouco, e estava com uma sede. Por lá devia de ter algum pote 
fresco – imaginei. – “É eu! minha gente...” – eu disse; mesmo 
assim eles se assustaram primeiro, depois tomaram satisfação 
por me ver. Os que na sala que dava para a frente da rua 
estavam, os quais eram: que o Araruta e o José Gervásio, nas 
armas; e o menino Guirigó e o cego Borromeu, assentados no 
banco, encostado na parede para o interno. Esses dois, muito 
juntos, como que tremiam um tanto; deviam de estar rezando. – 
“Que e a mulher?” – eu indaguei. 
O menino Guirigó queria mostrar: ela estava presa num 
quarto. Ela também estivesse rezando? Corredor velho, para ele 
davam tantas portas, por detrás duma delas tinham fechado a 
mulher, num cômodo. A chave estava na mão do cego 
Borromeu. Era uma chave de todo-tamanho, ele fez menção de 
me entregar; rejeitei. – “Tem talha d’água, por aqui?” – eu disse, 
eu tinha uma pressa desordenada, de certo. – “Diz que lá 
embaixo tem...” – foi o que o menino Guirigó me deu resposta. 
Entendi que ele curtia sede, igualmente, e querendo comigo ir – 
por seguro temia descer sozinho a escada. E o cego Borromeu, 
também, que não respondeu, mas que mexeu a boca, mole, 
mole, fazendo desse rumor de quem termina de mastigar 
rapadura. Me enjoou. Mas ele não tinha comido alguma coisa. 
Não tive comigo: – “Tu me ouve, xixilado, tu me ouve? Assim 
tu me dá respeito e agradece interesses de ter tomado conta de 
você, e trazido em companhia minha, por todas as partes?!” Eu 
disse. Ele disse: – “Deus vos proteja, Chefe, dê ademão por nós 
todos... E de tudo peço perdão...” Ele se ajoelhou. Ouvir e ver isso 
me embaraçasse, eu já pegava ponto de remorso. 
Porque esse homem, sem visão carnal, de valia nenhuma, 
maldade minha era que tinha sido a trazida dele, de em desde o 
começo de lugar onde ele cumpria sua vida. E agora ele devia de 
padecer o redobrado medo, concebendo que vai ou vai a gente 
fugisse dali, e ele para trás parasse, para as unhas dos outros. 
Mas a cena desses todos pensamentos em mim foi ligeira 
demais, conforme não tinham geração. A meio me lembro, e 
conto, é só para firmar minha capacidade. Como o reslumbre, 
que, no tento da hora, eu prezei em Otacília, juízo vago. Como 
para a janela eu fui, quase que na imaginação de botar meu olhar 
e haver de ver, no longe tal, o lugar aonde ela andava. Conto, 
para o senhor conhecer quanta espécie de causa, no mover da 
mente, no mero da tragagem de guerra. E o José Gervásio e o 
Araruta, cada um em beira duma janela, agachados, carabinas 
em mão, as cheias cartucheiras. Para mim era que olhavam, 
estudados, querendo algum qualquer sinal. E aí uma bala alta 
abelhou, se seguindo sozinha, muito rente, com cujo barulho de 
música que fez eu conheci que era de comblém. Eu tinha de dar 
mais espertação ainda àqueles dois. Tenência. Para uma janela 
me cheguei. E endureci no rifle. Em volta relanceei. Eu – o 
bedegas! 
Saiba o senhor: eu estava ali, assim em padastro de todos, 
de do ar, de rechego, feito que em jirau-de-espera, para castigar 
onça assassinã. Vi ou não vi? Só espreitei. Dono do que lucrei, 
de espreitar. Uns deles, num terreiro acolá, manobravam a 
gosto, nas más armas. Assestei. Um era um sujeitão, muito 
baiano nos trajes. Do gatilho do rifle, no triz, me mandei nele. 
Aquele caiu torto; o outro completou. Assim eram três: o 
derradeiro percebeu que tinha céu, e correu, dando gambetas. 
Zumba! levou não sei quantas esburacadoras, na tampa de suas 
costas... Ah, ali valia; donde que eu estava. Ao mesmo quando 
revingaram, com umas descargas, despejadas. Dei atrás, mas 
sobranceei, de talaia. Fazia bem duas horas que aquela batalha 
tinha principiado. Se estava no poder do meio-dia. 
De graça berra é o boi, tirante a vaca. Dessa daquela vez, 
tudo não acabava sem um fim – ferrado que o Hermógenes não 
era cão de desmorder os dentes; e ele vinha de cinqüenta léguas! 
Toada tinha de ter um prazo. E há um vero jeito de tudo se 
contar – uma vivença dessas? Os tiros, gritos, eco, baque boléu, 
urros nos tiros e coisas rebentáveis. Dava até silêncio. Pois 
porque variava, naquele compasso: que bater, papocar, lascar, 
estralar e trovejar – truxe – cerrando fogo; e daí marasmar, o 
calado de repente, ou vindo aos tantos se esmorecendo, de 
devagar. Tempo que me mediu. Tempo? Se as pessoas 
esbarrassem, para pensar – tem uma coisa! : eu vejo é o puro 
tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma 
água... Tempo é a vida da morte: imperfeição. Bobices minhas – 
o senhor em mim não medite. Mas, sobre uns assuntos assim, 
reponho, era que eu almejava ter perguntado a Diadorim, na 
véspera, de noite, conforme quando com ele passeei. Naquela 
hora, eu cismasse de perguntar a Diadorim: 
– “Tu não acha que todo o mundo é doido? Que um só 
deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou 
o amor? Ou em horas em que consegue rezar?” 
Não indaguei. Mas eu sabia que Diadorim havia de me dar 
resposta: – “Doca Ramiro não era doido nenhum, Riobaldo; e 
ele, mataram...” Então, eu podia, revia: 
– “... Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, 
quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a 
gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, 
perto da barra, também tem belas troas de areia, e ilhas que 
forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os 
pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das 
Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garçarosada 
que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher... 
E o manuelzinho-da-troa, que pisa e se desempenha tão catita – 
o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de 
mais amor?...” 
Podia ser? Impossivelmente. 
Eu não tinha sido capaz de perguntar aqueles ensalmos a 
Diadorim, de fato só em coisa à-toa se conversou, trivial a 
respeito de munição e meus armamentos, e avio de guerra. 
Véspera. As horas é que formam o longe. Mas, agora, ali, em 
ocasiões de morte, eu repisei; e, mesmo, amontado no 
momento, que era que eu ia dizer a Diadorim, se perto de mim 
ele parasse? Hoje, não sei. Não soubesse, naqueles adiantes. Ali, 
por onde eu estava, eu marcava muito suave a mão da morte; 
feito um boiadeiro, que, em janela ou porta, ou tábua de curral 
ou parede de casa, por todas as partes por onde anda, carimba 
remarcada a amostra do ferro dele de seu gado, para se 
conhecer. Assim. Como lembro, que eu tinha uma dor-decabeça; 
era uma dor-de-cabeça forte, fincada num ai só, furante 
de verrumas. Agüentei. Devia de ser da sede. 
Dá, deu: bala beija-florou. Zuos – ao que rachavam 
ombreiras das janelas, estraçalhavam, esfarelavam fasquia. Umas 
que caíam quase como colhidas, no assoalho do chão – tinham 
dançado de ricochete – e ficavam para lá, amolgadas, feito 
pedaço de cano, ou aveladas de maduras. Essas podiam se 
esfriar, de vagarinho. Perdiam sem valia aquele feio calor que, 
podia ter sido a vida de uma pessoa. O José Gervásio e o 
Araruta recuaram para o meio da sala, me recomendaram me 
acautelasse. Mas eu permaneci. Disse que não, não, não. Minhas 
duas mãos tinham tomado um tremer, que não era de medo 
fatal. Minhas pernas não tremiam. Mas os dedos se 
estremecitavam esfiapado, sacudindo, curvos, que eu tocasse 
sanfona. Aí, gritei: – “Estrumes!” Deram fuzilada. Fogo 
fechado, as cargas de pólvora e o despejar e assoviar – como o 
vento ronda, no final das águas... Mesmo assim eu queria e 
visava, dali não saí, do vão aberto, não dando de meu poder. 
Desfechei bem. Por mim, meu desprezo, como essas 
assoviantes deles varejavam... Eu não estava caçando a morte – 
o senhor bem me entenda. Eu queria era a coragem maior. 
Macho com meu fuzil reiúno, dei salvas. Tive fechado o corpo? 
Quero que não; não pergunto. Não morri, e matei. E vi. Sem 
perigo de minha pessoa. 
Aí, quando foi, monumental, peguei susto: lá embaixo, 
muito estava demudando. Só se fez que, inesperadamente, parte 
do povo do Hermógenes, que tantos eram – a rascorja! – tinham 
alcançado de rodear por trás da minha gente, na ponta da rua, 
tomando retaguarda. Iam vencer, fosse possível? Temi por todos. 
Ah, não, que não regiam. D’ind’hoje, o amigo meu João 
Vaqueiro eu estou vendo: mais homem, mais moreno, 
arrenegando de todos os macacos, nem suor ele não 
desperdiçava... o que ele vestiu, vestiu, couro é... e vai embora, 
dando muito as costas... lá adiante, acometendo, contra outros 
outros... Morreu, que mataram. Em obra de umas cem braças. 
Ah, não! Os nossos agüentavam o relance, arre disparando, 
a mastro de balas; foi um fogo... 
E eu, hesitado nos meus pés, refiz fé: teve o instante, eu 
sabia meu dever de fazer. Descer para lá, me ajuntar com os 
meus, para ajudar? Não podia, não devia de; daí, conheci. Ali, um 
homem, um chefe, carecia de ficar – naquele meu lugar, no 
sobrado. Mas, resoluto, mandei ao Araruta e ao José Gervásio, 
que fossem, mas fossem! Eles mesmos queriam ir. Eles desceram 
a escada. Estado daquele fogo era um pipoco mal-acreditado. 
Tudo não sendo guerra? – entendi. Um panelão na trempe, o que 
se cozinhava... Sobrestive. Surgindo o fim, eu restava desandado 
ao para trás, sozinho só, com os dois. O menino Guirigó – uma 
mão apertando as costas da outra, seguidos esses 
estremecimentos, repuxava a cara, mas com os beiços abertos em 
dor, tudo uma careta. Ele era um menino. E o cego Borromeu 
fechava os olhos. 
Tive pena. Não ouvi nada; eu disse: – “Deveras?” Eu disse: 
– “Vocês têm paciência, meus filhos. O mundo é meu, mas é 
demorado...” A arte que prometi: que, mais baque, mais retumbo, 
a gente ganhava: a gente ganhava... a gente ganhava! Antes bati 
uma palmada firme, no liso da minha coronha. A vitória! Ah – a 
vitória – eu no meio dela, que com os ventos arrastado... 
E não era? Durou dali a meia-hora, nem bem, e vislumbrei 
outro alvoroço, mas da ponta da outra banda, e festivo para mim, 
me dando milagre. – Eli, do ar! Eh, dunga! Ao que era que tal era 
que: repentemente, o pessoal meu do Cererê-Velho, sequazes de 
João Goanhá suprachegavam também, enfrentando os 
Hermógenes pelas costas – davam a toda retaguarda! De alegre 
ser, destampei tiro sobre tiro. A guerra, agora, tinha ficado 
enorme. 
O senhor supute: lado a lado, somando, derramavam de ser 
os trezentos e tantos – reinando ao estral de ser jagunços... Teria 
restado mais algum trabuco simples, nos Gerais? Não tinha. E ali 
era para se confirmar coragem contra coragem, à rasga de se 
destruir a toda munição. Dessa guisa enrolada: como que lavrar 
uma guerra de dentro e outra de fora, cada 
um cercado e cercando. Recompor aquilo, no final? Só com 
a vitória. Duvidei não. Nasci para ser. Esbarrando aquele 
momento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o 
que mais alto se realçava. E conheci: oficio de destino meu, real, 
era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive! Não tivesse, 
e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu 
vencer: ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha história. Até 
que, nisso, alguém se riu de mim, como que escutei. O que era 
um riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, 
atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria 
pensar; e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e, então, eu 
ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão! Sujo!... e dele disse 
somentes – S... – Sertão... Sertão... 
Na meia-detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para 
trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos; 
feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal 
que perguntei: 
– “Você é o Sertão?!” 
– “Ossenhor perfeitamém, ossenhor perfeitamém... Que 
sou é o cego Borromeu... Ossenhor meussenhor...” – ele 
retorquiu. 
– “Voxe, uai! Não entendo...” – tartamelei. 
Gago, não: gagaz. Conforme que, quando ia principiar a 
falar, pressenti que a língua estremecia para trás, e igual assim 
todas as partes de minha cara, que tremiam – dos beiços, nas 
faces, até na ponta do nariz e do queixo. Mas me fiz. Que o ato 
do medo não tive. Mandei o cego se sentar, e ele obedeceu, ele 
estava no aparvoado; mas não se abancando no banco: que 
melhor se agachou, ficou agachado. Riu, de me dar nojo. Mas 
nojo medo é, é não? Destemor maior Deus não me desse, 
segundo retornei para a praça da janela, donde eu dava e 
mandava. Sobreolhava. Ah, máuser e winchester que 
assoviamzinho sutil. E chio de espingardão velho antigo. Chumbeou. 
Há-de varavam. Como refiro, que também eu não persistia 
ali aparte de tudo, desperdício; mais antes: quem se avultasse, 
baqueava... Carabina. 
Sucinto que se passou, horas tantas, estalos e estrondos 
estouros, sotrançando no chicotear das balas-balas, sempre disso. 
Sempremente. Ao constante que eu estive, copiando o meu 
destino. Mas, como vou contar ao senhor? Ao que narro, assim 
refrio, e esvaziado, luís-e-silva. O senhor não sabe, o senhor não 
vê. Conto o que fiz? O que adjaz. Que eu manejava na mira. 
Dava, dava. E que não pronunciei insultos e gritos, mesmo 
porque minha boca, a modo que naquele preciso tremor, me 
mal-obedecia. Sapateei, em vez, bati pé de pilão nas tábuas do 
assoalho tão surdo – o senhor é capaz que escute, como eu 
escutei? E o que o furor da guerra, lá fora, lá embaixo, tomava 
certa conta de mim, que a quase eu deixava de dar fé da dor-decabeça, 
que forte me doía, que doesse vindo do céu-da-boca, 
conforme desde, aos poucos, que o fogo tinha começado. E que 
água não provei bebida, nem cigarro pitei. Esperançando meu 
destino: desgraça de mim! Eu! Eu... 
Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O 
senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo? O senhor 
conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor pensa que 
morte é choro e sofisma-terra funda e ossos quietos... O senhor 
havia de conceber alguém aurorear de todo amor e morrer 
como só para um. O senhor devia de ver homens à mão-tente 
se matando a crer, com babas raivas! Ou a arte de um: tá-tá, tiro 
– e o outro vir na fumaça, de à-faca, de repelo: quando o que já 
defunto era quem mais matava... O senhor... Me dê um silêncio. 
Eu vou contar. 
Tudo estava tão pendurado para o fim... Derradeiro ainda 
foi, que eu virei para trás, para repreender o cego Borromeu; e 
que eu estava com dormente dor, nos braços. Sem-ordem 
daquele cego, estúrdio, agachado lá, cocoral. Só fez que disse, 
bronco: – “Quem me dê um de-comer?” Respondi: ralhei. Ah, 
há-de-o, singular ficasse, mesmo ali, mascando fumo grosso e 
cuspindo amarelo e preto... Dei num suor. Vozeiro dele, então, 
de repente: que principiou a cantar, ele estava cantando um 
louvado... 
Como os braços me testemunhavam um peso... Mesmo 
estranhei, quando fui notando que o tiroteio da rua tinha 
pousado termo; achei que fazia um certo minuto que o fogo 
teria sopitado. Cessaram, sim. Mas gritavam, vuvu vavava de 
conversa ruim, uns para os outros, de ronda-roda. Haviam de 
ter desautorizado toda munição? Olhando, desentendi. Atirar eu 
pudesse? Acho que quis gritar, e esperei para depoismente, mais 
tarde. Mesmo o que vi: aquele mexinflol. E que quem saía duma 
porta, para ir se juntar com o bando de todos – armou, 
segurando frente de si engatilhada uma garrucha de dois canos, 
pôs a mira – que era o catrumano Teofrásio, como se fosse 
braço-d’armas! E vi, chefiando os dele, o Hermógenes! Chapéu 
na cabeça era um bandejão redondo... Homem que se desata... 
Entendi. O senhor me socorre. 
Conheci o que estava para ser: que os dele e os meus 
tinham cruzado grande e doido desafio, conforme para cumprir 
se arrumavam, uns e outros, nas duas pontas da rua, debaixo de 
forma; e a frio desembainhavam. O que vendo, vi Diadorim – 
movimentos dele. Querer mil gritar, e não pude, desmim de 
mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno 
daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz. 
Como vinham de lá e de lá, em contra-ranchos, a tomar 
armas, as cartucheiras de tiracol. Atirar eu pude? A breca torceu 
e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei 
em fio vertiginoso. Quem era que me desbraçava e me peava, 
supilando minhas forças? – “Tua honra... Minha honra de homem 
valente!... “ – eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O 
fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude segurar com o queixo 
e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que 
trespassei de horror, precipício branco. 
Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar 
– correndo amouco... 
Ai, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu 
estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão 
animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para 
tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar 
comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles 
vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, 
se investiram... Ao que – fechou o fim e se fizeram. E eu 
arrevessei, na ânsia por um livramento... Quando quis rezar – e 
só um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o 
senhor sabe? Qual: ... o Diabo na rua, no meio do redemunho... O 
senhor soubesse... Diadorim – eu queria versegurar com os 
olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: 
desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim 
foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E 
eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só... 
E eu estando vendo! Trecheio, aquilo rodou, encarniçados, 
roldão de tal, dobravam para fora e para dentro, com braços e 
pernas rodejando, como quem corre, nas entortações. ... O diabo 
na rua, no meio do redemunho... Sangue. Cortavam toucinho 
debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de 
baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o 
chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e 
não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no 
embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. 
... O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah – mirei e vi – o 
claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... 
Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: 
porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu 
queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou 
em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do 
arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa- 
Senhora assentada no meio da igreja... Gole de consolo... Como 
lá embaixo era fel de morte, sem perdão nenhum. Que engoli 
vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não 
vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim! 
Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha 
mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais 
longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas 
profundezas. Trespassei. 
Eu estou depois das tempestades. 
O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o 
pouco? O Urucuia é ázigo_ Vida vencida de um, caminhos 
todos para trás, é história que instrui vida do senhor, algum? O 
senhor enche uma caderneta... O senhor vê aonde é o sertão? 
Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros buracos, 
tirante o que vem do Céu. Eu sei. 
Conforme conto. Como retornei, tarde depois, mal 
sabendo de mim, e querendo emendar nó no tempo, tateando 
com meus olhos, que ainda restavam fechados. Ouvi os rogos 
do menino Guirigó e do cego Borromeu, esfregando meu peito 
e meus braços, reconstituindo, no dizer, que eu tinha estado sem 
acordo, dado ataque, mas que não tivesse espumado nem 
babado. Sobrenadei. E, daí, não sei bem, eu estava recebendo 
socorro de outros – o Jacaré, Pacamã-de-Presas, João Curiol e o 
Acauã : que molhavam minhas faces e minha boca, lambi a água. 
Eu despertei de todo – como no instante em que o trovão não 
acabou de rolar até o fundo, e se sabe que caiu o raio... 
Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre 
de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam. 
– “E a guerra?!” – eu disse. 
– “Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... 
João Goanhá e o Fafafa, com uns dos nossos, ainda seguiram 
perseguindo os restos, derradeira demão...” – João Concliz deu 
resposta. – “O Hermógenes está morto, remorto matado...” – 
quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo... 
Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido – do 
jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra 
todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca de 
terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se 
quer rir – cara sepultada... Um Hermógenes. 
Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando: 
por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia. 
Sobresseguida à doideira de mão-de-guerra na rua, João Goanhá 
tinha carregado em cima dos bandidos deles que estavam dando 
retaguarda, e com eles rebentado... Aquilo não fazia razão. 
Suspendi minhas mãos. Vi que podia. Só o corpo me estivesse 
meio duro, as pernas teimando em se entesar, num emperro, que 
às vezes me empalhava. Sendo que me levantei, sustentando, e 
caminhei os passos; as costas para a janela eu dava. 
Nesse ponto, foi que o Alaripe e o Quipes vinham 
chegando. Notícia de Otacília me dessem; eu custava a me 
lembrar de tantas coisas. Aqueles dois vinham alheios, do que 
vinham, desiludidos da viagem deles: 
- “Era a vossa noiva não, Chefe...” – o que Alaripe relatava. 
– “O homem se chamava só Adão Lemes, indo conduzindo a 
irmã dele, fazendeira, cujo nome é Aesmeralda... Iam de volta 
para suas casas... Os que, então, no Porto-do-Ci deixamos, na 
barra do Caatinga...” 
Tanta gente tinha o mundo... – eu pensei. Tanta vida para a 
discórdia. Agradeci ao Alaripe, mas virei para os outros nossos; 
perguntei: 
– “Mortos, muitos?” – “Demais...” 
Isto o João Curiol me respondeu, prestativamente, sistema 
de amigo. Solucei em seco, debaixo de nada. Agora um me 
dizendo: que, com as ferramentas, uns estavam trabalhando de 
abrir covas para enterro, revezados. Alaripe fez um cigarro, 
queria dar para mim; que rejeitei. – “E o Hermógenes?” – aí foi o 
que o Alaripe perguntou. 
Como estavam indo abrir aquele quarto, trazendo do 
corredor a mulher do Hermógenes. Ela visse. – A senhora chegue 
na janela, dona, espia para a rua... – o que João Concliz falou. 
Aquela Mulher não era malina. – A senhora conheça, dona, um 
homem demõiado, que foi: mas que já começou a feder, retalhado na 
virtude do ferro... Aquela Mulher ia sofrer? Mas ela disse que não, 
sacudindo só de leve a cabeça, com respeito de seriedade. – Eu 
tinha ódio dele... – ela disse; me estremecendo. Ou eu ainda não 
estava bem de mim, da dor que me nublou, tive de sentar no 
banco da parede. Como no perdido mal ouvi partes do vozeio de 
todos, eu em malmolência. – Tomaram as roupas da mulher nua? 
Era a Mulher, que falava. Ah, e a Mulher rogava: – Que 
trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos 
muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e 
ordenando: – “Traz Diadorim!” – conforme era. – “Gente, 
vamos trazer. Esse é o Reinaldo...” – o que o Alaripe disse. E eu 
parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. – Ai, 
Jesus! – foi o que eu ouvi, dessas vozes deles. 
Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes 
que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já 
frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus-buritizais 
levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas 
com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será 
que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não 
olhei bem – como que garças voavam... E que fossem campear 
velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em 
volta do escuro do arraial... 
Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a 
Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como 
que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, 
casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, 
só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo 
assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota 
nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara 
economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de 
duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, 
não é, não fica sendo! Diadorim... 
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava 
rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a 
Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro 
simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o 
corpo. E disse... 
Diadorim – nu de tudo. E ela disse: – “A Deus dada. 
Pobrezinha...” 
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu – 
não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor 
divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo 
somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim 
era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não 
pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha... 
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão 
terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi 
um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! 
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não 
acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. 
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da 
gente nunca tem termo real. 
Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, 
retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a 
Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles 
olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. 
Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só 
ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por 
que nome chamar; eu exclamei me doendo: 
– “Meu amor!...” 
Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder 
não presenciar o mundo. 
A Mulher lavou o corpo, que revestiu com a melhor peça 
de roupa que ela tirou da trouxa dela mesma. No peito, entre as 
mãos postas, ainda depositou o cordão com o escapulário que 
tinha sido meu, e um rosário, de coquinhos de ouricuri e contas 
de lágrimas-de-nossa-senhora. Só faltou – ah! – a pedra-deametista, 
tanto trazida... O Quipes veio, com as velas, que 
acendemos em quadral. Essas coisas se passavam perto de mim. 
Como tinham ido abrir a cova, cristamente. Pelo repugnar e 
revoltar, primeiro eu quis: – “Enterrem separado dos outros, 
num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...” 
Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me 
vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos 
extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. Daí, 
fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão 
enterrada, em campo do sertão. 
Ela tinha amor em mim. 
E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. 
Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais 
do que eu, a minha verdade. Fim que foi. 
Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a 
estória acaba. 
Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti 
o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí ultimei 
o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente. Ao 
que eu ia levar comigo era só o menino, o cego, e os dos 
catrumanos vivos sobrados: esses eu carecia de repor de volta, 
na terra deles, nos lugares. E, a Mulher, também dela me 
despedi, há-de ver que esturdiamente, sem continuação de 
continuação. Ainda encomendei a João Curiol, que era um 
baiano bom, na palavra e no caráter, que providenciasse o 
retorno daquela, para onde quisesse ir outra vez. 
Desapoderei. 
Aonde ia, eu retinha bem, mesmo na doidagem. A um 
lugar só: às Veredas-Mortas... De volta, de volta. Como se, tudo 
revendo, refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não 
tinha tido, repor Diadorim em vida? O que eu pensei, o pobre 
de mim. Eu queria me abraçar com uma serrania? Mas, nessa 
parte, de muito mal me lembro, pelo revés em minha saúde. Ao 
que eu ia, de repente, me vinha um assombramento de espírito, 
muita vez tonteei, de ter de me segurar, de cair; e, depois, 
durante muitos espaços, eu restava esquecido de tudo, de quem 
eu era, de meu nome. Mas o Alaripe, Pacamã-de-Presas, o 
Quipes, o Triol, Jesualdo, o Acauã, João Concliz, e o Paspe, me 
cuidavam; esses tinham, por toda a lei, forçado de me acompanharem, 
vinham comigo; e o Fafafa, mais João Nonato e 
Compadre Ciril, que vieram depois. Amigos meus. Aí eu vinha. 
Chapadão. Morreu o mar, que foi. 
Eu vim. Pelejei. Ao deusdar. Como é que eu sabia 
destornar contra a minha tristeza? O dito, vim, consoante 
traçado. Num lugar, o Tuim, me alembro: eu tive de mudar para 
outro cavalo. E um sitiante, no Lambe-Mel, explicou – que o 
trecho, dos marimbus, aonde íamos, se chamava mais certo não 
era Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Coisa que compadre 
meu Quelemém mais tarde me confirmou. Daí, mais para 
adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã. Mas o sentido 
do tempo o senhor entende, resenha duma viagem. Cantar que 
o senhor fosse. De ai, de mim. Namorei uma palmeira, na 
quadra do entardecer... 
Na morna, baqueei, não podendo mais. Me levaram, por 
primeiro, de revexo. Depois me botaram para dentro duma casa 
muito pobre. Desembestei doente. Por último, como perdi meu 
conhecimento, estavam me deitando num catre. 
Que foi febre-tifo, se diz, mas trelada com sezão, mas 
sezão forte especial – nas altíssimas! Que a febre que eu tinha 
era tamanha tanta, como nunca se viu – o Alaripe depois me 
disse ; que no decorrer dos acessos eu tresvariava. Do que, no 
ouvir contado, recordei a estória dum fazendeiro, o mais 
maldoso, que o demônio por fim salteou, por suas ruindades: e 
que, endemoninhado, no quarto de sua casa, uivando lobum, 
suplicava alivio do calorão, e carecia mesmo que os escravos 
despejassem nele latas e baldes d’água, ao constantemente, até 
para evitar que, de tudo devorante tão quente, não viesse e desse 
de pegar fogo no cômodo, de incêndios... Doidice. Em dança de 
demônios, que nem não existem. Pois, então, só a doença não 
bastasse? O tempo que fiquei, deslembrado, detido. O quanto 
foi? Mas, quando dei acordo de mim, sarando e conferindo o 
juízo, a luz sem sol, mire e veja, meu senhor, que eu não estava 
mais no asilo daquela casinha pobre, mas em outra, numa grande 
fazenda, para onde sem eu saber tinham me levado. 
Eu estava na Barbaranha, no Pé-da-Pedra, hóspede de seo 
Josafá Ornelas. Tomei caldo-de-galinha, deitado em lençóis alvos, 
recostado. E já parava meio longe aquele pesar, que me 
quebrantava. Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa 
que eu queria ver, e que me deu prazer, foi a marca dos tempos, 
numa folhinha de parede. Sosseguei de meu ser. Era feito eu me 
esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa, a 
alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de 
pedras. 
Mas aquele seo Ornelas era homem de muita bondade, 
muita honra. Ele me tratou com categoria, fui príncipe naquela 
casa. Todos – a senhora dele, as filhas, as parentas – me 
cuidavam. Mas o que mormente me fortaleceu, foi o repetido 
saber que eles pelo sincero me prezavam, como talentoso 
homem-de-bem, e louvavam meus feitos: eu tivesse vindo, 
corajoso, para derrubar o Hermógenes e limpar estes Gerais da 
jagunçagem. Fui indo melhor. 
Até que, um dia, eu estava repousando, no claro estar, em 
rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um 
pressentimento. Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. 
Otacília. 
Meu coração rebateu, estava dizendo que o velho era 
sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se orçava 
mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor. 
Ela tinha vindo com a mãe. E a mãe dela, os parentes, todos se 
praziam, me davam Otacília, como minha pretendida. 
Mas eu disse tudo. Declarei muito verdadeiro e grande o 
amor que eu tinha a ela; mas que, por destino anterior, outro 
amor, necessário também, fazia pouco eu tinha perdido. O que 
confessei. E eu, para nojo e emenda, carecia de uns tempos. 
Otacília me entendeu, aprovou o que eu quisesse. Uns dias ela 
ainda passou lá, me pagando companhia, formosamente. 
Ela tinha certeza de que eu ia retornar à Santa Catarina, 
renovar; e trajar terno de sarjão, flor no peito, sendo o da festa de 
casamento. Eu fui, com o coração feliz, por Otacília eu estava 
apaixonado. Conforme me casei, não podia ter feito coisa 
melhor, como até hoje ela é minha muito companheira – o 
senhor conhece, o senhor sabe. Mas isto foi tantos meses depois, 
quando deu o verde nos campos. 
Eu já estava de todo bom, firme para as arremessadas, 
quando ali na Barbaranha se surgiu para mim igualmente a visita 
de seô Habão – ele com o seo Ornelas se tivessem entre tempos 
pacificado. Homem baseado. Demonstrou que tinha muita 
satisfação em me ver, assim como para mim vinha trazendo 
outro cavalo de presente – o qual era ruço-rodado, ordem de 
valor e estampa. Ali agraciado aceitei, meu sinceramente. Mas ele 
portava causa maior – a que tinha ido confirmar e saber, e 
agenciar, por seus bons préstimos. E era que meu padrinho 
Selorico Mendes acabara falecido, me abençoando e se 
honrando, orgulhoso de meus atos; e as duas maiores fazendas 
ele tinha deixado para mim, em cédula de testamento. Seô Habão 
queria logo me levar lá, no Curralim, no Corinto, para eu entrar 
em paz de posses. Rejeitei; adiei, isto é. Porquanto, de fato, fui, e 
tudo recebi em limpo, sem precisão de tocar demandas, por falta 
de outros mais legítimos herdeiros, e o que também devido dou 
ao advogado meu que zelou a sucessão – Dr. Meigo de Lima. 
Só que isso foi mais tarde. 
Pois, primeiro, eu tinha outra andada que cumprir, 
conforme a ordem que meu coração mandava. Tudo agradeci, 
dei a despedida, ao seo Ornelas e os dele – gente-do-evangelho. 
Saí somente com o Alaripe e o Quipes, os outros deixei à espera 
de minha volta, que, por muita companhia numerosa, de nós não 
cobrassem duvidado. Mas, antes de sair, pedi à dona Brazilina 
uma tira de pano preto, que pus de funo no meu braço. 
Aonde fui, a um lugar, nos gerais de Lassance, Os-Porcos. 
Assim lá estivemos. A todos eu perguntei, em toda porta bati; 
triste pouco foi o que me resultaram. O que pensei encontrar: 
alguma velha, ou um velho, que da história soubessem – dela 
lembrados quando tinha sido menina – e então a razão rastraz de 
muitas coisas haviam de poder me expor, muito mundo. Isso não 
achamos. Rumamos daí então para bem longe reato: Juramento, 
o Peixe-Cru, Terra-Branca e Capela, a Capelinha-do-Chumbo. Só 
um letreiro achei. Este papel, que eu trouxe – batistério. Da 
matriz de Itacambira, onde tem tantos mortos enterrados. Lá ela 
foi levada à pia. Lá registrada, assim. Em um 11 de setembro da 
era de 1800 e tantos... O senhor lê. De Maria Deodorina da Fé 
Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e 
nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... 
Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha que a vida é 
tristonha? 
Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? 
O existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de 
sujidade, à parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é? 
E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. 
Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o 
cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes 
conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele 
imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em 
mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga 
falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. 
Para que eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília 
também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar. 
Era. 
Passado esse tempo, conforme foi, pouca tardança. 
Mas, então, quando se estava de volta, m’embora vindo, 
peguei uma inesperada informação, na Barra do Abaeté. De Zé 
Bebelo! Tinha mesmo de ser. Não sei por que foi, que com 
aquilo me renasci. Que Zé Bebelo estava demorando léguas para 
cima, perto do São Gonçalo do Abaeté, no Porto-Passarinho. Me 
fiz para lá. E como era, que, antes e antes, eu não tivesse pensado 
em Zé Bebelo? Trote tocamos, viemos, beirando aquele rio. O 
senhor sabe – o rio Abaeté, que é entristecedor audaz de belo: 
largo tanto, de morro a morro. E em minha vida eu já pensava. 
Zé Bebelo gritou: – “Safa! Safas!...” – e me abraçou como 
amigo cordial, contente de muito me ver, constante se nada 
tivesse destruído o nosso costume. Conto que estava o mesmo, 
aposto e condizente. 
– “Tudo viva!, Riobaldo, Tatarana, Professor...” – ele 
concisou. – “Tu quis paz?” 
Sagaz assim me olhava, chega me cheirar só faltasse, de 
tornados a encontrar no curral, como boi a boi. Disse que eu 
estava feliz, mas emagrecido, e que encovava mais os olhos. 
– “Estais p’ra trás... Sabe? Negociei um gado... Mudei meus 
termos! A ganhar o muito dinheiro – é o que vale... Pó d’ouro em 
pó...” – o que ele me disse. 
E era a pura mentira. Mas podia ser verdade. 
Porque ele, para se viver, carecia daquela bazófia, forte 
mestreava. Como logo me pregou: 
– “Há-te! Acabou com o Hermógenes? A bem. Tu foi o 
meu discípulo... Foi não foi?” 
Deixei: ele dizer, como essas glórias não me invocavam. 
Mas, então, ele não me entendendo, esbarrou e se pôs. Cujo: 
– “A bom, eu não te ensinei; mas bem te aprendi a saber 
certa a vida...” Eu ri, de nós dois. 
Três dias falhei com ele, lá, no Porto-Passarinho. 
E Zé Bebelo corrigiu, para eu ouvir, os projetos que tinha. 
Aí, ai, fanfarrices. Não queria saber do sertão, agora ia para 
capital, grande cidade. Mover com comércio, estudar para 
advogado. – “Lá eu quero deduzir meus feitos em jornal, com 
retratos... A gente descreve as passagens de nossas guerras, fama 
devida...” – “Da minha, não senhor!” – eu fechei. Distrair gente 
com o meu nome... Então ele desconversou. Mas, naqueles três 
dias, não descansou de querer me aliviar, e de formar outros 
planejamentos para encaminhar minha vida. Nem indenizar 
completa a minha dor maior ele não pudesse. Só que Zé Bebelo 
não era homem de não prosseguir. Do que a Deus dou graças! 
Porque, por fim, ele exigiu minha atenção toda, e disse: 
– “Riobaldo, eu sei a amizade de que agora tu precisa. Vai 
lá. Mas, me promete: não adia, não desdenha! Daqui, e reto, tu sai 
e vai lá. Diz que é de minha parte... Ele é diverso de todo o 
mundo.” 
Mesmo escreveu um bilhete, que eu levasse. Ao quando 
despedi, e ele me abraçou, senti o afeto em ser de pensar. Será 
que ainda tinha aquele apito, na algibeira? E gritou: – “Safas!” –; 
maximé. 
Tinha de ser Zé Bebelo, para isso. Só Zé Bebelo, mesmo, 
para meu destino começar de salvar. Porque o bilhete era para o 
Compadre meu Quelemém de Góis, na Jijujã – Vereda do Buriti 
Pardo. Mais digo? O senhor vá lá. No tempo de maio, quando o 
algodão lãla. Tudo o branquinho. Algodão é o que ele mais 
planta, de todas as modernas qualidades: o rasga-letras, bibol, e 
mussulim. O senhor vai ver pessoa de tal rareza, como perto dele 
todo-o-mundo pára sossegado, e sorridente, bondoso... Até com 
o Vupes lá topei. 
Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu 
contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com 
aquela enorme paciência – calma de que minha dor passasse; e 
que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive 
vergonha, assaz. 
Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei: 
– “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!” 
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu: 
– “Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, 
às vezes, são as ações que são as quase iguais...” 
E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de um relatar 
passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, 
no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. 
Agora estou aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com 
ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro. O Rio de São Francisco 
– que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em 
pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: 
que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem 
soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não 
há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia. 
*** 
FIM DE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”